Respeito pela fala do outro: realidade possível?

June 14, 2017 | Autor: M. Scherre | Categoria: Languages and Linguistics, Linguistic prejudice
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VERDADEIRO RESPEITO PELA FALA DO OUTRO: REALIDADE POSSÍVEL?1 Maria Marta Pereira Scherre*

Resumo: o objetivo geral deste texto é apresentar reflexões sobre o capítulo “Escrever é diferente de falar” do livro didático Por uma vida melhor, destinado à Educação de Jovens e Adultos (EJA) e aprovado pelo MEC. O objetivo específico é polemizar a noção de adequação linguística como uma via de mão única, que pode ser humanamente tão perversa como a noção de erro linguístico com base em diferenças linguísticas sociais. Palavras-chave: preconceito linguístico; adequação linguística; concordância de número; imperativo gramatical.2

“Mundo loco!!! Mundo loco!!! Mundo muito loco!!! Ou tá loco o mundo; ou tô loca eu!!!” (Scherre: 2008a, p. 147). Foi esta a exata sensação que tive quando presenciei em 2011 reações generalizadas de indignação ao livro didático do MEC Por uma Vida Melhor, na mídia televisiva, na internet, nas rodas de bar, nas mesas de almoço, nas caminhadas entre amigos. Presenciei também comentários e artigos diversos de linguistas e gramáticos, uns mais ou menos avançados, outros mais ou menos conservadores; alguns indignados, outros não. À época, nada escrevi sobre este acontecimento, que envolveu a maior discussão do fenômeno linguagem no Brasil e também a maior manifestação de preconceito linguístico e social que pude presenciar.3 Fiquei silenciosa porque, além de acometida de profunda tristeza pelas mensagens preconceituosas e raivosas que li, muitas delas postadas em redes sociais de ampla *Doutorado em Linguística pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Pesquisadora 1B do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). 1 A autora deste artigo recebe bolsa de pesquisa no país do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), a quem agradece o apoio. 2 Gostaria de agradecer a leitura atenta deste texto feita por Paula Pereira Scherre, em duas oportunidades. Procurei fazer um bom uso de suas observações criteriosas, mas eventuais incongruências que restarem são, claro, de minha inteira responsabilidade.

Ver, por exemplo, detalhes preciosos (1) no Blog do professor Virgílio de Almeida, da UnB: http:/ / w e b . m e . c o m / v i r g i l i o p a l m e i d a / p r o f v i r g i l i o / N ã o B l o g / E n t r i e s /2 0 1 1 /5/ 20_o_livro_didático_de_l%C3%ADngua_portuguesa.html. Último Acesso em 30 de maio de 2012; (2) no texto A língua, a mídia e a ordem do discurso, de Marcos Bagno (sem data); e (3) no texto Parecer técnico sobre o livro Por uma vida melhor, de Carlos Alberto Faraco (2011). 3

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divulgação, 4 achei que muito sobre o tema “variação linguística, mídia e preconceito” (foco central da discussão) já estava escrito no livro Doa-se lindos filhotes de poodle - variação linguística, mídia e preconceito (Scherre: 2008a). Achava, então, que eu não tinha nada mais a dizer. Me parecia que tudo já havia sido dito, detalhadamente, e qualquer outra coisa seria inútil e redundante. Volto agora ao tema, depois de passado o sentimento de tristeza, de estarrecimento e de impotência, que decididamente não leva a nada. Em verdade, ando pensando que somos todos meio messiânicos, ou seja, que estamos continuamente investidos do desejo de querer salvar a humanidade. Então, se eu pudesse voltar ao passado recente, mais precisamente ao dia 13 de maio de 2011, e pudesse propor uma manchete a respeito da divulgação do livro didático Por uma Vida Melhor, eu diria o que pensei à época: MEC distribui livro didático que ensina a escrever o português brasileiro padrão de forma social e culturalmente sensível, alertando os alunos da Educação de Jovens e Adultos (EJA) para a questão do preconceito linguístico.

