Resenha: “Sentidos de Milícia\", de Greciely Costa

July 6, 2017 | Autor: Paula Chiaretti | Categoria: Resenha
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COSTA, Greciely Cristina da. Sentidos de milícia: entre a lei e o crime. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2014.

“SENTIDOS DE MILÍCIA: ENTRE A LEI E O CRIME”, DE GRECIELY CRISTINA DA COSTA PAULA CHIARETTI Programa de Pós-graduação em Ciências da Linguagem Universidade do Vale do Sapucaí Av. Pref. Tuany Toledo, 470 – 37550-000 – Pouso Alegre- MG – Brasil [email protected]

Já em seu título, “Sentidos de milícia: entre a lei e o crime”, Greciely Cristina da Costa nos apresenta o entremeio no qual seu trabalho de análise se instala. Deixado permanentemente em suspenso, o sentido de milícia se desdobra em uma miríade que deixa clara a complexidade do tema e do material de análise. O livro é fruto da sua tese de doutorado, defendida na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e orientada por Eni Orlandi. Nele, legitimidade, legalidade e ilegalidade se esbarram e se sobrepõem. O político aqui guia a produção de sentidos, ora de ordem, ora de guerra, ora de crime. Segundo a autora, a denominação milícia começa a circular em 2006, no Rio de Janeiro, referindo-se a grupos de policiais (e outros agentes de segurança pública) que, após a expulsão de ‘inimigos’, passavam a controlar determinados espaços. O trabalho de Costa se inicia então a partir de uma pergunta, “por que chamar polícia de milícia?”, que se desdobra em quatro pontos principais explorados na obra: a desvinculação de milícia de polícia, efeito da denominação; a manutenção do sentido de ‘proteção’ pela contiguidade com polícia; a também existente associação ao sentido de ‘crime’; e a especificidade do espaço (a favela) no qual a prática da milícia é instaurada. O referente então, milícia, é passível de ser observado a partir de diferentes discursos que produzem distintos efeitos de evidência e equívocos. No primeiro capítulo da obra, O discurso sobre e os lugares de mediação, a autora aborda o discurso sobre a milícia. A fim de analisar de que maneira as ilusões referenciais afetam a construção discursiva de referentes, o discurso sobre (entendido como um discurso intermediário) é trabalhado por meio de dois outros conceitos, formações imaginárias e interpretação. Isso porque, no jogo entre língua e exterioridade, o sujeito é impulsionado a significar, ou seja, “há uma injunção à interpretação” (p. 36). No entanto,

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como não há uma relação direta entre linguagem/pensamento/mundo, a interpretação possibilita o fechamento e a abertura de sentidos. Assim, guiada pela pergunta “como funcionam os discursos sobre a milícia?”, Costa buscar compreender os dizeres que denominam, caracterizam, descrevem, classificam, redenominam um objeto simbólico por meio de gestos interpretativos que constroem e direcionam sentidos. Costa destaca o processo de denominação e o articula a dois outros inseparáveis: a política da palavra e a produção de silêncio. Assim, a autora mostra, por meio da análise discursiva de entrevistas a moradores de favelas (ocupadas ou não pela milícia), como o sujeito, ao produzir discursos sobre a milícia, também produz interpretações sobre si, sobre o outro, sobre os lugares que cada sujeito ocupa; interpretações essas que são atravessadas por outros discursos – de gestores, da polícia, da mídia – e silêncio. Em suas análises, a autora mostra o jogo metafórico da denominação milícia cujos processos discursivos articulam, apagam, esburacam e produzem, ao lado de evidências, equívocos, apontando para e deslocando sentidos. Para Costa, formular “é [...] situar-se na fronteira entre o dito, o silêncio, o dizível” (p. 45). Ainda neste primeiro capítulo, Costa analisa o roteiro de entrevista empregado na pesquisa, contrapondo formulações como tomar conta, dominar e controlar utilizadas em diferentes perguntas, reformuladas durante a entrevista e respondidas (ressignificadas) pelos entrevistados, a fim de verificar de que maneira diferentes sentidos se instalam, a partir de processos como “a deriva, a repetição, a retomada, a substituição de palavras” (p. 49), em uma relação tensa entre repetição e ruptura. Já no capítulo II, Espaço e sujeitos: condições de produção de significação, a fim de observar determinadas condições de produção de discursos sobre a milícia, Costa retoma a concepção de Orlandi sobre a cidade como espaço político-simbólico trabalhado na/pela história e passa a investigar as relações entre sujeitos, que entende como relações de sentido, no espaço da favela e em seu entorno. Os discursos sobre a milícia retomam sentidos anteriores sobre esse objeto discursivo, a milícia, circunscrito sócio-histórica e ideologicamente em uma dada conjuntura, imediata ou ampla. Para entender o contexto dessas produções discursivas, Costa passa a investigar a favela como espaço político-simbólico cuja formação ou configuração sustenta um imaginário social que a relaciona (entre outras coisas) à ilegalidade. Sua marginalização e seu isolamento ‘autorizariam’ sua gestão por uma administração especial realizada seja pelo Estado, representado seja pela polícia, seja pelos traficantes. Assim, o significante domínio tanto diz respeito aos limites geográficos (ocupações irregulares) quanto ao exercício do poder (do Estado ou ilegal). Contrapondo definições parafrásticas de milícia, como grupo armado irregular e grupo de policiais ilegais, Costa nos mostrar de que modo os sentidos de legal e ilegal se esbarram legitimando práticas que são consideradas ilegais pelo Estado, mas relevadas

