Responsabilidade Civil Automobilística: por uma interpretação do artigo 927, § único fundada no princípio da solidariedade social

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PUC DEPARTAMENTO DE DIREITO

RESPONSABILIDADE CIVIL AUTOMOBILÍSTICA: POR UMA INTERPRETAÇÃO DO ARTIGO 927, §º ÚNICO FUNDADA NO PRINCIPIO DA SOLIDARIEDADE por VINICIUS AZEREDO LOPES CORRÊA DE PACE ORIENTADOR(A): CAITLIN SAMPAIO MULHOLLAND 2014.2

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO DE JANEIRO RUA MARQUÊS DE SÃO VICENTE, 225 - CEP 22453-900 RIO DE JANEIRO - BRASIL

RESPONSABILIDADE CIVIL AUTOMOBILÍSTICA: POR UMA INTERPRETAÇÃO DO ARTIGO 927, §º ÚNICO FUNDADA NO PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE por VINICIUS AZEREDO LOPES CORRÊA DE PACE

Monografia apresentada ao Departamento de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) para a obtenção do Título de Bacharel em Direito. Orientador(a): Mulholland

2014.2

Caitlin

Sampaio

Dedicatórias

Ao Coletivo Primavera, por diariamente renovar minhas esperanças na construção de um mundo melhor.

A todas as inúmeras vítimas de acidentes automobilísticos, que aguardam nas filas do Poder Judiciário mas não perdem a esperança em obter sua justa reparação.

A meu irmão, Rafael Azeredo, por todo o incentivo, força de vontade e determinação.

Ao meu avô, José Corrêa, por ter me feito gostar de Direito desde cedo.

A minha mãe, Rosângela Azeredo, por tudo.

Agradecimentos

A toda minha família pelo incentivo e pelo enorme esforço feito para tornar tudo isso possível.

A todos os meus amigos de 2HX (2009.2) por serem a melhor turma da história da PUC e por terem feito minha experiência na faculdade inesquecível.

Ao pessoal da eterna contra- corrente por terem contribuído decisivamente para a minha formação, enquanto jurista e cidadão, por meio de palestras, seminários, debates e demais eventos acadêmicos.

A minha orientadora, Caitlin Mulholland, por todo o incentivo, receptividade paciência, estímulo e broncas (necessárias!) ao longo desses 5 anos.

A todo o excelente corpo docente da PUC-RIO que possibilitou uma formação excelente, não só enquanto jurista, mas também enquanto ser humano.

Resumo Insuficiência da ideia de culpa para dar conta dos danos oriundos do desenvolvimento industrial. Surgimento de uma doutrina denominada de “doutrina do risco” apta a mudar o fundamento da responsabilidade civil da culpa em direção ao risco do desenvolvimento de uma atividade. Doutrina do risco, encontra fundamento nos princípios éticos de justiça distributiva, bem comum, bem como, fundamento constitucional nos princípios de solidariedade e dignidade da pessoa humana, que emergem depois das grandes guerras do início do século XX. Socialização dos riscos. Eclosão do artigo 927, parágrafo único no código civil de 2002, consagrando uma tendência mundial de cláusulas gerais. Risco criado, teoria que melhor coaduna-se com os princípios fundantes da responsabilidade civil objetiva. Periculosidade da atividade como cerne interpretativo do artigo 927, parágrafo único. Perfeita aplicabilidade do artigo 927, parágrafo único às hipóteses envolvendo acidentes automobilísticos, independente de proveito por parte do agente executor da atividade. Jurisprudências permanecem atreladas a ideia de risco proveito, só entendendo aplicável o artigo 927, parágrafo único para as hipóteses envolvendo transporte de cargas.

Sumário 1.Introdução .............................................................................................. 9 2. Breve Histórico da Responsabilização Civil Extracontratual Objetiva: a incessante busca pelo ressarcimento das vítimas .................... 13 2.1. Dos primórdios: Da Culpa como elemento central da Responsabilidade Civil. ................................................................................. 13 2.2. Surgimento da doutrina do risco: responsabilidade decorrente da guarda de coisas ...................................................................... 15 2.3. Risco decorrente do exercício de atividades perigosas ... 19 2.4. Breve Automobilística

Histórico

acerca

da

Responsabilidade

25

3. O Princípio da Solidariedade e a Socialização dos Riscos 31 3.1. O Bem Comum e a Justiça Distributiva .......................... 31 3.2. O Princípio da Solidariedade: Origem, Acepções e Conceitos Fundamentais ................................................................................ 34 3.3. Os Princípio da Solidariedade como Fundamento da Responsabilidade por Risco .......................................................................... 39 3.4. A Socialização dos Riscos .............................................. 44 4. A Cláusula Geral do Artigo 927, parágrafo único ........... 48 4.1 Breve Introdução ............................................................. 48 4.2 Definições de Cláusula Geral .......................................... 49 4.3 Teorias de Risco .............................................................. 54 4.4. “Atividade Normalmente Desenvolvida pelo Autor do Dano”

62

4.5 .Por sua natureza implicar risco para os direitos de outrem” ......................................................................................... 69 5. Aplicabilidade do Artigo 927, parágrafo único para os casos de acidentes automobilísticos......................................................................... 78 6. Jurisprudências relevantes .................................................. 86 6.1. Tribunais de Justiça ......................................................... 86 6.2. Tribunais Superiores ....................................................... 97 Conclusão................................................................................. 101 Bibliografia .............................................................................. 103

Lista de Abreviações CC – Código Civil Brasileiro (Lei 10.406/2002) CDC- Código de Defesa do Consumidor (Lei 8078/1990) STF – Supremo Tribunal Federal STJ – Superior Tribunal de Justiça TST – Tribunal Superior do Trabalho

1.Introdução Ao longo dos dois últimos séculos, o desenvolvimento da indústria propiciou diversas conquistas jamais imaginadas por nossos antepassados. Dentro desse contexto, pode-se destacar o desenvolvimento propiciado pela indústria automobilística que calcada na globalização e na sua intrínseca necessidade de imediatidade, promoveu uma verdadeira revolução na perspectiva que tínhamos em relação ao tempo e ao espaço. Distâncias que demoravam dias, meses, anos para serem superadas, passaram a ser superadas em poucas horas, acarretando trocas culturais que contribuem para o processo de formação de uma cultura globalizada. Contudo, o referido processo não trouxe apenas fatores positivos. Com a mecanização, problemas que antes não existiam passaram a ser recorrentes em nossa sociedade, caracterizando uma nova realidade para os operadores do direito. Neste diapasão, necessária é a superação e flexibilização de antigos institutos que já não dão uma resposta adequada aos novos anseios sociais. A indústria automobilística não foge a essa regra, pois, ao mesmo tempo que propiciou benesses para a vida em sociedade, outros problemas intrínsecos e decorrentes da industrialização puderam ser observados, dentre eles, os acidentes automobilísticos, foco do nosso estudo. Segundo dados do SIM (Sistema de Informações de Mortalidade) vinculado ao Ministério da Saúde, entre 1980 e 2011, foram registrados cerca de um milhão de óbitos derivados de acidentes de trânsito1.

1

Dados retirados de http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2013/mapa2013_transito.pdf, visualizados em 17.04.2014

10 A referida pesquisa, ainda demonstra que a média do número de mortes resultantes de acidentes automobilísticos entre 2007 e 2011 foi de 39,4 mil (trinta e nove mil e quatrocentos) por ano, ao passo que considerando o período quinquenal imediatamente anterior, ou seja, entre 2002-2006, a média foi de 34,2 mil (trinta e quatro mil e duzentos) por ano. Uma outra pesquisa, dessa vez conduzida pelo Observatório Nacional de Segurança Viária, chegou a números semelhantes. Em 2012 foram registrados 60.752(sessenta mil, setecentos e cinquenta e dois) óbitos decorrentes de acidentes no trânsito, enquanto em 2011 foram registrados 58.134(cinquenta e oito mil, cento e trinta e quatro) óbitos. A mesma pesquisa ainda relata que o número de óbitos decorrentes de acidentes automobilísticos foi muito superior ao de homicídios (52.198), por exemplo.2 Todos esses espantosos números, só nos conduzem a uma explicação: a industrialização experimentada pela a sociedade nos últimos séculos cria máquinas cada vez mais potentes e perigosas acarretando inexoravelmente, numa maior probabilidade de acidentes, ou, em outras palavras, num maior risco de danos. Todavia, tal avanço tecnológico não veio acompanhado de mecanismos jurídicos aptos a dar respostas efetivas a esse novo panorama. Os Tribunais continuam atrelados a uma ideia de responsabilidade civil fundada na culpa, o que gera uma dificuldade de reparação. Por esse motivo, as vítimas de acidentes automobilísticos têm encontrado entraves para a sua efetiva reparação, o que ocasiona a injustiças e subverte a lógica do próprio instituto da Responsabilidade Civil, idealizado justamente para ressarcir a vítima diante de um dano.

2

Disponível em http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/e-pior-ainda em 17.04.2014

11 Diante desse quadro problemático, não pode o interprete se quedar inerte. Buscar-se-á ao longo do presente trabalho, demonstrar que existe uma alternativa viável à ideia de responsabilidade civil fundada na culpa para os acidentes automobilísticos. A hipótese que dá ensejo ao presente trabalho é de que possivelmente a norma que consagraria essa efetiva reparação, já se encontra positivada no nosso ordenamento desde 2003, quando do advento do então novo Código Civil: a chamada cláusula geral de risco do artigo 927, § único do Código Civil. O presente trabalho então, tem por objetivo primordial verificar se a referida cláusula, na forma pela qual foi idealizada pelo legislador do Código Civil de 2002, pode ser aplicada às hipóteses de acidentes automobilísticos Consequentemente, caso a primeira assertiva seja verdadeira, se resolveria o problema de inúmeras vítimas de acidentes automobilísticos que não conseguem a reparação Com o intuito de obter os melhores resultados possíveis, a metodologia utilizada consistirá na análise jurisprudencial de decisões pertinentes do STJ, bem como, de alguns dos principais Tribunais de Justiça do país. Por sua vez, a pesquisa doutrinária consistirá primeiramente num mapeamento sobre o que pensa a doutrina brasileira acerca do tema, tanto numa perspectiva histórica como contemporânea. Secundariamente, consistirá numa análise especificamente sobre a cláusula geral de risco do artigo 927, § único. Por fim, buscar-se-á verificar a possibilidade da aplicação da referida cláusula para as hipóteses de acidentes automobilísticos O primeiro capítulo será destinado a analisar numa perspectiva histórica a passagem de uma Reponsabilidade Civil fundada na culpa para uma Responsabilidade Civil fundada no risco. Depois, analisar-se-á um breve histórico sobre a Responsabilidade Civil automobilística.

12 No segundo capítulo, buscar-se-á analisar os princípios fundantes da Responsabilidade Civil Objetiva, de modo a estabelecer um cerne interpretativo para todo o trabalho. No terceiro capítulo, analisar-se-á mais detalhadamente a cláusula geral de risco do artigo 927, parágrafo único numa perspectiva doutrinária. O quarto capítulo consistirá na análise da aplicabilidade da cláusula geral de responsabilidade civil objetiva aos acidentes automobilísticos. O quinto capítulo consistirá na análise jurisprudencial de decisões relevantes aos fins da interpretação proposta pelo presente trabalho. Por fim, haverá uma conclusão sobre o atual estado da ciência a respeito do assunto, bem como, uma compilação de todas as pequenas conclusões chegadas em cada capítulo.

13

2. Breve Histórico da Responsabilização Civil Extracontratual Objetiva: a incessante busca pelo ressarcimento das vítimas

2.1.

Dos

primórdios:

Da

Culpa

como

elemento

central

da

Responsabilidade Civil.

Antes de adentrar no mérito propriamente dito do presente trabalho, imprescindível é realizar um breve histórico, a fim de averiguar como chegouse ao modelo de Responsabilidade Civil que tem-se hoje. Berço de toda a família romano-germânica, o Direito Romano não conheceu a ideia de culpa em seu início. Para os romanos, não existia uma diferenciação clara entre Responsabilidade civil e Responsabilidade Penal, podendo a vítima escolher entre a imposição de pena ou o ressarcimento do dano.3 A ideia de culpa surge basicamente por dois fatores: a promulgação da Lex Aquilia em 286 a.C.4 e a formulação da ideia de pecado dentro do pensamento cristão.5 Em virtude da queda do Império do Ocidente, resultante da invasão dos povos bárbaros, alguns institutos do Direito Romano foram abandonados, dentre eles, a ideia de culpa. Está só voltará a ser estudada no século XI, quando se iniciam os estudos para formação do Digesto. 6

3

BERNARDO, Wesley de Oliveira Louzada, Responsabilidade civil automobilística: por um sistema fundado na proteção à pessoa. São Paulo. Atlas. 2009.pg 55. 4 CALIXTO, Marcelo Junqueira, a Culpa na Responsabilidade Civil, p.124, apud, BERNARDO, Wesley de Oliveira Louzada, Responsabilidade civil automobilística: por um sistema fundado na proteção à pessoa. São Paulo. Atlas. 2009.pg 55 5 BERNARDO, Wesley de Oliveira Louzada, op.cit. São Paulo. Atlas. 2009.pg 55 6 PEÑA LÓPEZ, Fernando, LA Culpabilidad en La Responsabilidad Civil Extracontratual, pg.20, apud, BERNARDO, Wesley de Oliveira Louzada, Responsabilidade civil automobilística: por um sistema fundado na proteção à pessoa. São Paulo. Atlas. 2009.pg 57

14 Contudo, a ideia de culpa como um dos fundamentos do dever de indenizar, só floresceu mesmo com a promulgação do Código Civil Francês de 1804. Oriundo da Escola de Direito Natural, tal código visava:” (...) fornecer regras universais fundadas na razão natural que servissem, a todo tempo, a todos os países, utilizando-se, para tal desiderato, da racionalização do Direito Romano à luz dos princípios emanados da razão natural”.7 Resultante da Revolução Francesa, o Código Civil Francês de 1804 transmutou suas ideias para quase todos os ordenamentos jurídicos do mundo ocidental8, consagrando assim, a Responsabilidade Civil Subjetiva em praticamente todos os países membros da família romano-germânica. Naturalmente, pelo fato do Brasil ser pertencente à mesma família romano-germânica, o nosso Código Civil Brasileiro, datado de 1916, consagrou a culpa como elemento central da Responsabilidade Civil. Dispunha o artigo 159 do referido Código Civil: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano”. Logo, o Código Civil Brasileiro de 1916 exigia que a vítima provasse que o agente causador do dano agiu com culpa, isto é, negligência, imprudência ou imperícia, para se ver reparada de um dano. Contudo, já no fim do século XIX, começou a se perceber que tal sistema não dava condições para uma efetiva reparação às vítimas. Em determinados casos, a prova da culpa se mostrava muito difícil, de modo que o agente, causador do dano restava impune e a vítima irressarcida.

7 8

BERNARDO, Wesley de Oliveira Louzada, op.cit. São Paulo. Atlas. 2009.pg 59 BERNARDO, Wesley de Oliveira Louzada, op.cit. São Paulo. Atlas. 2009.pg 59

15 Somado a isso, não se pode esquecer do notável desenvolvimento propiciado pela Revolução Industrial, que levou a eclosão de máquinas mais potentes e mais velozes. Obviamente, tal desenvolvimento também acarretou num significativo aumento do número do número de danos, tanto qualitativos quanto quantitativos. No mesmo sentido, vale fazer menção à lição de Eugênio Facchini Neto:

Até o final do século XIX o sistema de culpa (modelo subjetivo) funcionara satisfatoriamente. Os efeitos da Revolução Industrial e a introdução do maquinismo na vida cotidiana romperam o equilíbrio. A máquina trouxe consigo o aumento do número de acidentes, tornando cada vez mais difícil para a vítima identificar uma culpa na origem do dano, e por vezes, identificar o próprio causador do dano. Daí o impasse: condenar uma pessoa não culpada a reparar os danos causados por sua atividade ou deixar-se a vítima, ela também sem culpa, sem nenhuma indenização”9

Posto isso, imprescindível era o desenvolvimento de uma doutrina que pudesse

compatibilizar

melhor

o

desenvolvimento

propiciado

pela

industrialização, com a efetiva reparação das vítimas.

2.2. Surgimento da doutrina do risco: responsabilidade decorrente da guarda de coisas

Com o intuito de impedir que as vítimas suportassem sozinhas o ônus do desenvolvimento industrial, desenvolveu-se na França a chamada doutrina objetiva calcada na teoria da guarda, sobretudo pelos trabalhos de Saleilles e Josserand.10

9

NETO, Eugênio Facchini. Funções e modelos da responsabilidade aquiliana no novo código. Revista Jurídica, Porto Alegre, Notadez, n.309, ano 51, p.23-32, apud, STOCO, Rui. Tratado de responsabilidade civil : doutrina e jurisprudência. Edição, Publicação. 8. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo : Ed. Rev. dos Tribunais, 2011. 10 PEREIRA, Caio Mario da Silva. Responsabilidade Civil. 5. ed. rev. Rio de Janeiro: Forense, 1994. Pg.16

16 Raymond Saleilles em seu livro “Les acidentes de travail et la responsabilité civile” repudia veementemente a ideia de culpa, rogando por sua substituição pela ideia de causalidade. Entretanto, assevera que para atingir tal desiderato, seria necessária uma nova interpretação do artigo 1.382 do Código Francês, de modo que da análise da palavra faute, não fosse mais necessário perquirir o elemento psicológico do causador do dano.11 Vale transcrever um trecho que resume com perfeição todo o pensamento do notável jurista francês:

A lei deixa a cada um a liberdade de seus atos; ela não proíbe senão aqueles que se conhecem como causa direta do dano. Não poderia proibir aqueles que apenas trazem em si a virtualidade de atos danosos, uma vez que se possa crer fundamentalmente que tais perigos possam ser evitados, à base de prudência e habilidade. Mas, se a lei os permite, impõe àqueles que tomam o risco a seu cargo a obrigação de pagar os gastos respectivos, sejam ou não resultantes de culpa. Entre eles e as vítimas não há equiparação. Ocorrido o dano é preciso que alguém o suporte. Não há culpa positiva de nenhum deles. Qual seria, então, o critério de imputação do risco? A prática exige que aquele que obtém proveito de iniciativa lhe suporte os encargos, pelo menos a título de sua causa material, uma vez que essa iniciativa constitui um fato que, em si e por si, encerra perigos potenciais contra os quais os terceiros não dispõem de defesa eficaz. É um balanceamento a fazer. A justiça quer que se faça inclinar o prato da responsabilidade para o lado do iniciador do risco.12

Por sua vez, Louis Josserand, em seu livro “Evolutions et Actualité”, propõe o abandono de uma interpretação literal do artigo 1382 do code francês, em prol de uma interpretação histórica. Assim, entende que em virtude do aumento significativo de acidentes decorrentes do desenvolvimento de máquinas perigosas, consequência lógica e natural consiste no aumento da segurança jurídica13, para que as vítimas de tal desenvolvimento não fiquem irressarcidas.

11

DIAS, José de Aguiar. Da Responsabilidade Civil. 12ª ed. Rio de Janeiro. Lumen juris. 2012. Pg. 58 Ibid. pg 62 13 PEREIRA, Caio Mario da Silva. Op Cit. pg.18 12

17 Vale transcrever antológicas passagens do autor francês, citada por José de Aguiar Dias

temos sede de justiça, isto é, de equilíbrio jurídico, e, quando acontece um desastre, procuramos logo o responsável: queremos que haja um responsável; já não aceitamos docilmente os golpes do destino e, sim, pretendemos determinar a incidência definitiva. Ou, se quiserem, o acidente já não nos aparece como coisa do destino, mas como ato, direto ou indireto, do homem.

(...) Como poderia um operário que se feriu duramente no trabalho demonstrar a culpa de seu patrão? Como poderia o pedestre colhido por um automóvel, em lugar solitário, à noite, provar, na ausência de testemunhas – supondo-se que tenha sobrevivido ao acidente- que o carro estava de luzes apagadas e corria com excesso de velocidade? Como poderia o viajante que, durante o trajeto efetuado em estradas de ferro, caiu no leito da linha, provar que os empregados da estrada foram negligentes no fechamento da porta do carro à partida da última estação? Impor à vítima ou a seus herdeiros demonstrações desse gênero é o mesmo que lhes recusar qualquer indenização: um direito só é efetivo quando sua prática está assegurada; não ter direito e tê-lo sem o poder exercer são uma coisa só. A teoria tradicional da responsabilidade repousava manifestamente em bases muito estreitas: cada vez mais se mostrava insuficiente e perempta (...)14:

Junto com a referida interpretação que fazem do artigo 1382 do código civil francês, tais autores encontraram no artigo 1384, §1º, espaço para uma outra interpretação calcada no risco: a responsabilidade objetiva pela guarda da coisa. Nas palavras de Andre Rouast citado por Alvino Lima, tal doutrina estabelecia que: “desde que o senhor da coisa não pode desculpar-se, abandonase a ideia de culpa, estabelecendo-se uma responsabilidade objetiva, admitindose a existência de risco15”

14

DIAS, José de Aguiar. Op. Cit. Pg. 64 ANCEL, Marc. Premier Congrés International de l’ Associaciation Henri Capitant pour l aculture juridique française, cit. p. 607-609, , apud, LIMA, Alvino. Culpa e risco. 2ª ed. rev. e atual. pelo prof Ovídio Rocha Barros Sandoval- São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1998. Pg. 125 15

18 Assim, o que se aprecia não é se a conduta do agente foi diligente ou não na guarda da coisa, mas sim o próprio dano ocasionado pela coisa inanimada16. Tal interpretação foi arduamente defendida por Joserrand quando da proclamação do aresto de 13.02.1930 pela Câmara Civil Francesa, afirmando que a expressão “presunção de responsabilidade” usada pioneiramente no julgado, teria consagrado uma mudança da culpa em direção ao risco17. O desenrolar da história mostrou que Josserand estava certo. Anos mais tarde, como relata Jean Sapin, a Corte de Amiens de 21.02.1934, responsabilizou o proprietário de um café pelos ferimentos causados a um consumidor, em virtude do rompimento de um sifão, mesmo considerando que um terceiro deu causa ao dano. Assim, o fato de terceiro não poderia ser considerado como um fortuito interno18, consagrando inequivocamente o risco pela guarda da coisa. No Brasil, jamais foi consagrada uma noção ampla e abstrata das hipóteses de guarda das coisas, como fez o legislador do código napoleônico. Contudo, desde o código de 1916 foi consagrada a responsabilidade objetiva do proprietário pelos danos derivados de animais e da ruína de edifícios, o que não impede que se amplie a interpretação para consagrar a responsabilidade objetiva do guarda de qualquer outra coisa, como advoga Sergio Cavalieri19. Para os fins do presente estudo, deve-se salientar que o desenvolvimento da doutrina do risco calcada na guarda das coisas, representou notório avanço conceitual e interpretativo, contudo, insuficiente para dar conta de todos os danos decorrentes dos perigos da vida moderna.

16

LIMA, Alvino. Culpa e risco. 2ª ed. rev. e atual. pelo prof Ovídio Rocha Barros Sandoval- São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1998. Pg. 125 17 Ibid. Pg. 123 18 SAPIN, Jean. Les Assurances de responsabilité professionelle. Paris: 1938, p.42, nota 31, apud, LIMA, Alvino. Culpa e risco. 2ª ed. rev. e atual. pelo prof Ovídio Rocha Barros Sandoval- São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1998. Pg. 125 19 CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 9 ed. São Paulo. Atlas. 2010.pg. 220

19 Particularmente, dentro da responsabilidade civil objetiva, uma modalidade de reparação assume importância especial para os fins do presente trabalho: trata-se da responsabilidade civil decorrente do risco do exercício atividades perigosas, que por toda sua relevância merece um subcapítulo especial.

