Responsabilidade Civil do Estado por ato das Agências Reguladoras

August 25, 2017 | Autor: Erik Gramstrup | Categoria: Responsabilidade Civil
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RESPONSABILIDADE CIVIL POR ATO DE AGÊNCIA REGULADORA Erik Frederico Gramstrup Juiz Federal Doutor e Mestre em Direito da Relações Sociais pela PUC/SP Professor da PUC/SP O estudo da responsabilidade do Estado por ato das agências reguladoras inicia-se com a identificação da natureza e propósito dessas entidades. Seu contexto genético é o do plano diretor de reforma do Estado (rectius, da Administração Pública), envolvendo: a) Melhora qualitativa dos serviços; b) Contenção do déficit público; c) Substituição do modelo burocrático de administração pelo modelo dito gerencial; e d) Identificação e das áreas em que se supõe conveniente a modificação da atuação ou a retirada pura e simples do Estado. Quanto aos dois primeiros aspectos, estão imbricados com a chamada ideologia neoliberal, que não professa um Estado mínimo, como pensam alguns, mas uma espécie de compromisso, em que a iniciativa econômica pública direta é abrandada, vindo a contrapartida na forma de regulação mais intensa. É um ponto ao qual teremos de tornar, pois a própria expressão “regulação” ostenta ambigüidades. De todo modo, tecnicamente falando – na tentativa de subtrair todo o conteúdo emotivo da palavra - o neoliberalismo consiste nessa permuta: o Estado empresário cede passo ao capital privado, mas ocupa um espaço maior como regulador, corrigindo e atenuando as falhas do mercado. Se isso é bom ou mau, conveniente ou não, não o discutiremos. Interessanos um objetivo mais modesto, o de estabelecer certas conseqüências jurídicas dessa opção ideológica. Em termos práticos, o pensamento neoliberal implica em que o Estado deve abster-se ou ao menos agir muito discretamente como explorador direto de atividade econômica, por duas razões. Primeiramente, porque se pressupõe que o capital privado seria um organizador mais eficiente dos fatores de produção – assim, a abertura de espaço a ele reservado teria como conseqüência maior crescimento econômico e melhora do bemestar geral. Sobre esse ponto, diz ISAAC BENJÓ: “O Estado-regulador independente se faz necessário para permitir a liberdade de atuação dos agentes econômicos e incentivar o crescimento auto-sustentado. A base de sustentação é a premissa de que a sociedade tem condições de resolver, de forma mais eficiente, mais descentralizada e menos custosa, grande parte de seus problemas.”1 Em segundo lugar, é limitada a capacidade estatal de financiar o investimento necessário para um adequado crescimento do produto interno bruto – objetivo esse desejado por todos, mas absolutamente crucial em uma economia em desenvolvimento. Chega-se ao ponto de dizer que, nas últimas décadas do século XX, ter-se-ia detectado o exaurimento da capacidade do Estado de investir em suas empresas. Daí a adoção de instrumentos jurídicos para inibir a iniciativa econômica pública direta. Na Constituição de 1988, mais precisamente, em seu Título VII, dedicado à ordem econômica e financeira, esse objetivo aparece claramente: a constituição de empresas estatais fica 1 Fundamentos de economia da regulação, Rio: Thex, 1999, p. 17. 1

delimitada pelas expressões “relevante interesse coletivo” e “segurança nacional” (art. 173/CF), conforme definidas em lei, enquanto que, de outro lado, é garantida a livreiniciativa e a livre-concorrência, dando-se com isso a entender que o motor principal das atividades econômicas é o capital privado. Embora não possamos dedicar muito espaço ao assunto, registremos o quanto foi ingênuo o constituinte. Até mesmo desavisado, ousamos dizer. Deixou ao legislador infraconstitucional a tarefa de definir aquelas vagas expressões. É claro que este não pode ultrapassar certos limites, sob pena de infidelidade ao propósito constitucional de primazia da iniciativa econômica particular, mas tais balizas são exageradamente flexíveis. Além disso, atividade econômica, no sentido mais restrito, é algo que se aparta dos serviços públicos, considerados, estes, a área de atuação por excelência do Estado (embora possa delegá-los). Pois bem, como a própria noção de serviço público é recheada de ambigüidades e dificuldades de toda ordem, escancara-se aí uma ampla passagem para arruinar-se o objetivo constitucional. Se for mantida, apesar disso, lealdade para com esse objetivo, uma das conseqüências seria, supõe-se, a redução do déficit público e a melhor alocação de recursos destinados à perseguição das atividades próprias do Estado. Imbricado