Responsabilidade civil médica diante dos cuidados paliativos e da ortotanásia Joyceane Bezerra de Menezes

June 2, 2017 | Autor: Luciana Lima | Categoria: Bioética, Direito Civil Constitucional, Biodireito
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Responsabilidade civil médica diante dos cuidados paliativos e da ortotanásia Luciana Vasconcelos Lima Mestranda em Direito Constitucional nas Relações Privadas pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Graduada em Direito pala Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará (UFC). Advogada. E-mail: .

Joyceane Bezerra de Menezes Doutora em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Mestre em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Professora titular da Universidade de Fortaleza, Programa de Pós-Graduação strictu senso em Direito (Mestrado/Doutorado). Professora da Universidade de Fortaleza, nas disciplinas “Direitos de Personalidade” e “Direito dos Danos”. Professora adjunta da Universidade Federal do Ceará. E-mail: .

Resumo: A evolução da medicina permitiu o uso de novas técnicas e de novos medicamentos que aumentam o tempo entre a descoberta de doenças e a morte, prolongando a existência das pessoas. Além dos tratamentos revolucionários para a cura de muitas doenças, também é possível o uso de aparelhos de manutenção artificial da vida e de medicamentos que afastam ou minimizam dores, permitindo atrasar a morte do paciente acometido de doença grave e incurável ou terminal. Essas possibilidades, porém, remetem à reflexão sobre a conduta médica em relação aos cuidados despendidos aos doentes terminais, descortinando problemas bioéticos com reflexo no Direito. Qualquer solução deverá cotejar os princípios de justiça consolidados na Constituição Federal, notadamente, a dignidade da pessoa humana que constitui o epicentro dos direitos fundamentais. Embora os pacientes terminais não tenham chances de cura para sua doença, são titulares de direito e devem ter sua dignidade preservada nos últimos momentos de vida. Em respeito a esses direitos, sobretudo a autonomia, não podem ser submetidos a qualquer tipo de tratamento capaz de configurar tortura, tampouco àqueles tratamentos fúteis que apenas aumentam o sofrimento e não geram bem-estar ou perspectiva de cura. Enfocando a prática dos cuidados paliativos e da ortotanásia no Brasil, correlacionados ao princípio da dignidade humana e aos princípios bioéticos do respeito à autonomia, não maleficência e beneficência, o presente trabalho visa a analisar o panorama da responsabilidade civil médica. No aspecto metodológico, realizou-se pesquisa bibliográfica e documental, notadamente doutrina jurídica, leis e resoluções que disciplinam a conduta médica. Palavras-Chave: Cuidados paliativos. Ortotanásia. Bioética. Responsabilidade civil do médico. Sumário: Introdução – 1 Cuidados paliativos e ortotanásia: a dignidade da pessoa em face da morte – 2 Princípios bioéticos e a atenção em saúde pelo médico – 3 Responsabilidade civil médica – Conclusão – Referências

Introdução “ – Eu não tenho mais forças para suportar isso”. Declarou uma senhora de setenta e cinco anos, diante do sofrimento causado pela quimioterapia. Acometida por um linfoma que os médicos já declararam ser irreversível, recebeu a notícia de R. Fórum de Dir. Civ. – RFDC | Belo Horizonte, ano 4, n. 10, p. 107-122, set./dez. 2015

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que teria poucos meses de vida. A partir de então, decidiu, juntamente com a família, que não daria continuidade ao tratamento quimioterápico. Recebeu alta do hospital e passou a ser tratada em casa, junto dos familiares. Assim, planejou viagem com os filhos e passou seus últimos dias em casa, no convívio com as pessoas que amava.1 O relato acima ocorreu no Brasil e constitui uma situação na qual o paciente requer apenas cuidados paliativos em face do diagnóstico que não oferece possibilidades de cura. Porém, trata-se de uma prática que ainda inspira dúvidas, especialmente pela confusão que se faz entre cuidados paliativos, ortotanásia e eutanásia. Ademais, enseja o questionamento sobre a repercussão dessa forma de tratamento no plano da responsabilidade civil do médico, que corre o risco de ter sua conduta avaliada como negligente e, consequentemente, sofrer contra si uma demanda indenizatória por parte dos familiares. À medida que a medicina vem se desenvolvendo, com a descoberta de novos medicamentos e de novas técnicas de tratamento, ampliou-se a expectativa de vida das pessoas. E ainda que as pessoas adoeçam grave e irreversivelmente, a mecanização possibilita que vivam por vários anos ligadas aos aparelhos de manutenção artificial da vida. Nem sempre, porém, essa luta contra a morte será a melhor alternativa. Por vezes, o processo de artificialização da vida traz mais sofrimento do que bem-estar, notadamente quando não se faz acompanhar de chances concretas de cura. Mais danoso ainda é esse prolongamento artificial da vida em oposição à vontade do paciente. Em se tratando de pacientes com doenças incuráveis ou terminais para as quais o estado atual da arte não oferece expectativa de cura, é necessário avaliar a conveniência da prescrição ou continuidade dos cuidados de intenção curativa, sempre considerando a vontade livre e esclarecida do enfermo. Não sendo possível a reversão da doença, é melhor investir no controle da dor e nos procedimentos menos invasivos, a fim de permitir à pessoa uma vida mais digna e, de preferência, no convívio de seus familiares. Em face dessas possibilidades terapêuticas, o presente estudo tem por objetivo central analisar a adequação da conduta do médico e do hospital aos direitos do paciente terminal ou grave e irreversivelmente doente e aos princípios da bioética, identificando as possibilidades de incidência da responsabilidade civil. Para facilitar o estudo, o texto parte de uma análise descritiva, delimitando conceitos elementares à discussão, dentre os quais, cuidados paliativos, ortotanásia e eutanásia para, em seguida, informar os princípios bioéticos e deontológicos que orientam a conduta dos profissionais e a prestação de serviços de atenção em saúde