2.3.

Risco decorrente do exercício de atividades perigosas

Primeiramente, vale trazer à baila importante diferenciação feita por Carlos Roberto Gonçalves dentro da doutrina do risco:

Tem a doutrina adotado, dentro da teoria do risco, uma responsabilidade decorrente do exercício de atividade perigosa, tomada em sentido dinâmico, relativa à utilização de diferentes veículos, máquinas, objetos e utensílios; e outra responsabilidade, de cunho estático dos bens, que se incluem na responsabilidade pelo fato das coisas20.

Assim, não há que se confundir a responsabilidade decorrente do exercício de atividades perigosas que será aqui esmiuçada com a responsabilidade civil decorrente do fato das coisas (ou da guarda), já tratada. Mais correto sem dúvida é entender pela complementariedade das duas espécies de responsabilidade, inclusive não é absurdo dizer que a responsabilidade decorrente do exercício de atividades perigosas só existe enquanto tal, devido ao desenvolvimento da doutrina de responsabilidade pelo fato das coisas promovida pelos já citados Josserand e Sailleles.

20

GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade Civil. 9 ed. rev., de acordo com o novo Código Civil (Lei n. 10.406, de 10-1-2002).São Paulo : Saraiva, 2005.p. 258

20 Pois bem, como relata Carlos Alberto Bittar, por todo o processo de industrialização já ressaltado, verificou-se um expressivo aumento dos riscos de danos acarretados pelas máquinas. 21 Primeiramente, tal situação foi percebida nos acidentes de trabalho (e não poderia ser diferente, já que com o desenvolvimento das máquinas, quem primeiro sentiria os danos seriam os que manejassem tais equipamentos), onde o trabalhador se via na maior partes das vezes impossibilitado de obter a justa indenização, suportando por si próprio todos os ônus decorrentes do exercício de dada atividade, ao passo que o empregador que é quem em última instância lucrava com o desenvolvimento de tal atividade, restava incólume em seu patrimônio. Logo, tal sentimento de injustiça transpassou o âmbito das relações trabalhistas para permear todos os acidentes que acontecessem pelo mero exercício de uma atividade potencialmente danosa. Ademais, percebeu-se que alguns danos simplesmente não podiam ser evitados, sendo inerentes à natureza do maquinário dispensado à realização de determinada atividade, mesmo que fossem adotados todos os meios técnicos conhecidos e cogitáveis22. Urgente então era o desenvolvimento de uma nova forma de responsabilização, que levasse em conta o intrínseco risco inerente ao exercício de uma atividade potencialmente danosa e que, ao mesmo tempo, estabelecesse o princípio inerente à justiça distributiva, isto é, quem aufere o lucro com uma atividade deve suportar os ônus correspondentes23.

21

BITTAR, Carlos Alberto. Responsabilidade Civil nas Atividades Perigosas, in Responsabilidade Civil – Doutrina e Jurisprudência. Coord. Yussef Said Cahali, 2ª edição, São Paulo : Saraiva, 1988 . pg. 90. 22 COMPORTI, Marco. Esposizione al pericolo e responsabilità civile. Napoli: Morano, 1965. P. 23-24, apud, GODOY, Cláudio Luiz Bueno. A responsabilidade pelo risco da atividade- São Paulo: Saraiva, 2009. pg. 14. 23 BITTAR, Carlos Alberto. Responsabilidade Civil nas Atividades Perigosas, in Responsabilidade Civil – Doutrina e Jurisprudência. Coord. Yussef Said Cahali, 2ª edição, São Paulo : Saraiva, 1988 . pg. 90.

21 Paralelo a esse processo, na primeira metade do século XX, tem-se a eclosão de duas guerras mundiais, onde barbáries e atrocidades foram praticadas contra a vida humana. Daí em diante, todas as cartas constitucionais passaram a consagrar expressamente a dignidade da pessoa humana como valor fundamental e básico de todo o ordenamento jurídico.24 Tal processo será analisado de forma mais completa em momento oportuno. Passou-se do Estado Liberal, permeado pelo individualismo dentre outras características para um Estado Social, protetor e garantidor da dignidade da pessoa humana, do solidarismo e da justiça entre as pessoas25. Dentro da responsabilidade civil, surge uma corrente no pensamento filosófico denominada de “solidaristas”. Tal corrente:

foi desenvolvida para amparar as vítimas de riscos criados por atividades praticadas por agentes sociais (empresários) em busca de um proveito econômico que não será repartido socialmente - o que implica individualização do lucro e socialização do prejuízo26.

Com o passar do tempo, surgem dissensos dentro dos solidaristas. Eclode uma corrente que defende que a responsabilidade decorrente do exercício de atividade potencialmente danosa independente da busca de um proveito econômico. Tais correntes foram brilhantemente sistematizadas por Marco Comporti que ao escrever sobre o tema, dividiu sua obra “Esposizione al perìcolo e responsabilità civile” em duas partes: a primeira para tratar sobre a exposição do perigo pela atividade empresarial; e a outra para falar sobre o perigo da coisa ou situação pelo risco criado. Sistematizando as ideias de risco

24

GODOY, Cláudio Luiz Bueno. A responsabilidade pelo risco da atividade- São Paulo: Saraiva, 2009. pg. 14. 25 Ibid. pg. 14/15. 26 TIMM, Luciano Benetti. Os grandes modelos de responsabilidade civil no direito privado: da culpa ao risco. Revista de Direito do Consumidor. vol. 55. Jul/2005. p. 153

22 proveito e risco criado27, que serão examinadas com mais exatidão em momento oportuno. Fato é que tais concepções foram consagradas em diversos códigos mundo afora. O Código Civil italiano consagrou no artigo 2050 que:

Quem ocasiona dano a outrem no desenvolvimento de atividades perigosas fica obrigado ao ressarcimento, se não provar que adotou as medidas idôneas para evitalo28.

Por sua vez, o Código Civil mexicano imputava responsabilidade ao agente pela utilização de:

(...) mecanismos, instrumentos, aparelhos ou substâncias perigosas por si mesmas, pela velocidade que desenvolvem, por sua natureza explosiva ou inflamável, pela energia da corrente elétrica que conduzem ou outras causas análogas.

Semelhante ao Código Italiano, estabelece o Código Civil Português no artigo 493, a responsabilidade pelo exercício de atividade perigosa por sua natureza ou pela natureza dos meios empregados, excluindo a responsabilidade caso o agente se desincumba de demonstrar “que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir”29. No Brasil, a questão não seu de forma diferente. Inspirados pelos estudos dos referidos autores estrangeiros, desenvolveu-se toda uma doutrina (conhecida como objetivista ou do risco) disposta a encontrar outros meios de promover a repartição dos prejuízos e assegurar o justo ressarcimento às vítimas.

27

FERREIRA, Ademir Canelle. A exposição ao perigo como fato gerador da responsabilidade civil objetiva. Revista dos Tribunais. N 572; p.22 28 BITTAR, Carlos Alberto. Responsabilidade Civil nas Atividades Perigosas, in Responsabilidade Civil – Doutrina e Jurisprudência. Coord. Yussef Said Cahali, 2ª edição, São Paulo : Saraiva, 1988 . pg. 92 29 Ibid. pg. 92

23 Os principais precursores de tal teoria entre nós, foram Alvino Lima, Carlos Alberto Bittar, Aguiar Dias e Caio Mario da Silva Pereira, apesar de terem notáveis diferenças entre si. Em apertada síntese, tais autores entendiam que a responsabilidade civil basicamente deveria ter apenas dois elementos, ou seja, o dano e o nexo causal. Logo não haveria necessidade de se perquirir a imputabilidade ou antijuridicidade do fato danoso, o que importaria basicamente seria a verificação do prejuízo para a vítima, apurada através uma relação de causalidade30. Assim, o principal fundamento para caracterizar o dever de indenizar seria o risco inerente à dada atividade. Paulatinamente, o esforço teórico dos referidos autores foi sendo consagrado por nosso ordenamento. Contudo, ao contrário do que se supunha inicialmente, a doutrina objetivista encontrou notável espaço dentro das legislações especiais e não dentro do Código Civil, que permaneceu ao longo de todo o século XX permeado pela ideia de culpa. Antes mesmo do advento do Código Civil de 1916, sobreveio o Decreto Lei 2681 de 07-12-1912 que regulava as hipóteses de acidentes em estradas de ferro. Tal decreto estabelecia a responsabilidade da companhia ferroviária ainda que concorrente a culpa da vítima, o que representou um avanço considerável31. Igual solução foi adotada pelo Código Brasileiro de Ar (decreto lei n. 483 de 8-6-1938), pelo decreto que regulava transporte marítimo (Dec. – lei n. 116, de 25-1-1967) e pelo seguro obrigatório de responsabilidade civil para os proprietários de veículos automotores (Dec.-lei n. 73 de 21-11-66)32.

30

STOCO, Rui. Tratado de responsabilidade civil : doutrina e jurisprudência. Edição, Publicação. 8. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo : Ed. Rev. dos Tribunais, 2011 31 BITTAR, Carlos Alberto. Op. Cit. pg. 99 32 Ibid. pg. 99

24 Posteriormente, a doutrina do risco foi consagrada em outras legislações especiais, como exemplo, pode-se citar Lei 8078/90, popularmente conhecido como Código de Defesa do Consumidor, a Lei 6457/77 que regula a responsabilidade civil decorrente de danos nucleares e a Lei 7565/86, chamada de Código Brasileiro de Aeronáutica. Todos os referidos diplomas representaram inegáveis avanços em nossa legislação permitindo uma maior reparação às vítimas. Entretanto, devido ao notável avanço conceitual experimentado pelos países aqui citados (Itália, Portugal e México) que optaram por elaborar um artigo especifico, genérico e abstrato sobre responsabilidade civil por atividade perigosa, crescia o clamor dentro da doutrina objetivista brasileira para a consagração de uma cláusula geral de risco dentro da principal lei civil do país. Conforme relata Caio Mario da Silva Pereira, era crescente o apelo entre setores da doutrina, por uma disposição genérica presente na principal lei civil do ordenamento apta a sustentar a doutrina do risco 33, permitindo assim, possibilitar uma maior atividade interpretativa a cargo do magistrado. Tal movimento leva à eclosão do Parágrafo Único do art. 929 do Código Civil de 1975 (projeto 634-B) de autoria do próprio Caio Mario que assim dispunha:

“Todavia, haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para o direito de outrem.”

Tal dispositivo sobreviveu a todas as reformas e foi publicado como Parágrafo Único do art. 927 pelo Código Civil de 2002.

33

PEREIRA, Caio Mario da Silva. Op Cit. Pg.24

25 Ora considerado um dos dispositivos mais avançados do mundo em matéria de risco34, ora considerado vago e impreciso35, certo é que a positivação do referido dispositivo, consagrou todo o anseio de gerações de juristas, representando portanto um marco dentro do nosso sistema de responsabilidade civil. Contudo, por sua natureza de cláusula aberta, tal dispositivo deve ser interpretado com o máximo de parcimônia possível, sob pena de inviabilizá-lo. Em momento próprio, analisaremos todas as nuances e aspectos da referida cláusula geral.

2.4.

Breve Histórico acerca da Responsabilidade Automobilística

Mapeado minimamente o contexto na qual se insere, cabe agora fazermos um breve histórico acerca da Responsabilidade Civil Automobilística. Nos primeiros idos, a responsabilidade civil automobilística estava umbilicalmente ligada à ideia de culpa, ou seja, só se conseguia a reparação do dano, caso o ofendido demonstrasse que o ofensor houvesse agido com negligência, imprudência ou imperícia. Contudo, como nos referimos anteriormente, a revolução industrial acarretou numa notável expansão da indústria automobilística, o que por um

“ Adota, assim, solução mais avançada e mais rigorosa que a do direito italiano, também acolhendo a teoria do exercício de atividade perigosa e o princípio da responsabilidade independente de culpa nos casos especificados em lei, a par da responsabilidade subjetiva como regra geral, não prevendo, porém, a possibilidade de o agente, mediante a inversão do ônus da prova, exonerar-se da responsabilidade se provar que adotou todas as medidas aptas a evitar o dano.” (GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade Civil. 9 ed. rev., de acordo com o novo Código Civil (Lei n. 10.406, de 10-1-2002).São Paulo : Saraiva, 2005.Pg.258) 35 “Para nós, embora contendo um tipo aberto e tendo a nossa legislação, mais uma vez, sobrecarregado a responsabilidade e ampliado as atribuições dos magistrados, em primeiro e segunda instâncias, o que se critica é o fato de o Código Civil não ter enunciado, quando menos, as diretrizes e as características mínimas do que se deve considerar para definir as atividades perigosas.” (STOCO, Rui. Tratado de responsabilidade civil : doutrina e jurisprudência. Edição, Publicação. 8. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo : Ed. Rev. dos Tribunais, 2011. Pg. 208) 34

26 lado, ocasionou uma expressiva ampliação da quantidade e da potência dos veículos, por outro lado, um significativo aumento do número de danos decorrentes de acidentes automobilísticos. Dentro desse contexto, a prova da culpa mostrou-se tormentosa demais para quem sofre o dano. Percebeu-se que muitas vezes um acidente ocorria sem nenhuma testemunha ao redor que pudesse comprovar o fato, o que inviabilizava terrivelmente o ressarcimento. Como aduz Carlos Roberto Gonçalves:

O conceito tradicional de culpa nem sempre se mostra adequado para servir de suporte à teoria da responsabilidade civil, pois o fato de impor à vítima, como pressuposto para ser ressarcida do prejuízo experimentado, o encargo de demonstrar não só o liame de causalidade, como por igual o comportamento culposo do agente causador do dano, equivale a deixa-la irressarcida, visto que, em inúmeros casos, o ônus da prova surge como barreira intransponível36.

Com o fim de solucionar tal problema, começaram a surgir ao redor do mundo diferentes alternativas. Na Itália, após a edição do decreto real de 08.12.1933 verdadeira querela foi instaurada em torno da responsabilidade do condutor do veículo37. Capitaneados por De Cupis e Cozzi, a corrente objetivista defendia a responsabilidade do fato do condutor, sem necessidade de se provar se o mesmo concorreu ou não para o ato, se contrapondo a corrente subjetivista que entendia imprescindível a prova da culpa38. Na Alemanha, por sua vez, em que pese a lei de 03.05.1909 ter se mantido fiel ao princípio da culpa, algumas exceções foram consagradas. Numa delas,

36

GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade Civil. 9 ed. rev., de acordo com o novo Código Civil (Lei n. 10.406, de 10-1-2002).São Paulo : Saraiva, 2005. Pg. 784 37 Idid. Pg. 270/271 38 Ibid. Pg. 127

27 consagrou-se a responsabilidade pelo risco, nas hipóteses em que o acidente tenha sido causado por defeito do veículo.39 Suíça, Áustria e Polônia em leis do início do século passado também estabeleceram responsabilidade independente de culpa. Na Polônia e na Suíça, foi estabelecido que somente não haveria responsabilidade, caso restasse comprovada alguma excludente como a culpa exclusiva da vítima, de terceiro ou a força maior, como definem, respectivamente o código de obrigações de 1932 e a lei federal de 15.03.1932. Por sua vez, a lei austríaca de 09.08.1908, consagrou a responsabilidade civil do condutor mesmo que existentes defeitos do automóvel, impossibilitando a argumentação de fortuito interno, consagrando a teoria do risco40. No Brasil, alguns processos técnicos foram adotados para suavizar a impossibilidade de reparação decorrente da prova diabólica da culpa. Em um primeiro momento, os Tribunais passaram a relativizar a prova da culpa, possibilitando que circunstâncias do fato fossem aptas a presumir a culpa do agente causador.41 Tal processo foi intensificado pelo estabelecimento das hipóteses de presunção de culpa, ou seja, determinou-se que, em alguns casos, inverter-se-ia o ônus probatório, podendo a vítima simplesmente mostrar a relação de causa e efeito entre o ato do agente e o dano experimentado. Assim, o causador do dano, é quem deveria provar a inexistência de culpa. Para que tal tratamento seja designado a alguma atividade, deve-se elaborar um juízo a partir das ideias de probabilidade, verossimilhança e

39

Ibid. Pg 271 Ibid. pg. 272/273 41 GONÇALVES, Carlos Roberto. Op. Cit. Pg. 784 40

28 normalidade. Logo, se determinada atividade se apresenta em grau relevante, deve ser aplicada a ela a presunção de culpa42. Dentre os exemplos históricos de presunção de culpa, o mais relevante para os fins de nosso trabalho é o veículo que colide na traseira do outro que lhe vai em sua frente.43 Contudo, ainda que as presunções juris tantum representassem significativo avanço, estas ainda eram insuficientes na prática. Primeiro, porque a subsunção de uma atividade como passível de presunção de culpa, não era um processo rápido e nem pacifico. Segundo porque em várias hipóteses, vítimas de danos continuavam irressarcidas, suportando todos os ônus de acidentes. A teoria do risco só vai chegar na responsabilidade civil automobilística, a partir da ideia de teoria da guarda desenvolvida no direito francês pela interpretação do art. 1384, §1º44. Tal teoria consagra a ideia de fato da coisa, definida assim por Josserand45:

Quem utiliza uma coisa, e dela tira proveito, suporta os riscos quando a coisa causa dano, independente da prova de culpa. Basta haver relação de causalidade entre o dano e a coisa guardada, para que se caracterize a responsabilidade do guarda, que só se exime dessa responsabilidade se provar a culpa exclusiva da vítima, força maior ou caso fortuito. Nem mesmo a prova de ter agido com a diligência peculiar ao homem cuidadoso não o exoneraria do dever de reparar o dano. Sustentou ainda que, havendo dano, surgiria não apenas uma presunção de culpa, mas de responsabilidade.

42

DIAS, José de Aguiar. Da Responsabilidade Civil. Título 1. P. 115. N 44, apud. GONÇALVES, Carlos Roberto., Op Cit. Pg. 785 43 GONÇALVES, Carlos Roberto. Op. Cit. Pg. 785 44 Ibid. Pg. 785 45 RODRIGUES, Sílvio. Responsabilidade Civil. 12ª ed. São Paulo: Saraiva. Pg.101

29 No Brasil, de modo absolutamente incongruente, a teoria da guarda em matéria relativa a acidentes automobilísticos não foi consagrada expressamente pelo legislador, restando apenas alguns julgados nesse sentido46. Todavia, como já dito, paralelamente à responsabilidade pela guarda das coisas, já em fins do século XIX, se desenvolveu uma nova forma de responsabilização também calcada na ideia de risco: a responsabilidade civil decorrente de atividades perigosas. Como já devidamente estudado, tal modalidade de imputação, desenvolve-se inicialmente para acidentes decorrentes de relações de trabalho, onde os efeitos da mecanização eram sentidos com mais força. Porém, já em meados do século XX, algumas vozes vislumbravam a possibilidade de aplicação da responsabilidade objetiva calcada no risco decorrente do exercício de atividades perigosas para os acidentes automobilísticos. Em 1974 e 1984, já escreviam Wilson Melo da Silva47 e Carlos Alberto Bittar48, respectivamente:

A responsabilidade civil automobilística tem um relacionamento muito estreito com a natureza notoriamente perigosa do veículo automotor para que não se pense, desde logo, numa responsabilidade objetiva. Dessa forma, com base em elementos naturais, consideramos perigosa a atividade que, por sua condição ou pelos meios empregados (substâncias, aparelhos, máquinas e instrumentos perigosos) apresenta-se carregada de perigo (como as já citadas). Outrossim, em função de elementos jurídicos, podemos qualificar como perigosas as atividades como tal consagradas na prática legislativa e, nos países em que se discutiu a respeito, as assim reconhecidas pela jurisprudência. (..) Pode-se sustentar, com base nesses elementos, por exemplo, que não subsiste dúvida quanto à conceituação como perigosa das atividades relacionadas a transportes, seja por meio de automóveis, ou por trens, ou por aviões, e as outras já citadas.

46

CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 9 ed. São Paulo. Atlas. 2010 pg. 220 47 SILVA, Wilson de Melo. Responsabilidade civil automobilística. São Paulo, Saraiva. 1974, p 355/356 48 BITTAR, Carlos Alberto. Responsabilidade Civil nas Atividades Perigosas, in Responsabilidade Civil – Doutrina e Jurisprudência. Coord. Yussef Said Cahali, 2ª edição, São Paulo : Saraiva, 1988 . pg. 93.

30 Contudo, em que pese as afirmações datarem de meados do século passado, a afirmação de que a teoria do risco das atividades perigosas é aplicada às hipóteses de acidentes automobilísticos jamais foi explicitamente consagrada pela jurisprudência e pelas legislações. Pelo contrário, com o advento da já citada clausula geral de risco do artigo 927 do CC/2002, nunca existiram tantas dúvidas sobre a aplicabilidade da responsabilidade civil objetiva decorrente do exercício de atividades perigosas aos casos de acidentes automobilísticos. Antes de aprofundar no estudo cláusula geral de responsabilidade objetiva, cabe fazer uma breve digressão sobre alguns dos principais fundamentos filosóficos da responsabilidade objetiva que servirão como norte interpretativo.

31

3. O Princípio da Solidariedade e a Socialização dos Riscos

3.1.

O Bem Comum e a Justiça Distributiva

Aristóteles foi um dos primeiros a conceber e traçar a ideia de bem comum em associação com a noção moderna de Estado. Resumidamente, o autor entende que o Estado é a forma que a sociedade encontrou para viabilizar o bem comum aos seus cidadãos49. O bem público, é a parte do bem comum pertencente unicamente ao Estado. Segundo o autor, seria dever do Estado criar as condições necessárias para o pleno desenvolvimento da pessoa humana. Tal desenvolvimento, deve se dar em dois campos: “enquanto ser individual - e por isso irredutível à parte do todo - e social enquanto só pode se realizar totalmente em comunidade”.50 O instrumento por meio do qual o Estado vai atuar, visando garantir a todos os seus cidadãos o bem comum chama-se Direito. Todavia, ser o instrumento por meio do qual o Estado vai promover o desenvolvimento individual e comunitário dos seus cidadãos não implica necessariamente em justiça. Vários são os exemplos ao longo da história, em que o Direito emanado pelo Estado era válido, e nos quais, a solução encontrada não estava de acordo com a ideia de justiça e de bem comum (se considerarmos, o ponto de vista aristotélico-tomista). Logo, pode-se afirmar que “o direito só é justo quando promove o bem comum”51.