com isso está o plano diretor de reforma do Estado (da Administração). Em seu bojo, as atividades estatais são divididas em quatro esferas: a) Núcleo estratégico, compreendendo a formulação de políticas, as atividades legislativa e judiciária; b) Atividades exclusivas, a saber, fiscalização, polícia e regulação, que devem ser atribuídas a entes especializados e independentes; c) Atividades não-exclusivas, embora de interesse público ou social, que podem ser compartilhadas ou atribuídas a organizações sociais, concessionários e permissionários; e, por fim, d) Atividades de mercado, que devem ser, pura e simplesmente, privatizadas. Não estamos cometendo a aleivosia de dizer que os sucessivos governos têm observado essas distinções e as metas decorrentes de modo coerente e orgânico. Muito pelo contrário. Limitamo-nos a descrever o plano, tal como se daria idealmente, segundo a concepção tendente a sobrestar o aumento de despesa pública e a subtrair do Estado a intervenção econômica direta. Como se percebe da exposição do plano diretor de reforma, o refluxo da iniciativa econômica pública é compensado pela previsão de um segmento altamente profissionalizado, que exerceria a regulação, considerada atividade própria e exclusiva de Estado. Ela está ligada (embora o mesmo ocorra com respeito às atividades nãoexclusivas) à concepção de substituição do modelo burocrático de administração pelo gerencial. Novamente, como fizemos com a expressão “neoliberal”, queremos retirar toda carga emocional da palavra “burocrático”. Ela não traduz um juízo de valor. Modelo burocrático, no sentido neutro, significa um padrão de administração que se orienta pela vinculação à lei. Isso é, ao agente público é dado conduzir-se pelo standard desenhado na norma e nada mais. A ênfase do modelo burocrático está na legalidade. Não estamos julgando, ao afirmar isso, se funciona bem ou mal. De sua parte, modelo gerencial é aquele que se orienta por resultados. Ainda uma vez, não estamos discutindo se isso é oportuno ou pode conduzir a efeitos aberrantes. Estamos apenas definindo: no contexto do modelo gerencial, o administrador não é avaliado tanto por padrões normativos abstratos, quanto o é pela consecução de metas, traduzidas por indicadores objetivamente aferíveis. Quaisquer que sejam as conseqüências disso, a ambição de reformar o Estado orientou-se no sentido de substituir o primeiro modelo, por assim dizer “francês” (ao estilo de Montesquieu: a Administração desejável é aquela que se conduz por padrões impessoais, previstos em lei) pelo segundo, que alcunharemos de

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“norte-americano” (para o qual é desejável a Administração pragmática – à moda do pensador William James - que “funciona”, ou que atinge suas metas). A objeção evidente está em que resulta impossível separar as duas coisas: mesmo o mais gerencial dos administradores terá de permanecer sujeito ao principio da legalidade (por sinal afirmado e reafirmado metodicamente pela Constituição de 1988). Mas os defensores do plano de reforma sempre poderão se defender, argumentando que não isso que pretendem, mas sim a introdução de uma “cultura de resultados”, seja por via do orçamento-programa, seja pela introdução de agências executivas, agências reguladoras e organizações sociais. A regulação, portanto, é de certa forma uma compensação pelo fato de o Estado se abster da intervenção econômica direta (salvo os monopólios constitucionais e os casos tolerados por lei, com base no permissivo constitucional). Ele prossegue interventor, mas de modo indireto, ou seja, normatizando, induzindo, fiscalizando, reprimindo a concentração do poder econômico, planejando e executando seu orçamento. Todas essas tarefas estão previstas na Constituição de 1988: arts. 173, § 4º e 174, caput, notadamente) . Mesmo a oferta de serviços públicos, diretamente ou por delegação (art. 175/CF), não deixa de ser uma maneira de interferir indiretamente na vida econômica, pois a maneira como são compreendidos interage com a atividade econômica em sentido restrito, dilargando ou comprimindo o conteúdo semântico dessa expressão. Quanto mais vasta a noção de serviço público, mas estreita será a de atividade econômica stricto sensu e vice-versa. O problema do termo “regulação” já começa a se exibir nesse ponto: pode ser tomado de modo bastante generoso, indicando a maioria das modalidades de intervenção indireta a que aludimos. Ou pode ser definido de maneira mais discreta, a partir dos dados relativos à análise econômica do Direito. Há um problema ideológico subjacente à essa