Resenha do livro \"Juca Rosa: Um Pai de Santos na Corte Imperial\"

September 8, 2017 | Autor: M. Pereira Toledo... | Categoria: Resenha critica
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RESENHA Santo Zuza e seus Favores: crenças e relações sociais no Rio de Janeiro do XIX Gabriela dos Reis Sampaio, Juca Rosa: Um Pai-de-Santo na Corte Imperial. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2009. Jornal de Rsenhas, 2010 No ano de 1871, quando o jovem comerciante de folhas de flandre, Rodrigo Militão da Silva foi obrigado a depor sobre o que sabia a respeito de uma misteriosa irmandade organizada na imperial cidade do Rio de Janeiro em torno de um pobre alfaiate negro e analfabeto, muitas cenas assombrosas e fatos escandalosos começaram a vir a tona. Para espanto das autoridades policiais e jornalistas – que avidamente disputavam as informações a respeito do Pai Quimbombo e de suas sedutoras filhas – o que se sobressaía dos testemunhos era uma realidade que embora estivesse na cara de todos, quando colocada nos termos formais do processo criminal tornava-se muito constrangedora. Era esta a da existência, praticamente pública, de um lider religioso carismático de origem africana, atuando livremente nas ruas da cidade e em torno de quem se havia organizado uma bem estruturada irmandade da qual participavam sobretudo mulheres. Estes fatos sinalizavam tanto a leniência das autoridades, que faziam vista grossa em relação a Juca Rosa, quanto ilustravam a crendice ignorante de brancos, negros e pardos que viviam na corte e toleravam ou acreditavam nos poderes do feiticeiro. Pior ainda soavam os fatos que envolviam as mulheres. Algumas poucas brancas, consideradas faceiras pelos coevos, muitas pardas e inúmeras negras, todas pobres, solteiras e desvalidas, tangenciando a prostituição, formavam uma confraria em torno do Pai Vencedor, o qual as insuflava de poderes capazes de manter homens endinheirados – e alguns, como o próprio Militão acima mencionado, longe de opulentos – a elas amarrados por feitiços, beberagens e outras fórmulas misteriosas. Dizia Militão que , em certa data, em uma casa situada a r. do Cabuçu, 2, no Engenho Novo, assitira uma destas cerimonias, na qual, a então famosa Mariquinhas da Europa, uma das principais da associação de Juca Rosa, jovem portuguesa, costureira e amante de portas adentro de um famoso comendador, fizera uma das tais cerimonias com o fito de “atrair à sua casa cada vez mais um negociante opulento desta praça que então a frequentava”. O tal serviço de amarração do amante consistia “na colocação de um côvado e meio de pano branco estendido no chão e sobre este em forma de cruz um pano preto e encarnado, pondo-se sobre tudo um bagre de papo amarelo, azeite de dendê, obi, orobô, atá, farinha, feijão, milho e outras coisas que não se recorda”. Em seguida, Rosa passou um galo vivo pelas partes do corpo de Mariquinhas e depois esquartejou-o e o estufou com tudo que ali estava, inclusive o bagre, sempre cantando e pronunciando palavras desconhecidas. Finalmente amarrado nos panos que ali estavam, o embrulho foi levado para ser deixado na porta de uma igreja. É com este fantástico material, retirado do processo criminal do feiticeiro carioca José Sebastião Rosa, que em 1871 foi condenado a 6 anos de cadeia por estelionato, que a autora, Gabriela dos Reis Sampaio se baseia em Juca Rosa: Um Pai-de-Santo na Corte Imperial para reconstituir diferentes aspectos da sociedade brasileira – especialmente carioca – escravista e paternalista do período. Nas mãos da autora, 1