49

ARISTÓTELES. Política. Lisboa: Veja, 1998. 1253a., apud, WALDMAN, Ricardo Libel. Teoria do risco e filosofia do direito: uma análise jusfilosófica do parágrafo único do art. 927 do novo código civil. Doutrinas Essenciais de Responsabilidade Civil. Out/2011. vol. 2. Pg. 660 50 Idem. 51 WALDMAN, Ricardo Libel. Op. Cit. Pg. 660

32 Dois são os mecanismos de justiça por meio dos quais, o direito visa atingir o bem comum, são eles: a justiça distributiva e a justiça legal52. A justiça legal, na clássica definição de Tomás de Aquino consubstanciase: “Em uma sociedade de iguais, isto significa que o outro é considerado, simplesmente, por sua condição de pessoa humana, membro da comunidade. Assim, o que é devido a um é devido a todos e o benefício recai sobre todos53". Ou seja, “é o que constitui o laço comunitário, o caráter social do ser humano, é o que fundamenta o dever de tratar os outros como iguais em sua humanidade, pois só entre iguais é que ele se realiza.54” Por sua vez, seguindo a adotada linha da ética aristotélica-tomista, a justiça distributiva, refere-se à divisão de bens e encargos da sociedade, conforme determinada circunstância e posição que alguma pessoa tem em relação ao bem comum55. Em fins do século XIX, o projeto individualista burguês modernista, pretendia agir através de um conjunto valores, dentre os quais, destacam-se o “desenvolvimento irrestrito da ciência, dos meios e técnicas de produção, na expansão do conhecimento, no crescimento dos mercados, na certeza e confiança na razão individual e na verdade”56. O principal expoente desse modelo de pensamento foi Adam Smith, que formulou uma teoria econômica na qual a concepção “de que o maior nível de progresso e bem-estar social se alcança quando cada indivíduo, de forma egoísta, persegue os seus próprios interesses, maximizando-os”57. 52

AQUINO, Tomás. Suma teológica. Segunda parte. Caxias do Sul: UCS/Sulina, 1980. Q. 58, art. 7.º, apud, WALDMAN, Ricardo Libel. Op. Cit. Pg 660 53 WALDMAN, Ricardo Libel. Op. Cit. Pg 660 54 AQUINO, Tomás. Suma teológica. Segunda parte. Caxias do Sul: UCS/Sulina, 1980. Q. 58, art. 7.º, apud, WALDMAN, Ricardo Libel. Op. Cit. Pg 660 55 WALDMAN, Ricardo Libel. Op. Cit. Pg 661 56 GOMES, José Jairo. Responsabilidade civil na pós-modernidade: influência da solidariedade e da cooperação. Doutrinas Essenciais de Responsabilidade Civil. v.1. Out/2011. Pg. 258 57 Ibid. Pg. 258

33 Nesse contexto, os valores estimulados pela sociedade para se atingir o enriquecimento eram o estímulo a liberdade plena de contratação, tanto no campo político como no campo econômico, assim como, a garantia e manutenção da propriedade. A crença da época, era de que assim, se propiciaria a acumulação de capital e consequentemente o crescimento econômico. Para que tal modelo possa prosperar, é necessário impedir que o Estado intervenha na economia. E isso é feito por meio da criação de mecanismos jurídicos que mantenham a posição inerte do Estado. Considerando que é dever do Estado garantir o bem comum, e levando em conta que para zelar por tal objetivo, ele necessariamente deve promover a distribuição de riquezas (como inclusive determina a ideia de justiça distributiva), indubitável concluir que esse sistema jurídico impossibilita que o Estado zele pelo bem comum, o que por sua vez, inviabiliza a efetividade dos princípios de justiça. Contudo, como ensina José Jairo Gomes: O modernismo fracassou ao pretender que o progresso redimiria o homem e acarretaria o surgimento de uma sociedade melhor, sobretudo do ponto de vista ético, em razão do incremento da produção de bens de consumo com a consequente facilitação da vida. A verdade crua é que o homem não se tornou melhor; por toda parte imperam exclusões e injustiças. Tornaram-se comuns a degradação e destruição do meio ambiente, as desigualdades sociais, o egoísmo, a todo instante travam-se lutas ferozes pelo alcance de bens materiais e imateriais.58

O crescimento econômico propiciado pela Segunda Revolução Industrial e o crescente processo de industrialização não vieram acompanhados de medidas aptas a gerar a necessária distribuição das riquezas, em outras palavras, o direito foi utilizado para benefício de determinadas classes sociais (e não da

58

Ibid. Pg. 261

34 comunidade lato sensu), não cumprindo seu fim que deve ser sempre procurar atingir o bem comum. Diante de tamanho fracasso, foi necessário mudar a concepção política. E tal mudança, passa inexoravelmente pela adoção de novos mecanismos jurídicos aptos a promover o bem comum e a justiça distributiva. Nesse contexto, desenvolve-se a ideia de solidariedade.

3.2.

O Princípio da Solidariedade: Origem, Acepções e Conceitos

Fundamentais

De início, cabe fazer menção à didática lição de José Jairo Gomes, na qual afirma que existem três acepções possíveis para a ideia de solidariedade:

Sob três ângulos distintos se pode visualizar a solidariedade. Primeiramente, ela pode ser vislumbrada como sentimento humano manifestado quando do relacionamento interpessoal. Nesse nível, afloram o afeto e o cuidado para com o semelhante, além dos sentimentos de amor e amizade. De outra parte, a solidariedade adquire forte significado na seara moral ao se objetivar como ideia. Aqui, ela se apresenta como preceito moral que transcende a subjetividade e, com isso, gera quadros sociais fundamentais para a interação humana em pequenas comunidades. Por fim, a solidariedade comparece em sociedades complexas, transcendendo sobremodo as dimensões anteriores para ser compreendida como valor inspirador da organização social e das instituições que a compõem.59

Por sua vez, Maria Celina Bodin de Moraes faz uma outra diferenciação entre as diversas acepções que a palavra solidariedade pode assumir.

A solidariedade pode então ser compreendida sob diversas facetas: como um fato social do qual não podemos nos desprender, pois é parte intrínseca do nosso ser no mundo; como virtude ética de um reconhecer-se no outro (que faz do outro um outro eu próprio) ainda mais amplo do que a justa conduta exigiria( dar ao outro o que é seu);

59

GOMES, José Jairo. Responsabilidade civil na pós-modernidade: influência da solidariedade e da cooperação. Doutrinas Essenciais de Responsabilidade Civil. v.1. Out/2011. Pg. 261

35 como resultado de uma consciência moral ou de boa-fé ou, ao contrário, de uma associação para delinquir; como comportamento pragmático para evitar perdas pessoais e/ou institucionais. (...) Do ponto de vista jurídico, como mencionado, a solidariedade está contida no princípio geral instituído pela Constituição de 1988 para que, através dele, se alcance o objetivo da igual “dignidade social.60

Em suma, podemos afirmar que todos os sentidos da palavra solidariedade estão intrinsecamente ligados ao comprometimento e a reciprocidade existentes entre duas ou mais pessoas pertencentes a uma mesma comunidade. Como assinala Jean Duvignaud, a ideia de solidariedade não é nova no direito ocidental61. Contudo, foi na modernidade que pela primeira vez a ideia foi cristalizada: na ideia de necessidade de ajuda social. No curso de século XIX, tal noção foi substituída por dever de assistência. Nesse contexto, Rui Barbosa afirma:

A concepção individualista dos direitos humanos tem evolvido rapidamente, com os tremendos sucessos deste século, para uma transformação incomensurável nas noções jurídicas do individualismo restringidas agora por uma extensão, cada vez maior, dos direitos sociais. Já não se vê na sociedade um mero agregado, uma justaposição de unidades individuais, acosteladas cada qual no seu direito intratável, mas uma sociedade naturalmente orgânica, em que a esfera do individuo tem por limites inesvitáveis, de todos os lados, a coletividade. O direito vai cedendo à moral, o individuo à associação, o egoísmo à solidariedade humana.62

MORAES, Maria Celina Bodin de. “O Princípio da Solidariedade”.In PEIXINHO, Manuel Messias; GUERRA, Isabella Franco; NASCIMENTO FILHO, Firly. Os princípios da constituição de. Pgs. 174. 2001. 61 DUVIGNAUD, Jean. La solidarité, Lien de Sang et Lien de Raisson, apud, FARIAS, José Fernando de Castro. A Origem do direito de solidariedade. Rio de Janeiro: Renovar, 1998. Pg. 188 62 BARBOSA, Rui. Teoria Política. Pg. 297, apud, FARIAS, José Fernando de Castro. A Origem do direito de solidariedade. Rio de Janeiro: Renovar, 1998. Pg. 192 60

36 Nesse contexto, alguns pensadores se destacam. Podemos citar Proudhon63, Marx64 e Durkheim65, todos com concepções e modos diferenciados de conceber a ideia de solidariedade em contrapondo ao individualismo burguês. Após esse momento inicial, surge na Europa, a ideia de sociedade seguradora, segundo a qual, deveria haver um dever jurídico de solidariedade apto a prevenir e reparar as consequências decorrentes dos riscos sociais66. Foi atribuído ao Estado a necessidade de ser o provedor universal dos trabalhadores, quando estes fossem acometidos por alguma moléstia que lhes impossibilitassem de trabalhar. Desenvolvia-se então a ideia de previdência social, calcada na ideia de “eficiente-deficiente”67. Tal concepção muito atrelada a ideia assistencialista, foi bastante proeminente no período que antecedeu às duas grandes guerras. Porém, com o advento das constituições democráticas no pós-guerra, ocorreu o maior avanço na interpretação e na consolidação das bases fundamentais da ideia de solidariedade.

Para Preudhon o Estado deveria ter um “papel de grande organizador e arranjador social”. Porém, o estado não poderia sufragar a sociedade civil. O autor considerava que na lógica da solidariedade, o Estado, a sociedade civil e o mercado estão sempre únicos, numa relação complementar. (PROUDHON, Systeme des Contradictions Economiques ou philosophie de la misere, Paris, Librairie Internationale, 1867, pg. 57, apud, FARIAS, José Fernando de Castro. Op. Cit. Pg. 198) 64 “O solidarismo marxista é direcionado para a organização política da classe proletária, enquanto sujeito histórico de transformação social. Neste sentido, só a solidariedade proletária, forjada na luta de classes, é capaz de construir a verdade solidariedade. (...) o partido revolucionário é expressão de um imaginário coletivo; é a manifestação da solidariedade operária, indicando em que direção deve ser travada a luta correta”( FARIAS, José Fernando de Castro. Op. Cit. Pg. 203/204). 65 Durkheim acreditava na existência de dois tipos de solidariedade: a solidariedade mecânica e a orgânica. Em breves palavras, na solidariedade mecânica, os membros de uma sociedade são semelhantes e são ligados à sociedade formada por sua união, ao passo que na solidariedade orgânica, a “coesão social é fundada sobre as diferenciações e dessemelhanças que se completam reciprocamente”, assim “o fortalecimento da individualidade corresponde exatamente ao fortalecimento da unidade social”.( FARIAS, José Fernando de Castro. Op. Cit. Pg. 215/216) 66 FARIAS, José Fernando de Castro. Op. Cit. Pg. 192 67 MORAES, Maria Celina Bodin de. “O Princípio da Solidariedade”.In PEIXINHO, Manuel Messias; GUERRA, Isabella Franco; NASCIMENTO FILHO, Firly. Os princípios da constituição de. Pg. 175. 2001. 63

37 No Brasil, tais valores dotados de uma nova ordem axiológica, demoraram a chegar. Somente em 1988, nossa nova ordem constitucional foi instaurada, de forma que foram cristalizados na magna carta, todos os valores decorrentes das constituições mundo afora e dos tratados de direitos humanos internacionais assinados no pós-guerra. Tais valores, podem ser sintetizados, a partir de uma leitura do preâmbulo da Constituição de 1988: Um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social.68

Dentre todos os valores consagrados pela nova ordem constitucional instaurada em 1988, o principal, sem dúvida é a dignidade da pessoa humana. Nas palavras de Giselle Cittadino:“(...)a dignidade da pessoa humana, traduzida no sistema de direitos constitucionais, é vista como o valor essencial que dá unidade de sentido à Constituição Federal.”69 Ao alçar-se a dignidade da pessoa humana como o valor essencial à ordem jurídica constitucional, inevitavelmente rompe-se com o individualismo jurídico burguês. Como explica Maria Celina Bodin de Moraes:

A pessoa humana, no que se refere diametralmente da concepção jurídica de individuo, há de ser apreciada a partir de sua inserção no meio social, e nunca como uma célula autônoma, um microcosmo cujo destino e cujas atitudes pudessem ser indiferentes aos demais70.

68

Preâmbulo da Constituição da República Federativa do Brasil. CITTADINO, Gisele. Pluralismo, Direito e Justiça Distributiva: Elementos da Filosofia Constitucional Contemporânea. 4ª ed. Rio de Janeiro. Lumen Juris. 2009. Pg. 13 70 MORAES, Maria Celina Bodin de. “O Princípio da Solidariedade”.In PEIXINHO, Manuel Messias; GUERRA, Isabella Franco; NASCIMENTO FILHO, Firly. Os princípios da constituição de. Pg. 175. 2001. 69

38 Nesse contexto, a ordem jurídica de cada Estado deve contribuir para propiciar a plena efetividade do princípio dignidade da pessoa humana, o que implica num dever do Estado em assegurar meios para que cada cidadão pertencente a cada comunidade, possa desenvolver-se e construir a sua personalidade Assim, agregando a ideia de desenvolvimento da personalidade (em última análise, de dignidade da pessoa humana) e da solidariedade conclui Anderson Schreiber:“a solidariedade contemporânea não é coletivista, mas humanitária: dirige-se ao desenvolvimento não do grupo, mas da personalidade de todas as pessoas”71. O princípio da solidariedade constitui, portanto a condição necessária para que seja possível a pacífica e fecunda coexistência entre os indivíduos72. Unindo todos os valores, Pietro Perlingieri elabora uma espécie de cláusula geral de solidariedade, segundo a qual, o princípio da solidariedade consistiria no: “respeito inerente à qualidade do homem, assim como a pretensão de ser colocado em condições idôneas para exercer as próprias aptidões pessoais, assumindo a posição a estes correspondentes”73. Por todo o exposto, melhor conclusão sobre o princípio da solidariedade, não há do que a de Maria Celina Bodin de Moraes:

O princípio da solidariedade, ao contrário, é a expressão mais profunda da socioabilidade que caracteriza a pessoa humana. No contexto atual, a Lei Maior determina –ou melhor, exige – que nos ajudemos, mutuamente, a conservar nossa

71

SCHREIBER, Anderson. A proibição de comportamento contraditório: tutela da confiança e venire contra factum proprium, Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 50 72 RODOTÀ, Stefano. Il problema della responsabilità civile. p. 95, apud, MULHOLLAND, C. ; SILVEIRA, N. O. A. ; PACE, V. A. L. C. . A aplicação da cláusula geral de risco pelos tribunais brasileiros. 2012. Pg.11 (Relatório de pesquisa). 73 PERLINGIERI, Pietro. Perfis, pg. 122, apud, MORAES, Maria Celina Bodin de. “O Princípio da Solidariedade”.In PEIXINHO, Manuel Messias; GUERRA, Isabella Franco; NASCIMENTO FILHO, Firly. Os princípios da constituição de. Pgs. 176. 2001.

39 humanidade porque a construção de uma sociedade livre, justa e solidária cabe a todos e a cada um de nós.74

3.3.

O

Princípio

da

Solidariedade

como

Fundamento

da

Responsabilidade por Risco

Como já foi dito, o intuito do liberalismo do século XIX era possibilitar o crescimento industrial junto com a maior acumulação possível de capital. Nesse sentido, eram necessários mecanismos jurídicos que possibilitassem o mínimo de custos e de perdas para o empresariado burguês. A responsabilidade civil, em poucas palavras, caracteriza-se por ser:” uma fonte de obrigações, que impõe a um terceiro, que não o sujeito em cuja esfera jurídica produziu-se o dano, a obrigação de reparar os prejuízos”75. Sua função primordial é reparar o dano, subsidiariamente, pode-se falar em prevenção e punição76. Nesse contexto, como toda a disciplina jurídica da época, a Responsabilidade Civil deveria ser fundada em princípios que não atravancassem o crescimento industrial e o desenvolvimento econômico, pouco importando, o bem comum da sociedade e a justiça distributiva. Assim, a ideia de Responsabilidade Civil fundada culpa coaduna-se perfeitamente com o mencionado individualismo burguês da época77. Isso porque, ao exigir a prova da culpa no exercício de uma atividade, tal sistema estabelece um difícil mecanismo para que ocorra a reparação dos danos decorrentes de atividades industriais, fazendo com que o executor de atividades

MORAES, Maria Celina Bodin de.“O Princípio da Solidariedade”.In PEIXINHO, Manuel Messias; GUERRA, Isabella Franco; NASCIMENTO FILHO, Firly. Os princípios da constituição de. Pgs. 177. 2001 75 DUARTE, Ronnie Preuss. Responsabilidade civil e o novo código: contributo para uma revisitação conceitual. Revista dos Tribunais. Ago/2006. vol. 850. Pg 58. 76 Idem. Pg.61/62 77 Idem. Ibidem 74

40 facilmente se exima da obrigação de indenizar. Nas palavras de Ronnie Preuss Duarte:

Assim, considerando que a maior parte dos danos ocasionados no desempenho da atividade industrial eram acidentais e, portanto, inculpáveis. Eram as vítimas que suportavam o ônus do desenvolvimento da indústria, ficando os empresários, que auferiam os ganhos da atividade industrial, isentos de qualquer responsabilidade. Os custos da industrialização eram suportados pelos empregados das empresas e pelos consumidores, dado o receio (fundado, registre-se) de que a proliferação de ações indenizatórias pudesse prejudicar o desenvolvimento nacional78.

Todavia, como é facilmente perceptível, tal modelo estava fadado ao fracasso. Como já foi dito no primeiro capítulo, o aumento no número de acidentes inerentes ao desenvolvimento industrial sem reparação (e a insatisfação popular daí decorrente), bem com, a eclosão dos discursos solidaristas,

demandariam

a

necessidade

de

uma

nova

forma

de

responsabilização, calcada em novos princípios, como aduz Maria Celina Bodin de Moraes:

De fato, a evolução econômica e social tornara claro que a tradicional responsabilidade subjetiva era insuficiente, qualitativa e quantitativamente, para tutelar diversas espécies de relações jurídicas próprias da sociedade industrializada. Na nova realidade social, a reparação da vítima não poderia depender da prova impossível que identificasse quem, de fato, agiu de forma negligente para estabelecer a reparação de danos injustamente sofridos.79

Necessário seria então, o desenvolvimento de uma nova forma de responsabilização civil fundada em critérios diversos da culpa, que atendessem melhor às determinações de justiça distributiva e bem comum. A inspiração vem então das precisas lições de Tomás de Aquino:

78 79

Idem. Pg 62 MORAES, Maria Celina Bodin de. Risco, Solidariedade e Responsabilidade Objetiva. Pg. 7

41 Pode-se considerar a pena como remédio, não só reparador dos pecados passados, mas também preservativo dos bens futuros, bem como produtora do bem. Então, alguém pode ser punido sem culpa, mas não sem causa. 80 Em primeiro lugar então, deve suportar o ônus dos danos que causa, mesmo sem culpa, aquele que não pode mais adquirir ou conservar um bem, ainda que esta condição não seja imputável a culpa sua. Isto para evitar que esta pessoa continue a causar danos, ou seja, tendo em vista o bem comum.81

Paralelo a isso, calcada nos princípios da solidariedade e da dignidade da pessoa humana, emergia a corrente solidarista, conforme já foi relatado anteriormente. Dentro do Direito, tais princípios e tal visão foram incorporados pela chamada “doutrina do risco”. Vale fazer menção a longo trecho em que Maria Celina Bodin de Moraes elenca as vantagens da Responsabilidade Objetiva (fundada no risco) sob a Responsabilidade Subjetiva (fundada na culpa):

São diversas as vantagens da responsabilidade objetiva sobre o sistema da culpa. A primeira, já mencionada, é não impor à vítima uma prova diabólica (rectius, virtualmente impossível); depois, sem a exigência da prova da culpa, os processos tornam-se muito mais céleres e bem menos custosos; enfim, e mais importante, nas atividades perigosas, nas quais danos ocorrerão independentemente do grau de diligência do agente, o sistema da culpa mostra-se ineficaz porque, como demonstrou a análise econômica do direito, é incapaz de induzir no agente os níveis de atividade socialmente desejáveis. De fato, no sistema da culpa, a fim de elidir o pagamento de indenizações, basta ao agente atingir o nível de cuidado exigível, isto é, ser diligente. Se agir com diligência, não enfrentará o problema de ter que indenizar pelos danos que sua atividade causar (e se sabe que sua atividade, perigosa, causará danos de qualquer. modo) de maneira que a regra da culpa não o incentivará a adotar o volume de atividades mais adequado, do ponto de vista da redução eficiente dos danos delas derivados. O sistema da responsabilidade objetiva, ao contrário, forçará o agente a internalizar o custo de sua atividade: uma vez que, independentemente de seu maior ou menor cuidado, terá que pagar por todo dano causado, lhe convém, em seu próprio interesse, escolher o nível de atividades que acarreta a maior diferença entre a utilidade resultante da atividade e os danos por ela produzido82.

80

AQUINO, Tomás de. Op. Cit. questão 108, art. 4.º, apud, WALDMAN, Ricardo Libel. Op.Cit. g. 663 Idem. Ibidem. 82 MORAES, Maria Celina Bodin de. Risco, Solidariedade e Responsabilidade Objetiva. Pg. 8/9 81

42 Não foram poucas as correntes que competiram para estabelecer fundamentos para a adoção da doutrina do risco como forma de responsabilização civil. Dentro da doutrina do risco, há os subjetivistas que entendem que a responsabilidade deve sempre decorrer da sanção, por sua vez, esta é decorrente da violação do dever de cuidado, que inexoravelmente está associada a um comportamento tido como negativo pelo ordenamento jurídico83, o que associa a responsabilidade civil com a culpa. Tais autores vacilam por não conseguirem conceber a ideia de que a responsabilidade pode fundamentar-se em atividades lícitas84. Por sua vez, há autores que buscaram a fundamentação na ideia de equidade. Dentre eles, Alvino Lima:

A teoria do risco, embora partindo do fato em si mesmo, para fixar a responsabilidade, tem raízes profundas nos mais elevados princípios de justiça e de eqüidade. Ante a complexidade da vida moderna, que trouxe a multiplicidade de acidentes que se tornaram anônimos, na feliz expressão de Josserand, a vítima passou a sentir uma insegurança absoluta ante a impossibilidade de provar a culpa, em virtude de múltiplos fatores.85

Por sua vez, há os que partem para a análise econômica do direito, “examinando o problema em termos de eficiência, repartição de custos e prevenção de acidentes.”86 83

CASTRO, Guilherme Couto de, A responsabilidade civil objetiva no direito brasileiro. O papel da culpa em seu contexto, Rio de Janeiro: Forense, 1997 84 MORAES, Maria Celina Bodin de. Risco, Solidariedade e Responsabilidade Objetiva. Pg. 12 85 LIMA, Alvino. Op. Cit. Pg 194 86 MORAES, Maria Celina Bodin de. Risco, Solidariedade e Responsabilidade Objetiva. Pg. 13. Nesse sentido, ainda vale citar: De acordo com os teóricos da análise econômica do direito, a principal distinção que se faz entre uma e outra é em relação ao momento em que se investiga os limites da responsabilidade, isto é, quando se analisa o chamado círculo de possíveis responsáveis. No caso da responsabilidade subjetiva, esta análise é realizada em dois momentos distintos: o primeiro em que se determina o âmbito de possíveis responsáveis pelo dano gerado (potencialidade); o segundo em que se analisa, dentro deste âmbito, a infringência ao dever de cuidado devido (negligência). Já na responsabilidade objetiva, somente se analisa a primeira etapa, qual seja, a de potenciais responsáveis,

43 E por fim, o último fundamento apontado é o da doutrina do direito civilconstitucional. Tais autores afirmam que a obrigação de indenizar deve emergir do princípio da solidariedade social. Tal princípio, segundo Maria Celina Bodin de Moraes:

(...)não designa, mas funda-se em um dever. A atitude solidária conecta-se com o respeito à diferença, pelo qual a pessoa humana apreende que o outro também pertence ao mundo. O pressuposto da solidariedade é a interdependência humana. O princípio da solidariedade, ao expressar responsabilidade para com o outro, independentemente de reciprocidade.”87 (...) “Em decorrência do princípio constitucional da solidariedade social, pois, distribuem-se e socializam-se as perdas e estendem-se o mais amplamente possível as garantias à integridade psicofísica e material de cada pessoa humana. Esta é a razão justificativa, a um só tempo ética e jurídica, do deslocamento dos custos do dano (injusto ou injustificado) da vítima para os responsáveis pelo ato ou atividade bem como para os pais, tutores e curadores, empregadores etc88

Assim, insculpido na Constituição de 1988, tal princípio possibilita e garante que os custos do progresso sejam melhor repartidos dentro da sociedade. Ao possibilitar tal divisão, são atendidos também os fundamentos éticos de bem comum e justiça distributiva na concepção aristotélica-tomista. Nas palavras de Caitlin Mulholland

É aqui que se inicia a volta paradigmática no Direito de danos, de um setor que estabelecia a obrigação de indenizar atribuída aquele que age culposamente, isto é, como uma sanção a alguma violação cometida pelo sujeito (realização da justiça retributiva), para uma idéia renovadora de que a responsabilidade é dissociada da idéia de conduta culposa a ser punida (justiça distributiva)89

na medida em que esta segunda análise fica fora do âmbito de aplicação da teoria do risco. (CORDECH SALVADOR, Pablo; GAROUPA, Nuno; GÓMEZ, Carlos. El círculo de responsables: la evanescente distinción entre responsabilidad por culpa y objetiva. Working paper n° 309, Barcelona, octubre 2005. Disponível em www.indret.com .Acesso em 22.11.2005. Pg. 8, apud, MULHOLLAND, C. ; SILVEIRA, N. O. A. ; PACE, V. A. L. C. . A aplicação da cláusula geral de risco pelos tribunais brasileiros. 2012. (Relatório de pesquisa). Pg.04 ) 87 MORAES, Maria Celina Bodin de. Risco, Solidariedade e Responsabilidade Objetiva. Pg. 14 88 Idem. Pg. 15/16 89 MULHOLLAND, C. ; SILVEIRA, N. O. A. ; PACE, V. A. L. C. . A aplicação da cláusula geral de risco pelos tribunais brasileiros. 2012. (Relatório de pesquisa). Pg.12

44

Nesse contexto, calcado nessa ideia de solidariedade social fala-se em socialização dos riscos

3.4.