discussão, pois está na direta dependência da visão que se tenha do papel e finalidades do Estado. Nas origens norte-americanas, regular é o mesmo que corrigir falhas de mercado. Por isso é que vínhamos tomando a regulação como contrapartida do afastamento do Estado, em relação à intervenção econômica direta. Se de um lado, tem-se como preferível que o agente privado tenha o protagonismo da atividade econômica stricto sensu, de outro sabe-se que o mercado não é um mecanismo auto-regulatório perfeito e suficiente por si. Sabe-se também que o mercado perfeito é simples abstração, ideal inatingível ou realizável apenas por aproximação, ou ainda em condições muito especiais. Perfeito seria o mercado em que oferta e demanda fossem atômicas; no qual a informação fosse simetricamente distribuída; em que os bens e serviços transacionados fossem homogêneos; enfim, em que as condições de concorrência fossem também perfeitas. Não é o que se observa no mundo real. Neste, a concorrência cede à concentração do poder econômico. A informação é desigualmente proporcionada aos diversos agentes fornecedores e consumidores. As técnicas de marketing logram instituir clivagens imaginárias entre os bens e serviços. A atividade regulatória consistiria em atenuar os efeitos indesejáveis dessas falhas (a competição predatória, as externalidades, os monopólios e os danos decorrentes da informação insuficiente do consumidor), de forma que a menção à “regulação da concorrência” seria tautológica. Colocadas as coisas assim, é forçoso admitir que, no Brasil, a regulação vai bastante além do que foi descrito. Na Constituição Brasileira, o tema aparece em três disposições, uma de amplo alcance e duas mais específicas. É atribuído ao Estado o epíteto de “agente normativo e

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regulador” (art. 174), incluídos, nisso, a “fiscalização, incentivo e planejamento”. Essa dupla locução deve ser entendida como ênfase, porque regular, no Brasil, inclui a edição de normas. As previsões específicas compreendem a necessária existência de um órgão regulador das telecomunicações (art. 21, XI) e de um órgão regulador do monopólio do petróleo (art. 177, par. 2º). Assim sendo, a necessidade de agências reguladoras só é líquida e certa no tocante aos dois apontados setores (petróleo enquanto atividade econômica monopolizada e serviços de telecomunicações). Em outros segmentos de atividade, não seria indispensável a instituição de agências reguladoras (embora o Estado tenha o dever de regulá-los por outros meios), mas sua existência seria puramente instrumental, a menos que se argumente a partir do princípio constitucional da eficiência. Regular, portanto, entre nós, é organizar segmentos de atividade econômica em sentido amplo, o que abrange: a) serviços públicos; b) atividades de mercado sujeitas aos princípios da livre-iniciativa e livre-concorrência (atividade econômica em sentido estrito); e c) atividade econômica monopolizada pelo Estado. “Organizar”, a seu turno, quer dizer expedir normas, fiscalizar seu cumprimento, impor sanções e até mesmo examinar contenciosos. Em obra monográfica, ALEXANDRE MAZZA aparenta estar nessa linha, ao mencionar, em conclusão, que: “O qualificativo ‘reguladora’ foi extraído da linguagem econômica. No Direito, sugere competências voltadas a disciplinar, fiscalizar e controlar determinados setores sociais.”2 Definido o termo, cabe questionar: por que fazê-lo por intermédio de agências, se a obrigatoriedade delas só está literalmente estabelecida com relação aos dois setores já elencados? Pode-se argumentar que a regulação por meio desses entes seria o modo ótimo de atender ao princípio da eficiência na Administração Pública, desde que atendam aos requisitos necessários para merecer o nome de agências, quais sejam: a) Conhecimento técnico especializado na área respectiva de regulação; b) Flexibilidade e rapidez do processo decisório; c) Responsabilidade facilmente aferível e individualizada (accountability); d) Autonomia, tanto em relação à esfera política (para cima), como em relação aos agentes econômicos regulados (para baixo). Agências sem esses atributos seriam apenas designações pomposas para batizar departamentos criados para descentralizar atribuições da administração. As agências brasileiras, pelo menos no papel, atendem à maioria dos requisitos prefalados. Suas leis instituidoras proclamam, geralmente, sua independência administrativa e ausência de subordinação hierárquica. O modo prático de se atuar essa independência consiste em atribuir mandato e estabilidade (durante ele) aos membros