Responsabilidade exclusivamente objetiva da Administração Pública: uma abordagem sintática e semântica

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A RESPONSABILIDADE CIVIL EXCLUSIVAMENTE OBJETIVA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA: UMA ABORDAGEM SINTÁTICA E SEMÂNTICA OBJECTIVE ADMINISTRATIVE ACCOUNTABILITY: A SEMANTIC AND SYNTACTIC APPROACH

TIAGO GAGLIANO PINTO ALBERTO Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Professor em cursos de graduação e pós-graduação. Juiz de Direito Titular da 2ª Vara de Fazenda Pública da Comarca de Curitiba, Paraná, Brasil. E-mail: [email protected]; [email protected].

SUMÁRIO: 1. Noções introdutórias - 2. A virada semântica: 2.1. A função estrutural do Estado; 2.1.1. A filosofia da razão prática, a linguagem e a sua influência na atuação do Estado; 2.1.2. O princípio da legalidade como processo; 2.2. A função formal: o Estado enquanto garantidor de liberdades e protetor de desigualdades; 2.3. A função material: o Estado enquanto promotor da efetividade máxima de direitos fundamentais; 2.4. A função teleológica do Estado: diretrizes internacionais de defesa dos direitos humanos e padrões ético-valorativos de condutas socialmente esperadas; 2.5. Conclusões parciais - 3. O apoio sintático: 3.1. Lógica deôntica; 3.2. Conclusões parciais - 4. Notas conclusivas - 5. Referências bibliográficas. SUMMARY: 1. Introductory Notions - 2. The semantic turn: 2.1. The structural function of the state; 2.1.1. The philosophy of practical reason, the language and its influence on State action; 2.1.2. The principle of legality as a process; 2.2. The formal function: the State as guarantor of freedoms and inequalities protector; 2.3. Material function: the State as promoter of the maximum effectiveness of fundamental rights; 2.4. The teleological function of the state: international guidelines for human rights and ethical-evaluative standards of socially expected behaviors; 2.5. Partial conclusions - 3. Support syntactical 3.1. deontic logic; 3.2. Partial conclusions - 4. Concluding Remarks - 5. References.

RESUMO: O presente artigo objetiva verificar se no quadrante teórico do artigo 37, §6º da Constituição da República brasileira encontra-se a possibilidade de aplicação da teoria da responsabilidade civil subjetiva da Administração Pública, ou, ao revés, se, ademais de carente de previsão normativa, revela-se também vedada. Para tanto, empreende-se análise semântica, baseada em diversas formas de visualização tanto da formatação do Estado, como de seus objetivos e bases primárias; e, ainda, exame sintático da norma mencionada, a partir da leitura realizada pela lógica deôntica. Ao final, compreende-se que o artigo 37, §6º da Constituição estabelece apenas a responsabilidade civil objetiva da Administração Pública, afastando a possibilidade de responsabilização a nível subjetivo. PALAVRAS-CHAVE:. Responsabilidade civil, decisão judicial, argumentação; ABSTRACT: This article aims to verify if article 37, paragraph 6 of the Constitution of the Brazilian Republic autorizes the subjective theory of responsabilization of the Public Página 1 de 25

