Resenha: \"Homossexualismo em São Paulo e outros ensaios\"

June 13, 2017 | Autor: C. Valle | Categoria: Gender and Sexuality, Homossexualidade
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RESENHA GREEN, James e TRINDADE, Ronaldo. Homossexualismo em São Paulo e outros escritos. São Paulo: UNESP, 2005. Por Carlos Guilherme do Valle. Professor do Departamento de Antropologia da UFRN. Coordenador do Programa de Pós Graduação em Antropologia Social - UFRN. Até a década de 1970, poucos estudos das ciências sociais trataram das homossexualidades no Brasil, excetuando-se alguns textos sobre religiões afro-brasileiras (LANDES, 1940), certas etnografias sobre povos indígenas (HENRY, 1941) e alguns apontamentos mais casuais em obras como a de Gilberto Freyre (1936). Levaria, porém, vinte anos para se ter outro trabalho a discorrer sobre a mesma temática. Na São Paulo do fim da década de 1950, José Fábio Barbosa da Silva conduziu uma pesquisa que abordava sociologicamente as vidas de homossexuais masculinos de segmentos das classes médias e das elites paulistanas. Essa pesquisa resultaria em uma extensa monografia orientada por Florestan Fernandes na USP, que ficou desaparecida por mais de 40 anos. Com exceção de um único artigo publicado, em 1959, na Revista de Sociologia, a pesquisa de Barbosa da Silva não gerou praticamente nenhum efeito intelectual a não ser uma aura de mistério, recentemente dissipada pelo historiador norteamericano James Green e pelo antropólogo Ronaldo Trindade, que ficaram a cargo de organizar o livro Homossexualismo em São Paulo e outros escritos. Prefaciado pelo antropólogo Peter Fry, o livro compõe-se, inicialmente, de uma apresentação de Green e outro texto por ele elaborado junto de Trindade, que contextualiza a trajetória social, acadêmica e profissional de José Fábio Barbosa da Silva, que acabou por se radicar como professor de sociologia nos Estados Unidos na década de 1960. Em sua apresentação, o historiador relata as inúmeras incertezas, os percalços e dificuldades passadas até contatar o próprio Barbosa da Silva, que, então, lecionava na em uma universidade norte-americana. Por sorte, ele ainda guardava uma cópia desse antigo trabalho, uma densa monografia de especialização e não uma dissertação de mestrado, tal como se pensava, muito menos desaparecida por conta do golpe de 64 e da

repressão militar, como se suspeitava por temores conspiratórios. Em seguida, temos a primeira parte do livro que reproduz totalmente o texto original de mais de cem páginas. Depois, a segunda parte do livro, intitulada “Outros olhares”, agrega cinco artigos, elaborados por autores variados, versando sobre o tema da homossexualidade no contexto paulistano em diferentes momentos históricos. Na primeira parte, a monografia de Barbosa da Silva mostra uma impressionante descrição das vidas homossexuais urbanas do final da década de 1950. Dividida em nove capítulos, a monografia inclui introdução, capítulos teórico-metodológico e descritivos, além de

conclusão, bibliografia e

anexos. Rejeitando

as

interpretações da

homossexualidade como ‘patologia’, ‘problema social’ e ‘delinquência’, Barbosa da Silva iria considerar os homossexuais de São Paulo enquanto ‘grupo minoritário’ urbano, apoiando-se nas discussões de Louis Wirth, Robert Ezra Park e autores ligados à Escola de Chicago. Mas a homossexualidade era também descrita como ‘desvio’, tema que se tornou caro na mesma época por determinado tipo de sociologia constituído nos Estados Unidos. Vale salientar, porém, que o estudo de Barbosa da Silva surgiria em paralelo à problemática do estigma desenvolvida por Erving Goffman, que não chega a ser citado no trabalho. Na bibliografia, percebe-se a influência de Simmel e Parsons, além de alguns sociólogos anglo-saxões que trataram a temática da homossexualidade por um olhar científico na década de 1950 (por exemplo, Evelyn Hooker). Apoiou-se também na Antropologia ao usar autores como Malinowski e Margaret Mead. Além disso, Freud e Havellock Ellis dariam o enfoque da dimensão psicológica para Barbosa da Silva. Mas seria o psiquiatra Alfred Kinsey que daria fortes subsídios para o autor entender a dimensão social da homossexualidade1. Seguindo uma abordagem tipológica, as minorias poderiam, conforme Barbosa da Silva, ser classificadas em tipos distintos em termos de sua maior ou menos ‘assimilação’ ou ‘separatismo’ frente à sociedade. Assim, como ‘minoria social’, os homossexuais estariam numa relação de conflito com a sociedade mais ampla, constituindo planos de diferenciação social e cultural. A partir desses contrastes, seria até possível que eles demandassem direitos, o que mostra como o autor supunha que as minorias sociais

