Resíduos Trovadorescos e Petrarquistas nas Rimas de Luís de Camões

October 8, 2017 | Autor: José Vieira | Categoria: Camões, Literatura Medieval, Petrarca
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RESÍDUOS TROVADORESCOS E PETRARQUISTAS NAS RIMAS DE LUÍS DE CAMÕES José Emanuel Coelho Vieira Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra

Introdução

Luís Vaz de Camões, o princípe dos poetas portugueses, é, sem dúvida, uma figura proeminente e central no âmbito da Literatura Portuguesa. Com efeito, neste trabalho, iremos abordar alguns textos da lírica camoniana presentes na obra Rimas, prefaciada pelo ilustre camonista Álvaro Júlio da Costa Pimpão. Iremos analisar as seguintes composições: a Glosa 31, as Cantigas 7, 8, 12, assim como as Cantigas 52 e 53. Deste modo, podemos, desde já, averiguar que os textos seleccionados estão escritos naquilo a que chamamos de “medida velha”. Na verdade, é interessante realçar que, em Camões, estamos perante um poeta que, em termos de códigos literários, misturou “o presente, o passado e o futuro” (CASTRO, 2007, p. 86), algo que conseguiu fazer graças ao seu “eclectismo estético e ao seu singular poder de criar recriando” (Idem, ibidem). Quando falamos nas composições de medida velha em Camões, parece haver como que um movimento de desprezo e indiferença perante esta poesia, pois já nas “Rythmas de 1595, as composições em medida velha figuram (...) no final do volume” (ALMEIDA, 1996, p. 29), numa obra que está dividida em cinco partes. Deste modo,

A quinta e última parte se deu às grosas e voltas e outras composições de verso pequeno, que são próprias da nossa Espanha, em que Gregório Silvestre se aventajou notavelmente entre todos os espanhóis, e tevera o primeiro lugar se Luís de Camões lho não ganhara, assi na agudeza dos conceitos e propriedade das palavras, como na habilidade de meter regras impossíveis, que mostrou muito mais nas outras rimas (idem, ibidem).

Todavia, nota-se, desde logo, uma falta de reconhecimento pela poesia de medida velha em relação aos sonetos que, na centúria de Quinhentos, passaram a ser, em Portugal, tidos como um género maior, o que também dificultou o prestígio das composições em medida velha, visto que lhes faltavam “grandes exemplos, de que disfrutavam canções, odes, elegias e églogas” (ALMEIDA, op.cit, p. 30). É certo que, “mercê da renovação

literária desencadeada a partir da segunda década de Quinhentos, a arte «menor» passou a ser também a medida velha, sofreu inevitavelmente o confronto desfavorável com a «nova», pelo menos sempre que explicitamente se tentou distinguir a cotação de uma e de outra” (ALMEIDA, op.cit, p. 31). De facto, por meio de bibliografia especializada e através da análise dos textos propostos, faremos um levantamento de traços característicos da mentalidade e imaginário medievais, assim como da influência italiana, nomeadamente do Petrarquismo, no que diz respeito à imagem da mulher. Quando falamos em influências medievais em Camões, estamos perante uma área que gera uma certa controvérsia, visto que existem opiniões divergentes acerca da forma como Camões tomou conhecimentos dos códigos literários medievais, mais propriamente da poesia trovadoresca. Enquanto, por um lado, Hernani Cidade, “não ousando sustentar que Camões conhecesse directamente a poesia dos trovadores”, sugere “que a podia ter conhecido no folclore vivo, como fazia Gil Vicente” (CASTRO, op.cit, p. 88), por outro lado, Roger Bismut, “vai ao ponto de afirmar (...) que «la plupart de ses autres compositions sont des cantares de amor» (idem, ibidem), mostrando como Camões conhecia muito bem e somente as cantigas de amor. Todavia, Hernani Cidade, ao comparar Camões a Gil Vicente, no que diz respeito à forma como tomaram conhecimento da Literatura Medieval, nota “a ausência de paralelismo, traço arcaizante (...) característico das relíquias recolhidas nos autos vicentinos, quase sempre com função específica de marcar personagens de ingénua rusticidade” (idem, ibidem). Porém, podemos falar de uma tradição “contínua e tenaz” (CASTRO, op.cit., p. 89) que fez com que temas e tópicos oriundos da poesia trovadoresca persistissem em várias épocas, perdurando, assim, através do tempo e dos códigos literários. Deste modo, e como iremos ter oportunidade de analisar mais adiante, encontramos em Camões “heranças temáticas que (...) se integram na linha que o lirismo português vinha desenvolvendo desde a época trovadoresca” (CASTRO, op.cit., p. 91). Assim, não podemos afirmar que Luís Vaz de Camões conhecera “aqueles primeiros cantores de tão celebrado traço da beleza feminina; nem sequer nos motes que a tal propósito glosou, pode rastrear-se marca comprovativa desse conhecimento” (idem, ibidem). Podemos sim, afirmar, que o poeta de “Sôbolos rios que vão” teve conhecimento dos códigos literários medievais de uma forma indireta: por um lado, por meio da oralidade; por outro lado, através do Cancioneiro Geral de Garcia de Resende; e por um 2

