RESPONSABILIDADE DE PESSOAS JURÍDICAS POR CORRUPÇÃO: Análise do Projeto de Lei nº 6.826 de 2010

July 12, 2017 | Autor: Felipe Dantas | Categoria: Law, Anti-Corruption, Corruption, Corrupção, Lei Anticorrupção
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE DIREITO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO Departamento de Direito Penal, Medicina Forense e Criminologia

Felipe Dantas de Araújo

RESPONSABILIDADE DE PESSOAS JURÍDICAS POR CORRUPÇÃO: Análise do Projeto de Lei nº 6.826 de 2010

Artigo

apresentado

conclusão

da

por

disciplina

Corrupção: Aspectos Atuais”.

De Natal para São Paulo Novembro de 2012

ocasião

da

“DPM5997

RESUMO Trata este artigo da análise do Projeto de Lei 6.826/2010, que “dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a Administração Pública nacional ou estrangeira”. Manter as regras do mercado leais e transparentes é tanto do interesse dos operadores econômicos, como de todos os afetados pela economia global – acredita-se que a corrupção pode distorcer seriamente a concorrência e pôr em perigo o desenvolvimento econômico, quando, por exemplo, as empresas subornam agentes públicos para vencer licitações. A responsabilização de corporações pela prática de atos de corrupção se insere em um quadro mais amplo de criação de um regime internacional dedicado à problemática da corrupção, levando em consideração seus impactos e conseqüências político-econômicas no globo. Nessa nova dimensão, a corrupção, que inicialmente era vista pela comunidade internacional como um assunto de interesse unicamente doméstico dos países, sofreu um processo de problematização em nível internacional com profundos reflexos em políticas de comércio internacional e cooperação para desenvolvimento. Inicialmente um ilícito penal, há cada vez mais normas tratando a corrupção segundo mecanismos administrativos e civis, e modificando regras tradicionais de imputação. Um exemplo da adoção pelo Brasil de normas deste novo regime internacional, o PL 6.826/2010 destina-se a punir pessoas jurídicas por atos de corrupção, praticados contra entes públicos nacionais, estrangeiros ou transnacionais. A responsabilização civiladministrativa de entes coletivos, que só podem ser submetidos a penas que atinjam seu patrimônio e suas atividades, ocorre no regime deste projeto de lei com as seguintes características: autoria mediata, responsabilidade objetiva, tipos de perigo abstrato e extrapessoalidade das sanções.

SUMÁRIO Introdução ................................................................................................................................... 2 1 Antecedentes............................................................................................................................ 4 1.1 Dimensões da Anticorrupção...........................................................................................5 1.2 Internacionalização da Anticorrupção e Responsabilização da Pessoa Jurídica..............8 2 Estrutura Normativa .............................................................................................................. 14 2.1 Disposições Gerais (Capítulo I).....................................................................................15 2.2 Atos Lesivos à Administração Pública Nacional ou Estrangeira (Capítulo II)..............24 2.3 Responsabilidade Administrativa (Capítulo III)............................................................26 2.4 Processo Administrativo de Responsabilização (Capítulo IV)......................................37 2.5 Responsabilização Judicial (Capítulo V).......................................................................39 2.6 Disposições Finais (Capítulo VI)...................................................................................42 2.7 Correlações com o Anteprojeto de Código Penal (Comissão Gilson Dipp)..................43 Conclusão ................................................................................................................................. 44 Referências ............................................................................................................................... 48 ANEXO I - PROJETO DE LEI Nº 6.826/2010........................................................................ 51 ANEXO II – Exposição de Motivos Interministerial nº 00011/2009 ....................................... 57 ANEXO III – Quadro Comparativo: Tipos Civis-Administrativos do PL 6.826/2010 x Tipos Penais da Lei 8666/1993 .......................................................................................................... 61 ANEXO IV – Excertos do Anteprojeto de Código Penal (Comissão Gilson Dipp) sobre Responsabilidade de Pessoas Jurídicas .................................................................................... 62

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Introdução Este artigo trata da análise do PL (Projeto de Lei) 6.826/2010 (ANEXO I), que “dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a Administração Pública nacional ou estrangeira”. O projeto em questão foi encaminhado ao Congresso Nacional pelo Presidente da República em 18 de fevereiro de 2010, como resultado da EMI (Exposição de Motivos Interministerial) 11/2009, oriunda da Controladoria-Geral da União (CGU) e do Ministério da Justiça (ANEXO II). Contemporaneamente, acredita-se que a corrupção mina a boa governança e destrói a confiança pública na justiça e na imparcialidade da administração pública. Esses efeitos são maximizados pelas funções do Estado moderno, que se apropria tributariamente de boa parte da riqueza gerada pelos particulares, e a reverte em serviços públicos na tentativa de corrigir ou mitigar desigualdades sociais. Em casos extremos de corrupção endêmica, a própria existência do Estado coloca-se em perigo – o “combate” à corrupção aparece na propaganda e no discurso legitimador de praticamente todos os grupos políticos modernos, estejam ou não organizados em partidos. Mas também se acredita que a corrupção pode distorcer seriamente a concorrência e pôr em perigo o desenvolvimento econômico, quando, por exemplo, as empresas subornam agentes públicos para vencer licitações. Com a globalização das estruturas econômicas e financeiras, bem como com a integração dos mercados nacionais em um mercado global, as decisões tomadas sobre os movimentos de capitais ou investimentos em um país podem fazer efeitos em outros. Corporações multinacionais e investidores internacionais desempenham um papel determinante na economia atual e não são limitados por fronteiras, e manter as regras do mercado leais e transparentes é tanto do interesse dos operadores econômicos, como de todos os afetados pela economia global. A modernidade encara a corrupção como um risco: ela é um evento que possui causas e efeitos demonstráveis cientificamente, e cuja ocorrência futura pode ser precisada em termos probabilísticos, em uma análise de riscos. Boa parte desse conhecimento é dirigido ao estudo do papel das pessoas jurídicas, empresas e corporações na prática de atos de corrupção, e de quais medidas podem ser tomadas para prevenir e sancionar de forma efetiva esse tipo de conduta corporativa. Como a base da pessoa jurídica é a separação da vida jurídica desta da de seus membros, ocasionando equivalente separação de patrimônio e de responsabilidade, essa característica ensejaria o uso das pessoas jurídicas como instrumentos de crime. A perspectiva da corrupção como risco supera essa visão da pessoa jurídica apenas como instrumento de um

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crime, e a recoloca em uma posição de ambiente de prática de ilícito, e de responsável jurídico pelas suas conseqüências. Imaginem-se, por exemplo, duas companhias. A primeira conta com um sólido programa interno de compliance anticorrupção, que envolve medidas como treinamentos em responsabilidade ética corporativa, manutenção de linha direta interna para denúncias de corrupção, ou uma política séria de colaboração com as autoridades em casos de crimes praticados por empregados ou executivos no âmbito da atividade econômica explorada. A segunda companhia, entretanto, não possui nem um código de ética interno, ou se o possui, ele é apenas figurativo, não divulgado ou não observado como parâmetro pelos seus altos níveis diretivos. Imaginemos agora que a primeira empresa tenha tido ciência posterior de um ato de corrupção praticado por um gerente, e que, após alguma apuração interna, revele esse fato às autoridades competentes e coopere prestando todas as informações solicitadas para o esclarecimento. Já na segunda companhia, por sua vez, um empregado revelou a um diretor indícios da prática de corrupção por um gerente e, como conseqüência, a diretoria resolveu tomar medidas para ocultar provas desse ato de corrupção, preservou o gerente em sua posição, e este por sua vez demitiu o empregado denunciante por ter suprimido um degrau hierárquico na empresa e não ter sido “leal” a seu superior direto. Devem essas duas pessoas jurídicas ser sancionadas de forma diversa? Por quais motivos e segundo quais critérios? Qual técnica jurídica utilizar na solução dessas perplexidades? A resposta a essas indagações passa pela adoção pelo Brasil de diversas convenções internacionais que representam, do ponto de vista interno, a introdução de um regime internacional de proibição voltado à anticorrupção, o qual se manifesta internamente por meio de uma política legislativa de adequação de nosso ordenamento jurídico aos seus paradigmas. Dessa forma, o PL 6.826/2010 se insere em um quadro mais amplo de internacionalização do direito. Declaradamente, a Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (ENCCLA), proferiu em 2008, na sua Meta nº 6, a necessidade de “apresentar anteprojeto de norma para disciplinar a responsabilidade da pessoa jurídica também pela prática de atos ilícitos relacionados à lavagem de dinheiro, a ações de organização criminosa e os praticados contra a administração pública nacional ou estrangeira e o sistema financeiro”. De responsabilidade da CGU, os estudos produzidos por ocasião desta meta redundaram no objeto de nosso presente estudo.

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Este trabalho é dividido em duas partes. Na primeira, trataremos dos antecedentes históricos, conjunturais e jusfilosóficos a este projeto de lei, sua ratio juris e as interrelações com outros regimes internos e internacionais. A segunda parte será mais focada sobre o texto em si do projeto de lei, tendo como objeto a sua estrutura normativa: combinaremos uma visão topográfica mais geral do PL à análise teórica e crítica de seus artigos mais relevantes.

1 Antecedentes A responsabilização de corporações pela prática de atos de corrupção se insere em um quadro mais amplo de criação de um regime internacional dedicado à problemática da corrupção, levando em consideração seus impactos e conseqüências político-econômicas mundo afora. Todavia, antes do movimento de internacionalização do regime proibitivo da corrupção, esta já era tratada como ilícita pelos regimes jurídicos nacionais. Desde o passado, a corrupção tem sido atribuída a uma diversidade de causas. Há perspectivas extremas, como a da hereditariedade biológica, adotada com relutância por Max Weber, ou de forma declaradamente racista por Samuel Huntington, segundo quem na América Latina a corrupção é mais comum nos “países mulatos” (KLITGAARD, 1988, p. 38). No mínimo, a perspectiva mais tradicional quanto à corrupção é tratá-la como um problema ético: Suborno é algo universalmente vergonhoso. Não há um país no mundo que não trate o suborno como crime. Há algumas leis, como as relativas ao jogo, que são constantemente violadas sem que nenhum senso particular de vergonha seja atribuído à ofensa. As leis que proíbem o suborno não são desse tipo. Em nenhum país os subornados falam publicamente dos subornos que recebem, nem subornadores anunciam o que pagam. Ninguém anuncia em jornais que pode negociar um suborno. Ninguém é honrado porque é um grande subornador ou subornado (NOONAN, 1984, pp. 702-703)1. Dentro dessa perspectiva moral, a maneira de se lidar com a corrupção (suborno e outros tipos de favorecimento pessoal indevido por meio de recursos públicos) é tipificar algumas formas de conduta como ilícitos penais, imputando-as aos indivíduos envolvidos. A

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Tradução livre de: Bribery is universally shameful. Not a country in the world which does not treat bribery as criminal on its lawbooks. There are some laws such as those on gambling that are constantly broken without any particular sense of shame attaching to the offense. Bribery law is not among them. In no country do bribetakers speak publicly of their bribes, or bribegivers announce the bribes they pay. No newspaper lists them. No one advertises that he can arrange a bribe. No one is honored precisely because he is a big briber or a big bribee.

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corrupção é, nessa dimensão tradicional, um problema moral, um pecado ético do indivíduo, a ser resolvido por meio de políticas criminais internas, voltadas à punição de pessoas isoladas. Entretanto, recentemente, a partir das décadas de 80 e 90, a internacionalização da anticorrupção redimensiona essa perspectiva tradicional do que se entende por corrupção e das formas de se lidar com ela. Esse redimensionamento se dá em dois níveis: o primeiro continua a tratar a corrupção como um problema de dimensão criminal, mas qualitativamente diverso da criminalidade tradicional. No segundo nível, que não exclui a primeira dimensão criminal, a corrupção passa a ser também uma preocupação administrativa, cuja elaboração envolve conceitos como reforma do Estado, reforma política, prevenção, transparência e criação de regimes sancionatórios não-penais.

1.1 Dimensões da Anticorrupção Na nova dimensão criminal da corrupção, esta deixa de ser vista apenas como um delito individual, que envolve um particular pagador de suborno e um servidor público tomador de suborno. Obviamente esse aspecto da corrupção, a “pequena corrupção” (ou petty corruption como definida nos manuais da ONU) ainda existe e é considerada relevante, até porque afeta diretamente os indivíduos socialmente mais dependentes de serviços básicos do Estado e, portanto, mais vulneráveis a abusos praticados por servidores inescrupulosos. Entretanto, o que se destaca nessa nova dimensão da corrupção são os grandes esquemas, os grandes desvios de recursos, as fraudes e conluios em compras públicas de bens ou serviços, enfim, usando novamente o jargão técnico da ONU, a “grand corruption”. Em termos de categorias penais, não apenas o valor dos bens jurídicos é incrementado, como também muda a categoria de pessoas envolvidas: do lado do Estado figuram servidores de escalão mais elevado, que atuam em grupo. Do lado do setor privado, mais como corruptores do que como vítimas, grupos empresariais e políticos que se enriquecem ou permanecem nas estruturas do poder graças a esquemas organizados de subornos e tráfico de influências. Do ponto de vista criminológico, essa nova dimensão da corrupção está associada a modelos de macrocriminalidade (com suas características de atividade organizada, e com objetivo de lucro), e o paralelismo com o regime de antilavagem é estabelecido, vez que essas técnicas originalmente concebidas como políticas antidrogas, passam a ser entendidas como política criminal genericamente adequada para as diversas formas de criminalidade organizada. Ainda nessa nova dimensão penal, a corrupção é enxergada não só como um

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delito que pode ser praticado por organizações criminosas como sua atividade fim (isto é, a corrupção como “produtora de capital” para determinados beneficiários), mas também como um delito deliberadamente praticado por qualquer organização criminosa, no intuito de facilitar o trânsito de suas mercadorias, corromper policiais, promotores e juízes, ou até mesmo ingressar no sistema político. Tomamos por dimensão administrativa da anticorrupção o conjunto de políticas públicas específicas, punitivas ou não, mas que se situam fora da esfera do sistema penal. Nesta dimensão estão preocupações relativas à reforma do Estado, à reforma política, a medidas preventivas e a formas administrativas diversas de se lidar com a corrupção. A dimensão administrativa da anticorrupção está ligada a uma metáfora econômica do problema (KLITGAARD, 1988, p. 11). Por metáfora econômica, entenda-se a perspectiva de que, como o servidor público e o particular potencialmente envolvidos em um ato de corrupção fazem um cálculo do risco da operação, os custos-benefícios respectivos podem ser alterados, em um enfoque preventivo, por políticas públicas e iniciativas de incremento da gestão administrativa. Essa metáfora econômica possui duas faces: os agentes públicos, idealizadores e executores dessas políticas também têm que considerar aspectos de racionalidade, eficiência e

alcance

das

ações

anticorrupção,

sem

se

deixar

enredar

em

moralismo

e

desproporcionalidade sancionatória. O surgimento dessa dimensão administrativa no movimento de internacionalização do regime anticorrupção, simbolizado nas metáforas descritas, ocorre em uma conjuntura de mudança do papel do Estado, de ator direto na economia para interventor no domínio econômico. Nos países em desenvolvimento, essa conjuntura tem a peculiaridade de ocorrer em uma época histórica de aumento dos gastos em infraestrutura, crescimento das prestações sociais do Estado e consolidação de modelos democráticos distributivistas. Ao mesmo tempo, o fim da Guerra Fria alterou o equilíbrio de forças e removeu a necessidade pelos blocos de países desenvolvidos de apoiarem regimes corruptos por razões de segurança nacional (ROSE-ACKERMAN, 1999, p. 177). Assim, a corrupção, que inicialmente era vista pela comunidade internacional como um assunto de interesse unicamente doméstico dos países, sofreu um processo de internacionalização com profundos reflexos em políticas de comércio internacional e cooperação para desenvolvimento. Isso porque a corrupção possui, para além de metáforas da sua causa, sérios efeitos econômicos: ela afeta a competitividade da economia global e a eficiência de investimentos e projetos de desenvolvimento (ROSE-ACKERMAN, 1999, p. 178). Dada a relevância que ganhou o caráter econômico do fenômeno da corrupção,

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a internacionalização do regime anticorrupção começa a ser delineada no âmbito do Banco Mundial, de cujos quadros desliga-se Peter Eigen para fundar a ONG Transparência Internacional – TI. Na perspectiva desses atores, apesar de reconhecerem que nos países desenvolvidos também há corrupção, há uma tendência de se acreditar que aí ela é incidental, enquanto nos países em desenvolvimento a corrupção seria endêmica, estrutural e abrangente. O efeito da corrupção nesses países seria, portanto, mais maligno, vez que atravanca o desenvolvimento (NUIJTEN, 2007, p. 8), ao tornar contratos inseguros, acarretar demoras burocráticas nas trocas econômicas e infligir custos não-previsíveis ao mercado. Como esses efeitos não desejados retroalimentam a perda de legitimidade dos governos, sul e oriente tornaram-se os principais alvos da coalizão internacional contra a corrupção. Na prática, as políticas e medidas que fazem parte dessa dimensão administrativa da anticorrupção circunscrevem-se a áreas de atuação governamental bastante diversas: de design de programas, à gestão de pessoal, passando por compras públicas de bens e serviços. Apesar da internacionalização, não há uma receita globalmente genérica. Afirma-se que reformas que aumentam a competitividade da economia reduzem incentivos à corrupção (ROSE-ACKERMAN, 1999, p. 39), mas as propostas são específicas, orientadas para peculiaridades do regime local, e com nuances de microeconomia. A primeira reação dos especialistas anticorrupção seria aprovar uma reforma que acabasse com um programa governamental mais propenso à corrupção. Por outro lado, um programa de diminuição do tamanho do Estado não reduz automaticamente o risco de corrupção. A diminuição de gastos públicos ou de iniciativas produtivas estatais é geralmente acompanhada do aumento da influência nos campos regulatórios e de concessões de serviços, áreas nas quais a corrupção pode também ser praticada. Os mesmos exercícios de raciocínio podem ser aplicados aos recursos humanos a serviço do governo. A democracia, em regra, é incompatível com um regime de serviço público baseado em influências políticas. Sem proteção ou um mínimo de estabilidade, servidores públicos que acreditem que perderão seus empregos nas próximas eleições têm um forte incentivo para “acumular” capital para o futuro, ou estabelecer relações espúrias com o setor privado, na qualidade de prováveis empregadores futuros. Terceirização de pessoal para exercício de atividades próprias do serviço público pode ter o mesmo efeito, ao colocar um particular sem vínculo com o Estado para cuidar de assuntos sensíveis. A experiência brasileira é farta em escândalos de corrupção ligados a compras públicas de bens ou serviços. Subornos podem determinar não só quem vence uma licitação, mas, em um momento anterior, orientar o tamanho e as especificações dos objetos de aquisição. Nesse

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mesmo sentido, esquemas elaborados de fraudes em compras (entregar o bem ou serviço em quantidade ou qualidade inferior ao contratado), ou de conluio entre licitantes (formação de cartéis para elevar preços, dividir mercado e inviabilizar o surgimento de concorrentes), figuram como tipologias comuns da manifestação da corrupção no cenário nacional e internacional, de forma que há um consenso de que as reformas anticorrupção devem focar não apenas em reduzir peculato e subornos, mas também em incrementar a eficiência das decisões de compras governamentais (ROSE-ACKERMAN, 1999, p. 59). Também fazem parte da dimensão administrativa da anticorrupção, para além de políticas administrativas de reestruturação e gestão do Estado, medidas sancionatórias administrativas, que se apartam de preocupações repressivas criminais e do sistema penal como um todo. Essas medidas podem ser exemplificadas com os regulamentos específicos sobre a conduta dos servidores públicos, que se expressam como normas disciplinares ou códigos de conduta. Ou, ainda, com procedimentos judiciais e técnicas de investigação dirigidos à recuperação do capital derivado do ato de corrupção, como a já mencionada técnica de extinção de domínio, jurisdictio in rem, e outras de recuperação de ativos. De maior relevo para este presente estudo, figuram também medidas regulatórias do Estado, que incentivam ou obrigam corporações a manterem programas internos de compliance anticorrupção, ou que prevêem a aplicação de sanções civis ou administrativas às pessoas jurídicas responsáveis, de alguma forma e segundo critérios especiais de imputação, pela prática de atos de corrupção.