A Socialização dos Riscos

Diante da emergência da ideia de Solidariedade Social, notório é que deve-se abandonar a ideia de responsabilidade civil fundada unicamente no livre arbítrio do indivíduo, para entendê-la como um fenômeno inerente ao sistema de produção e desenvolvimento capitalista. Assim, paulatinamente, abandona-se a ideia de que o dano seria decorrente do desvio de conduta moral de um indivíduo, para entendê-lo como um dado natural da sociedade industrial contemporânea. Isso acarreta que os riscos do desenvolvimento, devam não mais ser suportados por aquele que por meio da realização de dada atividade causou um dano, mas sim por toda a coletividade. No mesmo sentido, aduz Wilson de Melo Silva:

Os homens que sofreram os danos, deveram-no às condições sociais do meio onde viviam. No interesse da coletividade toda foi que se puseram em marcha os potentes meios de produção de riqueza. Todo mundo, pois, deles, se aproveitou e não apenas o proprietário. Se este lucra, lucram todos os membros da coletividade eis que, graças a tais engenhos, houve o barateamento da produção.90

Dessa forma, como a sociedade inteira ganha com os avanços propiciados pela industrialização, também deve ela responder pelos danos colaterais decorrentes desse processo. Tal solução é a mais equânime, tendo em vista a justiça distributiva e o bem comum.

90

SILVA, Wilson de Melo. Responsabilidade sem Culpa e Socialização do Risco. Belo Horizonte: Ed. Bernardo Alvares, 1962. pg. 290

45 Novamente, devemos nos valer da lição de Wilson Melo da Silva, que foi quem melhor escreveu sobre socialização dos riscos:

Muito ao contrário, no entanto, com a objetivação, todos os danos seriam suscetíveis de reparação e isso pelo fato apenas de que todo dano traduz um menoscabo à própria coletividade, a todos, em última análise, dizendo respeito direta e indiretamente, remota ou proximamente. O risco criado não é individual, mas coletiva. E para atender a reclamos de ordem geral é que as grandes empresas se organizam. E porque o automóvel se tornou um meio de locomoção adaptável às injunções do tempo, foi que o médico, por exemplo, ou o industrial, o faz correr pelas estradas. Justo e razoável, pois não é que, aos riscos coletivos, venha a corresponder uma responsabilidade individual, dai resultando, muito pelo contrário, uma imperiosa necessidade da socialização dessa responsabilidade mesma.91

Outrossim, Caio Mario da Silva Pereira, citando Malaurie e Aynes, assinala que existem três etapas de desenvolvimento da socialização dos riscos:

Numa primeira fase, ocorre a extensão da responsabilidade pela prática do seguro que distribui o risco entre os segurados: “o seguro é a complementação da responsabilidade”. Na segunda fase a socialização dos riscos é assegurada diretamente pela seguridade social, cargo de organismos coletivos que assumem os riscos sociais: “a responsabilidade é o complemento da seguridade social”. Na terceira fase, a vítima somente pode reclamar da seguridade social que não obtém reembolso contra o responsável. “A repartição coletiva dos riscos exclui, então, a responsabilidade.92

Não são poucas as vozes que defendem um seguro obrigatório, custeado por toda a sociedade e mantido pelo Estado. De acordo com essa ideia, o Estado seria um segurador universal, assegurando a reparação para todo e qualquer dano93.

91

Ibid. Pg. 295/296 PEREIRA, Caio Mario da Silva. Responsabilidade Civil. 5. ed. rev. Rio de Janeiro: Forense, 1994.Pg. 289 93 “Por que não tentar a remoção ou a atenuação dos inconvenientes oferecidos pelos seguros comuns de molde e nos aproximarmos tanto quanto possível, da meta pretendida, pela cobertura, de todos os riscos? Com isso, não apenas se teria propiciado às futuras vítimas a certeza do ressarcimento, como se teria, 92

46 Todavia, também há os que são contrários à adoção de um seguro obrigatório garantido universalmente pelo Estado. Dentre eles, destaca-se Caio Mario da Silva Pereira, cuja lição vale citar:

A experiência nos tem revelado, num passado relativamente recente, que os ‘Institutos de Previdência Social’ (Instituto dos Comerciários, dos Industriários, dos Empregados em Transportes e Cargas e menos intensamente, dos Bancários), criados todos com maiores esperanças, foram-se mostrando ineficientes. Em primeiro lugar, porque o Governo, responsável por um terço do orçamento, deixou de cumprir a sua parte. Verificou-se que o custeio, especialmente com pessoal, gerava déficit permanente de renda. Marchou-se depois para a unificação: a pletora de funcionários aumentou enormemente os encargos, que se agravaram até positivar-se a insolvência. Com o passar do tempo a realidade acabou por demonstrar a sua ineficiência. O mesmo ocorreu com o Sistema Financeiro de Habitação. Nascido em 1964 com a promessa de proporcionar casa própria a pessoas de baixa renda, em pouco tempo confessou-se falido. Os ‘fundos de pensão’, inclusive das grandes instituições acham-se em crise. A ideia do Estado Segurador Universal não passa de uma falácia.94

Por sua vez, os seguros privados também não parecem resolver o problema, tendo em vista que nem todos os cidadãos teriam condições de pagar o valor do prêmio designado. Assim, em que pese toda a relevância da socialização dos riscos e dos seguros em diversas áreas, não nos parece que em curto prazo, haverá substituição da responsabilidade civil pelos seguros obrigatórios95. Por isso,

também, assegurado a todos, a tranquilidade de que todos necessitam para o exercício normal de sua atividade”( SILVA, Wilson de Mello. Responsabilidade sem Culpa e Socialização do Risco. Belo Horizonte: Ed. Bernardo Alvares, 1962. pg.302) “A par da existência de casos específicos de responsabilidade objetiva em nosso sistema atual, que, entretanto, não chegam a alterar a sua feição subjetivista, o que se propõe é a estruturação, via legislativa, de um sistema no qual a responsabilidade seja objetiva em todos os casos de danos a pessoas”( BERNARDO, Wesley de Oliveira Louzada, Responsabilidade civil automobilística: por um sistema fundado na proteção à pessoa. São Paulo. Atlas. 2009.pg 154) 94 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Direito civil: alguns aspectos de sua evolução. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 147, apud, SALLES, Raquel Bellini. A Cláusula Geral de Responsabilidade Civil Objetiva. Lúmen. 2011. Pg. 122 95 PEREIRA, Caio Mario da Silva. Responsabilidade Civil. 5. ed. rev. Rio de Janeiro: Forense, 1994.Pg. 291

47 ainda é relevante estudar e estabelecer novos parâmetros para a responsabilidade civil fundada no risco.

48

4.

A Cláusula Geral do Artigo 927, parágrafo único

4.1

Breve Introdução

O artigo 927, parágrafo único do Código Civil tem a seguinte redação:

Artigo 927: Aquele que, por ato ilícito (arts 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo. Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.

O caput do artigo 927, nada mais é do que um complemento aos artigos 186 e 187 do mesmo diploma. Os artigos 186 e 187 estabelecem as hipóteses em que uma determinada ação ou omissão será caracterizada como ato ilícito, ao passo que o artigo 927 determina que sempre que existir ato ilícito, o causador de tal ato, será obrigado a repará-lo. Por sua vez, os casos especificados em lei aos quais o parágrafo único se refere, nada mais são do que as hipóteses de responsabilidade objetiva consagradas nas legislações especiais, cujo exemplo mais significativo é o do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8078/90), que estabelece a responsabilidade independente de culpa nos artigos 12 e 14. No que refere-se à parte final do parágrafo único, necessário é uma breve digressão para que se possa verificar o real significado, bem como, o real poder de alcance e de abrangência do dispositivo.

49 4.2

Definições de Cláusula Geral

Ab initio, antes de adentrar-se ao mérito propriamente dito da referida cláusula, deve-se primeiramente entender o que é uma cláusula geral e como surgiu essa ideia. Judith Martins Costa, quem melhor escreveu sobre o assunto em nosso país, afirma que o estabelecimento de cláusulas gerais nos códigos modernos corresponde a uma faceta da constitucionalização do direito civil, pois, a Constituição estabelece uma série de normas abertas, não possuindo sua estrutura geometricamente fechada, o que acaba por influenciar os demais diplomas legais96. Assim, prossegue a referida autora:

Sua linguagem, à diferença do que ocorre com os códigos penais, não está cingida à rígida descrição de fattispecies cerradas, à técnica da casuística. Um Código nãototalitário tem janelas abertas para a mobilidade da vida, pontes que o ligam a outros corpos normativos - mesmo os extrajurídicos - e avenidas, bem trilhadas, que o vinculam, dialeticamente, aos princípios e regras constitucionais.97

Em suma, cláusulas gerais nada mais são do que disposições normativas que utilizam uma linguagem fluida, aberta, vaga, repletas de conceitos jurídicos indeterminados que justamente por sua ampla extensão semântica98 permitem a incorporação de “princípios, diretrizes e máximas de conduta, originalmente estrangeiros ao corpus codificado”.99 Assim, a principal consequência da positivação de uma cláusula geral é a possibilidade do interprete no exame do caso concreto poder trazer elementos 96

MARTINS-COSTA, Judith. O direito privado como um "sistema em construção" - as cláusulas gerais no projeto do código civil brasileiro: Revista dos Tribunais. Jul 1998. vol. 753. p. 27. 97 Ibid. pg.27 98 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado. 2. tir. São Paulo: Revista dos Tribunais,2000. pg. 303 99 MARTINS-COSTA, Judith. O direito privado como um "sistema em construção" - as cláusulas gerais no projeto do código civil brasileiro: Revista dos Tribunais. Jul 1998. vol. 753. p. 24

50 estranhos à letra de lei. Como ensina Pietro Perlingieri: “Legislar por cláusulas gerais significa deixar ao juiz, ao interprete, uma maior possibilidade de adaptar a norma às circunstâncias do fato”100. Todavia, em que pese tal liberdade ao magistrado, este deve exercê-la com parcimônia e razoabilidade, não estando autorizado a agir imotivadamente. O hermeneuta deve sempre se vincular ao valor visado pelo legislador, constantemente tendo como base a dignidade da pessoa humana, valor fundante da ordem constitucional.101 A sistemática das cláusulas gerais não está imune ás críticas 102, contudo, data vênia, tais interpretações retrogradas não se coadunam com as exigências de um direito pós-moderno caracterizado pelas rápidas modificações e pela veloz superação de preceitos legais. Foi-se o tempo em que o interprete estava preso a dogmas elaborados pelo legislador, logo, preceitos que possibilitem a interpretação diante de um caso concreto qualquer, devem ser estimulados no direito contemporâneo. Em outro giro, há os que sustentam que a elaboração de clausula geral de responsabilidade civil não é novidade em nosso ordenamento103. Para os fins do 100

PERLINGIERI, Pietro. Perfis de Direito Civil. pg.27, apud, BERNARDO, Wesley de Oliveira Louzada. Op. Cit. pg. 88 101 BERNARDO, Wesley de Oliveira Louzada. Op. Cit. pg. 90 102 “Certo que não são recentes nem raras às críticas ao modelo das cláusulas gerais. Alias, a começar pela consideração de que a tal mobilidade por elas propiciada acaba por representar golpe sempre indesejável, à segurança jurídica. Outros defendem que as cláusulas gerais devam conter pelos menos a definição de critérios interpretativos, que não as deixem completamente abertas.” (GODOY, Cláudio Luiz Bueno. Op. Cit. pg. 51) 103 “Mas fato é que, de um lado, no direito brasileiro de há muito já se trabalha, ainda que no campo da culpa, com uma clausula geral, sem por isso, se enfrentar ou experimentar maior estranheza. É a previsão que se continha no art. 159 do Código Civil de 1916. E sem maior discussão sobre a insegurança que conceitos como negligência ou imprudência, forçosamente indeterminados, poderiam suscitar”. (GODOY, Cláudio Luiz Bueno. Op. Cit. pg. 52). “No art. 186 temos praticamente aquilo que estava no art. 159 do CC/1916 (LGL\1916\1), com uma significativa variação. Na sua parte final ocorreu a grande mudança - "Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência...": em lugar de "... fica obrigado a reparar o dano...", o Código agora diz: "... comete ato ilícito". Temos aqui um conceito de ato ilícito, o que não havia no Código anterior. Esse conceito de ato ilícito é subjetivo, porque tem como elemento integrante a culpa. E onde está a culpa? Na parte em que o Código expressamente se refere à negligência e à imprudência. Esse é um conceito, diria, de ato ilícito estrito senso; ato ilícito típico, cheio, com todos os seus requisitos, não só objetivos, mas também subjetivos. Esse é o ato ilícito

51 presente trabalho, fato é que representando tendência de vários Códigos Civis ao redor do mundo, a cláusula geral de responsabilidade independente de culpa, representou inegável avanço ao que se tinha anteriormente, coadunando-se com os princípios insculpidos na magna carta. Vale citar a conclusão de Wesley de Oliveira Louzada Bernardo:

Tomados tais cuidados interpretativo-aplicativos, terá o codificador de 2002 andando bem ao adotar as cláusulas gerais como uma forma de abertura do texto normativo à aplicação dos princípios e valores norteadores do ordenamento jurídico, constitucionalmente consagrados, oxigenando o direito civil e evitando, assim, uma precoce senilidade da norma codificada, que poderá ser adaptada às mudanças, cada vez mais frequentes e velozes, do contexto social de sua aplicação.104

4.3

Breve histórico e Importância do preceito normativo

Conforme salientado no primeiro capítulo do presente trabalho, ao longo de todo o século XX, juristas clamavam por uma clausula geral de risco, abstrata e genérica o suficiente para que ficasse ao alvitre do interprete a possibilidade de ser aplicada a algum caso prático. Nesse sentido, cita Wilson Melo da Silva, entendimento do professor Darcy Bessone durante uma sessão do Instituto dos Advogados de Minas Gerais em 1961:

E essa tese é aquela mesma que foi acolhida pelo Instituto dos Advogados de Minas Gerais, em memorável sessão dos primeiros meses do ano de 1961, muito embora com o voto vencido do desembargador Cunha Peixoto e, também, do professor Darcy tradicional, que a doutrina sempre conceituou como sendo o fato gerador da responsabilidade civil. Conjugando o art. 927 com o art. 186, temos a cláusula geral da responsabilidade subjetiva. "Art. 927. Aquele que, por ato ilícito..." - ato ilícito tal como previsto no art. 186, que importe em ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, que viole direito e cause dano a outrem. Esse ato ilícito subjetivo gera o dever de indenizar, responsabilidade fundada na culpa, a cláusula geral da responsabilidade subjetiva do novo Código (...) Cláusula geral, aberta, que sempre exigirá um juízo de valor, porque em cada caso teremos que ver se houve previsibilidade, se houve um comportamento adequado etc.” (CAVALIERI FILHO, Sergio. Responsabilidade civil no novo código civil. Revista de Direito do Consumidor. Out / 2003. vol. 48. pg. 69) 104 BERNARDO, Wesley de Oliveira Louzada. Op. Cit. pg. 91

52 Bessone que entendia faltar, à tese, em discussão, nos termos em que fora posta, um sustentáculo legal, sem embargo de acolher, também ele, o princípio da responsabilidade objetiva, em caráter de exceção e subsidiariamente ao da culpa.105

Por testemunhos como esse, percebe-se que embora a responsabilidade objetiva tenha encontrado bastante espaço nas legislações especiais, não se pode olvidar que tal movimento não satisfazia inteiramente todas as necessidades hodiernas da responsabilidade civil. Vale citar importante passagem transcrita por José Acir Lessa Giordani:

(...) Não vemos como manter as hipóteses de responsabilidade civil baseadas na teoria do risco especificadas em lei, sob controle absoluto do legislador, a quem caberá, com exclusividade instituir cada caso de responsabilidade sem culpa. Na realidade, isso representaria, como já mencionamos, um grave retrocesso na linha evolutiva do nosso direito em tema de responsabilidade civil. A verdade é que, especialmente na atualidade, os fatos se revestem de tamanho dinamismo, com a evolução, muitas vezes descontrolada, de diversas áreas da ciência, proporcionando, a todo instante, o surgimento de novos riscos de natureza diversificada e, por isso mesmo, de difícil análise e compreensão. (...) É de conhecimento de todos que a atividade legislativa é, especialmente nesta área, por demais lenta, seja pela sua própria natureza, seja pela realidade política que vivenciamos no momento. A instituição das hipóteses de responsabilidade civil objetiva estaria fadada ao insucesso sem a moderna previsão de cláusulas abertas que possibilitem ao juiz, diante do caso concreto, de forma criteriosa e prudente, estabelecer, por meio da exegese, as hipóteses que devem ser enquadradas, com base nos elementos genéricos estabelecidos na lei, na responsabilidade civil objetiva106.

Não se pode esquecer também que o Código Civil de 2002 foi promulgado sob a égide da Constituição de 1988, que logo em seu preâmbulo estabelece que a sociedade será fraterna e fundada na harmonia social. Considerando os estarrecedores dados de acidentes no país, bem como, toda a leniência do Judiciário brasileiro, notório que a responsabilidade civil

105

SILVA, Wilson de Mello. Responsabilidade sem Culpa e Socialização do Risco. Belo Horizonte: Ed. Bernardo Alvares, 1962. pg. 130 106 GIORDANI, José Acir Lessa. A responsabilidade civil objetiva genérica. 2ª ed. Rio de Janeiro. Lumen Juris. 2007. pg. 87/88

53 contemporânea assumiu o papel de problema social, ao lado de diversos outros como violência, moradia, saúde, educação e etc. Assim, uma ordem jurídica que se pretende constitucional e insculpida sob o princípio da solidariedade social, deve objetivar assegurar ao máximo possível de vítimas uma eficiente reparação. Todo e qualquer esforço legal, doutrinário, jurisprudencial, nesse sentido deve ser incentivado. A referida cláusula geral de risco genérica que estabelece a responsabilidade pelo simples desenvolvimento de atividade de risco, vem justamente coibir ao máximo essa desarmonia social decorrente dos acidentes e garantir na medida do possível a pacificação social e o bem comum, objetivos centrais do direito107. Outrossim, indubitavelmente um dos princípios norteadores do código civil foi o da socialidade108, conforme inclusive advoga Miguel Reale, principal idealizador do novo código109. Tendo por base, tal princípio, é notório que toda a sociedade deve ser resguardada preventivamente em relação às atividades arriscadas para os direitos alheios110. Por todo o exposto nesses dois primeiros subcapítulos, resta claro que justifica-se a presença da clausula geral visando maximizar a reparação às vítimas de acidentes.

