Resenha sobre \"Cultura, um conceito antropológico\", de Roque Barros Laraia

July 25, 2017 | Autor: Augusto Armondes | Categoria: Musicology, (etno)musicologia, Musicologia, Musica, Cultura e Sociedade
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Resenha sobre o livro "Cultura, um conceito antropológico" de Roque de Barros Laraia
Augusto César Pereira Armondes

Roque de Barros Laraia é mineiro de Pouso Alegre nascido em 1932. Bacharel em História pela UFMG, Laraia se especializou em antropologia e sociologia, área onde contribuiu com pesquisas e publicações muito conceituadas. Entre elas publicou em 1986 o livro "Cultura, um conceito antropológico", que nos leva a refletir sobre uma definição para a palavra cultura. Considerando a música como cultura, ou uma manifestação cultural, podemos então estender as ideias discutidas no livro dentro do universo musical. Passaremos por alguns desses conceitos utilizando alguns exemplos, buscando assim sustentar o ponto de vista.
Uma das antigas e principais ideias em volta do conceito de cultura ocorre quando o famoso livro "A origem das espécies" de Darwin é publicado. Nesse ambiente de inovação, alguns estudiosos utilizaram as ideias de evolução sugerida pelo livro para classificar as diferentes culturas em uma escala. As sociedades consideradas atrasadas com o tempo alcançariam, de maneira uniforme, aquele estado que se acreditava ser o mais evoluído. Esse conceito logo caiu por terra, e hoje temos essa ideia como absurda. Mas será mesmo?!?!?
Pensando em música, mais precisamente em estilos musicais, percebo que ocorre claramente uma "escala" entre eles. Não uma escala no sentido de crescimento e evolução, mas de qualidade, semelhante a escala da evolução social, onde culturas mais avançadas seriam melhores que outras. O pior de tudo é que nós, músicos, são os que mais fomentam essa diferenciação qualitativa. Quem nunca ouviu uma crítica bem pejorativa sobre o funk, arrocha, sertanejo, axé (observe que se tratam dos estilos mais populares), chegando ao ponto de desclassificá-los como música? E de maneira oposta, ouviu elogios à música clássica, ao jazz, bossa nova? Esses exemplos estão dentro da nossa realidade. E quando se ouve um som de uma cultura distante, com suas nuances bem características e peculiares ao nosso ouvido. Ás vezes nem consideramos como música, nem entram na nossa "escala". Quem falou que um estilo é melhor, mais fácil ou mais difícil que outro? Ou, nos termos da discussão, mais evoluído? Você pode gostar mais de um ou de outro, mas passar disso é um erro. Desse modo cada um faz a sua escala, na maioria das vezes intransigente, e os questionamentos sobre os critérios utilizados são uma discussão sem fim, pois parece que nem existem.
Uma das características que diferenciou o homem dos outros animais foi a sua capacidade de se adaptar aos diversos ambientes sem a necessidade de se modificar biologicamente. Futuramente observamos também essa característica humana de adaptação no contexto social. Musicalmente o homem também tem a capacidade de se adaptar a qualquer situação. Tomemos um músico solista de jazz, por exemplo. Ele carrega consigo todas as características do estilo, as técnicas e os estudos harmônicos para executar sua musicalidade. Quando convidado para tocar como acompanhante de um som bem diferente do seu, de início ele pode não se achar, não entender como se desenvolve a harmonia, as sincopas, as dinâmicas e os improvisos. Mas com o tempo ele começa a compreender e absorve as informações. Essa capacidade humana é sensacional.
Há uma frase célebre para definir cultura que diz: "a cultura é uma lente através da qual vemos o mundo". Podemos dizer também que existe uma "lente" através da qual ouvimos o mundo. No Brasil crescemos ouvindo os sons característicos da nossa cultura, como o samba, pagode, sertanejo, MPB, etc. Estamos desde pequenos acostumados com as formas, os timbres, as letras, as melodias peculiares a esses estilos. Conseguimos diferenciar os mínimos detalhes, pois nossa lente auditiva é treinada pra identificá-los. Quando conhecemos uma música de fora da nossa cultura diferente de tudo que já ouvimos, o que parece ser difícil nos dias atuais devido a essa globalização tão avançada onde tudo está a um clic de distância, nosso filtro auditivo não consegue perceber várias características desse som e tudo parece ser a mesma coisa. Não conseguimos identificar as pequenas diferenças, pois nossa "lente" não foi treinada para isso. Como nós reproduzimos o que ouvimos, procuramos aumentar o alcance dos nossos ouvidos para ter um vocabulário musical mais amplo.
