Resíduos românticos na poesia de Álvaro de Campos

October 8, 2017 | Autor: José Vieira | Categoria: Baudelaire, Stuart Hall, Modernismo, Álvaro de Campos, Romantismo Português
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RESÍDUOS ROMÂNTICOS NA POESIA DE ÁLVARO DE CAMPOS José Emanuel Coelho Vieira1 Introdução Álvaro de Campos, um dos mais importantes heterónimos de Fernando Pessoa, poeta e engenheiro naval, foi uma das personalidades mais ativas no processo de mudança estético-literária que se deu em Portugal no início do século XX. Poeta simbolistodecadentista, no seu primeiro momento, passando, numa segunda fase, por um sensacionismo e futurismo walt whimaniano deveras exacerbado, Campos surge, naquele que é o seu terceiro momento poético, com uma escrita e postura intimista, angustiada e pessoal. Na verdade, e como afirma Teresa Rita Lopes, “Campos é bem esse produto romântico” (LOPES, 1990, p. 28), onde desaguam, numa fase intimista, fechada e pessoal, características várias que podemos encontrar no movimento Romântico, fazendo parte, pois, da mentalidade e do imaginário dessa época. Quando falamos em Álvaro de Campos surge de imediato no nosso imaginário o poeta e engenheiro naval cantando triunfalmente a máquina, o movimento, o progresso – progresso aqui visto a nível da indústria e da tecnologia, não humano – e as sensações múltiplas e entrecruzadas. De imediato associamos Campos a uma estética modernista, onde o futurismo de Marinetti, com influências de Walt Whitman e do sensacionismo do mestre Caeiro pululam entre as odes “Marítima”, “Triunfal” e “Marcial”, assim como no poema “Saudação a Walt Whitman”. A apologia do movimento surge como uma regurgitação do poeta moderno que tem como missão cantar a guerra e o internacionalismo,

o constante “desejo de

universalidade” (REIS, 2006, p. 170) presente na vontade de rutura com os códigos e preceitos do passado, tendo sempre em mente uma estética aberta ao novo, ao diferente e ao original.

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Licenciado em Línguas Modernas pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (variante Português-Francês) e mestre em Literatura de Língua Portuguesa: Investigação e Ensino, pela mesma Faculdade. Atualmente é aluno de Doutoramento no mesmo curso, fazendo parte do projeto Figuras da Ficção, coordenado pelo Professor Doutor Carlos Reis, fazendo, ainda, parte da comissão de Redação desse mesmo projeto.

No entanto, após esse momento de exaltação sensacionista, Campos cai numa abulia e numa apatia de cariz intimista e romântico, fruto não só do cansaço da civilização e do mundo, mas também da ordem das coisas, internas e externas. É por ter sido precisamente um “dilacerado, peregrino através de todas as crenças, de todas as filosofias, de todas as culturas” (LOPES, op. cit., p. 16), que o engenheiro naval não consegue ter certezas no presente e na vida, recordando, como iremos ter oportunidade de analisar, os tempos da infância e da sua família reunida. Assim, através de bibliografia histórico-literária, assim como da crítica textual e dos conceitos de mentalidade e residualidade, evidenciaremos as marcas românticas em alguns poemas de Campos, como “No tempo em que festejavam o dia dos meus anos”; “Tabacaria” e, por fim, “Cruzou por mim, veio ter comigo, numa rua da Baixa”. Por forma a fundamentarmos a nossa proposta, iremos recorrer ao poema em dez cantos de Almeida Garrett, Camões, assim como a alguns poemas da obra Cálamo, de Walt Whitman, sem esquecermos, também, de alguns poemas de Charles Baudelaire, retirados das obras Les fleurs du mal e Le Spleen de Paris. Ao cabo desta exposição, iremos tecer algumas considerações finais em jeito de conclusão.

1.