Administration, or the other way around, if, in addition to lacking normative, it i also prohibited. To achieve this goal, it does a semantic analysis of the State, based on different ways of viewing both the State formatting, as their goals and primary bases; and also syntactic examination of the standard mentioned, from the reading carried out by deontic logic. Finally, it is understood that article 37, paragraph 6 of the Constitution provides only the objective accountability of the public administration, eliminating the possibility of accountability the subjective level. KEY-WORDS: Civil accountability, judicial decision, argumentation. 1. NOÇÕES INTRODUTÓRIAS No direito brasileiro, a responsabilidade civil da Administração Pública encontra apoio normativo no artigo 37, §6º da Carta da República, que, em síntese, determina a utilização de elementos jurídicos inseridos no contexto da teoria objetiva para aferir se deve prosperar pedido indenizatório assacado em face das pessoas jurídicas de direito público e de direito privado prestadoras de serviços públicos. Os elementos a que me refiro, também não é novidade, são: i) a conduta; i) o nexo causal; e iii) o dano. Prescinde-se, na visão da Carta, da perquirição do elemento culpa, próprio da responsabilidade em feição subjetiva. Entretanto, essa disciplina normativa não implica necessariamente afastamento da responsabilidade culposa da Administração Pública, que se verificará, de acordo com a jurisprudência e doutrina pertinente ao tema, quando se der a denominada faute du service, isto é, a culpa anônima, situação em que a Administração não está obrigada, na linha do entendimento até hoje firmado, a intervir, a atuar positivamente, senão, em especial no tocante aos serviços públicos, quando existe uma falha na prestação do serviço, execução inapropriada, ou até ausência de execução. Este é precisamente o posicionamento que pretendo objetar com o presente trabalho, fundamentado na existência de uma responsabilidade civil exclusivamente objetiva da Administração Pública, em que o elemento subjetivo da culpa pode ser defenestrado sem qualquer tipo de óbice constitucional ou legal. Para alcançar o intento propositivo ora mencionado, analisarei a responsabilidade da Administração Pública sob dois enfoques: o semântico e o sintático, partindo, em ambos, do texto constitucional e das teorias que lhe conferem suporte. Ao longo do trabalho, demonstrarei que mais do que não encontrar espaço, a responsabilidade civil subjetiva da Administração Pública encontra-se vedada a teor da exegese de seu aporte constitucional, acaso empreendida sob o enfoque da lógica deôntica (a nível sintático) e da releitura das atribuições do Estado, a partir da filosofia do discurso prático (nível semântico). Acaso superadas as dificuldades teóricas e, submetida ao teste epistêmico/pragmático, a tese vingar, poderei então, ao final do trabalho, concluir no sentido da hipótese sugerida, isto é, que a responsabilidade civil da Administração Pública é exclusivamente objetiva, não apresentando trânsito a teoria subjetiva.

2. A VIRADA SEMÂNTICA: O artigo 37, §6º da Carta da República dispõe sobre a responsabilidade civil da Administração Pública e das pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público. O consenso que existe em relação à disciplina normativa é que encampa a teoria objetiva da responsabilidade civil enquanto regra, figurando a subjetiva como exceção, Página 2 de 25

aplicável somente naquelas hipóteses em que se verifique inexecução do serviço, ou execução inapropriada. Este raciocínio, ao menos no tocante à exceção, não encontra guarida na Carta, tendo sido construído pela doutrina e, uma vez sedimentado neste campo, aplicado pela jurisprudência que nos dias atuais não apresenta qualquer dúvida a este respeito. Partido desta concepção, a responsabilidade pode ser descrita ora como um i) facere; ii) ora como um non facere qualificado, exigindo-se, no primeiro caso, que a Administração1 atue, sob pena de reparação; e, no segundo, que a sua omissão tenha sido qualificada pelo dever de atuar, situação em que se dará a reparação. O argumento principal a justificar o non facere qualificado capaz de gerar o dever de indenizar o prejudicado é lançado no sentido de que o Estado não pode se converter em segurador universal, em que quaisquer condutas omissivas poderiam gerar os mesmos efeitos das condutas comissivas, de atuação obrigatória do ente público. Doravante, denominarei a conduta pertinente ao facere fundado na teoria objetiva de x e o non facere qualificado como y, a fim de facilitar a explanação. A concepção y, entretanto, como passarei a demonstrar, não se adequa à função: a) estrutural do Estado, enquanto agente promotor da estabilidade de comportamentos lastreado em padrão de correção em sua atuação; b) formal do Estado, como garantidor de liberdades e protetor de desigualdades; c) material do Estado, enquanto promotor da efetividade máxima de direitos fundamentais; d) teleológica do Estado, alinhado às diretrizes internacionais de defesa dos direitos humanos e dos padrões ético-valorativos de condutas socialmente esperadas. 2.1.