outro lado, ainda, devido ao “riquíssimo património poético, nem sempre fixado em texto escrito (...) que fazia parte intrínseca da formação literária dos poetas da época” (CASTRO, op.cit, p. 99), assim como a utilização de motos alheios, que eram do conhecimento de todos os poetas. Ao cabo desta empresa, iremos expor uma reflexão em que demonstraremos que o Poeta Primeiro, neste caso, para a Literatura Portuguesa, Camões, sofreu várias influências, muitas delas vindas de vários ou de um só “poema precursor” (BLOOM, 1991, p. 55).

1.

Glosa 31 – Poesia Trovadoresca e resíduos do código de cavalaria

Quando lemos o artigo do professor Roberto Pontes, “Mentalidade e Residualidade na lírica Camoniana”, deparamo-nos com algumas marcas de residualidade presentes em Camões, tais como o registo Trovadoresco, o Palaciano, o Engenhoso, o Clássico e o Simples. De fato, neste nosso quefazer, iremos tratar e abordar algumas destas marcas, nomeadamente as que dizem respeito aos resíduos da Poesia trovadoresca, assim como aquelas que podem estar, direta ou indiretamente, relacionadas com o código de cavalaria, como mais à frente iremos analisar. É certo que “o poeta expressa a mentalidade do seu tempo, que é (...) composta de sedimentos mentais de que não se tem consciência” (PONTES, 2003, p. 86). No entanto,

Camões expressa, também nesta cantiga, influências medievais, tendo em conta que “as palavras servem de pretexto para o devaneio mais ou menos orientado do pensamento” (SARAIVA, 1980, p. 31). No texto supramencionado, podemos encontrar a influência da poesia trovadoresca, mais especificamente da Cantiga de Amor, género oriundo da Provença que se estendeu até à Península Ibérica entre os finais do século XII e inícios do século XIV. De facto, os temas presentes neste poema vão ao encontro daquilo a que Massaud Moisés e Giuseppe Tavani definem como “Coyta de Amor” (MOISÉS, 1988, p. 21): o sofrimento “Despois de sempre sofrer”; a tristeza “meus serviços com tristezas”; a angústia e condenação “de galardão tão tristes, / triste vida me ordena” e o serviço “que servir-vos”. Na verdade, encontramos também registos do código cavaleiresco, pois servir às donzelas é um dos deveres e preceitos do código de cavalaria, não esqueçamos Boors que salva uma donzela em vez de seu irmão, Leonel, quando estes são atacados por 3

vilões.1 Temos de ter em conta que, com a “Coyta de Amor” estamos perante uma vassalagem amorosa, que é reflexo da vassalagem social, o que pode ser associada a um comportamento do cavaleiro medieval. Assim, para além do trovador que empreende a confissão, dolorosa e quase elegíaca, de sua angustiante experiência passional frente a uma dama inacessível aos seus apelos (...) apelos (...) num plano de espiritualidade, de idealidade ou contemplação platônica (...) o impulso erótico na raiz das súplicas transubstancia-se, purifica-se, sublima-se (...) repassa-os um torturante sofrimento interior que se segue à certeza da inútil súplica e da espera dum bem que nunca chega (idem, pp. 20-21).