107

DE SOUZA, Wendell Lopes Barboza. A Responsabilidade Civil Objetiva fundada na atividade do risco( Teoria Geral e Hipóteses Práticas).Dissertação de Mestrado. SÃO PAULO. 2009. pg. 75 108 Depreende-se tal assertiva por diversos artigos presentes no referido código como o art. 421, art. 422, parágrafo primeiro do art. 1228 e art. 1238. 109 “A característica mais marcante do projeto do novo código civil é justamente a socialidade, ou seja, o sentido social, pois o código de 1916 era individualista, e com a transformação dos tempos (tecnológicas, sociais e militares) essa individualidade não esta mais na moda, o que esta em voga agora é o socialismo em oposição ao individualismo. “Se não houve a vitória do socialismo, houve o triunfo da "socialidade", fazendo prevalecer os valores coletivos sobre os individuais, sem se perder, porém, do valor fundante da pessoa humana”. A Socialidade se preocupa com o coletivo, mas não se esquece do ser humano como ser individual que merece proteção, nesta nova sociedade” (REALE. Miguel. Nova Fase do Direito Moderno. São Paulo: Editora Saraiva, 2001, apud, REINEHRD, Rosemeri. Os Princípios Orientadores do Novo Código Civil. Disponível em http://www.jurisway.org.br/v2/dhall.asp?id_dh=10417. Acesso em 11.out .2014) 110 DE SOUZA, Wendell Lopes Barboza. Op cit. pg. 76

54

4.3

Teorias de Risco

Por questões meramente metodológicas, antes de adentrarmos na exegese do referido preceito normativo, necessário é o estudo das diferentes teorias do risco que pretendem-se fundamentadoras do dispositivo ora em estudo. Isto porque, a depender do conceito de risco a ser estudado, a análise da cláusula sofrerá enormes modificações A ideia central do risco é de que: “Risco é perigo, é probabilidade de dano, importando, isso, dizer que aquele que exerce uma atividade perigosa deve-lhe assumir os riscos e reparar o dano dela decorrente”.111 O risco assumiu ao longo da história diferentes acepções, sendo significativas as variedades de construções doutrinárias e jurisprudenciais. A primeira diferenciação realizada pela doutrina, manifesta-se na divisão da doutrina do risco em quatro grandes campos: a teoria do risco integral, a do risco mitigado112, a do risco proveito e a do risco criado. No risco integral, entende-se que resta justificada a obrigação indenizatória mesmo nos casos de ausência de causalidade, bastando para a efetiva reparação da vítima a existência de um dano qualquer113. Contudo, há os que defendem ser imprescindível a comprovação do nexo causal entre a conduta do agente e o dano, porém, independente da vontade e até mesmo da consciência do agente, pois o que acontece para essa teoria é a mera substituição da culpa pela “revelação de causalidade pura”.114 Devido ao radicalismo exacerbado, tal teoria é bastante criticada pela doutrina, contudo há os que sustentam sua aplicabilidade aos acidentes 111

CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 9 ed. São Paulo. Atlas. 2010. Pg. 142 112 GODOY, Cláudio Luiz Bueno. Op. Cit. Pg. 65 113 SALLES, Raquel Bellini. A Cláusula Geral de Responsabilidade Civil Objetiva. Lúmen. 2011. Pg. 86 114 GODOY, Cláudio Luiz Bueno. Op. Cit. Pg. 65

55 decorrentes de danos ambientais e danos nucleares, inexistindo expressiva repercussão no direito privado115. Por outro lado, a teoria do risco mitigado pressupõe a existência de um dano inerente a qualidade de certo agente, logo não se tem a referida “causalidade pura”116. Tal teoria encontra-se consagrada no Código de Defesa do Consumidor (Lei 8078/90), em que “a causalidade se qualifica por elemento específico que integra o nexo de imputação, qual seja o defeito que se exige seja identificado no produto ou no serviço ( arts. 12, 14, 18 e 20 do CDC)117” Trazendo tal ideia para a análise do código civil, há os que defendem que o risco a que se refere o parágrafo único do art. 927, seja o risco mitigado pois contempla “falta de segurança razoavelmente esperada na atividade desempenhada118”, sem se falar em perigo contudo. Nesse sentido, o parágrafo único do art. 927 seria aplicável quando se está diante de uma atividade de serviço que violou um dever jurídico de segurança, assim, deve-se falar em necessidade de reparação, toda vez que uma dada atividade viole uma garantia de segurança, o que nada mais é do que a violação de uma obrigação de resultado119. Assim, entende Sergio Cavalieri Filho:

Convém então lembrar que o risco é apenas a teoria que justifica a responsabilidade objetiva, mas não é o seu fato gerador. Muitas pessoas exercem atividade de risco a vida toda e nem por isso têm que indenizar nada a ninguém. A obrigação de indenizar só surge quando alguém viola dever jurídico e causa dano a outrem. Não é o risco, portanto, que por si só gera o dever de indenizar, mas sim o dano causado pela violação 115

VENOSA, Sílvio de Salvo. A responsabilidade objetiva no novo Código Civil (LGL\2002\400), apud, KIRCHNER, Felipe. A responsabilidade civil objetiva no art. 927, parágrafo único, do cc/2002. Revista dos Tribunais. Maio/2008. vol. 871. p. 42 116 GODOY, Cláudio Luiz Bueno. Op. Cit. Pg. 66 117 Ibid. Pg 74 118 Ibid. Pg 74 119 Ibid. Pg 75

56 de dever jurídico, e isso em qualquer tipo de responsabilidade. Sem violação de dever jurídico não há que se falar em responsabilidade, porque esta é um dever sucessivo que decorre da violação daquele.120

O primeiro grande problema da adoção dessa teoria seria a dificuldade de encontrar hipóteses fáticas passíveis de se subsumirem ao comando do parágrafo único do art. 927, em virtude da existência do Código do Consumidor que por sua natureza especial, acaba abarcando praticamente todas as hipóteses em que ocorre defeito no resultado da prestação de algum serviço. Outra crítica é melhor descrita por Ricardo Libel Waldman:

A fundamentação do dispositivo no dever de segurança é também equivocada. O CDC (LGL\1990\40), nos arts. 8.º a 10.º, impõe aos fornecedores uma série de deveres visando a segurança do consumidor, fundamentalmente a partir da informação. É com base nesses deveres que se estabelecem causas de responsabilização do fornecedor. O produto ou serviço que não é entregue ao consumidor com respeito àquelas normas é considerado defeituoso e a sua colocação no mercado configura ato ilícito. O risco inerente (e conhecido) ao produto ou serviço exclui o defeito e portanto a responsabilidade. Já o Código Civil (LGL\2002\400) considera expressamente o risco inerente (ao referir-se à "atividade que por sua natureza cause risco a direito de outrem") como fundamento de responsabilidade. Não há, no parágrafo único, referência alguma à ilicitude, que seria decorrência da desobediência a dever, o que está previsto no caput, para a responsabilidade subjetiva. A atividade sujeita à responsabilidade objetiva, qualquer que seja a sua natureza, não precisa ser ilícita para gerar dever de indenizar se causar dano121.

Em outro giro, há os que sustentam a aplicabilidade da teoria do risco proveito à estudada cláusula geral. Tal teoria, idealizada por Raymond Sailelles122, responsável por significativo avanço no estudo da doutrina do risco, surge no início da segunda revolução industrial, quando até os irmãos Mazeaud,

120

CAVALIERI FILHO, Sergio. Responsabilidade civil no novo código civil. Revista de Direito do Consumidor. Out / 2003. vol. 48. pg. 79 121 WALDMAN, Ricardo Libel. Teoria do risco e filosofia do direito: uma análise jusfilosófica do parágrafo único do art. 927 do novo código civil. Doutrinas Essenciais de Responsabilidade Civil. Out/2011. vol. 2. Pg. 668 122 KIRCHNER, Felipe. A responsabilidade civil objetiva no art. 927, parágrafo único, do cc/2002. Revista dos Tribunais. Maio/2008. vol. 871. p. 41

57 árduos defensores da responsabilidade civil fundada na culpa, chegaram à conclusão que “a indústria já estava protegida e era chegada a hora de sair em socorro às vítimas”.123 Como resume Ronnie Preuss Duarte, tal teoria dispõe que:

Inicialmente o critério de imputação de danos do risco-proveito determina que quem aufere lucros no desempenho de uma atividade deve suportar o ônus, as conseqüências de sua atividade, independentemente de culpa (ubi emolumentum, ibi onus; ubi commodum ibi incommodum).124

Vários autores de renome foram partidários dessa teoria ao longo da história, dentre eles, destacam-se, Wilson Melo da Silva125, Alvino Lima126 e Silvio Rodrigues127. Entretanto, há ainda os que sustentam que a melhor modo de interpretar o risco previsto no artigo 927, parágrafo único é por meio dessa teoria. Dentre esses autores, destacam-se Maria Helena Diniz128 e Carlos Young Tolomei129.

123

RIPERT. A regra moral nas obrigações civis. Trad. Osório de Oliveira. Campinas: Bookseller, 2000.p. 207, apud, DUARTE, Ronnie Preuss. Responsabilidade civil e o novo código: contributo para uma revisitação conceitual. Revista dos Tribunais. Ago/2006. vol. 850. Pg 61. 124 DUARTE, Ronnie Preuss. Responsabilidade civil e o novo código: contributo para uma revisitação conceitual. Revista dos Tribunais. Ago/2006. vol. 850. Pg 61. 125 “Entendemos que o melhor critério seria aquêle da responsabilidade sem culpa, o meramente objetivo, critério que, mais reforçadamente, na espécie se justificasse com vistas à exploração industrial ou ao risco proveito”( SILVA, Wilson de Mello. Responsabilidade sem Culpa e Socialização do Risco. Belo Horizonte: Ed. Bernardo Alvares, 1962. Pg. 107) 126 “A insegurança material da vida moderna criou a teoria do risco proveito, sem se afastar dos princípios de uma moral elevada, sem postergar o dignidade humana (sic) e sem deter a marcha das conquistas dos homens” (LIMA, Alvino. Op. Cit. pg. 336) 127 “O tamanho do risco deverá ser posto em paradigma com o tamanho do lucro obtido ou almejado pelo empresário”( RODRIGUES, Silvio. Direito Civil: responsabilidade civil. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 1979.v.4 pg. 286, apud, DE SOUZA. Wendell Lopes Barboza. Op Cit. Pg 105). 128 “ O Código Civil, ao prever as hipóteses de responsabilidade civil por atos ilícitos, consagrou a teoria objetiva em vários momentos, como no artigo 927, parágrafo único, substituindo a culpa pela ideia do risco proveito (RT 433:96)”(DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. 18 ed. São Paulo. Saraiva, 2003.v.3. p. 762 apud, DE SOUZA, Wendell Lopes Barboza. Op Cit. Pg 104/105).” 129 “deve-se entender que o legislador desejou referir-se àquelas atividades que implicam alto risco, ou um risco maior que o normal, e que geralmente correspondem a uma maior taxa de lucros, justificando um sistema mais severo de responsabilização. Aí se faria presente, de um lado, a questão do risco criado e, de outro, a questão do risco-proveito”( TOLOMEI, Carlos Young. A Noção de ato ilícito de a teoria do risco na perspectiva do novo Código Civil. In: TEPEDINO, Gustavo (Coord.). A Parte geral do novo

58 Tal teoria não é imune a críticas. A imposição de dever à vítima de provar quem lucra com o exercício de determinada atividade, encontra problema idêntico ao da responsabilidade subjetiva130. Outro empecilho consiste na dificuldade de saber o que vem a ser proveito, isto é, não se sabe se proveito seria somente dinheiro ou se seria qualquer vantagem advinda do exercício de alguma atividade.131 Tais dúvidas só contribuiriam para dificultar a interpretação do artigo. Um terceiro argumento contra essa teoria consiste na mera existência do artigo 931 do Código Civil que assim dispõe:

“Art. 931. Ressalvados outros casos previstos em lei especial, os empresários individuais e as empresas respondem independente de culpa pelos danos causados pelos produtos postos em circulação.”

Ora, caso consideremos que somente as atividades sujeitas a alguma espécie de proveito estão inseridas no artigo 927, § único, sentido nenhum teria o artigo 931 do Código Civil. Logo, numa interpretação sistemática, restringir a interpretação do artigo 927, parágrafo único do CC, não parece o melhor caminho. Outra crítica é melhor descrita pelo sempre brilhante Caio Mario da Silva Pereira, aduzindo que caso a interpretação que privilegia o risco proveito fosse adotada:

Código Civil: estudos na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.pg. 355, apud, SALLES, Raquel Bellini. A Cláusula Geral de Responsabilidade Civil Objetiva. Lúmen. 2011. Pg.132 130 KIRCHNER, Felipe. Op Cit. p. 41 131 Ibid. Idem

59 A responsabilidade ficaria restrita aos comerciantes ou industriais, o que lhe retiraria o valor de fundamento da responsabilidade civil porque restringiria sua aplicação a determinadas classes, uma vez que somente seriam responsáveis aqueles que tiram proveito da exploração de uma atividade132.

Outra crítica que merece ser destacada é a formulada por Agostinho Alvim. O autor critica o fato de a teoria estabelecer um ônus maior para dado empresário, pelo simples fato de este exercer uma atividade em que aufere proveito. Vale trazer à baila a lição do renomado autor:

Não é exato dizer-se que o dono do negócio deve responder porque criou um risco em seu proveito. Ele criou em proveito seu e da coletividade. Com efeito assim é. O dono de uma empresa de transporte responde pelo dano que o passageiro sofreu. Mas, não é possível dizer que ele responde porque, tendo criado um risco em seu proveito, justo é que sofra as conseqüências. Em seu proveito por quê? Há reciprocidade no proveito, já que cada lucro realizado pela empresa corresponde uma vantagem obtida por alguém que dela se serviu. A coletividade não poderia gozar do proveito, sem o risco, que lhe é inseparável133

Por fim, a última crítica a tal teoria consiste na literalidade do parágrafo único do artigo 927 do CC. Ora, caso o legislador quisesse restringir tais hipóteses apenas aos que auferem proveito decorrente do exercício de determinada atividade, então o natural seria que o próprio legislador fizesse tal restrição. Todavia, o que se observa é que tal limitação não existe na letra da lei. Dessa forma, resta inviável ao hermeneuta estabelecer restrições dispensadas pelo legislador. Outras duas teorias também são comumente referidas quando refere-se a risco, são elas a teoria do risco profissional e a teoria do risco excepcional. 132

PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de direito civil. 12. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, v. 3. Pg 282 133 ALVIM, Agostinho, Da inexecução das obrigações e suas conseqüências, 5. ed., São Paulo, Saraiva, 1980, p. 307, apud, SALLES, Raquel Bellini. A Cláusula Geral de Responsabilidade Civil Objetiva. Lúmen. 2011. Pg. 87/88

60 A teoria do risco profissional dispõe que o empregador deve ter o dever de indenizar independentemente da existência de culpa, quando o dano for gerado em função de trabalho ou profissão. Tal teoria desenvolveu-se pois:

A responsabilidade fundada na culpa levava quase sempre, à improcedência da ação acidentária. A desigualdade econômica, a força de pressão do empregador, a dificuldade do empregado de produzir provas, sem falar nos casos em que o acidente decorria das próprias condições físicas do trabalhador, quer pela sua exaustão, quer pela monotonia da atividade, tudo isso acabava por dar lugar a um grande número de acidentes não indenizados, de sorte que a teoria do risco profissional veio para afastar esses inconvenientes.134

Em que pese toda a importância de tal teoria, não nos parece que seja a interpretação que deve preponderar na cláusula geral do parágrafo único do art. 927. Como alerta Wesley de Oliveira Louzada Bernardo, tal teoria perdeu importância devido ao desenvolvimento dos seguros obrigatórios nas relações empregador-empregado.135 Por outro lado, a teoria do risco excepcional determina que a reparação deve sempre ser devida quando seja consequência de um risco anormal, ou seja, que foge à normalidade esperada pela vítima. Tal teoria tem bastante aceitação nos danos decorrentes de exploração de energia elétrica, bem como, danos decorrentes de acidentes nucleares136. Pela própria leitura literal do preceito normativo em estudo, percebe-se que tal teoria não foi contemplada pelo legislador do Código Civil de 2002, pois este expressamente fala em “atividade normalmente desenvolvida”, o que afasta a ideia de excepcionalidade.

134

CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 9 ed. São Paulo. Atlas. 2010.pg. 143 135 BERNARDO, Wesley de Oliveira Louzada. Op. Cit. Pg. 100 136 SALLES, Raquel Bellini. Op. Cit. Pg. 87

61 Por fim, a última teoria que desenvolveu-se sobre a matéria é a do risco criado. Tal teoria, desenvolvida por Josserand137, e que encontra entre nós, Caio Mario da Silva Pereira, como seu maior defensor, sinteticamente estabelece que:

A meu ver, o conceito de risco que melhor se adapta às condições de vida social é o que se fixa no fato de que, se alguém põe em funcionamento uma qualquer atividade, responde pelos eventos danosos que esta atividade gera para os indivíduos, independente de determinar se em cada caso, isoladamente, o dano é devido à imprudência, à negligência, a um erro de conduta, e assim se configura a teoria do risco criado”138.

A doutrina majoritária entende que a doutrina do risco que melhor se coaduna com o disposto no parágrafo único do art. 927 é justamente a teoria do risco criado. Nesse sentido, entendem, dentre outros: Wesley de Oliveira Louzada Bernardo139, José de Acir Lessa140, Carlos Roberto Gonçalves141, Raquel Bellini Salles142 e Claudio Luiz Bueno de Godoy143.

137

KIRCHNER, Felipe. A responsabilidade civil objetiva no art. 927, parágrafo único, do cc/2002. Revista dos Tribunais. Maio/2008. vol. 871. p. 41 138 PEREIRA, Caio Mario da Silva. Responsabilidade Civil. 5. ed. rev. Rio de Janeiro: Forense, 1994. Pg. 270 139 “Mostra-se tal teoria a mais adequada a atender tanto os propósitos originários da teoria do risco, principalmente aliviar a vítima do pesado fardo da prova de elementos subjetivos do causador do dano, isto sem a necessidade de comprovação de haver este obtido vantagem econômica do exercício da atividade lesiva”. (BERNARDO, Wesley de Oliveira Louzada. Op. Cit. Pg. 101) 140 “ Verificamos como já foi dito, que o preceito consagra a teoria do risco criado. Assim, toda a atividade que por sua natureza, produza um risco para terceiros ensejará o dever de reparar os danos causados sem que haja necessidade de comprovação de culpa do autor do fato. Esta atividade pode ser de cunho profissional, recreativa, de mero lazer, não havendo, assim, necessidade de que resulte em lucro ou vantagem econômica para o agente para que haja caracterização de sua responsabilidade objetiva. Não se trata, desta forma, do risco proveito, mas sim do risco criado”( GIORDANI, José Acir Lessa. Op. Cit. Pg 90) 141 “Ademais, tendo sido acolhida, no dispositivo em tela, a teoria do risco criado, e não do risco proveito, como entende a melhor doutrina, não se pode atribuir à vítima o ônus de demonstrar que o causador do dano exercia atividade lucrativa.” 142 “Com efeito, o risco criado, pelas razões já explicitadas no presente trabalho, melhor se coaduna com a função da responsabilidade civil na contemporaneidade, mais preocupada que está com a pessoa da vítima do que com o agente causador do dano, correspondendo não só à mens legislatoris, como visto, mas, sobretudo, à mens legis, revelada pela interpretação sistemática da norma, sob a perspectiva civilconstitucional.”( SALLES, Raquel Bellini.Op. Cit. pg. 131) 143 “Dito em outras palavras, não se trata de uma atividade que seja perigosa e fora da normalidade. Ao contrário, é uma atividade, como se viu, normalmente desenvolvida, portanto escoimada de qualquer defeito.(...) Admite-se que a tese do risco perigo talvez seja a que mais se aproxime da integração de um

62 Em que pese vozes autorizadas em sentido contrário, esta é a corrente que melhor se coaduna com um direito civil constitucional calcado na dignidade da pessoa humana com respeito ao princípio da solidariedade social, do bem comum e da justiça distributiva, pois é a teoria que possibilita que a vítima obtenha o ressarcimento, sem no entanto, impossibilitar a defesa do agente, que poderá sempre se valer do argumento da ausência de causalidade. Outrossim, é evidente que o legislador do código civil quis que tal modalidade de risco fosse consagrada, visto que não estabeleceu nenhuma restrição econômica, nem com fulcro em profissão ou excepcionalidade. Portanto, partindo do princípio de que o artigo 927, parágrafo único do CC consagrou a teoria do risco criado, não se deve fazer diferenciação entre risco e perigo, posto que a expressão risco para os direitos de outrem, necessariamente implicará em perigo, como se analisará mais detidamente em momento oportuno.

4.4.

“Atividade Normalmente Desenvolvida pelo Autor do Dano”

Feitas tais considerações iniciais, necessário é iniciar a análise exegética da cláusula geral do artigo 927, parágrafo único, segunda parte. Pois bem, o artigo refere-se a “atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano” e a doutrina diverge bastante quanto ao sentido e alcance de tal previsão.

conteúdo para a cláusula geral da responsabilidade sem culpa no Código Civil de 2002.(...)Mas, em verdade, e de novo parafraseando Antonio Junqueira de Azevedo, no Código Civil o dispositivo legal em exame não aludiu a uma atividade de risco, e sim ao risco criado por uma atividade(...) de todo possível que uma atividade, mesmo não sendo intrinsecamente perigosa, induza ou crie a terceiros um risco pelo qual quem a exerce, posto que de forma normal, regular e lícita, deve responder.” (GODOY, Cláudio Luiz Bueno. Op. Cit. Pg. 91/92)

63 A primeira divergência consiste no que seria “atividade”. Segundo Maria Celina Bodin de Moraes seria uma “série contínua e coordenada e não se confunde com um ato único ou com atos isolados, que permanecem sob o âmbito de incidência da culpa”144, assim atos isolados não podem ser considerados atividade para fins de incidência da norma. No mesmo sentido, também entende Claudio Luiz Bueno de Godoy145. Contudo, Carlos Roberto Gonçalves entende de modo oposto:

Haveria realmente necessidade de a atividade perigosa, ser exercida reiteradamente para o agente incidir na responsabilidade objetiva, independente de culpa? Penso que não. O adverbio “normalmente” empregado no dispositivo ora comentada, não consta dos códigos de outros países, como Itália, Portugal, Líbano, México, etc., que adotaram a teoria do exercício da atividade perigosa antes de nós. Ao utilizá-la, pretendeu o novel legislador apenas deixar claro que a responsabilidade do agente será objetiva quando a atividade por ele exercida contiver uma notável potencialidade danosa, em relação ao critério da normalidade média.146

Assim, a interpretação feita pelo referido doutrinador, dá margem a que se possa considerar aplicável o parágrafo único do 927 mesmo que um único ato tenha sido realizado, já que o adverbio normalmente indicaria apenas a potencialidade danosa. Em outra passagem, o referido autor cita José de Acir Lessa Giordani, quando este afirma que não se deve perquirir nenhuma conotação de ordem técnica para fins de interpretação do alcance e do limite do vocábulo “atividade”147.

144

MORAES,Maria Celina Bodin de. Risco, Solidariedade e Responsabilidade Objetiva.Pg 16-17 “De resto, não por diverso motivo, o parágrafo único do artigo 927, ao que se considera, alude a uma atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano bem a indicar necessária a coordenação, a organização, ao menos, e nunca a eventualidade e prática ocasional”. (GODOY, Cláudio Luiz Bueno. Op Cit. pg 94, apud, DE SOUZA, Wendell Lopes Barboza. Op Cit. Pg. 110 146 GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade Civil. 9 ed. rev., de acordo com o novo Código Civil (Lei n. 10.406, de 10-1-2002).São Paulo : Saraiva, 2005. Pg. 263 147 Ibid. Pg. 263 145

64 Entretanto, em outra passagem da mesma obra intitulada “A Responsabilidade Civil Objetiva Genérica no Código Civil de 2002”, Giordani afirma que caso a atividade seja desenvolvida esporadicamente, não há que se cogitar da aplicabilidade da cláusula geral ora em comento, devido à presença da expressão “normalmente” que segundo o autor serve justamente para excluir da incidência do parágrafo único do artigo 927, atividades excepcionais ou eventuais148. Tal entendimento será relativizado em momento oportuno. Endossando o exposto por Giordani, Caio Mario da Silva Pereira, entende que justamente pela presença da expressão “normalmente” na cláusula geral, deve-se abandonar a teoria dos atos normais e anormais propostas por Carlos Roberto Gonçalves149. Logo, pelo exposto, a melhor interpretação é que considera atividade como um conjunto de atos coordenados. Em hipóteses envolvendo atos isolados, continua sendo imprescindível a averiguação da culpa. Divergência maior irradia da doutrina no que se refere à necessidade de tal atividade ser economicamente organizada, ou se tal fato seria prescindível. O maior defensor da necessidade de a atividade ser economicamente organizada para fins de incidência do parágrafo único em estudo é Sérgio Cavalieri Filho. Vale transcrever a lição do renomado autor:

O que significa atividade? Atividade que, por sua natureza, implicar risco. Basta exercer uma atividade perigosa para que exsurja a obrigação de indenizar objetivamente? Temos aqui uma cláusula de responsabilidade objetiva tão ampla, que se for interpretada literalmente, tal como está escrita, não vai sobrar nada para a responsabilidade subjetiva, porque hoje quase todas as atividades que exercemos são de risco. Interpretada essa cláusula tal como está redigida, todos nós, que dirigimos o nosso automóvel particular, exercemos atividade de risco e se, eventualmente, nos

148

GIORDANI, José Acir Lessa. Op. Cit. Pg. 95 PEREIRA, Caio Mario da Silva. Responsabilidade Civil. 5. ed. rev. Rio de Janeiro: Forense, 1994. Pg. 285 149

65 envolvermos num acidente de trânsito, vamos ter que indenizar, independentemente de culpa. Será que é este o sentido dessa norma? (...) Se ali diz "atividade", é porque estava querendo se referir a uma outra modalidade de comportamento, a uma outra espécie de conduta, que não a mera "ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência". Qual seria? (...) Logo a seguir, o Código usou a expressão "normalmente desenvolvida". "Normalmente" sugere a idéia de habitualidade, de conduta reiterada, contínua, organizada, profissional. Estou, portanto, reforçado pelo próprio texto, entendendo que quando o Código fala em atividade, está falando daquela conduta que não é isolada, que não é esporádica, mas daquela conduta que é reiterada, habitual, constante, até profissional.150

O referido autor ainda traz à baila a posição de administrativistas, bem como, o exposto no art. 3º, §2º do CDC e nos artigos 966 e 972 do CC, que, de uma forma geral, equiparam serviço à atividade e associam tal palavra com a ideia de empresário. Por fim, conclui:

Não há dúvida, portanto, de que o próprio Código Civil (LGL\2002\400), e não apenas o Código do Consumidor, utilizou em mais de um lugar a palavra "atividade", não para indicar a ação ou omissão esporádica, isolada de alguém, mas a conduta profissional, habitual, economicamente organizada.151

Tal doutrina, possui bastante aceitação. Leonardo de Faria Beraldo sustenta que o vocábulo deve ser interpretado e restrito somente às hipóteses concernentes a quem:” exerce ou presta serviços econômicos de forma organizada, habitual, reiterada e profissional, e não de forma isolada por alguém”152. Pablo Stolze Gagliano e Rodrigo Pamplona entendem que: “Ao consignar o advérbio “normalmente”, o legislador quis referir-se a todos os

150

CAVALIERI FILHO, Sergio. Responsabilidade civil no novo código civil. Revista de Direito do Consumidor. Out / 2003. vol. 48. pg. 77 151 Ibid. Pg. 69 152 BERALDO, Leonardo de Faria. A responsabilidade civil no parágrafo único e alguns apontamentos sobre direito comparado. Revista de Direito Privado. Out / 2004. vol. 20. p. 219.