1.2 Internacionalização da Anticorrupção e Responsabilização da Pessoa Jurídica Considera-se que o documento que, ao mesmo tempo, dá origem ao regime internacional da anticorrupção e introduz a responsabilidade das pessoas jurídicas nessa temática, é uma lei interna dos EUA, o Foreign Corrupt Practices Act – FCPA. O FCPA data de 1977, e foi aprovado em meio às investigações sobre supostas contribuições de empresas para a campanha de reeleição do presidente Richard Nixon, quando a SEC (Securities Exchange Comission, autoridade de regulação do mercado de valores mobiliários) descobrira que algumas companhias mantinham um caixa dois no exterior para influenciar decisões de negócios. As investigações que antecederam a edição da lei, consolidadas no Report on Questionable and Illegal Corporate Payments and Pract, descobriram que 400 companhias investigadas (o que correspondera a 60% da amostra) estavam envolvidas em alguma forma

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de pagamento a servidores públicos estrangeiros, os quais iam de subornos diretos de burocratas de cargos elevados a pagamentos de facilitação a funcionários públicos “blue collars” (ROSENVINGE, 2009, p. 787). O objetivo geral da lei era aumentar a confiança do público e dos acionistas nas empresas dos EUA, e aumentar a efetividade econômica no comércio internacional. Apesar de não ser uma norma de direito internacional, o FCPA possui, por concepção, efeitos transnacionais: ele atinge não só pessoas físicas, mas também pessoas jurídicas norteamericanas, especialmente companhias multinacionais, por atos de suborno praticados contra servidores públicos de qualquer lugar do globo. Obviamente, os EUA não possuem jurisdição para atingir executoriamente os bens de uma subsidiária no país onde se encontre, fora do seu território nacional. Porém, a transnacionalidade da presença dos grupos econômicos faz com que grande parcela do patrimônio dessas companhias esteja sob jurisdição direta dos EUA, em seu território. Isso vale, por exemplo, para as companhias originalmente brasileiras, que possuem ações negociadas no mercado de valores mobiliários dos EUA, e, portanto, estão submetidas à autoridade regulatória da SEC e ao regime do FCPA. O FCPA representou uma quebra no paradigma do comércio exterior da época, no ponto específico da atuação em países em desenvolvimento de companhias dos países desenvolvidos. Até então, no cenário da corrupção vista como um problema apenas interno, era comum que multinacionais, em uma espécie de neo-mercantilismo, tivessem como regra comum de negócio a “lubrificação” das relações com os Estados locais por meio de suborno. Do ponto de vista da multinacional, o suborno a um servidor público estrangeiro garantiria a concessão e renovação de licenças, a liberação aduaneira ou sanitária de mercadorias de forma mais expedita, ou a contratação em grandes projetos de infraestrutura promovidas por Estados, na maioria das vezes, ainda em construção. Localmente, essa prática acarretava um círculo vicioso político, que minava as possibilidades de desenvolvimento: enriquecia tiranos, eternizava no poder grupos políticos despóticos e genocidas, tornava a economia menos eficiente, destruía a competição de possíveis atores locais, e fazia com que os escassos recursos públicos e impostos desses Estados fossem mal empregados em compras públicas de preço majoradas, ou em obras que nunca eram entregues. Da perspectiva dos países desenvolvidos, o suborno praticado pelas multinacionais neles originada tinha diversas vantagens: lucro direto, no caso de multinacionais estatais ou semi-estatais, remessa dos lucros para suas economias nacionais no caso de multinacionais privadas, financiamento da evolução tecnológica e expansão da influência política desses Estados (serviços de

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inteligência se beneficiaram enormemente do papel de intermediadores desses contatos). Ainda por cima, uma prática tão relevante deveria ser incentivada: a legislação tributária de alguns países desenvolvidos previa a hipótese de dedução, como custos operacionais, dos valores pagos a subornos de servidores públicos nativos, para fins de taxação dos lucros recebidos pelas multinacionais no estrangeiro. Embora contenha disposições penais, o FCPA é um exemplo que pertence majoritariamente à dimensão administrativa do regime anticorrupção. Ele é composto de duas partes principais: uma que trata da qualificação do suborno, abrangência da norma e respectivas sanções, e outra que traz obrigações contábeis e de auditoria interna. Na parte sancionatória, destacam-se a punibilidade de pessoas jurídicas e a preferência por aplicação de multas vultosas – características que, combinadas, resultam na maioria dos casos investigados em acordos milionários entre as companhias e o Department of Justice, órgão persecutório desse sistema2. A parte contábil, que se aplica às companhias que tenham ações negociadas no mercado aberto, exige que estas mantenham registros apropriados que acurada e honestamente representem as transações da companhia. O modelo normativo de justiça transnacional do FCPA, seus conceitos e princípios, e sua racionalidade sancionatória inspiraram de forma fundamental os debates da comunidade internacional que culminaram anos depois na Convenção da OCDE, concluída em Paris, em

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O FCPA não teve uma aplicabilidade relevante até o início do milênio, quando escândalos e fraudes contábeis como o da Enron motivaram um novo movimento de reforma nas práticas empresariais. Como resultado desse movimento, a Lei Sarbanes-Oxley, de 2002, passou a tratar os casos de fraude e corrupção no setor privado e no setor público, nacional ou transnacional como eventos traduzíveis e mensuráveis como risco, e criou uma série de obrigações de transparência patrimonial, contábil e de pessoal para as pessoas jurídicas, e aumentou consideravelmente a responsabilidade dos executivos. Após a Sarbanes-Oxley, o Department of Justice revigorou o uso do FCPA, e tem ampliado consideravelmente a fiscalização de subornos pagos no exterior por multinacionais com sede ou ações negociadas nos Estados Unidos, forçando-as a adotar medidas para prevenir que sejam investigadas, evitando assim medidas financeiramente mais onerosas ainda caso tornemse alvo do FCPA. Em 2009, pelo menos 120 empresas estão sob investigação, ante 100 em 2008. A Lucent Technologies Inc. contabilizou milhões de dólares gastos em viagens pagas a mais de 1.000 agentes públicos chineses como visitas a suas fábricas nos EUA, quando na verdade os destinos eram a Disney World, Las Vegas e outros locais turísticos. A empresa reconheceu o erro e pagou, consensualmente, multa de US$ 2,5 milhões. Em outra investigação, a gigante da indústria de defesa Titan Corp. admitiu culpa e a multa de US$ 28,5 milhões para encerrar as acusações contra si, mas como efeito colateral teve o valor de suas ações reduzido, e dúvidas sobre a sua saúde financeira minaram um processo de fusão com a gigante aeroespacial Lockheed Martin. Essa fusão, se tivesse sido concluída, reverteria US$ 1,6 bilhão a ser rateado entre os acionistas da Titan. O conglomerado industrial Siemens AG fechou acordo em dezembro de 2008 para pagar US$ 800 milhões ao governo dos EUA para encerrar uma investigação sobre supostas propinas a autoridades em todo mundo para ganhar contratos de infra-estrutura. O alto valor justifica-se porque a corrupção na Siemens teria chegado ao alto escalão do conglomerado. No processo que correu perante um tribunal federal na capital dos EUA, a Siemens foi acusada de gastar mais de US$ 1 bilhão subornando agentes públicos de diversos países. Aos US$ 800 milhões de multas nos EUA soma-se quantia equivalente paga ao governo da Alemanha, a sede original da Siemens. Segundo reportagem do The Wall Street Journal, a Siemens declarou que o custo para sanar os problemas

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1997, e internalizada no Brasil por meio do Decreto nº 3.678/2000. O objeto de proibição é praticamente idêntico ao do FCPA, o que fica claro pelo título oficial do instrumento: Convenção sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais. Segundo essa Convenção, cada Estado parte: “Deverá

tomar

todas

as

medidas

necessárias

ao

estabelecimento de que, segundo suas leis, é delito criminal qualquer pessoa intencionalmente oferecer, prometer ou dar qualquer vantagem pecuniária indevida ou de outra natureza, seja diretamente ou por intermediários, a um funcionário público estrangeiro, para esse funcionário ou para terceiros, causando a ação ou a omissão do funcionário no desempenho de suas funções oficiais, com a finalidade de realizar ou dificultar transações ou obter outra vantagem ilícita na condução de negócios internacionais” (Artigo 1, inciso 1). Na prática, o Brasil deu cumprimento a essa obrigação específica da Convenção da OCDE quando a Lei 10.647/2002 incluiu o Capítulo II-A, que trata dos crimes praticados por particular contra a Administração Pública estrangeira, no Título XI (crimes contra a Administração Pública) da Parte Especial do Código Penal. Esse capítulo do Código Penal contém dois novos tipos (corrupção ativa em transação comercial internacional3 e tráfico de influência em transação comercial internacional4) e um artigo que dá o conceito legal de funcionário público estrangeiro5. Entretanto, a adoção pelo Brasil desses novos tipos penais não esgota o cumprimento da Convenção da OCDE sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos internos relacionados à corrupção, a implantação de um compliance efetivo e a manutenção de um interventor federal foram tão altos quanto a despesa total paga com multas. 3 Art. 337-B. Prometer, oferecer ou dar, direta ou indiretamente, vantagem indevida a funcionário público estrangeiro, ou a terceira pessoa, para determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício relacionado à transação comercial internacional: Pena - reclusão, de 1 (um) a 8 (oito) anos, e multa. Parágrafo único. A pena é aumentada de 1/3 (um terço), se, em razão da vantagem ou promessa, o funcionário público estrangeiro retarda ou omite o ato de ofício, ou o pratica infringindo dever funcional. 4 Art. 337-C. Solicitar, exigir, cobrar ou obter, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, vantagem ou promessa de vantagem a pretexto de influir em ato praticado por funcionário público estrangeiro no exercício de suas funções, relacionado a transação comercial internacional: Pena - reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa. Parágrafo único. A pena é aumentada da metade, se o agente alega ou insinua que a vantagem é também destinada a funcionário estrangeiro. 5 Art. 337-D. Considera-se funcionário público estrangeiro, para os efeitos penais, quem, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública em entidades estatais ou em representações diplomáticas de país estrangeiro. Parágrafo único. Equipara-se a funcionário público estrangeiro quem exerce cargo, emprego ou função em empresas controladas, diretamente ou indiretamente, pelo Poder Público de país estrangeiro ou em organizações públicas internacionais.

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Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais. No que toca ao tema deste artigo, considera-se que não cumprimos ainda o disposto no Artigo 2 da Convenção, que dispõe sobre Responsabilidade de Pessoas Jurídicas: “Cada Parte deverá tomar todas as medidas necessárias ao estabelecimento das responsabilidades de pessoas jurídicas pela corrupção de funcionário público estrangeiro, de acordo com seus princípios jurídicos.”6 Seguindo-se a década de 90, foram acordados vários instrumentos regionais contra a corrupção, dentre os quais, e com efeito para o Brasil, a Convenção Interamericana contra a Corrupção (Caracas/1996, promulgada pelo Decreto 4.410/2002). Apesar de seu escopo ser mais amplo7, envolvendo uma série de medidas de natureza criminal e administrativa, a Convenção da OEA apresenta um dispositivo específico relativo a suborno transnacional, o qual, de forma não exclusiva, antevê a responsabilização de pessoas jurídicas pela prática de atos de corrupção8. Se, nos anos 90, a anticorrupção foi expandida para documentos regionais, o Século XXI viu a sua mundialização. O documento que consolidou o regime internacional de proibição no qual consiste a anticorrupção foi a Convenção da ONU de Mérida, adotada em 2003 e internalizada pelo Brasil em 2006. A Convenção de Mérida não foge do padrão das duas dimensões da anticorrupção, contemplando tanto medidas criminais quanto

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8. Com as três Convenções, o Brasil obrigou-se a punir de forma efetiva as pessoas jurídicas que praticam atos de corrupção, em especial o denominado suborno transnacional, caracterizado pela corrupção ativa de funcionários públicos estrangeiros e de organizações internacionais. Dessa forma, urge introduzir no ordenamento nacional regulamentação da matéria - do que, aliás, o país já vem sendo cobrado - , eis que a alteração promovida pela Lei nº 10.467, de 11 de junho de 2002, que inseriu o Capítulo II-A no Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal - e tipificou a corrupção ativa em transação comercial internacional, alcança apenas as pessoas naturais, não tendo o condão de atingir as pessoas jurídicas eventualmente beneficiadas pelo ato criminoso. 7 Criminalmente, a Convenção da OEA traz a obrigação, dirigida aos Estados-partes, de criminalizar uniformemente determinados atos considerados corrupção, por disposições relativas à lavagem do dinheiro derivado desses atos, e pela previsão de medidas de cooperação jurídica entre os Estados-partes (Artigo XIII – Extradição e Artigo XIV – Assistência e cooperação). Por outro lado, também possui uma dimensão administrativa consistente na enunciação de diversas medidas preventivas (Artigo III), dirigidas 1) ao Estado (aquisição de bens e serviços, tributação, proteção de denunciantes, órgãos de controle e, para funcionários públicos: códigos de conduta, meios de reportar casos de corrupção, sistemas disciplinares, acompanhamento da evolução patrimonial e recrutamento); 2) ao setor privado (manutenção de registros que reflitam com exatidão a aquisição e alienação de ativos e mantenham controles contábeis internos que permitam aos funcionários da empresa detectarem a ocorrência de atos de corrupção); e à sociedade civil em geral (estímulo à participação social e estudo de novas medidas de prevenção) 8 Artigo VIII – Suborno transnacional: Sem prejuízo de sua Constituição e dos princípios fundamentais de seu ordenamento jurídico, cada Estado Parte proibirá e punirá o oferecimento ou outorga, por parte de seus cidadãos, pessoas que tenham residência habitual em seu território e empresas domiciliadas no mesmo, a um funcionário público de outro Estado, direta ou indiretamente, de qualquer objeto de valor pecuniário ou outros benefícios, como dádivas, favores, promessas ou vantagens em troca da realização ou omissão, por esse funcionário, de qualquer ato no exercício de suas funções públicas relacionado com uma transação de natureza econômica ou comercial.

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administrativas9. Entretanto, a Convenção da ONU contra a Corrupção inova, se comparada a outros documentos internacionais, por trazer uma relação de obrigações específicas de transparência e regularidade contábil dirigidas ao setor privado10. Relativamente ao tema deste trabalho, a referida Convenção contém dispositivos que obrigam os Estados partes a criminalizar o suborno transnacional (Artigo 16), da mesma forma que instam os Estados partes a adotarem as “medidas necessárias”, a fim de estabelecer a responsabilidade de pessoas jurídicas por sua participação nos delitos descritos na Convenção (Artigo 2611). Assim, o conjunto de documentos de direito internacional que forma o que chamamos de regime internacional anticorrupção exige que os Estados que dele fazem parte disponham em seu ordenamento jurídico de mecanismos apropriados e efetivos para responsabilizar pessoas jurídicas por atos de corrupção praticados internamente, e, sobretudo, externamente (quando a vítima é, na verdade, a Administração Pública Estrangeira e não a nacional). Nesse tocante, o da proteção da Administração Pública Estrangeira e entidades assemelhadas, 9

Na dimensão administrativa, a Convenção de Mérida afirma que a participação da sociedade, os princípios do Estado de Direito, a devida gestão dos assuntos e bens públicos, a integridade, a transparência, a obrigação de render contas, e a cooperação entre Estados são políticas e práticas de prevenção da corrupção (Artigo 5). Essas políticas são complementadas com a orientação para: criação de órgãos encarregados de prevenir a corrupção, inclusive com o aumento e a difusão dos conhecimentos em matéria de prevenção da corrupção (Artigo 6); para estruturação em carreira e códigos de conduta do serviço público (Artigos 7 e 8); licitação, orçamento e transparência (Artigos 9 e 10); independência do judiciário e do ministério público, compliance anticorrupção no setor privado e controle social (Artigos 11 a 13), “recompilação, intercâmbio e análise de informações sobre a corrupção” (Artigo 61) e as já mencionadas medidas para prevenir a lavagem de dinheiro (Artigo 14). A dimensão criminal da Convenção de Mérida inicia-se por uma parte penal substantiva – a obrigação dos Estados-partes de tipificarem internamente como crime uma série de condutas: suborno de funcionários públicos nacionais e estrangeiros e no setor privado, peculato no setor público e no setor privado, tráfico de influências, abuso de funções e enriquecimento ilícito de funcionários públicos (Artigo 15 a 22). Há disposições relativas a lavagem de dinheiro no Artigo 23 e também na obrigação de estabelecer uma FIU, “departamento de inteligência financeira” (Artigo 58). A essa parte penal substantiva adiciona-se uma série de medidas procedimentais e de administração da justiça, como responsabilização das pessoas jurídicas (Artigo 26), apreensão e confisco de bens (Artigo 31), proteção a testemunhas, denunciantes e vítimas (Artigos 32 e 33), cooperação internacional (Capítulo IV) e técnicas especiais de investigação: entrega vigiada, vigilância eletrônica e operações secretas (Artigo 50), a serem praticadas por uma autoridade especializada (Artigo 36) “na luta contra a corrupção mediante a aplicação coercitiva da lei”. 10 Artigo 12 – Setor Privado: “1. Cada Estado Parte, em conformidade com os princípios fundamentais de sua legislação interna, adotará medidas para prevenir a corrupção e melhorar as normas contábeis e de auditoria no setor privado, assim como, quando proceder, prever sanções civis, administrativas ou penais eficazes, proporcionadas e dissuasivas em caso de não cumprimento dessas medidas”. 11 Artigo 26 – Responsabilidade das pessoas jurídicas: 1. Cada Estado Parte adotará as medidas que sejam necessárias, em consonância com seus princípios jurídicos, a fim de estabelecer a responsabilidade de pessoas jurídicas por sua participação nos delitos qualificados de acordo com a presente Convenção. 2. Sujeito aos princípios jurídicos do Estado Parte, a responsabilidade das pessoas jurídicas poderá ser de índole penal, civil ou administrativa. 3. Tal responsabilidade existirá sem prejuízo à responsabilidade penal que incumba às pessoas físicas que tenham cometido os delitos. 4. Cada Estado Parte velará em particular para que se imponham sanções penais ou não-penais eficazes, proporcionadas e dissuasivas, incluídas sanções monetárias, às pessoas jurídicas consideradas responsáveis de acordo com o presente Artigo.

14

cumpre lembrar que o Capítulo II-A incluído no Código Penal para tipificar a corrupção ativa em transação comercial internacional deu cumprimento apenas parcial à Convenção da OCDE, dado que alcança apenas as pessoas naturais. É justamente nesse quadro de um forte discurso contra a corrupção, de expansão e internalização no Brasil de um regime internacional de proibição da corrupção, e com um viés de justiça cosmopolita que se insere o Projeto de Lei 6.826/2010, ora em análise. Em última instância, consiste ele na criação de mecanismos jurídicos específicos para atingir o patrimônio das pessoas jurídicas e obter efetivo ressarcimento dos prejuízos causados por atos de corrupção que a beneficiam ou interessam, e, dessa forma, puni-las com efetividade.

2 Estrutura Normativa O projeto de lei em análise, que introduz a responsabilidade corporativa por corrupção em nosso ordenamento jurídico é relativamente enxuto: expressa-se em apenas 25 artigos, divididos em seis capítulos. Não obstante, apresenta diversos avanços se comparado ao paradigma presente de responsabilização decorrente de corrupção, o qual, como visto no introdução do item 1 acima, ainda persiste baseado em padrões jurídicos de sancionamento fortemente influenciados por valores morais e de retribucionismo simbólico. Como esses avanços ocorrem em campos críticos da estrutura punitiva, e alguns são inclusive passíveis de indagações quanto a sua constitucionalidade, a metodologia adotada para esta parte do trabalho será discutir o PL 6.826/2010 de forma estruturada segundo a sua topografia legislativa: capítulo a capítulo, os elementos normativos chave do PL serão identificados, classificados e discutidos. De forma a melhor representar a estruturação proposta, os tópicos textuais serão intercalados com sínteses gráficas dos elementos normativos do PL 6.826.

