Resenha do livro \"O Que é Poder\", de Gérard Lebrun.

July 25, 2017 | Autor: R. Ferreira Corrêa | Categoria: Direito, Ciencia Politica, Filosofía
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O Que é Poder - Gérard Lebrun

Gérard Lebrun (Paris, 1930 - Paris, 1999) foi um filósofo e historiador francês. Formado em Filosofia na Universidade Sorbonne Nouvelle, atuou como docente na Universidade de Provence Aix-Marseille I, bem como na Universidade de São Paulo e na Universidade Estadual de Campinas. Foi autor das obras: Kant et la fin de la métaphysique: essai sur la "Critique de la faculté de juger" (1970); La Patience du concept: essai sur le discours hégélien (1972); O que é Poder (1984); e O avesso da dialética: Hegel à luz de Nietzsche (1988).
Em 'O Que é Poder' (LEBRUN, Gérard. O Que é Poder. 14.ed. São Paulo: Brasiliense, 1999), o autor se propõe a expor, com base na evolução histórica da ciência política, as mudanças de conceito e de aplicação pelas quais a relação de poder Estado-sociedade ou Estado-indivíduo passou ao longo do tempo, começando a sua exposição a partir de conceitos existentes na cidade da Grécia antiga, passando pelas transformações no pensamento político decorrentes da obra de Thomas Hobbes e John Locke, tece críticas a concepções que considera errôneas em suas bases, como a análise sobre o poder elaborada por Talcott Parsons e Karl Marx, além de criticar algumas ideias da corrente política a que se filia (o liberalismo político) e expor problemas atuais de abuso de poder e diferenciações na forma com que o estado influi na vida do indivíduo (como as mudanças operadas no âmbito da operação invasiva estatal, que passou de um foco basicamente punitivo para se tornar um amplo instrumento de vigilância e controle prévio dos indivíduos).
O livro se compõe de 6 capítulos: Introdução, Apresentação do Monstro, O Leviatã Contra a Cidade Grega, O Leviatã e o Estado Burguês, Comédia Liberal e Último Chefe. Dada a vinculação essencial entre a relação estatal e verticalizada de poder e o mundo jurídico, responsável por regular a forma com que esse poder se expressa, se impõe, atinge os seus alvos, administra a si mesmo e se limita, o livro de Lebrun pode ser elevado à categoria de clássico jurídico, pela leitura que faz das mudanças históricas de exposição do poder estatal sobre os indivíduos e sobre a sociedade, a partir da leitura de autores políticos clássicos e contemporâneos.
Relacionam-se à obra de Lebrun, portanto, os livros a que ele expressamente faz menção, como O Leviatã (de Thomas Hobbes), o Contrato Social (de Rousseau), os trabalhos de Kant e Hegel sobre o poder e o estado e as obras de Émile Durkheim (Da divisão do trabalho social) e Michel Foucault, quanto ao estado de controle e vigilância e, com relação à Foucault, as relações de poder não verticalizadas pelo estado.
No capítulo introdutório da obra, declara o autor não constituir o seu escrito uma análise exaustiva do conceito de poder dentro do âmbito da filosofia política, de forma que o intuito de Lebrun é meramente contestar alguns preconceitos e supostas evidências acerca do conceito tratado. O escrito não se apega a alguma interpretação ideológica do termo, mas passa por algumas delas de forma crítica, mas sem intenção polêmica.
A partir das linhas introdutórias de Lebrun, pode-se ressaltar que foram muitas as ideologias políticas que se propuseram a trabalhar as mais diversas utilizações possíveis do termo poder, algumas delas para tentar mantê-lo em suas estruturas já arraigadas dentro da sociedade (como o conservadorismo, o despotismo esclarecido e o absolutismo monárquico), limitá-lo ou pulverizá-lo o máximo que fosse possível (como o liberalismo e o libertarianismo) ou mesmo extingui-lo das relações interpessoais e entre agrupamentos individuais (como o anarquismo e o comunismo em seus aspectos teóricos). Declarando o autor que escreveu a obra com intenções de imparcialidade, parte-se do princípio de que a nenhuma dessas correntes ele estará vinculado ortodoxamente, o que retira do leitor a limitação criada pela adoção prévia a uma corrente de pensamento já instituída e o permite obter uma compreensão mais aprofundada dos aspectos gerais do assunto e menos enviesada e limitada por um dos filtros ideológicos já postos.
