Resistência e inovação na incorporação do Novo Mundo nas grelhas de conhecimento europeias

September 17, 2017 | Autor: Marcos Vilhena | Categoria: Iberoamérica, Renascimento dos Descobrimentos
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Resistência e inovação na incorporação do Novo Mundo nas grelhas de conhecimento europeias Resistence and inovation in the incorporation of the New World in the european knowledge systems Marcos Nunes Vilhena* *Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, Lisboa

Resumo Este trabalho aborda descoberta e incorporação do Novo Mundo nas grelhas de conhecimento da Europa da Idade Moderna, identificando pontos de resistência ou aproximação. Numa primeira parte, retrospectiva-se a história europeia, ora evidenciando as contradições em o Renascimento prepara a Revolução Científica, ora contextualizando a descoberta; na segunda, caracterizam-se os partícipes primeiros deste processo; na terceira, avalia-se o seu impacto nas estruturas do conhecimento e no modo de vida europeus. Tal divisão parte da discussão de algumas matérias a que a descoberta impõe uma revisão: a geografia, a natureza, e o Homem. A geografia, porque relança a discussão da visão ptolomaico-cristã da Terra e da nova realidade geográfica da descoberta; a Natureza, porque impõe uma reflexão sobre a forma como o homem vê e se vê no mundo natural; o Homem, porque na concepção do bárbaro, e depois do índio, o europeu discute a sua própria condição. No jogo de espelhos por que a Europa se projecta no novo continente e o projecta de volta até si, quer na visão primeira dos descobridores e conquistadores, quer na dos cronistas e colonizadores, tal abordagem deverá permitir chegar aos processos de incorporação e ao que estes reflectem do eurocentrismo do homem do Renascimento. Palavras-chave: descoberta, recepção, resistência, inovação, mudança. Abstract This work intends to aproach the discovery and incorporation of the New World in the modern age european knowledge sistems, identifying resistence or aproximation aspects. Therefore, it is divided in three parts: the first one, in wich european history is aproached rectrospectively either exposing the contradictions in which Renaissance prepares the Scientific Revolution, either settling the discovery; the second, in which its agents are characterized; the third, in which its impact on the knowledge sistems and european way of life is evaluated. Such a division is based on the discussion of some subjects to which the discovery imposes a revision: geography, nature and Man. Geography because it relaunches the discussion of ptolomaic-christian conception of the Earth and the new geographical reality of the discovery; nature because it imposes a reflection on how Man sees (and sees himself in)the natural world; Man because through the conception of barbarian and later the indian, the european discusses its own condition. In the mirror game through which Europe projects

itself on the newfound continent, and projects it back to herself, either in the first sight of the discoverers and conquerors, either in the later one of the chroniclers and settlers, such an approach should take us through the incorporation processes and knowledge of the european renaissance man. Keywords: discovery, reception, resistance, innovation, change.

«Na Idade Média considerava-se parte da geografia o estranho país de Jauja, onde as árvores davam chouriços em vez de frutas, com botânica periodicidade. Porque se assombram então com as cidades americanas pavimentadas de ouro, com a ilha das amazonas, com indivíduos dotados de graciosos rabos, e com a mesmíssima existência da fonte da juventude?» Hélio Vera, «La Realidad Frente a la Utopia», Excelsior,nº 9, Junho, 1992.

A Europa à beira do Novo Mundo . Quadro para uma Mentalidade Europeia A par do vigor e desenvolvimento intelectual da Europa do Renascimento há uma outra, de terror, guerra, fome, perseguições religiosas e tortura e vulgarmente ofuscada pelo brilho clássico e pela contradição em que se tem da idade, que chamou «das Trevas», a que sucede. Na chegada e partida de inúmeros processos cumulativos, é uma Europa de transição, com o que isso compreende de ligação ao passado e projecção no futuro, e de que uma caracterização no âmbito da recepção da descoberta do Novo Mundo deve dar conta. No ano de 1484, enquanto Cristóvão Colombo apresentava a sua proposta de «buscar el Levante por el Poniente» a D. João II, pereciam em Milão pela peste 50.000 almas. Em 1492, a tomada do último reduto mouro na Península Ibérica, mais do que consolidar e reforçar o papel da Inquisição, guinda à conversão forçada de mouros e judeus e ao fim de séculos de convívio religioso. A Itália, berço do Renascimento, fragmentava-se sob o poder de Nápoles, Roma, Florença, Milão, e Veneza, que tanto se combatiam como resistiam às investidas francesas e espanholas. Outras repúblicas italianas entregavam-se ao déspota que lhes assegurasse ordem e protecção contra hordas de mercenários sob a chefia militar dos condottieri. Só Veneza, governada por uma austera mas dinâmica oligarquia, consolidava o seu estatuto de potência económica e militar, que, concentrando todo o comércio do Mediterrâneo e Levante, ensaiava já fórmulas comerciais e financeiras capitalistas, configurando-se como um estado moderno. Também outros reinos quinhentistas europeus avançavam na formação dos estados-nação e das monarquias absolutas, extorquindo ao vigor económico das cidades e seus mercadores o suporte financeiro para o esforço de guerra, que não só redesenhava o mapa político, como reforçava o poder de uma coroa face a outras e a

levantamentos internos. Contudo, com códigos sociais e cortesãos e hábitos culturais e de higiene que pouco ou nada diferiam dos que um século antes haviam recebido a Peste, achavam-se mais na medievalidade que na modernidade, e, em muitos casos, só pela guerra, articulando armas e estruturas urbanas em novos sistemas de defesa, se reconhecia um desenvolvimento real. Este mundo em disputa, mas pretenso herdeiro da tradição clássica, tremeria ante a ameaça turca quando, em 1453, os exércitos otomanos tomavam Constantinopla, numa marcha que os colocaria, dois anos depois, em Atenas, e só travada em 1683, às portas de Viena. À Europa sobrava, moribunda, a ideia da cruzada, que mais velava o seu carácter defensivo do que acreditava chegar a Jerusalém. A violência sobre a população comum, associada à progressão turca, ainda o estabelecimento dos estados nacionais e a discussão de uma nova espiritualidade cristã que poderia dividir a Cristandade enquadravam um clima de medo que tanto se encerrava no espaço amuralhado da cidade e numa vivência nervosa de todos os aspectos do quotidiano, como se comprazia na tortura e na representação da morte: choque manifestado na religião, na arte e no conhecimento, pela mistura da fé e da repressão, da discussão filosófica e da propaganda, da ciência incipiente e da arreigada superstição. Não há obra senão para glória de Deus, nem sangue que não valha a pena derramar em Seu nome. Entre este mundo e o outro – fronteira que divide o Renascimento – só o apego mercantil ao tempo e ao espaço, pautando uma actividade habituada a pagar o reconhecimento da Igreja e da coroa, parecia apontar para o humanismo, que não estranhamente irradiava dos centros económicos da Europa. O mundano invadia o conhecimento com a realidade e a fé e o dogma com questões e a religiosidade cristã com outra espiritualidade – mas invadia também a Europa com uma busca do real e material, e por oposição, e face ao abandono de «certas miragens da Idade Média», de uma busca de novas (ou renovadas) «construções imaginárias» (Delumeau, 1994b:9). Tomada pela crescente necessidade de ouro para pagar o luxo e o esforço de guerra e de especiarias e ervas medicinais para aplacar a peste e a má conservação dos alimentos, a Europa fascinava-se com qualquer perspectiva de riqueza e sentia necessidade de procurá-la, mesmo longe, ou até nos mundos que inventava. Ainda que vinte milhões de livros impressos entre 1455, data da primeira impressão da Bíblia de Gutenberg, e 1492 surpreendam, é mor que se atente nas matérias em impressão: à recuperação e releitura das obras clássicas juntava-se a de outras, de cunho medievalizante, apenas velada pelas conveniências humanistas. Foi este trabalho “arqueológico” que permitiu o «reencontro com a Antiguidade» de que Delumeau fala (1994a:19), e tal reencontro parecia reconfigurar o passado, mas também o presente, permitindo aos Renascentistas recriar a própria noção de História ou, como o mesmo autor dirá, «[simplificar] a História, porque a