E continuaria: Assim, caras espectadoras e caros espectadores, estamos diante de um novo momento na nossa história, com o Brasil instaurando a democracia linguística e deixando de lado a sua permanente história de violência linguística. O Brasil vai ensinar a escrever conforme as normas oficialmente vigentes, mas não vai desrespeitar a fala de milhões de brasileiros que dominam com maestria variedades menos prestigiadas. O Brasil vai um pouco mais além. Além de ensinar a escrever com eficiência, e a falar a norma culta, um dever do Estado para atender a um direito inalienável de todas e todos, vai mesmo tratar com dignidade linguística as alunas e os alunos da EJA.

E acrescentaria: Para que possam avaliar a veracidade do que estamos noticiando, sugerimos a todas as pessoas a leitura criteriosa do capítulo 1 “Escrever é diferente de falar”, do livro didático “Por Uma Vida Melhor”, de autoria da professora Heloísa Ramos, uma educadora sensível, como são milhares de professoras e professores, que atuam com valentia por este Brasil afora, em grandes centros urbanos e em pequenos recantos rurais de difícil acesso. O MEC vive hoje um momento histórico: coloca nas mãos dos alunos da EJA um instrumento valioso – o livro didático –, que vai auxiliar a escrever com eficiência; e instaura a busca da democracia linguística nas interações sociais por meio da língua falada. 4 Blog de Reinaldo Azevedo. http://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/geral/este-e-o-sacerdote-doerro-e-ele-o-burgues-do-socialismo-na-lingua-portuguesa-e-ele-quem-faz-de-lula-uma-teoria-deresistencia-linguistica/, 18 de maio de 2011. Acesso em maio de 2011.

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E enfatizaria: Imploramos com veemência a leitura e a divulgação do conteúdo do capítulo, no detalhe, para que as pessoas deste país possam participar deste momento histórico, com propriedade, com julgamento do conteúdo do livro com responsabilidade social, e não com impressões pela boca e pelo pensamento dos que, mesmo sem terem lido o referido capítulo, julgam e divulgam que o único padrão de referência para a língua falada tem de ser a fala das pessoas que detêm o poder político e social.

Esta seria, pois, a reportagem messiânica que eu faria, depois de ter lido no detalhe o capítulo um “Escrever é diferente de falar”, de autoria da professora Heloísa Ramos (Ramos: 2011, p. 11-27), que faz parte do livro didático Por Uma Vida Melhor, distribuído pelo MEC aos alunos da Educação de Jovens e Adultos (EJA), após a devida aprovação por especialistas da área. Li sim o capítulo 1 do livro, de forma cuidadosa, duas vezes, e fiquei impressionada com o fato de que muitas pessoas, que sabem ler e escrever com eficiência, não leram todo o conteúdo do capítulo e emitiram opiniões equivocadas e preconceituosas, como as que se seguem: “Cartilha aprovada pelo MEC ensina português errado pra crianças, para “incluir” os ignorantes.”5 ou “Livro usado pelo MEC ensina aluno a falar errado”6. Pela minha leitura, reitero que o objetivo central do capítulo “Escrever é diferente de falar”, do livro didático Por Uma Vida Melhor é ensinar a escrever e a falar o português brasileiro considerado culto, de forma social e culturalmente sensível, alertando, sim, os alunos com relação ao fato de poderem ser vítimas de preconceito linguístico. Em momento algum, o livro defende “que é legítimo escrever o português de forma gramaticalmente incorreta”.7 Ao contrário, repito, a educadora é bastante clara em explicitar que o objetivo central do capítulo é ensinar a escrever e a falar conforme as regras da norma culta [idealizada]. Nas palavras da autora, “como a linguagem possibilita acesso a muitas situações sociais, a escola deve se preocupar em apresentar a norma culta aos estudantes para que eles tenham mais uma variedade à sua disposição, a fim de empregá-la quando for necessário” (Ramos: 2012, p.12). O texto em questão é extremamente claro em seus objetivos, lúcido nas suas propostas e humanístico no respeito à fala do outro. SAINDO DA MATRIX. http://www.saindodamatrix.com.br/archives/2011/05/cartilha_do_mec.html, Último acesso em 30 de maio de 2012.