1

Uso aspas simples (‘) para destacar os termos e expressões usados por José Fábio Barbosa da Silva. Por outro lado, uso aspas duplas (“) no caso de expressões e termos que procuro destacar.

tivessem ‘força política’ e buscassem mudanças na ordem social e na estrutura social vigente. Mostrou, inclusive, estar bastante informado sobre os grupos militantes da época, formados e operantes nos Estados Unidos. Seria através dessa ‘posição objetiva’, estruturalmente, que seria possível compreender a situação de desigualdade social vivida pelos homossexuais. Por outro lado, segundo Barbosa da Silva (ibid, p. 59), os ‘membros do grupo se diferenciam ... em razão de características culturais especiais” que não os confundiam totalmente com a ‘maioria’. No caso dos homossexuais, essa ‘característica cultural’, ponto que vale ressaltar, seria a preferência por

parceiros do mesmo sexo. Essas

características e aspectos culturais envolvem exatamente a ‘posição subjetiva’ dos homossexuais na sociedade. Atitudes, percepções e valores comporiam, como aspectos, essa posição subjetiva, o que sugere o modo de Barbosa da Silva lidar com a idéia de cultura. De alguma forma, essas idéias reproduzem a influência do funcionalismo sociológico norte-americano de Robert Merton e Talcott Parsons, que igualmente consideravam como os aspectos culturais mediavam as relações indivíduo-sociedade. Um aspecto importante da pesquisa de Silva foi mostrar como o tema da invisibilidade dos homossexuais seria efeito da própria situação minoritária que eles viviam, qual seja, à medida que haveria possibilidade de preconceito e conflito social, muitos homossexuais buscariam a ‘dissimulação’, termo importante para a proposta do autor. Os homossexuais se distinguiriam, portanto, internamente em termos da sua exposição pública, se mais visíveis, especialmente os efeminados, ou os mais ‘dissimulados’, que buscariam ressaltar os sinais normativos e culturais mais dominantes de masculinidade. Deve-se notar que Barbosa da Silva tinha uma visão da sexualidade ainda em termos naturalizantes. Assim, os homens poderiam ser classificados e divididos se tinham parceiros do mesmo sexo, os homossexuais, ou de sexo oposto, os heterossexuais. Percebe-se a influência das idéias correntes da época que naturalizavam e universalizavam o sexo em termos do dualismo e da distinção ‘heterossexualhomossexual’, o que explica como Barbosa da Silva apoiava-se largamente em Alfred Kinsey, que teve enorme impacto teórico e político na década de 1950. Nesse sentido, citando a literatura antropológica sobre sociedades tribais, Barbosa da Silva chegou a exemplificar com o caso dos ‘berdaches’, que ocupariam culturalmente a posição de