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ZIEGLER, Maria Fernanda. Recente no Brasil, medicina paliativa dá ‘qualidade de morte’ a idoso incurável. iG São Paulo. São Paulo, maio 2014. Disponível em: . Acesso em: 15 jan. 2014.

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pelos estabelecimentos especializados, a fim de se analisarem os pressupostos da responsabilidade civil no caso. Em síntese apertada, o estudo visa delimitar as fronteiras entre a luta pela vida do paciente, a obstinação terapêutica e o reconhecimento da iminência da morte, com a prescrição de cuidados paliativos e as implicações correspondentes na seara da responsabilidade civil. Importa analisar a adequação da conduta médica em face dos comandos bioéticos e da vontade do paciente em se submeter ou não ao tratamento inócuo, especialmente, nos casos em que a família divergir. A pesquisa seguiu uma abordagem qualitativa, de cunho bibliográfico, utilizando-se referências da área do Direito e de outras áreas do conhecimento, além de uma pesquisa documental que selecionou as leis nacionais e as resoluções do Conselho Federal de Medicina aplicáveis à matéria.

1 Cuidados paliativos e ortotanásia: a dignidade da pessoa em face da morte O desenvolvimento tecnológico a serviço da medicina permitiu a erradicação ou o controle de algumas enfermidades, além da ampliação do tempo entre a descoberta de uma doença e a morte. Se em termos de longevidade o ser humano teve um ganho significativo com esses avanços, é necessário analisar a conveniência da aplicação desses recursos para uma mera obstinação terapêutica, quando a perspectiva de cura for nula e o prolongamento da vida somente trouxer um sofrimento adicional. É nesse contexto que emergem os temas da ortotanásia e dos cuidados paliativos que já são discutidos na área da saúde e vêm ganhando espaço no âmbito jurídico, requerendo soluções condizentes com o ordenamento pátrio. Embora sejam temas que não lograram a atenção específica do legislador stricto sensu, tocam aspectos fundamentais da pessoa — sua dignidade e seus direitos — e receberam atenção do Conselho Federal de Medicina, por meio da Resolução nº 1.931, de 24 de setembro de 2009,2 — que instituiu o novo Código de Ética Médica; e da Resolução nº 1.995 de 31 de agosto de 2012 — que disciplina as diretivas antecipadas de vontade.3 A necessidade de cuidado e apoio aos doentes que estão em processo de morte é antiga, porém o desenvolvimento de locais específicos para os receber, prestandolhes tratamentos de alívio à dor, remonta ao início do século XIX. Tratam-se dos antigos hospices que, na Idade Média, eram destinados ao acolhimento de peregrinos e 2

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Antes da edição do novo Código de Ética Médica, era a Resolução nº 1.805 de 2006 que trazia disposição acerca da vedação de obstinação terapêutica por parte do médico. No tocante aos cuidados paliativos, o Ministério da Saúde vem implantando-os gradualmente no âmbito do Sistema único de Saúde, o que se verifica por meio das Portarias nº 19, de 03 de janeiro de 2002; nº 1319, de 23 de julho de 2002 e nº 2439 de 8 de dezembro de 2005.

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viajantes. Posteriormente, passaram a ser associados ao cuidado dos pacientes que estavam morrendo, principalmente na França, Irlanda e Estados Unidos.4 Modernamente, porém, há literatura que diferencia o sistema de hospice da prática de cuidados paliativos, na medida em que tais cuidados não são focados na morte, mas no conforto e no alívio, associados ou não ao cuidado curativo. Em última análise, busca-se o conforto do paciente e o respeito às suas decisões, para melhorar a qualidade da vida ao longo do tratamento curativo ou no já iniciado processo de morte. Destinam-se aos pacientes graves que estejam ou não em estado terminal, no intuito de aliviar dores e outros sintomas como falta de ar, náusea, falta de apetite e fadiga. O hospice, por sua vez, é destinado aos pacientes terminais, cuja expectativa de vida seja inferior a seis meses.5 O termo paliativo é derivado do latim pallium, que significa manto, indicando a essência desse tipo de cuidado, como uma forma de proteger aqueles que sofrem de doenças incuráveis, propiciando-lhes o alívio das dores, principalmente quando não houver mais recurso da medicina curativa. O conteúdo dos cuidados que serão considerados paliativos não segue um padrão fixo, dependerá da avaliação diagnóstica e das necessidades da pessoa doente e de sua família.6 De acordo com a Organização Mundial de Saúde, os cuidados paliativos constituem uma abordagem que melhora a qualidade de vida dos pacientes e de suas famílias que enfrentam problemas associados à doença ameaçadora da vida. São feitos por meio de prevenção e alívio do sofrimento e se utilizam da identificação precoce da doença, assim como da avaliação e do tratamento da dor e de outros problemas físicos, psicossociais e espirituais.7 O alvo preferencial desse tipo de tratamento é o paciente em estado terminal para o qual já não há recursos de cura.8 A condição de terminalidade deve ser apurada pelo consenso da equipe médica, como aquele diagnóstico que progride para a morte inevitável. Mas também se aplicam os cuidados paliativos aos portadores de doenças crônicas, para os quais também não há cura possível, e sim uma demanda de atenção integral nas dimensões física, psicossocial e espiritual. O equilíbrio