No início do capítulo seguinte, são feitas análises sobre o conceito de política, para tal cita-se a prerrogativa por vezes utilizada pelo Fundo Monetário Internacional de exigir mudanças econômicas em troca de auxílio financeiro e também a capacidade de destruição em massa disponível nas mãos de alguns países em forma de armas nucleares, após é feita a diferença entre ato (ação) e potência (capacidade de efetuar um desempenho determinado) e passa-se a trabalhar o conceito de política baseado no ato: "a atividade social que se propõe a garantir pela força, fundada normalmente no direito, a segurança externa e a concórdia interna de uma unidade política particular" (Julien Freund). Sem a noção de força, o conceito seria defeituoso, não precisando ser a força uma violência explícita, mas meramente a canalização da potência, para fins de dominação (Herrschaft), a qual corresponde "a probabilidade de que uma ordem com um determinado conteúdo específico seja seguida por um dado grupo de pessoas" (Max Weber).
Para desenvolver ainda mais o conceito adotado com base na obra de Weber, o autor analisa, estabelecendo diferenças e críticas, o conceito de poder de Talcott Parsons (caracterizado por uma verticalidade, aderência a uma autoridade, legitimidade social e mesmo democrática e pela fuga da teoria do poder de soma zero) para melhor delimitar a conceitualização weberiana. Quando da análise da teoria da soma zero, a qual dispõe que o poder de um ator apenas pode ser exercido às custas do poder de outro ator, são citados autores que trabalham com tal teoria (Nietzsche, Marx, Wright Mills) e outros que a rejeitam, como Parsons e Foucault. Defende ainda que o nascimento do poder deu-se com a guerra e que a sua necessidade surgiu com a ampliação da complexidade da convivência social, quando as regras de justiça deixaram de ter força suficiente para que os homens a respeitassem sem a necessidade de coerção, tendo sido, no último caso, concentrado o poder nas mãos do Estado, embora, nem sempre este ator tenha sido necessário e também nem sempre o poder público tenha passado a noção de hierarquização sobre o indivíduo, a exemplo do que ocorria na Grécia antiga, onde era no âmbito público que prevalecia a ideia de igualdade (entre aqueles que fossem livres) enquanto no âmbito privado era onde se promovia a hierarquização (dadas as relações de escravidão e de patriarcado aceitas naquela cultura). Já quanto à modernidade política, constitui a dominação estatal uma característica a ela inerente, pertencendo a Thomas Hobbes a exposição do funcionamento político moderno, com a descrição de uma relação de poder verticalizada e rígida.
Dentro da ótica de Lebrun, portanto, houve uma espécie de regresso democrático proveniente da saída do modelo grego antigo (quando o poder era mais contido e, portanto, havia mais liberdade privada – dentro da ótica do poder de soma zero), para o modelo moderno, com seu raciocínio de concentração de poder e, de certa forma, despotismo legitimado pela teoria política.
O capítulo três se inicia com a citação a trechos de livros de Jean Bodin e Thomas Hobbes, autores que legitimaram o poder do príncipe sem que as leis a ele se aplicassem, de acordo com a teoria da soberania. Diferentemente de autores do século XII, para os quais ao príncipe cabia a obediência ao Direito (como São Tomás de Aquino, para o qual a observância ao direito natural era a fonte limitadora do poder do príncipe).
Devido a essa mudança de paradigma, na Europa entre 1550 e 1650, opera-se uma concentração de poder e uma avocação de prerrogativas legislativas nas mãos do monarca. No século XVIII tal evolução já se encontra acabada, a administração do Estado se expande em várias áreas e a hierarquização ganha poder. Para o autor, fazendo citação a Perry Anderson, a mudança na operatividade do poder em tal contexto permitiu a ascensão do capitalismo em substituição ao feudalismo, ao que favoreceu a consolidação do absolutismo.