do colegiado dirigente. Também lhes garantem autonomia financeira e algumas receitas próprias, além de um conjunto de atribuições, que poderíamos classificar da seguinte forma: a) Função regulamentadora ou normativa; b) Função fiscalizadora; c) Função sancionatória; e d) Função parajudicial ou de dirimir contenciosos entre a própria Agência e o regulado; entre o poder concedente e o regulado; entre delegatários de serviço público; e entre delegatário de serviço público e consumidor. Dentre as fraquezas desses entes, em nosso quadro institucional, devemos apontar a ausência de mecanismos para evitar que sejam deixadas com recursos insuficientes, no processo orçamentário (apesar da propalada autonomia financeira), bem como para elidir que o legislador ordinário possa subtrair-lhes atribuições casuisticamente (pois isso dependeria de maioria simples, logrável facilmente pelo Cesar de momento). Em tempos recentes, assistiu-se, na esfera da União, à sufocação financeira das agências 2 Agências reguladoras. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 206. 4

reguladoras federais por iniciativa explícita do Poder Executivo, bem como o encaminhamento de projeto de lei tendente a retirar-lhes o controle das outorgas. A forma escolhida, no contexto do Direito Administrativo, é a da Autarquia, a que se agrega o qualificativo especial para denotar o conjunto de características a que aludimos (ou, pelo menos, para traduzir a presença de uma autonomia reforçada em relação às Autarquias tradicionais). A rigor, é necessário distinguir as agências reguladoras das agências executivas. Estas últimas partem de órgãos já existentes que passam por um processo de reestruturação. Dita reformulação visa a dar-lhes maior flexibilidade e eficiência, por meio da formalização de um “contrato” (preferimos dizer termo, pois a Administração não contrata consigo mesma) de gestão renovável. Nesse termo são fixadas as metas a serem atingidas pelos administradores da agência executiva. Ela tem por objetivo a gestão de serviços públicos e não a regulação de atividades de mercado. Por essa finalidade é que se terá a diferença essencial entre agências executivas e reguladoras, já que o Projeto de Lei n. 3.337, de 2004, pretende estabelecer, para as últimas, no âmbito federal, o obrigatoriedade do “contrato” (rectius, termo) de gestão com o Ministério a que se vinculam. Há, na doutrina, quem enxergue nisso um perigo, pois o “contrato de gestão” pode tanto implicar em ampliação da autonomia gerencial, administrativa e financeira da agência reguladora (o que seria redundante, pois essa autonomia lhe é conferida pela lei de criação) como em sua redução (o que seria inconveniente e ilegal) 3. Procurando esboçar os traços distintivos das agências executivas, JOSÉ ALFREDO DE OLIVEIRA BARACHO afirma o seguinte: “A Agência Executiva é uma qualificação a ser concedida por decreto presidencial específico, às autarquias e fundações públicas, responsáveis por atividades e serviços exclusivos do Estado. O Projeto Agências Executivas não criou uma nova figura jurídica na administração pública, nem promove qualquer alteração nas relações de trabalho dos servidores das instituições que venham a ser qualificadas. A inserção de uma instituição no Projeto, ocorre por adesão, pelo que os órgãos e entidades responsáveis por atividades exclusivas do Estado candidatam-se à esta qualificação. Pela Lei n. 9. 649, de 27 de maio de 1998, a qualificação de uma instituição como Agência Executiva exige como requisitos básicos: um plano estratégico de reestruturação e desenvolvimento institucional em andamento e um Contrato de Gestão, firmado com o Ministério supervisor. O Contrato de Gestão estabelecerá os objetivos estratégicos e metas a serem atingidos pela instituição em determinado período.”4 Procurando desmistificar as Agências Reguladoras, ALEXANDRE SANTOS DE ARAGÃO elencou o que julgamos ser os principais problemas decorrentes da intervenção do Estado na economia através desses entes. Conquanto não participemos de todas as suas convicções, o rol por ele apresentado é tão oportuno que devemos resumir: a) Esses entes não são novidade; esta se encontra, na verdade, no fato de que os tribunais mostram-se agora propícios a aceitar a existência de Autarquias com colegiado nomeado por mandato fixo (o que antes era considerado inconstitucional); b) O traço 3MOTTA, Paulo Roberto Ferreira. Agências reguladoras. Barueri: Manole, 2003, p 131-2. 4 Teoria geral das agências reguladoras, Revista ibero-americana de direito público, Rio de Janeiro, Ano VII, Vol. XXIII, p. 117-193, 4º trim. 2006.

