Resenha: STRATHERN, Marilyn. [1986]. Fora de Contexto: as ficções persuasivas da antropologia.

July 26, 2017 | Autor: Glauco Ferreira | Categoria: Social and Cultural Anthropology
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Resenhas DOI: http://dx.doi.org/10.5007/2175-8034.2014v16n1p227

STRATHERN, Marilyn. [1986]. Fora de Contexto: as ficções persuasivas da antropologia. São Paulo: Terceiro Nome, 2013. 160 p.

Glauco B. Ferreira1 Universidade Federal de Santa Catarina E-mail: [email protected]

O

s debates sobre antropologia reflexiva ao longo dos últimos 30 anos têm construído um fértil espaço para a inovação e para criação de novas formas de pensar sobre a teoria antropológica e sobre a maneira como antropólogos constroem suas etnografias. A conferência “Fora de contexto” de Marilyn Strathern, proferida em 1986, compondo a versão daquele ano da Frazer Lecture2 na Universidade de Liverpool, parece ser um dos textos-chave na (re)construção dessa arqueologia contemporânea a respeito de alguns dos textos fundadores que contribuíram com o que veio ser nomeado, desde então, como um tipo de “reflexividade antropológica”. A conferência da autora, proferida num momento crucial da “virada pós-moderna” na antropologia ao longo da década de oitenta, fazia ecoar um série de discussões que “estavam no ar” como ela mesma observa, principalmente no contexto disciplinar estadunidense e também britânico. Não é coincidência que autora comente, ao longo do prefácio e de seu texto revisado para a publicação no Brasil3, que ela havia tido contato prévio com os manuscritos de antropólogos norte-americanos tais como George Marcus e Paul Rabinow, ficando assim, de certo modo, “inspirada” por muitas das questões elencadas por estes autores em seus textos, e que foram depois amadurecidas ao longo dos debates realizados em Seminário em Santa Fé, contexto através do qual surge a coletânea Writing Culture (1986), reunindo textos já clássicos, que marcaram certa transformação nas discussões sobre a reflexividade em antropologia. ILHA v. 16, n. 1, p. 227-233, jan./jul. 2014

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A conferência, enfocada em resgatar ao mesmo tempo comparar os métodos e abordagens teóricas e também, inevitavelmente, as diferenças entre Sir James Frazer e Bronislaw Malinowski, está carregada, nas entrelinhas, de outro debate, tal como se fosse uma contenda oculta, sobre as possibilidades de resgate mais atual de certas técnicas narrativas e de representações etnográficas empreendidas por Frazer. Retraçando algumas das contribuições de Frazer, a autora chega ao tipo de “ressalva velada” que se fazia ao antropólogo então e também origem de seu descrédito depois de instalado o “novo” paradigma antropológico malinowskiano, isto é, de que Frazer abordava ritos, crenças e mitos “fora de contexto”, sem considerar “seriamente” suas origens etnográficas e relacionando contextos sem uma ideia de totalidade holística. Utilizando-se dessa premissa para tomar o trabalho do autor em revisão, Strathern se propõem a fazer um tipo de resgate, perguntando-se se o tipo de empreendimento antropológico desenvolvido por Frazer não poderia ser comparado, em alguma medida, com as experimentações pós-modernas de escrita e representação antropológica de então, no fim dos anos oitenta. Notando que os tipos de livros escritos por Frazer e por Malinowski eram bastante distintos, construindo tipos de diferentes de escritos antropológicos, a autora se pergunta se de fato, em comparação com o trabalho narrativo persuasivo malinowskiano de representação (na qual fica marcada a impressão de que o antropólogo esteve lá, em campo, e registrou e representou o que viu e viveu com a autoridade que lhe outorga o campo), os trabalhos de Frazer não foram exatamente desmerecidos, depois da ascensão do paradigma dominante provindo do método comparativo de Malinowski, justamente por serem por demais “literários” e de certa forma, “destacados” das narrações mais afixadas à experiência vívida do campo etnográfico. Mas não seria justamente esta uma das principais características daquela então “nova” antropologia reflexiva pós-moderna da década de 1980, isto é, a de ser, tal como queriam seus autores, algo que se colava no texto e que tinha suas características literárias destacadas de forma consciente, assumindo-se como representação textual, composta das perspectivas antropológicas e nativas permutadas através de diferentes contextos? ILHA v. 16, n. 1, p. 227-233, jan./jul. 2014