A linha de análise de Gérard Lebrun, tendo sido fundamentada em poucas palavras, dado o perfil introdutório da obra, demonstra uma fuga da mais tradicional forma de análise da passagem do modo de produção feudal para o capitalista, qual seja, a marxista, pois, para esta, dentro da teoria do materialismo histórico, são as necessidades econômicas inerentes à infraestrutura social que fomentam adequações na superestrutura (cultura, religião, direito, organização política do estado). Quando há choque entre a superestrutura e as novas características do modo de produção, naquela se operam mudanças para a este se adaptar, de modo que a passagem de um modo de produção para outro seria fomentada por interesses econômicos, os quais proporcionariam alterações posteriores no âmbito do estado e da organização política da sociedade, porém, para Lebrun, tais alterações econômicas apenas se tornaram capazes de desenvolverem-se e de operarem após a prévia alteração política, ou seja, fora necessária a ascensão do absolutismo para que o capitalismo pudesse substituir o modo de produção feudal.
Segundo a obra, com a mutação nas formas de poder do estado devido ao novo paradigma, operam-se também mudanças no elemento menos abrangentes contidos dentro do ente estatal. Quanto à cidade, passou-se de uma visão ética (da cidade grega antiga) amparada na descrição de um lugar de reunião de homens para a busca da felicidade, para uma visão econômica da cidade moderna, local onde se proveem meios necessários à existência do homem. O que constitui um corpo político um agrupamento de pessoas e famílias localizadas num território geograficamente delimitado é uma potência soberana que une todos os membros. Na teoria de Hobbes, exposta no livro Leviatã, cada homem sai do estado de natureza, em que a sua segurança está ameaçada pelo estado de guerra de todos contra todos (Bellum omnium contra omnes), para, em um contrato social, delegar parte de sua liberdade a um soberano (seja ele homem ou assembleia), em troca de segurança e cuidado, tendo tal soberano poderes absolutos e perpétuos, não se admitindo sua auto limitação pelas leis que vier a criar ou a resistência civil a alguma de suas ordens (a não ser que houvesse ameaça à vida de quem recebesse a ordem).
Esse conceito de poder fora elaborado em considerável divergência para com o modelo grego antigo, pois na modernidade a comunidade deixou de ser entendida com agrupamento de homens que devem zelar pelo todo, mas como uma congregação de homens, cujos próprios afazeres ocupam de tal forma seu próprio tempo que os mesmos abrem mão de participar da instância política para meramente receber dela segurança. No conceito de direito, a mudança que se operou do modelo grego para o hobbesiano foi a interrupção da legitimação do ordenamento jurídico pela sua racionalidade e pelo caráter de virtuosidade e bondade das leis para a adoção de uma legitimidade vinda da vontade do soberano por si mesma.
De tal alteração percebe-se, em Hobbes, um raciocínio antiaristotélico, no sentido que este defendia ser característica inata do ser humano a sociabilidade e a gregariedade, enquanto no raciocínio de Hobbes, é o poder central e absoluto que impede que o homem afaste-se do contrato social para avocar novamente a sua liberdade delegada ao soberano e com ela atentar contra a segurança alheia. Em seguida à comparação entre Hobbes e Aristóteles, começa o autor a mencionar as críticas elaboradas à obra daquele, que se concentram na perspectiva antropológica pessimista que Hobbes tem do ser humano, que passa por uma visão geral do homem como sendo mau e cruel por essência, necessitando de um tutor rígido, forte e inflexível (o soberano) para disciplinar o convívio dele com seus pares e impedir que, caso usufruísse de plena liberdade, partisse para um estado de guerra de todos contra todos. Talvez não seja tão criticável a antropologia de Hobbes, pois essa é uma forma de análise que versa acerca do que seria a natureza humana, área complexa que é fonte de discórdias e insuscetível de juízos conclusivos. A tese de Hobbes, por exemplo, é baseada na vivência e na experiência pessoal do autor em observar as outras pessoas e com elas relacionar-se. Não há nada de essencialmente incorreto em seu raciocínio, embora seja ele inconclusivo e potencialmente reducionista, e, dada a ocorrência quotidiana de eventos e condutas humanas suscetíveis de causar no intérprete uma perspectiva pessimista, a tese de Hobbes resta amparada por certa fundamentação e coerência, o que a torna no mínimo respeitável, embora as