Resenha do livro O mundo muçulmano, de Peter Demand

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Publicado em: Pedro Paulo A Funari, Resenha de “O Mundo Muçulmano”, de Peter Demant, www.nethistoria.com, ISNN 1679 8252, 15/08/2004.

Peter Demant, O mundo muçulmano. São Paulo, Contexto, 2004, 432pp.

Pedro Paulo A Funari

Atentados sangrentos, homens-bomba explodindo em cafés, confrontos armados entre grupos extremistas e morticínios de inocentes no meio da rua. Pelos jornais e pela tevê, as terríveis imagens estão aí, todos os dias, diante de nós. Do outro lado, exércitos também brutalizam populações, matam civis. Ao depararmo-nos com esse espetáculo marcado pela brutalidade, nossa reação natural tende a ser imediata e igualmente emocional. Até quando suportaremos viver sob o império do medo? É a pergunta que, perplexo, o mundo inteiro parece se fazer. Mas o fato é que, a despeito da avalanche de informações que nos chegam pela mídia, na verdade pouco sabemos sobre as causas que geraram e continuam a alimentar a escalada de violência. Em vez de identificar anjos e demônios numa guerra suja, como querem fazer crer os conservadores, precisamos compreender como e por que se deu, afinal, o processo histórico de radicalização de setores conservadores ocidentais e fundamentalista no mundo muçulmano.

Para compreendermos esse mundo muçulmano, tão pouco conhecido, surge, agora, a oportunidade de lermos o livro do historiador Peter Demant. O mundo muçulmano, de Peter Demant (Editora Contexto, 432 págs, R$ 49,90). O autor desenha um panorama histórico da formação e evolução do islamismo, desde os tempos do profeta Maomé até os dias de hoje. Nessa viagem no tempo, o livro explica as diversas fases de expansão do Islã, trazendo à luz seus conflitos e divisões internas, bem como apontando as raízes de sua tensa relação com o Ocidente. Bem ao corrente das críticas às concepções normativas da sociedade, mostra que tanto o Islã como o Ocidente são plurais, heterogêneos, pelo que não hesita em colocar “Ocidente” entre aspas. Demant, que morou oito anos no Oriente Médio,

mantém assídua interlocução com estudiosos israelenses e palestinos. Desta experiência deriva a sua posição, defendida ao longo das páginas do livro, de que tal problemática não se resolverá através de ações bélicas que, sob a justificativa de buscar a paz a qualquer preço, apenas estimulam o recrudescimento do conflito. “As políticas oficiais usadas para reprimir a violência se tornam instrumentos em favor dos fundamentalistas”, observa, com propriedade, o autor.

A obra, monumental do ponto de vista histórico, é dividida em três grandes blocos, intitulados “Ontem”, “Hoje” e “Amanhã”. No primeiro deles, Demant mostra como os discípulos de Maomé, depois de violenta perseguição, conseguiram construir um dos maiores domínios da História, aquele que legou à humanidade uma das mais ricas e mais belas tradições culturais de que temos notícia, preservando e recriando as tradições do mundo greco-romano. A seguir, descreve a gestação dos grupos fundamentalistas no seio do Islã, revelando os motivos da politização crescente daquela religião, revelando-nos que a radicalização da fé se impôs como uma resposta às crises internas e ao choque do mundo muçulmano, na periferia do capitalismo, com a modernidade. Por fim, na terceira parte do livro, o autor discute as condições possíveis para um necessário e inadiável diálogo entre as partes, para tentar evitar o temido e anunciado “choque entre civilizações”, propugnado pelo estudioso conservador americano Samuel Huntington.

O mérito maior do livro talvez seja derrubar preconceitos e verdades estabelecidas. Pondo ordem nos conceitos, explica-nos, didaticamente, que nem todos os árabes são muçulmanos – e que nem todos os muçulmanos são árabes – e, ainda, que nem todos os muçulmanos soltam bombas em nome de Alá: algo que devia ser óbvio, mas não é. Combinando o rigor histórico com um texto fluente, perfeitamente acessível aos nãoiniciados no assunto, O mundo muçulmano mostra que o Islã é, na sua essência, mais flexível do que a imagem estereotipada e tão difundida. “Ele permite e precisa do diálogo com o outro”, argumenta o autor.

Admirador da cultura muçulmana, Peter Demant não se abstém de apontar o que considera um dos motivos cruciais para o avanço da onda fundamentalista. Enquanto o

Cristianismo e o Judaísmo passaram por movimentos reformistas, o Islamismo confrontouse apenas parcialmente com a modernidade, ainda que a Turquia, desde a revolução de Ataturk, tenha se destacado por sua laicidade. Resta o fato que “só uma crítica das fontes da religião permitirá um repensar dos princípios que mais dificultam a convivência do islã com a modernidade”, observa o autor. “Uma leitura histórica crítica permitiria contextualizar e relativizar os princípios que parecem gravados em perpetuidade nos textos – por exemplo, o antagonismo para com o mundo não-muçulmano, a supremacia para com minorias não-muçulmanas, a subordinação da mulher, entre outros”.

Numa leitura apressada, poder-se-ia talvez acusar aí um excesso de ocidentalismo em tal perspectiva. Nada mais distante da proposta e do olhar de Demant. Se, por um lado, ele chama a atenção para o fato de que a leitura ahistórica do Alcorão tem prejudicado o desenvolvimento do Islã, por outro, defende que cabe ao próprio Ocidente uma enorme e decisiva parcela de responsabilidade nisso tudo. “A violência, da perspectiva dos fundamentalistas, constitui apenas uma merecida e justificável resposta às agressões recebidas”, escreve, logo na introdução do volume.

O livro, crítico e provocativo, aposta no diálogo, mas não alimenta ilusões ou falsas expectativas: “Com um islamismo violento que preconiza uma guerra para estabelecer o reino de Deus na Terra, não existe diálogo viável: ele constitui um crescente risco para a segurança de todos”, adverte Demant. No entanto, a principal advertência do livro é dirigida ao próprio Ocidente: “Sem transformações profundas na estrutura da desigualdade global que mantém as populações muçulmanas presas num ciclo de empobrecimento e isolamento, não se conseguirá evitar a ampliação maciça do extremismo”, conclui. Portanto, não será com armas e discursos inflamados que se combaterá o extremismo em escala planetária. Os verdadeiros antídotos contra o horror são a diminuição da desigualdade entre as nações e nas próprias sociedades muçulmanas, a justiça social e a tolerância para com a diferença. Embora possamos não estar de acordo com tudo que propõe Demant, a lição maior do livro consiste, justamente, em sabermos em entender e respeitar a diversidade.

Pedro Paulo A. Funari, professor titular da UNICAMP, é coordenador-associado do Núcleo de Estudos Estratégicos (NEE/UNICAMP).

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