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6 TERRA BRASILIS EDUCACIONAL http://profdiafonsoeducacional.blogspot.com.br/2011/05/livrousado-pelo-mec-ensina-aluno-falar.html. Acesso em 30 de maio de 2012.

VEJA – Radar on line http://veja.abril.com.br/blog/radar-on-line/judiciario/justica-nega-recolhimentode-livro-com-portugues-capenga/, 22 de setembro de 2011. Acesso em 30 de maio de 2012. 7

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Da mesma forma que muitos outros colegas de profissão, professores e pesquisadores na área de Língua Portuguesa, de Linguística e de Sociolinguística, parto mesmo do princípio de que a maioria das opiniões acaloradas sobre o tema foi expressa sem a devida leitura do capítulo do livro em questão. Então, mais do que nunca, estas reações precisam ser discutidas porque elas revelam um senso comum secular e de difícil mudança que é a ideia arraigada de que há variedades linguísticas mais certas, mais bonitas, mais complexas, ou mais simples do que outras. Temos de buscar entender nossas reações linguísticas. Julgo eu, por ora, que, com relação ao fenômeno linguagem, embora as diferenças e as mudanças linguísticas sejam inevitáveis, os grupos com poder na escala social são, por excelência, ao longo da história da humanidade, demarcadores de território, desumanos, não democráticos, em todas as relações sociais, nas quais se incluem as relações por meio da linguagem. Assim, as variedades linguísticas das pessoas detentoras do poder político e social, também identitárias, têm sido utilizadas como marcas de poder, porque, neste aspecto, impera também a lei do mais forte, que rejeita sistematicamente as variedades menos prestigiadas, e todos os aspectos culturais a elas atrelados. A professora Heloísa Ramos considera, sim, naturais no português brasileiro enunciados do tipo “os livro ilustrado mais interessante estão emprestado” ou “nós pega o peixe” e “os menino pega o peixe”, mas alerta o aluno da EJA com relação ao preconceito linguístico que ele pode sofrer caso fale assim em todas as circunstâncias e diz que “o falante, portanto, tem de ser capaz de usar a variante adequada da língua para cada ocasião” (Ramos: 2011, p.15). Após comparar as construções sem concordância, da norma popular, nos termos da autora, com construções com concordância, da norma culta, também nos termos da autora, ela reafirma que, “mais uma vez, é importante que o falante de português domine as duas variedades e escolha a que julgar adequada à sua situação de fala” (Ramos: 2011, p. 16). Desta forma, entendo que a autora introduz a noção de adequação linguística como uma via de MÃO DUPLA. E talvez seja exatamente isto que mais tenha causado reações indignadas. Afinal, a noção de adequação, na maior parte das vezes, tem sido colocada como substituta da noção de erro linguístico, estipulada unilateralmente em função “das regras estabelecidas para a norma culta”, ou seja, como uma via de mão única. De forma apropriada, a professora Heloísa Ramos, além de se propor a ensinar a escrever e a falar a norma considerada culta e de introduzir a noção de adequação como uma via de mão dupla, chama também a atenção dos alunos para a possibilidade de sofrerem preconceito linguístico (na maior parte das vezes, também social). Nos termos de Scherre (2008b, p.12), o preconceito linguístico “é mais precisamente o julgamento depreciativo, desrespeitoso, jocoso e, 54