o famoso caso de Juca Rosa aparece como uma janela por meio da qual a autora penetra nos desvãos da sociedade escravista urbana da corte, para recuperar não apenas a dinâmica das crenças existentes entre as camadas populares cariocas, mostrando como estas estavam embebidas de ritos de origem africana, mas também para penetrar nas relações sociais que moldavam a sociedade escravista do período. Como bem sublinha o livro Juca Rosa as relações sociais que permitiram que a sociedade carioca, por certo período, tolerasse as atividades de Juca Rosa eram, em essência, as mesmas que faziam com que Pai Quimbombo fosse procurado e protegido por políticos poderosos, que no Pai acreditavam encontrar meios para obter de forças sobrenaturais maiores favores, que os conduzisse a sucessos na política e nas finanças. Recebendo favores de poderosos, o feiticeiro Juca Rosa, apesar de negro e praticante de ritos africanos, pode prosperar em uma sociedade escravista e hostil. Em troca, o Pai Vencedor manipulava forças sobrenaturais de forma a obter dos santos – como a do Santo Zuza incorporado por Rosa em seus transes – favores especiais para aqueles que o protegiam. Embora estivesse na mãos dos homens brancos e ricos a garantia do livre funcionamento da sociedade de Juca Rosa, eram nas mulheres solteiras e pobres que o Pai encontrava suas principais freguesas. Na cidade movida a trabalho escravo e na qual se confundiam uma multidão de mulheres pobres livres, que oscilavam entre o trabalho mal remunerado de costureiras e outras atividades e a prostituição disfarçada ou escancarada, a sobrevivência dependia, muitas vezes, da capacidade destas mulheres em manter o interesse de amantes volúveis e facilmente enfadados. Em uma sociedade em que abundavam mulheres solteiras e desprotegidas socialmente, manter o interesse de um amante rico ou mesmo remediado, podia significar manter-se acima da prostituição pura e simples, alcançando uma precária estabilidade. No entanto, sendo as oportunidades profissionais muito pequenas e o número de mulheres desvalidas, grande, estabelecia-se uma acirrada competição entre as muitas amantes potenciais – e eventualmente, amantes homens, como fica sugerido em um dos trechos do processo. O Pai Vencedor entrava ai. Como bem mostra Gabriela Sampaio, os trabalhos realizados por Juca Rosa impregnavam suas filhas de poderes de sedução especiais, por meio dos quais elas se fortaleciam para enfrentar a dura tarefa de manter o interesse e negociar os favores de amantes fugidios. Em troca de tais benesses do Santo Zuza, as filhas de Rosa eram obrigadas a entregar altas somas de dinheiro, a tornar-se amantes do próprio Rosa e, finalmente, a jurar fidelidade à sociedade, sustentando de formas variadas seu pleno funcionamento. Por seu turno, senhoras de poderes renovados, estas mulheres passavam a exigir crescentes favores de seus amantes. Alguns deles, em resposta, também passavam a recorrer a Rosa para ganhar mais, podendo assim saciar as crescentes exigências de suas protegidas. Embora ausentes do processo criminal contra Juca Rosa, como sugere o livro, é certo que senhoras bem postas da sociedade também recorressem ao feiticeiro. Fechando o círculo, não seria difícil imaginar que certas esposas, cansadas das indiscrições de seus consortes, que gastavam fortunas com amantes eventuais, também recorressem ao Pai Vencedor para reconduzir para o lar esposos travessos e desencaminhados. Como bem aponta a autora em sua perspicaz análise da sociedade de Juca Rosa, esta mantinha-se por meio de um frágil equilíbrio. Por um lado, o Pai Quimbombo atuava dentro de um conjunto de crenças e ritos nos quais elementos centro-africanos combinavam-se a santos e orações católicos, conformando 2

um repertório que embora fosse extremamente popular e por tal tolerado, jamais poderia almejar qualquer reconhecimento oficial. Se Juca Rosa atuava praticamente à luz do dia, isto não significava que ele, suas crenças ou a sociedade que ele liderava pudessem almejar qualquer reconhecimento oficial. Além disso, baseando sua atuação no conceito de ventura-desventura e de troca de dons entre homens e entidades, Juca Rosa pode acomodar sua atuação nos cânones da sociedade escravista paternalista da época, na qual dependência e proteção pessoal eram a tônica principal. Colocando-se como intermediário entre entidades sobrenaturais e humanos, sendo capaz de negociar trocas e favores com forças mágicas, o Pai Vencedor, de alguma maneira, reeditava na esfera mágico-religiosa os princípios que regiam a sociedade escravista da corte. Gabriela Reis Sampaio sugere, porém, que tal frágil equilíbrio de forças seria rompido com a discussão e aprovação da Lei do Ventre Livre. Aponta a autora a existência de uma notável coincidência entre as discussões parlamentares a respeito da Lei do Ventre Livre e a prisão e condenação de Rosa. Tendo mudado definitivamente as relações entre senhores e seus escravos, afetando igualmente as relações destes senhores com seus dependentes livres e libertos, a Lei do Ventre Livre iria por um fim ao velho balanço do paternalismo. Na sociedade que antevia o final do cativeiro e que começava a produzir uma multidão de libertos e libertandos, os quais alcançavam suas liberdades de maneira muito mais autônoma, não cabia mais tolerar “negros ignorantes e bárbaros” convivendo com a boa sociedade e divulgando suas idéias atrasadas e equivocadas. Conforme aponta a autora de Juca Rosa a partir dali a tolerância se desfaria junto com a ascenção das massas de escravos à liberdade. Fotografando exatamente a virada da sociedade escravista-paternalista e a ascenção de uma visão racializada-excludente, Gabriela Reis Sampaio em Juca Rosa: Um Pai-de-Santo na Corte Imperial nos premia com uma rica visão da sociedade escravista urbana da segunda metade do XIX. Boa leitura! Maria Helena Pereira Toledo Machado Professora Livre-Docente Departamento de História Universidade de São Paulo

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