Deste modo, podemos ver como o imaginário medieval está bem presente na lírica de Camões. Assim, lido o poema, é fácil entendermos que a presença do imaginário medieval é fortemente marcada não só pelo que já afirmámos, como também por vocábulos como “Senhora”; “serviços”; “tristezas”; “condena”; “tormento”, vocábulos que pertencem a um mesmo campo semântico do sofrimento, enfim, à “Coyta de Amor”. Não nos podemos esquecer que o “vocabulário é, sem dúvida, o documento mais rico de que dispõe o historiador da psicologia social” (DUBY, 1989, p. 69). Porém, se atentarmos na Cantiga 17, “Coifa de beirame/ namorou Joane” (PIMPÃO, op.cit, p. 23), podemos ver que há como que uma evolução e subversão dos códigos da poesia trovadoresca, neste caso, da cantiga de amigo, tendo em conta que a donzela tenta aproximar-se do amado, demonstrando um desejo enorme por este: “Ando cega e louca/ por ti, meu Joane;”, enquanto Joane parece andar apaixonado pelo adereço que esta usa no cabelo - “pois amas beirame,/ e a mim não, Joane.” Neste caso, estamos perante uma mulher que parece muito à frente do tempo medieval, tendo em conta que revela os seus desejos e que pretende mesmo um contacto corporal, sexual com o seu amado, visto que “Não vês que Amor/ se pinta despido”. Esta temática surge já numa fase posterior à poesia trovadoresca, contudo, esta parecia ser bastante conhecida pelos poetas quinhentistas, visto que utilizavam traços desta nas suas composições, o que revela a importância de cancioneiros, como o Cancioneiro Geral, de Garcia de Resende, no qual era comum encontrarem-se temas e motos alheios referentes a estas questões. NUNES, Irene Freire. (org.). “Como Boorz fez sa oraçom contra Deus, que guardasse seu irmão e como acorreu aa donzela ante que a seu irmão.” In: _____ A Demanda do Santo Graal. 2.ed. Lisboa: I.N.C.M., 2008, pp. 135-137. 1

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Deste modo, podemos atestar o que afirmámos preteritamente em relação às influências recebidas por Camões, pois estas estão presentes através da utilização de temas contemporâneos ao poeta e são utilizadas em composições de medida velha, como é o caso desta cantiga. Para além disso, parece haver uma “deliberada estética de fundir tradições (...) em que (...) o poeta se consubstancia com uma concepção cortesanesca de poesia, segundo hábitos adquiridos com vista a uma outra síntese de temas” (CASTRO, op.cit, p. 102). De facto, Camões parece ir ao encontro do que Aníbal Pinto de Castro afirmou, como podemos ver através da Cantiga 17 e como podemos atestar, ainda, por meio da Cantiga 53, nas quais é possível fazer aproximações com a cantiga de amigo “Ondas do mar de Vigo” de Martim Codax, relativamente ao tema da preocupação / angústia (“se vistes meu amado”, e “vistes lá o meu amor?”), presente na Cantiga 53; outro tema em evidência é o amor, que, na cantiga de Martim Codax surge através do “se vistes o meu amigo / aquele por que eu sospiro”, e que, na Cantiga 53, podemos ver, através de “Posto o pensamento nele,/ porque a tudo o Amor obriga”. De fato, encontramos temas comuns tanto na poesia trovadoresca como na poesia em medida velha do século XVI. Todavia, apesar de apresentarem cenários semelhantes e “para além de um desenvolvimento narrativo mais definido e completo e do visualismo (...) os esquemas estróficos, métricos e rimáticos” (CASTRO, op.cit., p. 92), são diferentes. Contudo, podemos afirmar que Camões utiliza ou reaproveita os tópicos medievais, enquadrando-os “em vivências sócio-culturais diferentes, ou retomados por concepções estéticas novas” (CASTRO, op.cit., p. 93). Assim, compreendemos o porquê da presença de resíduos da poesia trovadoresca e do código cavaleiresco na lírica camoniana.

2.