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PESSINI, Leo; BERTACHINI, Luciane. Novas perspectivas em cuidados paliativos: ética, geriatria, gerontologia, comunicação e espiritualidade. O Mundo da Saúde, v. 29, n. 4, p. 491-509, 2005. DENNIS, Jeanne. Palliative Care or Hospice? It’s Not About Giving Up. The huffpost healthy living. Disponível em: . Acesso em: 13 jun. 2015. PESSINI, Leocir; DE BARCHIFONTAINE, Christian de Paul. Problemas atuais de bioética. São Paulo: Edições Loyola, 2005. ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE. WHO Definition of palliative care. [200-]. Disponível em: . Acesso em: 12 nov. 2014. FIGUEIREDO, Marco Tullio de Assis. A dor no doente fora dos recursos de cura e seu controle por equipe multidisciplinar (Hospice). In: Coletânea de textos sobre cuidados paliativos e tanatologia. São Paulo, 2006, p. 43-46. Disponível em: . Acesso em: 09 nov. 2014.

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dessas dimensões da vida traz maior proximidade com o conceito de saúde aplicado pela OMS que já não é compreendida como a mera ausência de doença, e sim como o bem-estar global da pessoa, inclusive nos aspectos psicofísico e social.9 Procura-se garantir ao paciente terminal ou acometido de doença crônica uma assistência multidisciplinar e integral capaz de lhe permitir maior qualidade de vida possível, no convívio com os familiares e os amigos, reduzindo os efeitos negativos da doença sobre o bem-estar, especialmente pelo controle da dor. Essas ações são continuadas até o período mais agudo e severo de sofrimento que antecede à morte, o que pode compreender dias ou horas antes do óbito, quando passam a ser chamadas de cuidados ao fim da vida.10 Há uma proximidade entre os cuidados paliativos e a ortotanásia, muito embora não sejam termos coincidentes. O Conselho Federal de Medicina (CFM), na Resolução nº 1.805 de 2006, disciplinou a conduta médica em relação a ambas as situações. Determinou, no artigo 2º, que, quando o paciente estiver em estado terminal, deve continuar a receber os cuidados necessários para aliviar os sintomas que resultam em sofrimento, sendo-lhe assegurada a assistência integral que engloba as condições de conforto físico, psíquico, social e espiritual, incluindo-se uma possível alta hospitalar.11 O novo Código de Ética Médica (Resolução nº 1.931 de 2009), ao tratar dos princípios fundamentais, determina, no item XXII, que o médico evite a realização de procedimentos diagnósticos e terapêuticos desnecessários quando em face de situações terminais, apenas propiciando os cuidados paliativos apropriados ao seu paciente.12 Essa medida do CFM constitui um movimento de humanização e de aceitação do processo de morte. Possibilita a ortotanásia como uma alternativa que sobreleva a dignidade do paciente e o seu direito de não ser submetido a um tratamento desumano ou degradante, de efeito meramente protelatório. Constitui uma alternativa à distanásia, obstinação terapêutica que somente se presta a intensificar o sofrimento da família e do paciente.

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Ressalta-se a necessidade de buscar a máxima aproximação do conceito, reconhecendo-se que há críticas feitas no sentido de ser utópico e ultrapassado — por fazer separação entre o físico, o mental e o social —, além de ser um estado inalcançável e deixar espaço para paternalismo estatal, que interviria na vida das pessoas, sob o pretexto de promover a saúde (SEGRE, Marco; FERRAZ, Flávio Carvalho. O conceito de saúde. Revista de Saúde Pública, v. 31, n. 5, p. 538-542, 1997). MORITZ, Rachel Duarte et al. Terminalidade e cuidados paliativos na unidade de terapia intensiva. Revista Brasileira de Terapia Intensiva, v. 20, n. 4, out./dez., p. 422-428, 2008. BRASIL. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 1.805. Publicada no Diário Oficial da União de 28 de novembro de 2006, Seção I, p. 169. Disponível em: . Acesso em: 12 nov. 2014. BRASIL. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 1.931. Publicada no Diário Oficial da União de 24 de setembro de 2009, Seção I, p. 90. Retificação publicada no Diário Oficial da União de 13 de outubro de 2009, Seção I, p. 173. Aprova o Código de Ética Médica. Disponível em: . Acesso em: 08 nov.2013.

