Resenha do romance \"Outros cantos\", de Maria Valéria Rezende. Folha de S.Paulo (2016)

June 1, 2017 | Autor: Juliana Cunha | Categoria: Literatura Brasileira Contemporânea, Maria Valéria Rezende
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Sábado, 30 dE abril dE 2016

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ilustrada C7

CRÍTICA LITERATURA/ROMANCE

MariaValériaRezenderessoafaladosertanejo

Em ‘Outros Cantos’, autora narra a história de uma ex-militante de esquerda que retorna ao sertão com saudosismo eduardo Knapp/Folhapress

JULiana cUnHa

de são paulo

Há uma frase famosa geralmente atribuída a Tolstói que diz que a toda literatura revolve entre dois enredos básicos: um aventureiro se lança em uma jornada ou um estranho chega à cidade. Em “Outros Cantos”, Maria Valéria Rezende envereda pelos dois caminhos. O romance é sobre uma mulher que viaja ao sertão para dar uma palestra em um sindicato de agricultores. No caminho, relembra sua primeira ida àquela terra, quando se mudou de São Paulo para o povoado fictício de Olho d’Água com a desculpa de ser professora do Mobral (Movimento Brasileiro de Alfabetização), programa de educação do governo militar. Na verdade, era militante de esquerda enviada para organizar os trabalhadores. Seu objetivo era misturar-se, ser como “fermento na massa”. Maria, a narradora-protagonista, tem um fraco saudosista por aquele primeiro sertão, de 40 anos atrás, e um olhar desgostoso para o atual, repleto de “badulaques de outro mundo”, “autistas tecnológicos” e “camisetas com uma besteira qualquer escrita em inglês”. Sobra até para para os racks, aqueles móveis baixinhos onde colocamos a televisão. Maria sonha com um sertão puro e sóbrio, livre de racks. Seguindo o esquema de Tolstói, temos a jovem Maria chegando a Olho d’Água como enredo principal que se desdobra nas histórias que ela mesma conta de suas viagens anteriores e nas histórias de idas e vindas daqueles que deixaram o sertão e depois retornaram.

Rezende consegue fazeR uMa RefeRência tão foRte a guiMaRães Rosa coM notáVel econoMia VeRbal. são apenas duas palaVRas que entRegaM o jogo: VeReda e MistuRado

Maria Valéria rezende, freira e escritora

A escrita de Maria Valéria Rezende ressoa uma fala estilizada do sertanejo, mas também os autores que fizeram isso antes dela, como Guimarães Rosa, a quem cita quase nominalmente em uma cena em que Maria, após adentrar uma vereda que não conhecia bem, vê um marido batendo em sua mulher. Ela interfere na briga e é repreendia pela própria mulher. Quando vai contar o episódio para uma amiga, esta também defende o direito do marido espancador. É a única cena em que a jovem Maria percebe que o mundo não é maniqueísta como ela imaginava, os pobres bondosos de um lado, o Dono (empresário que explora os tecelões) como única fonte de ruindade. Percebe que “tudo era muito mais misturado”, tal qual Riobaldo notava com grande perturbação em “Grande Sertão Veredas”. Rezende consegue fazer essa referência tão forte a Guimarães com notável economia verbal. São apenas duas palavras que entregam o jogo: vereda e misturado. As coisas não correm como esperado em Olho d’Água. Seu projeto de iniciar uma célula revolucionária é interrompido pela ditadura. Mas, como o mundo é mesmo misturado, é difícil dizer se no fim Maria perdeu ou ganhou. O sertão já não tem a beleza livre de influências massificadas que ela valorizava. Os meninos têm fones enfiados nas orelhas. A música que ouvem já não é a da tradição local, mas uma versão pasteurizadaintituladade“sertanejo”. Porém, quando uma mãe abre a marmita para dar de comer aos seus filhos, Maria sente o cheiro da paçoca salgada que alimenta aquele povo há gerações e os viajantes que retornam descem do ônibus dizendo que são novos tempos para a região.

