Resistência popular, memória e religiosidade: a Festa de San Pedro em Acteal

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RESISTÊNCIA POPULAR, MEMÓRIA E RELIGIOSIDADE: A FESTA DE SAN PEDRO EM ACTEAL1 Júlio da Silveira Moreira Pontifícia Universidade Católica de Goiás Endereço eletrônico: [email protected]

Hermanos: No morirá la flor de la palabra. Podrá morir el rostro oculto de quien la nombra hoy, pero la palabra que vino desde el fondo de la historia y de la tierra ya no podrá ser arrancada por la soberbia del poder. Nosotros nacimos de la noche. En ella vivimos. Moriremos en ella. Pero la luz será mañana para los más, para todos aquellos que hoy lloran la noche, para quienes se niega el día, para quienes es regalo la muerte, para quienes está prohibida la vida. Para todos la luz. Para todos todo. Para nosotros el dolor y la angustia, para nosotros la alegre rebeldía, para nosotros el futuro negado, para nosotros la dignidad insurrecta. Para nosotros nada. Exército Zapatista de Libertação Nacional, 1996

1. Introdução Acteal é uma comunidade a 50 Km de distância de San Cristóbal de las Casas e próxima ao povoado Chenalhó, na região dos Altos do estado mexicano de Chiapas. É uma região montanhosa próxima à Selva Lacandona, habitada por várias etnias indígenas relacionadas aos mayas, entre elas tzotzil e tzeltal. A razão pela qual Acteal se tornou conhecida em nível nacional e mundial foi um massacre ocorrido em 1997, e que por sua vez remonta ao cenário de terrorismo de Estado instalado após o levante do Exército Zapatista de Libertação Nacional, em 1994. O cenário era de ataques de grupos paramilitares, com desocupações forçadas, queimas de casas e execuções sumárias. A coletividade de Acteal se formou a partir de deslocados internos2, grupos de famílias que haviam sido expulsas de suas terras em razão do conflito armado e se instalaram em acampamentos naquela região. Ali, se afirmaram como pueblo creyente (uma comunidade reunida em torno da fé cristã), formando a organização Sociedad Civil Las Abejas. Se posicionaram como neutros diante do conflito entre insurgentes e forças oficiais. Em 22 de dezembro de 1997, aproximadamente 300 pessoas da

1 Trabalho apresentado ao VII Congresso Internacional de Ciências da Religião (realizado na PUC Goiás entre 8 e 11 de abril de 2014), no GT21, Hermenêutica, história e discursos: entretelas, intervenção e mobilização sociais. 2 Vale lembrar que, no Direito Internacional, os deslocados internos são figuras equivalentes às de refugiados (porém que não cruzaram uma fronteira entre Estados) e merecem proteção e imunidade pelas forças em conflito.

comunidade estavam reunidas em sua capela, em vigília e oração pela paz, quando um grupo de homens armados com facões, facas e armas de fogo de uso exclusivo do Exército, cercou a capela e disparou contra os que estavam fora e dentro dela. A maior parte conseguiu fugir montanha abaixo, se escondendo entre valas e árvores, e mesmo assim foram perseguidos e massacrados. Foram assassinadas 45 pessoas, incluindo homens, mulheres e crianças, mais 4 bebês mortos no ventre de suas mães. Os sobreviventes não deixaram a comunidade, e até hoje estão ali, sobrevivendo e trabalhando em suas terras, cultivando milho e feijão, realizando seus cultos e celebrando sua resistência e sua luta, que dão existência à comunidade. A região onde estava a capela é o centro social, político e espiritual da comunidade – chamada de Terra Sagrada dos Mártires de Acteal. Ali repousam as 45 vítimas do massacre, e foi construída uma nova igreja. No 22 de cada mês, eles realizam celebrações de memória. A cada aniversário do massacre, realizam uma grande cerebração, de três dias, aberta a visitantes (ativistas, apoiadores, pesquisadores, jornalistas, etc.), destinada a contar a todos o que aconteceu e clamar pela responsabilização. E em junho, durante 3 dias, realizam a celebração a São Pedro, o padroeiro da comunidade. Este trabalho busca relatar minha experiência durante esse festejo. O que apresento aqui é um relato de aspectos culturais de uma festa religiosa de carácter indígena, em uma comunidade que sobrevive e resiste pelo trabalho da memória, transcendendo e inspirando a luta dos povos de todo o mundo pelo fim da opressão.