‘homossexuais’. Mesmo se essa visão era, a princípio, antropológica, ela acabava descaracterizando e contradizendo com o sentido cultural da sexualidade e da construção social e cultural dos gêneros ao supor exatamente um estatuto natural e universal dos sexos, o masculino em diferenciação ao feminino. Nesse sentido, a abordagem antropológica de Barbosa da Silva mostra-se datada, afinal os estudos de gênero e sexualidade em Antropologia têm considerado as especificidades culturais e históricas da distinção sexual através do binarismo masculino-feminino como sendo próprias dos desdobramentos das configurações ideológicas ocidentais modernas, qual seja, o individualismo, conforme estudado por autores como Louis Dumont e Foucault. . A pesquisa de Barbosa da Silva tinha forte qualidade empírica. Assim, apoiandose na preocupação etnográfica de Ezra Park sobre a delimitação das ‘regiões morais”, o autor descreveu o amplo circuito de interações, ambientes, locais e movimentos que definiam a base espacial das vidas homossexuais em São Paulo. Essa ampla área seria marcada pelo signo da ‘desorganização’, o que avizinharia grupos e populações em situação socialmente ‘marginal’ (prostitutas, usuários de drogas, homossexuais). Vale salientar que seu trabalho orientava-se especialmente para os homossexuais masculinos, o que deixava de fora as lésbicas de sua pesquisa. Assim, a metodologia usada era marcadamente etnográfica, pautando-se na observação participante e na familiaridade que o autor tinha do ‘campo’ de pesquisa, o que possibilitou ainda um grande conjunto de entrevistas em profundidade e de reconstrução de histórias de vida sistemáticas. Na verdade, esse caráter familiar, recuperando as colocações de Gilberto Velho (1981) sobre a pesquisa antropológica em contextos já conhecidos pelo pesquisador, não seria explicitado o suficiente no trabalho, apesar das indicações que o autor oferece, mas será mais problematizado em um dos artigos da segunda parte do livro, elaborado por Barbosa da Silva, que discutirei mais adiante Apesar de ter os limites próprios de uma monografia, o trabalho de Barbosa da Silva procura ser compreensivo ao apresentar informações e questões que abarcariam todas as expressões mais comuns e recorrentes das vidas homossexuais, que seriam matéria ou tópico de cinco capítulos. O terceiro trata, por exemplo, das formas de socialização dos homossexuais, que seriam pautadas, conforme Barbosa da Silva, por fatores psicossociais que facilitam e direcionam progressivamente os homossexuais ao

seu ‘grupo marginal’. Assim, o autor recupera, através das entrevistas que realizou, as primeiras experiências homoeróticas lembradas, quando o fator etário seria destacado. Ou, então, seriam as ‘experiências classificatórias’, quais sejam, aquelas que se definem socialmente em termos de atribuição e acusação moralmente definidas, especialmente por conta do comportamento, se ele não se ajusta aos padrões dominantes de masculinidade, o que implicaria, portanto, rotulações específicas dos “homossexuais” ou práticas objetivas de estigmatização. Rotulação e ‘perseguições’ dariam condições reais de ‘conflito’, inclusive psicológicos, o que, segundo o autor, levaria o homossexual a se integrar em um grupo minoritário composto por pessoas semelhantes. Barbosa da Silva mostra, porém, que essa integração acarreta impasses à medida que (na ‘caça’) de parceiros sexuais, homens não apenas homossexuais são foco de interesse eróticosexual2. O capítulo quatro trata, sobretudo, do ‘grupo homossexual’ ao destacar o caráter socialmente mais informal geralmente encontrado no contexto paulistano que o autor pesquisava. Comparando às gangues urbanas, Barbosa da Silva explica que os homossexuais estavam envolvidos por ‘mecanismos informais de interação’, o que implicava a inserção através das redes de relações sociais ou, no que ele chamava, de ‘grupos primários homossexuais’, mas essa integração envolveria a maior ou menos visibilidade do ‘papel homossexual’, uma idéia que enfatiza principalmente a apresentação pública ou não de uma identidade entendida como ‘minoritária’, especialmente se era apresentada por meio de comportamento efeminado mais ‘ostensivo’. Percebe-se, assim, como o autor dava importância ao aspecto da ‘dissimulação’ ou não (no caso de tipos ‘ostensivos’) para entender as relações sociais, tanto interna como externamente, dos homossexuais, afinal a incorporação de pessoas em ‘grupos primários’ dependeria dos modos de exibição de traços e sinais diferenciadores que definiriam o ‘papel homossexual’. Esses grupos poderiam ser formados em torno de uma pessoa chave, a ‘rainha’, termo que se assemelha em parte ao uso da mesma