Idade Média nunca perdera completamente o contacto com a Antiguidade.» (1994a:87). Faz sentido a proposta de Eisenstein na sua obra A Revolução da Imprensa na Europa Moderna de que a invenção da imprensa não constitui uma revolução, mas que esta se inicia com o registo impresso de todo um manancial de conhecimento, que até aí apenas circulara em manuscritos com um reduzido número de cópias ou oralmente. Mas à ampla produção livresca aliava-se ainda a discussão teológica: Reforma e Contra Reforma não armaram mais soldados do que oficinas tipográficas, nem fizeram nunca perecer mais gente do que arder livros. Sob esta aparente contradição, dois blocos religiosos se forjavam, forjando igualmente uma divisão da Europa. O horizonte cultural norte-europeu passaria a manifestar essa invectiva propagandística reformista, vulgarizando o livro e a leitura. Tal divisão pareceria pouco importante se a mesma não se viesse a reflectir na recepção e colonização europeias. Só muito raramente o conhecimento antigo, que marcaria o Renascimento, se veria alargado e aplicado a uma problematização real, capaz de modificar a visão que o homem tinha do mundo. De facto, nem este parecia disposto ou capaz de assim compulsar aquele conhecimento, nem este se prestava a ser tão prestes superado. Se a Idade Média recebera já a Antiguidade como uma «herança venerável e orientadora» (Weber apud Martinez:82) o Renascimento irá valorizar a Antiguidade na sua «contraposição à obscura Idade Média» (Martinez:83). Daí que o Renascimento pareça conduzir muito menos a uma inovação da mentalidade europeia – pelo menos numa primeira fase, a do humanismo das letras – que a uma imitação do conhecimento antigo. Só depois e ao cabo da discussão entre antigos e modernos, também recuperada das obras clássicas, os humanistas adoptariam «[…] uma atitude de emulação, de superação dos modelos antigos na teoria e na prática [...] óptimo exemplo para os humanistas não letrados nas suas próprias actividades.» (Martinez:81). Todavia, questionar como é que «Através de contradições, e por caminhos complicados, mas sempre sonhando com paraísos mitológico ou com impossíveis utopias, o Renascimento deu um extraordinário salto para diante.» é não querer pensar nos argumentos da própria questão – é que quando se aceita que «Colombo descobriu as Antilhas graças aos erros de cálculo de Ptolomeu.» (Delumeau, 1994a:23), pode-se aceitar igualmente que a Europa chegara ao Renascimento, ou ao que por isso se entende, pelas próprias contradições em que se tinha. Da vivência amedrontada do quotidiano surgiria a necessidade de evasão, e, dentro desta a procura dos «paraísos mitológicos» e a constituição de «impossíveis utopias» que levaria ao encontro de um mundo real, tão real que começa por ser uma projecção do que a Europa se crê. Se as descobertas geográficas aumentaram o «inventário do mundo vivo» (Delumeau, 1994b:136), guindaram ao progresso material e, assim, à quantificação e

matematização do mundo, «um dos maiores contributos do Renascimento para a criação da nossa civilização.» (Delumeau, 1994b: 148) – e para o fim de muitas outras.

.Geografia e a Astronomia À época de Colombo, o europeu comum acreditava que a Terra era plana ou que tinha a forma de uma arca; mesmo os que há muito a tinham por um globo, duvidavam da habitabilidade do hemisfério sul, povoado por criaturas excepcionais e separado do hemisfério norte por uma zona tórrida. Quase todo o conhecimento geográfico da Europa do século XV derivara da Antiguidade, mas com os cortes, aditamentos e subversões da tradição medieval. O mundo helénico conhecera uma escola de matemáticos e cosmógrafos, com nomes como Aristóteles, Hipárco, Marino, ou Eratóstenes. A esta se deveria a concepção que vigoraria até muito tarde da grande e única massa continental – oikouméné – cercada por um grande oceano. Outros contributos chegariam com Ptolomeu: uma astronomia, vulgarmente conhecida por Almagesto; e a Geografia. Conhecimento recebido pelo mundo islâmico, cuja preocupação com a astronomia e a astrologia levou a uma valorização do Almagesto, negligenciando a Geografia, perdida para toda a Idade Média. De facto, apesar de grandes viajantes e com algumas empresas atlânticas, como a de Edrisi, os muçulmanos pouco poderiam ter acrescentado àquela descrição geográfica do mundo, pois que o seu conhecimento em pouco excedia o clássico. Certo é que alimentaram a crença na inavegabilidade do Atlântico, bem como na gravitação continental em torno de um centro, que o mundo cristão se apressa a reconhecer como Jerusalém, e que viria basear toda a geografia medieval e legar ainda ao Renascimento o Imago Mundi de Pierre d´Ailly, em 1410. Assim, quando no mesmo ano a obra Geografia aflora ao conhecimento, não surpreenderia tanto pela projecção do mundo, que pouco difere das demais, mas pelo que evidenciava do conhecimento e planificação antigos. Na sua projecção, Europa, Ásia, e África eram já conhecidas e estavam unidas num vasto continente, fazendo do Índico um mar interior. O hemisfério sul, separado do hemisfério norte por uma zona tórrida, era inavegável e a Terra seis vezes mais pequena do que a projectara Eratóstenes. Pertinente era a divisão da circunferência do globo em 360 graus de longitude por Ptolomeu, cuja medida estimava em 57 milhas – estava por vir Pedro Nunes. O impacto da obra ptolomaica no conhecimento europeu identifica-se na empresa de Colombo e nos duzentos anos que seguiriam aquela primeira edição: ainda que o conhecimento geográfico dos marinheiros nem sempre reflectisse a discussão escolar, seria uma referência a creditar ou a contestar. Pela sua contestação, outros conhecimentos e descobertas se revestiram de enorme importância, pois

que não só importaram pela inovação, como formaram as estruturas mentais que permitiram ao homem do Renascimento saber que inaugurava um novo período.