2. Sobre o trabalho da memória O que explica que a comunidade tzotzil de Acteal tenha se mantido unida e organizada, em vez de se dispersar após o massacre de 1997. Em minha análise aponto duas razões: (1) a perda de ilusão no Estado e a decisão em lutar e construir a vida da comunidade através da autonomia; (2) o trabalho da memória, a celebração e relato do massacre como reafirmação da comunidade. Sobre a primeira razão, não caberá neste trabalho, uma análise mais aprofundada, associada a uma compreensão da cosmovisão indígena ligada com as características do movimento de libertação em Chiapas, e que desemboca na concepção política de autonomia. No caso de Acteal, essa concepção foi reforçada não só diante da prática de opressão dos governantes, mas pelo próprio massacre

que culmina essa prática. Abaixo transcrevo um escrito que está pintado na entrada da comunidade3: Há 20 anos nós, As Abelhas, acreditávamos na democracia institucional. Tínhamos esperanças que os governantes e os partidos políticos nos escutariam e que os povos originários seriam respeitados. Porém, tudo foi uma ilusão, mas aprendemos muito com essas mentiras e enganações. Aprendemos muitas coisas e graças a isso somos o que somos hoje. Já não acreditamos em nenhum partido político, nem em um governo imposto de cima. As mulheres e os homens das Abelhas têm fortalecido seus pensamentos e corações. Nossa luta e construção de autonomia tem crescido e caminha. Aos 20 anos de “As Abelhas”, não pedimos permissão ao mal governo sobre como queremos viver, lutar e cuidar da nossa Mãe Terra, território e recursos naturais. As Abelhas somos e seremos sempre os guardiães da memória e da esperança.

Escrito na entrada de Acteal. Foto: Júlio S. Moreira

Sobre a segunda razão, o trabalho da memória. Aqui está o instigante fato de que os sobreviventes de Acteal não evitam falar do que se passou, pelo contrário,

3

Todas as transcrições cujo original está em espanhol foram traduzidas por mim para o português. Deixo de transcrever o original para dar uma dinâmica maior à leitura.

relatam diariamente suas estórias para quem esteja interessado em conhecer. Os relatos são denúncia, mas, mais que isso, são o que traz sua identidade e existência coletivas. Por isso, fazem celebrações de memória todos os meses, e uma grande celebração todos os anos. A memória celebrada faz ressurgir o massacre como consciência histórica, como negação do mundo do opressor e afirmação da utopia de um novo mundo impregnada na consciência coletiva. Assim, a celebração, ao mesmo tempo que traz a dor, afirma a resistência. O moradores de Acteal não querem esquecer, pois é a memória que permite que eles sigam existindo enquanto comunidade. Eles existem para contar a todos o que aconteceu. E cada dia que estão existindo, estão derrotando o seu opressor. Manuel Vázquez Luna, ou Manuelito, tinha 12 anos quando sobreviveu ao massacre. A cada celebração anual, ao se encontrar com os visitantes, perguntava se queriam ouvir uma piada, uma adivinhação ou uma canção4. Para ele, era fundamental fazer as pessoas rirem, captar o riso na face dos seus interlocutores para que mantivesse sua própria razão de viver. Quase toda a sua família foi morta no massacre, dentro da capela onde estavam. No próprio local, Manuelito relata: Em 22 de dezembro de 97 eu estava ali onde ficaram mortos. Eu fiquei de baixo de 3 cadáveres aí embaixo. Eu estava sentado embaixo. Alguns ficaram acima e quando morreram caíram em cima de mim. Meu pai se chamava Alonso Vázquez Gómez e minha mãe, María Luna Méndez. Éramos 8 irmãs, um irmão e eu. Meus pais tiveram 10 filhos: 8 mulherzinhas e 2 meninos. Dessas 8 mulherzinhas 5 morreram, as menores, uma de dois anos e meio e uma de 8 meses. Me dói minha irmã de 8 meses. O que ela fez para que a matassem? Não fez nada mal. Por quê mataram ela e não eu, que sou bem pecador? (Molina, 2011)