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consequentemente, humilhante da FALA DO OUTRO (embora preconceito sobre a própria fala também exista).” Sendo assim, o preconceito linguístico submete a tratamento degradante especialmente as pessoas que dominam variedades linguísticas menos prestigiadas e que por meio delas se expressam. Na minha opinião, o preconceito linguístico deveria, então, ser considerado crime, por ser contra a nossa lei maior, a Constituição de 1988, que reza, no inciso III, do artigo quinto, do capítulo 1, que “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante’’. O exercício do preconceito sobre a fala do outro é uma forma legitimada de tratamento degradante. No livro Doa-se lindos filhotes de poodle (Scherre: 2008a), o preconceito linguístico é amplamente discutido, com o objetivo de evidenciar que este tipo de preconceito não tem a ver diretamente com as noções de certo e errado das gramáticas normativas. O comportamento preconceituoso se instaura nas relações sociais. Formas de falar que revelam diferenças sociais são sempre mais sujeitas à avaliação negativa por parte dos falantes do que formas que só indicam diferenças geográficas. Esta questão foi exemplificada com pesquisas sobre concordância verbal e nominal, o foco das reações quase sempre negativas ao “livro do MEC”, e sobre a expressão variável do imperativo (fale/diga/vá vs fala/ diz/vai) em contexto do pronome você, não sujeita a avaliação social negativa. As gramáticas normativas só registram formas como fale/diga/vá em contexto do pronome você, mas há diversas pesquisas que evidenciam o amplo uso de fala/diz/vai na fala de áreas geográficas de uso exclusivo do pronome você, como Campo Grande (região Centro-Oeste) e Vitória (região Sudeste) (cf. Lima: 2005; Evangelista: 2010) e também na escrita, nas mesmas circunstâncias (cf. Andrade, Melo e Scherre: 2007). Neste texto que agora escrevo, gostaria ainda de me deter um pouco a respeito da noção de adequação linguística, que às vezes se coloca, repito, como alternativa para a noção de erro linguístico social. Sobre esta questão, quero me expressar de forma indubitavelmente messiânica. Afinal, estamos em um estado democrático de direito e temos direito de expor a nossa opinião, mesmo que indignada, como o fizeram em todos os tipos de mídia sobre o episódio aqui em destaque. E creio que temos também o direito de achar que podemos mudar a comunidade para o que consideramos melhor. Quero crer que ninguém tem a intenção de mudar a comunidade para pior, nem mesmo os psicopatas, talvez os seres humanos menos humanos, porque mais desumanos são os seres humanos, que talvez não psicopatas, roubam o dinheiro público e impedem o crescimento humano da população. Declaro de pronto, então, que considero que a noção de adequação linguística aplicada à língua falada, de forma generalizada e Linguagem & Preconceito – Maria Marta Pereira Scherre n 55

despolitizada, pode ser tão perversa quanto a noção de erro, porque pode ser também extremamente excludente, desumana e degradante. Vou buscar ser clara a este respeito, sem querer ser dogmática, embora messiânica confessa. Temos um só coração, mas somos por demais humanamente binários: temos duas cavidades no coração, com dois ventrículos e dois átrios; temos dois lados do cérebro, dois olhos com duas pupilas e duas córneas; duas sobrancelhas, duas orelhas, duas narinas, dois lábios, duas pregas vocais; dois seios, duas mãos, duas pernas, dois pés, dois rins, dois pulmões e dois intestinos; no caso das mulheres, há dois pequenos e dois grandes lábios genitais, dois ovários e duas trompas; no caso dos homens, há dois testículos. Enfim, o binarismo do corpo humano se sobressai e se expande também para, por exemplo, as dualidades corpo e alma; homem e mulher; sol e lua; fechado e aberto; perto e longe; alto e baixo; esquerda e direita; ocidente e oriente; pobre e rico; feio e bonito; gordo e magro; sim e não; certo e errado; e adequado e inadequado. Vivemos em um mundo plural - sabemos disto hoje mais do que nunca, mas a dimensão binária às vezes fala mais alto e tendemos a privilegiar as dicotomias e a ter dificuldade de conviver com as dimensões escalares ou contínuas. E o fato é que as variedades linguísticas (línguas, dialetos, registros) são todas escalares, mas temos a tendência de interpretá-las como discretas e, às vezes, binárias: sejam as variedades que denominamos de prestigiadas e não prestigiadas dentro de uma mesma língua; sejam as variedades que denominamos de línguas (português, galego, espanhol, catalão, francês, italiano, por exemplo); sejam as línguas que às vezes denominamos de variedades dialetais (português europeu, português brasileiro, português moçambicano, por exemplo) sem necessariamente serem ou sem critérios claros de suas fronteiras. Percebemos como natural a diversidade das árvores, dos insetos, das verduras, dos legumes, das frutas, das línguas separadas por grandes fronteiras geográficas e/ou políticas, o continuum do arco-íris, mas nos cegamos com relação à legitimidade comunicativa e social das variedades menos prestigiadas. Também nos cegamos diante das mudanças linguísticas inevitáveis. Ainda nos cegamos diante do fato de que variedades menos prestigiadas de uma mesma língua ou que variedades de línguas minoritárias possam ser mecanismos identitários. Negamos e, às vezes, rechaçamos este fato ou este direito humanamente legítimo. Às vezes assumimos a noção de adequação linguística de forma quase ingênua, como se pudéssemos, todas e todos, ir e vir igualmente pelas diversas vias linguísticas, sem pestanejar (na minha variedade falada até hoje, é pestenejar, com harmonização vocálica, da mesma forma que merejar, em vez de marejar). 56