consequências de tal tese, com relação à forma de organização do estado e relação entre poder público e indivíduos já tenha sido superada por uma perspectiva menos invasiva e autoritária. Igualmente válida em abstrato, embora igualmente inconclusiva e reducionista, seria por exemplo a tese antropológica de Jean-Jacques Rousseau, para o qual o homem é bom por essência (ou seja, a natureza humana é essencialmente boa) mas o convívio social e a sociedade acabam corrompendo o indivíduo, sendo essa a justificativa, para Rousseau, de atos humanos que fujam do ideário geral que se tem sobre o conceito de bom. Outra tese antropológica, talvez menos determinista, é a de que inexiste uma essência humana padrão, seja ela boa ou ruim, sendo o ser humano moralmente neutro, porém, em seu processo de desenvolvimento, levando em conta desde estímulos básicos do tipo intrauterino até as influências que ele recebe de todos à sua volta ao longo de seu crescimento, tal pessoa estaria orientada a adequar-se às imposições sociais morais preestabelecidas (dentro das quais, muitas vezes, reside o conceito de bom e de virtuoso, estabelecido culturalmente) ou refutá-las e agir contra elas (quando surge a figura do mau e do antissocial). Como não se é possível, e não seria ético, adentrar por meios científicos à consciência dos indivíduos, para determinar onde se situam as influências e em que proporção elas atuam, qualquer uma das teorias antropológicas (a de Hobbes, a de Rousseau ou a existencialista) é aceitável e pode servir de base a algum ordenamento jurídico, eis que não se submetem ao teste científico da refutação (não se pode empiricamente conhecer onde estão as influências humanas).
Seguindo a obra, o autor passa, ainda dentro da crítica ao hobbesianismo, a traçar um paralelo entre ele e Kant, o qual, embora tendo manifestamente criticado algumas das bases do Leviatã, conserva o mecanismo constitutivo da teoria de Hobbes: a submissão da vontade individual à vontade comum representada por um poder absoluto, com a diferença que a fundamentação do poder estatal é a de que ele permite a constituição de uma sociedade racional, e não a de que ele exista apenas para reprimir os impulsos humanos de destruição mútua.
No início do capítulo 4, o autor destaca a inovação na ciência política produzida pelo conceito de soberania e sua função de proteger um homem do outro e transformar suas diferenças em cooperação e desenvolvimento. Essa última característica refere-se a uma percepção social centrada na atividade econômica das pessoas. Em seguida, busca explicações para o fato de que Hobbes não teve sua obra muito bem recepcionada pela classe social emergente, a burguesia (tendo em vista que a classe dirigente tratou de aceitar o Leviatã em bem pouco tempo), e explica que isso se deu pela falta de salvaguarda adequada ao direito de propriedade, que ficaria condicionado à benesse do soberano e que por ele poderia ser expropriado conforme sua vontade.
O também contratualista John Locke, ao qual o autor passa a mencionar, defende o contrato social para proteção e tutela legal absoluta do direito de propriedade, no que promove substancial correção a Hobbes, mas faz com que sua obra pareça mais aceitável pela classe social ascendente (burguesia), e transforma o mecanismo da soberania em um instrumento a serviço dos proprietários. Locke também subverte o conceito de Hobbes sobre os limites do poder, pois para o último a ordem do soberano não pode ser desobedecida sob pena de retorno ao estado de natureza, situação insustentável que deve ser evitada a todo o custo, enquanto Locke entende ser o estado de natureza superior a um poder que deixe o indivíduo desarmado contra ele, pois há maior risco em ter que lidar com cem mil homens sob a ordem de um soberano do que combater cem mil homens desorganizados e isolados entre si. A cidade para Locke está subordinada a um poder central, que deve estar limitado à sua finalidade (garantir a propriedade de forma absoluta). Com o modelo de Locke, as relações de poder estatais deixam de ser verticalizadas e condutoras do funcionamento da sociedade para prescindirem de uma dominação tradicional e meramente deixar a sociedade funcionar por si própria, passando o Estado a uma função organizatória do meio em que será exercida a liberdade dos indivíduos. Assim, na nova concepção de poder vinda de Locke, já se percebe maior grau de liberdade e de resguardo a direitos valorizados hoje em dia em regimes democráticos, com sua intenção de estabelecer limites ao poder e à sua área de interferência social.