Aos 26 anos, Manuelito sentia uma forte dor, que ela chamava de la chillona (a gritadora, a estridente), materializado como um tumor em sua cabeça, associado à tristeza e ao pranto, que interrompe com insights de alegria e humor ao contar piadas, adivinhações e músicas: diz que esta é “a forma de poder seguir lutando com minha organização, para que la chillona não me mate” (apud Molina, 2011). Manuelito faleceu em 10 de novembro de 2012. Nesse dia Marta Molina (2012) escreveu outro artigo, dizendo: 4 A jornalista Marta Molina e a antropóloga Yoalli Rodríguez Aguillera me relataram seus encontros com Manuelito. O testemunho dele também está presente no documentário de Javier Marmolejo, Marta Molina e Mario Martínez, El guardián de la memoria, disponível em .

Um dia escrevi sobre ele porque tinha uma história de luta para contar. Triste, mas que por sua vez encorajava outros a se organizar para conseguir a paz, a justiça e a dignidade para os povos. Manuelito era um dos guardiães da memória de sua comunidade. Hoje encarrega este papel a todos que o conhecemos e aos que algum dia pisaram na Terra Sagrada de Acteal.

Aqui está o sentido do trabalho da memória na transcendência da memória coletiva para a memória histórica, com um assumimento de responsabilidade e compromisso por aqueles que, de alguma maneira, tiveram conhecimento, direto ou indireto, do que se passou. Um dos clássicos nos estudos da memória é Halbwacks (1990), que, aliando conhecimentos de história, sociologia, psicanálise e psicologia social, explica os processos de formação da memória individual, da memória coletiva e da memória histórica. Para ele, a memória é sempre uma reconstrução seletiva do passado, pois ela está limitada à subjetividade daquele que conta, que dá seu testemunho. Por outro lado, quando aquele que conta encontra ressonância nas memórias de outros membros do grupo (ou seja, quando as memórias individuais se encontram), formase a memória coletiva, que retorna propagando-se pelas memórias individuais dos membros do grupo. A memória coletiva dá existência ao grupo ao permitir seus laços subjetivos: “os atores sociais precisam buscar marcas de proximidade que os permitam continuar fazendo parte de um mesmo grupo, dividindo as mesmas recordações” (Leal, 2012:5). Quando a memória coletiva transcende, encontrando ressonância em sujeitos externos ao grupo e formando parte da consciência social em sentido mais amplo, alcança longa duração e se torna memória histórica. É isso que dá vigor aos sobreviventes de Acteal: seu esforço por contar o que aconteceu faz com que a comunidade sobreviva, e, ao fazê-lo, também inspira a resistência em outras coletividades. Assim, a resistência de Acteal tem passado de memória coletiva para memória histórica. Baseado na psicanálise, Hugo Vezzetti (2009), diferencia o trauma e o trabalho da memória, pela linha que separa a vitimização e a resistência. No trauma, a vítima assume uma posição passiva e exclui a ideia de responsabilidade: “a extensão com que a comunidade assume para si a posição de vítima passiva dos acontecimentos é correlata a uma operação não menos ampla de recusa à responsabilidade pelo passado”. Já no trabalho da memória, a recordação é trazida como denúncia, que

pede responsabilização, e, mais que isso, como afirmação de um presente que se deseja construir de maneira coletiva: As marcas da violência e as feridas irrompem; mas, ao mesmo tempo, se se pode falar de um trabalho da memória, se podem haver responsabilidades pelo passado, é porque há ações possíveis sobre essas marcas. Este é o sentido do retorno: sua força está tanto no acontecimento como na formação que o admite e o reconhece desde o presente (Vezzetti,2009).