Da residualidade ao imaginário: entre Romantismo e Modernismo

Diz Elizabeth Dias Martins num artigo intitulado “O Modernismo a um passo da Idade Média” que “a intersecção entre presente e passado, no que tange ao Modernismo, não se faz apenas com os paradigmas medievais” (MARTINS, 2004). De facto, podemos encontrar traços do Romantismo e da sua teorização estéticoliterária em vários poetas do alto Modernismo português e europeu. Álvaro de Campos é um desses exemplos flagrantes, em que destrinçamos aspetos vários da mentalidade romântica presente na sua obra poética de cariz intimista e pessoal. É-nos mister, assim, para podermos falar de mentalidade e residualidade, assim como de imaginário, referirmos alguns dos teóricos que enriqueceram e deram azo a esta pertinente teoria.2

2

Para um estudo mais aprofundado sobre a Teoria da Residualidade, vide PONTES, Roberto. O jogo de duplos na poesia de Sá-Carneiro. Fortaleza: Edições UFC, 2012, e MARTINS, Elizabeth Dias. Do fragmento: a lição da gnose almadiana. Fortaleza: Edições UFC, 2012.

Deparamo-nos, então, com Georges Duby que nos diz que “por trás de todas as diferenças e nuances individuais fica uma espécie de resíduo psicológico estável, composto de julgamentos, conceitos e crencas a que aderem, no fundo, todos os indivíduos de uma mesma sociedade” (DUBY, 1992a, p. 65). Ainda sobre o conceito de reíduo, Georges Duby relata que

partíamos com a certeza que no seio de uma mesma sociedade não exite apenas um «resíduo». (…) transpor o limiar onde esbarra o estudo das sociedades do passado quando se limita a considerar os factores materiais, a produção, as técnicas, a população, as trocas. Nós sentíamos a urgência de avançar para lá dele, até essas forças cuja sede não é nas coisas mas na ideia que delas se faz, e que na verdade comandam de forma imperativa a organização e o destino dos grupos humanos (DUBY, 1992b, pp. 80-81).

Confrontamo-nos, também, com Roberto Pontes, pois este afirma que “em todo o texto escrito artisticamente temos sempre uma polifonia de vozes” (PONTES, 2003, p. 85). Na verdade, continua Pontes,

a descodificação dos textos do passado nos permite compreender a mentalidade dos homens de uma época finda. Tal conhecimento é sumamente importante, pois que abertos os códigos, desvendados os símbolos dos nossos antecessores, ficamos diante do rio de experiências humanas cristalizadas em certos substratos mentais. Integrante de uma sociedade, o homem (…) expresa a mentalidade do seu tempo, que é, antes de qualquer outra coisa, o residual, isto é, composta por sedimentos de que não se tem consciência (Idem, p. 86).

Percebemos, então, que os artistas, apesar de expressarem a poética do seu tempo, com as suas condicionantes, características e formas de encarar o mundo, apresentam como que sedimentos mentais de outras épocas, momentos, muitas vezes não tendo consciência disso. Deste modo, podemos compreender algumas características não só do Romantismo, mas também do Modernismo, visto que estas são consequentes daquelas. Sabendo que o Modernismo rejeita o papel de aquisição de conhecimento através da Arte, “por conta do seu ceticismo” (SEIDEL, 2001, p. 68), de modo a manter a arte como veículo das verdades mais elevadas, percebemos facilmente que esta ideia é filha da estética Romântica, pois, como afirma Roberto Henrique Seidel, tanto a rejeição do papel cognitivo da arte quanto a esta ser vista como um veículo para outras verdades, são “requisições levantadas pelo Romantismo” (Idem, ibidem).

