Resenha - PERRUSO, Marco Antonio. Em busca do novo - intelectuais brasileiros e movimento populares nos anos 1970-1980

June 7, 2017 | Autor: C. Marcusso Berna... | Categoria: Pensamento Social Brasileiro
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Universidade Estadual de Maringá Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais Disciplina: Pensamento Social Brasileiro PERRUSO, Marco Antonio. Em busca do “novo”: intelectuais brasileiros e movimento populares nos anos 1970/1980. São Paulo: Annablume, 2009.

RESENHA

Cássius M. T. M. B. de Brito

A obra em tela se inscreve na linhagem de estudos sobre as mudanças nas trajetórias do pensamento social brasileiro enquanto campo científico e suas relações com as definições dos objetos e metodologias hegemônicas sobre o “social” brasileiro ao longo da história. Se a geração dos anos 1930 estava voltada para a construção de um projeto de país em torno da definição de uma identidade nacional e a geração dos anos 1950 dedicava-se à compreender os impactos dos processos de industrialização e urbanização sobre os modos de vida da população, parte da geração dos anos 1970/1980 dedicou-se a promover um “ajuste de contas” com a geração anterior ao eleger a emergência dos movimentos populares do período e suas características “novas” como objetos privilegiados não apenas de análise, mas eminentemente de aproximação política. O autor procede, então, a uma imersão nas trajetórias de intelectuais do eixo Rio de Janeiro – São Paulo do período e as variadas formas que eles encontraram para, a partir da formação de instituições de pesquisa e/ou assessoramento, deslocar as perspectivas teóricas de análise focadas no Estado e nos arranjos institucionais de funcionamento do poder político em direção às mudanças que ocorriam no interior de uma sociedade civil que se movia no contexto da crise da autocracia ditatorial iniciada em 1964. A constituição de institutos de pesquisa como o CEDEC (Centro de Estudos de Cultura Contemporânea – dissidência do CEBRAP), a revista Desvios, o CEDI (Centro Ecumênico de Documentação e Informação), o Instituo Polis, a FASE (Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional), o IFCS (Instituo de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ), entre outros, se inseriam em uma tripla lógica que combinava: a) ajuste de contas crítico com o que consideravam a herança “populista” e “marxista ortodoxa” da esquerda brasileira pré-1964, às quais eram atribuídas as características de extremamente teoricista, estruturalista a apartada da classe que eles afirmavam representar; b) mudança da estratégia teórica, promovendo o que o autor chama de “inflexão fenomenológica”, na qual os intelectuais vão para o interior dos movimentos populares para captar, desde o nível empírico, os processos de autoconstrução das identidades de classe que se forjavam naqueles movimentos, com suas características de autonomia, de valorização dos aspectos cotidianos da exploração, dominação e criatividade nas formas de resistência inventadas; c) uma crítica à postura intelectual elitista, que analisava desde fora os movimentos sociais, objetificando-os sem considerá-los sujeitos de sua própria autoconstituição e que consideravam o engajamento político como nocivo à pretensa neutralidade científica. Tanto para o autor como para o pensamento social que ele elege como objeto de análise, é fundamental que os movimentos populares dos anos 1970/80 e a adoção daquela postura intelectual acima referida sejam classificadas como “novas”, o que se faz a partir da definição do que seria “velho”. O “novo