. A Cartografia e a Natureza O estudo cartográfico beneficiaria amplamente da discussão do modelo ptolomaico. Se no século XIII os mapas europeus eram ainda «objectos devocionais para invocação harmoniosa da obra Deus» (Fernandez-Armesto:244) , passariam a reflectir, no século XV, um verdadeiro interesse numa representação geográfica realista. Mas a Antiguidade e a tradição cristã haviam legado mitos que o homem medievo ampliara em torno de uma preocupação fundamental: a localização do Paraíso. A primeira chega pelas Viagens de São Brandão (séc.VI), numa ilha atlântica; a segunda pelas Etimologias (séc.VII) de Isidoro de Sevilha, no Oriente – tradição que vigoraria até ao século XII. Passarão muitos anos até que Ortelius, em Theatrum, conclua que o Paraíso não é senão uma ideia de Deus, e muitos mais até que deixe de ser representado nos mapas, e ainda mais até que as grelhas de conhecimento deixem de ter recorrências míticas. Até lá, dentro e fora dos limites da tricontinentalidade ptolomaica misturam-se topónimos reais e míticos – os últimos, tão mais inequívocos quanto maior a autoridade da fonte ou a distância que os separa da Europa, são um misto de expectativa e crença nas referências clássicas e bíblicas. Na imaginação europeia «A Índia era, por excelência […] o país do insólito e do maravilhoso […]» (Delumeau, 1994a:50), onde Alexandre, cavaleiro cristão, visitara o Éden e avistara o Orinoco. Na Ásia situavam-se a Fonte da Juventa, Tarxis, Matinino e Caribe; Ofir, de onde proviera a riqueza de Salomão; as Ilhas Afortunadas ou Antilhas; o reino do Prestes João. O Eldorado ou Rio de Ouro situavase ainda por África. O Atlântico escondia as Ilhas Encantadas, o que restara da Atlântida e as Sete Cidades de Cibola, que bispos cristãos haviam criado numa qualquer ilha. Mas era Jerusalém que estava no centro da demanda cristã: a Idade Média aproximara a Europa da Terra Santa, mas é pouco provável que até ao século XIII algum europeu se tivesse aventurado mais para oriente, que se abriria só com a hegemonia mongol. Tal permitiria o estabelecimento de rotas comerciais, não só aproveitadas por mercadores, mas também por missionários. Jacob d´Ancona, Carpini, Rubruquis e Polo trariam ao Ocidente, ainda na primeira metade do século XIII, nomes como Caracorum, Cambaluc, Catai e Cipango. Mas este contacto seria interrompido com a mesma rapidez com que se estabelecera: a Peste Negra, os Turcos e o fim da dinastia mongol imporiam dois séculos de afastamento. Ficariam os relatos manuscritos de viagens, amplamente difundidos por uma Europa ora cercada por fronteiras, que sonhava, ainda que sempre atemorizada, superar.

E o mesmo acontece com as representações da natureza: até à descoberta da América, a Europa fascinar-se-á sempre mais com o que desconhece. Os problemas de classificação que as viagens de descobrimento viriam evidenciar, provam que a Europa passara algum tempo sem se surpreender com a fauna e a flora de outras regiões, ainda que ampliasse algum eco distante de animais reais, como um camelo ou um elefante. É só quando o conhecimento de espécies inomináveis lhe chegam que parece despertar para a necessidade de organizar as suas grelhas de conhecimento. Não que a Idade Média não tivesse os seus herbários, lapidários, farmacopeias e bestiários – nem a profusão de novas espécies impõe logo uma classificação científica, que só chegaria no século XVIII – mas a compreensão da variedade, muito mais ampla do que até ali se concebera, acarreta uma necessidade de organização, que muito iria beneficiar da invenção da imprensa. Complementando as Filosofias Naturais na sua progressão até à Revolução Científica, essa informação fixa-se nos livros impressos e é divulgada para conhecimento do mundo intelectual, que ora a discute e organiza e amplia e lhe atribui uma gravura e a põe em língua vernácula. Ainda que nos tesouros, museus, bibliotecas, câmaras de maravilhas e gabinetes criados dentro do espírito do coleccionismo enciclopédico coexista o real e o irreal, o Renascimento assiste ao crescimento de uma cultura material que se delicia nos objectos do quotidiano, que cria os primeiros jardins zoológicos, que integra a batata e o tomate nos seus hábitos alimentares e que faz do tabaco um hábito social. Quando o “Teatro do Mundo” se abre à curiositas do homem do Renascimento, a sistematização e a classificação perfilam-se como uma reacção mental imposta pela necessidade de revisão dos sistemas conceptuais. Contudo, a transformação naturalista fora subsidiária do humanismo literário e até muito tarde irá partilhar com este velhas grelhas de classificação, que, em muitos casos, as viagens de descobrimento vêm também reforçar, apenas integrando e adequando aí a sua novidade.

. As Gentes e as Bestas Desde a origem, o termo bárbaro reflecte a imagem que a Hélade e depois a Europa têm de toda a civilização estranha, inserindo-o na sua crítica etnográfica ou filosófica. Naquilo a que Helga Kropfinger chama de «dupla apreciação», bárbaro tanto designa o «[…] grosseiro, tosco e rude, tonto e inculto, associal, cobarde e cruel, desenfreado e violento, traidor e infiel, insaciável e ávido […]» (Chris), como os que «encarnavam todas as virtudes do bom selvagem (Lovejoy e Boas) […] simplicidade, falta de luxúria, vigorosa severidade de governo (Estrabão); vegetarianos, justos, livres de ganancia, possuem tudo em comum, incluindo as mulheres e os filhos (Éforo).» (in Kropfinger:460,461). Já Aristóteles, ao separar os homens em duas condições – «[…] por natureza, uns são livres e outros escravos» (in