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organizativo marcante é o colegiado com mandato e um amplo poder normativo; c) A autonomia reforçada das agências deriva também da proibição de recurso hierárquico impróprio para a Administração central (e não só do mandato); d) O legislador transferiu, por impossibilidade de tudo prever, ampla dose de poder normativo às agências; e) Nesse poder está incluída, na própria lei criadora da agência reguladora, a possibilidade de revogar leis formais que anteriormente dispunham sobre matéria (o que o autor citado chama de “sistema de substituição gradativa deslegalizada”); e) Em matéria técnica e desde que observado pela agência o devido processo legal, fica bastante reduzida a dimensão do controle judicial; f) Tem-se tornado menos rígida e difusa a distinção entre atos de efeitos abstratos e de efeitos concretos, bem como o poder-dever de aplicar sanções, não raro substituídas por acordos.5 Essas considerações estão muitíssimo longe de dar por resolvidos qualquer desses problemas, constituindo antes um catálogo daquilo que se enfrentará ainda por muitos anos, ensejando muita disputa. O fato, porém, de um especialista dar pela inevitabilidade e procurar justificar a delegação de poder legislativo (o autor nega que haja tal delegação, mas parece falar exatamente do oposto) e ao esvaziamento do controle judicial (em que pesem as homenagens formais ao princípio da jurisdição una) é bastante sintomático de problemas ocasionados não por elucubrações no gabinete de juristas e sim pelas necessidades concretas da intervenção do Estado na vida econômica – e por isso mesmo problemas inexoráveis e inarredáveis. Em outro trabalho, o mesmo ALEXANDRE SANTOS DE ARAGÃO justificou o poder regulamentar amplificado das agências em termos mais convincentes: “A lei, portanto, sem dar início de per se a uma normatização mais completa, e, muito menos, exaustiva da matéria, estabelece apenas parâmetros bem gerais da regulamentação a ser feita pelo ente regulador independente. Essas leis integram a categoria das leisquadro (lois-cadre) ou standartizadas, próprias das matérias de particular complexidade técnica e dos setores suscetíveis a constantes mudanças econômicas e tecnológicas.As leis com essas características não dão maiores elementos pelos quais o administrador deva pautar a sua atuação concreta ou regulamentar, referindo-se genericamente a valores morais, políticos e econômicos existentes no seio da sociedade (saúde pública,utilidade pública, competição no mercado, preços abusivos, continuidade dos serviços públicos, regionalização, etc.). Assim, confere à Administração Pública um grande poder de integração do conteúdo da vontade do legislador. O objetivo das leis assim formuladas é “introduzir uma vagueza que permita o trato de fenômenos sociais, muito fugazes para se prestarem ao aprisionamento em uma regra precisa”. Destaque-se que a referência aos “quadros estabelecidos pela lei” não concerne apenas a determinado diploma legislativo, mas sim ao conjunto do ordenamento jurídico. É este que, explícita ou implicitamente, em seu sistema, confere às agências independentes poder regulamentar sobre determinada matéria, não nos sendo dado ficar presos apenas à letra da lei. Nesse particular, é grande o âmbito do poder regulamentar atribuído pelo conjunto do ordenamento jurídico, muitas vezes implicitamente pela própria Constituição (por que haveria poder para regulamentar leis ordinárias e não a própria lei 5 Agências reguladoras: algumas perplexidades e desmistificações, Interesse Público, Ano X, n. 51, p. 61-73, 2.008

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constitucional?). Se, por exemplo, a Constituição estabelece que a Administração Pública deve prestar determinado serviço público (fim), não teria sentido que ela, independentemente da existência de lei ordinária, não pudesse regulamentar a sua prestação (meio)78. Com isso, não estamos “forçando” o conteúdo da Constituição, mas apenas aplicando o princípio dos “implied powers”, concebido por Marshall nos seguintes termos: “legítimo o fim e, dentro da esfera da Constituição, todos os meios que sejam convenientes, que plenamente se adaptem a este fim e que não estejam proibidos, mas que sejam compatíveis com a letra e o espírito da Constituição, são constitucionais”.6 A responsabilidade civil das agências reguladoras, estabelecidos esses pressupostos, não é essencialmente diversa da responsabilidade dos demais entes públicos. Pessoas jurídicas de direito público interno, da modalidade Autarquias, responderão as agências objetivamente, tal como o faria a Administração Centralizada. Desse modo, em princípio, as mesmas soluções teorizadas para a reparação de danos pelo Estado em geral aplicar-se-ão às agências reguladoras. Mas isso no plano geral. Há peculiaridades a considerar dado o feixe peculiar de atribuições dessas entidades. Em visão global, porém, o fundamento constitucional da responsabilidade das