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Em realidade, ambos os antropólogos, seja Malinowski ou Frazer, construíam narrativas que estavam inaugurando formas de narrar e representar e que eram também, para autora, forma de estabelecer determinados tipos de públicos leitores. Esses mesmos públicos poderiam aceitar tais narrativas um tanto por seu tom determinante (no caso de Frazer) ou então persuasivo (no caso de Malinowski) justamente por que ambos os antropólogos conseguiam construir narrativas evocativas e que tinham um “senso de localidade”, ao mesmo tempo em que se revestiam de legitimidade científica, mesmo que, nenhum deles abdicasse, na construção do texto, dos aspectos ficcionais de seus livros, isto é, eles não podiam evitar certo grau de ficção mesmo que estivessem construindo narrativas científicas sobre outras pessoas e culturas. O que mudou, da passagem de um paradigma frazeriano para um mais malinowskiano na antropologia (uma revolução epistemológica na disciplina no começo do século XX, segundo Strathern) foi justamente a maneira de colocar as coisas em contexto no texto etnográfico. Malinowski, diferentemente de Frazer, conseguiu instituir um tipo de herança e modelo para seus seguidores e estudantes, no qual o trabalho de campo passou a ser o diferencial para construção de uma narrativa realmente persuasiva, organizando de maneira holística diversos fragmentos, que à princípio estariam fora de contexto na experiência englobante do campo etnográfico realizado pelo antropólogo. A tradição de descrição etnográfica de Malinowski (hegemônica entre antropólogos depois de “superado” o tipo de trabalho realizado por Frazer) buscava situar cada coisa em seu contexto social, encaixando cada elemento, e fazendo com que ganhassem sentido somente na descrição monográfica e, em última instância, na experiência significativa do leitor informado ao ler a obra, tornando fatos, crenças e práticas sociais consideradas “estranhas” ou “exóticas” em entidades palatáveis e convincentes, isto é, cheias de sentido, mesmo que de entrada estes sentidos não fossem explícitos para quem se dispusesse a ler. Nesse caso, cada coisa estaria colocada em contexto, fazendo sentido para o leitor e para o antropólogo, que mantêm distância tanto do público leitor como do contexto e etnográfico estudado. E segundo Strathern, dessa maneira, com um novo tipo de paradigma consolidado, anacronicamente, foi possível desconsiderar ILHA v. 16, n. 1, p. 227-233, jan./jul. 2014

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(pelo menos no contexto disciplinar a partir do qual ela escreve) os trabalhos pioneiros de Frazer, tratando de classificá-los tardiamente como peças um tanto confusas e até mesmo “encaixadas” narrativamente de forma ruim, exatamente por que ali as coisas estão “fora de contexto”, quase transformando em familiares algumas práticas que pareceriam exóticas (não “ocidentais”) para o seu público leitor e ao mesmo tempo, inversamente, transformando práticas comuns (ocidentais) em algo talvez extraordinário. Mas, para a autora, o que seria possível naquele momento, no momento pós-moderno sobre o qual ela escrevia nesta sua conferência de 1986 e inspirada por Frazer, era permitir e voltar a poder jogar com os contextos, algo que Frazer freqüentemente realizava em seus livros. Com esta análise a autora não sugere que Frazer fosse de algum modo “pós-moderno” de forma anacrônica, mas sim que talvez ele tenha construído em seus textos muito mais do que se propunha ou pensava então, ao lidar com o exotismo de práticas culturais de maneira próxima, lidando com diferentes vozes e contextos, embaralhando informações e saltando de um contexto ao outro, sem o compromisso de construir representações holísticas, tentando exprimir idéias alheias de culturas, textos e vozes heterogêneas. Mas esse “embaralhamento” não se trataria de uma “bagunça”, mas sim de diferentes fragmentos justapostos, carregados, segundo Strathern de certa de ironia, nos exercícios contemporâneos. Ao juntar fragmentos desconexos, construindo o que talvez seja, para a autora, um estilo pós-moderno de escrita etnográfica, que se preocupasse com a representação de representações, com poderes de persuasão colocados em evidência, poder-se-ia propiciar uma mudança no jogo das representações antropológicas sobre “os outros”, trazendo para o centro do debate a autoconsciência e ressaltando a reflexividade inerente à construção dos textos pelos antropólogos. O problema de pensar sobre representações de representações já era para Strathern algo construído desde o começo dos debates pelas pesquisas feministas, no qual discursos aparentemente plurais e heterogêneos já faziam muito vinha se construindo. O problema modernista colocado de “como representar os outros” já estava apresentado como ILHA v. 16, n. 1, p. 227-233, jan./jul. 2014