A função estrutural do Estado:

As teorias contratualistas da formação do Estado partiam, com nuances aqui e ali, de um contrato celebrado entre os indivíduos e o ente público, por meio do qual em troca da perda de parte da liberdade, alguns bens primários2 eram garantidos, tais como proteção, liberdade, certa autonomia etc. Esta visão, como sói perceber, posiciona a estrutura do Estado no sentido da atuação proativa, demandando ações positivas no sentido se desincumbir da prestação então assumida por oportunidade da celebração do contrato. Ao mesmo tempo em que direitos são garantidos, deveres estatais são enunciados, de sorte que a atuação do maquinário público fica indelevelmente correlacionado ao cumprimento destes deveres: faz-se algo, porque este algo foi convencionado e agora pode ser exigido. Mesmo a inação, caracterizada pela impossibilidade de intromissão nos direitos individuais, demandava uma ação por parte do Estado, construindo mecanismos públicos e assecuratórios do tranquilo exercício destes direitos3. Posteriormente a essa, digamos, primeira fase contratualista, já por oportunidade do surgimento de direitos sociais, a atuação positiva do Estado ficou ainda mais clara com a formatação estrutural ativa do Estado, incrementando a necessidade de sua intervenção para salvaguardar direitos tidos como caros pelo ordenamento jurídico. 1

Para os efeitos deste texto, compreenda-se, quando mencionada Administração Pública, que estou tratando das pessoas jurídicas de direito público e de direito privado prestadoras de serviço público. 2 No sentido Rawlsiano, autor tido como contratualista. RAWLS, John. Teoría de La Justicia. Traducción de María Dolores Gonzáles. México: FCE, 1995. 3 Esse ponto, entretanto, somente muito tempo após o Estado liberal veio a ser percebido. Fazendo esta análise, conquanto direcionada ao Estado moderno, a seguinte obra: HOLMES, Stephen; SUSTEIN, Cass R. El costo de los derechos. Por qué la libertad depende de los impuestos. Traducción de Stella Mastrangelo. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2011. Página 3 de 25

Atualmente, dando um grande salto no tempo, a visão que se tem da formação estrutural do Estado é evidentemente diferenciada. As modernas teorias que giram em torno da formação do Estado a atrelam, de certa maneira, a padrões de correção extraídos da filosofia do discurso prático e da linguagem, a fim de garantir que, sobretudo, tenhamos a formação e desenvolvimento de um Estado fincado em padrões morais e éticos de conduta. São exemplos de teóricos que propugnam este novo reclamo os seguintes: Robert Alexy4, Francisco Laporta5, Luigi Ferrajoli, José Juan Moreso, Manuel Atienza6 e Paolo Comanducci7, inter plures. Se, anteriormente, o padrão formal vigente à época em que pululavam estes ensinamentos contratualistas era o da observância à legalidade estrita e nada se falava em termos de constitucionalismo, neoconstitucionalismo, diferenciação entre princípios e regras e, por igual, direito morais, ou padrões éticos de conduta estatal; atualmente a visão se diferencia, preponderando análise substancial na própria legitimidade do Estado. A imediata diferença que se pode colher das visões mencionadas é que em um primeiro momento bastava um Estado regularmente constituído, ao passo que na visão contemporânea o Estado deve não apenas ostentar uma formação adequada sob o ponto de vista do direito, mas também observar padrões de correção vigentes desde a sua formação até o diário exercício de direitos, oriundos de quaisquer dos Poderes constituídos. Dois elementos parecem ocupar um papel central neste giro: a) filosofia da razão prática no direito estruturada a partir do discurso prático apoiado na linguagem que contenha em si um padrão de correção enquanto base; e b) a retomada do princípio da legalidade, agora não como moldura formal capaz apenas de salvaguardar direitos e criar deveres, senão como um processo apto a figurar como criador de comportamentos estáveis e previsíveis, sem, contudo, perder a dinamicidade das relações sociais em permanente transformação. 2.1.1. A filosofia da razão prática, a linguagem e a sua influência na atuação do Estado Em geral, a preocupação que se tem com o desenvolvimento do Estado e as suas funções desempenhadas no dia-a-dia do cidadão giram em torno da sua moldura, isto é, se liberal, social, neoliberal, ou de alguma outra faceta que denote a atuação no sentido “ente público → cidadão”. Esta visão nada tem de equivocada, mas corre o risco de se revelar superficial, instrumental e preocupada mais com o desenvolvimento da sociedade enquanto componente de uma estrutura maior – o Estado –, do que, o que deveria ser primordial, construída e integrada por indivíduos, cujo valor é intrínseco e suficiente por si só. Não é por outro motivo que Immanuel Kant, em seu imperativo categórico que ficou conhecido como “Fórmula II” ou “fórmula do fim em si mesmo”, assim explicitou: “Age de tal modo que uses a humanidade, ao mesmo tempo na tua pessoa e na pessoa de todos os outros, sempre e ao mesmo tempo como um fim, e nunca apenas como um meio” 8. É bem 4