agências reguladoras, por atos e omissões danosos, é o § 6º do art. 37 da Constituição Federal: “As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.” Adiantando nosso ponto de vista, não cremos que haja aí uma responsabilidade por risco integral, a não ser que o conteúdo dessa expressão seja muito suavizado. Como já tivermos a oportunidade de expor alhures, entendemos responsabilidade por risco integral aquela que não admite excludente de qualquer espécie – nem de ilicitude, tampouco de nexo causal - e, por conta desse sentido forte, julgamos que ela não exista no Direito Pátrio. Na verdade, os casos de risco integral conhecidos no Brasil são retirados do âmbito da responsabilidade civil e amparados por sistemas financiados por recursos oriundos de tributos, como ocorre, v.g., com o seguro de acidentes de trabalho. A responsabilidade das agências reguladoras é objetiva, portanto independente de culpa (culpa essa só considerada na ação regressiva contra o agente), mas essa palavra não indica outro sentido a não ser esse. Não quer dizer que inexistam exclusões, como seriam exemplos o fato exclusivo da vítima, o fato exclusivo de terceiro e o caso fortuito externo. Também não quer dizer que o nexo de causalidade não deva ser claramente estabelecido, entre o ato ou omissão e o resultado danoso. Em outras palavras, responsabilidade objetiva não é responsabilidade aleatória. A responsabilidade da agência reguladora, ainda em plano bastante geral, exige que se preencham os seguintes requisitos (também perquiridos nos demais casos de responsabilidade da Fazenda Pública): a) dano (material ou moral); b) ato ou omissão imputável a um agente público, atuando nessa qualidade; e c) nexo de causalidade entre (a) e (b). Ela implicará, uma vez verificada, no dever jurídico de compor o dano, seja em espécie, seja in natura (já que não há obstáculo jurídico para tanto e tal solução seja até desejável). Como corolário, a responsabilidade da agência não abrange os fatos que tenham origem exclusiva em terceiro, não sendo seu servidor ou preposto; os fatos exclusivamente decorrentes de atos ou omissões da própria vítima; nem os fatos naturais 6 O poder normativo das agências reguladoras independentes e o Estado democrático de Direito, Revista de Informação Legislativa, Brasília, a. 37, n. 148, p. 275-299, out./dez. 2000.

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completamente divorciados da atuação da agência, que chamamos de fortuitos externos (também poderiam ser chamados de força maior). A agência pode vir a responder, no entanto, por fortuitos internos, isto é, aqueles riscos aparentemente ocasionais, mas que estão na linha de desdobramento inerente ao perigo criado pelo desenvolvimento das atribuições da própria agência e também das atribuições que ela pretexta ter. Este último caso não está prefigurado literalmente na Constituição, mas decorre do princípio geral de direito neminen laedere. O fato concorrente de terceiro atrairá a responsabilidade da agência, afinal, supõe ação ou omissão dos servidores desta em concurso com aquele, na causação do efeito. Mas implica em atenuação da indenização, consoante ao grau de causalidade que possa ser atribuído a cada um. Quanto à demanda para reparação dos danos, ela pode ter por objeto obrigação de pagar quantia certa (havendo pedido de reparação de dano em dinheiro) ou obrigação de fazer (sendo pleiteada a reparação in natura, isto é, a recondução à situação fática anterior ao dano). Deve ser dirigida contra a autarquia de regime especial e não contra a outra pessoa jurídica de dreito público à qual esteja vinculada a agência. Também não deve ser direcionada contra o dirigente ou contra o empregado público ou preposto da agência, nem isoladamente, nem em litisconsórcio com esta. Esse agente público será responsabilizado na ação regressiva em que se discutirá sua culpa lato sensu. Por identidade de razão, não convém que o agente seja denunciado à lide na ação de reparação de danos, pela autarquia especial. É que esse instituto processual pressupõe que, na mesma sentença, o garante (litisdenunciado) seja conduzido a repor (lide secundária) o valor a que o litisdenunciante foi condenado na lide principal. Ora, isso não seria decorrência automática da condenação na lide primária, porque a responsabilidade nela é determinada independentemente de culpa. Culpa, essa, que há de ser comprovada para que o agente público seja condenado na lide secundária. Para o autor (lesado), o benefício prático decorrente da responsabilidade objetiva do Estado está, justamente, em safar-se à instrução necessária para provar-se dolo ou culpa. Portanto, seria inadequado reconduzir-se a necessidade dessa prova perante o litisdenunciado. Em outras palavras, a agência responderá sozinha, no pólo passivo da ação de reparação do dano, devendo promover sua pretensão regressiva em processo autônomo. No sentido de que é a própria agência que responde e não a pessoa jurídica de dreito público a que