Martinez:178) – esbatera a diferença entre os que obedecem e os animais; e isto até que animais e homens se não distingam, conforme se verá na questão do índio. Mas o bárbaro não é só o reconhecidamente estranho, mas também o desconhecido: O bestiário clássico fora sempre amplo, mas também aberto às bestas que as fronteiras do império asiático de Alexandre iriam situar ainda mais longe e mais animalizadas. Pela via romana penetrariam ainda mais no imaginário europeu – de facto, não fora o desconhecimento do mundo que criara os monstros; antes a variedade em que este se descobria, aos poucos, aos viajantes da época. Gigantes Gog e Magog, cinocéfalos, ciclopes, blémias, ciápodes, panócios, povoavam a Índia e terras para lá dos limes europeus e incluem os relatos de Ctésias, no século IV, mas também os de Mandeville, no século XV. Impõe-se, então, considerar o conhecimento real que a Europa, ou pelo menos que os homens dos descobrimentos teriam já do “outro” da sua época. Conforme se realçou atrás, o homem europeu devia sentir-se encurralado no seu espaço: o medo do turco, do muçulmano e do mongol sitia-o muito mais, contudo, que qualquer um destes povos. Mesmo durante a Idade Média, quando os muçulmanos avançaram até Poitiers e controlavam o Mediterrâneo, o mundo cristão não deixaria de estabelecer relações com o Islão. E se acaso se negligenciasse a sua extensão, logo o exemplo ibérico se faria salientar. De facto, nem todo o homem europeu conhece o muçulmano, ou o turco, ainda que as Cruzadas devam ter contribuído para muitas representações fiéis no centro e norte da Europa; mas a sua crueldade, tão amplificada, é atenuada pelo equilíbrio gerado em situações de comércio ou mesmo de guerra – até pela oposição que a religião islâmica opõe, modelarmente, ao cristianismo. À luz desta relação, o tártaro permanece distante, igualmente temido, mas vassalo de Catai. Já o negro, quer pelo “primitivismo” que a Europa sempre reconhecera nos seus modelos civilizacionais, quer pela sua escravização secular, sairá sempre despeitado, ainda que o europeu não se deslumbre menos com o continente africano. As relações de trabalho na Hélade ou no orbe romano haviam-no já situado na pirâmide social: era escravo e nem a disputa do limes norte-africano, nem a possibilidade da existência um reino cristão em África ou a introdução de quatro milhões de escravos negros nos mercados europeus e a progressão europeia pela costa africana trariam grandes mudanças (Fernandez-Armesto:244). Colombo e Vespúcio: entre a América e a sua Época . Colombo e a Descoberta Colombo e Vespúcio, permeiam, porventura melhor ou com mais eco que outros, o desconhecimento e inserção do Novo Mundo nas grelhas de conhecimento da época. Não fosse o relevo histórico e sua a condição de partícipes importaria já a este trabalho.

Como se pôde já ver, as viagens medievais marcaram profundamente os descobridores da Idade Moderna. Mesmo D. João II, em cuja corte reunira os melhores cartógrafos, espiões e navegadores, mandaria os seus emissários em busca do Prestes João, cujo sentido mítico se sobrepunha a qualquer noção de espaço ou tempo. É pela via medieval que Colombo se serve de Ptolomeu para superar os limites que este mesmo impusera à navegação do Atlântico. Servindo-se das dimensões do perímetro terrestres de Ptolomeu, Marino, e Ailly, que calculara que Espanha e Catai (China) estariam separadas por 135 milhas de mar aberto, Colombo reduziria para um quarto a distância real entre as duas terras. Séneca ajudava: «alguns dias se o navio for dirigido com ventos favoráveis»; Toscanelli também, ao sugerir que poderia escalar na mítica Antilha ou no Cipango. Mais: viajando ao serviço da corte portuguesa, Colombo superara já o Bojador, e, assim, a concepção da “zona tórrida”. Não tendo convencido suficientemente portugueses e espanhóis, permanece um mistério por que Fernando e Isabel lhe patrocinariam, embora parcamente, a viagem. Em mistério permanece também a fonte que lhe teria dado a conhecer que a 700 léguas a ocidente das Canárias havia terra firme – ao «segredo» de Colombo (Martinez:26,27), que logo revestiria a descoberta de um sentido providencialista, responderam alguns cronistas da época com a tese do «protonauta»: único sobrevivente de um navio que estivera já nas índias, e que, socorrido por Colombo, lhe contara o segredo. Valcárcel Martinez é peremptório a afirmar que Colombo, fortemente marcado pelas obras de Polo e Mandeville, «[…] não sentiu para si descobrir nada que se desconhecesse […]» (1997:26,27), e como aqueles, procurava o ouro e as especiarias de Cipango e Catai. Assim sendo, nem as «dificuldades linguísticas e ontológicas» na apreensão da novidade do Novo Mundo face ao Velho condicionariam a «leitura comercial» daquela descoberta: ao afirmar que o ouro do Novo Mundo permitiria iniciar a conquista de Jerusalém pelos Reis Católicos, Colombo sabia reforçar a importância da sua empresa e posição; por outro lado, o reconhecimento do Paraíso Terreno reforçava o sentido providencialista da descoberta – elementos que «testemunham a forte componente medieval da mentalidade de Colombo […e…] uma forte preocupação do almirante na aquisição de honra e fama e inclusão no estado social dos poderosos.» (Martinez:29), que poderíamos dizer renascentista. Mas será que a afirmação de Martinez é inteiramente válida? A irrealidade da descrição geográfica do oriente de Polo ou Mandeville, gerada ao gosto das aspirações cristãs, adequa-se quase perfeitamente ao espaço americano ou ao que Colombo primeiro apreende deste: terra de abundância, onde mesmo se pode situar o Paraíso, e cuja população aguarda a palavra de Deus... ou contra Ele está. Quase perfeitamente, porque as concepções que levam Colombo pensar que chegara às Índias são as mesmas que o levam a

estranhar a natureza e gentes daquele novo espaço – Edmundo O'Gorman dirá «sob o domínio do seu desejo, a realidade foi transfigurada» (O´Gorman in Martinez:27), e parece nisso mais certo que Martinez. De novo mais certo que Martinez, que mesmo se parece contradizer na discussão da contribuição de Colombo para a «invenção» da América, O´Gorman dirá que o encontro de Colombo é tão caracterizado pela invenção como pela descoberta. Colombo sabia-se descobridor de um «Mundu Novus», mas o providencialismo que envolvera a descoberta – quer alimentado pelos que querem estender o evangelho àquela terra, como pelos que pretendem dar continuação à Reconquista – e a necessidade de persistir na existência de riqueza que possa motivar o patrocínio de uma segunda viagem prestam-se suficientemente às suas aspirações. Quando afirmou «Yo vengo de las Indias», Colombo não se equivocava já: ainda que o Novo Mundo recebesse velhos nomes e ideias, perdendo «a sua especificidade geográfica e etnológica para se sumir na problemática da alteridade» (Mason in Kropfinger:470), esse passaria a ser o preço a pagar pela sua recepção. Para seu infortúnio e da sua fama, viveria o suficiente para assistir à chegada de Vasco da Gama à Índia e à revelação da quarta parte do mundo por Vespúcio. Morreria antes que Waldseemüller publicasse na sua Cosmographiae Introductio (1507) o nome América, em honra de Vespúcio, para designar o novo continente descoberto; antes que Balboa tivesse cruzado o istmo do Panamá (1513), ou que Magalhães fizesse a sua viagem de circumnavegação (1520). Depois de Colombo, a afirmação de Pérez de Oliva a propósito da sua segunda viagem, «mesclar o mundo e dar àquelas terras estranhas a forma da nossa» (Hérnan Pérez de Oliva, História de la invención de las Yndias. In Elliot , El Viejo Mundo y el Nuevo – 1492-1650), passaria a conhecer a força do ferro sobre a das projecções mentais. . Américo Vespúcio, ou a América na Primeira Pessoa Numa carta a Lourenço de Médici, Vespúcio escreve: «eu descobri um continente habitado por maior variedade de povos e animais [que] a nossa Europa, a Ásia, ou mesmo África […]» (in Martinez:30). Na Europa do Renascimento, tal afirmação na primeira pessoa agitará muito mais o meio intelectual do que Colombo agitara. Talvez a vasta formação e cultura humanistas ou a posição de Vespúcio nos meios intelectuais centro-europeus tenham importado à aceitação da sua afirmação e na atribuição do seu nome ao Novo Mundo; contudo, e não fosse já a demanda da fama, Vespúcio beneficia também do desinteresse de alguns cronistas espanhóis por Colombo, já patente na questão do «protonauta». O sentimento de Hispania victix, que não só nomeia uma obra de López de Gómara, como caracteriza o júbilo nacionalista em que a Espanha recém-formada vivia, consagra mais os interesses do estado do que os de Colombo. Não eram poucos os autores espanhóis a aceitar a