Assim, transmitir o passado importa em sua reconstrução, que conclama uma reconstrução do presente. O trabalho da memória se encontra sempre em reformulação pois envolve disputas de significados que traduzem enfrentamentos sociais. Assim é que Julieta Mira (2013), trazendo a noção de memórias subterrâneas de Pollack, mostra que algumas memórias, como as que tratam de situações limite – massacres, crimes coletivos, genocídios – podem permanecer por um certo tempo ocultas para uma grande parte da população, marcada pelos significados hegemônicos, mas essas memórias que resistem podem irromper, emergindo “diante de uma mudança das condições sociais que lhes permite competir pelo sentido do passado” (Mira, 2013:3). A vítima que dá seu testemunho está tomando a palavra, está fazendo sua voz, que pode ter se mantido negada, impronunciável ou inaudível por um longo período de tempo (Mira, 2013). Está, assim, subvertendo as cadeias de opressão e falando mais alto que seus opressores. É este mesmo sentido que possui o testemunho dos sobreviventes dos campos de concentração do nazismo. Muitos relatam que, mesmo durante as sevícias e torturas que viviam, totalmente submetidos ao poder genocida dos nazistas, encontravam na luta pela sobrevivência sua única forma de resistir, e sobreviver seria um meio para, ao final, testemunhar o que sofreram, e assim vencer seus opressores. Primo Levi, um sobrevivente de Auschwitz, se tornou um conhecido escritor depois que começou a escrever para registrar e divulgar o testemunho do que viveu. Levi vai além, mostrando que o testemunho de qualquer sobrevivente é sempre incompleto, porque quem passou pela situação extrema, não sobreviveu, não voltou para contar, ou não podia expressar qualquer testemunho, pois foi levado a um estado de vida que já não era vida, mesmo não sendo também morte. A situação extrema é, portanto, intestemunhável: a “testemunha integral do homem é aquele cuja humanidade foi integralmente destruída” (Agamben, 2008:87). Ainda assim, quando o

testemunho último do sobrevivente é sua impossibilidade de dar testemunho integral, aí fica evidente o testemunho integral. De alguma maneira se está dando voz a quem já não pode falar. E aí está “o que resta de Auschwitz”: resta o testemunho, resta a palavra, a linguagem.

3. Festa de San Pedro de Acteal e religiosidade Cheguei a Acteal no dia 26 de junho, com outros dois voluntários que também haviam buscado o Centro de Direitos Humanos Fray Bartolomé de las Casas (Frayba), em San Cristóbal de las Casas, para formar parte do projeto das Brigadas Civis de Observação. Os 50 Km que levam de San Cristóbal de las Casas a Acteal revelam pequenos povoados no caminho, uma estrada sinuosa entre as montanhas, pastos com ovelhas negras, criação típica dos indígenas tzotzil, pastoras conduzindo ovelhas à beira da estrada, pequenas capelas (ermitas) e santuários formados por particulares conjuntos de três cruzes verdes ou azuis com pontas arredondadas e preenchidas com traços brancos – mostrando o sincretismo do cristianismo com a cultura originária. Viajamos de pé na carroceria de uma carreta, junto com moradores. A estrada passa por montanhas acima do nível das nuvens. Descemos da carreta em frente ao monumento aos mártires de Acteal, na entrada do centro sagrado da comunidade. Descemos a longa escadaria que leva ao centro, com sua igreja, o galpão com arquibancada (como um teatro de arena) que funciona como centro de cerimônias e apresentações, o escritório da Sociedad Civil Las Abejas, o posto de sáude, a loja de roupas e adornos feitos pelas mulheres da comunidade, a cozinha coletiva, o lugar onde construirão a nova igreja, os quartos para visitantes, e algumas casas (a maior parte das casas da comunidade ficam espalhadas mata adentro). Ao chegarmos, fomos apresentados à mesa diretiva da organização local, e em seguida encaminhados ao quarto de visitantes. Nos apressamos a ir para a cozinha, onde as mulheres preparavam pozol (bebida do sul do México feita com milho e cacau) e os homens afinavam seus instrumentos. Foi a primeira vez que ouvi o toque dessa banda tradicional, com instrumentos artesanais: viola, violino, harpa, tambor, flauta, triângulo e uma corneta antiga. Esse som que se repetiria incessantemente durante toda a festa.

