Resenha do livro \"O Processo\", de Franz Kafka.

July 25, 2017 | Autor: R. Ferreira Corrêa | Categoria: Literature, Direito
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O Processo - Franz Kafka

Franz Kafka, escritor theco nascido em Praga no dia 3 de julho de 1883, é considerado um dos principais expoentes da literatura do século XX. Kafka nasceu em uma família judia da classe média residente em Praga, até então pertencente ao Império Austro-Húngaro, foi educado em duas línguas (alemão e tcheco) e cresceu sob as influências de três culturas: a judaica, a tcheca e a alemã, tendo produzido nesta última os seus escritos principais. Seu crescimento ficou marcado pela presença rígida do pai, um abastado comerciante judeu, de forma que na obra de Kafka a figura paterna passou a ser associada à opressão e à aniquilação da vontade humana.
Formado em Direito, Kafka foi funcionário da companhia de seguros italiana Assicurazioni Generali, pelo período de quase um ano. O campo jurídico por si só nunca provocou demasiada empatia sobre o autor, porém, dada a ampla gama de profissões as quais ele teria acesso, acabou optando por esta área, que se tornou assunto regularmente abordado em sua obra, principalmente quando trata da atomização que o indivíduo sofre por parte do aparato burocrático estatal. Teve vida emocional conturbada, passando por vários noivados e amores infelizes; tais circunstâncias acentuaram o sentimento de solidão e desamparo, amplamente explorados em sua obra, através de características atribuídas aos personagens.
Ficou conhecido por explorar em suas obras as situações de absurdo existencial, desenvolvidas em ambientes que mesclam sonhos e pesadelos, fatos corriqueiros e acontecimentos de improvável realização, cujas tramas são marcadas por extrema fuga da realidade e por situações que beiram à loucura. Kafka é um autor de difícil enquadramento literário, ou seja, não se pode facilmente dizer que ele pertence a determinada escola de pensamento da literatura, mas uma de suas características é a exploração do complexo conceito do absurdo, raciocínio que nega a ideia de que exista uma relação de causa e consequência entre duas situações ocorridas, e que portanto demonstra a inabilidade humana de encontrar significados para os fenômenos que presencia, apesar da tendência que as pessoas têm de tentar fazê-lo. Ademais, nega o absurdismo que a acepção de divino realmente faça parte da realidade, que existam objetivos na vida humana ou que tenhamos nascido para cumprir com alguma finalidade específica escrita previamente por uma entidade divina, ou seja, inexiste destino ou caminhos estabelecidos ex ante, o que existe é a aleatoriedade e a falta de razão dos acontecimentos. Tais assuntos são comumente explorados nas principais obras do autor: A Metamorfose, O Castelo e O Processo, bem como na de outros escritores renomados como o francês Albert Camus (em O Mito de Sísifo e no renomado O Estrangeiro) ou o filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard, o qual, embora explore temáticas típicas do absurdismo, adota um ponto de vista vinculado à religião e ao reconhecimento de sua necessidade.
Afligido pela tuberculose, Kafka submeteu-se a longos períodos de repouso a partir de 1917. Em 1922, largou definitivamente o emprego que tinha – depois de uma série de pedidos de férias – e, excetuadas algumas breves temporadas em Praga e Berlim, passou o resto da vida em sanatórios e balneários. Kafka morreu em 3 de junho de 1924, em Kierling, perto de Viena.