tese do «protonauta», e, ao fazê-lo, não reforçavam o sentido providencialista da descoberta de Colombo, como Las Casas; antes faziamrecair a grandeza desse feito sobre Espanha. Já a outros, mais entretidos com a evangelização ou defesa dos indígenas, como Acosta, Mendieta, ou Garcilaso de la Vega, o nacionalismo providencialista de Gómara ou Fernández de Oviedo nada importaria. Finalmente, para os que recusavam a tese do «protonauta», como o filho de Colombo, Fernando, «A questão não era trivial, pois que a eleição do homem encerrava o tipo de ideias e ideais que os cronistas projectavam sobre o Novo Mundo.» (Martinez, 1997:35). Promulgadas as Capitulações de Santa Fé (1492), que consagravam os direitos de Espanha, os cronistas espanhóis devem ter considerado que bem podiam deixar a disputa da descoberta a dois italianos – resolução bem patente na sua opção por Índias Ocidentais. Defendendo igualmente a tese do «protonauta», Vespúcio leva a melhor sobre Colombo num baptismo que Waldseemüller justificaria assim: «[…] não vejo nenhuma razão para alguém justamente se opor a chamar a esta terceira parte Ameriga […] isto é, a terra de Amerigo, ou América, derivada de Amerigo, o seu descobridor […]» (Waldseemüller in Mateus: 288,289). Viajando em 1501 e 1502 com os portugueses ao longo da costa brasileira, Vespúcio teria compreendido que aquela terra era parte de uma massa continental muito maior. A Colombo não faltariam imitadores e concorrentes, como Ojeda, Juan de la Cosa e Yañez Pinzon, que o haviam acompanhado na primeira viagem; mas é em Vespúcio que a sua desgraça e descrédito retumbam. Não fosse este um homem capaz de estabelecer a ponte entre a descoberta e o conhecimento humanista da época, para mais centrado em Itália e nos Países Baixos; e tivesse Colombo reconhecido a quarta parte do mundo e não a Índia, ou nascido em Espanha, e o Novo Mundo teria recebido outro nome. Se Colombo não fosse já um visionário, «[…] porque nele prevaleciam os interesses e as paixões práticas […] e uma obsessão em justificar as suas afirmações, de provar a realização das suas promessas e de ver asseguradas as recompensas estipuladas», sê-lo-ia junto do realismo de Vespúcio, em que «[…] não obstante as suas origens mercantis, o factor decisivo continua a ser a curiosidade científica.» (Gerbi:50). Vespúcio introduz com deleite a novidade no conhecimento europeu, mostrando que esta não é o sonho de Colombo, antes o resto a que este não dera importância. A Descoberta da América: encantos e desencantos europeus .A Recepção da América: «Modos de Fazer Mundos» O espírito europeu convivia há muito com o mítico e o maravilhoso para que a descoberta do Novo Mundo surpreendesse sobejamente – à relação com a tradição clássica e medieval, junta-se agora a procura humanista das mesmas tradições, compulsada pelos intelectuais do Renascimento. Se acaso o Novo Mundo ainda não existia nos mapas ou

tampouco nas grelhas de conhecimento europeias, outros mundos havia em que a Europa projectara já tudo o que lhe fugia num plano terreno. Assim, a descoberta não criou como deslocou para a realidade os mundos que até ali haviam estado num plano meramente conceptual. Mas um referente real não implica a aceitação do seu próprio sistema de recepção ou da forma como quer ser compreendido e a descoberta da América vem provar isso mesmo, com a Europa a servir-se dos sistemas que configurara longamente, e da suas concepções. Nas palavras de J. H. Elliott, os cronistas das Índias foram os principais agentes da «incorporação do Novo mundo no horizonte cultural da Europa» (1995:31), e, não obstante as dificuldades colocadas por esta incorporação, que certamente variaram a cada autor, reconhece-lhe quatro etapas – a observação, a descrição, a propagação, e a compreensão – que operam a passagem de uma contemplação primeiro física e depois intelectual da nova informação. Ainda que promova uma aproximação de dois mundos, a cada uma destas etapas estão inerentes riscos, que reflectem barreiras mentais e preconceitos europeus: poucos atingiram a última das etapas. Na constituição de uma visão do Novo mundo, «a tradição, a experiência e a curiosidade» (Elliott:33) parecem ser, independentemente dos interesses e da formação dos observadores, condicionalismos “naturais” do processo de incorporação. Na sua proposta de «[…] ilustrar e comentar alguns dos processos que operam na feitura do mundo.» Nelson Goodman (1995:44) sistematiza a formação de um mundo a partir de outro. A sua proposta é tão mais clara quanto mais esses processos – composição e decomposição; enfatização; ordenação; supressão e completação; deformação – se reconhecem e combinam como «modos de fazer mundos». Aplicada ao processo de incorporação do Novo Mundo no Velho, a proposta de Goodman conceptualiza toda a projecção europeia sobre a América – o que se projecta sobre o novo continente não é o real, mas o que este sugere à conceptualização do homem europeu. Por outras palavras, o Novo Mundo apresenta um conjunto de signos que a Europa lê com o seu próprio sistema de leitura. Da informação vária que a descoberta proporciona, a que primeiro se presta a uma leitura europeia e a uma primeira projecção é geográfica e cartográfica. A necessidade da referência ou registo cartográfico impõe a nomeação imediata do observado. Num processo que designa por «Baptismo do(s) Novo(s) Mundos», Maria da Graça Ventura considera a toponímia «[…] como discurso sobre o mundo, ou seja, como um esquema aplicado a um campo de referência […] baseado em critérios de funcionalidade e evocação.»: a toponímia funcional atenta na forma, cor, referentes cénicos, na valoração, e na referência cronológica; a evocativa nas efemérides religiosas, na referência mítica, na similitude com um espaço ausente, e num referencial político (2002:283-303).