As mulheres usavam suas roupas típicas e os homens também. As mulheres, vestidos suntuosos de tons lilás, azul e preto, com linhas douradas, feitos por elas mesmas. Os homens, alguns usavam túnicas brancas amarradas na cintura com um cordão, com a barra batendo pouco acima do joelho, outros, a roupa do dia-dia (calça e camisa). A distinção na roupa dos homens está que a túnica branca é usada pelos, os anciãos, líderes carismáticos da comunidade e chefes de família. Com o começar efetivo da festa, eles vestem, por cima da túnica branca, um poncho de pele negra de ovelha, um lenço vermelho no pescoço e um chapéu de palha coberto com fitas coloridas. Esse grupo, juntamente com o Capitão e seus dois filhos, seria o motor da festa: são eles que saem de casa em casa, acompanhados pela banda de sopros, fazendo paradas em cada casa, onde compartilham simbolicamente pequenas doses de refrigerante, e, ocasionalmente, uma bebida local servida dentro de uma cabaça. O Capitão, que nas festas populares brasileiras é conhecido como o festeiro, é escolhido a cada ano para ser o líder principal da festa. Está sempre acompanhado de dois filhos, e as vestimentas dos três é própria e bem mais adornada: vermelha com capa branca e chapéu preto. Os três são os únicos que dançam, e em locais especiais: na porta da igreja e nas portas das casas – a dança tem, assim, um caráter de bendição.

O Capitão da festa e seus dois filhos dançam em frente à igreja. Foto: Júlio S. Moreira

As mulheres mais velhas e mães de famílias também têm uma vestimenta distintiva e celebrativa. Elas se cobrem com mantos brancos com grandes bolas bordadas, em vermelho ou preto. É manhã do dia 27. A festa ainda ensaia para começar. Os jovens da banda de sopros estão apenas chegando com seus instrumentos. Esses tipos de bandas, com seus enormes instrumentos de sopro e percussão, dão um ar de alegria típico de estados do sul do México (como Oaxaca e Chiapas). É bem cedo e algumas pessoas começam a se movimentar. A banda toca Las mañanitas (domínio popular), uma música tradicional em todo o país, para acordar a pessoa no dia do seu aniversário. Estas son las mañanitas que cantaba el Rey David. Hoy por ser día de tu santo te las cantamos a ti. Despierta, mi bien, despierta, mira que ya amaneció ya los pajarillos cantan, la luna ya se metió.

E os preparativos continuam, enquanto me convidam para ir à cozinha tomar pozol e comer tostadas com feijão. Dezenas de homens e mulheres se acumulam dentro da igreja. Vai começar a festa. O sino da igreja toca acelerada e demoradamente. A banda começa a tocar e o Capitão e seus filhos dançam na porta da igreja. E vão saindo da igreja: os anciãos da banda tradicional (aquela com instrumentos artesanais); as mulheres com seus vestidos escuros e mantos brancos, carregando incensos e flores; os homens com suas túnicas brancas e mantas negras, carregando dois estandartes triangulares com cruzes desenhadas: um branco e outro vermelho. O grupo sobe a longa escadaria que leva à estrada e por ela caminham. Chegam a uma das casas à beira da estrada e ali fazem a dança e procissões. Da casa saem os dois toritos, armações de arame em forma de touros, cobertas de fogos de artifício, que serão queimados nos atardeceres dos dois dias seguintes. O grupo retorna ao centro cerimonial e a festa continua. Durante todos os momentos da festa e também em dias normais, a igreja permanece ocupada, mesmo quando não há pessoas oficiais da igreja, por leigos da comunidade, que fazem leituras bíblicas, dão explicações e fazem orações.