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2.1 Disposições Gerais (Capítulo I)

O artigo 1º do PL 6.826/2010, fiel à disciplina da Lei Complementar 95

12

, anuncia

que a futura lei disporá “sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a Administração Pública nacional ou estrangeira”. Nesse sentido, o primeiro ponto que se destaca na análise do PL 6.826/2010 é que se trata de uma lei nacional. Seus dispositivos e ferramentas são aplicáveis a todos os entes e órgãos públicos: a Administração Pública tratada no PL é a Administração em todas as esferas (União, distrito federal, estados e municípios) e poderes da República (Executivo, Legislativo e Judiciário). O

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objetivo dessa característica, segundo a exposição de motivos do PL é “criar um sistema uniforme em todo o território nacional, fortalecendo a luta contra a corrupção de acordo com a especificidade do federalismo brasileiro”. O ponto seguinte de destaque do capítulo “das disposições gerais” do PL é o que trata da natureza das sanções aplicadas, o campo do direito onde se insere o seu respectivo conjunto de regras sancionatórias: declaradamente, as áreas do direito de responsabilização da pessoa jurídica por ato de corrupção serão o direito administrativo e o direito civil. O Artigo 2 da Convenção da OCDE dispõe que os Estados-partes devem tomar todas as medidas necessárias para o estabelecimento das responsabilidades de pessoas jurídicas por corrupção, “de acordo com seus princípios jurídicos”. Aclarando essa expressão, o Artigo 3, inciso 1, aduz que a corrupção deverá ser punível com “penas criminais efetivas, proporcionais e dissuasivas”. Por outro lado, o inciso 2 do mesmo artigo ressalva que “caso a responsabilidade criminal, sob o sistema jurídico da Parte, não se aplique a pessoas jurídicas” o Estado parte “deverá assegurar que as pessoas jurídicas estarão sujeitas a sanções nãocriminais efetivas, proporcionais e dissuasivas”, inclusive sanções financeiras. O Artigo 26 da Convenção da ONU contém disposições semelhantes – consonância do mecanismo de responsabilização com princípios jurídicos do Estado parte (inciso 1) e forma da responsabilização não mandatória (inciso 2: “a responsabilidade das pessoas jurídicas poderá ser de índole penal, civil ou administrativa”). Se a própria legislação internacional aplicável não define a forma ou campo jurídico adequado para responsabilizar pessoas jurídicas, a doutrina também não foge da divergência. Um dos óbices comumente apontados para responsabilização penal da pessoa jurídica é a impossibilidade de individualização da pena, decorrente da ausência de conduta “real” de um ente que é uma ficção jurídica. Para alguns penalistas, entretanto, essa objeção está superada. Ela decorreria do apego à teoria da ficção jurídica de Savigny, segundo a qual as atividades realizadas pelos entes coletivos não passam de atitudes tomadas pelas pessoas físicas de seus membros, isto é, as pessoas jurídicas não têm intenção. Outras dificuldades apontadas para a responsabilização criminal da pessoa jurídica seriam a impossibilidade de serem sujeitos de direito penal, vez que, por serem incorpóreas, não podem se submeter a penas privativas de liberdade; como o fim lícito é um dos requisitos da pessoa jurídica, se ela agir fora desses fins não teria personalidade; incoerências entre um regime punitivo de pessoa jurídica e o 12

Lei Complementar 95 – Art. 7º O primeiro artigo do texto indicará o objeto da lei e o respectivo âmbito de aplicação, observados os seguintes princípios:

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princípio

da

pessoalidade

da

pena13;

e

fundamentos

da

pena

(prevenção,

recuperação e inibição) inoperantes. Entretanto, as pessoas jurídicas possuem vontade própria e se exprimem pelos seus órgãos. Essa vontade independe da vontade de seus membros e constitui uma decorrência da atividade orgânica da empresa. Em um paralelo com a personalidade natural da mesma forma que o direito faz com que um incapaz não possua vontade válida, o mesmo sistema jurídico permite que a pessoa jurídica celebre contratos, e, inclusive, descumpra-os. Em outras áreas do direito, como o trabalhista e o tributário, a pessoa jurídica comete e é responsabilizada por ilícitos. A grande questão da responsabilização da pessoa jurídica de forma estrita é a adequação da sua conduta a critérios de imputação de responsabilidade, seja ela penal ou de outra natureza. Se a vontade é o fundamento da imputação, seria uma incongruência o direito penal não concedê-la às pessoas jurídicas, quando todos os outros ramos a concedem. A responsabilidade estrita da pessoa jurídica não se compagina com o império dos conceitos de culpa e de culpabilidade, mas esse dissídio não é insuperável: existe um contraste entre as necessidades de política criminal e as possibilidades da dogmática penal tradicional, e pior resulta à dogmática penal, que não tem podido cobrir as necessidades da política criminal. A necessidade de se conceber uma política criminal adequada impõe que se proceda à construção de uma escala própria de penas aos entes coletivos, isto é, um sistema peculiar de repressão, uma vez que não se pode aceitar a irresponsabilização pelos atos antissociais cometidos no âmbito das pessoas jurídicas e com todas as características de pertinência a sua estrutura societária. Examinando as semelhanças e diferenças em concreto entre os tipos penais da Lei 8.137/1990 e as infrações administrativas da Lei 8.884/1994, Miguel Reale Júnior conclui que se pode afirmar que os tipos penais e infracionais têm em comum a tutela do mesmo bem jurídico, por meio de repressão a condutas em grande parte semelhantes (REALE JR., 1999. p. 121). A partir desse exame em concreto, passa Reale Jr. a examinar, do ponto de vista teórico, em que consistem as semelhanças e diferenças entre duas entidades fundamentais no direito penal e no direito administrativo econômico, quais sejam, o crime e a infração administrativa. Segundo o autor, os processos de despenalização ocorridos na Itália e na França bem demonstram que a escolha da via penal ou da via administrativa nada tem a ver com a importância do bem jurídico, tratando-se, antes de uma escolha com base na

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Constituição, art. 5º, XLV

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conveniência política deste ou daquele caminho, com vista a melhor alcançar os fins preventivos e retributivos de um direito punitivo que cada vez mais se faz único. Trata-se, portanto, de um problema de eficácia social, e não de uma questão de diversidade axiológica (REALE JR., 1999. p. 122). As sanções que se somam têm pequena distinção relativa, na verdade, ao significado da reprovação. Se é certo que ambas guardam finalidades preventiva e retributiva, o que as distingue é o caráter moral de reprovação social inerente à sanção penal, bem como o gravame do próprio processo penal a que é submetido ao agente, não encontráveis na sanção e no processo administrativo. Diante da substituição das penas privativas de liberdade por penas restritivas, que é justamente o máximo de aflitividade que o sistema penal teria sobre uma pessoa jurídica, sobressai, na distinção entre sanções administrativas e penais, o elevado conteúdo de censura moral mais reduzido do processo e da sanção administrativos (REALE JR., 1999. p. 124). Reale entende que a superação das dificuldades de se estabelecer qual o modelo normativo adequado dentro do espectro [direito penal/direito administrativo] é justamente a criação de algo que rompa com esse binômio distintivo, possuindo características de ambos e inovando em outros aspectos. Ele as denomina de leis “tipificadoras das infrações administrativo-penais”, e destaca algumas das características desse modelo normativo: submissão ao princípio da legalidade; proibição da analogia in malam parte; interpretação restritiva; exigência de tipicidade; vedação a conceitos extrajurídicos, conceitos indeterminados e locuções abertas; irretroatividade, a não ser da nova lei mais benigna (REALE JR., 1999, p. 126); solidariedade entre a pessoa jurídica e seu administrador; e necessidade de individualização da pena (REALE JR., 1999, p. 128). Em termos de política criminal, a escolha da via penal ou da via administrativa não possui uma relação direta com a importância do bem jurídico, tratando-se antes de uma escolha com base na conveniência política de um dos dois caminhos, tendo em vista a alcançar os fins preventivos e retributivos de um direito punitivo que cada vez mais se faz único. Trata-se, portanto, de um problema de eficácia, e não de uma questão de diversidade axiológica. Diferentemente do que entende SANCTIS (2009, p. 47), para quem a responsabilidade civil ou administrativa seriam menos adequadas do que a responsabilidade penal, porque elas apenas tem o escopo de reparar o dano causado, ou meramente preveni-lo (os objetivos do direito civil e administrativo seriam, respectivamente, a mera reparação e o equacionamento da ordem pública, não a preservação da vida, liberdade e propriedade dos indivíduos), a OCDE se fixa, em seus relatórios de avaliação, mais na efetividade dos

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modelos sancionatórios, e menos na forma declarada da qual eles se revestem14. No tocante às obrigações da Convenção contra o suborno transnacional, a OCDE considerou que 19 países estabeleceram com sucesso a responsabilidade de pessoas jurídicas, dos quais 12 adotaram o modelo de justiça criminal para tanto15 (OCDE, 2006, p. 193). Foi, portanto, adotado pelo PL 6.826/2010 o modelo de responsabilização civiladministrativo de pessoas jurídicas por atos de corrupção, mais por questões pragmáticas do que propriamente teóricas. A exposição de motivos do PL afirma que o Direito Penal não oferece mecanismos efetivos ou céleres para punir as sociedades empresárias, muitas vezes as reais interessadas ou beneficiadas pelos atos de corrupção. Preferiu-se a responsabilização civil, porque ela é a que melhor se coaduna com os objetivos sancionatórios aplicáveis às pessoas jurídicas, que consistem em limitações a seu patrimônio e a suas atividades. De forma semelhante, privilegiou-se o processo administrativo, porque tem-se revelado mais célere e efetivo na repressão de desvios em contratos administrativos e procedimentos licitatórios, “demonstrando melhor capacidade de proporcionar respostas rápidas à sociedade”. O PL 6828 se distancia, dessa forma, de discussões ontológicas sobre se a natureza da pessoa jurídica comporta que ela seja sujeito do direito penal. Considera que a resposta do sistema penal seria dada de forma idêntica pelos ramos civil e administrativo, no caso de pessoas jurídicas, ao mesmo tempo em que o campo administrativo fornece vantagens procedimentais práticas. Com isso, parece concordar o United Nations Handbook on Practical Anti-Corruption Measures for Prosecutors and Investigators, que afirma que critérios de eficiência no levantamento probatório, no sentido de custo-benefício e celeridade do procedimento, mais característicos do processo administrativo do que do processo penal, justificariam, em alguns casos, a preferência do combate à corrupção pela via administrativa:

14

(OCDE, 2006, p. 14): The Working Group has so far not taken a position on whether the Convention and Commentaries require Parties in certain circumstances to establish criminal as opposed to administrative liability of legal persons. Instead, committed to the principle of functional equivalence, enshrined in the Convention, and the principle in Article 3.2 of the Convention that legal persons shall be subject to effective, proportionate and dissuasive non-criminal sanctions. Where criminal responsibility is not applicable, the Working Group has focused on the effectiveness of Parties systems for the liability of legal persons, rather than the form that such liability has taken, including the following: the awareness of police, prosecutors and the judiciary of the availability of such liability; the availability of effective investigative techniques; whether the proceedings must be part of the same proceedings for the natural perpetrator(s); the level and forms of sanctions available; the ability to obtain and provide mutual legal assistance for proceedings against legal persons; and the overall level of enforcement activity against legal persons. This is consistent with the overall focus of the Convention on deterring, detecting and sanctioning the bribery of foreign public officials through a punitive approach. 15 Austrália, Bélgica, Canadá, Finlândia, França, Islândia, Coréia do Sul, Japão, Noruega, Suíça, Reino Unido e Estados Unidos da América.

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O ônus da prova para a acusação no processo penal exige altos padrões de qualidade probatória devido às conseqüências penais envolvidas. Em alguns casos é possível que existam provas necessárias à condenação em sanções mais brandas, mas insuficientes para lastrear um processo penal (sanções administrativas geralmente não requerem provas além de uma dúvida razoável, mas apenas de peso de probabilidade). [...] Na formulação de estratégias anticorrupção, persecução e punição penal devem ser vistas apenas como uma de muitas opções. Devem ser consideradas outras possibilidades, indo de medidas preventivas (como educação e treinamento) a sanções administrativas ou disciplinares, que conseguem afastar corruptos de forma mais rápida e menos onerosa para a administração e para a sociedade como um todo. (ONU, 2004b, pp. 46-47) Tradução e grifo nossos 16

De mais a mais, a responsabilização de pessoas jurídicas na esfera administrativa não é novidade em nosso sistema jurídico. Outros microssistemas regulatórios a prevêem, como o de valores mobiliários17, o de preservação da ordem econômica18, e, inclusive, com objeto bastante aproximado (ver Anexo III, comparação com tipos penais da Lei 8666/1993) ao do PL ora em análise, o regime geral de compras públicas pela Administração 19. A exposição de

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Do original:

The burden of proof in criminal prosecutions demands relatively high standards because of the penal consequences involved. In some cases, there may be sufficient evidence to justify lesser corrective measures but not to support a criminal prosecution. (Administrative sanctions do not usually require proof beyond reasonable doubt but only on the balance of probabilities.) […] In formulating anti-corruption strategies, criminal prosecution and punishment should be seen as only one of a series of options. Consideration should always be given to other possibilities, ranging from preventive measures (such as education and training) to administrative or disciplinary sanctions that remove offenders more expeditiously and at a lesser cost to the organisation and society as a whole. 17 Lei nº 6.385/76, que cria a Comissão de Valores Mobiliários - CVM 18 Lei nº 8.884/94, que transforma o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) em Autarquia, e dispõe sobre a prevenção e a repressão às infrações contra a ordem econômica: Art. 1º Esta lei dispõe sobre a prevenção e a repressão às infrações contra a ordem econômica, orientada pelos ditames constitucionais de liberdade de iniciativa, livre concorrência, função social da propriedade, defesa dos consumidores e repressão ao abuso do poder econômico. 19 Lei nº 8.666/93 Art. 88 As sanções previstas nos incisos III e IV do artigo anterior poderão também ser aplicadas às empresas ou aos profissionais que, em razão dos contratos regidos por esta Lei: (...) II - tenham praticado atos ilícitos visando a frustrar os objetivos da licitação; III - demonstrem não possuir idoneidade para contratar com a Administração em virtude de atos ilícitos praticados. Art. 87 Pela inexecução total ou parcial do contrato a Administração poderá, garantida a prévia defesa, aplicar ao contratado as seguintes sanções: (...) III suspensão temporária de participação em licitação e impedimento de contratar com a Administração, por prazo

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motivos do PL destaca em seu item 11, inclusive, que o regime nele adotado inspira-se em certa medida, nas práticas do CADE (“importante destacar que os bons resultados apresentados por aquele Conselho informam a redação de dispositivos da presente proposta legislativa, como os parâmetros monetários para a fixação da multa”). Apesar do regime de responsabilidade proposto pelo PL 6.826/2010 ser de ordem civil e administrativa, não há que confundi-lo com o já existente regime de improbidade administrativa da Lei 8429/92. A CF 1988 trata a improbidade como duas coisas distintas: responsabilidade e ilícito extrapenal. A primeira, segue a tradição das constituições republicanas, denotando o fenômeno da responsabilidade dos altos mandatários do povo; ao passo que a segunda, inaugurando uma inédita modalidade sancionadora, transcende os limites penais, intimamente ligada ao direito administrativo e civil do regime da ação civil pública. A razão de ser da improbidade administrativa é que há muitas classes de infrações ou faltas pessoais dos agentes públicos, além das intencionais e das faltas graves por imprudência ou negligência, caracterizadoras de pressupostos de má gestão pública. Os níveis e tipos de má gestão pública são muito variados e distintos, indicando, por sua vez, a necessidade de pautas de controle igualmente divididas em níveis diferentes, além de evidente a variação de intensidade do controle e fiscalização. É óbvio, portanto, que a corrupção não é a única forma de má gestão pública, ao contrário do que parece fluir nos meios de comunicação social, porque existem outras figuras jurídicas dignas de relevância e funcionalmente muito eficazes no âmbito de controle administrativo. A corrupção constitui tão somente um, embora seja o mais grave, dos atentados à ética em que pode incorrer um servidor público. Dessa forma, como a ética institucional do setor público impõe o ideal de boa administração e por isso proíbe a má gestão pública, a improbidade administrativa situa-se, em um marco ético-institucional, como espécie de má gestão pública, uma categoria éticonormativa que abriga fenômenos de grave desonestidade funcional ou grave ineficiência funcional dos agentes públicos (OSÓRIO, 2007, p. 85). Nesse contexto, a dogmática básica da improbidade administrativa se dirige primordialmente às pessoas físicas, únicas que se encaixam na condição normativa de agentes públicos. Essa dogmática básica deve ser separada da dogmática específica relacionada à responsabilidade das pessoas jurídicas, as

não superior a 2 (dois) anos; IV - declaração de inidoneidade para licitar ou contratar com a Administração Pública enquanto perdurarem os motivos determinantes da punição ou até que seja promovida a reabilitação perante a própria autoridade que aplicou a penalidade, que será concedida sempre que o contratado ressarcir a Administração pelos prejuízos resultantes e após decorrido o prazo da sanção aplicada com base no inciso anterior.