Em suma, não é o que o Novo Mundo é, mas o que apresenta à leitura europeia que é registado no processo de incorporação – seja qual for a etapa que um observador alcance, deriva da observação e qualquer projecção perpassa pelo sistema/modo de leitura por que constrói o novo. A incorporação da América no conhecimento europeu não se deu sem inúmeros condicionalismos, de que o maior será sempre o ser-se incorporado e a posterior compreensão dessa condição. Não é de crer, contudo, que a imaginação europeia tivesse sido cerceada pelo encontro com o real, não só mantendo as suas concepções, como até os seus próprios sistemas de leitura. Por outro lado «a exigência de distanciamento de realidade mais próxima e conhecida […] característica das construções utópicas, impõe um abandono gradual dos limites americanos por outros mais longínquos e exóticos, menos marcados pelo homem.» (González:63) e a transposição das concepções europeias parece acompanhada pelo aparato psicológico que as concebera e mantivera. Como dirá José Boixo, «[…] a fantasia sobre as terras americanas teve um impacto mais que considerável sobre as mentes dos conquistadores e descobridores do século XVI, e perdurou, inclusivamente, nos séculos XVII e XVIII.» ([s.d.]:75). Assim, há uma América concebida, de projecções e leituras; há também uma América que se opôs a tudo isso; mas não haverá também uma América que se inventou? .A Geografia e a Natureza Americanas Na verdade, também o Novo Mundo, pela curiosidade, improbabilidade geográfica ou riquezas naturais, se prestou a receber as concepções europeias. Depois de 2400 milhas e 36 dias de viagem, Colombo cria-se no Cipango, ponta insular e mais oriental da Catai que Polo descrevera, e a sua observação, fosse pela incompreensão, incapacidade de reconhecimento ou pela dúvida e reserva, está condicionada. Dirá Gerbi, «As suas reacções face à natureza americana não são nunca frias observações científicas, mas “reacções”, umas vezes de comovido entusiasmo, outras vezes de reprimida e mascarada desilusão.» (1992:26). Daí que o seu legado naturalista seja diminuto, quer como europeu que descobriu o Novo Mundo, quer na comparação com outros autores. À primeira vista, a fauna americana parece-lhe escassa, contrastando com a flora «[…] tão disforme que a sua diversidade é a maior maravilha do mundo.». Contudo, Colombo espanta-se com a forma e cor dos peixes, «[…] tão disformes dos nossos que é maravilha […]» e com «[…] aves e passaritos de tantas formas e tão diversas das nossas que é maravilha […]» (Colombo in Gerbi:29). Diversa e surpreendente, a natureza parece-lhe num plano maravilhoso, que, como que reconhecendo que não alcançara as Índias, converte para o plano real dos seus interesses económicos e dos de Espanha. Já Vespúcio, fosse pela imensa curiosidade científica e formação humanista, fosse porque também o ocupava a divisão das possessões ibéricas, que muito configuraram a sua

apreensão daquele continente, parecia mais realista, revelando particular interesse pela natureza, sobre que largamente se debruça. Parece ser mesmo pela natureza que Vespúcio sustenta que não é aquela terra uma ilha, senão um continente inteiro, que, assim reconhecido, mais parece impor um estudo aprofundado, e das suas gentes, caracterizadas como uma espécie humana, cuja «incivilidade aumenta a dignidade científica.» (1992:55). Mas se acção dos dois viajantes se ficaria essencialmente pela descrição, o que a segue acabaria por pôr em contacto a natureza dos dois mundos – se o índio fora, e continuaria a ser reconhecido como um elemento da natureza americana, e a alteração desse sistema produziria efeitos muito mais extensos e diversos, o choque natural reveste-se da grandeza de todo um choque cultural. Quando Colombo tornou ao Novo Mundo pelo final de 1493, levava consigo 1500 colonizadores, e inúmeras espécies de plantas e animais domésticos – agentes de uma transformação que condicionaria a vida dos colonizadores e das populações autóctones, e que afectaria o equilíbrio natural de todo um continente. Se a importância do cavalo e de outros animais europeus para as populações americanas não é de descurar, menos o é a cultura de cana-de-açúcar, que depois cederia parte da sua importância às culturas do café e do cacau. Alimentadas pela mão-de-obra escrava, condicionariam a visão do índio e trariam ao continente americano os escravos negros. Mas o elemento que mais efeitos teria é o que levaria, pelo menos nas descrições de Las Casas e Oviedo, à morte de milhões de indígenas: doenças disseminadas pelos conquistadores e colonizadores e às quais o Novo Mundo não saberia resistir. O seu efeito é de tal forma nefasto que não só precede, nalguns lugares, a chegada de conquistadores e bandeirantes, como envergonha Oviedo, no eufemismo de que os índios se haviam «apoucado» (Fernández de Oviedo in González:61). Em suma, a natureza americana não foi, e até tardiamente, entendida fora de uma leitura eurocêntrica, mas nem por isso menos tomada pela novidade e pela surpresa. Contudo, tal não parece ter correspondido a um respeito de descobridores, conquistadores, e colonizadores, se mesmo tal noção existia à época. Se os seus interesses foram quase sempre comerciais, nem a maravilha de Colombo nem o interesse naturalista de Vespúcio condicionariam, ainda que a caracterizem, tal ocupação. As particularidades de Vespúcio e Colombo são substituídas por uma visão totalizande e apostada em reconhecer-se na geografia e natureza americanas e assimilá-las de todo e como um todo. Não são de desconsiderar, contudo, os seus efeitos na mentalidade material da Europa de quinhentos.

.O Índio Ainda que a acção espanhola se tenha centrado em áreas densamente povoadas e mais civilizadas, onde a própria autoridade do conquistador pudera substituir a das chefias