De facto, reconhecer as ligações que existem entre o Romantismo e o Modernismo implica, contudo, “reconhecer o caráter marcadamente romântico (…) do modernismo. (…) Na versão dominante, o modernismo é uma espécie de desmistificação do romantismo” (FILHO, 1998, p. 103). A fragmentação, característica primacial da estética modernista, encontra os seus alvores no período romântico, pois este “recolhe o processo de fragmentação na esteira daquele que ocorreu a partir dos românticos alemães, tanto do ponto de vista da interioridade quanto da construção estética parcelar” (PONTES, 2012, p. 47). Tal como o homem romântico, o homem modernista vive uma tensão interior tremenda, onde se opõem a individualidade e a sua sensibilidade com o ritmo, frenético, da vida exterior, desfasada e muitas vezes afastada dos ideias, antigos, de ordem e harmonia. Românticos e Modernistas traduzem, na sua vida, uma constante sucessão de oposições e contradições, não só pela “diferença em relação aos outros”, mas também através “da singularidade pessoal do seu ser e atividade” (JESSÉ e BERTHOLD, 1998, p. 116). É no meio desta tensão que o poeta tem de encontrar e extrair o sentido da sua existência. Não é por acaso que os próprios românticos já se consideram modernos, fazendo assim uma clara distinção entre o que seria um artista de pendor clássico daquele artista que valoriza a imaginação, o espírito criativo, a originalidade, o novo e o diferente. Nas palavras de Laura Bettencourt Pires, no que diz respeito à área da literatura,

Modernus opunha-se a antiquus e significava uma linha divisória entre uma cultura clássica e um presente, cuja tarefa era reinventar essa cultura” daí apercebermo-nos de que “Modernidade é um longo período de mudança histórica, alimentado por um desenvolvimento científico e tecnológico e dominado pela propagação extensiva por todo o mundo e no espírito dos homens da economia capitalista de mercado (PIRES, 2004, p. 63).

Assim, facilmente entendemos que o Modernismo surge, como outros movimentos, por exemplo, o Romantismo, com o intuito de mudança e alteração da arte canónica e do estabelecido de modo a instituir uma nova ordem, uma nova forma de manifestação artística, de estar no mundo e de o pensar. Não é de estranhar, então, “an abrupt break with all tradition”(BRADBURY e MACFARLANE, 1991, p. 20) e algo muito mais profundo e intenso do que o institucionalizado “épater le bourgeois”. Basta que nos lembremos da célebre “Questão Coimbrã”, para entendermos aquilo que a geração de

Antero de Quental, que será a Geração de 70, pretendia fazer com o papel da arte na sociedade e no mundo das Ideias.3 2. Da solidão ontológica de Camões e do dandismo Baudelairiano de “Les Fleurs du mal a “Cruzou por mim, veio ter comigo, numa rua da Baixa” e “Tabacaria”.

Quando falamos em Romantismo sói, sem dúvida, falar de uma das categorias da narrativa que mais alterações sofreu com o advento desta corrente estético-literária: a persoangem literária, ou seja, o herói e o anti-herói. De facto, o herói “associa-se à noção de destaque (social, moral, físico, etc), contrariando não raro esse destaque para tornar mais chocantes situações de sofrimento e crise irreversível por ele vividas” (REIS, 1997, p. 230). Apesar de, bastas vezes associarmos o herói a valores positivos e luminosos como a coragem, a ousadia, a força de vontade, a determinação, a honra, a honestidade, o sentido de responsabilidade, entre outros valores, deparamo-nos, também, com o conceito antagónico de anti-herói que emerge precisamente quando os textos valorizam ou privilegiam “um tipo de personagem degradada, conflituosa, frustrada ou anódina” (idem, ibidem). Sabendo nós que o tempo romântico se traduz por uma época de afirmação dos direitos fundamentais dos homens e da sociedade, o sujeito romântico não deixa de se encontrar pertante uma encruzilhada, rodeada de conflitos interiores profundos. Na verdade, continua Carlos Reis, “com a vivência de comportamentos de rebeldia que colocam o sujeito em situação de ruptura”, e não esqueçamos que os Modernistas irão seguir nesta mesma linha de desejo de rutura, como preteritamente expusemos, “a solidão que caracteriza o herói romântico não se traduz num estado de isolamento que há-de ser entendido em termos ontológicos, mais do que em termos físicos ou sociais” (REIS, op. cit., p. 231).