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Distingue-se da eutanásia porque não implica a ação voltada diretamente para provocar a morte; mas apenas a garantia da morte em seu tempo. Nesse sentido, a ortotanásia corresponde à morte com dignidade, permitindo um processo de falecimento humanizado que se abstém do uso de mecanismos artificiais de sustentação da vida. Importa respeitar a autonomia do paciente em realizar uma escolha informada e consciente. Para tanto, a conduta do médico deve implicar a prestação de informações verdadeiras e objetivas ao paciente, solicitando-lhe sempre a permissão para intervenções em seu corpo, de sorte a respeitar-lhe a privacidade.13 Aos poucos, a conduta médica paternalista vai sendo abandonada para reconhecer espaço ao poder decisório do paciente sobre si, inclusive, sobre o seu próprio corpo.14 O consentimento do paciente é fundamental para que se possa determinar quais tratamentos deseja ou não receber quando vier a incorrer em estado terminal. Até mesmo quando o paciente não puder se autodeterminar, o médico deve prestar todas as informações necessárias e pertinentes, bem como coletar o consentimento da família, antes de proceder as intervenções. Toda a sua conduta, portanto, deve se pautar no respeito à autonomia do paciente e ainda na atenção aos princípios bioéticos da beneficência e da não maleficência.

2 Princípios bioéticos e a atenção em saúde pelo médico Os princípios bioéticos, notadamente aqueles que estão previstos textualmente no Código de Ética, devem nortear a conduta do médico que também se vê obrigado a respeitar os princípios e regras jurídicas, em geral. Merecem destaque, na presente análise, três princípios bioéticos gerais, quais sejam, a autonomia, a não maleficência e a beneficência. Todos esses princípios retiram fundamento da dignidade da pessoa humana, princípio jurídico fundamental que se erigiu como um valor crucial da sociedade ocidental, ao longo de toda a história. Em virtude de sua disposição nomogenética, a dignidade da pessoa humana constitui fonte de tantos outros princípios e regras, ao tempo em que também constitui um substrato axiológico dos direitos não patrimoniais, como os direitos fundamentais e de personalidade. A despeito de sua compleição aberta, a doutrina procurou delimitar-lhe um conteúdo a partir da conjunção de

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LOLAS, Fernando. Bioética: o que é, como se faz. Tradução de Milton Camargo Mota. São Paulo: Loyola, v. 10, 2001, p. 62-63. FREITAS, Riva Sobrado de; BAEZ, Narciso Leandro Xavier. Privacidade e o direito de morrer com dignidade. Pensar, Fortaleza, v. 19, n. 1, p. 249-269, jan./abr. 2014. Disponível em: . Acesso em: 29 nov. 2014.

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alguns interesses essenciais à pessoa: integridade psicofísica, liberdade, igualdade e solidariedade.15 Relaciona-se, por sua vez, à autonomia, que pode ser concebida de diferentes maneiras, a depender do momento histórico e do âmbito de atuação. Segundo Menezes e Feitosa,16 do ponto de vista ético-existencial, refere-se ao âmbito de liberdade no qual a pessoa realiza suas escolhas pessoais, que impactem somente na sua esfera privada. Enfatiza que não se trata de direito absoluto, mas merece ser considerada de maneira cuidadosa quando, no caso concreto, estiver em conflito com outros interesses também constitucionalmente assegurados. Autonomia deve ser aqui entendida como poder de ação em uma perspectiva relacional, de liberdade intersubjetiva. Tal entendimento tem eco nas constituições do pós-guerra, como a Constituição brasileira de 1988, que deram maior evidência às necessidades existenciais. Isso porque a dignidade da pessoa humana foi erigida a um dos fundamentos da República, o que permitiu uma inflexão axiológica no sentido de dar primazia às situações existenciais sobre as patrimoniais. Interpretada como cláusula geral de tutela da personalidade,17 impõe que a pessoa seja enxergada de maneira integral e multidisciplinar, não perdendo de vista os aspectos social, econômico, cultural e as necessidades físicas e psíquicas de cada sujeito. Sendo assim, promoveu a mudança de perspectiva da autonomia, tradicionalmente concebida segundo a patrimonialidade e passou a tratar de autonomia existencial.18 Do ponto de vista bioético, pode ser considerada como o governo pessoal de si mesmo, livre de interferências controladoras de outros e de limitações pessoais que impeçam uma escolha decorrente da intenção do sujeito, a exemplo de uma compreensão inadequada. Exige um tratamento respeitoso na revelação de informações e um encorajamento para a tomada e decisões autônomas. Em conjunto com a beneficência e não maleficência, sustentam outras regras morais, tais como a

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BODIN DE MORAIS, Maria Celina. Na medida da pessoa humana: estudos de direito civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p. 85-110. MENEZES, Joyceane Bezerra de; FEITOSA, Gustavo Raposo Pereira. A simbiose entre o público e o privado no direito civil-constitucional: uma (re) discussão sobre o espaço a autonomia-ético existencial, intimidade e vida privada. Nomos (Fortaleza), v. 32, p. 77-90, 2012. Afirma a autora que: “Assim, a dignidade da pessoa humana foi assentada na Magna Carta com status de um dos fundamentos da República, ao lado da cidadania, da soberania, do pluralismo político e dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa. Nesse contexto, a dignidade configura-se como cláusula geral de tutela e promoção da personalidade, geradora de deveres positivos e negativos, a qual pressupõe que a pessoa seja concebida a partir de uma reflexão multidisciplinar. Isto é, a dignidade, no papel de princípio unificador do ordenamento jurídico, impõe que o olhar dirigido à pessoa seja capaz de englobar a integralidade do indivíduo, levando-se em conta o contexto social, econômico, cultural e as necessidades físicas e psíquicas de cada sujeito” (BODIN DE MORAIS, 2014, p. 784). BODIN DE MORAIS, Maria Celina; CASTRO, Thamis Dalsenter Viveiros de. Autonomia existencial nos atos de disposição do próprio corpo. Doi: 10.5020/2317-2150.2014.v19n3p779. Pensar, Fortaleza, v. 19, n. 3, p. 779-818, set./dez. 2014. Disponível em: . Acesso em: 13 jun. 2015.