Cantigas 7, 8, 12 e 52 – dos olhos verdes ao encantamento feminino

O objeto amado, ou seja, a “Senhora”, ou “mia Senhor”, segundo a poética medieval, era um ser interdito e impossível ao sujeito poético. É nessa temática que Petrarca vem inovar o código literário e a forma de ver a figura feminina. Com Petrarca, “A poesia reacende o amor, afasta a morte, e, da mesma feita, eterniza o desejo, reactivao” (MARNOTO, 1997, p. 99). Na verdade, com Petrarca - e no nosso estudo interessam-nos alguns aspectos do Petrarquismo, nomeadamente aqueles que dizem respeito ao papel da mulher, do sujeito 5

poético, e do amor, pois o nosso objectivo não é a análise exaustiva do código petrarquista – “o mito apolíneo adquire, pois, o seu mais profundo e dramático alcance: procurar a amada fora de si, quando ela é uma alteridade impossível” (idem, ibidem).

Desta

forma,

ao longo do extenso lapso temporal que corre entre o Renascimento e o advento do Romantismo, o exemplo petrarquista assume um papel modelar (...) Assenta numa série de artifícios retóricos padronizados: cabelos de ouro, olhos como estrelas, faces que são rosas sobre a neve, lábios de coral, dentes que parecem marfim (MARNOTO, 2007, p. 35). Deste modo, é a própria negação da “Senhora”, em perfeita simbiose com o mito de Dafne e Apolo, tendo em conta que o amor “é uma experiência condenável, tanto aos olhos do cristão, porque pecaminosa, como aos olhos do humanista, porquanto dissipadora” (idem, p. 105), que exaltam não só o sujeito poético, mas também a própria mulher, pois esta adquire traços místicos, sagrados. Desta forma, é pertinente realçar o caráter paradoxal e ambivalente deste amor sempre insatisfeito, em devir e por concretizar: por um lado, a exaltação de ambos, tanto da “Senhora” como do sujeito poético; por outro lado, a sublimação estética de ambos, visto que ele, por ter consciência da pureza da donzela, não ousa fazer mais do que ela permite, enquanto ela permanece impávida, criando uma relação de distânciaaproximação, ao mesmo tempo sagrada e profana, tendo em conta que é um amor purificante e pecaminoso. Por um outro lado, da divinização da mulher, “passa-se, assim, à simples idealização” (PINA MARTINS, 1984, p. 335), pois, “apesar da auréola espiritualizante que a envolve, a sua presença material caracteriza-se por uma fisicidade desconhecida de toda a lírica anterior a Petrarca (MARNOTO, op.cit., p. 106).

adotando uma concepção racionalista e platónica da bem-amada, ama a mulher não por ela própria mas por encontrar nela reflectido o sentimento de Amor em grau absoluto; amor do Amor, e não do ser que o inspirou. Amor, portanto, mais pensado que sentido, ou, ao menos, submetido ao crivo da Razão (MARNOTO, op.cit., p. 56). Ao analisarmos a Cantiga 7, deparamo-nos com referências várias à cor dos olhos da amada: “são belos os olhos verdes; (...) porque são vossos... e verdes!”. É interessante notar que a imagem da mulher amada parece viver em dois planos, pois esta “passa a não 6