3

“Mas é que a escola de Coimbra cometeu efectivamente alguma coisa pior que de que um crime – cometeu uma grande falta: quis inovar. Ora, para as literaturas oficiais, para as reputações estabelecidas, mais criminoso do que manchar a verdade com a baba dos sofismas, do que envenenar com o erro as fontes do espírito público, do que pensar mal, do que escrever pessimamente, pior do que isto é essa falta de querer caminhar por si, de dizer e não repetir, de inventar e não copiar” QUENTAL, Antero de. “Bom Senso e Bom Gosto”, in: QUENTAL, Antero de. Antero de Quental. Introdução e selecção de textos de Ana Maria Boog Rodrigues. Lisboa: Editorial Verbo.1990, p. 49.

Abordando agora o Modernismo enquanto movimento estético-literário, é-nos fácil encontrar não só resíduos mentais da estética romântica, mas também o seu aprofundamento.4 O sujeito modernista vive também isolado no meio da multidão, perdido ontológica e epistemologicamente, fragmentado, muitas vezes várias, muitas vezes sozinho no meio de uma grande cidade. Lembremo-nos, por exemplo, de Bernardo Soares, de Leopold Bloom, do próprio Pessoa e, sem dúvida, de Álvaro de Campos. O sujeito romântico e modernista já não é o mesmo sujeito harmonioso e uno preconizado pelo Iluminismo, pois

o sujeito do Iluminismo estava baseado numa concepção da pessoa humana como um indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades de razão, de consciência e de ação, cujo “centro” consistia num núcleo interior, que emergia pela primeira vez quando o sujeito nascia e com ele se desenvolvia, ainda que permanecendo essencialmente o mesmo – contínuo ou “idêntico” a ele – ao longo da existência do indivíduo (…). O sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável, está se tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias e nãoresolvidas. (…) A identidade torna-se uma “celebração móvel”: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam. (…) O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um “eu” coerente (HALL, 1997, pp. 11-13).

Atentemos agora em alguns exemplos, presente em Camões, de Almeida Garrett. Camões, logo no início do poema, reflete fundamentais características desta solidão ontológica: “Um no meio de alegrias tantas/Quase insensível jaz: calado e quedo,/Encostado à amurada, os olhos fitos/ Tem nesse ponto que negreja ao longe/Lá pela proa, e cresce a pouco e pouco” (GARRETT, 1984, p. 21). Esta solidão ontológica encontrá-la-emos, também em Álvaro de Campos, por exemplo, nos poemas “Cruzou por mim, veio ter comigo, numa rua da Baixa” e no poema “Tabacaria”. Todavia, antes de abordarmos a questão da solidão ontológica em Campos, é mister abordarmos uma outra questão presente no Romantismo e instituída por um grande nome da Literatura Francesa: Charles Baudelaire. Baudelaire, nas suas obras Les Fleurs du Mal, de 1857, e Le Spleen de Paris de 1869, já postumamente publicada, portanto, levanta outras características que são 4

Neste ensaio não iremos abordar a estética Simbolista, mas cabe-nos afirmar que esta também levou a um aprofundamento de várias características iniciadas pela estética romântica.

apanágio deste sujeito romântico que vive o tão afamado mal du siècle, mas também outras como a questão do dandy e do flâneur, isto é, daquele que passeia pelas ruas das grandes cidades observando. Ora, no poema “Correspondances”, da obra Les Fleurs du Mal, Baudelaire fala do poeta como um vagabundo das sensações, que vagueia pelos corpos e pelas pessoas: “Le Poète aujourd’hui, quando il veut concevoir/ Ces natives grandeurs, aux lieux où se font voir/ La nudité de l’homme et celle de la femme,/Sent un froid sentiment envelopper son âme” (BAUDELAIRE, 2012, p. 63). Já no poema “L’étranger”, dos poemas em prosa de Le Spleen de Paris, o sujeito poético surge num diálogo em que nos revela o homem que será um homem sem qualidades, um homem à parte da sociedade e da ordem estabelecida, um estrangeiro no próprio país, alguém que vive à margem das coisas:

«Qui aimes-tu le mieux, homme énigmatique, dis? Ton père, ta mère, ta soeur ou ton frère? - Je n«ai ni père, ni mère, ni soeur, ni frère. - Tes amis? - Vous ne servez là d’une parole dont le sens m’est reste jusqu’à ce jour inconnu. - Ta patrie? - J’ignore sous quele latitude elle est située. - La beauté? - Je l’aimerais volontiers, déesse et immortelle. - L’or? - J ele hais comme vous haïssez Dieu. - Eh! Qu’aimes-tu donc, extraordinaire étranger? - J’aime les nuages… les nuages qui passent… là-bas… là-bas… les merveilleux nuages!» (BAUDELAIRE, 2013, p. 75).

Se visitarmos o poema “Cruzou por mim, veio ter comigo, numa rua da Baixa”, iremos encontrar não só resíduos daquela solidão ontológica romântica, propagada ainda pelo Modernismo, mas também sedimentos mentais da imagem do flâneur e do dandy, assim como da própria ironia romântica. Vejamos alguns passos do poema: “Cruzou por mim, veio ter comigo, numa rua da Baixa/ Aquele homem mal vestido, pedinte por profissão que se lhe vai na cara,/que simpatiza comigo e eu simpatizo com ele” (PESSOA, 1992, p. 201, sublinhados nossos). Mais à frente, continua o sujeito poético: “Sim, eu sou também vadio e pedinte,/ E sou-o também por minha culpa./ Ser vadio e pedinte não é ser vadio e pedinte:/ É estar ao lado da escala social,/É não ser adaptável às normas da vida,/ Às normas reais ou sentimentais da vida” (Idem, ibidem, sublinhados nossos). Ainda no mesmo poema: “Sim ser vadio e pedinte, como eu sou, (…)/É ser isolado na

alma, e isso é que é ser vadio,/ É ter que pedir aos dias que passem, e nos deixem, e isso é que é ser pedinte” (Idem, p. 202). Encontramos, assim, facilmente, não só a solidão ontológica, mas também a questão do sujeito que vagabundeia pela sociedade e pela vida, sempre na berma, no lado de fora das convenções e do socialmente aceite. No que diz respeito à ironia romântica esta surge de forma flagrante ao longo do poema. Logo nos primeiros versos, o sujeito poético afirma: “Não sou parvo nem romancista russo, aplicado,/E romantismo, sim, mas devagar…” (Idem, p. 201). Mais à frente, o sujeito poético eleva essa ironia a um limite extremo e completamente pessoalizado:

Coitado do Álvaro de Campos! Tão isolado na vida! Tão deprimido nas sensações! Coitado dele, enfiado na poltrona da sua melancolia! Coitado dele, que com lágrimas (autênticas) nos olhos, Deu hoje, num gesto largo, liberal e moscovita, Tudo quanto tinha, na algibeira em que tinha pouco (…) Coitado do Álvaro de Campos, com quem ninguém se importa! Coitado dele que tem tanta pena de si mesmo! (Idem, p. 202).