Em oração na igreja da comunidade. Foto: Júlio S. Moreira

Em outro momento da festa, o Capitão e sua esposa se ajoelham diante dos estandartes e em meio à fumaça dos incensos e aos sons das bandas, e o casal é abençoado pela comunidade; os estandartes são seguidamente baixados sobre suas cabeças. As sonoridades e danças da festa dão elementos para compreender as particularidades culturais desse povo. O que eu percebia era uma dissonância enorme, com muitas expressões sonoras ao mesmo tempo, enquanto ninguém parecia responder aos sons com expressões corporais. Em certo momento, quando estavam os toritos dançando em frente à igreja, coincidiram 4 fontes de som, de tradições culturais distintas: a banda de sopros, que não parava nunca, a banda tradicional dos anciãos, a banda elétrica que tocava no palco (voz, teclado, bateria), e o sino da igreja. A igreja é controlada pela própria comunidade e, logo, as regras para tocar o sino vem da própria comunidade, o que faz que, no período da festa, o sino seja tocado muito seguidamente. Enquanto isso, só estavam se movendo as pessoas que pareciam estar designadas para isso pelo ritual: os dois que levavam os toritos, os jovens da banda de sopros, e seguidas vezes o Capitão e seus saíam da igreja acompanhados por vários homens, faziam uma volta e regressavam à igreja. Os que não estavam diretamente nesse ritual não dançavam.

A banda de sopros e percussão. Foto: Júlio S. Moreira

A banda tradicional. Foto: Júlio S. Moreira

Em outras palavras, o que eu percebi foram regras rígidas de expressão corporal. O fato de que exista muita música não significa por si só que as pessoas vão mexer o corpo e expressar sua alegria, como parece factível na nossa realidade brasileira urbana. Depois, indo a uma festa num povoado vizinho, à noite, um morador de Acteal me explicou. À noite é melhor para dançar porque ninguém está vendo. De dia, se você dança as pessoas ficarão vendo e fazendo gracejos de você. De fato, nos últimos dias da festa, à noite, homens e mulheres estavam dançando. Outro elemento importante: no território sagrado, é uma norma da comunidade que homens não podem dançar com mulheres. Os homens se agrupam de um lado e dançam à sua maneira, e as mulheres se agrupam de outro lado, e dançam à sua maneira. A razão, me explicou um menino de aproximadamente 12 anos, é que ali é um território sagrado e se buscam evitar maus sentimentos, como o ciúme, a inveja, etc., e brigas. No último dia da festa, chega o padre acompanhado de freiras e pessoal religioso. Reza a missa na igreja e abençoa a imagem de São Pedro. Os moradores saem em procissão carregando a imagem de São Pedro e da Virgem.

À noite outra banda começa a tocar: uma banda formada por jovens membros da comunidade, com guitarra, saxofone e a marimba, instrumento típico de Chiapas. A festa caminha para seu fim. Muitos dançam e celebram até mais tarde.

4. À maneira de conclusão: Tradição dos oprimidos, cultura e resistência em Acteal Para concluir, observo a relação existente entre o massacre de Acteal e a celebração religiosa de São Pedro. O lugar onde se realiza a celebração é chamado de Terra Sagrada dos Mártires de Acteal. Mesmo na festividade religiosa, estão presentes as marcas do massacre. As crianças brincam em meio às cruzes que simbolizam os mártires e vários jovens e adultos estão prontos para contar sobre como perderam seus familiares. Mesmo sendo uma celebração religiosa e normalmente interna da comunidade (não há tantos visitantes como na celebração de dezembro), há um caráter político latente, pois a existência da comunidade é em si resistência. Walter Benjamin (apud Lowy, 2005:70) nos ensina a estudar a História rejeitando a barbárie da história dos vencedores (a chamada civilização) e resgatando a tradição dos oprimidos. Todo aquele que, ate hoje, obteve a vitória, marcha junto no cortejo de triunfo que conduz os dominantes de hoje [a marcharem] por cima dos que, hoje, jazem por terra. A presa, como sempre de costume, é conduzida no cortejo triunfante. Chamam-na bens culturais. [...] Nunca há um documento da cultura que não seja, ao mesmo tempo, um documento da barbárie.