ser tanto um espelho reflector, como um centro de irradiação por si mesmo” (MARNOTO, op.cit., pp. 108-109), pois, com Petrarca é comum a “tendência para a inversão da relação de dependência entre a figura feminina e o quadro que a envolve, cujas transformações decorrem dos seus extraordinários poderes” (idem, ibidem). Todavia, “é certo que deparamos em Camões com heranças temáticas que (...) se integram na linha que o lirismo português vinha desenvolvendo desde a época trovadoresca” (CASTRO, op.cit., p. 91). É certo que o tema dos olhos verdes está presente na poesia trovadoresca, como podemos ver no refrão de uma cantiga de mal-dizer de João de Gaia, “Vós avede-los alhos verdes”, ou então numa bailia de João Garcia de Guilhade, com o refrão “Vós avede-los olhos verdes/ e matar-m’-edes com eles”, mas, apesar de Camões cantar reiteradamente os olhos verdes - basta ver as composições supramencionadas – em nenhuma delas encontramos “similitudes textuais” (CASTRO, op.cit., p. 91), encontramos, sim, “sedimentos mentais” (PONTES, op.cit., p. 86). De fato, podemos encontrar esta mesma situação em Camões, por exemplo, quando lemos passagens como “mas a graça desse verde/ tira a graça a toda a cor”, “Fica agora sendo a flor/ a cor que nos olhos tendes”, da Cantiga 7, ou então “A vossa testa é jardim,/ onde Amor se desenfada”, da Cantiga 8. Por outro lado, vemos como a figura feminina e as suas características são substancializadas, pois “os cabelos não são louros, mas sim ouro em fio, as faces não são rosadas, mas rosas; os olhos não são verdes, mas verdura” (SARAIVA, op.cit., p. 34) é o que encontramos na Cantiga 8, quando o sujeito poético nos diz que “nunca se viu, nem se escreve/ boca nem graça igual,/ se não fora de coral/ e os dentes cor de neve”. Podemos ainda realçar o caráter beatificatório da figura feminina através da “projecção de luminosidade” (MARNOTO, op.cit., p. 107), visto que esta associação “da luz ao supra-humano é um conceito antropológico cujos princípios se perdem nas origens da civilização” (idem, ibidem), imagem presente em passagens como “Os cabelos desatados/ o mesmo sol escurecem”, presente na Cantiga 8. É interessante realçar que, neste caso, a imagem da luz surge numa relação de oposição/antagonismo, uma vez que os cabelos, por serem tão imensos, ofuscam a luz do sol. De fato, é interessante notar que, na poesia petrarquista, “Laura é, em si, o centro da luminosidade, o farol que guia o amante, a mais potente estrela do universo, o que implica a marginalização de todos os factores intermediários” (MARNOTO, op.cit., p. 109). Em Camões, o mesmo parece acontecer, se bem que do avesso, pois, neste caso, mostra-se o caráter totalizante e absoluto da mulher, que ofusca toda a luz do grande astro, tornandose, ela, ainda que de forma invertida, o centro de onde emana toda a luz e brilho da ação. 7

Não esqueçamos que o conceito de imitatio, conceito este baseado não na mera reprodução “de textos ou autores, sumamente apreciados pelo seu carácter exemplar (...) mas a partir da pessoalização do conhecimento e não de uma mera acumulação de saber” (MARNOTO, 2007, p. 36), como é o caso de Luís Vaz de Camões. Por outro lado, quando analisamos a Cantiga 12, estamos perante uma outra imagem e construção da figura feminina: uma imagem de uma grande intensidade, ou então “tem um carácter demasiado violento” (MARNOTO, op.cit., p. 579). Temos de ter em conta que,

Camões, (sic) retoma, assim, modos de representação, traços caractereológicos e atributos que se encontravam presentes na poesia de Petrarca, para pôr em relevo tais formas de caracterização e engrandecer o valor, positivo ou negativo que seja, de tais atributos, bem como a escala das consequências assumidas pela sua projecção sobre o espaço psicológico da amante (MARNOTO, op.cit., p. 576). É o que acontece quando lemos passagens como “vossa condição/não é d’olhos verdes,/ porque não me vedes”, ou então “verdes não o são/ no que alcanço deles;/ verdes são aqueles/ que esperança dão./ Se na condição/ está serem verdes,/ porque não me vedes?”. Assistimos, assim, a uma metamorfose da figura feminina, que “em Camões é mais intensa, porque irresoluta, dada a distância que o separa da mulher, o de Petrarca mais melancólico, porque feito da remissão de um saudoso passado” (MARNOTO, op.cit., p. 574). Podemos afirmar que Camões vai mais longe que Petrarca e revela-nos uma mulher capaz de seduzir de uma forma maliciosa, qual Medusa ou Circe, que envenena e ilude o sujeito poético. No entanto, em Camões, a Mulher é o “Ser que o poeta busca com toda a ânsia, quanto nela há de extraordinariamente fluido e incompreensível engrandece o drama da impossibilidade da sua posse, acentuando o seu carácter inatingível” (MARNOTO, op.cit., p. 579).

Conclusão

Após a realização deste quefazer, eis que surge o tempo de fazermos algumas considerações finais. Na verdade, após a análise destes textos por nós selecionados, reparamos que Camões é um poeta bastante resiliente, no sentido em que faz a ligação entre o mundo 8