Na época das colônias escravos eram tirados de sua terra para trabalhar em ambientes totalmente diferentes, deixando suas origens, seu povo, sua cultura para trás. Esse distanciamento causava uma apatia tão grande que vários perdiam a vontade de viver. De modo parecido, mas não tão drástico e dramático, existe uma apatia musical. Quando nós músicos escolhemos essa arte como meio de vida, estamos sujeitos a tocar músicas que não nos agradam, pois precisamos viver e pagar as contas no final do mês. Situação bem condizente com o modelo capitalista no qual estamos inseridos, não!?!? Diante disso temos 2 opções: ou de algum modo se aprende a gostar do que vai tocar, independente de qual tipo de música for, e o faz com prazer; ou faz pelo dinheiro e não curte o som, executa de um modo medíocre, pois nosso estado espiritual e de humor está completamente ligado à qualidade da apresentação. Esse é um tipo de apatia musical que eu vejo com frequência nas noites. Ótimos músicos se apresentando de maneira no mínimo regular por não gostar do que está tocando.
Dentro de uma mesma sociedade existem vários elementos culturais, principalmente na atualidade, com esse intercambio constante de pessoas e costumes. Por isso nenhum indivíduo pode dominar todos eles. Musicalmente também ninguém consegue. Por isso cada vez mais existe uma especialização. Não conseguimos compor, arranjar, cantar, tocar, gravar, editar, mixar, distribuir, comercializar, vender shows, dirigir uma banda, administrar a carreira, etc., em todos os estilos musicais. Tudo isso listado na frase anterior são alguns dos elementos da música. Não existe uma pessoa com toda essa capacidade. Um bom profissional deve ter uma noção de como cada coisa funciona, assim como um indivíduo dentro da sociedade deve saber como se comportar em qualquer situação. Uma pessoa é capaz de dominar alguns elementos. Pode ser um ótimo compositor e cantor, mas para isso provavelmente não conseguirá ser um ótimo arranjador, pois cada coisa exige dedicação, especialização. Desse modo observamos várias pessoas/músicos com fluência em certas áreas e apenas um bom conhecimento em outras.
Dentro do nosso contexto social existe uma sistematização para classificar as responsabilidades das pessoas de acordo com a sua idade, e não de acordo com o seu entendimento e comportamento. Maioridade civil após os 18 anos é um bom exemplo disso. Na música não existe essa divisão por idade. Um prodígio da música erudita não pode se apresentar no recital porque ainda não tem 16 anos? Ou um grande cantor deve se aposentar e sair dos palcos com 65? Ninguém toca muito bem apenas por ter 10 anos de carreira. A música, como qualquer outra manifestação artística, não está condicionada a idade, e sim a inspiração, talento, dedicação, musicalidade de cada um. Por isso não cabe essa sistematização que nossa cultura nos impõe. Imagina se o individuo dentro da sua cultura fosse tratado não pela sua idade, mas sim pelo modo como se comporta? Como seria?
Nas diferentes culturas ao redor do mundo existem costumes tão distintos que ocasionalmente um visitante pode se comportar mal por desconhecê-los, por mais excêntrico que possa parecer. Quando em contato com outro grupo social a pessoa deve procurar conhecer seus costumes e ser coerente nos seus atos. Quando não há essa coerência o indivíduo torna-se inconveniente. Dizemos que ele é culturalmente cego dentro desse contexto. Em música ocorre também o "cego" musicalmente. Um solista que gosta muito de improvisar pode ser totalmente inconveniente quando toca com uma banda que tenha um vocal se ele solar em cima da voz. Nessa situação ele deve ser coerente e solar nos contracantos, ou quando há uma passagem sem a voz, para se harmonizar com o grupo todo. Um baterista de salsa não pode deslocar o tempo e "quebrar" o compasso tocando rock, pois não é característica do estilo. Deve se conhecer o contexto e ser coerente para não ser um "cego" musical.
As sociedades são impulsionadas pelas mudanças que ocorrem no decorrer dos anos. Nossa vida hoje é muito dinâmica, as coisas mudam rápidas e têm a necessidade de sempre se renovar. Não falo de coisas drásticas, mas os detalhes que com o tempo transformam significadamente nossos dias. O que hoje é certo daqui a uma semana pode não ser. A música, que dentro desse mundo em constante mudança, também se modifica e renova para saciar a necessidade das pessoas. Com propriedade posso falar do estilo sertanejo, no qual trabalho a 7 anos. Nesse período o estilo incorporou características da música pop rock, reggae, samba, se popularizou muito, mudou a temática das letras, os ritmos, os instrumentos, o modo de criar e de se consumir esse produto, etc. Agregou tanta coisa que hoje quase tudo parece ser sertanejo. Mas foi bem aceito porque existia um público que precisava desse dinamismo e um mercado que pedia coisas novas. Acompanhar hoje tudo que é criado e inovado é um exercício árduo, pois cada dia saem coisas novas. Esse dinamismo associado à necessidade de coisas novas moldam os rumos do modo como fazemos música.
Passamos assim por algumas ideias, alguns tópicos encontrados no livro, trazendo para o ambiente da música e todos os elementos que envolvem sua existência. São passagens e colocações que têm o objetivo de questionar nossos conceitos sobre música enquanto músicos. Perceber que não é só aprender as técnicas, os acordes, as harmonias, mas também como isso tudo pode se manifestar na sociedade, qual o impacto do que a gente está se propondo a fazer pode causar. Podemos pensar um pouco melhor agora sobre o que é música.

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