Nesta passagem, que, por sua universalidade, parece retratar o massacre de Acteal, Benjamin rejeita a cultura e a civilização como construção dos dominantes e opressores, que fazem com que sua versão da história seja a única. Reafirma esse processo na metáfora do Anjo da História baseada no quadro Angelus Novus, de Klee: um anjo que é empurrado por uma tempestade (o progresso), deixando para trás a montanha de destroços (a barbárie da cultura) sobre a qual ele gostaria de deter-se para juntar os destroços, mas não pode porque é impelido pela tempestade, que anuncia mais destroços adiante. Enquanto se afasta, e se volta para o que deixa para trás. O sujeito da história deve, portanto, escová-la a contrapelo, estudá-la sob o ponto de vista dos oprimidos, dos vencidos, como comenta Michael Lowy (2005:74):

Trata-se de ir contra a corrente da versão oficial da história, opondoIhe a tradição dos oprimidos. Desse ponto de vista, entende-se a continuidade histórica das classes dominantes como um único e enorme cortejo triunfal, ocasionalmente interrompido por sublevações das classes subalternas.

Portanto, é resgatando a tradição dos oprimidos – que se opõe à ilusão do progresso – que se pode frear o ciclo de opressão, marcando a história com as explosões de rebeldia das classes dominadas: “a consciência de fazer explodir o contínuo da história e própria das classes revolucionárias no instante de sua ação” (Benjamin, apud Lowy, 2005:123). Para projetar o futuro e lutar no presente, é preciso, ao mesmo tempo, negar a ilusão capitalista do progresso e olhar para esses momentos de explosão. A festa de San Pedro em Acteal coloca em evidência a tradição dos oprimidos. Reforça as teses contraditórias de que todo documento da cultura é, ao mesmo tempo, um documento da barbárie, e de que o contínuo da história dos opressores é interrompido por explosões de rebeldia na tradição dos oprimidos. Tudo que se vê em Acteal é marcado pela tradição e recusa à ideia de progresso. Como enfatizei em vários momentos, é a permanência-resistência da tradição, junto com o trabalho da memória, que dá existência à comunidade. Essa tradição é observada nos signos de linguagem próprios (idioma, vestimentas, instrumentos musicais, comidas e suas maneiras próprias de conceber uma festa, dança e rituais), opostos aos padrões da cultura dominante, do progresso. Essa permanência de sua identidade cultural traz implícita a sua afirmação de autonomia: “não pedimos permissão ao mal governo sobre como queremos viver, lutar e cuidar da nossa Mãe Terra, território e recursos naturais”. E assim, nesse complexo de permanência-resistência-existência, o povo de Acteal torna forte sua palavra, seu testemunho, sua memória. Transcende sua memória coletiva para a memória histórica, fazendo com que outros povos e sujeitos, diante de Acteal, reafirmem também seu compromisso em fazer explodir o contínuo da história. Assim como os sobreviventes de Auschwitz usaram sua voz, sua palavra, para vencer seus opressores, o povo de Acteal dá sentido à frase que iniciou este texto: não morrerá a flor da palavra.

REFERÊNCIAS

AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz. São Paulo: Boitempo, 2008. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Revista dos Tribunais (Edições Vértice), 1990. LEAL, Luana Aparecida Matos. Memória, rememoração e lembrança em Maurice Halbwachs. Linguasagem. 18ª Edição. 1º semestre 2012. Disponível em: . Acesso em 08 mar. 2014. LOWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio. Uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”. São Paulo: Boitempo, 2005. MIRA, Julieta. Los estudios de la “memoria” y el testimonio. El caso de la reconstrucción de experiencias de violencia extrema del pasado reciente. Instituto de Investigaciones Gino Germani. VII Jornadas de Jóvenes Investigadores. 6-8 nov. 2013. MOLINA, Marta. 14 años después de la tragedia, Acteal comparte sus lecciones de organización noviolenta. Reporting on Resistances. 27 dez. 2011. Disponível em: . Acesso em 08 mar. 2014. ______. Ahora nos toca a nosotros ser guardianes de la memoria. Otramérica. 10 nov. 2012. Disponível em: . Acesso em 08 mar. 2014. VEZZETTI, Hugo. “Demanda de memoria”. Página 12. 13 ago. 2009. Disponível em: < http://www.pagina12.com.ar/diario/psicologia/9-129864-2009-08-13.html>. Acesso em 08 mar. 2014.

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