Resenha do romance Venenos de Deus, remédios do Diabo

June 3, 2017 | Autor: Michelle Facchin | Categoria: Literatura, Mia Couto, Literatura Moçambicana
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Em Venenos de Deus, remédios do diabo encaramos um mundo em que as identidades são para lá de mutáveis, considerando-se os diversos relatos que correm em Vila Cacimba. Após ouvir várias versões sobre sua amante, Sidónio descobre que está morta e enterrada no cemitério da vila, perto de um rio, que é onde jamais os moradores enterrariam os seus mortos, pois acreditam que lá enlouquecem e não encontram o caminho de volta a casa. Deolinda é uma figura que se perpetua no imaginário de todas as outras personagens. Para Sidônio, em especial, ela é a amante, independente, misteriosa e o elemento condutor da história do médico, a partir do momento em que ela desaparece, fazendo com que ele saia de Portugal para procurá-la em Vila Cacimba. É, pois, por causa de Deolinda que seus pais e seu amante criam um laço, trocando experiências e dialogando na busca pela verdade sobre ela. Deolinda acaba sendo constituída por um mosaico de identidades, que depende da perspectiva de outros personagens e do jogo com as diversas "verdades" sobre ela, caminhando entre rememorações e esquecimentos. Como o próprio nome da vila sugere, cacimba (nevoeiro), a trama contém uma opacidade que não deixa claro qual das versões contadas corresponde à verdade, apostando no esquecimento a cura para "saudades e tristezas":

- Pois precisa esquecer. Precisa esquecer tudo o que lhe contaram.
- Esquecer, porquê?
- Porque são mentiras, esta terra mente para viver.
[...]
- Este é o remédio para saudades e tristezas, essas que não têm cura – diz Munda. (COUTO, 2008, p. 181-182)

O esquecimento, em vez de representar algo negativo para a construção da identidade de Deolinda, parece ser o caminho para a cura das insatisfações não só dos personagens a ela relacionados, mas de todo o povo moçambicano ali representado. O esquecimento daquilo que incomoda parece, portanto, ser uma possibilidade de pensar o futuro, numa espécie de reinvenção do presente, conforme Fonseca menciona: "O esquecimento parece ser uma resposta de um profundo pessimismo, quase um aniquilamento, diríamos, mas na verdade entendemo-lo [...] como uma possibilidade de reinvenção coletiva." Ou seja, a identidade supõe "a capacidade de lembrar e de esquecer, neste caso o veneno pode ser remédio, condensando o sentido contraditório e ambivalente do título do romance." (FONSECA, 2010, p. 255)


COUTO, Mia. Venenos de Deus, remédios do Diabo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

FONSECA, Ana Margarida. O lugar do outro: representações da identidade nas narrativas de Mia Couto e José Eduardo Agualusa. In: Diacrítica: dossier de literatura comparada. Universidade do Minho: Húmus, 2010. p. 237-264



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