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necessidade de dizer a verdade, respeitar a privacidade, obter consentimento para intervenções no paciente entre outras.19 Ainda no entender de Beauchamp e Childress,20 a não maleficência constitui o comportamento de não causar danos de maneira intencional. Alguns autores tratam o princípio da não maleficência em conjunto com a beneficência, que prega a prática de atos positivos para o bem do paciente. Vai ao encontro do que dispõe o Código de Ética Médica, nos artigos 14, 22 e 24, quando veda a indicação ou a prática de atos desnecessários, bem como quando exige o consentimento esclarecido e informado do paciente ou de seu representante legal.21 A tomada de decisão livre também tem assento no artigo 15 do Código Civil, que prevê a impossibilidade de constranger alguém a se submeter a tratamento médico ou intervenção cirúrgica com risco de vida. Adverte-se que o artigo não deve ser interpretado em sentido inverso, de modo a permitir que o procedimento que não ofereça risco de morte possa ser realizado de forma compulsória, sem o consentimento do paciente. Seja no âmbito da medicina curativa ou da paliativa, o dever de informação é essencial para a emissão da vontade livre, consciente e esclarecida. Tal mister constitui uma das três grandes categorias de deveres do médico, juntamente com os deveres de empregar todas as técnicas disponíveis para a recuperação do paciente; e dever de tutelar o melhor interesse do doente, prezando pela sua dignidade e integridade física e psíquica. Em se tratando do dever de informação, cabe ao médico fornecer todos os esclarecimentos relativos ao diagnóstico e ao prognóstico, incluindo-se as vantagens e as desvantagens dos procedimentos empregados, salvo se o paciente optar por não saber.22 O dever de empregar todas as técnicas possíveis e disponíveis inclui a obrigação de acompanhar o paciente, atendendo aos seus chamados ou indicando outro profissional, quando não puder fazê-lo pessoalmente. De igual sorte, obriga o médico a não realizar experimentações científicas com o paciente. Em se tratando do dever de buscar o melhor interesse do paciente, o médico também deve evitar excessos ou abusos que configurem comportamento paternalista, prezando sempre pelo diálogo e bom relacionamento com o enfermo. Acima de qualquer interesse ou convicção,

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BEAUCHAMP, Tom L.; CHILDRESS, James L. Princípios de ética biomédica. Tradução Luciana Pudenzi. São Paulo: Loyola, 2011, p. 137-145. BEAUCHAMP, Tom L.; CHILDRESS, James L. Princípios...p. 210 e 281. BRASIL. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 1.931... O Código de Ética Médica prevê o dever de informação, no capítulo que trata da relação do médico com o paciente e familiares, estabelecendo, no artigo 34, que é vedado ao médico: “deixar de informar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os riscos e os objetivos do tratamento, salvo quando a comunicação direta possa lhe provocar dano, devendo, nesse caso, fazer a comunicação a seu representante legal”. De igual modo, veda, no artigo 35, “exagerar a gravidade do diagnóstico ou do prognóstico, complicar a terapêutica ou exceder-se no número de visitas, consultas ou quaisquer outros procedimentos médicos”, bem como, no artigo 36, “abandonar paciente sob seus cuidados” (BRASIL. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 1.931...).

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cabe ao médico o dever de buscar a melhor alternativa para a integridade psicofísica do paciente e para sua dignidade, em atenção aos seus direitos fundamentais e aos fundamentos da República.23 Proíbe a prática da eutanásia, quando veda a abreviação da vida do paciente, mesmo a seu pedido ou de seu representante legal. Contudo, prevê que, nos casos de doença incurável e terminal, possa oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis, sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas. Em todo o caso, sempre respeitando a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal. Nesse sentido, destaca-se a importância das diretivas antecipadas de vontade,24 reguladas pela CFM/Resolução nº 1.995 de 2012. Constitui um instrumento de manifestação de vontade presente para situações futuras, relativamente aos tratamentos ou procedimentos aos quais o indivíduo deseja ou não se submeter quando estiver impossibilitado de expressar a sua vontade, fazendo-as prevalecer sobre a vontade dos familiares. Por meio dessa resolução também é possível a nomeação de um procurador de saúde, que será incumbido de tomar as decisões pelo paciente quando este já não tiver a consciência necessária para tanto.25

3 Responsabilidade civil médica Para analisar a responsabilidade civil do médico associada à ortotanásia e orientada pelos cuidados paliativos, é necessário analisar os diplomas legais que disciplinam a matéria, quais sejam, o Código Civil, o Código de Defesa do Consumidor