66 agentes que, em troca de determinado proveito, exerçam atividade potencialmente nociva ou danosa aos direitos de terceiros.”153 Todavia, tal teoria não é imune a críticas. A primeira, e que evidencia-se logo de cara, consiste na impossibilidade de coadunação desse conceito de atividade empresarial com a ideia de risco criado, posto que não faz sentido algum prescindir do proveito na definição da teoria do risco aplicável, e ao mesmo tempo, afirmar que a atividade deve ser econômica, como o faz Sergio Cavalieri154. Ademais, como dito anteriormente, o parágrafo único do artigo 927 do CC não faz menção em nenhum momento à necessidade de que exista algum proveito econômico para o causador do dano, razão pela qual não existe motivo hábil a restringir à aplicação da cláusula geral, cuja razão de ser é justamente poder abarcar hipóteses para além do sistema legal. Wesley de Oliveira Louzada Bernardo formula uma outra crítica a tal concepção. O autor afirma que caso o sentido de atividade fosse intrinsecamente ligado a ideia de atividade empresarialmente organizada, o dispositivo legal restaria inutilizado, pois os danos decorrentes do exercício de tais atividades empresárias, já se encontram delimitados pelo Código de Defesa do Consumidor, nos artigos 12 e 14 e pelo próprio Código Civil, no artigo 931155. Logo, a referida cláusula viraria letra de morta de lei. Outra crítica que vale a pena trazer à baila é a formulada por Ricardo Libel Waldman, no sentido de que:

153

GAGLIANO, Pablo Stolze e PAMPLONA FILHO, Rodolfo, Novo Curso de Direito Civil, v. III, p. 139 154 O referido autor afirma que o parágrafo único do art. 927 está sujeito a teoria do risco criado. (CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 9 ed. São Paulo. Atlas. 2010. Pg. 154) 155 BERNARDO, Wesley de Oliveira Louzada. Op. Cit. Pg. 105

67 A utilização do proveito ou vantagem econômica como critério de distribuição dos ônus da vida comum não é o único capaz de permitir maior equilíbrio nas relações sociais. A securitização, que mais tarde será analisada, pode ser igualmente eficiente, desde que exista interesse social suficiente na atividade.156

Logo, a interpretação de atividade que se coaduna mais precisamente com a teoria do risco criado, que pelas razões expostas em momento anterior, é a que adequa com o texto do artigo 927, parágrafo único é a de que é prescindível que a atividade seja econômica para fins de incidência da cláusula geral de responsabilidade objetiva. No mesmo sentido, entende Anderson Schreiber: “Irrelevante, para a incidência do dispositivo, que a atividade de risco se organize ou não sob forma empresarial ou que se tenha revertido em proveito de qualquer espécie para o responsável”.157 No que se refere à expressão “normalmente desenvolvida”, alguns defendem que tal expressão consistiria na “aplicação da teoria dos atos normais e anormais, medidos pelo padrão médio da sociedade”158. Há os que afirmam que a presença de tal expressão permite concluir que: “se for uma atividade excepcional ou absolutamente eventual, a conduta do agente não estará produzindo riscos estatisticamente consideráveis a ponto de implicar a responsabilização objetiva do sujeito”159 E ainda há aqueles que afirmam que a presença de tal expressão se justificaria justamente pela superação da teoria dos atos normais e anormais, garantindo que: “uma atividade anormal sem dúvida fundamentará a obrigação de indenizar. Não é, porém, dependente esta da anormalidade do ato. Uma

156

WALDMAN, Ricardo Libel. Teoria do risco e filosofia do direito: uma análise jusfilosófica do parágrafo único do art. 927 do novo código civil. Doutrinas Essenciais de Responsabilidade Civil. Out/2011. vol. 2. Pg. 667 157 SCHREIBER, Anderson. Novos Paradigmas da Responsabilidade Civil, pg. 25. 158 GONÇALVES, Carlos Roberto. Op Cit. Pg. 264 159 GIORDANI, José Acir Lessa. Op Cit. Pg. 95

68 atividade normal, exercida por alguém, pode ser a causa da reparação, desde que em si mesma cause dano à vítima.160” A primeira teoria, defendida por Carlos Roberto Gonçalves possui os problemas que já vimos anteriormente. Por sua vez, a teoria defendida por José Lessa de Aguiar Giordani também não nos parece acertada, isto porque a simples circunstância de uma dada atividade ser esporádica, não implica que ela não exerça riscos para os direitos de outrem, em outras palavras, que ela não deixe de ser perigosa. Caio Mario da Silva Pereira afirma que :

Encarada, pois, a questão sob esse aspecto, ou seja, tendo em vista tratar-se de ato normal, o que se leva em conta, em primeiro plano, é que a vítima não necessita provar se o agente estava ou não estava no exercício de atividade habitual, ou se procedia dentro dos usos e costumes do ambiente social em que opera.161

Logo, o principal norte interpretativo da expressão “atividade normalmente

desenvolvida”

deve

ser

a

periculosidade

gerada

pelo

desenvolvimento de dada atividade, nas palavras de Raquel Bellini Salles:

Noutros termos, o que pretendemos sustentar é a configuração da responsabilidade objetiva em razão da natureza da atividade, independentemente da periodicidade com que é desenvolvida ou da finalidade a que se presta . Basta, portanto, que a atividade seja intrinsecamente perigosa, não importando quantas vezes o causador do dano a tenha exercido. (...) Destarte, a obrigação de indenizar em análise se refere à atividade perigosa desenvolvida numa organização empresarial ou eventualmente, desde que configure uma série de atos direcionados a um fim, seja este econômico, esportivo ou recreativo,

160

PEREIRA, Caio Mario da Silva. Responsabilidade Civil. 5. ed. rev. Rio de Janeiro: Forense, 1994. Pg. 285 161 Ibid. Pg. 285

69 para citar alguns exemplos, e não simplesmente uma conduta perigosa, que nada mais é do que um ato isolado de imprudência.162

Outro ponto relevante é que a periculosidade da atividade também deve ser vista quanto aos instrumentos ou meios utilizados para que se coloque a atividade em funcionamento, como assinala Raquel Bellini Soares:

Nessa linha, o artigo 2.050 do código italiano foi mais claro que o parágrafo único do artigo 927 do nosso código, prevendo tanto a periculosidade oriunda da natureza da atividade, quanto aquela dos meios empregados. Isso significa que atividades comumente não perigosas também podem ser assim classificadas quando a periculosidade aparece intrínseca aos instrumentos utilizados, hipótese em que o dano não seria propriamente uma conseqüência da coisa em si, mas da coisa inserida no complexo da atividade. Esta situação, todavia, não se confunde com a hipótese de manuseio inadequado de um equipamento inofensivo, o que, por si só, não caracteriza a atividade como perigosa.163

Portanto, resta claro que a referida cláusula consagrou a responsabilidade independente de culpa desde que presente o caráter potencialmente danoso de alguma atividade. Cabe agora perquirir o que vem a ser uma atividade perigosa.

4.5.

“Por sua natureza implicar risco para os direitos de outrem”

O que vem a ser uma atividade por sua natureza arriscada? E o que vem a ser uma atividade não arriscada? Por sua natureza de cláusula geral, o dispositivo precisa de complementos externos. Como de costume, a doutrina diverge bastante sobre o real alcance das expressões “por sua natureza” e “risco para os direitos de outrem”.

162 163

SALLES, Raquel Bellini. Op Cit. Pg. 161 Ibid. Pg. 172

70 Sergio Cavalieri Filho entende que não se deve responsabilizar ninguém pelo simples exercício de determinada atividade de risco mas sim pela violação de determinado dever jurídico fundamentador da responsabilidade. Assim:

Não é o risco, portanto, que por si só gera o dever de indenizar, mas sim o dano causado pela violação de dever jurídico, e isso em qualquer tipo de responsabilidade. Sem violação de dever jurídico não há que se falar em responsabilidade, porque esta é um dever sucessivo que decorre da violação daquele.164”

E prossegue:

Quem exercer atividade de risco terá o dever de indenizar se o fizer de forma insegura, prestando serviço sem a segurança que deve ter. E assim é porque a lei criou esse dever de segurança em contraposição ao risco da atividade, tornando aquele que a exerce em garante da sua segurança.165

Como facilmente percebe, a interpretação do renomado autor não parece a mais adequada. Isto porque, ao estabelecer o dever de indenizar como inerente a violação de um determinado dever jurídico, praticamente equipara-se responsabilidade subjetiva e responsabilidade objetiva. A análise da violação ou não de um dever jurídico, necessariamente leva a uma análise da forma como foi desempenhada determinada atividade, o que implica na análise da conduta do agente responsável por aquela atividade. Assim, tal interpretação não possibilita o objetivo traçado pelo legislador quando da elaboração do artigo em comento, que é justamente afastar-se da ideia de culpa a fim de possibilitar o pleno ressarcimento das vítimas de danos.

164

CAVALIERI FILHO, Sergio. Responsabilidade civil no novo código civil. Revista de Direito do Consumidor. Out / 2003. vol. 48. pg. 79 165 Idem.

71 Leonardo Beraldo, por sua vez, entende que o sentido da expressão “por sua natureza” é justamente o de tornar “imprescindível que, na natureza da atividade, ou seja, na sua essência, exista uma potencialidade lesiva fora dos padrões normais”166. Nesse mesmo sentido, pode-se citar o Enunciado 38 aprovado pelo Conselho da Justiça Federal:

A responsabilidade fundada no risco da atividade, como prevista na segunda parte do parágrafo único do art. 927 do novo Código Civil, configura-se quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano causar a pessoa determinada um ônus maior que aos demais membros da coletividade

Tal entendimento também é acompanhado por Raquel Bellini Salles:

Podemos assentar, nesse aspecto, uma segunda premissa: a de que o perigo que deve ser levado em conta para qualificar uma atividade como perigosa, em sentido jurídico, é o perigo notável, isto é, de maior intensidade, sob pena de toda e qualquer atividade ser considerada perigosa, já que não se pode dizer, sem margem de erro, que uma atividade humana é absolutamente isenta de perigo. Fosse assim, não haveria justificativa plausível para se sustentar um sistema dualista de responsabilidade, fundado na culpa e no risco167.

Ricardo Libel Waldman, aduz que tal requisito é de difícil comprovação, bem como, externo ao fundamento moral da responsabilidade civil objetiva, por isso deve ser tido como secundário. Para o referido autor:

Tal atividade precisa ser socialmente relevante, capaz de ser referida a alguma necessidade imediata do bem comum, pois a responsabilidade objetiva fundamenta-se no caráter comunitário da vida humana e no princípio da reparação dos danos, bem como só torna-se viável se for suficientemente benéfica a ponto de estimular a

166 167

BERALDO, Leonardo de Faria. Op. Cit. Pg. 217 SALLES, Raquel Bellini. Op. Cit Pg. 167.

72 comunidade deslocar recursos para a sua realização, de modo a que o custo possa ser suportável sem inviabilizar uma atividade que é importante para a comunidade168.

Outros autores, apegam-se à necessidade de se avaliar o caso concreto para se avaliar se tal atividade pode ser tida como perigosa por sua natureza. É o caso de Roger Aguiar Silva que entende necessário levar-se em conta características pessoais do ofensor, bem como, da natureza da atividade e da vítima para que se possa definir uma atividade como perigosa169. Tal interpretação incide no recorrente problema de se perquirir a conduta do agente, isto é, de avaliar a consciência e vontade do agente que realiza a atividade. Como já foi dito, o objetiva da consagração de uma cláusula geral de responsabilidade objetiva genérica é justamente possibilitar que a vítima possa provar determinado dano sem a análise da conduta subjetiva do ofensor. Tal interpretação tornariam a cláusula geral obsoleta e inócua. Nesse sentido, vale citar a crítica de Wesley de Oliveira Louzada Bernardo:

“Apreciação dessa natureza demonstra um apego excessivo ao paradigma da culpa e uma grave dificuldade na apreciação da responsabilidade objetiva: o fato de tratar-se de espécie de responsabilidade civil por atos lícitos170”

Em sentido diametralmente oposto, há aqueles que entendem que a definição de atividade perigosa por sua natureza, deve dar-se levando-se em

168

WALDMAN, Ricardo Libel. Op. Cit. Pg. 671 SILVA, Roger Aguiar. Responsabilidade Civil Objetiva. Pg.79, apud, BERNARDO, Wesley de Oliveira Louzada. Pg. 107 170 BERNARDO, Wesley de Oliveira Louzada. Op. Cit. Pg. 108 169

73 conta às informações disponíveis pelo ofensor quando iniciou a realização daquela atividade, assim entende Ronnie Preuss Duarte:

A idéia de perigo, para fins de objetivação da responsabilidade, prende-se com uma atividade que envolva riscos extraordinários, que permitam afirmar a probabilidade da causação de danos, devendo tal juízo ser feito tomando-se por base as informações disponíveis no instante em que se iniciou a respectiva prática.(...)Assim deve ser em atenção ao princípio da segurança jurídica, já que ao agente deve assegurar previamente os riscos envolvidos no desempenho de atividade qualquer171.

No mesmo sentido, vale transcrever entendimento da Suprema Corte Italiana sobre a questão:

Deve entender-se por perigosa aquela atividade que, por sua mesma natureza ou ainda pelos meios empregados, renda provável, e não simplesmente possível, a verificação de um evento danoso. O juízo de periculosidade deve ser expresso não tendo por base o evento danoso já efetivamente verificado, mas sim segundo uma prognose antecipada, tendo-se em conta as circunstâncias de fato que se apresentavam quando do início do exercício da atividade, tais quais se apresentavam cognoscíveis ao agente na respectiva oportunidade.172

Tal interpretação tem o mérito de objetivar, na medida em que submete tal averiguação a “uma prognose antecipada”. Contudo, deve-se alertar para o fato de que nessa prognose, não se deve levar em conta circunstâncias subjetivas do agente, sob pena de novamente se travestir a responsabilidade objetiva de responsabilidade subjetiva. Visando fornecer parâmetros para a definição do que vem a ser uma atividade perigosa, alguns autores têm feito um esforço para compilar atividades que entrariam nesse rol.

171

DUARTE, Ronnie Preuss. Op. Cit. Pg. 62 ALPA e BESSONE. La responsabilità civile. Milão: Giuffrè, 200. Pg. 375, apud, DUARTE, Ronnie Preuss. Responsabilidade civil e o novo código: contributo para uma revisitação conceitual. Revista dos Tribunais. Ago/2006. vol. 850. Pg 63. 172

74 Paulo Affonso Leme Machado cita o art. 1 do Decreto federal 88.621 de 06.10.83 que entende serem perigosas atividades que: “pelas suas características sejam perigosas ou representem riscos para a saúde de pessoas, para a segurança pública e para o meio ambiente”. Afirma depois que os produtos perigosos já foram classificados pelas Normas Brasileiras NBR 7.502, numa ampla listagem, além de afirmar: “Têm sido universalmente apontadas algumas características dos produtos perigosos como a inflamabilidade, a corrosividade, a reatividade e a toxicidade”.173 Outras tentativas conceituais procuram submeter o conceito de atividades perigosas à legislação relativa a acidentes de trabalho. Os artigos 189174 e 193175 da CLT são tentativas de definição nesse sentido. A jurisprudência italiana também já forneceu excelentes critérios para a aferição de uma atividade como perigosa176. Entretanto, apesar de definirem bons parâmetros de interpretação, não parece a melhor interpretação engessar e tabelar as atividades sujeitas à incidência da cláusula geral.

Já alertava Carlos Alberto Bittar que “em

determinado momento, ou sob certas condições, a atividade pode perder ou

173

MACHADO, Paulo Affonso Leme. Transporte de cargas perigosas - Aspectos jurídicos: Doutrinas Essenciais de Direito Ambiental. vol. 5. DTR\2012\1659. Mar / 2011. Pg.1210 174 Art . 189 - Serão consideradas atividades ou operações insalubres aquelas que, por sua natureza, condições ou métodos de trabalho, exponham os empregados a agentes nocivos à saúde, acima dos limites de tolerância fixados em razão da natureza e da intensidade do agente e do tempo de exposição aos seus efeitos 175 Art. 193. São consideradas atividades ou operações perigosas, na forma da regulamentação aprovada pelo Ministério do Trabalho e Emprego, aquelas que, por sua natureza ou métodos de trabalho, impliquem risco acentuado em virtude de exposição permanente do trabalhador a: I - inflamáveis, explosivos ou energia elétrica; II - roubos ou outras espécies de violência física nas atividades profissionais de segurança pessoal ou patrimonial. 176 “a existência de previsão legislativa que submeta o desempenho da atividade à autorização do poder público ou à adoção de medidas de precaução, os índices de risco definidos em tabelas de seguro, bem como a existência de taxas de prêmio notadamente superiores à média.” (SALLES, Raquel Bellini. Op. Cit. Pg. 176)

75 assumir esse caráter – conforme o caso – dificultando uma posição precisa em sua qualificação”177. Atividades tidas como perigosas em determinado período histórico podem rapidamente perder essa qualidade devido ao desenvolvimento científico, cada dia mais acelerado178. Assim, o que pode-se concluir é que as atividades catalogadas como perigosas por esses regulamentos e legislações, certamente estão subsumidas à aplicação da cláusula geral, no entanto, isso não impede que outras atividades, não tidas pelos regulamentos e pelas legislações especializadas como atividades perigosas, possam sofrer incidência da norma em comento179. Diante da insuficiência de uma definição precisa do conceito de atividade perigosa que implique “por sua natureza” “riscos para os direitos de outrem”, resta recorrer à doutrina italiana que tem muito mais expertise no tema, devido à consagração de cláusula semelhante no artigo 2050 desde 1942. Neste diapasão, quem melhor definiu o conceito e abrangência que a expressão atividade perigosa tem foi Marco Comporti, citado e livremente traduzido por Cláudio Luiz Bueno de Godoy:

Todas as atividades humanas podem ser perigosas para aqueles que as exercitam e para os terceiros: mas para que o adjetivo ‘perigoso’, referido a uma atividade, possa assumir o seu significado pleno, com que é usado no artigo 2050 CC, deve a atividade ser suscetível de produzir frequentes e notáveis danos a terceiros; isto é, a atividade deve conter em si não uma mera possibilidade de dano, mas uma grave probabilidade, uma notável periculosidade danosa, considerada em relação ao critério da normalidade média e revelada através de dados estatísticos e elementos técnicos de comum experiência.180

177

BITTAR. Carlos Alberto. Responsabilidade civil nas atividades nucleares. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1985. Pg. 100, apud, SALLES, Raquel Bellini. A Cláusula Geral de Responsabilidade Civil Objetiva. Lúmen. 2011.pg. 173 178 SALLES, Raquel Bellini. Op. Cit. Pg. 173 179 BERNARDO, Wesley de Oliveira Louzada. Op. Cit. Pg. 110 180 COMPORTI, Marco. Esposizione al pericolo e responsabilitá civile, pg. 291, apud, GODOY, Cláudio Luiz Bueno. Op. Cit. Pg. 100

76

Com base nisso, Pier Giuseppe Monateri elaborou dois critérios objetivos, um quantitativo consistente na quantidade de danos experimentados pela realização da atividade em questão e outro de caráter qualitativo consistente na gravidade de tais danos181. Outrossim,

como

assinala

Comporti,

tais

critérios

não

são

necessariamente concorrentes. Assim, uma atividade pode ser caracterizada como perigosa mesmo que raramente produzam danos, ao passo que nem todos acidentes rotineiros mesmo que frequentes são passíveis de serem descritos como perigosos. O renomado autor italiano exemplifica em livre tradução de Raquel Bellini Salles:

Assim, por exemplo, quem passeia a pé por uma rua pode também cair e danificar um terceiro ou uma vitrine de um estabelecimento; mas a eventualidade de tal dano é de todo remota, e de qualquer modo o dano não poderia assumir particular gravidade. Diferente é o caso de quem percorra a mesma rua com um veículo, nada menos que um caminhão contendo materiais explosivos ou inflamáveis, porque está demonstrado pelas estatísticas que de tais atividades derivam necessariamente, mesmo sem culpa do agente, freqüentes danos a terceiros. Além disso, mesmo no âmbito das situações de perigo, existe uma ampla graduação da periculosidade: da ruína dos edifícios, que dá lugar a sinistros freqüentemente catastróficos, ainda que raros, se passa às atividades industriais de elevado perigo, onde o dano, ainda que de menores dimensões, acontece com muita freqüência, e se chega às freqüentes hipóteses de sinistros aéreos e navais, sempre muito graves182.