ALEXY, Robert. Direito, razão, discurso. Estudos para a filosofia do direito. Tradução de Luís Afonso Heck. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015. ALEXY, Robert. Princípios formais e outros aspectos da Teoria Discursiva do Direito. Tradução de Alexandre Travessoni Gomes Trivisonno, Aziz Tuffi Saliba e Mônica Sette Lopes. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014. ALEXY, Robert. Teoria Discursiva do Direito. Tradução de Alexandre Travessoni Gomes Trivisonno. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015. 5 LAPORTA, Francisco. El imperio de la ley. Una visión actual. Madrid: KALAMO LIBROS, S.L., 2013. 6 FERRAJOLI, Luigi; MORESO, José Juan; ATIENZA, Manuel. La teoria del derecho en el paradigma constitucional. Madrid: Fundación Coloquio Jurídico-Europeo, 2008. 7 COMANDUCCI, Paolo. Constitución y teoría del derecho. México: Distribuciones Fontamara, 2007. 8 KANT, Immanuel. A Metafísica dos Costumes. Tradução de Edson Bini. Bauru: Edipro 2003, p. 23. Confessadamente inspirado por Kant e correlacionando a forma de atuação do Estado e a conexão com o ser humano, Henry David Thoreau salientou, em sua conhecida obra “A desobediência Civil”, que “Jamais haverá um Estado realmente livre e esclarecido até que este venha a reconhecer o indivíduo como um poder mais alto e independente, do qual deriva todo seu próprio poder e autoridade, e o trate da maneira adequada. Agrada-me Página 4 de 25

verdade que a formulação de Kant diz respeito primordialmente ao comportamento do indivíduo e não à formatação do aparelhamento estatal, mas, situando-se no ambiente da razão prática, já demonstra qual a tônica haverá de prevalecer para fins de estruturação do Estado e, na ponta da linha, da sua responsabilização. A fim de aclarar e esclarecer um pouco melhor o ambiente de que se está tratando, a razão prática, empreendo alguma digressão entre esta e a razão teórica, a sua contraposição mais imediata. A razão teórica discute questões afetas à verdade e à natureza, calcada no ambiente da causalidade inerente à physis. Sob este ponto de vista, não se revela adequado investigar problemas situados para além de seus limites de esgotamento da análise das questões postas a exame, quer seja a justiça, quer a política, ou até mesmo o direito. Estes enfoques devem ser tratados em ambiente propício a tanto, qual seja, o da razão prática. Esta, ao contrário da razão teórica, revelar-se-á capaz de situar em molduras teóricas mais bem estruturadas os imbróglios em que de forma subjacente venham à tona particularidades inerentes à ética e moral e, portanto, à ação individual; à política e, dessa forma, à ação coletiva; e ao direito e, assim, à ação normativa. Apenas nesse momento de exame teórico se poderá cogitar da análise da justiça, que, conglobada à liberdade, porém refratária à previsibilidade apriorística, denota em toda a sua plenitude o ethos, perpassado em sua delimitação pelos valores, costumes e tradições. Curioso observar, aliás, que a razão prática, enquanto apta a trabalhar as questões pertinentes à justiça e, ao mesmo tempo, o ethos, parece não só abarcar, senão também – e principalmente –, demandar particularidades que sob o ponto de vista do direito podem causar óbice à própria razão teórica em seu descobrimento epistemológico da verdade 9. Este é precisamente o ponto de virada semântica a que se faz alusão no título. A causalidade que remeta à culpa (subjetiva) – e não a causalidade que remonta ao fato – não pode ser utilizada como ponto nodal para aferição da responsabilidade civil do Estado, sob pena de situar a discussão no ambiente da razão teórica, da causalidade fática, quando, em realidade, o seu locus mais propício é o da razão prática, a demandar uma análise de justeza da situação, a causalidade jurídica. E, nesse campo, a pretensão de justeza não pode ser analisada de maneira desconexa à pretensão de correção, que confere validez a todo o sistema e, no que toca ao Estado, é de primordial aferição. Diversa é a situação da responsabilização do indivíduo frente ao seu par. Nesta, a pretensão de correção sobrepaira ao litígio, já se revelando algo pressuposta e sem qualquer possibilidade de ser influenciada com ou pela decisão final do caso. Dito de outra forma: existe espaço epistêmico para, qualquer que seja o resultado final da demanda, trabalhar-se indistintamente com teorias objetivas ou subjetiva sem influenciar direta ou indiretamente a pretensão de correção. Entrementes, quando a responsabilização do Estado está em jogo, as pretensões de correção e de justeza estão inflamadas, sendo discutidas e debatidas, de modo que a consideração subjetiva da responsabilidade não só afasta aquela em prol desta, como dá relevo à causalidade fática que encontra na razão teórica o seu locus específico, como desconsidera que o direito opera na razão prática e demanda um outro tipo de causalidade, a jurídica (presente no nexo causal da teoria objetiva).