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Muitos interpretam a via da adequação como uma via de mão única, que funciona apenas em direção às variedades de prestígio. Então, muitos, milhares de falantes do português brasileiro – constituído também pelas variedades com menos prestígio – talvez jamais possam por elas transitar. Além do mais, na face da terra que hoje conhecemos, o mais comum é o domínio, a subjugação e a subserviência linguística. No plano internacional, tivemos sabidamente o latim, o francês e, agora, o inglês, considerados como línguas plenas de civilização e como instrumentos de comunicação precisos e perfeitos. No plano nacional, as comunidades de fala tendem, quase infalivelmente, creio eu, a internalizar a noção de certo e errado, normalmente pautada pelas variedades faladas de grupos sociais de prestígio (longe, muitas vezes, de se pautarem por normas expressas na tradição gramatical normativa – isto é especialmente discutido por Scherre (2008a, p.115-143) no capítulo 4 do livro Doa-se lindos filhotes de poodle). Muitas pessoas internalizam mais do que isto. Internalizam a ideia de que quem não domina variedades faladas de prestígio não é capaz de discernir, não é capaz de raciocinar, não é capaz de melhorar de vida, não é capaz de perceber seus direitos, não é capaz de lutar por seus direitos. Ledo engano, especialmente se as instituições são fortalecidas. Sabemos muito bem que o real letramento escolar, a capacidade de ler e escrever com eficiência crítica (o que é completamente diferente de falar seja que variedade for), é um exímio e legítimo fator de mobilidade social, mas não necessariamente o letramento escolar nos faz mais humanos, mais generosos, seres socialmente melhores. Se fosse assim, não teríamos advogados, juízes ou políticos corruptos. Advogados e juízes são necessariamente letrados. Políticos são também na sua maioria letrados, embora isto não seja condição necessária nem suficiente para ser um bom político. É possível ser um bom político mesmo se analfabeto. Temos tido a possibilidade de ver que nosso país já cresceu em letramento escolar, mas não sei se já cresceu em relações mais humanitárias. Longe de querer só achar que o Brasil ou o mundo piorou. Pode até ser que individualmente estejamos com sentimento de maior insegurança, mas o Brasil e o mundo melhoraram no sentido de que os direitos dos cidadãos são hoje institucionalmente mais discutidos e mais assegurados. As instituições melhoraram. Hoje desmandos são denunciados (embora ainda não sejam devida e exemplarmente punidos, em especial os que são originados de pessoas de prestígio social), mas precisamos caminhar muito ainda para que possamos viver de forma mais democrática. Na busca incessante por uma convivência mais democrática, eu coloco as interações sociais mediadas por meio de variedades faladas (as escritas, por ora, eu as coloco em outro plano). No meu jeito messiânico de ver o mundo, precisamos Linguagem & Preconceito – Maria Marta Pereira Scherre n 57