2

Barbosa da Silva faz uso recorrente de expressões e gírias usadas nos contextos de pesquisa. Assim, ‘caça’ seria uma delas, designando variadas formas de paquera e investimento erótico-sexual, equivalente ao “cruizing” do vocabulário gay anglo-saxão ou, então, ao termo brasileiro mais comum atualmente de “pegação”.

categoria na língua inglesa, mas cuja influência sobre sua ‘corte’ mostra especificidades culturais próprias aos contextos brasileiros3. No capítulo quatro, Barbosa da Silva passa a usar mais freqüentemente trechos das entrevistas que realizou, o que vai se repetir ao longo dos capítulos seguintes. Essas citações mostram uma riqueza de detalhes etnográficos que possibilitam uma leitura bastante instigante do mundo social que ele pesquisava, além das dimensões históricas que envolvem a construção das homossexualidades, inclusive permitindo um olhar comparativo. Por exemplo, usa longo trecho de entrevista em que um de seus interlocutores descreveu ‘uma festa realizada por um grupo do tipo ostensivo’ (p. 114), onde uma rede de amigos e conhecidos, alguns deles ‘tias’, se vestiram com roupas femininas ou, segundo as suas próprias palavras, ‘puseram travesti’, a fim de serem ‘cortejados’ por ‘rapazes’ convidados ao apartamento no Largo do Arouche. Estamos diante de idéias e práticas do que seria, então, ser ‘travesti’ que nada se assemelham ao que entendemos sob a mesma categoria nos dias atuais, aproximando-se muito mais, porém, ao fenômeno do crossdressing4. No capítulo cinco, Barbosa da Silva mostra como os valores culturais que definem a homossexualidade acabam sendo gerados pelas próprias pessoas em suas relações sociais e processos de socialização, primária ou não, a fim de se identificarem como homossexuais, o que, de algum modo, suscita pensar como o autor chegou a antecipar idéias do construcionismo social. Seria através da ‘redefinição’ dos valores culturais mais dominantes, que seriam pouco a pouco ressignificados a partir de interpretações particulares que a pessoa se tornaria homossexual, o que não deixaria de implicar conflitos e tensões subjetivas e socialmente marcadas, sobretudo por parte do ‘tipo dissimulado’. Percebe-se, assim, como, a cultura consiste em fator central das dinâmicas sociais, além de ser essencial, para o autor, como elemento heurístico de sua análise, aproximando-o de abordagens antropológicas. A integração progressiva da 3

Seria curioso pensar como Barbosa da Silva se aproxima das mesmas questões que Goffman consideraria poucos anos depois para se entender a problemática do estigma (1988) ou, então, algumas das idéias de Mary McIntosh sobre o ‘papel homossexual’ (1981), desenvolvidas praticamente dez anos depois de sua monografia. 4 Há toda uma literatura historiográfica sobre as “molly houses” inglesas que evocam ambientes com situações similares. O crossdressing continua a ser, aliás, bastante representativo atualmente em contextos diversos na Europa e nos Estados Unidos, o que, a princípio, poderia se chocar com as idéias de um individualismo igualitarista a se reproduzir nos países industrializados ocidentais.