Vale mencionar que mesmo que a doutrina majoritária considere a expressão “por sua natureza implicar risco para os direitos de outrem” como a adoção da ideia de atividade perigosa, ainda existem alguns autores que não compartilham de tal posicionamento. Tais autores entendem que tal expressão 181

MONATERI, Pier Giuseppe. La Responsabilità civile per lo svolgimento di attività pericolose. Disponível em: . Acesso em: 09 mar. 2004, apud, SALLES, Raquel Bellini..Op. Cit. Pg. 163 182

COMPORTI, Marco. Esposiozione al pericolo e responsabilità civile. Napoli: Morano Editore, 1965, apud, SALLES, Raquel Bellini. Op. Cit. Pg, 163

77 não necessariamente traz embutida a ideia de periculosidade. Dentre eles, destacam-se Claúdio Luiz Bueno de Godoy183 e Felipe Kirchner184. Por fim, como bem alerta Caio Mario da Silva Pereira, não se pode esquecer que é imprescindível a aferição do nexo causal para a configuração da responsabilidade civil, e consequentemente, do dever de indenizar. Assim, expõe o brilhante autor:

Cabe, todavia, não levar ao extremo de considerar que todo o dano é indenizável pelo fato de alguém desenvolver uma atividade. Aqui é que surge o elemento básico, a que já acima me referi: a relação de causalidade. Da mesma forma que, na doutrina subjetiva, o elemento causal é indispensável na determinação da responsabilidade civil, também na doutrina objetivista fenômeno idêntico há de ocorrer. A obrigação de indenizar existirá como decorrência natural entre o dano e a atividade criada pelo agente. O vínculo causal estabelecer-se-á entre uma e outro. Num dos extremos esta o dano causado. No outro, a atividade do agente causadora do prejuízo.185

“Exigiu-se, antes, ao menos, que essa mesma atividade induzisse risco a direitos de outrem. De novo, não uma atividade de risco, mas um risco induzido pela atividade exercida. Quer-se é dizer de todo possível que uma atividade, mesmo não sendo intrinsecamente perigosa, induza ou crie a terceiros um risco pelo qual quem a exerce, posto que de forma normal, regular e lícita, deve responder”. (GODOY, Cláudio Luiz Bueno de. Op. Cit.pg 149, apud, DE SOUZA, Wendell Lopes Barboza. Op. Cit. Pg.121). 184 O autor afirma que a supressão da palavra “grande” no Anteprojeto do Código Civil de 2002 denota que o legislador aqui não quis fazer referência ao “grau de periculosidade” e “ao potencial lesivo” de determinada atividade.” Assim, tanto as atividades que acarretam pouco risco quanto aquelas que acarretam muito risco ou, ainda, tanto as atividades que trazem risco individual quanto aquelas que atingem toda coletividade, estarão indistintamente subsumidas a regra do art. 927, parágrafo único, do CC/2002 (LGL\2002\400), o que pode aviltar o senso comum de justiça. Não há, portanto, um escalonamento da eficácia da norma: mesmo a atividade de menor risco, exercida com habitualidade profissional, estará subsumida no seu espectro de aplicação, problemática que passo a enfrentar”.( KIRCHNER, Felipe. Op. Cit. Pg. 46) 185 PEREIRA, Caio Mario da Silva. Responsabilidade Civil. 5. ed. rev. Rio de Janeiro: Forense, 1994. Pg. 289 183

78

5. Aplicabilidade do Artigo 927, parágrafo único para os casos de acidentes automobilísticos Realizado o mapeamento histórico da Responsabilidade Civil, o desenvolvimento dos princípios fundantes em matéria de Responsabilidade Objetiva, bem como, os limites e potenciais interpretativos do artigo 927, parágrafo único, resta-nos agora analisar se tal norma tem o condão de ser o sustentáculo geral para as mais variadas hipóteses de acidentes automobilísticos. Tal tema, sem dúvida, é um dos mais polêmicos da responsabilidade civil atual. O automóvel, na era da imediatidade, tornou-se popularizado, exercendo um imprescindível papel na vida de milhões de pessoas, desempenhando um importante papel de integração e diminuição das distâncias. Da mesma forma, não se pode esquecer que o desenvolvimento da indústria automobilística é responsável hoje pela geração de milhões de empregos. Nesse contexto, muitos temem que a responsabilidade objetiva decorrente da simples atividade de dirigir possibilite um desaquecimento da indústria automobilística, o que acarretaria em perdas irreparáveis para um importante setor econômico. . Ao mesmo tempo em que o automóvel se torna acessível para grande parte da população (devido sobretudo à concessão de benefícios fiscais para as grandes montadoras de automóveis que acarretam na formação de variados modelos de carros populares), cada vez mais o carro deixa de ser um mero meio de transporte para representar também um identificar social e exercer um papel de pertencimento a certa classe. Tal processo estimula que se produzam veículos mais sofisticados e mais potentes, logo, mais perigosos e mais passíveis de gerar danos.

79 Obviamente, tais processos acarretam num significativo aumento do número de danos, fazendo com que os acidentes automobilísticos correspondam a um dos grandes problemas sociais contemporâneos Parte da doutrina entende então que paralelamente ao desenvolvimento de veículos mais potentes, necessário é que haja evolução da Responsabilidade Civil no mesmo sentido, a fim de possibilitar meios mais efetivos de ressarcimento às vítimas. Fato é que estamos longe de ter uma pacificação nesse campo. Em que pese a ausência de sustentáculo legal para a objetivização da responsabilidade civil decorrente de veículos automotores em nosso direito, algumas vozes já ventilavam tal possibilidade desde meados do século XX, como já ressaltado. Atualmente, parte

da doutrina sustenta

a impossibilidade

de

responsabilização objetiva, posto que remanesce a falta de arcabouço legal especifico. Tais autores entendem que não teria aplicabilidade do artigo 927, § único aos acidentes ocasionados por veículos automotores. Arnaldo Rizzardo, por exemplo entende que: “Nos acidentes de trânsito, a culpa é a força máxima que desencadeia a responsabilidade.”186 Por sua vez, há os que entendem que só seria aplicável a cláusula geral, caso o veículo esteja sendo usado para alguma finalidade profissional ou lucrativa. Tal ideia inviabilizaria a aplicação da cláusula geral para os inúmeros acidentes envolvendo veículos de passeio, por exemplo. Sergio Cavalieri

186

RIZZARDO, Arnaldo. Responsabilidade Civil. Rio de Janeiro. Forense. 2005, pg. 32

80 Filho187, Leonardo de Faria Beraldo188 e Pablo Stolze Gagliano189, compartilham dessa tese. Tais doutrinadores aproximam-se da adoção de um conceito de risco proveito, em detrimento de uma noção de risco criado. Contudo, não são poucas as vozes que sustentam a aplicabilidade da cláusula geral de risco às hipóteses envolvendo acidentes de trânsito ainda que tais veículos sejam usados por lazer. Caio Mario da Silva Pereira, idealizador da cláusula geral de responsabilidade objetiva, aduz que:

A teoria do risco criado importa em ampliação do conceito de risco proveito. Aumenta os encargos do agente; é, porém, mais equitativa para a vítima, que não tem de provar que o dano resultou de uma vantagem ou de um beneficio obtido pelo causador do dano. Deve este assumir as consequências de sua atividade. O exemplo do automobilista é esclarecedor: na doutrina do risco proveito a vítima somente teria direito ao ressarcimento se o agente obtivesse proveito, enquanto que na do risco criado a indenização é devida mesmo no caso do automobilista estar passeando por prazer.190

No mesmo sentido José Acir Lessa Giordani e Wesley de Oliveira Louzada Bernardo, respectivamente:

“Logo, no campo de incidência do parágrafo único do art. 927 do Código Civil só estarão os casos que não envolvam transporte de passageiros (serviço público), contratual ou extracontratual, nem relação de consumo. Exemplos: empresa de transporte de carga que, em acidente de trânsito, atropela pedestre ou abalroa veículo de terceiro” (CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 9 ed. São Paulo. Atlas. 2010.Pg 178) 188 “Quem, portanto, explora habitualmente uma grande máquina de escavação e terraplanagem, está permanentemente gerando situação de risco para operários e terceiros que convivam com sua atividade. Quem, por outro lado, usa eventualmente um veículo de passeio (automóvel, motocicleta ou bicicleta etc.) não se pode dizer que desempenhe "atividade normalmente desenvolvida". Já o mesmo não se passa com a sociedade que explora os veículos automotores como instrumento habitual de sua atividade econômica.” (BERALDO, Leonardo de Faria. A responsabilidade civil no parágrafo único e alguns apontamentos sobre direito comparado. Revista de Direito Privado. Out / 2004. vol. 20. p. 222) 189 “(...)vez que, posto aufiram proveito, este não é decorrência de uma atividade previamente aparelhada para a produção deste benefício”(...)“o direito à circulação em avenidas e rodovias é imperativo da própria ordem constitucional, que nos garante o direito de ir e vir” (GAGLIANO, Pablo Stolze. A Responsabilidade extracontratual no novo Código Civil e o surpreendente tratamento da atividade de risco. Jus Navigandi, Teresina, a. 7, n. 64, abr. 2003. Disponível em: http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=4003>. Acesso em: 15 mai. 2004, apud, SALLES, Raquel Bellini. A Cláusula Geral de Responsabilidade Civil Objetiva. Lúmen. 2011. Pg 182) 190 PEREIRA, Caio Mario da Silva. Responsabilidade Civil. 5. ed. rev. Rio de Janeiro: Forense, 1994.Pg. 285 187

81

Não nos parece restarem dúvidas quanto ao enquadramento da maioria dos acidentes de trânsito como uma das hipóteses de responsabilidade civil objetiva baseada no risco criado, estabelecida pelo parágrafo único do art. 927 do Código Civil de 2002.191 A nosso ver, a interpretação do dispositivo não pode ser meramente literal, presa a minúcias, devendo, sim, privilegiar o escopo evolutivo preconizado pelo legislador, no sentido de construir uma proteção mais efetiva a todos os que se encontrem expostos aos riscos gerados pela vida moderna. Neste sentido, não há como negar-se a natureza perigosa da atividade de condução de veículos automotores. A quantidade de danos é imensa e tende a aumentar com os seguidos recordes de produção e venda de veículos no Brasil, (...)192

Por todo o exposto no presente trabalho, outra conclusão não resta senão igual a dos últimos autores citados. Adotando-se o princípio da dignidade da pessoa humana à Responsabilidade Civil Automobilística, a razão de ser desta passa a ser possibilitar a efetiva recomposição patrimonial para uma vítima que sofreu um dano injusto, simplesmente pela sua qualidade enquanto pessoa humana. Adotando-se o princípio da solidariedade social à Responsabilidade Civil Automobilística, passamos a uma lógica de socialização dos riscos, em que os danos devem ser repartidos socialmente, não devendo mais serem atribuídos ao acaso ou ao desvio de conduta de determinado agente. Adotando-se os princípios da justiça distributiva e do bem comum à Responsabilidade Civil Automobilística, seguindo uma concepção aristotélicatomista, os que auferem os lucros do progresso devem também ter de suportar certos ônus, dada a sua condição em determinada sociedade. Assim, abandonase à lógica de que a vítima é a única que deve suportar os danos causados pelo desenvolvimento de determinada atividade.

191

GIORDANI, José Acir Lessa . A responsabilidade civil objetiva genérica. 2ª ed. Rio de Janeiro. Lumen Juris. 2007. pg. 97 192 BERNARDO, Wesley de Oliveira Louzada, Responsabilidade civil automobilística: por um sistema fundado na proteção à pessoa. São Paulo. Atlas. 2009.pg 114.

82 Calcado em tudo isso, a teoria do risco criado, como foi exposto é a que melhor atende aos fins de tais princípios. E adotando-se tal concepção, o dano decorrente do exercício de qualquer atividade perigosa deve dar azo à indenização para a vítima, independente de culpa. Não resta outra solução, senão reconhecer que essa é a interpretação que deve ser tida do artigo 927, § único, entendendo-o aplicável aos danos decorrentes de acidentes automobilísticos, ainda que os veículos envolvidos sejam os de passeio. Feitas essas considerações, algumas situações envolvendo acidentes devem ser melhor elucidadas. Quando o acidente envolver apenas um veículo, como por exemplo, um atropelamento, ou a colisão a uma arvore, uma casa, um muro, um poste, aplicarse-á o artigo 927, parágrafo único do Código Civil e o agente responsável pelo desenvolvimento de tal atividade deverá indenizar, desde que o nexo causal não tenha sido rompido. Caso ocorra concausalidade, a fim de determinar o valor indenizatório, deve-se fazer uso da teoria do risco concorrente. Oportunos são os exemplos citados por Caitlin Mulholland:

O segundo caso é a contrário sensu, o de uma pessoa que assume o risco de sofrer um dano através de conduta perigosa, quanto tinha a capacidade de antever a realização do resultado. Aqui a vítima conhecia e previa a possibilidade do evento danoso e aceita o risco do dano, como se fosse um blefe (culpa consciente). Mesmo nessa hipótese não pode haver a exclusão da responsabilidade por parte do agente. Primeiramente, porque não é possível inferir-se a existência de um contrato tácito de assunção de riscos e exclusão da responsabilidade. E em segundo lugar, porque o dano ocasionado teve como causa a conduta de um agente. Contudo, nesse caso, existe uma diminuição do quantum indenizatório, na medida em que existe uma concorrência de causas. (...) Outro exemplo é o da pessoa que atravessa a rua em local permitido, com sinal aberto para ela, mas a tempo de impedir o dano, a atropela. Há concorrência de culpas, pois o

83 pedestre assumiu os riscos de sua atitude, por mais que fosse lícita, de gerar o dano ocasionado.193

Os problemas começam a surgir quando existirem na situação dois ou mais veículos. Em tais casos, existirão pelo menos dois produtores de risco, como por meio da cláusula geral de risco determinar-se-á então quem deve indenizar quem, se os dois estão exercendo ao mesmo tempo atividade perigosa? Maria Celina Bodin de Moraes afirma que em tais casos, deve-se perquirir de quem é a culpa para determinar quem deve indenizar.194 Todavia, não se pode concordar com tal solução. De nada adiantaria todo o esforço interpretativo proposto para depois novamente buscarmos embasamento na ideia de culpa para imputar quem deve indenizar quem. Assim, melhor solução é aquela proposta por Gisela Sampaio Cruz e Raquel Bellini Soares, em que a culpabilidade é substituída pela causalidade, isto é, deve averiguar-se quem efetivamente deu causa ao acidente. Vale trazer à baila, a lição das duas, respectivamente:

A culpa, frise-se uma vez mais, não deve servir como medida da indenização. Este papel cabe, isto sim, ao nexo causal. Perante a vítima, os corresponsáveis pelo dano são solidariamente responsáveis, mas, nas suas relações internas, é a eficácia causal de cada conduta, e não o grau de culpa, que deve definir as parcelas do prejuízo que ficarão por conta dos agentes. Do contrário, estar-se-ia punindo o agente que atuou com culpa mais grave, e a responsabilidade civil não tem esta função.195 Apesar dessa frequente invocação da culpa na análise do nexo causal e, por conseguinte, na medida da própria indenização, entendemos que o problema da concorrência de riscos, que consubstancia mais um problema de concorrência de causas do que culpas, deve buscar solução na seara do próprio nexo de causalidade, a

193

MULHOLLAND, Caitlin Sampaio. A responsabilidade civil por presunção de causalidade. Rio de Janeiro: GZ, 2009. 194 MORAES,Maria Celina Bodin de. Risco, Solidariedade e Responsabilidade Objetiva. Pg 1 195 CRUZ. Gisella Sampaio. O Problema do nexo causal na responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 333, apud, SALLES, Raquel Bellini. A Cláusula Geral de Responsabilidade Civil Objetiva. Lúmen. 2011. Pg. 186

84 partir da concreta apuração da causa ou das causas efetivamente operantes na produção do evento danoso.196

Todavia, tal interpretação encontraria óbice no parágrafo único do artigo 944, bem como, no artigo 945 do CC que explicitamente referem-se a necessidade de aferição de culpa para saber o valor que deve ser indenizado, o que seria incompatível com a responsabilidade civil objetiva. Visando compatibilizar a responsabilidade objetiva com o disposto nos dois artigos citados, alguns nomes da doutrina têm se destacado. Paulo de Tarso Sanseverino, ministro do STJ, propõe que a substituição da expressão “gravidade de culpa” por “relevância da causa”.197 Flavio Tartuce, por sua vez, advoga pela aplicação da teoria do risco concorrente em substituição a ideia de culpa concorrente:

Apesar das tentativas de compatibilização entre risco e culpa, esclarecendo o teor do presente estudo, pretende-se que, no Direito Brasileiro, em vez de se utilizar o termo culpa concorrente da vítima na responsabilidade objetiva, como é comum na doutrina e na jurisprudência, faça-se uso dos termos fato concorrente, corresponsabilidade da própria vítima e , principalmente, risco concorrente da vítima, no intuito de atenuar o nexo de causalidade e o correspondente quantum indenizatório.198

Assim, quando estivermos diante de um acidente envolvendo ao menos dois veículos, deve primeiramente se perquirir através da produção de provas, quem deu causa ao acidente. Em um segundo momento, caso se esteja diante da

196

SALLES, Raquel Bellini. A Cláusula Geral de Responsabilidade Civil Objetiva. Lúmen. 2011. Pg. 186 197 SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Indenização e equidade no Código Civil de 2002, 2. Ed. São Paulo: Saraiva, 2007. Pg. 103-204, apud, TARTUCE, Flávio. Responsabilidade Civil Objetiva e Risco-A teoria do risco concorrente, São Paulo;MÉTODO,2011. Pg. 257 198 TARTUCE, Flávio. Responsabilidade Civil Objetiva e Risco-A teoria do risco concorrente.,São Paulo;MÉTODO,2011. Pg. 262

85 concausalidade, deve-se usar a teoria do risco concorrente para diminuir o valor indenizatório. Logo, não há que se falar em necessária pesquisa da culpa. Em outro giro, não se pode esquecer que a responsabilidade civil pelo exercício de atividade perigosa não exclui a responsabilidade decorrente da guarda jurídica de uma coisa, que tem o proprietário. Em tais casos, responderão solidariamente o condutor e o proprietário do veículo. Como alerta, José Acir Lessa Giordani:

Não se trata, na hipótese de culpa in elegendo, mas sim de pura responsabilidade objetiva, que se apura independente de culpa. A questão se situa apenas na causalidade. Desta forma, podemos afirmar, se o proprietário ou o legitimo possuidor do automóvel não tivesse confiado seu uso a terceiro, mediante o exercício de um dos poderes inerentes ao domínio, qual seja, o uso ou a fruição, o acidente não teria ocorrido.(...) O fato é que o risco pelo fato de emprestar, alugar ou cometer deve ser arcado pelo dono do veículo, e não pela vítima.199

Outrossim, quando estivermos diante de hipótese de acidente ocasionado por veículo roubado ou furtado, não há que se falar em obrigação de indenizar do proprietário, caracterizando-se hipótese de fortuito externo.200

199

GIORDANI, José Acir Lessa . A responsabilidade civil objetiva genérica. 2ª ed. Rio de Janeiro. Lumen Juris. 2007. Pg 101 200 Ibid. Pg. 102

86

6. Jurisprudências relevantes 6.1.

Tribunais de Justiça

É do Rio e Janeiro, a primeira decisão a ser estudada que aplica o artigo 927 § único para casos de acidentes automobilísticos. Trata-se da Apelação Cível 2003.001.19353201 de relatoria do desembargador Luis Fernando Ribeiro de Carvalho, em que um Towner202 colidiu com um caminhão, gerando graves danos ao motorista do Towner. No caso em questão, a atividade da empresa é descrita da seguinte forma pelo estatuto social: “transportes rodoviários de cargas, por vias estaduais e interestaduais bem como a locação de veículos de transportes para terceiros.” O magistrado então considerou que a atividade em questão, deveria ser enquadrada como perigosa, gerando assim, a indubitável obrigação de responder. Ele discorre sobre responsabilidade subjetiva e objetiva, citando Regina Beatriz Tavares da Silva:

(...)Assim, enquanto na responsabilidade subjetiva, embasada na culpa, examina-se o conteúdo da vontade presente na ação se dolosa ou culposa, tal exame não é feito na responsabilidade objetiva, fundamentada no risco, no qual basta a existência do nexo causal entre a ação e o dano, porque de antemão aquela ação ou atividade, por si só, é considerada potencialmente perigosa(...)a teoria que melhor explica a responsabilidade objetiva é a do risco criado, adotada pelo novo código civil, pelo qual o dever de reparar o dano surge da atividade normalmente exercida pelo agente, que cria risco a direitos ou interesses alheios(...) Como se verifica na teoria do risco criado, a responsabilidade civil é realmente objetiva, por prescindir de qualquer elemento subjetivo, de qualquer fator anímico, basta a ocorrência do dano ligado casualmente a uma atividade geradora de risco, normalmente exercida pelo agente203.

201

TJRJ, Apelação Cível. Processo No: 0007369-46.2001.8.19.0021 (2003.001.19353), Rel. Des. Luiz Fernando Ribeiro de Carvalho, Rio de Janeiro, 30 de setembro de 2003. 202 Espécie de minivan 203 DA SILVA. Regina Beatriz Tavares. In Novo código civil comentado, editora saraiva, Ricardo Fiuza, 1ª edição, 2ª tiragem,2002,pags. 819/820.

87 E por fim, ele expõe a norma aplicável ao caso concreto:

Como se percebe, independente de culpa, do acidente surgiu para a ré, a obrigação de reparar o dano, diante do risco inegavelmente acarretado para os direitos de outrem (Código civil, art.927, parágrafo único).

De fato, como ressaltado ao longo do presente trabalho, adotando-se a teoria do risco criado, como diz ter feito o magistrado a quo, a atividade de direção de veículos pode sim ser considerada como uma atividade normalmente desenvolvida (pois a atividade de direção é um conjunto de atos coordenados) e que por sua natureza é perigosa, dado os inúmeros relatos de acidentes automobilísticos contemporâneos. A atividade de carga pode ser considerada uma atividade perigosa, pois:” como esclarece Raquel Salles, referindo-se a Marco Comporti:

Há atividades que, embora causem danos frequentes, por serem estes geralmente menos significativos, não podem ser qualificadas como perigosas, enquanto outras, apesar de raramente produzirem danos, quando estes ocorrem, traduzem gravíssimas consequências204.”

Portanto, a periculosidade inerente aos transportes de carga, considerando-se os danos que sempre são gravíssimos, e a imensa quantidade de acidentes nesse sentido, pode ser aplicado ao caso o artigo 927, parágrafo único do Código Civil. Contudo, vale frisar que nessa hipótese o risco proveito também daria ensejo a obrigação de indenizar.

204

COMPORTI, Marco. Esposiozione al pericolo e responsabilità civile. Napoli: Morano Editore, 1965. Pg. 174, apud, SALLES, Raquel Bellini. A Cláusula Geral de Responsabilidade Civil Objetiva. Lúmen. 2011. Pg 171

88 Outrossim, cabe agora, trazer à baila decisão do Tribunal de Justiça do Espirito Santo. Trata-se da Apelação Cível Nº 11070109902205, cujo relator foi o desembargador Samuel Meira Brasil Junior. O caso diz respeito a acidente automobilístico que ocasionou o óbito de um motorista, quando chapas de granito se desprenderam de um caminhão e acertaram a vítima que dirigia outro automóvel. O desembargador entendeu aplicável ao caso o parágrafo único do 927, pois atividade de transporte de carga configura atividade de risco, e o nexo ficou evidenciado, pois de acordo com o magistrado:

” Restou incontroverso nos autos que o fator determinante para a ocorrência do acidente e para a morte da vítima foi o mau acondicionamento da carga – chapas de granito – na carroceria da Scania.”

Assim, resta mais do que evidenciada, a responsabilidade da empresa transportadora. No presente caso, ainda que não restasse comprovado que a carga estava mal acondicionada (o que denota negligência, por parte do preposto), a empresa seria transportadora deveria ser responsabilizada do mesmo jeito, pois a atividade de transporte de carga, por si só, é uma atividade perigosa, em virtude dos graves danos possíveis decorrentes dessa atividade. O segundo caso relevante do Tribunal de Justiça do Espirito Santo é a Apelação Cível nº: Nº 11070086076206, julgado em 10 de fevereiro de 2009, sob relatoria do desembargador substituto Willian Silva. Também é um caso de

205

TJES, Ap. Cível. 0010990-77.2007.8.08.0011 (011.07.010990-2), Rel. Des. Samuel Meira Brasil Junior, Espirito Santo, 06 de fevereiro de 2012. 206 TJES, Ap Cível. 0008607-29.2007.8.08.0011 (011.07.008607-6), Rel. Des. Willian Silva. Espirito Santo. 10 de fevereiro de 2009

89 acidente automobilístico envolvendo transporte de cargas. No caso, o preposto da ré atropelou o filho dos autores, vindo este a falecer no local. O desembargador entendeu que é aplicável a clausula geral de risco do parágrafo único do artigo 927, sob o argumento de que toda pessoa que exerce uma atividade que cria risco de danos para terceiros, deve ser obrigada a reparálo. Entretanto, para esse entendimento prosperar, o magistrado teve que adotar a teoria do risco criado. A atividade da empresa ré, é o transporte de cargas, sendo assim, pelas razões já expostas, de fato se configura a atividade perigosa. Vale novamente frisar, que nesse caso, mesmo que a atividade da ré, não fosse de transporte de cargas pesadas, deveria o causador do dano ser do mesmo modo responsabilizado, pois como o desembargador explicitamente adotou a teoria do risco criado, a simples atividade de dirigir já seria uma atividade perigosa, pois propensa a gerar danos graves. Por sua vez, a próxima decisão que será analisada será do Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Trata-se da Apelação Cível n. 2010.080444-7207, de Indaial, de relatoria do ministro Marcus Túlio Sartorato em decisão proferida no dia 5 de julho de 2011. O caso trata de um acidente envolvendo um caminhão que transportava seis bobinas de aço, duas sob responsabilidade de uma das rés(Tora Logística Armazéns e Terminais Multimodais S/A), e quatro sob responsabilidade de outra ré(Expresso Veramar Ltda.), que por sua vez haviam sido contratadas pela CSN e pela Indústria Nacional de aços laminados para fazer o transporte. Por economia de custas, as rés, decidiram terceirizar o serviço, contratando os serviços de um motorista de caminhão.

