Resenha - VIANNA, Hermano. O Mistério do Samba

June 7, 2017 | Autor: C. Marcusso Berna... | Categoria: Pensamento Social Brasileiro
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Universidade Estadual de Maringá Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais Disciplina: Pensamento Social Brasileiro VIANNA, Hermano. O Mistério do Samba. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed/ Ed. UFRJ, 1995. RESENHA Cássius M. T. M. B. de Brito Em pleno anos 1990, em que os processos de globalização (e tudo o que isso implica em termos econômicos, políticos e sócio-culturais) ganham relevância analítica no campo das ciências sociais, Hermano Vianna se dedica a estudar o samba como símbolo de unidade nacional, ou melhor, como instrumento com “eficácia simbólica” suficiente para plasmar a unidade nacional tão necessária ao projeto de país que se buscava nos anos de 1930. Extravagância de antropólogo? Absolutamente! Pelo contrário, a problemática apresentada por Vianna naquele contexto era atual à contrapelo, digamos. Vamos a ela. Tendo como objeto “um processo, o da nacionalização do samba, que teve como palco principal o Rio de Janeiro” (p. 13), o autor percorre o itinerário investigativo a partir de uma pergunta: como foi possível que o samba passasse de ritmo marginal, maldito e alvo de repressão a música nacional/oficial, símbolo de brasilidade? E, aqui, o termo “passagem” tem importância significativa, pois a ele se liga outro conceito fundamental na reflexão de Vianna: o de mediação. Para responder a esta pergunta, o autor recorre a uma “alegoria” (p. 20): uma noitada de violão, em 1926, que reuniu, de um lado, Gilberto Freyre, Heitor Villa-Lobos, Sergio Buarque de Hollanda, Prudente de Morais Neto, Luciano Gallet – representantes da intelectualidade e da arte erudita de “boas famílias” brasileira – e, de outro, Patrício Teixeira, Donga e Pixinguinha – músicos jovens, negros ou mestiços saídos das camadas mais pobres da sociedade carioca. Este encontro simbolizaria um fenômeno que posteriormente o samba amplificará para a nação como um todo: a mestiçagem, o intercâmbio de classes e culturas e sua possibilidade de convivência pacífica a despeito das diferenças e desigualdades como sendo a originalidade da experiência social brasileira. Neste enquadramento, entender o “mistério do samba” seria entender o processo de definição da identidade nacional brasileira e a autenticidade de “nossa civilização” (que poderia ser representada no microcosmo daquele encontro). O problema a ser resolvido seria: como é possível que em uma sociedade de classes a construção da identidade nacional fosse realizada a partir da incorporação de práticas culturais de grupos subalternos? Vianna mostra como a valorização do “popular” se dá na medida em que a relação entre a elite brasileira e a música popular por meio de duas coisas principais: indivíduos “que agem como mediadores culturais, e (...) espaços onde essas mediações são implementadas” (p. 41). Tomando como base as “teorias da complexidade”, Vianna procura mostrar como a existência de vários “mundos culturais” em uma sociedade complexa (como a brasileira) impõe a necessidade da existência de grupos mediadores, que acabam realizando uma importante função de elaboração de projetos de comunicação entre estes mundos. O objetivo do autor é relativizar o que ele considera uma narrativa mítica sobre a origem de uma tradição: aquela que descreve a gênese da música popular brasileira e o samba como uma história de resistência contra a repressão da elite. Para Vianna, o processo de consolidação do samba como símbolo de identidade nacional se calça em uma contradição social real: o discurso oficial que condena o popular como “pobreza cultural”, mas que aplaude essa mesma cultura na vida cotidiana. A inscrição do samba como elemento de identidade nacional deve ser entendida no interior da “unidade nacional” como projeto político, isto é, como uma invenção de um projeto unificador que só ganha amplitude após a Independência (1822). Se, durante o Império, a Coroa oferecia este polo galvanizador da unidade, a situação muda de figura com a abolição da escravidão colonial e com a formação da República.