sindicalismo” e os “novos movimentos populares” seriam diferentes “velho sindicalismo” e dos “velhos movimentos populares”, na medida em que se afastavam de uma formatação dependente do Estado, de uma estrutura organizacional rígida e corporativista e pautada em uma política de alianças com os setores dominantes da sociedade para a realização de um projeto desenvolvimentista. Em contraposição a isso, o “novo sindicalismo” e os “novos movimentos populares” era contestador da estrutura sindical “amarela” (ou pelega), construía-se a partir de organizações de base com um perfil contestatório e combativo, avesso à subordinação perante à institucionalidade, de articulações mais amplas com as organizações de bairro, religiosos, do campo e da cidade, etc. Ao voltarem-se para os movimentos populares, os intelectuais promoviam um duplo giro de atribuição de legitimidade: não apenas “teórica e analítica”, mas também “política” como forças determinantes para um processo de democratização da sociedade brasileira que rompesse com os limites de uma cidadania regulada em direção a uma cidadania ampliada. O autor não deixa de reconhecer a possibilidade de que a “ênfase” na autodefinição dos movimentos e da postura intelectual como “novas” guardem algum risco de “idealização” e que é preciso não deixar de registrar que é necessário matizar esta “novidade” . Isso ocorre não apenas pela recorrência das aspas a acompanhar o adjetivo, mas também pelo reconhecimento de que, por exemplo, o caso carioca guardava muitas características de continuidade com o passado “populista” tanto do ponto de vista dos movimentos populares quanto da postura dos intelectuais, quando comparado com o caso paulista. Não obstante, o que é fundamental destacar é que a constituição deste campo científico imerso na tensa relação de um “conhecimento produzido na fronteira da ação” tinha como objetivo realizar um acerto de contas com a geração anterior, seja do ponto de vista da crítica teórica, da crítica intelectual e da crítica política. Às insígnias da estratégia política policlassista do PCB, dos esquemas teóricos rígidos e “totalizantes” do “marxismo ortodoxo” e da “neutralidade científica”, a articulação entre o “novo sindicalismo” e os “novos movimentos populares” contrapunha a autonomia e a independência das organizações da classe trabalhadora, uma “inflexão fenomenológica” a legitimar a riqueza empírica e fluida dos processos de autoconstituição da identidade de classe e sua legitimidade como sujeito político para o processo de democratização da sociedade brasileira para além dos acordos no interior da institucionalidade. Para além da discussão em torno da constituição do “campo científico” dos “novos intelectuais” engajados com os “novos movimentos populares”, chama a atenção no autor a “presença oculta” da referência a como esta articulação integrava uma determinada estratégia de transformação da sociedade brasileira, na qual a intelectualidade teria uma função importante na constituição do “novo bloco histórico”. Inicialmente pouco definida, esta estratégia – que ficou definida como “democrático-popular – foi progressivamente formulada a partir dos desenvolvimentos que os movimentos populares iam alcançando em seus processos de autoconstituição, de capacidade de articulação e da generalização de suas pautas de reivindicação, tendo como referência o contexto de transição colocada pela crise da ditadura. Assim, a postura inicialmente avessa à institucionalidade política passa a ser redimensionada, na medida em que as possibilidades de avanço em direção à “cidadania ampliada” passava pela constituição de um partido que pudesse ser o desaguadouro político da efervescência da sociedade civil de cunho popular. Grosso modo, poder-se-ia afirmar que esta estratégia está fundada em dois pilares essenciais: 1) a construção de um longo processo de acúmulo de forças através de amplos movimentos de massas que pressionassem a estrutura social “de baixo para cima” por bandeiras de radicalização democrática, por reformas que ampliassem os direitos políticos e sociais da grande maioria da população; e 2) uma frente

eleitoral-institucional que fosse capaz de viabilizar a ocupação de posições no interior do Estado, de modo que, a partir da representação parlamentar e da direção de instâncias do Executivo, a pressão extrainstitucional se materializasse na condução das políticas de governo. Os desdobramentos da consolidação desta estratégia na medida em que o PT se converte em seu principal operador político acaba, no atual momento político que vivenciamos (no quarto mandato do partido na presidência da república), obrigando-nos a colocar em perspectiva histórica as metamorfoses daquela novidade que emergiu na vida política e social do país durante os anos 1970/80. Vejamos um exemplo. Na construção do que seria o “velho” das organizações da classe trabalhadora no pré-1964, o autor afirma: “o elenco de críticas e adjetivos pejorativos pode ser iniciado com Moisés, para quem o sindicalismo pré-64 possuía um ´velho ponto de estrangulamento do sindicalismo brasileiro´, a mobilização ao nível da empresa. Por isso, era dotado de ´inconsistência organizatória´; ´fraca capacidade de intervir na condição de sujeito coletivo´; organizado verticalmente, com relação difusa e massiva entre base e direções; pouco ajustado em termos de democracia interna e não necessariamente capaz de expressar os anseios reais de participação dos trabalhadores; voltado mais para o desenvolvimento nacional do que para as questões específicas fomentadoras da cidadania dos trabalhadores; ajudava a aprofundar as contradições do Estado populista, ao fazer a intermediação política por certas demandas, ao mesmo tempo em que fornecia as bases sociais de apoio ao nacional-desenvolvimentismo. (…) Maria Hermínia Tavares de Almeida também mencionava este último ponto sobre as bases operárias do ´velho´ sindicalismo populista e prosseguia descrevendo sua trajetória e condicionantes: fora capaz de incorporar politicamente as massas urbanas, mas tirando partido de sua proximidade com o Estado, via estrutura sindical de feitio corporativista; tinha capacidade de avalizar o apoio político dos trabalhadores a uma facção da elite no poder, obtendo e consolidando benefícios materiais e projeção social, mas às custas de sua fraqueza como organização e movimento social; como consequência, seus sindicatos eram burocratizados, oligárquicos e pouco representativos, possuía uma prática conservadora que não excluía, conforme as circunstâncias, discursos radicais quanto às políticas trabalhistas implementadas, bem como reclamos formais sobre a falta de liberdade e autonomia sindicais” (p. 179).