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quais podem aparecer como concorrentes à prática do ato. Neste terreno, modifica-se o conceito de conduta e de responsabilidade subjetiva, alcançando novos paradigmas comportamentais a partir da ficção jurídica, sem que isso traduza juízo de responsabilidade objetiva, porque os critérios técnicos envolvendo exigências de prudência e evitabilidade do fato remanescem presentes. De igual forma, no regime da improbidade administrativa, o sujeito ativo direto da improbidade é sempre uma pessoa física, o agente público – os demais entes e pessoas naturais que se relacionam com a Administração são também responsabilizados, de fato, mas essa responsabilização depende da comprovação e do vínculo com um ato de improbidade praticado anteriormente20 - ato que é sempre, conforme o exposto, imputado individualmente e com culpabilidade subjetiva a um servidor público 21. No regime ora em estudo, entretanto, os sujeitos são, quase que apenas, pessoas jurídicas. A redação do parágrafo único do artigo 2º do PL é intencionalmente ampla, de forma a contemplar as mais diversas formas de constituição de entes coletivos como sujeitos ativos dos ilícitos que descreve. Ademais, a responsabilidade por um ato de improbidade administrativa, se comparada à responsabilidade do PL 6.826/2010, apesar de ocorrer também nas dimensões civil e administrativa, só se dá por meio da invocação do judiciário. Não há ato de improbidade sem a formação de um juízo de culpa em um meio processual judiciário, no âmbito de uma ação civil pública adequada. O regime do PL 6.826/2010 contempla, como veremos amiúde nos itens 2.3 e 2.4 a seguir, uma forma de responsabilização administrativa, posta em prática por órgãos administrativos no âmbito de um processo igualmente administrativo. Como situar, então, o regime jurídico trazido pelo PL 6.826/2010 em uma taxonomia jurídica que nos seja familiar? Acreditamos que seja impossível fazê-lo. O PL 6.826/2010 não é, com certeza, uma norma penal – ele traz punições, mas que são aplicadas fora do sistema penal, (algumas até fora do judiciário) e obviamente, fora também de ambientes penitenciários. Afim aos regimes civil e administrativo em termos de método (sanções patrimoniais e restritivas de direito aplicadas concomitantemente por um juiz civil e por

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Lei 8.429/1992: Art. 3° As disposições desta lei são aplicáveis, no que couber, àquele que, mesmo não sendo agente público, induza ou concorra para a prática do ato de improbidade ou dele se beneficie sob qualquer forma direta ou indireta. 21 EMI nº 11/2009, sobre a improbidade administrativa: “Todavia, a adequação de seus dispositivos atuais à responsabilização de pessoas jurídicas mostra-se problemática, à míngua principalmente de disposição expressa sobre o assunto. Além disso, no sistema da Lei nº 8.429, de 1992, a responsabilização da pessoa jurídica depende da comprovação do ato de improbidade do agente público, e as condutas descritas pela lei são de

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autoridades administrativas), ao mesmo tempo deles se distancia o PL pelo conteúdo de desvalor simbólico com o qual se apresenta (“punir empresas corruptas”) e, principalmente, por inovar em diversos critérios de imputação. Portanto, o PL 6.826/2010, aproxima-se, em nossa visão, ao que Reale denominou de um regime tipificador de infrações administrativopenais. Algumas regras de imputação adotadas pelo PL parecem confirmar a nossa hipótese: i) A autoria se verifica de forma mediata: a responsabilidade da pessoa jurídica decorre de atos praticados por qualquer agente ou órgão que as represente, em seu interesse ou benefício, exclusivo ou não (Art. 2º). Essa regra prescinde de que o ato praticado seja válido em um contexto empresarial: a responsabilidade ocorre ainda que os agentes ou órgãos da pessoa jurídica tenham agido sem poderes de representação ou sem autorização superior (Art. 3, §2); ii) A responsabilidade é expressamente objetiva22 (Art. 3º, § 2º); iii) Os tipos são de perigo abstrato, verificando-se a conduta punível “mesmo que o ato praticado não proporcione a ela vantagem efetiva ou que eventual vantagem não a beneficie direta ou exclusivamente” (Art. 3, §2º), decorrentes da constatação de que iv) Há cumulação e independência entre o regime do PL 6.826/2010 e outras instâncias punitivas (Art. 3º): a responsabilização da pessoa jurídica não exclui a responsabilidade individual de seus dirigentes ou administradores ou de qualquer pessoa natural, autora, co-autora ou partícipe do ato ilícito23, ao mesmo

tempo

em

que

a

pessoa

jurídica

será

responsabilizada

independentemente da responsabilização individual dessas pessoas naturais; e v) Forte componente de extrapessoalidade, de extrapolação da pena da pessoa jurídica responsável para outras, representada por regras de não limitação da responsabilidade em caso de sucessão (subsiste a responsabilidade nas hipóteses de alteração contratual, transformação, incorporação, fusão ou cisão societária, art. 4º) e de co-responsabilidade decorrente da verificação de

responsabilidade subjetiva, devendo ser comprovada a culpa dos envolvidos, com todos os inconvenientes que esta comprovação gera com relação às pessoas jurídicas” 22 Conforme EMI nº 11/2009, sobre a responsabilização objetiva: “afasta a discussão sobre a culpa do agente na prática da infração. A pessoa jurídica será responsabilizada uma vez comprovados o fato, o resultado e o nexo causal entre eles. Evita-se, assim, a dificuldade probatória de elementos subjetivos, como a vontade de causar um dano, muito comum na sistemática geral e subjetiva de responsabilização de pessoas naturais”.

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vínculos constitutivos ou econômicos (responsabilidade solidária entre entidades integrantes de grupo econômico, de fato ou de direito, e as sociedades controladas, as consorciadas e as coligadas, art. 5º).

2.2 Atos Lesivos à Administração Pública Nacional ou Estrangeira (Capítulo II)

O Capítulo II do PL 6.826 contém apenas um artigo, o qual se divide em duas partes principais: descrição dos ilícitos adotados pelo regime, que simplificadamente chamamos de “tipos” (embora não se expressem com toda a formalidade e elementares dos tipos penais); e enunciado autêntico dos elementos que compõe o conceito preciso de “Administração Pública Estrangeira”, vez que, como vimos na primeira parte deste trabalho, a necessidade de sua

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Conforme Artigo 26 (Responsabilidade das pessoas jurídicas) da Convenção da ONU: 3. Tal responsabilidade existirá sem prejuízo à responsabilidade penal que incumba às pessoas físicas que tenham cometido os delitos.

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proteção perante o regime internacional de proibição da corrupção foi um dos principais informadores da iniciativa de se propor um projeto de lei dessa natureza. O caput do art. 6º declara os bens jurídicos protegidos ou que se visam proteger com o conteúdo normativo do PL: o patrimônio público, não importa se nacional ou estrangeiro; os princípios da Administração Pública e os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil. Ainda no caput do art. 6º, a partícula “assim definidos”, in fine, dá a entender que a lista de tipos é exaustiva. Os tipos, por sua vez, podem ser nitidamente divididos em quatro grupos, apesar de não ordenados nesse sentido: um inciso trata da corrupção ativa, ou suborno, praticado pela pessoa jurídica, e o outro contém tipos acessórios: financiar, custear, patrocinar ou de qualquer modo subvencionar a prática dos ilícitos previstos (VII) e utilizar-se a pessoa jurídica de interposta pessoa física ou jurídica para ocultar ou dissimular seus reais interesses ou a identidade dos beneficiários dos atos praticados (VIII). Os outros dois grupos restantes contém a maioria dos tipos, e tratam de ilícitos, fraudes e perturbações praticados pela pessoa jurídica em processos licitatórios ou na fase propriamente contratual de seu relacionamento com a Administração Pública. No Anexo III juntamos um quadro comparativo dos tipos do PL 6.826/2010 com os tipos penais já existentes na Lei 8666/1993. A complementaridade é nítida, e, em verdade, intencional: segundo a exposição de motivos do PL, uma das razões para sua propositura é que os ilícitos mais graves do PL 8666 eram dirigidos apenas a pessoas físicas, não alcançando, todavia, as pessoas jurídicas, em algumas circunstâncias as maiores beneficiárias dos ilícitos praticados. Como já mencionado no subitem anterior, mas destacamos novamente, os tipos em questão são de perigo abstrato: já contam com a magnitude e potencial de lesividade dos seus riscos já definidos pelo legislador de forma pré-estabelecida. Diante das dificuldades de prova do nexo causal entre a conduta e o resultado perigoso, coube ao legislador estabelecer a probabilidade da lesão que decorre da realização de um tipo de perigo abstrato. Neste, o que se observa não é a definição do perigo, mas a de uma ação perigosa que se consuma com a própria realização desta, já que dentro dela esta íncita a noção de perigo (SANCTIS, 2009, p. 98). A outra parte do Capítulo II, contida nos três parágrafos do artigo 6º, fornece o conceito autêntico do que é Administração Pública Estrangeira para os fins do PL: órgãos e entidades estatais, de esferas nacionais ou locais de governo, representações diplomáticas e ainda empresas controladas, diretamente ou indiretamente, pelo Poder Público de país

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estrangeiro. Por inspiração do artigo 1, inciso 4, da Convenção da OCDE contra suborno transnacional, organizações públicas internacionais também são consideradas Administração Pública Estrangeira. Por derivação, todos os que exercem cargos, empregos ou funções públicas nas organizações consideradas Administração Pública Estrangeira, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, são considerados agentes públicos estrangeiros.

2.3 Responsabilidade Administrativa (Capítulo III)

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Os três artigos que formam o Capítulo III constituem, juntamente com as disposições gerais e a própria natureza da estrutura normativa do PL, a sua parte mais inovadora, se comparada com o paradigma existente do direito administrativo. Tratando especificamente da parte “material” da responsabilização administrativa da pessoa jurídica, ele apresenta as sanções aplicáveis, fornece regras de dosimetria e introduz mais um elemento de extrapessoalidade da pena a ser aplicado pela Administração no âmbito de um procedimento administrativo. Iniciando o estudo pelas sanções, tanto a Convenção da OCDE contra o suborno transnacional24 quanto a da ONU contra a corrupção25 exigem que as penas aplicadas, ainda que fora do âmbito do sistema penal, sejam eficazes, proporcionais e dissuasivas, incluindo sanções monetárias. Outros condicionantes operam em um regime de punição de pessoas jurídicas. Sua natureza incorpórea, abstrata e não-naturalística limitam as formas de responsabilização dos entes coletivos, que só podem, portanto, ser submetidos a penas que atinjam seu patrimônio e suas atividades. Doravante, relacionamos as sanções do PL 6.826/2010 em uma tentativa de estabelecer uma gradação ascendente do respectivo grau aflitivo: • Publicidade extraordinária da decisão condenatória (Art. 7º, IV) feita às custas do responsável condenado (Art. 7º, § 5) em mídia especializada ou de grande circulação, em edital afixado em estabelecimento e na internet. Apesar de aparentemente inócua, do ponto de vista da esfera jurídica patrimonial da pessoa jurídica envolvida, a publicidade da decisão que afirma que esta é responsável por um caso de corrupção pode ter graves conseqüências no ambiente de mercado e governança da empresa. A decisão da autoridade competente que demonstra o ato de corrupção ocorrido no âmbito de uma pessoa jurídica, é mais do que uma mera advertência administrativa. Não se pretende um regime administrativo-civil tenha o caráter desproporcionalmente estigmatizante do direito penal, mas ainda assim há utilidade em que o ato ilícito praticado por uma pessoa jurídica seja visto como algo contrário à moral.

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Artigo 3 (Sanções) 1. A corrupção de um funcionário público estrangeiro deverá ser punível com penas criminais efetivas, proporcionais e dissuasivas [...] 2. Caso a responsabilidade criminal, sob o sistema jurídico da Parte, não se aplique a pessoas jurídicas, a Parte deverá assegurar que as pessoas jurídicas estarão sujeitas a sanções não-criminais efetivas, proporcionais e dissuasivas contra a corrupção de funcionário público estrangeiro, inclusive sanções financeiras. 25 Artigo 26 – Responsabilidade das pessoas jurídicas: 4. Cada Estado Parte velará em particular para que se imponham sanções penais ou não-penais eficazes, proporcionadas e dissuasivas, incluídas sanções monetárias, às pessoas jurídicas consideradas responsáveis de acordo com o presente Artigo

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Assim, deve a sanção à pessoa jurídica trazer uma dimensão comunicativa superior, um simbolismo gravoso de censura. A publicidade da decisão condenatória traz para a pessoa jurídica uma série de conseqüências negativas: queda no preço das ações, o que por si só deprecia o patrimônio dos acionistas, especialmente o dos majoritários e controladores; pressão dos acionistas sobre a diretoria, cobrando esclarecimentos ou exigindo corte de cabeças pela depreciação patrimonial, o que pode redundar inclusive em troca do comando da pessoa jurídica; aumento no custo de obtenção de crédito e outros financiamentos; dificuldade de obtenção de recursos com o lançamento de papéis, outra decorrência da desvalorização das ações; dificuldades de relacionamento com clientes e fornecedores; queda nas vendas, maximizada por movimentos de boicote promovidos por entidades da sociedade civil organizada; e internalização de gastos com a defesa e/ou consultorias externas para sanar o problema. O objetivo desse simbolismo de censura é criar para as companhias do setor privado um risco reputacional, ou seja, a atitude pelas empresas de enxergar no regime do PL 6.826/2010 um sistema que acarreta um perigo provável ao desenvolvimento de suas operações e ao seu incremento financeiro, mas que por outro lado esse mesmo sistema contém as regras segundo as quais as empresas podem se prevenir desse risco, tais como o estabelecimento de programas de compliance ético, a proteção ao denunciante de boa-fé e a exposição antecipada de casos de corrupção interna. O objetivo é também que esse risco reputacional passe a ser visto como um diferencial competitivo, isto é, fazer com que as empresas que se importem mais com anticorrupção tenham mais chances de sucesso corporativo do que as que não se importam. Em graus diferenciados, esse efeito de risco reputacional vai permear todo o espectro de sanções PL. A lei 8.884/1994, que trata das infrações administrativas contra a ordem econômica, contém sanção dessa espécie no seu art. 2426. O Decreto-Lei 433/82, do direito das contra-ordenações português, possui regra semelhante27. • Proibição, por tempo determinado ou definitivamente, de estabelecer relacionamentos econômicos com a Administração. Divide-se em duas modalidades: declaração de inidoneidade para contratar com Administração Pública (Art. 7º, II), que possui efeitos em âmbito nacional (Art. 7º, § 4º) (ou seja, uma empresa inidônea para contratar com 26

Art. 24. Sem prejuízo das penas cominadas no artigo anterior, quando assim o exigir a gravidade dos fatos ou o interesse público geral, poderão ser impostas as seguintes penas, isolada ou cumulativamente: I - a publicação, em meia página e às expensas do infrator, em jornal indicado na decisão, de extrato da decisão condenatória, por dois dias seguidos, de uma a três semanas consecutivas; 27 Artigo 21-5 A lei poderá ainda determinar os casos em que deva dar-se publicidade à punição por contraordenação.

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um município também o é para contratar com estados e União); e proibição de contratar, receber incentivos, subsídios, subvenções, doações ou empréstimos de órgãos públicos, de instituições financeiras públicas ou controladas pelo poder público (Art. 7º, V). Ambas as modalidades sancionatórias possuem um mínimo e um máximo de 2 a 10 anos, respectivamente (Art. 7º, §§ 4º e 6º). Esta é uma sanção prevista como acessória no regime das contra-ordenações português28, e que já existe em algum grau em nosso ordenamento jurídico nos incisos do art. 12 da lei de improbidade administrativa, a Lei 8.429/1992, no art. 24 inciso II da Lei 8.884, no art. 22, inciso III da Lei 9.605/1998, que trata dos crimes ambientais, e no art. 87 da lei de licitações, a Lei 8.666/199329, neste caso sob a forma de suspensão ou inidoneidade. A sanção de inidoneidade para contratar pode ser aplicada nos casos de inexecução total ou parcial do contrato, ou às pessoas físicas ou jurídicas que, no âmbito de contratação com a Administração, tenham sofrido condenação por praticarem fraude no recolhimento de tributos, praticado atos visando a frustrar os objetivos da licitação ou outros ilícitos que demonstrem sua inidoneidade30. O agente público que admitir à licitação ou celebrar contrato com inidôneo, bem como a pessoa ou ente privado inidônea que participar de licitação ou contratar praticam crime específico, previsto no art. 97 da Lei 8.666/199331 32. O PL 6.826/2010 expressou essa sanção de forma derivada com a redação “revogação de delegação, autorização ou permissão, cassação de licença ou rescisão de contrato celebrado

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Decreto-Lei nº 433/82, Artigo 21-3 A lei poderá também, simultaneamente com a coima, determinar, entre outras, as seguintes sanções acessórias: b) Privação do direito a subsídio outorgado por entidades ou serviços públicos; 29 Art. 87. Pela inexecução total ou parcial do contrato a Administração poderá, garantida a prévia defesa, aplicar ao contratado as seguintes sanções: III - suspensão temporária de participação em licitação e impedimento de contratar com a Administração, por prazo não superior a 2 (dois) anos; IV - declaração de inidoneidade para licitar ou contratar com a Administração Pública enquanto perdurarem os motivos determinantes da punição ou até que seja promovida a reabilitação perante a própria autoridade que aplicou a penalidade, que será concedida sempre que o contratado ressarcir a Administração pelos prejuízos resultantes e após decorrido o prazo da sanção aplicada com base no inciso anterior. 30 Art. 88. As sanções previstas nos incisos III e IV do artigo anterior poderão também ser aplicadas às empresas ou aos profissionais que, em razão dos contratos regidos por esta Lei: I - tenham sofrido condenação definitiva por praticarem, por meios dolosos, fraude fiscal no recolhimento de quaisquer tributos; II - tenham praticado atos ilícitos visando a frustrar os objetivos da licitação; III - demonstrem não possuir idoneidade para contratar com a Administração em virtude de atos ilícitos praticados. 31 Art. 97. Admitir à licitação ou celebrar contrato com empresa ou profissional declarado inidôneo: Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa. Parágrafo único. Incide na mesma pena aquele que, declarado inidôneo, venha a licitar ou a contratar com a Administração.

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com a Administração Pública” (Art. 7º, VI), abarcando o poder que a Administração possui de regular certas atividades econômicas cujo exercício carece de autorização. O direito das contra-ordenações português possui previsão específica a respeito33, inclusive. • Sanções pecuniárias: como a obrigação de reparar o dano causado. A Reparação do dano (Art. 7º, III) ao patrimônio público, por meio de ressarcimento ou perda de valores ilicitamente auferidos, é uma medida, que, se não pode ser considerada propriamente retributiva, também não é desprovida, todavia, de caráter aflitivo. Comumente a essa obrigação que se realiza na forma pecuniária, outra sanção que é semelhante na forma, mas possui conteúdo diverso é a sanção de multa, sendo a natureza desta indiscutivelmente retributiva (Art. 7º, I). O PL 6.826/2010 prevê que a multa situar-se-á entre 1% a 30% do último faturamento bruto da pessoa jurídica, ou, caso seja impossível calcular esse valor, entre R$ seis mil a seis milhões (Art. 7º, §º 2). O importante nas sanções pecuniárias, para a anticorrução, é que sua magnitude produza um efeito realmente dissuasivo, criando um risco regulatório para aqueles que exercem atividades de risco de ocorrência de corrupção34. Isso porque se determinada companhia calcular que o valor da sanção pecuniária que possa receber por um ato de corrupção for inferior aos custos de implantação e manutenção de um programa efetivo de compliance anticorrupção, a companhia simplesmente assumirá o risco da ocorrência da corrupção e pagará a multa quando for o caso. Uma sanção pecuniária dessa natureza seria apenas remuneratória da Administração e não dissuasória das práticas de corrupção. Nesse sentido, a Convenção da OCDE sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros estabelece no seu Artigo 3, item 3 que “o suborno e o produto da corrupção de um funcionário público estrangeiro, ou o valor dos bens correspondentes a tal produto, estejam sujeitos a retenção e confisco ou que sanções financeiras de efeito equivalente sejam aplicáveis.” A obrigação de ressarcir e a pena de multa já existem em nosso ordenamento atual, inclusive no âmbito do próprio direito penal, mas também sob o direito civil e no regime especial da Lei de Improbidade Administrativa, que as estabelece nos incisos de seu artigo 12.

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Uma relação com empresas sancionadas dessa forma na União e em alguns entes federativos pode ser encontrada no site: http://www.portaldatransparencia.gov.br/ceis/ 33 Decreto-Lei nº 433/82: Artigo 21-3 A lei poderá também, simultaneamente com a coima, determinar, entre outras, as seguintes sanções acessórias: a) Interdição de exercer uma profissão ou actividade; c) Privação do direito de participar em feiras ou mercados.