'O Processo' (KAFKA, Franz. O Processo. 1.ed. São Paulo: Martin Claret, 2002) foi escrito entre 1914 e 1915, tendo sido publicado postumamente e sem que houvesse sido concluído, abordando aspectos individuais e sociais como a alienação, o choque entre o indivíduo e a burocracia estatal, a brutalidade psicológica e física praticada sobre as pessoas, imotivadamente ou sem que se possa ter acesso aos motivos. A obra pode ser considerada um clássico para o Direito pelo fato de que a vida do personagem principal está irremediavelmente dependente da organização legal do país onde se passa a narrativa, sendo o impacto inicial causado no personagem em decorrência da prática judicial de atos legais, a progressiva pressão que recai sobre ele à medida que se desenvolve o processo, a alteração de sua rotina devido à aflição sofrida e até mesmo os momentos finais da narração encontram-se determinados pelas ações dos agentes detentores do poder judicial, os operadores do direito. Isso traz um vasto campo de interpretação da obra pelo ponto de vista jurídico: a análise dos limites toleráveis da expansão do poder estatal (assunto de filosofia do direito), a razoabilidade ou não do sofrimento causado ao réu pela mera existência de um processo penal (assunto de criminologia), a existência ou não de abuso de poder por parte dos agentes públicos que surgem no decorrer da obra (matéria de direito administrativo), a infração ou não das liberdades negativas do indivíduo (direito constitucional), a nulidade ou legalidade do processo em si e dos atos processuais praticados por magistrados e agentes públicos (assunto de direito processual penal) etc.
O livro, originalmente escrito em alemão, é composto por dez capítulos: Capítulo I - Prisão. Conversa com a senhora Grubach. Depois com a menina Bürstner; Capítulo II - Primeiro interrogatório; Capítulo III - Na sala de reunião vazia. O estudante. As repartições; Capítulo IV - A amiga da menina Bürstner; Capítulo V - O verdugo; Capítulo VI - O tio – Leni; Capítulo VII - Advogado. Industrial. Pintor; Capítulo VIII - O comerciante Block. K. Dispensa os serviços do advogado; Capítulo IX - Na catedral; Capítulo X – Fim. Personagens: Joseph K., personagem principal; Fräulein Bürstner, vizinha de Josef K. que aparece em algumas partes do livro e é beijada por este; Frau Grubach, proprietária da pensão onde Josef mora; Tio Karl, tio de Josef, que o indica um advogado e vai com ele procurá-lo; Senhor Huld, o Advogado, profissional pouco eficiente que representa Josef durante o processo; Leni, enfermeira do Senhor Huld que se torna amante de Josef; Rudi Block, outro dos clientes do advogado Huld; o pintor Titorelli, pintor da corte de Napoleão; Sr. Ross, religioso que encontra Josef na catedral e oferece ajuda.
Começa a obra com o episódio de detenção do personagem Josef K., que no dia em que completa 30 anos, acorda vendo pessoas estranhas no quarto e na sala do local onde se hospeda, e, quando tenta se livrar da presença de tais pessoas e ausentar-se do local, é informado por uma delas que não podia sair pois estava detido. Os guardas, como tais pessoas se apresentam, recusam em falar a Josef qual seria o teor da acusação que pende sobre ele, limitando-se a dizer que corre contra Josef um processo e que será ele informado de tudo na devida altura. Já surge nas primeiras páginas da obra uma demonstração do universo incompreensível que permeia os textos de Kafka, havendo também revelações sobre aspectos jurídicos e sociológicos daquele local, quando se declara que o personagem principal vive num Estado que se assentava no Direito e onde a paz reinava por todo o lado, havendo também tutela jurídica do direito à propriedade, quando os guardas propõem a Josef que deixasse com eles os bens de que dispunha para serem colocados em depósito até que findasse o curso do processo.
Após os acontecimentos preliminares, o ambiente de contradições permanece, com Josef tentando novamente saber por que havia sido detido e os agentes públicos se negando a explicá-lo, limando-se a declarar que as autoridades, antes de darem uma ordem de prisão, tiram minuciosas informações acerca da pessoa a ser detida e dos motivos da detenção, não havendo possibilidade de engano. Após, adentra a residência o inspetor da polícia responsável por acompanhar o processamento do caso, porém, após entrevista na qual nada se pôde elucidar sobre as razões da detenção, o que juridicamente afronta várias garantias individuais que deveriam existir em um Estado Constitucional, declara o inspetor que Josef ficaria liberado para voltar ao trabalho no banco, pois a detenção não o impediria de cumprir com suas obrigações habituais nem alterava o curso de sua vida.