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TEPEDINO, Gustavo. A responsabilidade médica na experiência brasileira contemporânea. Revista Jurídica, Rio Grande do Sul, ano 51, n. 311, p. 18-43, set. 2003. O termo diretivas antecipadas é preferido, já que a expressão testamento vital é criticado por doutrina específica, pois é resultado de traduções do termo em inglês, living will, sem a necessária adequação ao instituto em português. Traduzido dessa maneira pode ser confundido com o sentido jurídico do vocábulo testamento no Brasil, que designa disposição de última vontade estabelecida por um negócio jurídico unilateral, solene e com eficácia condicionada à morte do titular. Por sua solenidade e efeito jurídico post mortem, difere do testamento vital. Este também é negócio jurídico de disposição de vontade, porém a ser exercida enquanto o titular estiver vivo e despido da consciência necessária para se autodeterminar. Assim, há duas classificações correntes: a primeira coloca diretivas antecipadas como gênero, do qual são espécies o mandato duradouro e a declaração prévia de vontade (PENALVA, Luciana Dadalto. Declaração prévia de vontade do paciente terminal. Revista Bioética, v. 17, n. 3, p. 523-543, 2009); a segunda, sem preterir o termo já consagrado no país, traz testamento vital como gênero, e inclui mandato duradouro e diretivas antecipadas como espécies (PENALVA, Luciana Dadalto; TUPINAMBAÍ, Unais; GRECO, Dirceu Bartolomeu. Diretivas antecipadas de vontade: um modelo brasileiro. Rev. Bioética (Impr.), v. 21, n. 3, p. 463-76, 2013). Dessa forma, em um mesmo documento, é possível determinar os tratamentos aos quais deseja ou não ser submetido quando fora das perspectivas de cura, assim como o mandatário responsável por tomar decisões médicas quando o mandante estiver despido de consciência, ou por fazer cumprir tais determinações. Assim dispõe a resolução sobre a nomeação de representante pelo paciente: “Art. 2º Nas decisões sobre cuidados e tratamentos de pacientes que se encontram incapazes de comunicar-se, ou de expressar de maneira livre e independente suas vontades, o médico levará em consideração suas diretivas antecipadas de vontade. §1º Caso o paciente tenha designado um representante para tal fim, suas informações serão levadas em consideração pelo médico” (BRASIL. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 1.995...).

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e o Código de Ética Médica. O pressuposto específico, no caso, segundo Aguiar Júnior,26 será o ato médico praticado com violação de um dever profissional imposto por lei, pelo costume ou por um contrato, que haja causado um dano patrimonial ou extrapatrimonial. Importa ao presente estudo, a análise da responsabilidade civil do médico pela intervenção em face de um paciente acometido de doença grave e incurável ou em estado terminal, para o fim de verificar como se daria eventual responsabilização, na hipótese do evento morte resultar do avanço da doença associado à suspensão do tratamento e/ou procedimento de intenção curativa, por escolha do paciente, acompanhado pelo médico. A análise da responsabilidade civil médica e hospitalar requer o exame de duas perspectivas distintas: a primeira decorre da prestação de serviço direta e pessoalmente pelo médico, assim considerado um profissional liberal; já a segunda resulta da prestação de serviços médicos sob a organização empresarial, como se faz pelos hospitais, clínicas, casas de saúde, bancos de sangue, etc.27 No que concerne à responsabilidade pessoal do médico, é considerada uma responsabilidade contratual,28 quanto à fonte, que envolve uma obrigação de meio. É regulada pelo artigo 951, do Código Civil, que impõe o dever de indenização a quem, no exercício de atividade profissional e em razão da negligência, imprudência ou imperícia, causar a morte do paciente, agravar-lhe o mal, causar lesão ou inabilitar para o trabalho. Observe-se que a atividade curativa desenvolvida pelo profissional médico não constitui atividade de risco para o paciente, mas, ao contrário, intenta afastar o risco de agravamento do estado de saúde, propiciando cura ou melhora. Qualquer tentativa de tornar objetiva a responsabilidade médica conduz à mudança na prestação devida em obrigação de resultado, o que não é aceitável. A dor, a doença, as alterações de saúde e a morte não devem ser consideradas riscos que constituem a atividade médica, porém algo inerente ao ser humano. Ademais, não é o médico, em regra, que as provoca, mas, em oposição a isso, tenta aliviar o sofrimento e restaurar a saúde.29 O CDC também faz alusão à responsabilidade pessoal desses profissionais. Nos termos do parágrafo 4º, do artigo 14, tem-se que a responsabilidade civil do

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AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Responsabilidade civil do médico. In: Direito e medicina: aspectos jurídicos da medicina. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p. 133-180. Disponível em: . Acesso em: 16 jul. 2015. CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 403. O entendimento acerca da natureza contratual da responsabilidade civil médica é compartilhado por Gustavo Tepedino, José de Aguiar Dias, Maria Helena Diniz, Rui Rosado de Aguiar Junior (TEPEDINO, Gustavo. A responsabilidade médica...p. 19). KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade civil do médico. 6. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 38 e 62.