Esta descrição não caberia como uma luva à atuação corrente da maioria dos sindicatos e das principais centrais sindicais, com especial referência à CUT, que constituiu aquele processo de “novidade” dos anos 1970/80? Não se quer dizer, com isso, que a forma concreta de implementação da estratégia democrático-popular operada politicamente pelo PT apoiada sobre os processos de transformação dos movimentos sociais teria convertido o partido em “populista”. As circunstâncias histórias fortemente diferentes em relação aos anos 1950/60 impedem isso, a despeito da insistência da corrente teórica liberal. O que se quer é levantar a hipótese de que, a partir de uma perspectiva histórica que obviamente os autores dos anos 1970/80 não tinham condições de ter, as relações de continuidade na história da constituição da classe trabalhadora brasileira são mais profundas do que parecem e este processo é condicionado pelas mudanças de conjuntura em que a classe ora se integra, ora contesta a ordem de modos diferentes. É evidente que, quando se tem como parâmetro de comparação o período pré-1964 e a própria ditadura, os movimentos populares dos anos 1970/80 correspondiam a algo “novo”, mas não sem referência alguma à história anterior da constituição da classe. Antes do período “populista”, as organizações da classe ousaram se colocar como sujeitos políticos coletivos, demonstrando combatividade, independência e autonomia, como mostra a história das greves dos anos 1920 e 1930. O “trabalho de formiga” que caracterizou a forma de mobilização do “novo sindicalismo” nos anos 1970/80 contou com a participação de antigos comunistas, dissidentes do PCB a partir da derrota de 1964.

A “inflexão fenomenológica” capaz de apreender a riqueza empírica dos processos de organização dos movimentos populares foi fundamental para romper com a tradição anterior, na medida em que se coloca como tarefa a realização de um “ajuste de contas” com ela. Somente o recurso à história, contudo, é capaz de prevenir que a detecção de características conjunturais seja elevada ao status estrutural. Fica, então, a sugestão de que se torna cada vez mais premente a realização de um novo ajuste de contas. Negar que somos resultados deste processo histórico é tentar fazer história sem considerar as condições, tanto objetivas quanto subjetivas, que nos foram legadas do passado e que constituem, na atualidade, o caldo material e cultural com o qual temos que nos enfrentar. É possível levantar como hipótese que, nas condições concretas da realidade brasileira, o projeto democrático e popular consolidouse e o fez num quadro de conciliação de classes sob a forma da “democracia de cooptação”, de que falava Florestan Fernandes. Este processo, ao invés de fortalecer a classe trabalhadora em sua luta pela emancipação, acabou por apassivá-la no momento mesmo em que dá sustentação à hegemonia do poder político burguês no Brasil. Diante da complexidade do momento histórico em que vivemos, é cada vez mais vigorosa a validade da divisa socrática, do “conhece-te a ti mesmo”. Somente a partir da crítica de nossa própria concepção de mundo é que podemos torná-la unitária e coerente (Gramsci) e, assim, consiguir junto à classe trabalhadora vislumbrar novas alternativas de organização e de estratégia. Se não temos a receita do que fazer, temos, contudo, junto com Florestan, a convicção de que “ou nos identificamos, no movimento político, com as classes trabalhadoras, ou com os interesses capitalistas de preservação da ordem. Não vejo nenhuma possibilidade de casamento das duas tendências: elas são antagônicas e exclusivas. [...] Um movimento trabalhista, ainda que muito forte, íntegro e autônomo, se não contiver um profundo conteúdo socialista revolucionário, irá 1 acabar num reformismo e, quem sabe, até num oportunismo” .

Por fim, devemos ressaltar que toda esta análise não é feita sem dor. Não compactuamos com aqueles que, diante da experiência histórica consubstanciada na trajetória do PT (e os movimentos populares que gravitam em torno de sua influência), olham de soslaio como a dizer “não tenho nada a ver com isso”, despindo-se da experiência de sua classe como se fosse apenas algo puramente incômodo, que pudesse ser desfeito com um “dar de ombros”. Não nos colocamos na condição de juízes da história e não podemos apontar o dedo a ela dizendo “eu não disse que ia dar errado?”. É como diz o poema:

De Partos, Monstros e Heranças De que parto? De qual pai? De qual gruta brotou inescrutável origem? Qual ventre gerou distante promessa alvissareira deformada em pesadelo? Horrenda cria renegada ninguém nela reconhece 1

FERNANDES, F. “O Partido dos Trabalhadores”. In: Brasil: Em Compasso de Espera. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2011, p. 350-351.

seus traços, seu nariz a linha indisfarçável da genética paternidade. Não é meu, não o meu! Um Quasímodo, quase um modo moderno, quase pós, quase lá, um pós-modo de manter um velho mundo. Não é meu, meu não é! Foram as más companhias, foi a doença do poder foi a bebida, passou fome na infância, é sangue-ruim... puxou à mãe. Expiada a culpa na cria-monstro, os pais, alvos e puros, preparam novas seduções, coitos e estupros espalhando seus genes podres. Se ninguém o quer... é meu, assumo. Recolho a horrenda criatura, beijo-a na face deformada, limpo seus excrementos, alimento-o em meu peito seco. É meu! É meu! Meu monstro inumano, parido e deixado por quem o gerou. Cresce em si, meu menino, monstro que revela como espelho a deformidade do outro que se crê puro e belo. Talvez, um dia, emancipado, renegue os pais que o renegaram, volte seu rosto para o espelho E se veja finalmente no que é Nele mesmo Nosso futuro (Mauro Luis Iasi)

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