se vincula (a não ser subsidiariamente) é também a opinião de DAISY DE ASPER Y VALDÉS: “Portanto, não se justifica a propositura de ação indenizatória à pessoa jurídica de direito público interno a quem a agência esteja vinculada, com o fim de receber indenização pelos atos da agência reguladora. Como pessoa jurídica autônoma, tem capacidade para se fazer representar em juízo, para contrair obrigações e para responder por lesões causadas a terceiros. Em conseqüência, a responsabilidade do ente de direito público interno a quem a agência esteja vinculada somente será possível a título subsidiário, uma vez exauridos os recursos da agência reguladora causadora do dano.”7 7 Responsabilidade civil do Estado e as Agências Reguladoras, Revista de Informação Legislativa, Brasília a. 40, n. 159, p. 181-192, jul./set. 2003

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Há particularidades a considerar no tocante ao complexo feixe de atribuições das agências. Dissemos anteriormente que elas são dotadas de poder normativo notável. Será que poderiam ser responsabilizadas por seu exercício? Cremos que sim, em duas ocasiões: a) Quando o regulamento elaborado pela agência for reputado nulo, em Juízo, porque ilegal ou contrário à Constituição; e b) Quando o regulamento assim for considerado, porque editado fora da órbita de atribuições da agência reguladora. Essa discussão depende do resultado que se der a outra, em torno do poder normativo das agências. Para alguns, simplesmente não há espaço, na ordem jurídica nacional, para os regulamentos autônomos. Para outros, eles seriam toleráveis no caso das agências que contam com previsão constitucional expressa (a ANP e a ANATEL), porque seus poderes regulamentares exsurgiriam diretamente da Lei Maior. Em outra linha, há os que pensam que as agências, por necessidades práticas inelutáveis, estariam autorizadas a expedir normas no vazio da lei, já que tais necessidades impõem soluções técnicas, a que o legislador não está gabaritado para atender. Finalmente, há os que vão mais longe e afirmam que as leis instituidoras de certas agências atribuem-lhe amplo poder normativo por meio de standards vagos, que podem ser preenchidos por força das mencionadas necessidades técnicas. De nossa parte, estamos ainda muito apegados ao princípio da legalidade. Entendemos que, sempre que a agência adote normas contra legem ou praeter legem e decorram danos, deverá ser chamada a responder desde que estes danos decorram da imposição daquelas normas ilegais, com ação regressiva contra os membros do colegiado dirigente que tenham participado culposamente da deliberação respectiva. Um fundamento dessa opinião está em que a vítima deve ser poupada de controvérsias decorrentes da importação mal adaptada de modelo de origem anglo-saxônica. Diremos acaso ao lesado que, por não estarmos de acordo sobre um ponto polêmico, deverá ela arcar com os prejuízos? Se não chega a afirmar explcitamente uma responsabilidade por abuso normativo, MARIA D´ASSUNÇÃO COSTA MENEZELLO pelo menos a sugere, ao estabelecer que é dever da autoridade evitar os riscos regulatórios: “... o direito regulatório deve estar em concordância e adequação à estrutura jurídico-constitucional, levando-se em consideração os interesses da sociedade recebedora das normas regulatórias”.8 Quanto ao exercício dos poderes fiscalizatório e sancionador, o problema que se põe é semelhante ao enfrentado nos demais âmbitos da Administração Pública. Tanto a Constituição, quanto o Código Civil reportaram-se expressamente às ações daninhas comissivas dos servidores, preconizando a responsabilidade objetiva da pessoa jurídica de direito público (é dizer, da agência, no caso que estudamos). Mas que dizer dos atos omissivos? Poderia ela ser responsabilizada porque deixou de aplicar sanção, advindo daí prejuízos para terceiros (por exemplo, consumidores prejudicados pela continuação de um padrão de conduta a eles nocivo e impune) ou pior, porque omitiu providências fiscalizadoras? Respondemos positivamente, desde que estabelecida a relação causal. No campo dos atos omissivos, a Administração responde, de modo geral, pelo mau funcionamento do serviço. Caso seja estabelecido que a fiscalização foi deficiente, a punição leniente ou o acordo de conduta, mal estruturado e daí tenham resultado prejuízos, as vítimas poderão exercer suas pretensões, não só pelo direito comum, contra os particulares violadores do Direito, como também contra as agências, por conta de sua omissão na função de bem regular. Dando excelente exemplo disso, MAURICIO MOTA discorre sobre a eventual omissão do dever de regular os planos de saúde: 8 Agências reguladoras e o direito brasileiro. São Paulo: Atlas, 2002, p. 159. 9