pessoa nos mundos sociais da ‘minoria’ homossexual representaria a incorporação de um ‘sistema particular de idéias’ próprias desses mundos, mas estreitamente articuladas aos valores mais dominantes. Existiriam convergências e interfaces entre o ‘grupo minoritário’ e os mais abrangentes, dominantes. Mas a ‘minoria’ permitira certa evasão da sociedade mais ampla, assegurando um nível de apoio e entendimento intersubjetivo que não existiria fora dele. Para o autor, o problema da aceitação social seria nevrálgico para os homossexuais, o que envolveria ‘mobilidade social’. Contudo, Barbosa da Silva acaba por entender aceitação e mobilidade através de um moralismo embutido, sobretudo ao associá-los a certas idéias de marginalidade social. Barbosa da Silva prioriza, de fato, a caracterização das relações amorosas e sexuais entre homossexuais como elemento determinante do grupo. Vale salientar que sua visão analítica expõe, por um lado, e destaca, por outro, o que poderia ser entendido como a série de valores ocidentais modernos do amor romântico (GIDDENS, 1993; DUARTE, 1999). Assim, o amor poderia envolver aspectos, tais como o desejo sexual, a atração física, interdependência emocional, companheirismo, etc. Todos eles poderiam ter correspondência com pormenores sexuais e de comportamento que o autor explora, mostrando como ele foi influenciado pela leitura de Kinsey e suas preocupações fisicalistas (DUARTE, ibid) das práticas sexuais e das condutas. Um ímpeto tipológico está presente também, disposto a diferenciar as ‘relações amorosas’, se pautadas na ‘luxúria’, no ‘amor à primeira vista’, na ‘camaradagem’, etc. Do mesmo modo, entende a ‘seleção dos parceiros’, definidos como ‘casos’, outra vez destacando o plano da ‘experiência sexual’ ou das ‘aventuras’. Como contraponto ao plano da experiência, Barbosa da Silva reconhece existir um ‘sistema simbólico’, tanto abrangente socialmente como outro mais específico, operante para os homossexuais a fim de agenciar os valores culturais à disposição. Seria, assim, que uma linguagem característica seria notada como recorrente e comum entre os homossexuais5. Mais sintético que os anteriores, o sexto capítulo aborda o tema da ‘ascensão social’ e as pressões resultantes para os homossexuais. Como fazem parte de um grupo minoritário e com ‘posição marginal’ socialmente, as pressões de mobilidade gerariam

5

A discussão sobre o “gay speak” por autores como William Leap aproximam-se ao que Barbosa da Silva procurava notar.

ansiedades sociais. Mas, para Barbosa da Silva, essas pressões, se comuns a todos os homossexuais, seriam diferenciadas caso sua origem fosse de classe média ou de camada popular. Além disso, como o comportamento dito ‘ostensivo’ (efeminado) sofre mais sanções, há mais possibilidade de ser reproduzida sua marginalidade social. Percebe-se o efeito que essas pressões e sanções sociais teriam para a personalidade dos homossexuais. Esse tema é continuado no capítulo sete onde temos a discussão dos efeitos do eventual afastamento dos homossexuais do ‘convívio social normal’, podendo gerar agressividade devido ao estigma e sua integração social bem como o próprio ‘policiamento da visibilidade’, especialmente notado entre tipos ‘ostensivos’. Os dois capítulos evidenciam um dos principais problemas da análise de Barbosa da Silva, qual seja, o destaque conferido ao peso das normas e sanções sem considerar o alcance das estratégias dos homossexuais em questionar os valores culturais dominantes. Desse modo, o conflito não seria visto em sua positividade (SIMMEL, 1964), mas entendido apenas como uma reação a fatores e pressões tanto determinantes como dominantes socialmente. Não quero dizer que Barbosa da Silva tenha apenas se contentado a ver os aspectos de integração e funcionalidade dos homossexuais como ‘grupo minoritário’. Isso se apresenta na conclusão do trabalho, onde o autor expõe novamente como a homossexualidade não poderia ser vista como ‘problema’ e aponta para sinais de organização do grupo, ao citar o caso de um boletim voltado a homossexuais, que chegou a circular na zona central de São Paulo no período de pesquisa. Ele parece mostrar, assim, questões de interesse de seu orientador, Florestan Fernandes, sobre as possibilidades de organização e transformação social dos homossexuais. Mas estaria Barbosa da Silva em uma encruzilhada ao perceber a ambígua situação do mundo social que registrou frente às questões teóricas que lhe norteavam? O leitor poderá tirar suas próprias conclusões no livro. Os cinco textos que compõem a segunda parte do livro complementam e ajudam a enquadrar socialmente o trabalho de Barbosa da Silva. Ele próprio elabora o primeiro artigo, que consiste em uma reconsideração de sua monografia à luz de sua trajetória de vida, de sua inserção acadêmica na USP, além de tecer considerações sobre mudanças teóricas significativas sobre a tematização sociológica da homossexualidade desde a década de 1950. Ronaldo Trindade escreve o segundo artigo, onde reflete sobre o meio