De facto, a ironia romântica “torna-se (…) o princípio instituidor do conceito de moderno” (FERRAZ, 1997, p. 248). A ironia romântica é, pois, a “auto-ironia de um autor implicado no texto” (Idem, ibidem), daí ser evidente que esta surge como um princípio dialético que anda na procura absoluta do eu. Esta procura do eu, ficará, pois, “como experiência literária com desenvolvimento subsequente, o exercício da dispersão da subjectividade que caracterizará não só alguma literatura do fim de século, como muita da literatura do chamado Modernismo” (Idem, p. 249). Voltando, ainda, ao poema Camões, percebemos que o “isolamento vivido pelo herói confirma-se por feições e por características psicológicas que o distinguem daqueles que o rodeiam” (REIS, op. cit., p. 231), para tal, basta tomarmos o seguinte passo textual como exemplo: “o gesto senhoril, mas anuviado/De sombras melancólicas” (GARRETT, op. cit., p. 21). Podemos, ainda, encontrar vestígios dessa solidão ontológica no poema “Tabacaria”, quando lemos passagens como a seguinte: “Janelas do meu quarto,/Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é (…)/Dais para o mistério do mundo de uma rua cruzada constantemente por gente” (PESSOA, op. cit., p. 135).

É possível, ainda, numa passo mais à frente do mesmo poema encontrarmos mais sedimentos mentais desta solidão ontológica: “Fui até ao campo com grandes propósitos,/Mas lá encontrei só ervas e árvores,/E quando havia gente era igual à outra” (Idem, p. 136). Deparamo-nos com o sujeito poético que, apesar de isolado, mesmo que vivendo numa das movimentadas ruas da capital portuguesa, é capaz de mostrar uma audácia íntima, ainda que esta fique pelo domínio da vontade. Tal pode ser visto como um resíduo romântico, resíduo que podemos associar à poesia de Walt Whitman e a um dos seus poemas da obra Cálamo: Exigo o mais íntimo e abundante companheirismo entre os homens/ (…) Esses de indomável audácia, (…) Esses que olham de frente, imperturbáveis, o rosto dos presidentes E governadores como se dissessem Quem és tu? Esses de natural paixão, simples, nunca constrangidos, insubmissos (WHITMAN, 1984, p. 17).

Na verdade, tanto românticos como modernos “revoltam-se contra o sistema posto, dia a dia mais orientado para a ideia de progresso industrial e envolvido com os interesses do lucro, do aperfeiçoamento das máquinas e da robotização dos homens” (VECHI, 1994, p. 44). Ficou, evidente, portanto, a presença de sedimentos mentais românticos, nomeadamente a solidão ontológica, a ironia romântica, o dandismo e a questão do flâneur, na poesia de cariz intimista de Álvaro de Campos. Todo este imaginário existe na poesia do engenheiro naval, mesmo que este não tenha inteira consciência desses substratos, tendo em conta que os sedimentos mentais de uma certa época se inserem numa outra não só por meio das tradições literárias, mas também dos costumes e do imaginário coletivo.

3. Da nostalgia romântica à infância perdida de “No tempo em que festejavam o dia dos meus anos” Disse Roberto Henrique Seidel que o “Modernismo como arte de protesto é de certa forma, um romantismo à outrance” (SEIDEL, op.cit., p. 67). De facto, o Romantismo, apesar de negar a cultura moderna, não foi tão intenso e engagé como o Modernismo,

visto que este declarou “guerra à modernidade no sentido de que não quer submeter mais a sua vontade criativa humilde tarefa de retratar o mundo” (Idem, ibidem). Deste modo, o sujeito romântico, assim como o sujeito modernista vivem num constante desejo de evasão, tanto para a interioridade, como para um passado longínquo e antigo. Este desejo é consequência de uma vivência infeliz e angustiada, dando assim, azo, ao mal du siècle, tão bem retratado na poesia romântica de Chateaubriand e Lamartine, passando, ainda pela inolvidável poesia de Baudelaire, vindo até à pena dos Modernistas, como é o caso de Álvaro de Campos. Assim, ao lermos o poema “L’ennemi” das Fleurs du Mal, facilmente identificamos não só a questão do mal du siècle, mas também essa nostalgia de um tempo outro, que parece estar para sempre perdido: Ma jeunesse ne fut qu’un ténébreux orage, Traversé çà et là par de brillants soleils; Le tonnerre et la pluie on fait un tel ravage, Qu’il reste en mon jardin bien peu de fruits vermeils. (…) - O douleur! Ô douleur! Le Temps mange la vie, Et l’obscur Ennemi que nous ronge le coeur Du sang que nous perdons croît et se fortifie! (BAUDELAIRE, op. cit., p. 67).