Josef era empregado em um banco, ocupante de cargo relativamente elevado, e até a quebra de rotina provocada pela notícia da detenção, que contraditoriamente não previa o isolamento e a transferência do detido para uma prisão, tinha o costume de frequentar uma cervejaria, visitar amigos e a seu chefe, todos do quadro de pessoal do banco, o que demonstra certa limitação de contatos e de espaço onde se concentram suas relações interpessoais, além das visitas semanais a Elsa, jovem que se alternava nas funções de camareira e de meretriz. O fecho do capítulo um dá-se com a volta de Josef do trabalho diretamente para casa, onde entra em contato com as personagens Senhora Grubach e senhorita Bürstner, a qual tem com Josef uma conversa sobre o ocorrido da manhã, que acaba com um beijo tomado por Josef, além de ter ele tomado conhecimento da presença, na sala contígua ao quarto de Bürstner, do sobrinho da Senhora Grubach, chamado Lanz, que lá residia pois não havia outro lugar disponível.
A estranheza do primeiro capítulo, com a sucessão de atos policiais e judiciais dos quais o investigado não pode compreender, demonstra parte da atmosfera anormal característica dos livros de Kafka, aliado à sensação de inquietude e de desconforto que é causada no leitor à medida que se desdobram os acontecimentos.
O segundo capítulo não se inicia de forma menos incongruente, sendo Josef informado pelo telefone que deveria comparecer num dia de domingo em determinado endereço para que se fizesse o interrogatório, sem que lhe fosse passado o horário e a forma de chegar à sede física do tribunal de justiça. Encontrado o local, tampouco se poderia considerá-lo como uma corte judicial, pois na galeria, que quase chegava ao teto, amontoavam-se muitas pessoas que, por falta de espaço, eram obrigadas a manterem-se curvadas e a baterem no teto com as costas e a cabeça, e, na sala que seria do juiz de direito, havia uma pequena mesa, e por detrás desta estava sentado um homem baixo e gordo (o magistrado) que nesse momento conversava ofegante no meio de gargalhadas, com um outro que se encontrava de pé, as pernas cruzadas e apoiando o cotovelo nas costas da cadeira do seu interlocutor. Na mesa havia um livro de apontamentos que fazia lembrar um velho livro escolar deformado à força de tanto uso. Tal era o livro onde havia dados sobre o processo. Tal era o ambiente do Tribunal de Justiça...
Josef K., irritado o suficiente pelo processo e pela situação vexatória de ter sido detido sem o conhecimento do porquê, assume no Tribunal a conduta de insubordinação e de desacato a agentes públicos, desde os policiais e o inspetor até o próprio juiz e à estranha sede do Tribunal, pois, embora não tivesse naquele momento a liberdade de saber por qual razão era processado, sentiu-se livre para injuriar o próprio juiz, o qual fora chamado de petulante e velhaco, à frente da assembleia, sem que disso houvesse qualquer punição ou repreenda.
O terceiro capítulo demonstra um pouco mais do sistema jurídico surreal vigente no país de Josef K. Este, no início do capítulo, percebe que não havia sido comunicado sobre nenhuma nova audiência a que deveria comparecer. Decide, portanto, ir por si próprio ao Tribunal para ver o que estava acontecendo e como estava a seção. Na entrada, vê a mesma mulher responsável por uma interrupção da audiência que teve naquele mesmo órgão dias antes, e, em conversa com ela, descobre que, nas mesmas salas em que dias antes ocorriam as audiências, interrogatórios e demais atos judiciais, agora havia camas, colchões e travesseiros, pois, segundo ela, nos momentos em que não há expediente forense, a sede do Tribunal é usada como dormitório de pessoas comuns, o que se dá não por caridade, mas por falta de espaço para organizar separadamente cada ambiente. Tal mulher permite a Josef adentrar uma sala onde continha alguns livros de uso quotidiano do juiz, para que ele tivesse contato com normas jurídicas, pois até então não lhe houvera sido permitido isso. Porém, a única coisa que pôde encontrar dentro dos livros de doutrina eram desenhos obscenos e estórias de literatura, sem nenhum tipo de texto que o remetesse a qualquer ordenamento legal. Isso expõe o caráter insensato do modelo social dentro do qual o livro de Kafka fora concebido, pois, vivendo em um Estado Constitucional, é retirado de um indivíduo, que está sendo réu em um processo penal, o direito de saber o teor da acusação, de defender-se adequadamente, de conhecer o ordenamento jurídico e de saber qual conduta penal deve evitar. A irrealidade do livro realmente beira à loucura, pois em nenhum regime dito constitucional e pacífico os direitos de um cidadão poderiam ser tão amplamente cerceados.