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caso ocorram dentro de um espaço específico de enfrentamento da criminalidade e em nome da “manutenção da ordem”. Manutenção de ordem, segurança e tranquilidade são significantes que, em dado momento, se relacionam à milícia e suas ações. No entanto, Costa aponta de que maneira outros discursos deslocam os sentidos de milícia relacionando-a “à insegurança, à arbitrariedade, à extorsão, ao extermínio etc.”. Costa mostra como, ao ser relacionada à ausência de propriedade de solo, de instituições, de serviços públicos, a favela possibilita a construção de um imaginário a seu respeito que, estendido aos moradores por um efeito de metonimização, fabrica estereótipos relacionados a atributos negativos como doenças, imoralidade, promiscuidade e desordem. Assim, ocupação ilegal do espaço deslizaria para moradores subversivos, marginais e promíscuos. Além disso, a memória de oposição entre favela e cidade, que criminaliza a favela (e seus moradores) produzindo um sentido de terra sem lei, gera um vazio, que, segundo Costa, pode ser preenchido tanto pela violência policial quanto pelo estabelecimento do comércio de drogas (que estabelece padrões de condutas aos moradores). A negligência do poder público, entendida pela autora como falta/falha do Estado, sua ausência ou presença falha enquanto articulador político-simbólico (cf. ORLANDI, 2001), possibilita que novas formas de “domínio” e autoridade (“milícia”, “chefe da boca”, “chefe do tráfico”, “domínio carismático”) se assentem nesse espaço. Costa articula o processo de construção discursiva do referente ao tratar de forma detida a denominação que intervém como um “vetor de significação” na relação entre sujeito e espaço. Transitando entre os significantes “favela”, “bairro” e “comunidade”, Costa demonstra a alternância e a tensão entre as diferentes denominações que, ao engendrar novos referentes, dão prova da não-transparência da linguagem. É possível observar então os efeitos metafóricos (relacionados às substituições lexicais no discurso dos entrevistados) que engendram os equívocos e os efeitos de recobrimento de sentidos. Esse é o caso da substituição de ‘favela’ por ‘comunidade’ que descola o estereótipo, consolidando uma política de reivindicação, ao mesmo tempo em que reafirma a segregação (fora-dentro) apelando a um comunitarismo (oposto à cidadania) no qual falta o Estado. Os nomes recortam e silenciam. Costa resgata ainda o histórico das políticas de segurança pública no Brasil e a constituição e funcionamento da polícia para compreender de que modo os sentidos de ordem e segurança se estabelecem no espaço da favela em uma tensão constante com outros, como extermínio e abuso da autoridade, fazendo com que em muitos depoimentos os moradores prefiram o domínio do bandido ao do policial. Num jogo de sentidos em que execução sumária é entendida como “atos de bravura” e “atos de resistência” como “autos de resistência” seguido de morte (“corpo no chão”), a autora retoma a persistência da metáfora com a guerra (“guerra ao crime”), que sustenta antinomias como bem e mal, polícia e bandido, lei e crime, perpetuando uma violência (ilegal) contra o “inimigo”.