democratizar as variedades faladas que são a liga de nossas interações sociais. Temos de politizar a noção de adequação linguística. Sei que a noção de certo e errado é fortemente naturalizada pela maioria dos membros das comunidades de fala. Mas a ideia de que os negros e os índios deveriam ser naturalmente escravizados pelos europeus era também naturalizada no passado, na época das grandes descobertas, que hoje sabemos que foram épocas de grandes invasões, de grandes desmandos dos povos europeus com relação, por exemplo, à África e à América do Sul. A história nos conta que a América do Sul era fortemente habitada quando os europeus aqui chegaram. A história documenta a existência de milhares de línguas, de variedades de línguas, antes e depois da colonização europeia. A história documenta a existência de duas línguas gerais de base indígena, faladas como primeira língua, depois da colonização até meados do século XIX, mais do que o próprio português, mas a hegemonia portuguesa, às vezes regada a sangue, calou e apagou da memória o plurilinguismo das terras hoje brasileiras da América do Sul, existente antes da colonização, durante o processo de colonização e, ainda hoje, depois do processo de colonização (cf. Rodrigues J.: 1983; Rodrigues A.: 1986; 1996; 2006; Freire: 2004; Scherre: 2006a; 2006b). A história registrada na tradição gramatical às vezes cala e apaga até traços da identidade linguística da língua portuguesa ditos exclusivamente brasileiros (cf. Naro e Scherre: 2007). Aí se colocam os casos de concordância naturalmente abordados pela professora Heloísa Ramos no capítulo “Escrever é diferente de falar”. E se colocam também os casos de alternância entre l e r como pobrema/problema, brusa/blusa, galfo/garfo, célebro/cérebro. Relembremos as construções linguísticas abordadas no livro didático: “os livro ilustrado mais interessante estão emprestado” ou “nós pega o peixe/os menino pega o peixe”. Em verdade, mais natural ainda seria a produção “os livro ilustrado mais interessante tão emprestado”, com redução de estar para tá, já presente em textos escritos de propaganda, por onde costumam entrar formas da fala amplamente utilizadas por todos os membros da grande comunidade de fala brasileira (ou de qualquer outra comunidade de fala). A concordância nominal e a verbal são fenômenos linguísticos variáveis no português brasileiro falado. Ocorrem menos em contextos formais e mais nas falas menos monitoradas, especialmente na fala de pessoas com menos letramento, não há dúvida, mas tende a ocorrer em maior ou menor grau na boca de qualquer falante brasileiro, em configurações estruturais extremamente previsíveis (cf., por exemplo, Scherre e Naro: 1997; 2006). Estruturas do tipo “os livro” são, sem dúvida, usuais, mesmo na fala menos monitorada de pessoas letradas. Usuais também são “as coisa tá cara” e também “as coisas tão caras”. A construção “nós pega o peixe”, por sua vez, é menos usual na fala de pessoas 58

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com mais letramento, mas, em falas de pessoas com menos letramento e mais jovens, construções como esta tendem a ocorrer em contextos de tempo presente, em oposição a “nós pegamos o peixe”, em contexto de tempo passado (Naro; Gorski; Fernandes: 1999, p. 205): assim, desfaz-se a neutralização da forma “pegamos”, registrada pela tradição gramatical para tempo presente (eu pego/ nós pegamos) e pretérito perfeito (eu peguei/nós pegamos). Mais usual ainda é “nós pegava o peixe”, em que se evita naturalmente a forma proparoxítona “nós pegávamos o peixe” (Mattos: 2010, p. 37; Rubio: 2012, p. 271). Aliás, mesmo pessoas letradas evitam algumas palavras proparoxítonas e produzem “abobrinha” e “cosquinha”. “Os menino pega o peixe” é uma estrutura que tem livre trânsito em falas menos monitoradas, também de pessoas letradas. Daí a noção generalizada de adequação: estas construções, quando ocorrem na fala de pessoas letradas, tendem a acontecer em situações menos monitoradas. Além do mais, há também evidências de que em áreas urbanas a concordância nominal e a verbal de terceira pessoa estão aumentando. Mais do que isto, há evidências de que, embora a concordância esteja aumentando, a diferença entre os diversos níveis de escolarização também está se exacerbando (cf. Scherre e Naro: 2006, p. 107-111) e se ampliando para os falantes mais jovens, revelando mudança de quantidade de presença de concordância na comunidade (cf. Naro e Scherre: 2009, p. 120). Daí, em parte, o grande estranhamento dos falantes, especialmente os da área urbana com mais letramento, revelado em reações insanas e furiosas às estruturas sem concordância consideradas como partes constitutivas do português brasileiro pela professora Heloísa Ramos. E realmente são, por mais que se queira negar e rechaçar este fato. Por que insistimos em considerar perversa a noção de adequação generalizada, de mão única? O Brasil é país em que ainda habitam muitas pessoas com pouco ou nenhum letramento escolar e a fala das pessoas sem letramento precisa ser respeitada, precisa ser ouvida, sem arrepios, sem dor nos ouvidos. As pessoas menos letradas têm de ter direito pleno de se expressarem publicamente, de conversarem com uma autoridade, em suas variedades menos prestigiadas. Caso contrário, vamos continuar silenciando uma imensidão de brasileiros que ajudam este imenso Brasil a crescer. Aprender a ler e a escrever com visão crítica e com proficiência – letramento pela escola – é um direito, mas respeito e vivência linguística democrática são direitos e deveres ainda maiores. De nada adianta cidadãs e cidadãos letrados, mas desumanos, desrespeitosos, que fazem zombaria linguística, que não sabem viver em comunidade, que não respeitam o espaço alheio, que agridem a natureza, que jogam coisas pela janela do carro, que sempre Linguagem & Preconceito – Maria Marta Pereira Scherre n 59