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profissional liberal será apurada mediante a verificação de culpa.30 Em sentido semelhante é o Código de Ética profissional, que veda ao médico causar dano ao paciente, por ação ou omissão que se caracterize como negligência, imprudência ou imperícia. De toda sorte, importa a necessária demonstração de culpa para que se possa apurar a responsabilidade civil do médico. A comprovação da conduta culposa do médico é requisito inerente ao tipo de responsabilidade a ele atribuída: subjetiva. Esta, por sua vez, está relacionada à natureza da obrigação por ele assumida, que é de meio e não de resultado.31 Isso porque o médico, pelo tipo de serviço que presta e por sua natureza humana, não dispõe de meios de se comprometer com o evento cura, embora envide todos os esforços possíveis para isso.32 Para a comprovação dessa culpa, é imprescindível se demonstrar o descumprimento dos deveres relacionados ao ofício, tripartidas nas três grandes categorias mencionadas: dever de informação; dever de empregar todas as técnicas disponíveis para a recuperação do paciente; dever de tutelar o melhor interesse do doente, prezando pela sua dignidade e integridade física e psíquica. Relativamente aos danos decorrentes da prestação de serviços médicos de forma empresarial, como aquela que se faz pelos hospitais e clínicas, aplica-se, nos termos do artigo 14 do diploma consumerista, a responsabilidade objetiva, dispensando prova da culpa. Sendo assim, o fornecedor responde objetivamente pela eficiência do serviço de saúde prestado. Para as duas hipóteses de responsabilidade acima citadas, é indispensável a demonstração do nexo causal que correlaciona a conduta do médico e/ou a prestação do serviço pelo hospital ou pela clínica e o dano sofrido pelo paciente. A responsabilidade civil do médico ou do hospital não é absoluta, podendo ser afastada nos casos de excludentes previstas em lei. Uma vez demonstradas excludentes de responsabilidade entre o serviço defeituoso e o dano, ou seja, evidenciado que o resultado morte do paciente não foi desencadeado pela ação ou omissão médica, mas sim em virtude de um aleatório alheio ao seu controle, a exemplo da evolução natural da doença, descartado está o dever de reparar.33 Também é possível

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Assim dispõe o artigo 14: “o fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos. [...] §4º A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa” (BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências...). CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de direito do consumidor. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 313. GONDIM, Glenda Gonçalves; STEINER, Renata Carlos. Responsabilidade civil médica: breves considerações em face da recente jurisprudência do superior tribunal de justiça. Revista da Faculdade de Direito da UFG, v. 33, n. 1, p. 204/219, maio 2010. ISSN 0101-7187. Disponível em: . Acesso em: 27 nov. 2014. Registre-se caso na jurisprudência paulista em que a demanda indenizatória foi ajuizada em face do hospital, porém julgada improcedente e confirmada em segunda instância, em virtude da falta de comprovação de conduta culposa do médico. Tratou-se de um senhor diagnosticado com câncer de laringe que, em 2005, foi submetido a cirurgia para extração do tumor, passou por várias internações no hospital demandado, e, aproximadamente

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qualificar como exclusão da responsabilidade,34 aquele caso no qual se prova que o insucesso do procedimento ou do tratamento decorreu de condições próprias do paciente. Frise-se que a conduta médica associada aos deveres já citados tem por objetivo primordial o de zelar pela dignidade do paciente até quando se inicia o processo de morte, de modo a que se evite a distanásia, assim caracterizada como o prolongamento exagerado desse processo, por meio da adoção de tratamentos inúteis que somente trazem sofrimento adicional ao paciente.35 Quando a doença está em estágio avançado e irreversível, mais premente se faz o dever de cuidado, não no intuito de retirar a enfermidade a todo custo, mas de proporcionar conforto e qualidade de vida ao paciente. Requer ainda, o respeito às suas escolhas livres e conscientes, mesmo que isso implique a suspensão ou recusa do tratamento prescrito. Se, nessas hipóteses, o médico priorizar os cuidados paliativos, em respeito à vontade do paciente e este vier a óbito, não se poderá imputar responsabilidade civil ao profissional ou ao estabelecimento de saúde.

Conclusão I.

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dois anos após a cirurgia, chegou ao nosocômio com o quadro de saúde agravado. Recebeu cuidados médicos, porém faleceu em 2007, quando a família ajuizou ação de indenização por danos morais e materiais em face do hospital, alegando que a morte foi antecipada devido às altas doses de sedativos. No julgamento da demanda, entendeu-se que o paciente apresentava estado avançado da doença, sendo considerado terminal, de forma que a moléstia não poderia mais ser revertida. Nova cirurgia havia sido descartada devido ao grau avançado da enfermidade, restando-lhe apenas os cuidados paliativos para evitar ou minimizar a dor, o que foi feito por meio de sedação contínua. Essa tendência do tribunal paulista se baseia no entendimento de que, nesses casos, o que se examina é o próprio trabalho do médico (KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade civil..., p. 199-201). O recurso de apelação nº 0003009-12.2010.8.26.0004, de relatoria do Desembargador João Francisco Moreira Viegas, bem como a sentença do mesmo processo, foram obtidos por meio de pesquisa realizada no sítio eletrônico do Tribunal de Justiça de São Paulo, utilizando-se “ortotanásia” como termo de busca, sem delimitação temporal, em todos os tipos de decisão e independentemente da origem. Retornaram três resultados, entre os quais o ora relatado, cuja ementa enuncia: “RESPONSABILIDADE CIVIL DANOS MORAIS E MATERIAIS Hospital - Paciente que faleceu após período de internação - Responsabilidade do hospital que decorre da comprovação de conduta culposa do médico Conjunto probatório que não logrou demonstrar a existência de negligência ou imperícia no tratamento do paciente - Morte que decorreu do avanço incontrolável da doença, e não de qualquer conduta do corpo médico Ausência do dever de indenizar Sentença mantida – Recurso desprovido” (BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação nº 000300912.2010.8.26.0004, da 5ª Câmara de Direito Privado. Relator: Desembargador João Francisco Moreira Viegas. São Paulo, SP, 12 de junho de 2013. Disponível em: . Acesso em: 28 nov. 2014). Dispõe o parágrafo terceiro do artigo 14: “o fornecedor de serviços só não será responsabilizado quando provar: I – que, tendo prestado o serviço, o defeito inexiste; II – a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro” (BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências...). PESSINI, Leo. Distanásia: até quando investir sem agredir? Revista Bioética, Brasília, v. 4, n. 1, nov. 2009. Disponível em: . Acesso em: 30 nov. 2014.