Se lermos, agora, o poema “No tempo em que festejavam o dia dos meus anos”, de Álvaro de Campos, encontramos vestígios desse imaginário encetado pelos românticos:

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos, Eu era feliz e ninguém estava morto. (…) E a alegria de todos, e a minha, estava certa como uma religião qualquer. (…) No tempo em que festejavam o dia dos meus anos, (…) De ser inteligente entre a família, E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim. Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças. (…) O que fui, ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui… A que distância!... (Nem o eco…) O tempo em que festejavam o dia dos meus anos! O que eu hoje sou é como a humidade no corredor do fim da casa (…) O que sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas), O que sou hoje é terem vendido a casa, É terem morrido todos, É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio… No tempo em que festejavam o dia dos meus anos…

Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo! Desejo físico de alma de se encontrar ali outra vez (…) As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa, No tempo em que festejavam o dia dos meus anos… (PESSOA, op. cit., pp. 154155, sublinhados nossos).

São, portanto, vários os momentos em que nos deparamos com sedimentos mentais que nos fazem remeter a um passado romântico. Percebemos, pois, que as “images enfantines et leur durée sous le monde de la conscience adulte” (BEGUIN, 1937, p. 40), são, passados tantos anos, para os poetas e artistas, motivo de horas solitárias passadas a invocar esses tempos outros, ainda que, muita das vezes, por meio de um mundo onírico.

Conclusão

Que conclusões há a retirar desta nossa investigação? Após a análise de alguns poemas de cariz romântico e modernista, apercebemo-nos que existem aproximações bastante evidentes entre estes dois grandes movimentos estético-literários que marcaram, sem dúvida, o modo de pensar do homem do século XIX e do século XX, sendo que ainda hoje, no nosso século post-moderno, é possível encontramos alguns, senão bastantes, dos seus sedimentos mentais. De facto, muito do que constituiu o imaginário romântico foi passando, ao longo dos tempos, através do subconsciente dos artistas e dos códigos, até ao tempo do Modernismo, havendo, assim, um reaproveitamento, não só de algumas temáticas queridas pelos românticos, mas também muito do seu imaginário. Percebemos, portanto, que Álvaro de Campos, heterónimo de Fernando Pessoa, é ainda herdeiro e fruto e produto da alma romântica que inundou, sem dúvida, os tempos do Modernismo. É o próprio Bernardo Soares, súmula da personagem modernista, que no seu Livro, no trecho 107, afirma a herança romântica da sua geração, fazendo ainda parte dela:

Tenho todas as qualidades, pelas quais são admirados os poetas românticos, mesmo aquela falta dessas qualidades, pela qual se é realmente poeta romântico. (…) Não uma ideia de mim próprio; nem aquela que consiste em uma falta de ideia de mim próprio. Sou um nómada da consciência de mim. Tresmalharam-se à primeira guarda os rebanhos da minha riqueza íntima (PESSOA, 2012, trecho 107).

Assim, é possível conceber Álvaro de Campos como o ponto de chegada de uma corrente amadurecida e perspetivada pelos modernistas, e de tal forma perspetivada e refletida que os próprios artistas conhecem a sua falência. Daí encontrarmos um Campos afirmando perentoriamente:

O mundo é para quem nasce para o conquistar E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.(…) Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda, Ainda que não more nela; Serei sempre o que não nasceu para isso; Serei sempre só o que tinha qualidades (PESSOA, op. cit.,p. 136).

Em suma, encontramos na poesia de Álvaro de Campos vários resíduos da estética romântica, o que vai, de certa forma, ao encontro de alguém que, apesar de parecer experimentar todos os movimentos e situações, consegue, ainda que de forma invertida, “sentir tudo de todas as maneiras”. Foram as palavras, vieram as ideias.

Bibliografia

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