As dinâmicas envolvidas nos processos de centralização e descentralização política, a crise da República Velha e os riscos de fragmentação a la América espanhola são elementos constituintes da preocupação pela unidade nacional da qual o samba aparece como emblema cultural. A contradição entre o regional e o nacional, na perspectiva de Vianna, foi solucionada pela composição de um todo homogeneizador, que, na verdade, é também uma tese: a da miscigenação não como característica negativa que marcou o pensamento brasileiro da virada dos oitocentos para os novecentos, mas, com Gilberto Freyre, como fator de “vantagem civilizacional”, uma “inversão valorativa do papel que o mestiço e a mestiçagem ocupam na cultura brasileira” (p. 75). Mas a tese é mais do que uma inversão. A mestiçagem aparece não apenas como “fato social” que recebe outra “valoração”, mas, pelo contrário, como tese teórica a enformar (dar forma a) um projeto político de unidade nacional. Assim, o Brasil mestiço passa a ser considerado o Brasil básico (p. 83), fundamento de nacionalidade. Vivenciado pelos mediadores culturais nativos, foi preciso, contudo, a interferência de um estrangeiro (Blaise Cendrars) para que estes tomassem consciência de um processo mais longo de familiaridade dos nativos com as “coisas brasileiras” que poderia servir àquele propósito (p. 100). Mas para que o samba pudesse ser convertido em símbolo de nacionalidade, era preciso que alguns pressupostos já existissem. Não bastava que o samba caísse no gosto da sociedade:    

Os anos 1930 encerram um ciclo de dominação política e abre um novo, no qual a definição da identidade nacional tem importância fundamental contra riscos de segmentação presentes no federalismo. Nisso, o Estado varguista tem um papel fundamental; No Rio Janeiro, a experiência cultural transitiva entre mundos diferentes realizada por mediadores culturais propiciava a existência de práticas que pudessem servir como elementos de unidade; A tese da mestiçagem e a formação do movimento modernista como busca da “autenticidade” do nosso povo nesta “raiz mestiça”; A existência de rádios e gravadoras no Rio de Janeiro que amplificariam a aliança política entre o samba e o interesse do Estado1 e das elites nacionais;

Para que todos estes elementos pudessem funcionar como engrenagens de uma espécie de unidade operacional foi necessária existência de um operador que combinasse a cultura popular em um espaço social intermediário que oferecesse a possibilidade de fusão entre elite e povo sem os “contrastes desagradáveis” que teriam efeito seja na favela ou num palacete de Botafogo. Neste sentido, os sambistas de classe média foram fundamentais para a constituição desta unidade operacional, que, a partir dos pressupostos elencados acima, puderam construir o samba como símbolo de unidade nacional. Neste processo, é importante destacar, o samba passa por modificações: não é mais samba do morro, mas um outro samba mais homogêneo, mais integrado à proposta “operacional”2. Assim, mescla-se dois sentidos do termo medio, que, para Vianna, são fundamentais para entender o modo como a “vitória do samba era também a vitória de um projeto de nacionalização e modernização da sociedade brasileira” (p. 127): o sentido de mediação dos agentes transculturais (tradução/comunicação de mundos culturais diferentes) e o sentido de camada social média, a quem é atribuída a função de operadora política daquela unidade. Interessante notar que, neste sentido, apesar de referenciar-se nas teorias da complexidade, este enquadramento teórico do autor retraduz com novos elementos e de uma perspectiva antropológica aquilo que é fartamente detectável na historiografia das revoluções burguesas europeias. A transição social do feudalismo ao capitalismo foi também obra de uma camada social intermediária (não é por acaso que burguesia é, em inglês, também descrita como middle class – oferecendo riscos à tradução de textos para o português), capaz de “inventar” uma “ideologia” “universalizante”, que criou uma nova unidade político1

“O aparelho governamental da ´Era Vargas´ esteve muito envolvido com o progresso da nacionalização do samba, desde o morro à Exposição Nacional” (p. 125). 2 Isso é relevante, pois é justamente este tipo de samba que passará a ser reconhecido como o “verdadeiro samba”.