Após, a mulher que o acompanhava, que era casada com o porteiro, passa a insinuar-se para Josef, inclusive dizendo a ele que se compadece com a situação deste e que o pode ajudar exercendo influência sobre os agentes públicos com os quais ela mantém contato. Um elemento fundamental e amplamente explorado no livro é a corruptividade da burocracia estatal, onde, não podendo uma pessoa processada penalmente conhecer do processo para regularmente se defender, consegue ela, se possuir contatos suficientes, convencer juízes e servidores públicos a melhorar a sua situação processual, sem que isso seja tido por anormal e prejudicial à legitimidade do estado. A corrupção, assim como o aparato burocrático estatal e o desrespeito a direitos individuais, parece ser institucionalizada no livro de Kafka.
Em certo momento, enquanto conversava com a mulher do porteiro, surge um estudante de direito que passa a encará-la para que esta se despedisse de Josef e fosse até o rapaz, que a iria tomar sexualmente e depois a entregar ao juiz de instrução, o qual estava em outro local, uma repartição da justiça que se localiza em um sótão, para finalidade que o texto não explicita. Aqui também se explicita a corruptividade total e desenfreada do sistema estatal existente no livro. Tais desvios de conduta não parecem ser mal vistos por ninguém: com ele são coniventes juízes, servidores públicos, cidadãos comuns como Josef e mesmo jovens estudantes, os quais dentro do sistema se aproveitam dos costumes ou mesmo são alienados de seu caráter desumanamente prejudicial, como é o caso do próprio Josef. Após a ida da mulher, chegou à sala onde Josef estava o marido da pessoa raptada. Este o levou até as repartições da justiça e no caminho conheceram outros acusados, que demonstravam as mesmas debilidades, inseguranças, alienações, desconhecimentos e descrenças que Josef quanto ao sistema de justiça existente. Ele acaba desistindo de chegar até o juiz, principalmente depois de ser atacado por uma vertigem causada pelo ambiente estranho e asfixiante onde se encontravam, e acaba sendo removido dali com o auxílio de outros servidores públicos.
No quarto capítulo mostram-se as tentativas de Josef em contatar a senhorita Bürstner, porém sem sucesso. Após deixar para ela cartas e comunicados, e dizer que a esperaria no domingo, recebeu de Montag, a amiga dela, um recado para que se encontrassem no refeitório para tratar de assuntos relativos a Bürstner. Entrando no refeitório, Josef e Montag apresentaram-se e esta lhe falou que deveria tratar com ela os assuntos que tivesse para com Bürstner, pois esta estava indisposta e não iria vê-lo. Josef preparava-se para sair do refeitório com Montag quando chega Lanz e, parando para cumprimentá-la, acaba causando em Josef um desinteresse pela conversa que teria com ela. Decide então sair sozinho do refeitório, despedindo-se dos dois, e voltar imediatamente a seu quarto, mas no caminho, como não havia mais ninguém no corredor, vai até o quarto de Bürstner e bate a porta. Por não receber resposta e ficar irritado por estar sendo ignorado, empurra a porta de uma vez e percebe que o quarto estava vazio, o que indica que Bürstner havia saído silenciosamente enquanto Josef estivera no refeitório, opta ele finalmente por voltar a seu quarto, mas percebe que Montag e Lanz o observavam enquanto saía do quarto de Bürstner.