No capítulo cinco, analisam-se alguns conceitos do escritor francês Benjamim Constant, que procurou criticar a noção de soberania vinda de escritores anteriores (Hobbes e Rousseau) a fim de limitar-se o exercício do poder. Algumas dessas limitações seriam a proibição de criação de leis tendentes a limitar a liberdade individual, a liberdade religiosa, a liberdade de opinião ou o gozo da propriedade, de forma a criar-se uma esfera da vida privada que deva ser protegida contra as ingerências do poder.
Em seguida, passa Lebrun a demonstrar que a situação de um estado pouco interveniente é um dos requisitos que melhor favorecem o ambiente de desenvolvimento econômico, sendo o poder estatal um mecanismo subalterno e negativo de manutenir as condições de funcionamento econômico natural. O apego à redução progressiva do estado tornou-se, na ótica do liberalismo do século XIX, uma previsão pela extinção do próprio estado, citando o autor a frase de Stuart Mill, segundo a qual "as funções relativas ao governo são coisas muito mais vastas num povo atrasado do que num povo adiantado".
A citação do autor à tese do fim do estado na ótica do liberalismo contrapõe-se ao que parece ser uma espécie de ânsia comum das mais diversas teorias políticas do século XIX, que, mesmo divergindo em princípios, meios e fins, pareciam abraçar a expectativa de pôr fim à relação hierarquizada estatal e com isso, segundo tais teorias, por fim ao poder. Lebrun cita especificamente as intenções liberais de ver o fim do estado, mas se pode falar igualmente nos movimentos políticos anarquistas e socialistas (em sua acepção marxista teórica), que, igualmente tendo entrado em efervescência no século XIX, defendiam da mesma maneira a extinção do poder estatal. O que os diferenciava entre si (desconsiderando as diferenças entre eles e o liberalismo, principalmente quanto à função e o grau de autonomia do indivíduo dentro da sociedade e quanto ao valor e a justiça da existência da propriedade privada) é que os anarquistas acreditavam na viabilidade em curto prazo da pulverização do aparato estatal, assim que dele tomasse posse a classe trabalhadora revolucionária, enquanto os socialistas defendiam a utilidade do uso do estado para eliminar diferenças sociais e após, sem a existência das classes que dão vida ao corpo estatal, este por si mesmo desapareceria. Hoje em dia, embora nenhuma previsão da teoria política tenha efetivamente acertado em atingir o fim do estado, ainda subsiste a corrente do libertarianismo que atua em defesa da extinção do aparato estatal em algumas de suas vertentes.
Uma forma de mutação na espécie de poder estatal exercido sobre os indivíduos ganhou monta a partir do fim do século XIX, e tornou mais ampla a discussão sobre limites de ingerência estatal na vida privada, sobre direitos individuais e possibilidade de extinção do estado: Herbert Spencer acreditava que com o desenvolvimento industrial o aparelho coercitivo do estado se restringiria e este diminuiria sua área de influência e tamanho. Em crítica a tal raciocínio, de que o estado se reduziria à medida que a economia passasse por desenvolvimento, Durkheim objetou que a redução da repressão vinha acompanhada por uma alteração na forma de ingerência, com o crescimento do volume do aparelho regulador ao mesmo tempo em que se reduziria sua coercitividade. O estado foi progressivamente aumentando sua atuação (avocação da educação da juventude, tutela da saúde, da assistência pública, administração das vias de transporte e comunicação) e se informando (pelos órgãos estatísticos) de tudo o que ocorria na sociedade, mudando sua forma de atuação perante o corpo social: de uma instância repressiva para uma instância de controle, que envolve o indivíduo mais do que o domina (teoria também estudada por Michel Foucault), de forma que se diminuem as proibições e punições e se incrementa o poder disciplinar e o de vigia. Para Durkheim, é o próprio estado, à proporção que a atividade econômica se desenvolve, que é levado a cada vez mais vigiar e regular as condutas dos indivíduos, com o fim de restaurar a segurança, segundo o complemento de Lebrun.