social e intelectual que formou Barbosa da Silva, além de suas relações com Florestan Fernandes. Aponta como a temática racial brasileira, discutida anteriormente por Florestan, iria também ecoar na pesquisa de seu orientando. Em seguida, vem o texto republicado do antropólogo argentino Néstor Perlongher, Territórios Marginais, que certamente tem relação de continuidade com o trabalho de Barbosa da Silva, pois trata basicamente das territorialidades difusas que caracterizam as derivas urbanas dos “michês” paulistanos. Se Barbosa da Silva não estava interessado exatamente sobre a prostituição viril, que nem Perlongher, os dois aproximam-se por pesquisarem as formações sociais urbanas em torno da homossexualidade. Além disso, os dois autores permitem pensar comparativamente dois contextos históricos do mundo homossexual paulistano, um sobre o final da década de 1950 e o outro tratando da década de 1980. O quarto artigo é também uma republicação, agora de outro antropólogo, Edward MacRae, Em defesa do gueto, que recupera a São Paulo da década de 1970, a maior publicidade da homossexualidade, o impacto cultural e social do jornal Lampião e, sobretudo, da emergência da militância ‘gay’. Segundo MacRae, para se entender o contexto paulistano,

era

necessário

abordar

os

efeitos

de

concepções

distintas

da

homossexualidade, as tradicionais e as igualitárias, que, em certos momentos, se opõem e em outros podem convergir. Em Perlongher e MacRae, nota-se a influência direta dos trabalhos de Peter Fry sobre a construção histórica da homossexualidade no Brasil, os três representando a produção que viria de fato a se consolidar no cenário das ciências sociais em período mais recente. Finalizando o livro, temos o artigo escrito por Júlio Assis Simões, antropólogo da USP, e por sua aluna Isadora França. Os dois autores tratam da década atual, portanto servindo como contraponto aos trabalhos de Barbosa da Silva, Perlongher e MacRae a fim de se compreender a “ampliação e diversificação dos espaços de sociabilidade homossexual”. Um dos principais elementos que registram seria a formação de um mercado específico voltado aos mais diversos segmentos homossexuais. Por outro lado, apontam para o impacto da Parada do Orgulho GLBT tanto em termos do ativismo homossexual como da visibilidade social que passa a existir. Estamos distantes, portanto, dos rigores da dissimulação notada por Barbosa da Silva mais de quarenta anos atrás.

Em resumo, deve-se notar o caráter pioneiro da pesquisa de José Fábio Barbosa da Silva, apesar dos limites de seu impacto intelectual. Esse livro nos leva a pensar nas possibilidades que teriam sido geradas para as pesquisas sobre as homossexualidades, se o trabalho tivesse sido realmente circulado. Talvez o principal aspecto a comentar sobre as possíveis relações do trabalho de Barbosa da Silva com o contexto mais atual seria, na verdade, as possibilidades acadêmicas que sua pesquisa teria permitido por ter destacado as ações sociais mais concretas, as modalidades de estilos de vida e o interesse em perscrutar o cotidiano em suas sutilezas, característica tanto das abordagens microsociológicas como das etnográficas. Referências DUARTE, Luiz Fernando Dias. “O Império dos sentidos: sensibilidade, sensualidade e sexualidade na cultura ocidental moderna”. In: Maria Luiza Heilborn (org.). Sexualidade: o olhar das ciências sociais. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999. FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos. 8ª edição. Rio de Janeiro: Record, 1990 [ed. or.1936]. GIDDENS, Anthony. A Transformação da intimidade. São Paulo: Editora UNESP, 1993. GOFFMAN, Erving. Estigma. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1988 [ed. or. 1963]. HENRY, Jules. Jungle people: a Kaingang tribe of the Highlands of Brazil. New York: JJ Augustin, 1941. LANDES, Ruth. “A Cult Matriarchate and Male Homosexuality”. The Journal of Abnormal and Social Psychology. Vol. 35, 1940, p. 386-397. McINTOSH, Mary. “The homosexual role”. In: Ken Plummer (ed.). The making of the modern homosexual. London: Hutchinson, 1981 [ed. or. 1968] SIMMEL, Georg. “The Sociological Nature of Conflict”. In: The Sociology of Georg Simmel. Nova Iorque/Londres: The Free Press/Collier Macmillan Pub, 1964. VELHO, Gilberto. Individualismo e cultura. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981.

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