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No capítulo III, Milícia: denominação e redenominação, Costa aborda os processos de denominação e redenominação de milícia, expondo as diferentes formações discursivas recortadas pelos diversos nomes utilizados: milícia, polícia mineira, a mineira, grupo de extermínio, segurança particular, poder paralelo, dentre outros. Essas famílias parafrásticas apontam para a relação entre o mesmo e o diferente, fazendo funcionar tanto a estabilização de sentidos, que fazem referência ao já-la, quanto a ruptura que tensiona os sentidos. Por meio da análise discursiva das entrevistas, Costa marca oposições e equivalências nos processos de denominação e redenominação da milícia, que se desdobram em diferentes formas de significar, na construção discursiva do referente. A autora marca ainda importantes indeterminações, ambiguidades, indistinções, confusões e silenciamentos. Costa analisa também o funcionamento discursivo de “justiceiro”, que dá origem a “esquemas”, “normas” e “códigos” utilizados nas resoluções de conflitos dos quais o Estado se ausenta. Daí também o resgate da cultura comunitarista, a partir da qual Costa mostra como um dos canais de inserção do tráfico se dá pelo assistencialismo prestado aos moradores dos locais sob seu controle. Esse papel incerto, entre criminoso e protetor, faz com que alguns moradores prefiram o domínio do tráfico (‘pessoas de dentro’) à violência policial (‘de fora’). Vale marcar ainda a concorrência entre os significantes ‘polícia’, ‘milícia’ e ‘tráfico’ como aqueles que controlam/dominam o espaço dos moradores, que devem se submeter às leis impostas pela invasão. No quarto capítulo do livro, Discurso de moradores sobre a milícia: dissonância de dizeres, Costa recorre ao conceito de ‘formações imaginárias’ a fim de compreender o discurso sobre a milícia por meio das projeções de imagens dos interlocutores (neste caso, entrevistados e entrevistadores) e do referente (a milícia), também entendido como o personagem ‘terceiro’. Algumas regularidades são marcadas: a introdução do discurso do outro por meio do verbo dizer conjugado na terceira pessoa; a existência de uma colagem de dizeres; a citação do discurso do outro; e a reprodução (direta) deste. É por meio deste discurso intermediário que aparece o miliciano. Em um jogo de alteridade surge então o outro do qual se constitui o sujeito. Segundo Costa, “o outro de si explicita, portanto, a descontinuidade, a dissonância, a ambiguidade, a confusão, o confronto e a dispersão de sujeitos e sentidos, no processo de constituição da subjetividade” (p. 169). O capítulo V, Discurso jurídico sobre a milícia, se debruça sobre a análise de textos que legislam sobre o funcionamento e/ou criminalização da milícia. O foco aqui é dado aos processos de denominação, no discurso jurídico, e aos sentidos que produzem em relação ao referente. Fazem parte do corpus projetos de lei que classificam a formação de milícias e grupos de extermínio como crime. No texto desses projetos, a milícia recebe o atributo de privada e particular, o que leva Costa a considerar essa estratégia discursiva uma maneira da lei projetar sentidos à milícia a fim de torná-la visível (distinta de outros) e, logo, passível de ser administrada. Ao ser inserida na Lei, a milícia, além da sua existência histórica e distinção, ganha também uma existência legal. Interessa a Costa o que é silenciado e o que é definido a partir desse discurso jurídico. A autora destaca ainda a indeterminação (de sentidos e sujeitos) e as ambiguidades produzidas por esses textos.

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Outro discurso analisado é o da indicação legislativa do estado do Rio de Janeiro que propõe a formação de uma polícia específica, a Polícia Comunitária, cujo nome demonstra a permeabilidade dos sentidos de milícia e polícia, que se encontram em uma relação de contiguidade. A partir daí, a pesquisadora se pergunta se isso se trataria de uma maneira de, pela equivocidade do significante, legalizar a milícia (e suas práticas). Além disso, um dos efeitos do desdobramento da polícia em milícia é a elaboração de um dispositivo normativo da milícia, que nem escrito, nem sancionado, funciona de modo eficaz nas áreas miliciadas. Esse dispositivo normativo ressignifica a lei ao atualizar formulações que expressam deveres (como “é proibido”, “deve-se” etc.). Esses imperativos se espalham por meio de boatos e funcionam pelo esquecimento/negação da lei do Estado. No sexto capítulo, Discurso de imagens sobre a milícia, Costa analisa o discurso sobre a milícia formulado em imagens, consideradas parte da memória discursiva. A partir da utilização da palavra-chave “milícia”, foram realizadas buscas no site Google, possibilitando uma nova abordagem do processo discursivo de construção do referente. A autora demonstra como essas imagens não podem ser reduzidas a simples ilustração na medida em que produzem sentidos sobre a milícia, funcionando a partir de um efeitorealidade produzido na ideologia. Em suma, a autora analisa de forma corajosa de que maneira a milícia, ao constituir-se a partir da polícia, estabelece uma relação direta com a lei, que, ao ser reformulada/atualizada (normatizando e perpetrando práticas como extorsão, extermínio e coerção), faz com que a milícia se encontre também em uma relação direta com o crime. Milícia é o nome que se encontra neste entremeio que não distingue lei e crime. Por conta disso, o processo de denominação, amplamente abordado no livro, é o ponto nodal da análise de um funcionamento discursivo cujos sentidos tensionam-se entre legitimidade, legalidade e ilegalidade. A despeito da facilidade que seria tomar um ou outro partido, a autora finca os pés naquilo que é a fonte do novo, a equivocidade da língua e a possibilidade de deslizamento de sentidos. Não se fixando em qualquer interpretação precipitada ou descuidada, Costa, de forma rigorosa, sustenta uma posição dura de ser ocupada, mas comprometida com o social.

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