social em contraponto a uma forma social em deterioração. O fato de ser uma matriz teórica que trata de um amplo processo histórico europeu não deve elidir a compreensão de que as revoluções burguesas foram processos eminentemente nacionais, de consolidação dos Estados Nacionais, também contra a fragmentação política, social e cultural característica do sistema feudal. A diferença entre as revoluções burguesas e o processo nacional da (façamos a concessão) Revolução de 1930 é talvez a sua natureza. Lá a revolução se dá por meio do conflito aberto, com a violência característica de guerras (mesmo a “gloriosa” inglesa), na qual a burguesia galvaniza como classe revolucionária uma visão de mundo unitária, coerente e universalizante, integrando o “terceiro estado” ao seu projeto e promovendo a derrubada de uma forma social e a construção de uma nova. Aqui, a “revolução” teria ocorrido pela mediação também de uma camada intermediária, que formularia também uma visão de mundo homogênea (unitária, coerente e universalizante), mas não por meio da guerra aberta entre formas sociais antagônicas, mas mediante a combinação, o pacto, para o qual é fundamental que o símbolo identitário guarde sempre algo de “indefinido”, de uma homogeneidade misturada, mestiça, em suma. Contudo, o que é comum a ambos os processos é o papel dos intelectuais na formação destes blocos nacional-populares. A intenção de Vianna é combinar à visão estrutural da divisão social das classes e seus conflitos, no qual o racismo constitui, entre nós, elemento fundante, uma outra perspectiva que tenta mostrar como “ao lado da repressão, outros laços uniram membros da elite brasileira e das classes populares, possibilitando uma definição da nossa nacionalidade (da qual o samba é apenas um dos aspectos) centrada em torno do conceito de ´miscigenação´” (p. 152). Vianna reconhece, como já dissemos, que a miscigenação não é apenas um “fato social” que recebeu uma valorização positiva, mas é ela mesma um constructo teórico e político. Está correto dizer que este constructo não contou com centros de comando conspirativos elaboradores de uma ideologia dominante num sentido maquiavélico que isso pode ter. Como ele mesmo diz: “os vários grupos usavam uns aos outros para atingir objetivos diversos: este podia estar interessando na construção da nacionalidade brasileira; aquele em sua sobrevivência profissional no mundo da música; aquele outro em fazer arte moderna. Em vários momentos era possível estabelecer pactos entre vários interesses. Pactos nunca eternos. Pactos sempre renegociáveis” (p. 154). Mas sempre pactos, acrescento, e esta seja, talvez, a questão. A pesquisa de Hermano Vianna é muito interessante para pensar como a construção da identidade nacional foi uma resultante de um projeto e não um dado de princípio e como uma prática aparentemente naturalizada como emblema da cultura nacional (o samba) precisou ser processada para funcionar como símbolo de unidade. Este “processamento” (histórico mais geral) se deu com uma característica que já vem sendo teorizada a bastante tempo no campo do pensamento social brasileiro e que já recebeu diversas denominações (“modernização conservadora”, “revolução passiva”, “contrarrevolução preventiva”, etc.). Escrito no contexto em que o impacto da globalização gerava questionamento sobre a pertinência do “nacional” como problema prático-concreto, Vianna afirma: “o próprio capitalismo passou a desautorizar os projetos nacionalistas que antes eram propostos em seu nome. Vivemos numa sociedade globalizada ao extremo, que cria um dilema inevitável para as ´economias periféricas´. (...) Existe ainda a possibilidade de um ´nós´ brasileiro?” (p. 157). De lá para cá, é novamente o capitalismo, em nova crise, que volta a autorizar o renascimento de projetos nacionalistas, alguns em suas versões xenofóbicas cada vez mais críticas, tanto nas “economias centrais”, como nas “economias periféricas”. O Brasil não foge desta tendência mundial e a pertinência da pergunta está novamente reposta, obviamente com condições novas e conjunturas mais dramáticas. Neste sentido, seu livro é importante, pois oferece além de perguntas ainda válidas, o questionamento da resposta que o mistério do samba traduz da história nacional: enveredaremos novamente para um novo pacto?

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