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Dessa forma, a questão relevante quanto a essas espécies sancionatórias é não a possibilidade de estas ocorrerem, mas sim o tempo, em cada caso, em que elas serão aplicadas. A ultrafungibilidade do dinheiro, as facilidades proporcionadas pelo sistema financeiro ou por outros tipos de mercado, como o imobiliário, ou ainda por relações de intimidade com terceiros “laranjas” favorecem a probabilidade de ocultação patrimonial bem-sucedida, probabilidade esta que aumenta em função do tempo decorrido para localizar os ativos ilicitamente e também para, de alguma forma, assegurá-los. Novamente, a Lei 8.429/1992 contém no seu art. 16 disposição que autoriza o seqüestro cautelar dos bens do responsável que enriqueceu ilicitamente, inclusive de ativos financeiros mantidos no exterior, segundo o §2º da norma35, mas essa possibilidade se aplica apenas aos casos de improbidade administrativa. O que se deve avançar ainda é quanto a uma ferramenta procedimental mais expedita do que as oferecidas pelo seqüestro e/ou confisco do processo penal. Uma das formas que se cogita para tanto é através de uma forma procedimental mais próxima do direito civil, mais focada sobre o patrimônio, na qual a prova da responsabilidade criminal do agente se dê incidentalmente. Uma ação civil de extinção de domínio possibilitaria o perdimento de bens antes ou até independentemente do trânsito em julgado da sentença penal, para a qual se exige certeza sobre a responsabilidade criminal do agente. Essa ação não exigiria o nível de certeza probatória do processo penal, nem responsabilização definitiva pelo fato criminoso. A cognição judicial, na ação de extinção de domínio, ficaria restrita à prova da origem ilícita dos bens, a ausência de justo título para sua aquisição e a incompatibilidade entre o patrimônio adquirido e a renda. Em outras jurisdições, especialmente nas de common law, ações dessa natureza também são chamadas de jurisdiction in rem, vez que se assume que a litigância ocorreria na verdade contra o patrimônio, e não contra a pessoa. Formalmente, o patrimônio é que figuraria no pólo processual passivo da ação, mas obviamente admitir-se-ia ao titular, ou pretenso titular, ou ao titular aparente, a possibilidade de defesa de seu título sobre esse patrimônio. Como afirma o Artigo 31, item 8 da Convenção da ONU contra a Corrupção: Artigo 31 – Embargo preventivo, apreensão e confisco:

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Segundo o Decreto-Lei nº 433/82, Artigo 18-2 [...] a coima deverá, sempre que possível, exceder o benefício econômico que o agente retirou da prática da contra-ordenação. 35 Art. 16. Havendo fundados indícios de responsabilidade, a comissão representará ao Ministério Público ou à procuradoria do órgão para que requeira ao juízo competente a decretação do seqüestro dos bens do agente ou terceiro que tenha enriquecido ilicitamente ou causado dano ao patrimônio público. § 1º O pedido de seqüestro será processado de acordo com o disposto nos arts. 822 e 825 do Código de Processo Civil. § 2° Quando for o

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8. Os Estados Partes poderão considerar a possibilidade de exigir de um delinqüente que demonstre a origem lícita do alegado produto de delito ou de outros bens expostos ao confisco, na medida em que ele seja conforme com os princípios fundamentais de sua legislação interna e com a índole do processo judicial ou outros processos. 9. As disposições do presente Artigo não se interpretarão em prejuízo do direito de terceiros que atuem de boa-fé.

• Acreditamos que o PL poderia ter avançado ainda mais dentro das espécies de sanções se tivesse adotado também uma sanção de estabelecer ou reforçar medidas preventivas, como programas de prevenção anticorrupção. Assim, a conclusão de um processo contra a empresa pode ser no sentido de obrigá-la a com mais veemência a estabelecer um programa ou a reforçar um programa já existente, mas considerado inefetivo. Essa sanção pode ser acessória, e apareceria combinada com outras, como, dependendo do caso, a designação de um interventor externo à companhia, mas que teria poderes e seria custeado por ela para adequar as obrigações preventivas da empresa a padrões consensualmente mínimos. Ainda nesse contexto de apresentação de sanções que entendemos apropriadas, há a proibição voltada a pessoas naturais de ocupar cargos de direção, até mesmo em outras pessoas jurídicas. É verdade que o modelo sancionatório do PL 6.826/2010 foi construído para se voltar contra pessoas jurídicas, mas uma sanção dessa natureza não seria de todo incabível. A uma porque se insere em um contexto de responsabilidade e ética corporativa. A duas, o artigo 17 do próprio PL, que veremos adiante, contém uma regra de desconsideração da pessoa jurídica de forma a atingir, na esfera administrativa, as pessoas físicas de sócios e sócios-administradores. Quanto à dosimetria, suas regras gerais estão no Art. 7º, § 1º do PL: as penas podem ser aplicadas isoladas ou cumulativamente, e a decisão de fazê-lo, em qual quantidade ou abrangência deve ser fundamentada. Já o art. 9º é dedicado a relacionar as circunstâncias específicas que serão levadas em consideração na aplicação das sanções. A maioria é consideravelmente elementar: gravidade da infração, magnitude da vantagem auferida ou pretendida, consumação ou não do ilícito, grau de perigo de lesão, efeito negativo produzido e situação econômica do infrator.

caso, o pedido incluirá a investigação, o exame e o bloqueio de bens, contas bancárias e aplicações financeiras

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As duas últimas circunstâncias de dosimetria são mais complexas, inovadoras e exigem maior elaboração. Delas, a primeira é a cooperação na apuração das infrações (Art. 9, VII), que se dá por meio da comunicação pela pessoa jurídica do ato ilegal antes da instauração do processo; ou, se já instaurado, com a celeridade na prestação de informações à Administração no curso das investigações. Sendo a corrupção um fenômeno por natureza oculto (ROSE-ACKERMAN, 2006, p. 53), o sucesso da detecção depende de delatores que tenham conhecimento do esquema ilícito, usualmente por dele terem participado, e até se beneficiado, em alguma medida. A possibilidade de diminuir a pena de algum desses participantes ou do ente coletivo elevaria as probabilidades de exposição de casos de corrupção, vez que a probabilidade de detecção é uma função da questão de saber se algum dos participantes tem um incentivo para informar às autoridades competentes (ROSEACKERMAN, 2006, p. 56). A outra circunstância de dosimetria digna de nota é a manutenção pela pessoa jurídica de um programa de compliance ético, de integridade ou anticorrupção (Art. 9, VIII), consistindo em “mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e a aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta”. Susan Rose-Ackerman também considera relevante para a dissuasão e prevenção da corrupção, no âmbito do setor privado, a existência de regras que reconheçam como critério atenuador ou abonador de responsabilidade o due dilligence, ou devido cuidado. Isto é, o fato de determinada pessoa jurídica ter se pautado segundo as normas, regulamentos e critérios estabelecedores de programas de compliance ou de vigilância anticorrupção seria levado positivamente em conta, ainda que se comprove o envolvimento da companhia com um caso de corrupção (ROSE-ACKERMAN, 2006, p. 57). A justificativa da autora é que no mundo dos negócios, a maioria dos subornos são pagos por empregados de nível intermediário, e não por níveis superiores da gestão. Se esses subornos dão retorno às empresas, os gestores ou proprietários ficam na confortável posição de facilitar a corrupção praticada por seus subordinados, permanecendo ignorantes dos detalhes do esquema. Se as pessoas jurídicas forem automaticamente e diretamente responsabilizadas pelos atos corruptos dos seus empregados, independentemente do sopesamento de outros fatores, os níveis hierárquicos superiores podem não apoiar um sistema interno de monitoramento ético eficaz. A alternativa proposta pela autora à responsabilização pura e simples da pessoa jurídica é a criação de uma regra de negligência, segundo a qual as pessoas jurídicas seriam responsáveis apenas no caso mantidas pelo indiciado no exterior, nos termos da lei e dos tratados internacionais.

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de terem negligenciado suas responsabilidades internas de prevenção anticorrupção. Para tanto, seriam necessárias “quite precise directives stating what type of internal monitoring is required”, ou seja, “regras bastante precisas indicando que tipo de controle interno é necessário”. Um exemplo desse modelo de “regra de negligência” pode ser encontrado no sistema normativo do Foreign Corrupt Practices Act (FCPA), dos EUA (ROSE-ACKERMAN, 2006, p. 58). Essa norma complementa a proibição a subornos com obrigações contábeis específicas. Tais empresas devem estabelecer sistemas de contabilidade que reflitam de forma precisa operações que envolvam ativos da empresa, e elas devem ter um sistema eficaz de controles contábeis internos. As empresas e os seus gestores podem ser simultaneamente sujeitos a penalidades civis e criminais por violar estas disposições contábeis, e não há nenhuma regra específica de due dilligence no FCPA. Porém, na prática, as empresas que criam e aplicam sistemas de controle interno eficazes aparentam experimentar um tratamento mais favorável, mesmo em casos revelados de corrupção. As Federal Sentencing Guidelines também prevêem a atenuação da pena no caso de esforços internos para detectar e punir violações da lei. É interessante registrar que as três convenções anticorrupção às quais o Brasil se obrigou internacionalmente contêm dispositivos que, de forma subjacente, são informados por princípios de gerenciamento de risco ao prever obrigações especificamente voltadas para diminuir a probabilidade de ocorrência de casos de corrupção, obrigações estas que, se internalizadas pelos Estados-partes , recairão em boa parte sobre o setor privado. Assim, a Convenção da OCDE sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros traz no seu Artigo 8, item 1, a obrigação de os Estados-partes

criarem

regulamentos

determinando que as empresas mantenham registros contábeis e declarações financeiras claras e verdadeiras, de forma a dificultar a ocultação de atos de corrupção 36. O não cumprimento dessa obrigação deve ensejar, segundo o item 2 do mesmo artigo “penas civis, administrativas e criminais efetivas, proporcionais e dissuasivas pelas omissões e falsificações em livros e registros contábeis, contas e declarações financeiras de tais companhias”. A Convenção 36

Artigo 8 – Contabilidade: 1. Para o combate efetivo da corrupção de funcionários públicos estrangeiros, cada Parte deverá tomar todas as medidas necessárias, no âmbito de suas leis e regulamentos sobre manutenção de livros e registros contábeis, divulgação de declarações financeiras, e sistemas de contabilidade e auditoria, para proibir o estabelecimento de contas de caixa "dois", a realização de operações de caixa "dois" ou operações inadequadamente explicitadas, o registro de despesas inexistentes, o lançamento de obrigações com explicitação inadequada de seu objeto, bem como o uso de documentos falsos por companhias sujeitas àquelas leis e regulamentos com o propósito de corromper funcionários públicos estrangeiros ou ocultar tal corrupção.

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Interamericana contra a Corrupção em seu Artigo III, item 10 obriga os Estados-partes a adotar, com o objetivo de impedir o suborno de agentes públicos nacionais e estrangeiros, mecanismos para garantir que as empresas “mantenham registros que, com razoável nível de detalhe, reflitam com exatidão a aquisição e alienação de ativos e mantenham controles contábeis internos que permitam aos funcionários da empresa detectarem a ocorrência de atos de corrupção.” A Convenção da ONU contra a Corrupção vai na mesma linha, obrigando em seu Artigo 12 os Estados-partes a adotar medidas para prevenir a corrupção melhorando as normas contábeis e de auditoria no setor privado. E, em caso de descumprimento dessas normas, os Estados-partes são orientados a “prever sanções civis, administrativas ou penais eficazes, proporcionadas e dissuasivas em caso de não cumprimento dessas medidas”. Algumas das medidas sugeridas pela Convenção envolvem a formulação de códigos de conduta para funcionários do setor privado, e de promoção de boas práticas comerciais nas relações contratuais com o Estado; medidas relativas à identificação das pessoas jurídicas e físicas envolvidas no estabelecimento e na gestão de empresas, evitando a figura de sócios ou controladores ocultos; a prevenção de conflitos de interesse mediante restrições por um período à contratação de ex-funcionários públicos; controles contábeis internos para ajudar a prevenir e detectar atos de corrupção; e procedimentos apropriados de auditoria e certificação sobre as contas e estados financeiros das empresas. Acreditamos, todavia, que alguns avanços possíveis ficaram pendentes na formatação proposta do PL 6828/2008. Um deles seria a possibilidade de flexibilizar, discrionariamente, a decisão sobre a instauração ou não de um processo, como forma de incrementar a detecção da ocorrência de corrupção, ou de incentivar a adoção de medidas preventivas. Essa flexibilização parte da constatação de que uma dissuasão efetiva é impossível, a menos que as autoridades competentes possam obter evidências relevantes da corrupção. Da mesma forma, a prevenção focada na avaliação de riscos pode levar à conclusão de utilidade e legitimidade do estabelecimento de sanções positivas para pessoas naturais, quer do setor público, quer do privado, que denunciem de boa-fé atos de corrupção, de forma bem-sucedida, útil e relevante para o esclarecimento do caso e responsabilização dos envolvidos. Por sanções positivas, entendam-se incentivos, que vão desde ao estabelecimento de mecanismos de leniência ou perdão negociado para participantes de esquemas de corrupção, de proteção a esse denunciante (tais como estabilidade no emprego, remoção para outro local/setor) ou de premiação (promoção, elogio, destinação de parte da multa obtida do responsável ou de bens

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apurados em extinção de domínio). Nesse sentido, o Artigo 8, item 4, da Convenção contra a Corrupção da ONU orienta os Estados-partes a estabelecer “medidas e sistemas para facilitar que os funcionários públicos denunciem todo ato de corrupção às autoridades competentes quando tenham conhecimento deles no exercício de suas funções”. O Artigo 33 da Convenção estende a orientação aos Estados de adotar medidas protetivas a todos os denunciantes de boafé, independentemente da sua qualidade de funcionário público37. O Artigo III, item 8 da Convenção Interamericana contra a Corrupção contém disposição semelhante.38 O art. 10 do PL 6.826/2010 trata do impedimento para contratar com a Administração Pública dirigido à pessoa jurídica constituída pelos administradores ou sócios de outra anteriormente condenada pela prática de seus ilícitos. Esse impedimento dura o prazo de cumprimento da sanção, servindo para combater uma tipologia com a qual a Administração se depara constantemente: grupos de contratantes com a Administração que fraudam pessoas jurídicas de forma sucessiva, as falem ou abandonam, mas sempre constituem outras no lugar das antigas e com elas continuam a participar de certames licitatórios. Essa outra regra de extrapessoalidade se justifica vez que, apesar de distinta a pessoa jurídica, o grupo controlador permanece o mesmo. Mais do que o nomen juris, o objetivo do PL é punir coletividades econômicas, e o faz independentemente de elas serem de fato e de direito. Segundo a exposição de motivos do PL, esse dispositivo “prevê meios para impedir que novas pessoas jurídicas constituídas no intuito de burlar sanções impostas administrativamente mantenham relações com a Administração Pública. Tal prática gera uma cadeia de empresas constituídas com o propósito único de fraudar e lesar a Administração Pública”.

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Artigo 33 - Proteção aos denunciantes: Cada Estado Parte considerará a possibilidade de incorporar em seu ordenamento jurídico interno medidas apropriadas para proporcionar proteção contra todo trato injusto às pessoas que denunciem ante as autoridades competentes, de boa-fé e com motivos razoáveis, quaisquer feitos relacionados com os delitos qualificados de acordo com a presente Convenção. 38 Artigo III – Medidas preventivas: 8. Sistemas para proteger funcionários públicos e cidadãos particulares que denunciarem de boa-fé atos de corrupção, inclusive a proteção de sua identidade, sem prejuízo da Constituição do Estado e dos princípios fundamentais de seu ordenamento jurídico interno.

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2.4 Processo Administrativo de Responsabilização (Capítulo IV)

O Capítulo IV estabelece procedimentalmente como se dará a responsabilização administrativa. Esta é uma parte mais descritiva da estrutura normativa do PL, e não suscita indagações teóricas de maior profundidade, até pelo fato de ser sucinta. A maioria das regras que incidirá sobre o procedimento em questão advirá do regime geral do processo administrativo, a Lei 9784/99. Não obstante, este capítulo do PL 6.826/2010 contém normas sobre competência e processamento, e destaque há sobretudo a desconsideração da pessoa jurídica na via administrativa. Quanto à competência, lembrando tratar-se de uma norma de âmbito nacional, optouse pela não criação de uma autoridade administrativa exclusiva para julgar os fatos relativos a este novo regime. Uma autoridade específica, como a CVM ou o CADE, fazem sentido em regimes temáticos de regulação econômica também específicas. E, de mais a mais, a regulação do mercado como um todo e dos setores financeiros e de valores mobiliários compete apenas à União em nosso design federativo. O conteúdo do PL é muito voltado à

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proteção das licitações e contratos administrativos, atos que são de competência e de interesse como, pelo menos, atividade meio, para todo o poder público. Ademais, o PL se volta à Administração Pública de todos os entes federativos, e como, dentro de cada ente federativo, cada poder faz suas licitações em separado, a criação de uma autoridade única mostrou-se inviável, do ponto de vista federativo e da separação de poderes. Assim, a instauração e julgamento de processo administrativo para apuração da responsabilidade de pessoa jurídica cabe à autoridade máxima de cada órgão ou entidade da Administração Pública dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, que agirá de ofício ou mediante provocação (art. 11). Essa competência pode ser delegada (art. 11, § 1º), e, no âmbito do Poder Executivo Federal, a CGU

terá

competência

concorrente

para

instaurar

processos

administrativos

de

responsabilização de pessoas jurídicas, bem como poderá avocar os processos instaurados por outros órgãos e entidades para corrigir-lhes o andamento. Essa posição da CGU não se trata propriamente de uma inovação, vez que seu poder de avocar procedimentos administrativos como órgão central do Poder Executivo da União já existe no âmbito do sistema disciplinar federal39. A novidade está no art. 12, que confere a CGU a competência para a apuração, o processo e o julgamento dos atos ilícitos praticados contra a Administração Pública estrangeira, o que reforça o papel da CGU como agência anticorrupção brasileira. O procedimento administrativo será conduzido por comissão designada pela autoridade instauradora e composta por dois ou mais servidores estáveis (art. 13) e a comissão poderá formular pedido judicial de busca e apreensão de livros e documentos da pessoa jurídica investigada, bem como “quaisquer outras medidas judiciais cabíveis no interesse das investigações e do processamento das infrações” (art. 13, §1º). A própria comissão parece ter uma espécie de poder de cautela, vez que poder propor à autoridade instauradora que suspenda os efeitos do ato ou processo objeto da investigação. Caso aplicada a sanção de reparação integral do dano, o procedimento deve ser cindido, com a instauração de processo específico para sua quantificação, de forma que as demais sanções poderão ser imediatamente aplicadas (art. 16). Concluído o processo e não 39

Lei 10683/2003, art. 18: § 1º À Controladoria-Geral da União, [...] cumpre requisitar a instauração de sindicância, procedimentos e processos administrativos outros, e avocar aqueles já em curso em órgão ou entidade da Administração Pública Federal, para corrigir-lhes o andamento, inclusive promovendo a aplicação da penalidade administrativa cabível; § 4º Incluem-se dentre os procedimentos e processos administrativos de instauração e avocação facultadas à Controladoria-Geral da União aqueles objeto do Título V da Lei no 8.112, de 11 de dezembro de 1990, e do Capítulo V da Lei no 8.429, de 2 de junho de 1992, assim como outros a ser desenvolvidos, ou já em curso, em órgão ou entidade da Administração Pública Federal, desde que relacionados a lesão ou ameaça de lesão ao patrimônio público.

39

havendo o pagamento das multas ou a reparação do dano impostos, será promovida a inscrição do nome da pessoa jurídica no Cadastro Informativo de créditos não quitados do setor público federal - CADIN, ao mesmo tempo em que a decisão definitiva do processo específico para quantificação do dano constituirá título executivo extrajudicial (art. 16, § 2º). Finalmente, na regra do art. 17 está exposta a regra da desconsideração da pessoa jurídica na esfera do procedimento administrativo, com o efeito de estender as sanções aplicadas à pessoa jurídica aos seus administradores e sócios com poderes de administração. A desconsideração ocorrerá em duas hipóteses: quando a pessoa jurídica for utilizada com abuso de direito para facilitar, encobrir ou dissimular a prática dos ilícitos previstos no regime do PL 6.826/2010; ou, no mesmo contexto, para provocar confusão patrimonial.