PONTO ALTO

As histórias dos retornados são um ponto alto do livro e falam da dificuldade das metrópoles em absorver os diferentes. Os loucos, os que não se adaptam, todos eles têm um espaço na vida comunitária do sertão, sendo marginalizados no convívio urbano. Chegando ao povoado, Maria rapidamente se integra ao cotidiano dos tecelões de rede. Sem salário nem função inicial, ela precisa esperar que o vereador que possibilitou sua vinda lhe pague e forneça materiais para as aulas. Isso, claro, demora muitos meses, período no qual Maria começa a trabalhar no tingimento das redes. Inicialmente encantada pela vida ritualizada dos sertanejos, Maria passa a sofrer de ondas de desânimo e sentimentalismo conforme os meses correm, o vereador não dá notícia de vida e seu objetivo militante parece cada vez mais abstrato.

OUTROS CANTOS

AUTOR Maria Valéria Rezende EDITORA Alfaguara QUANTO R$ 34,90 (46 págs.) AVALIAÇÃO bom H

Espanhol refaz os passos de Dom Quixote

José Ramón Gándara

José Ramón deixou o emprego de segurança para fazer de bicicleta o trajeto do personagem bianca soares de são paulo

Dom Quixote queria ser cavalheiro. José Ramón Gándara, 32, sonhava em ser policial. O jovem espanhol passou seis anos se preparando para a prova de acesso, mas, assim como o personagem cervantino, fracassou. Acabou como guarda em um hospital psiquiátrico da comunidade valenciana Castellón. Equilibrando-se entre a loucura e da fantasia, Gándara largou no ano passado seu emprego,quelherendia1.400 euros mensais, para percorrer parte do trajeto feito por Dom Quixote na obra homônima —que completa seu quarto centenário neste ano.

Se o cavalheiro buscava aventuras, o ex-guarda deseja resolver dúvidas existenciais. Depois que leu o clássico de Miguel de Cervantes, em 2012, ficou “alucinado”. Viajou naquele ano, como um turista comum, por Castilha La Mancha e viu pela primeira vez cidades que serviram de cenário para o livro. “Levava ‘Dom Quixote’ ao trabalho todos os dias. De madrugada, em meio a gritos dos pacientes, lembrava da viagem e como fui feliz”, conta. Para a segunda viagem, em 2015, cumprir a rota não seria suficiente: No lugar de um cavalo, levou sua bicicleta. Em vez de capacete, forjou sua própria armadura. Dias depois, caiu na estrada.

Os pais, com os quais ainda vive, não se surpreenderam. “Eles me conhecem, sabiam que eu não mudaria de ideia”. Os colegas no trabalho não acreditavam, “queriam me internar lá mesmo”, lembra. Mas não teve jeito. Partiu com o livro na mochila, uma cabana e uma câmera, com a qual registrou a experiência —mais tarde divulgada em “Tras los Pasos del Quijote”, no Facebook, e no Instagem (@traslospasosdelquijote). Durante cinco dias, percorreu 250 quilômetros e sete cidades. “Esperava chegar aos lugares e lia trechos onde eles haviam acontecido”. Quando avistou os moinhos que Quixote acreditava serem gigantes, Gándara diz ter pensado

na própria ignorância e em como a realidade é camuflada. Ali, ficou “por 40 minutos até fazer uma bela foto”. El Toboso, onde a musa Dulcineia “esperava” o fidalgo, foi a última parada de Gándara. “Entrei na cidade à noite, bem como na cena do livro. Senteina praça, em frente à catedral, e li por horas.” Parte dos 53,2% dos jovens desempregados da Espanha, ele afirma que se reencontrou: “Me inscrevi em um curso de fotografia. Já faço alguns bicos fotografando festas de amigos e excursões”. Em junho, reviverá a peregrinação. Só não sabe se trajando a armadura de lata. “Ficou bonito, mas o calor que passei foi terrível.”

o espanhol José ramón com sua lança caseira e bicicleta

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