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A discussão sobre os cuidados paliativos e a ortotanásia, conceitos distintos de eutanásia, ganha cada vez mais espaço no meio jurídico. Deve-se ter

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em vista a necessidade de ressaltar a dignidade humana, principalmente em situações de doença incurável ou terminal. A relação entre médico e paciente deve ser pautada nos deveres profissionais de informação, emprego de todas as técnicas disponíveis para a recuperação do paciente e de tutelar o melhor interesse do doente, prezando pela sua dignidade e integridade física e psíquica. O respeito à autonomia e aos princípios da não maleficência e da beneficência legitimam o direito que tem a pessoa do paciente em tomar decisões livres, conscientes e informadas, cujos efeitos devem ser respeitados pelo médico, pela família e pelo estabelecimento de saúde. Cabe ao médico fornecer todas as informações disponíveis relativas aos tratamentos disponíveis e os riscos que acarretam, para que o paciente possa fazer a escolha sobre o tratamento mais adequado aos seus anseios, inclusive quando optar pela suspensão ou recusa de procedimentos curativos, e pela atenção paliativa pautada no controle dos sintomas negativos da doença. É direito da pessoa optar pela boa morte, evitando as intervenções fúteis e obstinadas, que já não proporcionem o bem-estar. A opção pelos cuidados paliativos implica o tratamento voltado para a garantia do bem-estar integral do paciente, mediante intervenções nas dimensões física, psíquica, social e espiritual. Com o fim de garantir o convívio familiar e com os amigos, é possível determinar-se até mesmo a alta hospitalar, ainda que se permita a atenção por meio dos serviços de homecare. Linhas gerais, somente se poderá falar de responsabilidade civil médica pela morte do paciente que optou pelos cuidados paliativos, se o profissional houver transgredido os deveres que norteiam a sua conduta e houver nexo causal entre esta e o dano. A responsabilidade civil do médico que acompanha direta e pessoalmente o paciente será subjetiva, exigindo-se a comprovação de sua culpa, ou seja, a prova de sua negligência, imprudência, imperícia na prestação do serviço. Trata-se aqui, de uma responsabilidade civil subjetiva, pautada numa obrigação de meio, já que o profissional, via de regra, não pode se comprometer com o resultado cura, o que foge à natureza do serviço. A despeito disso, deve empreender todos os esforços possíveis para alcançar a cura do paciente, ou, quando não for possível, deve prezar por seu bem-estar e pela maior qualidade de existência possível ao enfermo. Caso o serviço médico haja sido prestado por meio de uma atividade empresarial, na qual o fornecedor é um hospital ou uma clínica, a responsabilidade do estabelecimento de saúde é apurada de maneira objetiva. Persiste apenas em face da falha na prestação dos serviços. Para se eximir da responsabilidade, porém, o estabelecimento de saúde poderá alegar

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alguma excludente de responsabilidade civil, nos moldes do disposto no Código de Defesa do Consumidor. Na hipótese, alegando a inexistência de nexo causal entre a conduta médica e a morte de paciente que já estava, por exemplo, acometido por doença em estado avançado. O óbito se daria em virtude de progressivo agravamento do quadro do enfermo.

Medical Liability on Palliative Care and Orthothanasia Abstract: The evolution of medicine enabled the development of new techniques and new drugs, increasing the time between the discovery of disease and death, extending the existence of people. In addition to revolutionary treatments for the cure of many diseases, the use of artificial maintenance of life devices and medicines that keep or minimize pain is possible, allowing delay the death of the patient stricken with serious and incurable or terminal illness. These possibilities, however, lead to the reflection on the medical procedure in relation to the care expended for the terminally ill, unveiling bioethical issues with reflection on law. Any solution should collate the principles of justice consolidated in the Constitution, notably, the dignity of the human person which is the epicenter of fundamental rights. Although terminally ill patients have no chances of a cure for his illness, they are rights holders and should have their dignity preserved in the last moments of life. In respect for these rights, especially autonomy, they can not be subjected to any treatment able to configure torture, either, those futile treatments that only increase suffering and do not generate well-being and healing perspective. Focusing on the practice of palliative care and orthothanasia in Brazil, related to the principle of human dignity and bioethical principles of respect for autonomy, beneficence and non-maleficence, this study aims to analyze the outlook of medical liability. In the methodological aspect, there was literature and documents, especially legal doctrine, laws and resolutions governing the medical management. Keywords: Palliative Care. Orthothanasia. Bioethics. Medical Liability.

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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT): LIMA, Luciana Vasconcelos; MENEZES, Joyceane Bezerra de. Responsabilidade civil médica diante dos cuidados paliativos e da ortotanásia. Revista Fórum de Direito Civil – RFDC, Belo Horizonte, ano 4, n. 10, p. 107-122, set./dez. 2015.

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