No quinto capítulo, enquanto Josef trabalhava em sua sala e quase não havia mais ninguém no banco, ouviu barulhos provenientes de uma sala que até então nunca tivera adentrado. Ao aproximar-se da porta, por continuarem os barulhos, decidiu abri-la e viu os dois guardas que estiveram em seu quarto à época da detenção sendo torturados por uma espécie de carrasco que se valia de um açoite. Os policiais, ao virem Josef os observando, disseram que ali se praticava uma punição pelo fato de Josef ter se queixado, para o Tribunal de Justiça, do procedimento dos guardas no dia da detenção. Josef disse que não pretendia a punição de ninguém, havia apenas se queixado rapidamente perante o juiz, mas não com o fim de fazê-los ser torturados. Tentou por fim subornar o açoitador, o qual não se submeteu e disse que a punição teria de ser aplicada. Saiu da sala para impedir a entrada de outros funcionários que vinham atraídos pelos gritos. No entanto, prometeu a si próprio trazer a coisa ainda à discussão e, na medida das suas forças, castigar os verdadeiros culpados, os altos funcionários, dos quais nem um tinha ousado aparecer. No outro dia tal fato ainda o perturbava no trabalho e o deixara improdutivo. Esse cenário indica o quão distorcido e autoritário era o modelo de estado existente no contexto criado por Kafka: funcionários sendo torturados sob amparo legal, contratação de carrascos para praticar ações atentatórias a direitos individuais após receberem ordem judicial para isso, desproporcionalidade brutal na aplicação de punições e sanções. Além disso, a recusa do acoitador em aceitar suborno, analisada paralelamente com a fácil submissão de altos funcionários (como juízes e despachantes) ao recebimento de propina demonstra a contraditoriedade e a concentração da corrupção em certas alas e sobre certos grupos do sistema estatal. Apesar de descrever o país como pacífico e o modelo jurídico como constitucional, a distorção de finalidade das normas e o peso da influência do estado sobre a vida das pessoas comprovam a tendência de Kafka de preocupar-se com o crescimento e com a burocracia do poder público, e como isso prejudica e condena a liberdade do indivíduo.
No sexto capítulo, estava Josef ocupado em seu escritório quando nele aparece seu tio, um pequeno proprietário rural chamado Karl, que chegou solicitando uma conversa reservada com seu sobrinho, onde questionou já aflito a existência do processo movido contra Josef. Pelo temperamento natural de tio Karl, quanto mais este perguntava sobre o processo, mas nervoso ficava e mais alto se expressava, de forma que suas perguntas já eram ouvidas pelos funcionários das outras salas e Josef teve que sair do banco com ele para continuarem conversando. Fora do banco, propôs Karl que seu amigo advogado Huld assumisse a causa, e partiram os dois até a casa de tal jurista, tendo Josef declarado que aceitava a representação e que não sabia que em tais casos o auxílio advocatício era possível.
Chegando à casa de Huld, os dois foram recebidos por Leni, a enfermeira. Esta informou que Huld estava de cama, adoentado, o que não impediu Karl de ir procurá-lo casa adentro até encontrá-lo em seu quarto reclamando de problemas cardíacos. Os velhos amigos se cumprimentaram, falaram da doença e de Josef. Huld aceitou representá-lo, mesmo não estando em condição física ideal para isso, disse que permanece em contato com vários funcionários da justiça e que tal contato pode vir a beneficiar seus clientes. Nesse momento, informou que tinha em sua casa naquele momento uma visita, apontou para um local pouco iluminado de seu quarto, de onde saiu um funcionário do setor de despacho do Tribunal de Justiça. Essa pessoa era chefe da seção, vivia em contato com magistrados e demais juristas e sua influência sobre o processo poderia beneficiar Josef. Depois de apresentado, o servidor judiciário passou a dialogar com o juiz e com Karl, e, embora a situação de Josef pudesse melhorar caso ele se empenhasse em demonstrar que compensaria ser ajudado pelo chefe do setor de despachos, preferiu Josef ficar divagando e desconcentrando-se da conversa, pensando na enfermeira, a qual, tinha ele percebido, ficava a fitá-lo antes de sair do quarto e deixar os três conversando. Já entediado com toda aquela conversa, Josef resolve sair do quarto, e, no corredor, veio Leni a seu encontro e levou-o ao escritório de Huld.