2.5 Responsabilização Judicial (Capítulo V)

O Capítulo V do PL 6.826/2010 trata da responsabilização civil da pessoa jurídica pelos atos contra a Administração Pública nacional ou estrangeira descritos como ilícitos por este regime, responsabilização esta que se dará no meio judiciário. Esta forma de responsabilização se submete às mesmas regras de imputação estabelecidas até agora (autoria mediata, responsabilidade objetiva, tipos de perigo abstrato, etc.) e, ainda, não é afastada pelo exercício prévio da responsabilização administrativa. Acredito, entretanto, que o PL poderia

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ter avançado mais nesse sentido. O paradigma atual da prevalência da verdade processual de acordo com a natureza da esfera de julgamento é o de que procedimentos e a sentença proferida no processo penal gozam de autoridade em face de outros juízos: segundo arts. 63 a 67 do Código de Processo Penal, a sentença penal faz coisa julgada no âmbito das obrigações civis e administrativas, mas o inverso não ocorre. Por derivação, entende-se que a jurisdição civil tem prevalência no estabelecimento dos fatos para a esfera administrativa. Há espaço, todavia, para o surgimento de critérios mais sofisticados para o estabelecimento da verdade processual. Nos casos de absolvição em um processo administrativo, o processo civil poderia ser a este subsidiário, de forma a garantir a unidade da ordem jurídica e para se evitar decisões reciprocamente excludentes40. Se não tanto inovador, o PL poderia ter, pelo menos, introduzido a possibilidade de alguma forma de transação pré-processual. A legitimidade para ajuizar essa ação é do Ministério Público e das pessoas jurídicas de direito público interessadas, e o objeto do pedido é a aplicação das seguintes sanções, de forma isolada ou cumulativa, às pessoas jurídicas infratoras (art. 19), mais gravosas do que as do art. 7º e que atingem de forma mais aflitiva a estrutura constitutiva da pessoa jurídica41: perdimento dos bens, direitos ou valores que representem vantagem ou proveito direta ou indiretamente obtidos da infração; suspensão ou interdição parcial das suas atividades; e dissolução compulsória da pessoa jurídica. No âmbito do processo administrativo, as sanções monetárias de multa e ressarcimento são aplicadas pela própria Administração, mas não são por ela autoexecutadas, em caso de inadimplemento (constituindo-se em título executivo extrajudicial, conforme art. 16, § 2º). Dessa forma, o perdimento de bens e valores, especialmente aqueles que não decorreram diretamente da vantagem ilícita, sendo apenas dela equivalentes, se apresenta como uma medida de força mais extrema que só se justifica em nosso arcabouço constitucional se aplicada no âmbito e segundo as regras processuais judiciárias. Quanto à suspensão ou interdição parcial de suas atividades ela se diferencia da proibição de se relacionar economicamente com a Administração pelo fato de que esta última é uma medida que aflige a pessoa jurídica em sua dimensão externa. Atinge a esfera de

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Segundo a Convenção da ONU contra a Corrupção: Artigo 47 – Enfraquecimento de ações penais: Os Estados Partes considerarão a possibilidade de enfraquecer ações penais para o indiciamento por um delito qualificado de acordo com a presente Convenção quando se estime que essa remissão redundará em benefício da devida administração da justiça, em particular nos casos nos quais intervenham várias jurisdições, com vistas a concentrar as atuações do processo.

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direitos da pessoa jurídica, sem, todavia, alcançar a sua estrutura. O problema é que há casos em que todo um setor ou divisão de uma companhia está fortemente implicado em um ou mais casos de corrupção, sem que o restante da empresa o esteja, entretanto. A gravidade do caso pode recomendar a aplicação de sanções que signifiquem restrição de mercado e que atinjam a empresa em sua estrutura. Daí as possíveis penas de suspensão de atividade para as pessoas jurídicas que desenvolvem múltiplas atividades econômicas, mas apenas alguma delas está comprometida pela prática de corrupção, ou, de forma semelhante, a interdição de estabelecimento, quando o comprometimento ocorrer apenas em uma determinada filial, com delimitação de alcance geográfico. Entretanto, essas medidas não são estranhas a nosso próprio ordenamento, sendo admitidas nas Leis 9.605/199842 e 8.884/199443. Finalmente, a pena mais grave do regime do PL 6.826/2010, aplicada apenas judicialmente é a dissolução compulsória da pessoa jurídica. De uso reduzido, ela se aplica aos ilícitos descritos se combinados a uma de outras duas hipóteses: ter sido a personalidade jurídica utilizada para facilitar ou promover a prática de atos ilícitos; ou ter sido a pessoa jurídica constituída para ocultar ou dissimular interesses ilícitos ou a identidade dos beneficiários dos atos praticados. Em outras palavras, é a hipótese de que uma pessoa jurídica tenha sido criada ou esteja sendo usada exclusiva ou principalmente como instrumento de um esquema de corrupção. Segundo determinada concepção, a pessoa jurídica é uma ficção jurídica, cuja constituição se permite pelo Estado com o objetivo de melhor instrumentalizar esforços humanos para exercer uma atividade econômica ou cultural. Quando a finalidade intrínseca da pessoa jurídica é deliberadamente desvirtuada para a prática de ilícitos, quando sua função principal é servir de ferramenta para a prática de corrupção, não se justifica a manutenção do fundamento autorizador da sua criação ou manutenção. A “pena de morte” da pessoa jurídica, como também é conhecida essa espécie de sanção em decorrência de seu resultado prático, seria uma medida extraordinária e certamente pouco aplicada por um regime jurídico de natureza interventiva. Uma das razões para essa afirmação é que se acredita que a maioria dos casos de corrupção não envolve os níveis mais altos de direção de uma companhia, sendo os níveis intermediários ou gerenciais os principais responsáveis por 41

Com a ressalva de que, se a Administração for omissa em apurar administrativamente, nas ações ajuizadas pelo Ministério Público poderão ser aplicadas as sanções previstas no art. 7º (cf. art. 20). 42 Art. 22. As penas restritivas de direitos da pessoa jurídica são: I - suspensão parcial ou total de atividades; II - interdição temporária de estabelecimento, obra ou atividade; 43 Art. 24. Sem prejuízo das penas cominadas no artigo anterior, quando assim o exigir a gravidade dos fatos ou o interesse público geral, poderão ser impostas as seguintes penas, isolada ou cumulativamente: V - a cisão de sociedade, transferência de controle societário, venda de ativos, cessação parcial de atividade, ou qualquer outro ato ou providência necessários para a eliminação dos efeitos nocivos à ordem econômica.

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envolvimento em casos de suborno (ROSE-ACKERMAN, 2006, p. 57), devido a questões de oportunidade (o nível gerencial detém a gestão de dispêndio de recursos e usualmente se submete apenas a controles hierárquicos verticais) e motivo (pressões corporativas por melhores resultados financeiros). Embora extraordinária, sendo a sanção mais grave contra uma pessoa jurídica, a extinção forçada não é estranha ao ordenamento jurídico atual, e encontra-se presente em outros ramos do direito. Por exemplo, o direito civil admite a extinção de pessoas jurídicas por motivos menos graves do que ser instrumento contumaz da prática de atos de corrupção. Assim, segundo o Código Civil, extinguem-se as fundações, quando seu objeto torna-se ilícito, impossível ou inútil44, as sociedades que dependam de autorização para funcionar e a vejam cassada pelo Poder Executivo45, ou por ocasião da declaração de falência46. A própria exposição de motivos reconhece que a extinção da pessoa jurídica será a ultima ratio do regime do PL 6.826/2010, em homenagem, principalmente, aos princípios da conservação da empresa e da manutenção das relações trabalhistas.

2.6 Disposições Finais (Capítulo VI)

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CC, Art. 69. Tornando-se ilícita, impossível ou inútil a finalidade a que visa a fundação, ou vencido o prazo de sua existência, o órgão do Ministério Público, ou qualquer interessado, lhe promoverá a extinção, incorporando-se o seu patrimônio, salvo disposição em contrário no ato constitutivo, ou no estatuto, em outra fundação, designada pelo juiz, que se proponha a fim igual ou semelhante. 45 CC, Art. 1.125. Ao Poder Executivo é facultado, a qualquer tempo, cassar a autorização concedida a sociedade nacional ou estrangeira que infringir disposição de ordem pública ou praticar atos contrários aos fins declarados no seu estatuto. CC, Art. 1.033. Dissolve-se a sociedade quando ocorrer: V - a extinção, na forma da lei, de autorização para funcionar 46 CC, Art. 1.044. A sociedade se dissolve de pleno direito por qualquer das causas enumeradas no art. 1.033

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A primeira disposição do último capítulo do PL 6.826/2010 trata da destinação da multa e do perdimento de bens, direitos ou valores aplicados: os beneficiários serão as entidades públicas lesadas. A imprescritibilidade da reparação do dano, de natureza constitucional (art. 37, § 5º) é reafirmada no art. 22, que também trata da prescrição. Esta ocorre em 10 anos, e começa a correr da data da ciência da infração ou, no caso de infração permanente ou continuada, do dia em que esta tiver cessado. A prescrição é interrompida por qualquer ato administrativo ou judicial que tenha por objeto a apuração da infração. O processo arquivado por falta ou insuficiência de provas poderá ser reaberto, dentro do prazo prescricional de 10 anos, caso a autoridade competente tenha conhecimento de outras provas da infração (art. 23). Por sua vez, o art. 24 do PL 6.826/2010 contém regras de representação da pessoa jurídica imputada por seus órgãos, administradores e gerentes, e o art. 25, último da norma em gestação, imputa a previsão de responsabilidade penal, civil e administrativa à autoridade competente que, tendo conhecimento de infrações deste regime, não adote providências para a apuração dos fatos.

2.7 Correlações com o Anteprojeto de Código Penal (Comissão Gilson Dipp) O Anteprojeto de Código Penal, elaborado em 2012 pela Comissão presidida por Gilson Dipp, estatuída junto ao Senado Federal, também avançou nesta matéria. Os arts. 41 a 44 da referida disposição tratam da responsabilidade penal da pessoa jurídica de forma ampla, inclusive, mas não se limitando a, “atos praticados contra a administração pública” (Ver Anexo IV). Segundo o relatório (DIPP, 2012, p. 229) a Comissão entendeu que as hipóteses constitucionais que preveem a responsabilidade penal da pessoa jurídica são exemplificativas e não exaurientes, permitindo ao legislador que examine a conveniência de estender esta responsabilização a outros crimes, além do meio ambiente e da ordem econômica, financeira e da economia popular. Aparentemente, a Comissão adotou um posicionamento não tão avançado quanto o do PL 6.826/2010 no tocante aos requisitos “subjetivos” ou decisórios quanto ao dolo ou à formação da “vontade corporativa” determinante do crime. Ainda segundo o art. 41 do

e, se empresária, também pela declaração da falência.

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Anteprojeto, a pessoa jurídica responde penalmente nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seus representantes ou de seu órgão colegiado, desde que no interesse ou benefício da entidade. Por outro lado, reconhecendo que as sanções de privação de liberdade trazidas pelos tipos penais não são compatíveis com a realidade das pessoas jurídicas (DIPP, 2012, p. 231), o Anteprojeto apresenta um rol variado de penas restritivas de direito, que vão da suspensão de atividades e interdição de estabelecimento, à liquidação forçada com perda do patrimônio para o Fundo Penitenciário. Muitas dessas penalidades são comuns a ambas as normas em gestação, o que pode levar, no futuro, caso não haja algum esforço legislativo de adequação da matéria, a fortes debates doutrinários, em uma clivagem de argumentos de proibição de bis in idem versus reafirmação do princípio da independência das esferas/instâncias (administrativa, civil e criminal). Finalmente, devemos destacar que estão ausentes, no Anteprojeto, disposições acerca de cláusulas de leniência que prevejam condições mais favoráveis à pessoa jurídica condenada, decorrentes do cumprimento de programas de compliance.

Conclusão O estudo do papel das pessoas jurídicas, empresas e corporações na prática de atos de corrupção, e de quais medidas podem ser tomadas para prevenir e sancionar de forma efetiva esse tipo de conduta corporativa forma um capítulo todo especial do estudo da anticorrupção. Como a base da pessoa jurídica é a do patrimônio e da responsabilidade desta da de seus membros, essa característica ensejaria o uso das pessoas jurídicas como instrumentos de crime. Uma perspectiva da corrupção como risco supera essa visão da pessoa jurídica apenas como instrumento de um ilícito, e a recoloca em uma posição de ambiente de prática de ilícito, e de responsável jurídico pelas suas conseqüências. Nesse sentido, a responsabilização de corporações pela prática de atos de corrupção se insere em um quadro mais amplo de criação de um regime internacional dedicado à problemática da corrupção, levando em consideração seus impactos e conseqüências político-econômicas globais. A partir das décadas de 80 e 90, a internacionalização da anticorrupção redimensiona a perspectiva tradicional, do que se entende por corrupção e das formas de se lidar com ela, até então majoriatariamente influenciadas pelo campo de imputação moral subjetiva e vinculada ao sistema penal. Esse redimensionamento se dá em dois níveis: o primeiro continua a tratar a

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corrupção como um problema de dimensão criminal, mas qualitativamente diverso da criminalidade tradicional. No segundo nível, que não exclui a primeira dimensão criminal, a corrupção passa a ser também uma preocupação administrativa, cuja elaboração envolve conceitos como reforma do Estado, reforma política, prevenção, transparência e, sobretudo, criação de regimes sancionatórios não-penais. Nessa nova dimensão de responsabilização, a corrupção é enxergada não só como um delito que pode ser praticado por organizações criminosas como sua atividade fim (isto é, a corrupção como “produtora de capital” para determinados beneficiários), mas também como um delito deliberadamente praticado por qualquer organização criminosa, no intuito de facilitar o trânsito de suas mercadorias, corromper policiais, promotores e juízes, ou até mesmo ingressar no sistema político. Nesse contexto de internacionalização, a corrupção, que inicialmente era vista pela comunidade internacional como um assunto de interesse unicamente doméstico dos países, sofreu um processo de internacionalização com profundos reflexos em políticas de comércio internacional e cooperação para desenvolvimento. O PL 6.826/2010 analisado neste trabalho é tributário desse regime internacional anticorrupção, sendo seu conteúdo normativo nitidamente e declaradamente, em sua exposição de motivos, derivado do FCPA dos EUA e da Convenção da OCDE contra o suborno transnacional. Apesar de não ser uma norma de direito internacional, o FCPA possui, por concepção, efeitos transnacionais: ele atinge não só pessoas físicas, mas também pessoas jurídicas norte-americanas, especialmente companhias multinacionais, por atos de suborno praticados contra agentes públicos de qualquer lugar do globo. O modelo normativo de justiça transnacional do FCPA, seus conceitos e princípios, e sua racionalidade sancionatória inspiraram de forma fundamental os debates da comunidade internacional que culminaram anos depois na Convenção da OCDE, concluída em Paris, em 1997, e internalizada no Brasil por meio do Decreto nº 3.678/2000. O Brasil iniciou o cumprimento dessa Convenção quando a Lei 10.647/2002 incluiu no Código Penal um capítulo dedicado aos crimes praticados por particular contra a Administração Pública estrangeira. Esse capítulo do Código Penal contém dois novos tipos (corrupção ativa em transação comercial internacional e tráfico de influência em transação comercial internacional) e um artigo que dá o conceito legal de funcionário público estrangeiro. Entretanto, a adoção pelo Brasil desses novos tipos penais não esgota o cumprimento da Convenção da OCDE sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais. No que toca ao tema deste artigo, considera-se que não cumprimos até agora o disposto no Artigo 2 da Convenção, que

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dispõe sobre Responsabilidade de Pessoas Jurídicas e é justamente para preencher essa lacuna que se destina o PL 6.826/2010. Em termos de estrutura normativa o PL analisado é composto de apenas 25 artigos, divididos em seis capítulos. Trata-se de uma lei nacional. Seus dispositivos e ferramentas são aplicáveis a todos os entes e órgãos públicos: a Administração Pública tratada no PL é a Administração em todas as esferas (União, distrito federal, estados e municípios) e poderes da República (Executivo, Legislativo e Judiciário). Ademais, adota um modelo de responsabilização civil-administrativo de pessoas jurídicas por atos de corrupção, em detrimento de introduzir uma responsabilização de entes coletivos no sistema penal. Situamos o PL 6.826/2010 em uma taxonomia jurídica que não é, com certeza, uma norma penal – ele traz punições, mas que são aplicadas fora do sistema penal, judiciário e, naturalmente, penitenciário. Afim aos regimes civil e administrativo em termos de método (sanções patrimoniais e restritivas de direito aplicadas concomitantemente por um juiz civil e por autoridades administrativas), ao mesmo tempo deles se distancia o PL pelo conteúdo de desvalor simbólico com o qual se apresenta (“punir empresas corruptas”) e, principalmente, por inovar em diversos critérios de imputação. Portanto, o PL 6.826/2010, aproxima-se, em nossa visão, ao que Reale denominou de um regime tipificador de infrações administrativopenais. Algumas regras de imputação adotadas pelo PL parecem confirmar a nossa hipótese: 

A autoria se verifica de forma mediata: a responsabilidade da pessoa jurídica decorre de atos praticados por qualquer agente ou órgão que as represente, em seu interesse ou benefício, exclusivo ou não (Art. 2º). Essa regra prescinde de que o ato praticado seja válido em um contexto empresarial: a responsabilidade ocorre ainda que os agentes ou órgãos da pessoa jurídica tenham agido sem poderes de representação ou sem autorização superior (Art. 3, §2);



A responsabilidade é expressamente objetiva (Art. 3º, § 2º);



Os tipos são de perigo abstrato, verificando-se a conduta punível “mesmo que o ato praticado não proporcione a ela vantagem efetiva ou que eventual vantagem não a beneficie direta ou exclusivamente” (Art. 3, §2º), decorrentes da constatação de que



Há cumulação e independência entre o regime do PL 6.826/2010 e outras instâncias punitivas (Art. 3º): a responsabilização da pessoa jurídica não exclui a responsabilidade individual de seus dirigentes ou administradores ou de

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qualquer pessoa natural, autora, co-autora ou partícipe do ato ilícito, ao mesmo

tempo

em

que

a

pessoa

jurídica

será

responsabilizada

independentemente da responsabilização individual dessas pessoas naturais; e 

Forte componente de extrapessoalidade, de extrapolação da pena da pessoa jurídica responsável para outras, representada por regras de não limitação da responsabilidade em caso de sucessão (subsiste a responsabilidade nas hipóteses de alteração contratual, transformação, incorporação, fusão ou cisão societária, art. 4º) e de co-responsabilidade decorrente da verificação de vínculos constitutivos ou econômicos (responsabilidade solidária entre entidades integrantes de grupo econômico, de fato ou de direito, e as sociedades controladas, as consorciadas e as coligadas, art. 5º).

Os tipos de ilícitos que o PL descreve podem ser divididos em quatro grupos: um inciso trata da corrupção ativa, ou suborno, praticado pela pessoa jurídica, e outros dois contém tipos acessórios: financiar, custear, patrocinar ou de qualquer modo subvencionar a prática dos ilícitos previstos (VII) e utilizar-se a pessoa jurídica de interposta pessoa física ou jurídica para ocultar ou dissimular seus reais interesses ou a identidade dos beneficiários dos atos praticados (VIII). Os outros dois grupos contém a maioria dos tipos, e tratam de ilícitos, fraudes e perturbações praticados pela pessoa jurídica em processos licitatórios ou na fase propriamente contratual de seu relacionamento com a Administração Pública. Quanto às sanções, tanto a Convenção da OCDE contra o suborno transnacional quanto a da ONU contra a corrupção exigem que as penas aplicadas, ainda que fora do âmbito do sistema penal, sejam eficazes, proporcionais e dissuasivas, incluídas sanções monetárias. Outros condicionantes operam em um regime de punição de pessoas jurídicas. Sua natureza incorpórea, abstrata e não-naturalística limitam as formas de responsabilização dos entes coletivos, que só podem, portanto, ser submetidos a penas que atinjam seu patrimônio e suas atividades. Em relação à dosimetria, suas regras gerais estão no Art. 7º, § 1º do PL: as penas podem ser aplicadas isoladas ou cumulativamente, e a decisão de o fazê-lo, em qual quantidade ou abrangência deve ser fundamentada. Já o art. 9º é dedicado a relacionar as circunstâncias específicas que serão levadas em consideração na aplicação das sanções. A maioria é consideravelmente elementar: gravidade da infração, magnitude da vantagem auferida ou pretendida, consumação ou não do ilícito, grau de perigo de lesão, efeito negativo produzido e situação econômica do infrator. As duas últimas circunstâncias de dosimetria são

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mais complexas, inovadoras e exigem maior elaboração. Delas, a primeira é a cooperação na apuração das infrações (Art. 9, VII), que se dá por meio da comunicação pela pessoa jurídica do ato ilegal antes da instauração do processo; ou, se já instaurado, com a celeridade na prestação de informações à Administração no curso das investigações. A outra circunstância de dosimetria digna de nota é a manutenção pela pessoa jurídica de um programa de compliance ético, de integridade ou anticorrupção (Art. 9, VIII), consistindo em “mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e a aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta”. O destaque final vai para a característica de a responsabilidade das pessoas jurídicas por atos contra a Administração poder ser aplicada pelas esferas administrativa e judicialcivil. Se aprovado, e efetivamente posto em prática, uma das principais agendas de análise futura deste regime será, justamente, comparações entre as práticas, procedimentos e valores ressaltados por cada uma destas esferas.