207

TJSC. Ap. Cível. 2010.080444-7. Rel. Marcus Tulio Sartorato. Santa Catarina. 05 de julho de 2011

90 O atendimento da ocorrência do profissional de trânsito assim descreve o acidente:

“Após levantamento feito no local do acidente, concluímos que o condutor do V-1 colidiu lateralmente com o V-2 que seguia em sentido contrário. Uma bobina metálica despencou da carroceria do V-1 atingindo a cabine do V-3, que seguia em sentido contrário; V-3 também foi colidido na traseira pelo V-5 e ao desviar de uma bobina metálica que estava sobre a pista. O condutor do V-1 evadiu-se do local do acidente, abandonando seu veículo”.

O motorista de v-3 morreu na hora. Resta evidente então a aplicabilidade da responsabilidade objetiva prevista no artigo 927 §único, já que transporte de bobinas de aços é uma atividade sabidamente perigosa. Nas palavras do magistrado :

Relativamente ao risco do transporte, consta na "lista de checagem" realizada em 10.3.2005 - quando o caminhão ainda possuía apenas duas bobinas, segundo relata a empresa Tora Logística Armazéns e Terminais Multimodais S/A -, o peso da carga de 18.690 Kg (dezoito mil, seiscentos e noventa quilos – fl. 153), sendo posteriormente acrescidas mais quatro bobinas, ao que se conclui, procedendo-se uma simples cálculo, que o caminhão transportava no momento do acidente um peso de aproximadamente 54 t (cinquenta e quatro toneladas).

A seguir o magistrado, discorre sobre os elementos da responsabilidade civil objetiva, como o dano já se faz comprovado pelo óbito do motorista de V 3, necessária é, a prova do nexo de causalidade. O magistrado então chega à conclusão que:

O peso desproporcional, aliado às próprias condições do veículo, conforme facilmente se infere das fotografias de fl. 38, foram fatores preponderantes para o sinistro, evidenciando o nexo de causalidade entre o acidente e dano sofrido pelos autores ante a perda de esposo e pai.

91 Novamente, percebe-se que, em que pese a fundamentação no artigo 927, parágrafo único do Código Civil, implicitamente o magistrado a quo subordinou o dever de indenizar à ocorrência de desídia por parte do preposto em colocar excesso de peso no caminhão. Pelo exposto no presente trabalho, conclui-se que seria desnecessária tal menção, já que o transportador de bobinas de aço, claramente exerce uma atividade de notória potencialidade danosa, caracterizando-se como de risco. Por sua vez, no TJPR, vale trazer à baila, a Apelação Cível N.º 5262079208 , datada de setembro de 2009, de relatoria do desembargador José Aniceto. Nele, a empresa W.R.G Transportes Rodoviários Ltda, pleiteia ação de danos materiais cumulada com lucros cessantes, sob o argumento de que os funcionários da ATT - Armazenagem, Transporte e Transbordo Ltda, quando descarregando carga de farejo de soja na empresa recorrida, não manejaram corretamente a operação, ocasionando o rompimento das cintas que sustentam as carretas, causando a queda e danos nos veículos. O juiz de primeira instância julgou improcedente o pedido, fundamentando na ausência de culpa da Ré: "No mérito, a razão está com a ré. Não existe sinal de que tenha sido ela culpada, por si ou por seus prepostos, pela produção do sinistro que se discute." A W.R.G Transportes Rodoviários Ltda recorreu fundamentando a responsabilidade da ATT - Armazenagem, Transporte e Transbordo Ltda no artigo 927, parágrafo único, afirmando que esta desempenha atividade de risco, defendendo assim que irrelevante a demonstração de culpa. O desembargador entendeu que no caso em questão, a atividade da recorrida é de risco, como se percebe de acordo com a seguinte passagem:

208

TJPR. Ap. Cível. N.º 526207-9. Rel. José Aniceto. Paraná. 10 de setembro de 2009

92 Avalia-se dos autos que a requerida, ATT - Armazenagem, primeira apelante, presta serviços de transbordo e armazenagem, sendo que, no caso em tela, realizou o serviço de descarregamento, transbordo, da carga de farelo de soja transportada pelos apelantes 2 para a empresa Bungë Alimentos S.A. (...) Examinando-se o peso de um caminhão com duas carretas carregadas, Bitrem, entende-se que a atividade de incliná-lo por meio de um equipamento a 40º graus, para possibilitar o escoamento da carga, configura uma atividade de risco de danos ao veículo, de modo que o equipamento se utiliza de travas e cordas para alcançar a paralisação do veículo naquela posição, verificando-se que a sua inclinação nestes termos, somada ao peso do veículo, traz o risco inerente de sua queda.

O magistrado então prossegue no julgamento do mérito, e disserta sobre a clausula geral de risco do artigo 927 parágrafo único do código civil, cita nomes como Rui Stoco, Caio Mario da Silva Pereira e Eugênio Fachinni Neto, estabelecendo parâmetros de aplicação do artigo 927,parágrafo único(citando inclusive uma interessante passagem de Rui Stoco sobre o código mexicano209), fundamentando o dever do magistrado em estabelecer o conteúdo da clausula geral210 e a irrelevância da prova da culpa diante da licitude da atividade desenvolvida211 . Por fim, entende, por todos os motivos expostos, aplicável ao caso em questão, o artigo 927, parágrafo único do Código Civil:

209

"Quando uma pessoa faz uso de mecanismo, instrumentos, aparelhos ou substâncias perigosas por si mesmas, pela velocidade que desenvolvem, por sua natureza explosiva, ou inflamável, pela energia da corrente elétrica que conduzam ou por outras causas análogas, está obrigada a responder pelo prejuízo que causar, mesmo que não obre ilicitamente, a não ser que demonstre que esse prejuízo foi produzido por culpa ou negligência exclusiva da vítima". (STOCO, Rui, Tratado de responsabilidade Civil doutrina e jurisprudência, 7ª Edição, Ed. Revista dos Tribunais, p. 177). “O parágrafo único do art. 927 do CC encarregou o magistrado de estabelecer se, à luz do caso concreto, a hipótese é, ou não, de exercício de atividade de perigosa. Se entendê-la perigosa, aplicará o principio da responsabilidade objetiva e verificará apenas se o comportamento do agente se liga ao resultado danoso e se inexiste causa excludente da responsabilidade.” (STOCO, Rui, Tratado de responsabilidade Civil doutrina e jurisprudência, 7ª Edição, Ed. Revista dos Tribunais, p. 177). 211 Tome-se como exemplo a hipótese do parágrafo único do art. 927 do CC que, ademais de responsabilizar independentemente de culpa, não impõe que o ato seja ilícito, bastando que a atividade lícita desenvolvida possa implicar, por sua natureza, riscos para o direito de outrem e dela, eventualmente, se origine um dano." (STOCO, Rui, Tratado de responsabilidade Civil doutrina e jurisprudência, 7ª Edição, Ed. Revista dos Tribunais, p. 157) 210

93

Nestes termos, verificando-se configurar a atividade em apreço atividade de risco, e o veículo estar sob a guarda da empresa de transbordo, aplica-se a responsabilidade objetiva da empresa apelante 1, na forma possibilitada pelo art. 927, parágrafo único, do Código Civil, sendo incontroverso os danos (fls. 36/40) e o nexo causal entre estes e a atividade de transbordo, averiguando-se que não restou comprovado nos autos qualquer excludentes de responsabilidade, principalmente a culpa exclusiva dos apelantes 2, como tentou convencer a apelante 1, entendendo-se o dever das requeridas pela reparação dos danos comprovados pelos autores.

Pelos fins a que se propõe o presente estudo, tal decisão é relevantíssima. Pois, mais do que reconhecer a periculosidade da atividade de transporte de cargas, tal acordão aplica a cláusula geral de risco para uma hipótese cuja periculosidade não está somente na atividade fim, ou seja, aplica o artigo a uma situação na qual os instrumentos que possibilitam o desenvolvimento da atividade também configuram-se como perigosos. Não há que se falar também em aplicação do Código de Defesa do Consumidor, pois a relação entre essas duas empresas não constitui relação de consumo pela ausência de destinação final e pela ausência de vulnerabilidade. A próxima decisão que merece destaque é do Tribunal de Justiça da Bahia. Trata-se da Apelação Cível nº:7330-6/2006212, cujo relator foi o desembargador Sinésio Cabral Filho, em que o veículo da empresa Ambev que transportava carga atingiu a residência da autora, causando-lhe danos graves. O magistrado expõe de que forma a cláusula geral de risco do artigo 927, § único é aplicável ao caso em questão:

(...)quem terceiriza seus serviços também permanece responsável pelas consequências decorrentes da atividade prestada pela terceirizada, (bônus/ônus da atividade exercida - Teoria do Risco Criado ou Profissional (art. 927, parágrafo único do CC/2002) -, mais especificamente no que diz respeito aos danos causados injustamente a terceiros).

212

TJBA. Apelação Cível nº:7330-6/2006. Rel. Sinésio Cabral Filho. Bahia. 17 de março de 2009

94

Observamos, portanto, entendimento do magistrado de que o art. 927 § único seria um exemplo de teoria do risco criado ou profissional, ou seja, entende que não necessariamente deve o executor da atividade auferir algum proveito. Entretanto, no presente caso, tal distinção não faria sentido, porque o veículo que causou o acidente foi contratado junto a uma empresa que explora uma atividade econômica. Outra decisão que merece destaque foi encontrada no Tribunal de Justiça do Sergipe. Trata-se da Apelação Cível 5367/2011213 referente ao processo 2011211142 de relatoria do desembargador Osório de Araujo Ramos Filho. O desembargador reconheceu a responsabilidade objetiva do proprietário do carro, mesmo que o dano tenha sido causado por terceiro na direção do veículo, e justificou essa responsabilidade com base no artigo 927, parágrafo único, conforme o trecho a seguir:

Dúvida não há acerca da existência da responsabilidade objetiva da requerida, que encontra-se consagrada no parágrafo único do artigo 927 do CC. Pois, em matéria automobilística, a melhor jurisprudência firmou entendimento no sentido de que o dono do veículo responde sempre pelo ato culposo de terceiro, a quem entregou ou permitiu o uso de seu automóvel, seja seu preposto ou não. Temos aqui a situação em que o proprietário do veículo assume o risco do uso indevido.

Tal decisão é de extrema relevância, pois reconhece a responsabilidade objetiva, não com base exclusivamente no exercício de uma atividade perigosa, mas também com base na teoria da guarda, ou seja, entende que quem exerce a guarda sob uma coisa, deve responsabilizar-se pelos danos dela decorrentes.

TJSE. Apelação Cível 5367/2011 (Processo – 2011211142). Rel. Osório de Araujo Ramos Filho. Sergipe. 16 de janeiro de 2011 213

95 A relevância está no fato do magistrado entender que

tal

Responsabilidade Civil se dá com base no artigo 927, parágrafo único do CC. O que afasta aquela ideia de que as hipóteses de teoria da guarda merecedoras de especial proteção, já haviam sido contempladas pelo legislador do Código Civil de 2002, devendo as demais serem apreciadas mediante culpa. Pelos motivos expostos ao longo do presente estudo, é plenamente aplicável o artigo 927, parágrafo único às hipóteses envolvendo a guarda jurídica de automóveis. Aqui, deve-se considerar a potencialidade danosa da atividade automobilística, conjuntamente com o poder de guarda do proprietário. Na região centro-oeste, foram encontradas duas decisões relevantes. A primeira delas é a Apelação Cível Nº 48869/2005214 do Tribunal de Justiça do Mato Grosso julgada em 12 de Junho de 2006 sob relatoria do desembargador José Silverio Gomes. Trata-se de ação promovida pelo eletricista Eliomar Borges de Souza contra a empresa ré Liderbrás Logística e Transportes LTDA, sob a alegação de que ele sofreu acidente de trânsito em virtude de explosão e incêndio de um caminhão que transportava gás liquefeito de petróleo. O desembargador entendeu aplicável ao caso em questão o parágrafo único do 927, em virtude da potencialidade ou possibilidade de danos, conforme se extrai do seguinte trecho:

Nesse diapasão, o exercício de atividade que, de uma forma ou de outra, coloque em perigo a segurança e a incolumidade de outrem, vincula o responsável pelo negócio à reparação de eventuais danos a terceiros, independente de culpa. Isto porque, sabendo da potencialidade ou possibilidade de danos, optou por dedicar-se a essa atividade. Assim, não há como negar que o transporte via terrestre de gás liquefeito efetuado pela empresa ré, oferece perigo em potencial, àqueles que transitam, concomitantemente, pelas rodovias.

214

TJMT. Ap. Cível 48869/2005 ( Processo 0048869-41.2005.8.11.0000). Rel. José Silvério Gomes. Cuiaba. 04 de Julho de 2006

96

Notório é que a atividade de transporte de gás liquefeito é uma atividade perigosa, devido a imensurável potencialidade lesiva intrínseca ao exercício dessa atividade. Logo, acertada a aplicação da cláusula geral a tal atividade. Outrossim, o segundo caso a merecer destaque da região centro-oeste, é do Tribunal de Justiça do Distrito Federal. A Apelação Cível 2004.01.1.0479525215, foi julgada no dia 13 de novembro de 2006, sob relatoria do desembargador Sandoval Oliveira, em que o autor alega ter sofrido danos em virtude de acidente automobilístico causado por conduta imprudente associada a problemas elétricos, que teriam causado o acidente. A juíza de primeiro grau, entendeu que se trata de culpa recíproca, pois segundo os réus, o autor também dirigia acima do limite de velocidade e não observou a sinalização da rodovia. A ré, empresa de transporte de cargas, postulava ilegitimidade ativa, pois o veículo não estava sendo dirigido por nenhum preposto dela. Contudo, tal argumento não prosperou. O desembargador entendeu pela participação da ré na causa, justamente pela ideia de risco da atividade, isto é, quem se propõe a desenvolver certa atividade, deve arcar com os prejuízos daí decorrentes. Calcado na prova pericial, entendeu o Desembargador que o autor não agiu com culpa, logo, afastou a culpa concorrente, estabelecendo a responsabilidade da ré, fundada no art. 927, parágrafo único. Outrossim, vale salientar que mesmo que houvesse culpa recíproca, o simples exercício da atividade, já embasaria o dever de indenizar, podendo ser aplicada a tal caso a teoria do risco concorrente.

215

TJDF. Ap Cível. 2004.01.1.047952-5. Rel. Sandoval Oliveira. Distrito Federal. 13 de novembro de 2006

97

6.2.

Tribunais Superiores

Em apenas, uma oportunidade, o STJ aplicou a cláusula geral de responsabilidade objetiva do código civil de 2002 a um caso de acidentes automobilísticos. Tal fato, ocorreu no Recurso Especial Nº 469.867216 - SP (2002/01241207) ajuizado por Gatusa Garagem Americanópolis Transportes Urbanos Ltda contra Acordão do Tribunal de Justiça de São Paulo que reconheceu a responsabilidade da referida transportadora por acidente automobilístico que provocou morte de menor. O acidente automobilístico envolveu dois caminhões, um carro e um ônibus. Além dos dois atropelamentos decorrentes, o acidente causou danos a dois veículos parados na calçada, bem como, ao muro de uma casa. O Relator foi o Ministro Carlos Menezes Direito, que entendeu pela responsabilidade do ônibus com base no risco da atividade, fundamentando o dever de indenizar com base no artigo 927, parágrafo único. Vale transcrever trecho da referida decisão:

(...)em se tratando da responsabilidade das empresas transportadoras, responsabilidade objetiva, a jurisprudência das Cortes superiores foi construída no sentido de somente reconhecer o fato de terceiro como excludente de responsabilidade se e quando não guardasse conexidade com o transporte. E como se sabe, acidente de trânsito não é estranho ao transporte. Em tal circunstância, repito, tratando-se de empresa de transporte coletivo, a diferença de situações não abala a conclusão em favor do dever de indenizar com a garantia do direito de regresso. É uma orientação firme e benfazeja, baseada no dever de segurança vinculado ao risco da atividade, que a moderna responsabilidade civil, dos tempos do novo milênio, deve consolidar. É por isso que “quem se dispõe a exercer alguma atividade perigosa terá que fazê-lo com segurança, de modo a não causar dano a ninguém, sob pena de ter que por ele responder independentemente de culpa” (Comentários ao Código Civil, cit. págs.153/154). Vejase que já o Código Civil de 2002, no parágrafo único do art. 927, criou uma cláusula 216

STJ. RESP Nº 469.867/ SP. Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito. Brasília 14 novembro de. 2005.

98 geral de responsabilidade objetiva ao mencionar a obrigação de reparar o dano independentemente de culpa. Adotou-se a teoria do risco criado, defendida por Caio Mário, o que significa reconhecer a obrigação de reparar o dano quando a atividade normalmente desenvolvida implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem (Responsabilidade Civil, Forense, 9ª ed., pág. 284).

Todavia, em que pese o pioneirismo de tal decisão, necessário é reconhecer que ônibus é prestador de serviço público (fato que é inclusive ressaltado

pelo

Ministro).

Assim,

imprescindível

reconhecer

que

a

responsabilidade das empresas prestadoras de serviço público é objetiva desde 1988, conforme o art. 37, 6º da CRFB, que se subsumiria melhor a presente hipótese. Outrossim, em que pese a ausência de reflexão do STJ sobre o tema, vale salientar que o Tribunal Superior do Trabalho tem sido um dos principais aplicadores da cláusula geral de responsabilidade objetiva do artigo 927, parágrafo único para fundamentar o dever de indenizar em acidentes automobilísticos, nos quais, adveio algum dano em virtude de acidentes sofridos pelo empregado de determinada empresa transportadora. Analisaremos como paradigma, o Recurso de Revista n° TST-RR148100-16.2009.5.12.0035217 de Relatoria do Ministro Alberto Luiz Bresciani de Fontan Pereira. A decisão recorrida, entendia que a atividade exercida pelo autor, expunha o empregado a risco de dano, sendo a culpa da empresa decorrente de previsibilidade da ocorrência de danos na BR 101, conhecida por seus acidentes. O referido Ministro entendeu que estava presente o dever de indenizar com base no potencial lesivo da atividade de dirigir em estradas brasileiras. Nas palavras do Ministro:

217

TST. RR 148100-16.2009.5.12.0035. Rel. Ministro Alberto Luiz Bresciani Fontan Pereira. Brasilia. 16 de fevereiro de 2011

99

Nos termos do art. 927, parágrafo único, do Código Civil de 2002, -haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem- (grifei). (...) Assim, no caso de responsabilidade objetiva, tendo em vista o exercício de atividade de risco na execução do contrato de trabalho, despiciendo o exame da culpa lato sensu do empregador, bastando a demonstração do dano e do nexo causal, como requisitos da indenização. Ressalte-se, por oportuno, que o fato de terceiro apto a excluir o nexo de causalidade seria aquele estranho à atividade prestada pelo trabalhador. No caso, se o acidente ocorre enquanto o motorista dirige em estrada, sendo provocado por outros veículos, não se pode afirmar que ocorreu fato de terceiro sem vínculo com os riscos inerentes ao deslocamento. No caso, restou consignado, no acórdão regional, que o infortúnio decorreu de acidente automobilístico, quando o Obreiro, exercendo sua função de motorista, a serviço da Reclamada, foi atingido, abruptamente, por outro veículo. Note-se que a atividade normalmente exercida pelo Empregado, motorista de viagem, submetia-o, diariamente, a superlativos fatores de risco, superiores àqueles a que estão sujeitos o homem médio. Importa registrar que os motoristas profissionais enfrentam, cotidianamente, grandes riscos com a falta de estrutura da malha rodoviária brasileira. A existência de curvas perigosas, buracos na pista, pisos irregulares, sinalização inexistente ou insuficiente, falta de acostamento, animais soltos nas estradas e imprudência de outros motoristas são alguns dos graves problemas das estradas nacionais. O risco de acidentes é constante. É verdade que qualquer um pode sofrer acidente automobilístico nas rodovias brasileiras. Ocorre que, em razão de sua atividade, o motorista é colocado em um degrau de maior probabilidade de se submeter a tais desastres. E não se pode afirmar que a simples observância das leis de trânsito colocaria esse trabalhador em situação de segurança, visto que, conforme já explicitado, o perigo é notório e permanente. Nesse contexto e tendo-se em vista as alarmantes estatísticas, registrando os inúmeros acidentes de trânsito nas rodovias brasileiras, revela-se inafastável o enquadramento da profissão exercida pelo Obreiro como atividade de risco, o que autoriza a aplicação da responsabilidade civil objetiva ao empregador.

Logo, em que pese o foco do presente estudo não ser o efeito do artigo 927, parágrafo único sob as relações trabalhistas, é relevante que tais decisões do TST, possam servir de inspiração para os Julgadores dos demais Tribunais Superiores brasileiros.

100 Conforme se depreende da leitura das decisões, em que pese em alguns casos terem feito referência ao risco criado, os nossos julgadores tacitamente adotaram uma concepção de risco proveito, entendendo que o artigo 927, parágrafo único do Código Civil só deve ser aplicado às hipóteses envolvendo acidentes automobilísticos em que um dos veículos auferir determinada vantagem com o desenvolvimento de uma atividade. Logo, mesmo com os estarrecedores dados estatísticos sobre acidentes automobilísticos, bem como, levando-se em conta o potencial lesivo deles decorrentes, não tem a jurisprudência pátria considerado a mera atividade de dirigir como uma atividade perigosa, o que vai de encontro às conclusões do presente estudo.

101

Conclusão 1. A ideia de culpa não conseguiu garantir uma efetiva reparação para as vítimas de danos decorrentes dos progressos inerentes ao desenvolvimento industrial. 2. Com base nas ideias de justiça distributiva, bem comum, solidariedade social e dignidade da pessoa humana, surgiu um discurso solidarista em fins do século XIX visando transmudar a lógica do sistema fundado na culpa para um sistema fundado no risco. 3. Ao longo do século XX, vários ordenamentos jurídicos adotaram cláusula gerais de responsabilidade objetiva pelo exercício de atividades perigosas. Tais ideias repercutiram na doutrina nacional e foi consagrado o artigo 927, § único do Código Civil. 4. A concepção de risco que melhor se adequa ao nosso ordenamento jurídico fundado pela Constituição de 1988 é a de risco criado, por prescindir da comprovação de qualquer proveito por parte do agente que desenvolve determinada atividade potencialmente danosa. 5. O principal norte interpretativo do artigo 927, parágrafo único deve ser a natureza potencialmente perigosa de dada atividade, seja qualitativamente, seja quantitativamente. 6. Os acidentes automobilísticos coadunam-se perfeitamente com a referida cláusula geral, posto que são atividades potencialmente perigosas, bem como, prescindem de comprovação econômica por parte do agente desenvolvedor de tal atividade. 7. A jurisprudência pátria tem aplicado o artigo 927, § único do CC para hipóteses envolvendo acidentes automobilísticos somente em se tratando de transporte de carga. Percebe-se que a jurisprudência implicitamente adotou uma

102 concepção de risco proveito, em que pese a doutrina majoritária ter adotado a concepção de risco criado.

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