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tropo às reflexões feministas, que ao lidar com diferentes contextos e comunidades, adicionando a isso as diferentes posicionalidade existentes a partir de deferentes campos disciplinares dos pesquisadores, possibilitaria justamente realizar um saudável jogo consciente com os estes mesmo contextos ao longo da escrita. Fazendo relação explícita entre o contexto dos estudos acadêmicos sobre as questões de gênero e os movimentos sociais feministas na “vida real”, por assim dizer, estes embaralhamento de contextos já se prestava de uma maneira corriqueira, momento no qual se pode perceber-se enquanto grupo de interesse, isto é, como feministas, com diferentes enfoques, mas com propósitos epistemológicos talvez um pouco semelhantes. No caso dos antropólogos, escreve a autora, nem sempre este tipo de autoconsciência se desenvolve e se apresenta de maneira fácil, surgindo talvez como um problema relativamente “novo”. Jogar com os contextos de legitimação internos à antropologia parece ser problema no campo antropológico e talvez a distinção entre “nós e os outros”, descritos nos textos etnográficos, possa ser a origem desta dificuldade. Mas, nota Strathern, a ideia de que possa existir uma aldeia global, como uma possível ficção antropológica interessante, onde todos são infinitamente diferentes, mas inevitavelmente um tanto quanto iguais, em polifonia multivocalidade contínuas, parecem ser ideias que ecoam um pouco do exercício antropológicos composto por Frazer em seus livros, colocando coisas, práticas e pessoas fora de contexto, embaralhando todos esses itens e criando um mundo onde todos os contextos parecem ser iguais. Mas de qualquer forma, para haver comunicação é necessário que mesmo lidando com contextos embaralhados, os antropólogos continuem recorrendo aos contextos a partir dos quais escrevem. Strathern nota ainda que mesmo com o novo tom e o debate sobre a autoconsciência antropológica, não se poderia deixar de notar que inevitavelmente a relação entre antropólogos, escrita e público leitor se modificaram no fim do século XX, justamente por que as pessoas sobre as quais os antropólogos classicamente escreviam se tornaram também parte deste mesmo público e eles mesmo, em alguns casos, são hoje antropólogos e “nativos”. Assim, de qualquer forma, a pergunta que se coloca ainda hoje e naquele momento em que Strathern ILHA v. 16, n. 1, p. 227-233, jan./jul. 2014

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escrevia era perguntar-nos para quem os antropólogos escrevem e como poderíamos pensar na recepção destes textos numa conjuntura pluralizada e multicontextual. Poderia perguntar também de que maneira se constroem as ficções persuasivas antropológicas de hoje, questionando igualmente as estratégias literárias de ficcionalização destes textos, em diferentes épocas, seja contemporaneamente ou nas épocas em que escreveram Malinowski e Frazer. O jogo de contextos parece ser assim algo interessante nas propostas de Strathern, justamente por que se presta a ser uma das primeiras tentativas da autora em construir uma elaboração, depois mais aprofundada em seu livro Partial Connections (1991), em construir um tipo de narrativa antropológica persuasiva e que lide com o contexto etnográfico, sem ter que necessariamente criar um todo plenamente holístico e “encaixado” em todas as suas partes através do texto. Assim colocar coisas fora de contexto parece se um excelente exercício na construção de textos etnográficos, justamente por permitir certa liberalidade a quem escreve, mitigando a necessidade de minimizar os conflitos internos de determinado campo em questão em nome da homogeneidade de determinado grupo ou região em estudo, colocando a autoconsciência e posicionalidade do autor em questão de forma bastante evidente, que torna-se assim também uma das questões a serem abordadas ao longo escrita, isto é, entrecruzada ou mesmo permeada ao longo das descrições etnográficas. Assim, a descrição busca de algum modo, ainda assim, refazer uma totalidade, pois neste empreendimento descrever é produto das “conexões parciais” estabelecidas entre partes que, por sua natureza fractal, não podem engendrar um encaixe perfeito; ainda assim, abrir mão da ideia de totalidade não significaria optar pela fragmentação, mas sim considerar a relevância de se refazer um todo, que se caracterizaria pela sua não coesão (Mizrahi, 2010, p. 15). É interessante notar como alguns trabalhos etnográficos realizados no Brasil – tal com o trabalho de tese de Mylene Mizrahi sobre a estética do funk carioca (2010) – as possibilidade alternativas de construção de narrativas já vem sendo exploradas, de modo a produzir o que Strathern caracteriza como um tipo de experimento textual um tanto quanto “quebradiço” (a autora se ILHA v. 16, n. 1, p. 227-233, jan./jul. 2014

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utiliza, em Partial Connections, da imagem de uma louça quebrada que é recomposta através de seus cacos – imagem esta tomada de empréstimo ao matemático James Gleick – algo que poderia ser talvez realizado de forma semelhante ao construirmos textos etnográficos), propondo enxergar a criação do texto como maneira de construir narrações um tanto quanto fora de contexto, que abram mão da ideia de totalidade holística, mas que ao mesmo tempo, considere a importância construir um todo, ainda que este todo seja de um tipo não coeso. Notas 1

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Doutorando em Antropologia Social no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGAS/UFSC). A Frazer Lecture faz parte do calendário acadêmico antropológico britânico e se desloca entre diferentes universidades, ocorrendo anualmente em diferentes campi e contando com conferências de diferentes antropólogos. A edição brasileira faz parte da coleção “Antropologia hoje” da editora Terceiro Nome, numa parceria com o Núcleo de Antropologia Urbana (NAU) da USP. A tradução para esta edição ficou a cargo de Tatiana Lotierzo e Luis Felipe Kojima Hirano.

Referências CLIFFORD, James; MARCUS, George E. (Ed.). Writing Culture: the poetics and politics of ethnography. Berkeley, CA: University of California Press, 1986. MIZRAHI, Mylene. A estética Funk carioca: criação e conectividade em Mr. Catra. Tese (Doutorado em Sociologia e Antropologia) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais. Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia, Rio de Janeiro, 2010. STRATHERN, Marilyn. Partial connections. Walnut Creek, CA: Altamira Press; Rowman & Littlefield Publishers, 2004 [1991]. Recebido em 21/11/2013 Aceito em 01/04/2014

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