têm um jeitinho para tudo, que roubam o dinheiro público, que só dão vez aos amigos, independentemente a que grupo ou a que partido pertençam. A adequação linguística de mão dupla, de múltiplas vias que se entrecruzam, politizada, compartilhada, poderia, sim, ser libertadora, verdadeiramente comunicativa, verdadeiramente humana. Saber reconhecer, aceitar, respeitar e vivenciar as diferenças é dar um salto para a cidadania, para relações verdadeiramente humanas. Referências bibliográficas ALMEIDA, Virgílio http://web.me.com/virgiliopalmeida/profvirgilio/NãoBlog /Entries/2011/5/ 20_o_livro_didático_de_l%C3%ADngua_portuguesa.html. Último acesso em 30 demaio de 2012. ANDRADE, Carolina Queiroz; MELO, Fernanda G. de; SCHERRE, Maria Marta Pereira. História e variação lingüística: um estudo em tempo real do imperativo gramatical em revistas em quadrinhos da Turma da Mônica. Finos Leitores. Brasília: Jornal de Letras do UniCEUB. Ano 3, número 1, agosto de 2007. http://www.uniceub.br/periodicos/default.asp AZEVEDO, Reinaldo. http://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/geral/este-e-o-sacerdote-doerro-e-ele-o-burgues-do-socialismo-na-lingua-portuguesa-e-ele-quem-faz-de-lula-umateoria-de-resistencia-linguistica/, 18 de maio de 2011. Acesso em maio de 2011. BAGNO, Marcos. A língua, a mídia e a ordem do discurso. Texto recebido em 2011. Disponível em http://marcosbagno.com.br/site/. Consulta em 31 de maio de 2012. CONSTITUIÇÃO DE 1988 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm. Último acesso em 31 de maio de 2012. EVANGELISTA, Elaine Meireles. Fala, Vitória: o imperativo na cidade de Vitória/ES e sua posição no cenário nacional. 2010. 172 f. Dissertação (Mestrado em Estudos Linguísticos). Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2010. FARACO, Carlos Alberto. Parecer técnico obre o livro Por uma vida melhor. 2 de junho de 2011. Curitiba: Universidade Federal do Paraná. Inédito. FREIRE, José Ribamar Bessa. Rio Babel - a história das línguas na Amazônia. Rio de Janeiro: Ed UERJ, 2004. LIMA, Damaris Pereira Santana O uso do imperativo na fala de Campo Grande - MS. Dissertação (Mestrado em Lingüística). Universidade de Brasília, Brasília, 2005. MATTOS, Shirley Eliany Rocha. A primeira pessoa do plural em Goiás. In: MARÇALO, Maria João; LIMA-HERNANDES, Maria Célia; ESTEVES, Elisa; FONSECA, Maria do Céu; VILELA, Ana Luísa; SILVA, Ana Alexandra (Eds.) Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas. Évora: Universidade de Évora: p. 31-41. 60

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