Referências DECRETO Nº 3.678, DE 30 DE NOVEMBRO DE 2000. Promulga a Convenção sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais, concluída em Paris, em 17 de dezembro de 1997. DECRETO Nº 4.410, DE 7 DE OUTUBRO DE 2002. Promulga a Convenção Interamericana contra a Corrupção, de 29 de março de 1996, com reserva para o art. XI, parágrafo 1o, inciso "c". DECRETO Nº 5.015, DE 12 DE MARÇO DE 2004. Promulga a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional. DECRETO Nº 5.483, DE 30 DE JUNHO DE 2005.Regulamenta, no âmbito do Poder Executivo Federal, o art. 13 da Lei no 8.429, de 2 de junho de 1992, institui a sindicância patrimonial e dá outras providências. DECRETO Nº 5.687, DE 31 DE JANEIRO DE 2006. Promulga a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, adotada pela Assembléia-Geral das Nações Unidas em 31 de outubro de 2003 e assinada pelo Brasil em 9 de dezembro de 2003.

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DECRETO-LEI Nº 2.848, DE 7 DE DEZEMBRO DE 1940. Código Penal. DIPP, Gilson Langaro (Presid.). Relatório Final da Comissão de Juristas para a elaboração de Anteprojeto de Código Penal. Senado Federal, 18 de junho de 2012. Consulta em 18.10.2012, disponível em: . KLITGAARD, Robert. Controlling Corruption. Berkeley: University of California, 1988. LEI Nº 8.429, DE 2 DE JUNHO DE 1992. Dispõe sobre as sanções aplicáveis aos agentes públicos nos casos de enriquecimento ilícito no exercício de mandato, cargo, emprego ou função na administração pública direta, indireta ou fundacional e dá outras providências. LEI Nº 8.666, DE 21 DE JUNHO DE 1993. Regulamenta o art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, institui normas para licitações e contratos da Administração Pública e dá outras providências. LEI Nº 8.884, DE 11 DE JUNHO DE 1994. Transforma o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) em Autarquia, dispõe sobre a prevenção e a repressão às infrações contra a ordem econômica e dá outras providências. NOONAN, John T. Bribes. New York: Macmillan, 1984 NUIJTEN, Monique. Corruption and the Secret of Law: a Legal Anthropological Perspective. Surrey: Ashgate, 2007 OCDE. Application Of The Convention On Combating Bribery Of Foreign Public Officials In International Business Transactions And The 1997 Recommendation On Combating Bribery In International Business Transactions. 2006 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. United Nations Handbook on Practical AntiCorruption Measures for Prosecutors and Investigators. Viena, setembro, 2004. OSÓRIO, Fábio Medina. Teoria da Improbidade Administrativa. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007 REALE JR., Miguel. Despenalização no Direito Penal Econômico: uma Terceira Via entre o Crime e a Infração Administrativa? Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: RT, ano 7, n. 28, 1999, pp. 116-29

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ROSE-ACKERMAN, Susan. Corruption and Government. Causes, Consequences and Reform. New York: Cambridge University, 1999. ROSENVINGE, Alison von. Global Anti-Corruption Regimes. German Law Journal, 2009 [Vol. 10 No. 07] pp. 785-802 SANCTIS, Fausto Martin de. Responsabilidade Penal das Corporações e Criminalidade Moderna. São Paulo: Saraiva, 2009

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ANEXO I - PROJETO DE LEI Nº 6.826/2010 Dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a Administração Pública nacional ou estrangeira e dá outras providências. O CONGRESSO NACIONAL decreta: Capítulo I DAS DISPOSIÇÕES GERAIS Art. 1º Esta Lei dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a Administração Pública nacional ou estrangeira. Art. 2º As pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa e civilmente pelos atos praticados por qualquer agente ou órgão que as represente, em seu interesse ou benefício, exclusivo ou não, contra a Administração Pública nacional ou estrangeira. Parágrafo único. Aplica-se esta Lei às sociedades empresárias e às sociedades simples, personificadas ou não, independentemente da forma de organização ou modelo societário adotado, bem como a quaisquer fundações, associações de entidades ou pessoas, ou sociedades estrangeiras, que tenham sede, filial ou representação no território brasileiro, constituídas de fato ou de direito, ainda que temporariamente. Art. 3º A responsabilização da pessoa jurídica não exclui a responsabilidade individual de seus dirigentes ou administradores ou de qualquer pessoa natural, autora, co-autora ou partícipe do ato ilícito. § 1º A pessoa jurídica será responsabilizada independentemente da responsabilização individual das pessoas naturais referidas no caput. § 2º A pessoa jurídica responderá objetivamente pelos atos ilícitos praticados em seu benefício ou interesse por qualquer de seus agentes, ainda que tenham agido sem poderes de representação ou sem autorização superior, mesmo que o ato praticado não proporcione a ela vantagem efetiva ou que eventual vantagem não a beneficie direta ou exclusivamente. Art. 4º Subsiste a responsabilidade da pessoa jurídica na hipótese de alteração contratual, transformação, incorporação, fusão ou cisão societária. Art. 5º Serão solidariamente responsáveis as entidades integrantes de grupo econômico, de fato ou de direito, e as sociedades controladas, as consorciadas e as coligadas, pela prática dos atos previstos nesta Lei. Capítulo II DOS ATOS LESIVOS À ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA NACIONAL OU ESTRANGEIRA Art. 6º Constituem atos lesivos à Administração Pública nacional ou estrangeira, para os fins desta Lei, todos aqueles, praticados pelas pessoas jurídicas mencionadas no parágrafo único do art. 2º, que atentem contra o patrimônio público nacional ou estrangeiro, contra princípios da Administração Pública ou contra os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, assim definidos:

I - prometer, oferecer ou dar, direta ou indiretamente, vantagem indevida a agente público, ou a terceira pessoa a ele relacionada;

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II - frustrar ou fraudar, mediante ajuste, combinação ou qualquer outro expediente, o caráter competitivo do procedimento licitatório público; III - impedir, perturbar ou fraudar a realização de qualquer ato de procedimento licitatório público; IV - afastar ou procurar afastar licitante, por meio de fraude ou oferecimento de vantagem de qualquer tipo; V - fraudar licitação pública instaurada ou contrato dela decorrente: a)

elevando arbitrariamente os preços;

b) vendendo, como verdadeira ou perfeita, mercadoria falsificada ou deteriorada; c)

entregando uma mercadoria por outra ou prestando serviço diverso do contratado;

d) alterando substância, qualidade ou quantidade da mercadoria fornecida ou do serviço prestado; ou e)

tornando indevidamente mais onerosa a proposta ou a execução do contrato.

VI - criar, de modo fraudulento ou irregular, pessoa jurídica para participar de licitação pública ou celebrar contrato administrativo; VII - financiar, custear, patrocinar ou de qualquer modo subvencionar a prática dos atos ilícitos previstos nesta Lei; VIII - utilizar-se de interposta pessoa física ou jurídica para ocultar ou dissimular seus reais interesses ou a identidade dos beneficiários dos atos praticados; IX - obter vantagem ou benefício indevidos de modificações ou prorrogações de contratos celebrados com a Administração Pública, sem autorização em lei, no ato convocatório da licitação pública ou nos respectivos instrumentos contratuais; X - manipular ou fraudar o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos celebrados com a Administração Pública; ou XI - deixar, por qualquer meio, de pagar encargos trabalhistas, fiscais, comerciais ou previdenciários, decorrentes da execução de contrato celebrado com a Administração Pública. § 1º Considera-se Administração Pública estrangeira os órgãos e entidades estatais ou representações diplomáticas de país estrangeiro, de qualquer nível ou esfera de governo, bem como as empresas controladas, diretamente ou indiretamente, pelo Poder Público de país estrangeiro. § 2º Para os efeitos desta Lei, equiparam-se à Administração Pública estrangeira as organizações públicas internacionais. § 3º Considera-se agente público estrangeiro, para os fins desta Lei, quem, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, exerça cargo, emprego ou função pública em órgãos, entidades estatais ou em representações diplomáticas de país estrangeiro, assim como em empresas controladas, direta ou indiretamente, pelo Poder Público de país estrangeiro ou em organizações públicas internacionais. Capítulo III DA RESPONSABILIDADE ADMINISTRATIVA Art. 7º Serão aplicadas na esfera administrativa às pessoas jurídicas que forem consideradas responsáveis pelos atos ilícitos previstos nesta Lei as seguintes sanções: I - multa, no valor de 1 a 30% do faturamento bruto do último exercício da pessoa jurídica, excluídos os tributos;

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II - declaração de inidoneidade; III - reparação integral do dano causado; IV - publicação extraordinária da decisão condenatória; V - proibição de contratar, receber incentivos, subsídios, subvenções, doações ou empréstimos de órgãos públicos, de instituições financeiras públicas ou controladas pelo poder público; VI - revogação de delegação, autorização ou permissão, cassação de licença ou rescisão de contrato celebrado com a Administração Pública. § 1º As sanções serão aplicadas fundamentadamente pela autoridade competente, isolada ou cumulativamente, de acordo com as peculiaridades do caso concreto e com a gravidade e natureza das infrações. § 2º Na hipótese do inciso I, caso não seja possível utilizar o critério do valor do faturamento bruto da pessoa jurídica, a multa será de R$ 6.000,00 (seis mil reais) a R$ 6.000.000,00 (seis milhões de reais). § 3º Na fixação do valor da multa, deverá ser considerado o poder econômico da pessoa jurídica, seu faturamento bruto, excluídos os tributos, e a gravidade do fato. § 4º A declaração de inidoneidade implicará a proibição de participar de licitação, contratar e manter contratos com a Administração Pública pelo prazo mínimo de dois e máximo de dez anos, e valerá em âmbito nacional, aplicável aos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário de todas as esferas de governo. § 5º A publicação extraordinária da decisão condenatória ocorrerá na forma de extrato de sentença, a expensas da pessoa jurídica, em meios de comunicação de grande circulação na área da prática da infração e de atuação da empresa ou, na sua falta, em publicação de circulação nacional, bem como por meio da afixação de edital, pelo prazo mínimo de trinta dias, no próprio estabelecimento ou no local de exercício da atividade, de modo visível ao público, e no sítio eletrônico na rede mundial de computadores. § 6º A proibição de receber incentivos, subsídios, subvenções, doações ou empréstimos do Poder Público deverá ser aplicada pelo prazo mínimo de dois e máximo de dez anos. Art. 8. A decisão que determinar a aplicação das sanções previstas nos incisos II ou V do caput do art. 7º deverá ser comunicada à Controladoria-Geral da União para inclusão do nome da pessoa jurídica em cadastro nacional de empresas punidas pela Administração Pública pelo prazo previsto na condenação. Parágrafo Único. Decorrido o prazo previsto na condenação e cumpridas as demais penalidades eventualmente impostas, a pessoa jurídica poderá requerer à Controladoria-Geral da União sua retirada do cadastro nacional de empresas punidas pela Administração Pública. Art. 9º Levar-se-ão em consideração na aplicação das sanções: I - a gravidade da infração; II - a vantagem auferida ou pretendida pelo infrator; III - a consumação ou não da infração; IV - o grau de lesão, ou perigo de lesão; V - o efeito negativo produzido pela infração; VI - a situação econômica do infrator; VII - a cooperação na apuração das infrações, por meio de práticas como a comunicação

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do ato ilegal às autoridades públicas competentes antes da instauração do processo e a celeridade na prestação de informações no curso das investigações; e VIII - a existência de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e a aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta no âmbito da pessoa jurídica. Art. 10 A pessoa jurídica constituída pelos administradores ou sócios de outra anteriormente condenada pela prática de atos previstos nesta Lei fica impedida de participar de licitações e de contratar com a Administração Pública durante o prazo de cumprimento da sanção. Capítulo IV DO PROCESSO ADMINISTRATIVO DE RESPONSABILIZAÇÃO Art. 11 A instauração e julgamento de processo administrativo para apuração da responsabilidade de pessoa jurídica cabe à autoridade máxima de cada órgão ou entidade da Administração Pública dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, que agirá de ofício ou mediante provocação. § 1º A competência para a instauração do processo administrativo de apuração de responsabilidade da pessoa jurídica poderá ser delegada. § 2º No âmbito do Poder Executivo Federal, a Controladoria-Geral da União terá competência concorrente para instaurar processos administrativos de responsabilização de pessoas jurídicas, bem como poderá avocar os processos instaurados por órgãos e entidades com fundamento nesta Lei, para corrigir-lhes o andamento. Art. 12 Competem à Controladoria-Geral da União a apuração, o processo e o julgamento dos atos ilícitos previstos nesta Lei praticados contra a Administração Pública estrangeira, observado o disposto no art. 4º da Convenção sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais, promulgada pelo Decreto 3.678, de 30 de novembro de 2000. Art. 13 O processo administrativo para apuração da responsabilidade de pessoa jurídica será conduzido por comissão designada pela autoridade instauradora e composta por dois ou mais servidores estáveis. § 1º A comissão poderá, sempre que necessário, formular pedido judicial de busca e apreensão de livros e documentos da pessoa jurídica investigada, bem como quaisquer outras medidas judiciais cabíveis no interesse das investigações e do processamento das infrações. § 2º A comissão poderá, cautelarmente, propor à autoridade instauradora que suspenda os efeitos do ato ou processo objeto da investigação. § 3º A comissão deverá concluir o processo no prazo de cento e oitenta dias, contados da data da publicação do ato que a instituir, e, ao final, apresentar relatórios sobre os fatos apurados e eventual responsabilidade da pessoa jurídica, sugerindo de forma motivada as sanções a serem aplicadas. § 4º O prazo previsto no § 3º poderá ser prorrogado, mediante ato fundamentado da autoridade instauradora. Art. 14 No processo administrativo para apuração de responsabilidade será concedido à pessoa jurídica o prazo de quinze dias, para defesa, contados a partir da intimação. Art. 15 O processo administrativo, com o relatório da comissão, será remetido à autoridade instauradora, na forma do art. 12, para julgamento. Art. 16 Após o julgamento, caso seja aplicada a sanção de reparação integral do dano, a autoridade competente, conforme o art. 12, determinará a instauração de processo específico para sua quantificação, de forma que as demais sanções poderão ser imediatamente aplicadas.

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§ 1º Concluído o processo e não havendo o pagamento das multas ou a reparação do dano , a autoridade competente de cada órgão ou entidade promoverá a inscrição do nome da pessoa jurídica no Cadastro Informativo de créditos não quitados do setor público federal - CADIN, na forma da Lei n.º 10.522, de 19 de julho de 2002. § 2º A decisão definitiva do processo específico para quantificação do dano constituirá título executivo extrajudicial. Art. 17. A personalidade jurídica poderá ser desconsiderada sempre que utilizada com abuso do direito para facilitar, encobrir ou dissimular a prática dos atos ilícitos previstos nesta Lei ou para provocar confusão patrimonial, sendo estendidos todos os efeitos das sanções aplicadas à pessoa jurídica aos seus administradores e sócios com poderes de administração. Capítulo V DA RESPONSABILIZAÇÃO JUDICIAL Art. 18. A responsabilidade da pessoa jurídica na esfera administrativa não afasta a possibilidade de sua responsabilização na esfera judicial. Art. 19. Em razão da prática de atos previstos no art. 6º desta Lei, o Ministério Público e as pessoas jurídicas de direito público interessadas poderão ajuizar ação com vistas à aplicação das seguintes sanções às pessoas jurídicas infratoras: I - perdimento dos bens, direitos ou valores que representem vantagem ou proveito direta ou indiretamente obtidos da infração, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé; II - suspensão ou interdição parcial de suas atividades; III – dissolução compulsória da pessoa jurídica . Parágrafo único. A dissolução compulsória da pessoa jurídica será determinada quando comprovado: I - ter sido a personalidade jurídica utilizada para facilitar ou promover a prática de atos ilícitos; ou II – ter sido constituída para ocultar ou dissimular interesses ilícitos ou a identidade dos beneficiários dos atos praticados. § 3º As sanções poderão ser aplicadas de forma isolada ou cumulativa. Art. 20. Nas ações ajuizadas pelo Ministério Público poderão ser aplicadas as sanções previstas no art. 7º, sem prejuízo daquelas previstas neste Capítulo, desde que constatada a omissão das autoridades competentes para promover a responsabilização administrativa. Capítulo VI DAS DISPOSIÇÕES FINAIS Art. 21. A multa e o perdimento de bens, direitos ou valores aplicados com fundamento nesta Lei serão destinados às entidades públicas lesadas. Art. 22. Ressalvada a imprescritibilidade da reparação do dano, nos termos do § 5º, do art. 37 da Constituição Federal, prescrevem em dez anos as infrações previstas nesta Lei, contados da data da ciência da infração ou, no caso de infração permanente ou continuada, do dia em que tiver cessado. Parágrafo único. Interrompe a prescrição qualquer ato administrativo ou judicial que tenha por objeto a apuração da infração.

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Art. 23. Dentro do prazo prescricional do art. 22, o processo arquivado por falta ou insuficiência de provas poderá ser reaberto, caso a autoridade competente tenha conhecimento de outras provas da infração. Art. 24. A pessoa jurídica será representada pelos representantes designados em seus estatutos ou, na ausência de previsão estatutária, por seus diretores ou administradores. § 1º As sociedades sem personalidade jurídica serão representadas pela pessoa a quem couber a administração de seus bens. § 2º A pessoa jurídica estrangeira será representada pelo gerente, representante ou administrador de sua filial, agência ou sucursal aberta ou instalada no Brasil. Art. 25. A autoridade competente que, tendo conhecimento das infrações previstas nesta Lei, não adotar providências para a apuração dos fatos, será responsabilizada penal, civil e administrativamente nos termos da legislação específica aplicável. Art. 26. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação. Brasília,

de

de 2009; 188º da Independência e 121º da República.