Ao fim do capítulo, em função do exposto, Lebrun faz uma crítica ao liberalismo, pela análise simplista feita por este da relação indivíduo contra estado. À medida que o papel do âmbito econômico se torne mais evoluído e complexo, a tarefa do estado passa a ser menos a de proteger a liberdade de alguns do que a de garantir a segurança do maior número.
O último capítulo inicia-se com a menção a um aspecto da natureza do poder político pouco tratado pelos escritores políticos em geral, mas bem delimitado por Tocqueville, referente a uma tendência à tiranização que se instaura dentro das democracias, a partir do movimento em que os cidadãos passam a renunciar ao exercício do poder político em favor de um órgão que os substitua, mesmo que eleito por eles, pois tal órgão passaria a avocar todo o poder para si, aproveitando-se da tendência ao individualismo excessivo promovido pela igualdade formal democrática, até que fosse retirado do povo um papel nos negócios públicos, mesmo que o estado continuasse a criar leis para o bem-estar da população.
Apenas se venceria tal tendência com a participação dos cidadãos nos negócios públicos, o que impediria o esfacelamento de povos em aglomerados de indivíduos e o deslizamento da democracia em uma centralização administrativa. Lebrun cita, como exemplo de forma de controle, a prerrogativa judicial de declaração de inconstitucionalidade de leis (aqui se toma o juiz menos como um exercente de parte do poder estatal do que como um integrante do povo), que ajuda a combater o poder, não pela capacidade de mando do poder, mas pela sua possibilidade de subjugar toda a sociedade (tal maneira de ver o poder, para Lebrun, é rara no século XIX).
Com o foco dado a Lebrun a formas de controle popular da expansão do poder, tem o ordenamento brasileiro, além do instrumento da ação de inconstitucionalidade, ou da decretação em concreto de inconstitucionalidade incidental, foram incluídas na legislação as formas de participação via plebiscito, referendo ou projetos de lei de iniciativa popular como sendo instrumentos disponíveis aos cidadãos para fazerem controle do poder político. Considerando a função jurisdicional como um fragmento do poder do estado, ou seja, sendo o juiz um órgão estatal que detém parte do poder, talvez os mecanismos mais efetivos de controle sejam aqueles de base efetivamente popular, como o plebiscito ou o projeto de lei de iniciativa popular, pois a tendência do órgão judicial é a de apresentar-se menos como um componente do povo e da sociedade do que a de impor-se sobre o indivíduo valendo-se da fração de poder que lhe fora conferida.
Ao fim do capítulo, o autor critica conceitos políticos contidos nas obras de Marx e Parsons, como o axioma marxista que dispõe que o poder político dobra-se aos interesses da elite econômica, sendo tal ideia contestável e empiricamente refutável segundo Lebrun. Critica também a noção de Parsons de que a função do poder é menos coercitiva do que enunciativa e regulatória, pois o executor da ordem estatal pressuporia que ela é para o bem comum e dispor-se-ía a cumpri-la voluntariamente.
Nas linhas finais da obra, põe Lebrun que a aceitação da ideia de que o poder do estado é essencialmente coercitivo, implica que se deve reconhecer que inexiste comunidade sem soberania nem soberania sem elite dominante, o que induz a comunidade a escolher quais os mandantes menos piores que devem ter ou quais tipos de chefia devem defender. O autor, porém, não espera ver legitimidade no discurso oficial do poder, que sempre se propõe a mentir para apresentar-se o aspirante como sendo defensor da liberdade ou do proletariado. Considera Lebrun que, se houvesse honestidade no discurso do poder, se tornaria este unicamente uma questão política em vez de um escândalo ideológico, e os homens talvez se tornariam espíritos livres, não continuariam mantendo fé no dia em que a noção de poder pertencesse a uma lembrança histórica e lutariam para que seus dominadores estivessem mais perto do soberano de Hobbes do que do tirano. Embora sintética e não exaustiva a exposição de Lebrun, os conceitos expostos pelo autor são de grande valor para o entendimento do modelo político atual e da evolução histórica que o permitiu atingir tal patamar.

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