Cada um deles demonstrava flagrante interesse pelo outro, e no escritório reservaram algum tempo para comentar o retrato de um juiz de instrução, que se encontrava fixado à parede, para então ficarem juntos na cadeira do advogado. Após, Josef pegou com Leni uma cópia da chave da casa de Huld e saiu do local. Lá fora, enquanto chuviscava, parou ao lado de Josef o automóvel de seu tio, que o admoestou por ter desaparecido no meio da conversa com o chefe de despachos, que poderia ajudar no processo.
Diferentemente do que se passava no ânimo de Josef nos primeiros capítulos, demonstra o de número sete, que ele passou a ficar fatigado pela preocupação pelo desenrolar da ação. O início do capítulo o descreve em seu escritório, sem que conseguisse trabalhar em decorrência da aflição. Pensava em redigir ele mesmo uma defesa processual, onde exporia todo o seu histórico de vida, pois, não tendo acesso à acusação, talvez uma biografia que relatasse todas as suas principais condutas ao longo da existência, com eventuais desculpas e explicações para aquelas que pudessem ser consideradas ilegais, pudesse servir como uma contestação eficaz para impedir um desfecho negativo do processo penal. A ideia do processo já não o abandonava, e ia lentamente perdendo a confiança no advogado constituído, pois este, nas reuniões com o cliente, limitava-se a ficar divagando, dar conselhos inúteis ou não prestar contas adequadamente. Até aquele momento a única atitude do defensor foi a de começar a escrever um requerimento, que poderia, segundo ele, nem vir a ser lido pelo Tribunal, o que ocorria ocasionalmente. Caso fosse lido, talvez causasse uma boa impressão um bom texto técnico, pois essa seria a primeira manifestação do advogado nos autos e o curso do processo poderia ser mudado, mas o efeito causado por tal manifestação ainda assim não seria tão forte quanto aquele produzido no interrogatório, oportunidade desperdiçada por Josef com insultos ao juiz e à legitimidade do Tribunal. Como não era obrigatória a publicidade dos atos processuais, a importância do interrogatório residia em explicitar, através das perguntas, o teor da acusação, o que muito ajudaria o trabalho da defesa. No fundo, segundo o advogado, a lei inadmitia inclusive a defesa, mas a tolerava em determinados momentos processuais.
Outras das características do sistema judicial foram sendo reveladas pelo advogado, por exemplo, a justiça procurava anular o quanto possível a atuação do procurador do réu, para que este ficasse ao seu próprio risco, de forma que o defensor não tinha acesso às atas dos interrogatórios, nem sequer podia comparecer neles junto de seus clientes. O que era realmente determinante na atuação do defensor era as suas relações pessoais, tais quais aquelas com os juízes, serventuários e demais agentes judiciais, isso por si mesmo poderia delinear o fecho do processo. Censurou Huld a Josef por este ter tido tão pouca amabilidade para com o chefe dos despachos dias antes, pois tal pessoa, por sua influência, poderia ser de imensa utilidade para um desfecho processual favorável a Josef. Isso comprova o hermetismo e a corruptividade do modelo judicial do livro, onde garantias fundamentais são ignoradas e acertos pessoais determinam o destino dos indivíduos. Além disso, demostra-se a alienação dos personagens para com os vícios da pesada burocracia, a falta de transparência, o desconhecimento de seus próprios direitos e as consequências nefastas de tal sistema na vida das pessoas comuns. As temáticas da alienação, da burocracia e da incompreensão do mundo moderno são, inclusive, bastante presentes no modo de escrever de Franz Kafka.