medieval e o mundo moderno, sem esquecer as influências italianas. Com efeito, Luís Vaz de Camões apresenta na sua poesia, resíduos do imaginário medieval, de certa forma já afastado da sua época, e, por outro lado, servem, os resíduos, como um ponto de chegada, visto que Camões traduz e absorve o Petrarquismo, o Humanismo e a estética do Renascimento. Como podemos observar, a figura feminina é um tema bastante querido pelos poetas de todas as épocas e lugares, sendo um tema que ultrapassa códigos literários e sistemas. Neste caso, Petrarca e Camões dão-nos uma imagem mais rebuscada da Mulher, pois esta adquire traços ainda mais divinizantes, ao mesmo tempo em que se espiritualiza e materializa, criando, assim, um paradoxo, algo bastante explorado pelos poetas e pela Literatura. Em Petrarca encontramos Laura, sempre bela e pura, um ser diáfano e maravilhoso, capaz de alterar o estado natural, a ordem das coisas, capaz de iluminar a natureza; em Camões, encontramos também uma mulher quase diáfana e com este mesmo poder de alterar a natureza, se bem que estamos, já, perante uma mulher com poderes encantatórios, uma mulher capaz de ludibriar o sujeito poético, uma mulher feiticeira, qual Circe ou Medusa. No fundo, acabam por ser o Amor, o Espanto, a Admiração, o Fascínio e o Encantamento que levam os poetas à Mulher e ao próprio Amor. Deste modo, o Amor é, aliado à figura feminina, aos seus olhos, aos seus lábios e aos seus cabelos, o motor, o motivo, a causa da escrita poética nas épocas por nós aqui retratadas; Amor esse que surge em vários momentos da obra de Camões, tanto na obra lírica como na obra épica; aliás, Os Lusíadas é uma obra movida pelo Amor, pelo amor que leva ao Conhecimento da Verdade, pelo Amor que leva, através do Trabalho, do Estudo e da Preserverança, à Glória e à Virtude. Deste modo, o Amor é sempre visto como horizonte de expectativa, visto que não é a sua realização que verdadeiramente interessa. Interessa, sim, o amor pelo Amor, o saber amar de uma forma pura e descomprometida, sem qualquer interesse de realização ou consumação, visto que este atinge um ponto metafísico, espiritual, místico, divino. Amor que leva à exaltação do Ser humano.

Bibliografia AGUIAR E SILVA, V. M. “A História Literária do Renascimento português” In: REIS. Carlos (dir.) História Crítica da Literatura Portuguesa – Humanismo e Renascimento -. Vol. II, Lisboa: Verbo, (s/d), pp. 70-73. 9

ALMEIDA, Isabel. “Camões e a poesia de arte menor.” In: BORGES, Maria João et al (org) Lírica Camoniana. Estudos diversos. Lisboa: Cosmos Literatura, 1998, pp. 27-45. BLOOM, Harold. A angústia da Influência. Lisboa: Cotovia, 1991, p. 55. COSTA PIMPÃO, Álvaro Júlio da Costa. Luís de Camões – Rimas. Coimbra: Almedina, 2005. DUBY, George. A Sociedade cavaleiresca. Lisboa: Teorema, 1989. MARNOTO, Rita. “Laura Bárbora” In: _____ (org) Sete Ensaios Camonianos. CIEC, 2007, pp. 35-43. _____. O Petrarquismo Português do Renascimento e do Maneirismo. Acta Universitatis Conimbirgensis, 1997. MOISÉS, Massaud. A Literatura Portuguesa através dos textos. 25.ed. São Paulo: Cultrix, 1998. NUNES, Irene Freire. (org.). “Como Boorz fez sa oraçom contra Deus, que guardasse seu irmão e como acorreu aa donzela ante que a seu irmão.” In: _____ A Demanda do Santo Graal. 2.ed. Lisboa: I.N.C.M., 2008, pp. 135-137. PINA MARTINS, J. V. De. “ Camões Lírico e o Renascimento Italiano” In: Actas IV Reunião Internacional de Camonistas. Ponta Delgada: Universidade dos Açores, 1984, p. 335. PINTO DE CASTRO, Aníbal “ Camões e a tradição poética peninsular” In: _____ (org) Páginas de um honesto estudo camoniano. CIEC, 2007, pp. 85-104. PONTES, Roberto. “Mentalidade e Residualidade na Lírica Camoniana.” In: Escritos do Quotidiano: estudos de Literatura e Cultura. Fortaleza: 7 Sóis, 2003, pp. 85-102 SARAIVA, António José. Luís de Camões. 3.ed. Lisboa: Gradiva, 1980, pp. 27-37.

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