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ANEXO II – Exposição de Motivos Interministerial nº 00011/2009

EMI Nº 00011 2009 Brasília, 23 de outubro de 2009

Excelentíssimo Senhor Presidente da República, Temos a honra de submeter à consideração de Vossa Excelência proposta de regulamentação da responsabilidade administrativa e civil de pessoas jurídicas por atos lesivos à Administração Pública nacional e estrangeira. 2. O anteprojeto tem por objetivo suprir uma lacuna existente no sistema jurídico pátrio no que tange à responsabilização de pessoas jurídicas pela prática de atos ilícitos contra a Administração Pública, em especial, por atos de corrupção e fraude em licitações e contratos administrativos. 3. Sabe-se que a corrupção é um dos grandes males que afetam a sociedade. São notórios os custos políticos, sociais e econômicos que acarreta. Compromete a legitimidade política, enfraquece as instituições democráticas e os valores morais da sociedade, além de gerar um ambiente de insegurança no mercado econômico, comprometendo o crescimento econômico e afugentando novos investimentos. O controle da corrupção assume, portanto, papel fundamental no fortalecimento das instituições democráticas e na viabilização do crescimento econômico do país. 4. As lacunas aqui referidas são as pertinentes à ausência de meios específicos para atingir o patrimônio das pessoas jurídicas e obter efetivo ressarcimento dos prejuízos causados por atos que beneficiam ou interessam, direta ou indiretamente, a pessoa jurídica. Mostra-se também necessário ampliar as condutas puníveis, inclusive, para atender aos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil no combate à corrupção. 5. Disposição salutar e inovadora é a da responsabilização objetiva da pessoa jurídica. Isso afasta a discussão sobre a culpa do agente na prática da infração. A pessoa jurídica será responsabilizada uma vez comprovados o fato, o resultado e o nexo causal entre eles. Evita-se, assim, a dificuldade probatória de elementos subjetivos, como a vontade de causar um dano, muito comum na sistemática geral e subjetiva de responsabilização de pessoas naturais. 6. Nesse cenário, torna-se imperativa a repressão aos atos de corrupção, em suas diversas formatações, praticados pela pessoa jurídica contra a Administração Pública nacional e estrangeira. Observe-se que a Administração Pública aqui tratada é a Administração dos três Poderes da República - Executivo, Legislativo e Judiciário - em todas as esferas de governo - União, distrito federal, estados e municípios -, de maneira a criar um sistema uniforme em todo o território nacional, fortalecendo a luta contra a corrupção de acordo com a especificidade do federalismo brasileiro. 7. Além disso, o anteprojeto apresentado inclui a proteção da Administração Pública estrangeira, em decorrência da necessidade de atender aos compromissos internacionais de combate à corrupção assumidos pelo Brasil ao ratificar a Convenção das Nações Unidas contra Corrupção (ONU), a Convenção Interamericana de Combate à Corrupção (OEA) e a Convenção sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

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8. Com as três Convenções, o Brasil obrigou-se a punir de forma efetiva as pessoas jurídicas que praticam atos de corrupção, em especial o denominado suborno transnacional, caracterizado pela corrupção ativa de funcionários públicos estrangeiros e de organizações internacionais. Dessa forma, urge introduzir no ordenamento nacional regulamentação da matéria - do que, aliás, o país já vem sendo cobrado - , eis que a alteração promovida pela Lei nº 10.467, de 11 de junho de 2002, que inseriu o Capítulo II-A no Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal - e tipificou a corrupção ativa em transação comercial internacional, alcança apenas as pessoas naturais, não tendo o condão de atingir as pessoas jurídicas eventualmente beneficiadas pelo ato criminoso. 9. No que tange aos atos ilícitos a serem reprimidos, o anteprojeto possui um rol extenso de condutas puníveis capazes de lesar o Poder Público e a Administração estrangeira. As condutas lesivas descritas atendem à realidade vivenciada pela Administração e à necessidade de reprimir condutas lesivas que ainda não possuem previsão legal, quando praticadas em benefício ou em nome de pessoas jurídicas. 10. Observe-se que o presente projeto optou pela responsabilização administrativa e civil da pessoa jurídica, porque o Direito Penal não oferece mecanismos efetivos ou céleres para punir as sociedades empresárias, muitas vezes as reais interessadas ou beneficiadas pelos atos de corrupção. A responsabilização civil, porque é a que melhor se coaduna com os objetivos sancionatórios aplicáveis às pessoas jurídicas, como por exemplo o ressarcimento dos prejuízos econômicos causados ao erário; e o processo administrativo, porque tem-se revelado mais célere e efetivo na repressão de desvios em contratos administrativos e procedimentos licitatórios, demonstrando melhor capacidade de proporcionar respostas rápidas à sociedade. 11. Veja-se que a responsabilização de pessoas jurídicas na esfera administrativa não é novidade em nosso sistema jurídico, embora tais previsões legais sejam ainda incompletas. A lei nº 8.884, de 1994, demonstra uma experiência exitosa com a atuação do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) na repressão das infrações contra a ordem econômica. Importante destacar que os bons resultados apresentados por aquele Conselho informam a redação de dispositivos da presente proposta legislativa, como os parâmetros monetários para a fixação da multa. 12. Outrossim, embora a sistemática de responsabilidade administrativa de pessoas jurídicas já exista na Lei nº 8.666, de 1993, para as hipóteses de atos lesivos praticados em licitações e contratos administrativos, aquela legislação possui ainda lacunas que urgem ser supridas. As duas principais lacunas referem-se à previsão das condutas e às sanções. As condutas mais graves são tratadas apenas na seção sobre crimes da Lei nº 8.666, de 1993, a qual não se aplica à pessoa jurídica que se beneficia da conduta ou que determina a prática do delito, e as sanções aplicáveis à empresa no âmbito da Lei de Licitações não atingem o seu patrimônio diretamente nem geram o efetivo ressarcimento dos danos causados à Administração Pública. 13. Outro importante diploma legislativo que pode ser aplicado contra condutas lesivas praticadas contra a Administração Pública seria a Lei nº 8.429, de 1992, Lei de Improbidade Administrativa. Todavia, a adequação de seus dispositivos atuais à responsabilização de pessoas jurídicas mostra-se problemática, à míngua principalmente de disposição expressa sobre o assunto. Além disso, no sistema da Lei nº 8.429, de 1992, a responsabilização da pessoa jurídica depende da comprovação do ato de improbidade do agente público, e as condutas descritas pela lei são de responsabilidade subjetiva, devendo ser comprovada a culpa dos envolvidos, com todos os inconvenientes que esta comprovação gera com relação às pessoas jurídicas. 14. Observe-se, ainda, que nenhuma das leis supracitadas contempla as condutas praticadas contra a Administração Pública estrangeira.

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15. O anteprojeto prevê também, como dito antes, a responsabilidade civil da pessoa jurídica, que poderá ser operacionalizada de duas formas: ação civil ajuizada pelos entes federativos, entidades públicas e pelo Ministério Público, com o objetivo de aplicar sanções mais graves a pessoas jurídicas já sancionadas na esfera administrativa, e ação civil ajuizada pelo Ministério Público, na hipótese de omissão do ente federativo ou da entidade pública lesada. 16. Assim, cria-se um sistema de cooperação entre os entes públicos e o Ministério Público no combate à corrupção, bem como mecanismos subsidiários de apuração da responsabilidade da pessoa jurídica, buscando-se, pois, evitar e coibir omissões que possam gerar a prescrição dos atos ilícitos. 17. Tanto no referente às sanções administrativas quanto às civis, o anteprojeto estabelece sanções pecuniárias e não pecuniárias. Em ambos os casos, busca-se não só a repressão do ato ilícito praticado, como também evitar a sua reiteração, seja por meio do caráter pedagógico do valor da multa e da publicação da decisão condenatória em meios de comunicação de grande circulação na área da prática da infração e de atuação da empresa, ou, na sua falta, em meios de circulação nacional, seja por meio da proibição de receber incentivos governamentais e de contratar com o Poder Público. 18. As sanções previstas para a responsabilização civil da pessoa jurídica têm, ao seu turno, o propósito também de complementar as penalidades aplicadas na esfera administrativa. Trata-se de penalidades mais graves que serão aplicadas após o crivo do Poder Judiciário, como a dissolução compulsória de pessoas jurídicas utilizadas para facilitar ou promover a prática de atos ilícitos. 19. Importante destacar que a proposta leva em consideração os princípios da conservação da empresa e da manutenção das relações trabalhistas ao estabelecer as sanções administrativas e civis, princípios de extrema importância especialmente no quadro atual de crise econômica mundial. No âmbito administrativo, por exemplo, o anteprojeto estabelece parâmetros claros para a aplicação da sanção de multa, instituindo limites mínimos e máximos para o seu valor, de forma a contemplar a realidade de faturamento tanto de pequenas e médias empresas, como de grandes empresas, inclusive, exportadoras. Na esfera cível, são previstas hipóteses específicas, cuja gravidade justifica amplamente a sanção de dissolução compulsória da empresa. 20. Por outro lado, com relação à responsabilização na esfera administrativa, a presente proposta de legislação prevê meios para impedir que novas pessoas jurídicas constituídas no intuito de burlar sanções impostas administrativamente mantenham relações com a Administração Pública. Tal prática gera uma cadeia de empresas constituídas com o propósito único de fraudar e lesar a Administração Pública, o que deve ser impedido. Ademais, criam-se mecanismos para combater a utilização de terceiros para ocultar os reais interesses da pessoa jurídica ou os verdadeiros beneficiários de determinadas condutas ilícitas. 21. Entre as medidas criadas para combater tais práticas ilícitas, destaque-se a previsão da desconsideração da personalidade jurídica em sede administrativa, na hipótese de se verificar abuso do direito para encobrir, dissimular ou facilitar a prática das infrações previstas pelo normativo ou para provocar confusão patrimonial entre os bens dos sócios e da empresa. 22. O efeito previsto para a desconsideração é a possibilidade de se aplicar aos sócios com poderes de administração e aos administradores da pessoa jurídica as mesmas sanções cabíveis contra ela, estendendo-se, por exemplo, a declaração de inidoneidade da empresa para as pessoas naturais envolvidas na prática dos ilícitos. 23. Destaque deve ser dado também à previsão de que a pessoa jurídica constituída para burlar os efeitos de sanções aplicadas administrativamente ficará impedida de participar de licitações públicas e de contratar com a Administração, enquanto perdurarem os efeitos das sanções aplicadas à outra pessoa jurídica.

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24. São, portanto, todas essas, medidas que visam a coibir, prevenir e combater a prática de ilícitos e a moralizar as relações entre empresas privadas e a Administração Pública. 25. Estas, pois, as razões que nos conduzem a submeter à elevada consideração de Vossa Excelência a presente proposta de Anteprojeto de Lei.

Respeitosamente,

Jorge Hage Sobrinho, Tarso Fernando Herz Genro

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ANEXO III – Quadro Comparativo: Tipos Civis-Administrativos do PL 6.826/2010 x Tipos Penais da Lei 8666/1993

PL 6.826/2010, Art. 6º I - prometer, oferecer ou dar, direta ou indiretamente, vantagem indevida a agente público, ou a terceira pessoa a ele relacionada; II - frustrar ou fraudar, mediante ajuste, combinação ou qualquer outro expediente, o caráter competitivo do procedimento licitatório público; III - impedir, perturbar ou fraudar a realização de qualquer ato de procedimento licitatório público; IV - afastar ou procurar afastar licitante, por meio de fraude ou oferecimento de vantagem de qualquer tipo; V - fraudar licitação pública instaurada ou contrato dela decorrente: f) elevando arbitrariamente os preços; g) vendendo, como verdadeira ou perfeita, mercadoria falsificada ou deteriorada; h) entregando uma mercadoria por outra ou prestando serviço diverso do contratado; i) alterando substância, qualidade ou quantidade da mercadoria fornecida ou do serviço prestado; ou tornando indevidamente mais onerosa a proposta ou a execução do contrato. VI - criar, de modo fraudulento ou irregular, pessoa jurídica para participar de licitação pública ou celebrar contrato administrativo; VII - financiar, custear, patrocinar ou de qualquer modo subvencionar a prática dos atos ilícitos previstos nesta Lei; VIII - utilizar-se de interposta pessoa física ou jurídica para ocultar ou dissimular seus reais interesses ou a identidade dos beneficiários dos atos praticados; IX - obter vantagem ou benefício indevidos de modificações ou prorrogações de contratos celebrados com a Administração Pública, sem autorização em lei, no ato convocatório da licitação pública ou nos respectivos instrumentos contratuais; X - manipular ou fraudar o equilíbrio econômicofinanceiro dos contratos celebrados com a Administração Pública; ou XI - deixar, por qualquer meio, de pagar encargos trabalhistas, fiscais, comerciais ou previdenciários, decorrentes da execução de contrato celebrado com a Administração Pública.

Lei 8666/1993, Parte Penal

Art. 90. Frustrar ou fraudar, mediante ajuste, combinação ou qualquer outro expediente, o caráter competitivo do procedimento licitatório, com o intuito de obter, para si ou para outrem, vantagem decorrente da adjudicação do objeto da licitação: Art. 93. Impedir, perturbar ou fraudar a realização de qualquer ato de procedimento licitatório: Art. 95. Afastar ou procura afastar licitante, por meio de violência, grave ameaça, fraude ou oferecimento de vantagem de qualquer tipo Art. 96. Fraudar, em prejuízo da Fazenda Pública, licitação instaurada para aquisição ou venda de bens ou mercadorias, ou contrato dela decorrente: I - elevando arbitrariamente os preços; II - vendendo, como verdadeira ou perfeita, mercadoria falsificada ou deteriorada; III - entregando uma mercadoria por outra; IV - alterando substância, qualidade ou quantidade da mercadoria fornecida; V - tornando, por qualquer modo, injustamente, mais onerosa a proposta ou a execução do contrato:

Art. 92. Admitir, possibilitar ou dar causa a qualquer modificação ou vantagem, inclusive prorrogação contratual, em favor do adjudicatário, durante a execução dos contratos celebrados com o Poder Público, sem autorização em lei, no ato convocatório da licitação ou nos respectivos instrumentos contratuais, ou, ainda, pagar fatura com preterição da ordem cronológica de sua exigibilidade, observado o disposto no art. 121 desta Lei

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ANEXO IV – Excertos do Anteprojeto de Código Penal (Comissão Gilson Dipp) sobre Responsabilidade de Pessoas Jurídicas

COMISSÃO DE JURISTAS PARA A ELABORAÇÃO DE ANTEPROJETO DE CÓDIGO PENAL, RELATÓRIO FINAL GILSON LANGARO DIPP (Presd.)

Responsabilidade penal da pessoa jurídica Art. 41. As pessoas jurídicas de direito privado serão responsabilizadas penalmente pelos atos praticados contra a administração pública, a ordem econômica, o sistema financeiro e o meio ambiente, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade. § 1º A responsabilidade das pessoas jurídicas não exclui a das pessoas físicas, autoras, coautoras ou partícipes do mesmo fato, nem é dependente da responsabilização destas. § 2º A dissolução da pessoa jurídica ou a sua absolvição não exclui a responsabilidade da pessoa física. § 3º Quem, de qualquer forma, concorre para a prática dos crimes referidos neste artigo, incide nas penas a estes cominadas, na medida da sua culpabilidade, bem como o diretor, o administrador, o membro de conselho e de órgão técnico, o auditor, o gerente, o preposto ou mandatário de pessoa jurídica, que, sabendo da conduta criminosa de outrem, deixar de impedir a sua prática, quando podia agir para evitá-la. EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS – Responsabilidade penal da pessoa jurídica (p. 229). O Direito Penal tem caráter dúplice. Serve à sociedade, protegendo-a de condutas danosas; serve às pessoas, limitando a atuação punitiva estatal. O diálogo entre estas duas utilidades, igualmente lastreadas na Constituição, é que lhe dá o perfil. Ele não é uma construção intelectual autojustificável, um fim em si mesmo. O fenômeno de condutas socialmente danosas, gerenciadas, custeadas ou determinadas por pessoas jurídicas (outra construção intelectual humana) foi, de há muito, identificado pelos estudiosos. Sancioná-las e preveni-las, portanto, é preocupação comum. A questão é: como fazê-lo? A Constituição

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Federal, no artigo 225, § 3º e, mais indiretamente, no art. 172, § 5º, abrigou a possibilidade de responsabilização penal das pessoas jurídicas. Isto foi, inauguralmente, tipificado na Lei 9.605/98, dos crimes contra o meio ambiente. A Comissão de Reforma, por maioria de votos, entendeu que as hipóteses constitucionais são exemplificativas e não exaurientes, permitindo ao legislador que examine a conveniência de estender esta responsabilização a outros crimes, além do meio ambiente e da ordem econômico-financeira e da economia popular. Incluiu, desta maneira, a responsabilização da pessoa jurídica por crime contra a administração pública, apta a sancioná-las quando agir por decisão de suas instâncias próprias e em seu benefício.

Penas das pessoas jurídicas Art. 42. Os crimes praticados pelas pessoas jurídicas são aqueles previstos nos tipos penais, aplicando-se a elas as penas neles previstas, inclusive para fins de transação penal, suspensão condicional do processo e cálculo da prescrição. A pena de prisão será substituída pelas seguintes, cumulativa ou alternativamente: I – multa47; II – restritivas de direitos; III – prestação de serviços à comunidade; IV – perda de bens e valores. Parágrafo único. A pessoa jurídica constituída ou utilizada, preponderantemente, com o fim de permitir, facilitar ou ocultar a prática de crime terá decretada sua liquidação forçada, seu patrimônio será considerado instrumento do crime e como tal perdido em favor do Fundo Penitenciário. Art. 43. As penas restritivas de direitos da pessoa jurídica são, cumulativa ou alternativamente: 47

Fixação da pena de multa - Art. 85. A pena de multa será fixada em duas fases. Na primeira, o juiz observará as circunstâncias judiciais para a fixação da quantidade de dias-multa. Na segunda, o valor do diamulta será determinado observando-se a situação econômica do réu. § 1º A multa pode ser aumentada até o quíntuplo, se o juiz considerar que, em virtude da situação econômica do réu, é ineficaz, embora aplicada no máximo. Nos crimes praticados por pessoas jurídicas ou em nome delas, o aumento pode chegar a duzentas vezes, em decisão motivada.

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I – suspensão parcial ou total de atividades; II – interdição temporária de estabelecimento, obra ou atividade; III – a proibição de contratar com instituições financeiras oficiais e participar de licitação ou celebrar qualquer outro contrato com a Administração Pública Federal, Estadual, Municipal e do Distrito Federal, bem como entidades da administração indireta; IV – proibição de obter subsídios, subvenções ou doações do Poder Público, pelo prazo de um a cinco anos, bem como o cancelamento, no todo ou em parte, dos já concedidos; V – proibição a que seja concedido parcelamento de tributos, pelo prazo de um a cinco anos. § 1º A suspensão de atividades será aplicada pelo período máximo de um ano, que pode ser renovado se persistirem as razões que o motivaram, quando a pessoa jurídica não estiver obedecendo às disposições legais ou regulamentares, relativas à proteção do bem jurídico violado. § 2º A interdição será aplicada quando o estabelecimento, obra ou atividade estiver funcionando sem a devida autorização, ou em desacordo com a concedida, ou com violação de disposição legal ou regulamentar. § 3º A proibição de contratar com o Poder Público e dele obter subsídios, subvenções ou doações será aplicada pelo prazo de dois a cinco anos, se a pena do crime não exceder cinco anos; e de dois a dez anos, se exceder. Art. 44. A prestação de serviços à comunidade pela pessoa jurídica consistirá em: I – custeio de programas sociais e de projetos ambientais; II – execução de obras de recuperação de áreas degradadas; III – manutenção de espaços públicos; ou IV – contribuições a entidades ambientais ou culturais públicas, bem como a relacionadas à defesa da ordem socioeconômica.

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EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS – A individualização das penas das pessoas jurídicas (p. 231).

A experiência com a Lei dos Crimes contra o Meio Ambiente foi

especialmente considerada para a elaboração do presente anteprojeto. Procurou-se resolver algumas das críticas endereçadas àquela lei, especialmente em face da medida legal de culpabilidade (o preceito secundário da norma penal). É por esta razão que o projeto indica que: “Os crimes praticados pelas pessoas jurídicas são aqueles previstos nos tipos penais, aplicando-se a elas as penas neles previstas, inclusive para fins de transação penal, suspensão condicional do processo e cálculo da prescrição”. Permite-se, deste modo, ao aplicador da lei, que considere a gravidade específica de determinado crime, no momento da dosimetria da pena aplicável à pessoa jurídica. Ao mesmo tempo, as penas dos tipos penais serão utilizadas, também pelas pessoas jurídicas, para a aferição de benefícios como a transação penal e a suspensão condicional do processo. EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS – As penas compatíveis com as pessoas jurídicas (p. 231). As sanções de privação de liberdade trazidas pelos tipos penais não são compatíveis com a realidade das pessoas jurídicas, por esta razão, deverão ser substituídas por aquelas elencadas nos artigo 34 e 35. A proposta procurou tornar proporcional a sanção aplicável, diante do agravo ocorrido, fixando limites mínimos e máximos para as sanções de suspensão de atividades, interdição de estabelecimentos, proibição de contratar com o poder público, etc. A única exceção é a liquidação forçada da pessoa jurídica, a pena mais grave a elas aplicável, quando forem constituídas ou utilizadas, preponderantemente para facilitar, permitir ou ocultar a prática de crimes.

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