“Desse modo, é a omissão nesse dever global de produção de saúde que pode caracterizar a responsabilidade civil do Estado por insuficiência de atividade regulatória a que está obrigado por lei. O primeiro aspecto desse dever é a garantia da saúde financeira do mercado e das garantias assistenciais dos segurados. Foi o caso, por exemplo, decidido na Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça (STJ), em 19.12.2005, que as operadoras de planos de saúde Bradesco e Sul América poderiam reajustar, respectivamente, em 25,8% e 26,1%, os contratos firmados antes de janeiro de 1999, bem como aumentar em 11,69% os novos contratos de planos de saúde, conforme havia sido estipulado pela aplicação dos índices determinados pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Caso tivesse sido provado pelo Tribunal (o que acabou não acontecendo), como alegavam a Associação de Defesa dos Usuários de Seguros, Planos e Sistemas de Saúde (Aduseps) e a Associação de Defesa da Cidadania e do Consumidor (Adecon), que o reajuste autorizado fragilizava todas as garantias assistenciais dos usuários e beneficiava unilateralmente os planos de saúde em escala nacional, em detrimento de milhões de usuários dos planos, comprometendo a saúde financeira do mercado, a Agência Nacional de Saúde Suplementar poderia em outra ação ser responsabilizada civilmente por omissão no dever global de regulação.”9 As agências também podem integrar a atividade estatal de planejamento. O plano, porém, não gera responsabilidade por si, já que seu caráter é indicativo para o setor privado, por provisão constitucional expressa (art. 174/CF). Como não obriga ao particular, ele não pode alegar a existência do plano para pedir a reparação de danos decorrentes de ter-se adaptado. Há, porém, uma hipótese diferente a ser considerada. Ao planejar e executar seu próprio plano, o Estado cria expectativas. Se houver uma ruptura brusca delas, por infidelidade ou quebra de planejamento e o particular, que de boa-fé ajustou-se ao plano, vir-se prejudicado, poderá requerer a correspondente composição. Por fim, lembramos ao leitor que já discutimos que as agências reguladoras ainda podem exercer atuação compositiva de litígios, envolvendo o poder concedente, elas próprias, particulares regulados, e consumidores. Conforme MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO, as agências “gozam do poder de julgar. De fato, têm atribuições que se estendem ao contencioso, porque estão habilitadas dirimir litígios, seja os que envolvam empresas que exerçam atividade por elas controlada, seja entre estas e os usuários do serviço. Não se pode, contudo, deixar de apontar que suas decisões sempre poderão ser impugnadas perante o Judiciário, por força do art. 5º, XXXV, da Constituição. Este, com efeito, prevê a inafastabilidade da apreciação judicial de questões que importem em lesão ou ameaça a direito.”10 9 Responsabilidade civil do Estado na omissão de fiscalização das operadoras de saúde, in http://www.mauriciomota.net/Saude2.pdf, consultado em 25.04.2010. 10 Reforma do Estado: O papel das agências reguladoras e fiscalizadoras, in: MORAES, Alexandre de (Org.), Agências reguladoras. São Paulo, Atlas: 2002, p. 141.

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O erro de direito e o error in procedendo, devidamente estabelecidos em Juízo, dos quais decorram danos aos administrados podem, em nossa opinião, conduzir a uma demanda reparatória bem sucedida. Mas não queremos com isso parecer radicais. Quanto ao controle do ato em si, partilhamos da opinião de LUÍS ROBERTO BARROSO, que merece transcrição: “É bem de ver que, em matéria de agências, é decisivo que o Judiciário seja deferente em relação às decisões administrativas. Ou seja, o Poder Judiciário somente deverá invalidar decisão de uma agência reguladora quando evidentemente ela não puder resistir ao teste de razoabilidade, moralidade e eficiência. Fora dessas hipóteses, o Judiciário deve ser conservador em relação às decisões das agências, especialmente em relação àquelas escolhas informadas por critérios técnicos, sob pena de se cair no domínio da incerteza ou do subjetivismo”.11 Em conclusão, a doutrina da responsabilidade, por ato comissivo ou omissivo, das agências reguladoras é a mesma que se aplica, grosso modo, à responsabilidade do Estado em geral. Deverão ser particularizadas, na boa compreensão do tema, duas peculiaridades: 1) A existência autônoma desses entes, que os leva a responder sozinhos no pólo passivo da ação de indenização, salvo responsabilidade subsidiária do ente maior por insuficiência de recursos; e 2) O amplo espectro de atribuições das agências, que conduz a peculiaridades nas condições de responsabilização, conforme se cuide de atos comissivos ou omissivos, ou ainda de acordo com a faceta considerada: regulamentação, fiscalização, imposição de sanções, atividade contenciosa e de planejamento. Pensar diferentemente seria restaurar, por estranho deslumbramento, a superada doutrina do soberano irresponsável.

11 Apontamentos sobre as agências reguladoras, in: FIGUEIREDO, Marcelo. Direito e regulação no Brasil e nos EUA. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 105.

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