Josef ficava desesperançoso quanto à atuação de Huld no processo, o qual não prestava contas satisfatórias sobre o que exatamente estava fazendo para o deslinde positivo da ação, e se limitava a dizer que existiam progressos, sem que os especificasse. Por isso, enquanto estava no banco em um dia de trabalho, resolveu iniciar por si próprio a redação de uma peça de defesa. As dificuldades de fazer uma resenha autobiográfica apareceram imediatamente, e Josef, em meio ao trabalho bancário, não conseguia desenvolver a peça. Para piorar, aparece um cliente do banco com o objetivo de fazer negócios, o que toma o tempo, prolata o início da escrita e também dificulta a atenção ao que o cliente dizia, eis que o processo perturbava a concentração. Percebendo o flagrante desinteresse, o cliente vai com o vice-diretor do banco, rival de Josef, à sala dele para tratar com ele do negócio, deixando este sozinho. Ao voltar, diz a Josef que sabe da existência do processo, por causa de Titorelli, um pintor que faz obras para ele e para funcionários da justiça, deixando com K. o endereço do artista, o qual poderia prestar ajuda valendo-se de sua influência sobre expoentes do sistema judicial.
Como tudo na narrativa gira em torno do exercício de influências pessoais mais do que na busca por justiça, Josef saiu do banco e foi atrás do endereço. No local, em área pobre e de complicado acesso, entrou na minúscula morada do pintor, reconheceu que fora ele quem pintou o quadro localizado no escritório de Huld e, após alguma conversa para adquirir confiança, pediu informações sobre sua situação. Disse Titorelli existirem três tipos de absolvição: a absolvição real, a absolvição aparente e a dilação indefinida. A absolvição real não era possível de se conseguir, pois com a mera influência não se poderia ter acesso a ela e não havia julgados conhecidos pelo pintor que tinham declarado tal espécie de sentença, de forma que apenas existia nas lendas que corriam. Na absolvição aparente, há na sentença um atestado de inocência, mas permanece o procedimento judicial, com as sucessivas tramitações do processo entre as repartições, enquanto o tempo vai passando e o acusado fica em liberdade. O trâmite nunca cessa, mas, enquanto algum juiz não determina a detenção, por entender que a acusação é procedente, o réu fica em liberdade. Com uma nova detenção, o processo começa de novo e apenas existe a possibilidade de, com muito esforço e exercício de influência, se conseguir nova absolvição aparente. A dilação indefinida significava a manutenção do processo em uma das fases iniciais, através de permanente exercício de influência sobre o juiz de instrução. Interessante como o processo penal no cenário do livro constitui meio escravizador do acusado, pois, inexistindo a figura da prescrição, o curso do processo na absolvição aparente e na dilação indefinida é eterno e a vida daquele uma vez processado, mesmo nunca vindo este a saber as razões do processo e o delito cometido, fica permanentemente vinculada ao curso da ação, com todas as perturbações e angústias que ela gera no réu por sua mera existência. O único meio de ser decretada de vez a liberdade é via absolvição real, porém essa apenas existe em lendas urbanas, e portanto uma vez sendo réu em processo na narrativa de Kafka, tal situação perdurará eternamente. Com tais informações, Josef despede-se de Titorelli e volta não muito otimista para o banco.