locais sem grande resistência, a primeira imagem que os europeus formaram do índio foi integrando grupos com formas de organização social “pouco” complexas, cuja actividade recolectora e a nudez ingénua adequavam à ideia de paraíso projectada no Novo Mundo. Não demoraria muito até que compreendessem a diversidade das populações indígenas, e, se acaso as particularidades de cada grupo não fossem reconhecidas à luz das concepções europeias, o contacto com as civilizações mesoamericanas e andinas permitiria diferenciar duas ou até várias realidades civilizacionais. Atendo-se, em particular, numa descrição antropológica, derivada de uma maior formação humanista, os cronistas evangelizadores dividiam-se na descrição do índio: à representação da ingenuidade e bondade intrínsecas em Acosta ou Las Casas é contraposta a imagem da ferocidade, crueldade e da antropofagia de autores como Gómara, Ginés de Sepúlveda ou Bernal Diaz del Castillo. Para uma mentalidade marcada pela filosofia aristotélica, a condição do índio era inequívoca, quer para os conquistadores, quer para os clérigos, que logo o subjugavam aos seus distintos interesses. Aristotelicamente, a escravatura era não só aceitável, como justa: vejam-se Las Casas e António Vieira, que, para preservar o índio, aceitavam a escravatura negra. Desta forma, a discussão não se parece centrar na escravatura, mas somente na condição índia – qual dos dois grupos definidos por Aristóteles devia o índio integrar? O dos que mandam ou o dos que obedecem? Se a descoberta da América viera problematizar as concepções europeias, o índio seria o tópico central, uma vez que não só impõe uma reflexão sobre a sua condição, como obsta a uma colonização não comprometida com o humanitarismo cristão, ainda que este tenha chegado à América sem grandes comprometimentos, que só chegariam com uma americanização da visão dos cronistas evangelizadores. Tal discussão constitui mesmo uma ameaça à ordem social da Cristandade, uma vez que, num momento em que qualquer ideia de ecumenismo pré-reformista teria já ardido face à imposição do dogma romano, de novo relança a discussão do modelo cristão, e tudo o que esta encerra de heresias e cultos pagãos. À Igreja Católica impunha-se explicar como podia agora o índio integrar aquele dogma, ou o relato bíblico. Entendem uns não tem alma; outros que pode assim servir os propósitos comerciais da Europa; outros, ainda, que integra uma das dez tribos perdidas de Israel anunciada nos Esdras. Mas importa compreender o índio, a fim de melhor promover a sua assimilação cultural e religiosa, ou dominação militar. Na sua singularidade e também nas suas semelhanças com outros povos bárbaros em que a Europa se detivera já antes, o índio representa um estado natural que ora integra o Paraíso, ora se impõe erradicar deste. No centro da descoberta e da discussão reformista europeia, o índio e a terra que habita anunciam a católicos e protestantes, respectivamente, a manutenção da unidade da

Cristandade ou um retorno à pureza da palavra de Cristo – a conversão deve ser imediata. Enquanto uma legião de missionários e frades procede à conversão do índio, e uma legião de soldados ao seu extermínio, também na Europa os estados se vão encobrindo das discussões teológicas para experimentar novas formas de condicionamento social, cuja transposição, ainda reforçada pela protecção indigenista conferida pelas Leyes Nuevas, parece evidenciar como a Europa se quer projectar modelar e completamente na América. À medida que as estruturas do poder se fixam, a conversão reveste-se de maior importância: como os estados europeus haviam mostrado pela Inquisição ou Caça às Bruxas, a conversão não só trará o índio para as fileiras cristãs, como normativizará o seu comportamento até à previsibilidade. À luz das suas concepções, o homem europeu não fora capaz de receber a singularidade das crenças índias, pelo que as não reconhecia ou as remetia para a idolatria e a “simplicidade” das suas práticas religiosas era vista como uma incapacidade para a compreensão de ritos mais elaborados ou artificiosos, preteridos face ao descanso ou à caça. Porém, ao abandonar a Europa atrás dos sonhos de riqueza ou fugido às confrontações políticas e religiosas, o europeu trouxera consigo o medo, ainda acentuado pelas particularidades do novo continente – de modo que até a vida recolectora dos índios lhe parecia uma ameaça, e a prática da caça, somente reservada à aristocracia na Europa, uma sobreposição à sua condição de colonizador. No Diário da Primeira Viagem, Colombo relata que «lexos de allí avía hombres de un ojo y otros com hoçicos de perros que comían los hombres […] devían de ser del señorio del Gran Can que los captibavan.» (Colombo in Kropfinger:466). Tal relato faria mais do que associar a antropofagia ao Novo Mundo: considerando que os Caniba serviam o Grande Khan, Colombo projectava no índio essa imagem indistinta que o bárbaro, e em especial o tártaro tinham nas concepções europeias. Não estranhará, pois, que cem anos mais tarde, pintores europeus como Bry ou van der Stralt continuem a representar o índio como um germânico, não só porque nunca haviam conhecido nenhum, mas também porque era no norte da Europa que a sua formação humanista ainda situava o bárbaro. Não estranhará que, para onde quer que olhassem, clérigos e militares passassem a reconhecer as mesmas práticas pagãs e desviantes que haviam combatido na Europa e que urgia agora combater ali. Gómara parece categórico a afirmar que «[…] qualquer um que fracasse nos povoamento daquelas terras não faz uma boa conquista; sem conquistar aqueles territórios as povoações não serão convertidas.» (in Adorno:221), e afirmá-lo pressupõe que o índio não é um digno povoador da sua terra e que a sua conversão só deve importar aquando da completa conquista (ocupação) da mesma. De facto, são poucos os que arriscarão ir tão longe como Las Casas na defesa do índio, chegando mesmo a declarar que «está provado que muitos povos antigos tinham costumes tão ou mais bárbaros que aqueles dos índios.» (in

Adorno:215) e a fazer referência a Cabeza de Vaca, cujas atribulações da expedição haviam levado a comer um companheiro morto (Ibidem: 216). Segundo Elliot (apud Keen:106), tudo isto guinda a uma mudança de atitude para com os índios, desta feita mais violenta e descrente na sua bondade. Mas, seja pela aceitação da sua incivilidade, seja pela crença na sua bondade natural e predisposição para a conversão, muitos persistem ainda na sua defesa – e há-os entre aqueles que se comprazem na glória do conquistador como entre os que se descartam a um discurso nacionalista. Entre os primeiros, Cieza de Léon, cujas descrições da conquista não escondem os «maus tratamentos» (in Martinez:161) dados aos índios; entre os demais, Las Casas, cujo «radicalismo verbal e conceptual extremo» (Martinez: 170) reflecte a tragédia índia que nem os grandes feitos podiam encobrir. A atenção conferida à discussão da condição índia faz perigar a ordem social europeia. Num retorno cultural das próprias projecções dos cronistas evangelizadores, a condição humana, “americana ou europeia”, não pode deixar de ser discutida. Da questão índia e da própria situação europeia, formar-se-ão posteriormente as bases do Direito Natural e do Iluminismo – questionando os horrores e crueldades da sua acção sobre a América, a civilização europeia pode bem questionar os seus sistemas económicos, políticos, religiosos e filosóficos (Keen:102) – duvidar, enfim, da sua civilidade. Crendo ter abordado largamente os processos mentais de incorporação da América pela Europa, reconhecendo os pontos em que tal incorporação levou a uma resistência ou a uma inovação nas grelhas de conhecimento europeias, cumpre-se ora concluir este trabalho. Um preâmbulo histórico, e as abordagens ao estudo da geografia, da natureza, e do homem, em dois períodos distintos, pré e pós descoberta, deveriam permitir opor o que inicialmente se perfilava como duas realidades distintas. Mas nem os dois períodos se opõem sobremaneira, nem as realidades se distanciam para além dos limites de uma só realidade. O preâmbulo histórico inicial, ainda que curto, permite compreender que a contiguidade entre a Idade Média e Moderna não é apenas temporal. O estudo das concepções geográficas, naturais e antropológicas que o segue permite, por sua vez, mostrar isso mesmo, pois que se profundamente marcadas pelo legado cultural clássico-pagão e cristão no período que precede a descoberta, as grelhas de conhecimento renascentistas assim continuarão posteriormente. A negação humanista da transmissão deste legado pela via medieval, fortemente apostada em inaugurar um novo período histórico, parece desligada do mundo, gerando profundas contradições para os que de hoje contemplam a descoberta da América como o coroar de um período áureo. Contudo, abordar a resistência ou a aceitação da inovação da América sem conhecer a Europa que lhe resiste é não compreender a Idade Moderna e as suas contradições;

é não compreender toda a extensão do processo de incorporação, pois que a Europa resistirá pela afirmação de toda a sua cultura, e não somente com a que a visão áurea do Renascimento lhe atribui; é não compreender, essencialmente, que na imagem da Europa que resiste à América se esconde a imagem real de uma Europa que resiste a si própria. O capítulo A Recepção da América: «Modos de Fazer Mundos» aborda definitivamente os processos de incorporação, sucintamente sistematizados pelos autores apresentados, como reflexo de uma visão/concepção em espelho de uma Europa que se quer reconhecer no Novo Continente – ainda que este possua semiologias própria, os sistemas de compreensão são europeus, pelo que todo o processo de incorporação é hermenêutico. É neste ponto que as fontes cronísticas se revelam essenciais, quer pela informação que veiculam, quer pelos processos hermenêuticos que evidenciam. Importa, então, atentar nas marcas de resistência e aproximação à América. Da resistência, pode-se dizer que advém de dois motivos: o enraizamento da cultura europeia, e a desilusão americana. Não só porque detinha uma cultura profunda e secularmente arreigada, que o relativo isolamento mais ampliou, mas também porque se entendia à cabeça da descoberta e da conquista e dominação, a Europa resistiu à novidade. Como se os processos de incorporação não incluíssem já barreiras mentais e preconceitos suficientes, a Europa conquistadora obsta conscientemente a uma completa integração, que se traduz na recusa do particular, preterido por uma visão de conjunto distanciada, que em muito justifica o “desrespeito” para com as populações autóctones. Tal desrespeito acentua, mais tarde, o segundo dos motivos de resistência. A desilusão chega com a novidade: a América dissolve sonhos de riqueza, utopias e paraísos terrestres, e, ao fazê-lo, dissolve o encanto em que se tem. Tampouco permite à Europa estender-lhe a ideia da cruzada evangélica, substituída pela mortandade e pela ganância que oporia conquistadores e estados. Perante o fim trágico das grandes civilizações americanas a consciência europeia é sacudida e tomada pelo pessimismo. Mas é nesta esta Europa resiliente que se reconhecem as inovações trazidas pelo processo de incorporação. A descoberta pusera em causa a concepção ptolomaico-cristã do mundo, e assim toda uma tradição de crença na Antiguidade e na doutrina cristã, mas trouxera a necessidade de novas projecções e referências; pusera em causa as concepções aristotélicas da condição humana, mas trouxera a discussão antropológica; questionara mitos e crenças em seres e mundos extraordinários, mas trouxera a profusão das espécies que renovado interesse naturalista classifica e cataloga. Talvez a lentidão dos processos de incorporação não permita reconhecer uma transformação imediata – então, se a América põe em causa, ao invés de contrariar directamente os preconceitos e barreiras mentais europeus, é porque além de lhe resistirem lenta e suficientemente, é entre estes que as suas representações se forjam. Só

muito tarde a América parece encontrar processos inversos aos da incorporação – para que tal aconteça irá formular as suas próprias concepções da Europa, igualmente marcadas pelo preconceito e incompreensão. Desta forma, é de crer que a América não é só projectada e inventada, mas que boa parte se inventou, ou reinventou, quer atenuando a resiliência da recepção europeia, quer preparando uma “resposta” cultural à Europa. Mas daquele primeiro processo de incorporação importará notar, e para finalizar, o que parece ser o aspecto mais importante do contacto com a América. Se a incorporação resulta de um jogo de espelhos, é certo que a Europa se vislumbrou mesmo no outro lado do Atlântico. Resistência e aproximação não são só um efeito, mas também uma causa dessa projecção. Se até aí a Europa não se conseguira produzir uma imagem de si mesma, a América é um espelho que lhe permite contemplar-se à devida distância. A Europa que se reconhece cada vez mais na destruição das civilizações ameríndias, na destruição de uma natureza que dissera edénica, na destruição dos sonhos em que se projectara é a Europa que se questiona, e a conscientemente procura dar o salto até ao Iluminismo. Bibliografia e referências bibliográficas: AAVV (2000) Historia común de Iberoamérica. Madrid, Edaf e Morales:127-139. ADORNO, Rolena (1992) «The Discursive Encounter of Spain and America: The Authority of Eyewitness Testimony in the Writing of History». The William and Mary Quarterly (April): 210-228. BOIXO, José Carlos González (s.d.) «La Recepcion en Europa de la “Novedad” Americana a traves de los Cronistas de Indias Utopia». Em Maria J. A. Maurin, Manuel B. Rodriguez, José L. C. Gonzalez (coord.)La Frontera, Mito y Realidad del Nuevo Mundo: 75-92. CARVALHO, João Carlos F.A. De (2003) Ciência e Alteridade na Literatura de Viagens – Estudos de Processos Retóricos e Hermenêuticos. Lisboa, Ed. Colibri . DELUMEAU, Jean (1994a) A Civilização do Ocidente Medieval. Lisboa, Ed.Estampa, Col. Nova História, Vol.I. – (1994b) A Civilização do Ocidente Medieval. Lisboa, Ed. Estampa, Col. Nova História, Vol.II. EISENSTEIN, Elizabeth L. (2003) Le Rivoluzioni del Libro – L´Invenzione della Stampa e la Nascita dell´Età Moderna. Col. Biblioteca, Bologna, Ed. Il Mulino. ELLIOTT, H.J. (1995) El Viejo Mundo y el Nuevo – 1492-1650. Madrid, Ed. Alianza. FERNANDEZ-ARMESTO, Felipe (1987) Before Columbus. University of Pennsylvania Press, Philadelphia. GERBI, Antonello (1992) La Naturaleza de las Indias Nuevas – de Cristóbal Colón a Gonzalo Fernández de Oviedo. México D.F., Fondo de Cultura Económica. GONZÁLEZ, José Luís Chamosa – «Utopia y Realidad en el Descubrimiento de América». Em Maria Maurin, Manuel Rodriguez, José Gonzalez (coord.). La Frontera, Mito y Realidad del Nuevo Mundo: 51-74. GOODMAN, Nelson (1995) Modos de Fazer Mundos. Porto, Ed. Asa: 44-55. KEEN, Benjamin (1990) «Visión del Índio en los Siglos XVI y XVII». Em La Imagen del Indio en la Europa Moderna; Madrid, CSIC:101-117.

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