No capítulo oito, decidido a dispensar os serviços de Huld, K. vai até a casa deste, onde, antes de poder falar com o advogado, conhece e passa a conversar com Block, comerciante e outro dos clientes de Huld que também era réu em um processo penal. Da fala dele, percebe-se o quanto a vida de um acusado fica vinculada ao seu processo. O de Block já tramitava há cinco anos e ele teve que paulatinamente despender uma parcela maior de seu tempo para protelar uma situação mais grave e exercer influência sobre órgãos judiciais, sofrendo pela aflição da sua situação indefinida. Discute-se na doutrina e na filosofia a razoabilidade de submeter o réu a um estado de sofrimento decorrente do processo que, independente do resultado deste, já equivaleria a uma pena. No livro de Kafka tal sofrimento é real, mas os personagens dele não têm consciência, devido ao seu estágio de alienação (um dos conceitos mais explorados na obra), e por isso vão se tornando escravos do sistema e dele não podem escapar. No quarto, Josef é bem recebido mas tem dificuldade para comunicar a Huld a sua dispensa da função. Em determinado momento, o advogado chama Block ao quarto, o qual, pela fragilidade psíquica que o processo o causou, demonstra debilidade e total submissão ao defensor, que o controla totalmente pelo medo que este tem de ser desenvolvida nos autos uma situação desfavorável. Franz Kafka não chegou a concluir tal capítulo, portanto não se sabe o desfecho da conversa. Do capítulo se extrai a situação de humilhação e desesperança que um processo penal pode causar em um de seus acusados, independente da aplicação de uma pena concreta ou de uma eventual sentença absolutória.
No capítulo nove, Josef é encarregado de levar um cliente italiano do banco à catedral da cidade para que ele conhecesse das peças artísticas do local. No dia e local marcados, o italiano não apareceu e Josef ficou sozinho na igreja, quando surge um cardeal e chama pelo nome dele, sem que antes se tivessem visto. Tal religioso declara que havia providenciado a ida de Josef à igreja, afirma que está a serviço da justiça (pois era o capelão que trabalhava junto ao cárcere) e que o processo caminha mal, pois consideram que existe culpa e que deve sair a condenação. Após menciona o eclesiástico uma teoria sobre a natureza da justiça, a qual depois comenta e discute com Josef. No fim, este, ao depedir-se, pergunta se o cardeal quer alguma coisa dele. Por sua vez, diz o sacerdote que pertence à justiça, portanto não haveria de querer nada de outrem, pois sua função é acolher aquele que dela se aproxima e deixá-lo ir que se deseja.
No capítulo final, o início assemelha-se ao capítulo um. Um dia antes de Josef K. completar 31 anos, às 21h da noite aproximadamente, chegam à sua casa dois senhores vestidos de sobretudo, os quais foram mandados para buscar K., que estava arrumado e à espera de uma visita. A rua já estava às escuras, e enquanto Josef era levado pelos dois senhores, passou por ele a senhorita Bürstner, que seguiu por um caminho e não foi mais vista. Os senhores levaram K. até uma pedreira fora dos limites da cidade. Despiram-no e acomodaram a cabeça dele em uma pedra. Este chegara a apresentar resistência, mas não com força suficiente para livrá-lo do perigo. Depois, um dos senhores abriu seu sobretudo e dele tirou uma longa faca de fio duplo e ficou passando ela ao outro senhor, que a devolvia por cima do corpo de Josef. Este, enquanto tentava observar as coisas em sua volta, visualizou uma pessoa próxima a uma casa a certa distância da pedreira. Não sabia se era amigo, alguém para socorrê-lo ou para participar de seu martírio. Nesse momento, um dos homens segurou-lhe o pescoço enquanto o outro lhe espetava profundamente a faca no coração e lá a rodava duas vezes. Moribundo, K. viu ainda os homens muito perto do seu rosto a observarem o desfecho. "como um cão", foram suas últimas palavras.
A trama de Kafta demonstra a preocupação acentuada do autor com a questão do sufocamento individual efetuado pelo aparato burocrático estatal e inexistência de lógica e coerência nos acontecimentos cotidianos da vida de uma pessoa. Tais características permeiam a obra e, principalmente quanto à primeira, têm relevância jurídica por se constituir como crítica e tanto nos dias de hoje quanto à época de escrita do livro as temáticas abordadas são relevantes na prática, o que torna recomendável a leitura do escrito para fins de aprofundamento e adoção de paradigma de análise. Hoje em dia O Processo é considerado uma das principais obras do autor, ao lado de A Metamorfose, e continuará sendo importante à medida que os assuntos tratados ainda podem pressionar e gerar perplexidade nas pessoas de nosso contexto atual.

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