imaginar um Estado que, afinal, possa permitir-se ser justo com todos os homens e tratar o indivíduo com respeito, como um seu semelhante.” THOREAU, Henry David. Desobediência Civil. Tradução de Sérgio Karam. http://www.osebodigital.blogspot.com. Acesso em 03 de março de 2016. 9 HABERMAS, Jürgen. Para o uso pragmático, ético e moral da razão prática. Tradução de Márcio Suzuki.. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/ea/v3n7/v3n7a02.pdf. Acesso em 03 março de 2016. Página 5 de 25

Ao Estado não se pode conferir o direito de discutir a pretensão de correção. Esta deve ser apriorística, sob pena de o sistema não ser dotado de validez.10 Então, de igual modo, não se deve confundir a causalidade fática – que opera na razão teórica – e a causalidade jurídica – que encontra na razão prática seu ambiente – para fins de definição da responsabilidade civil administrativa. A questão que decerto enseja a confusão teórica condiz com a estrutura do Estado, que, tendo a pretensão de correção como base, não deve admitir discussão quanto ao seu cerne. Vou aclarar um pouco mais o pensamento. John Langshaw Austin, ao cunhar a teoria dos atos de fala, explicita a compreensão acerca do que denomina enunciados performativos, que ostenta duas características essências: a) não se utilizam para descrições, de modo que não podem ser verdadeiros ou falsas; b) ensejam um tipo de ação11. Assim, ao ser exteriorizado um ato dito de fala, de natureza performativa, a palavra produz ação e, por isso, conduta. E mais, de acordo com a sua proposição teórica, essa conduta produzida não pode se encontrar em disparate ao que a palavra enuncia, sob pena de se ter uma fala cuja semântica enuncia algo incompatível com o ato que por seu intermédio é produzido. É o que se conhece, comumente, por contradição performativa, ou, em no ambiente da psicologia, dissonância cognitiva12. Com o Estado, passa-se o mesmo. Um ato institucional de fala tampouco pode ser incompatível com a sua execução material, sob pena de se incorrer na mesma pecha. O sistema jurídico produzido a partir de contradições performativas de base institucional não ultrapassará a esfera da inidoneidade moral, jurídica e ética, não podendo sequer ser admitido enquanto sistema. Alexy, a propósito, exemplifica essa situação com o advento de um sistema jurídico em que se admite a produção de normas injustas. Neste, a pretensão de correção simplesmente inexiste, porque, ou o dador de leis produzirá algo que, conquanto ajuste-se ao sistema, revela injustiça apriorística, ou, contrariando a enunciação de base constitutiva do sistema, produzirá enunciados que não poderão ser classificados como legais e passíveis de conformação à moldura procedimental então vigente13. Esta pretensão de correção encontra-se na base da estrutura de formação do Estado, não podendo, por isso, sustentar atos performativos contraditórios ao seu embasamento. Dito de outra forma: atos estatais não podem, sob pena de contradição performativa e, por isso, desajuste ao sistema e negação dele próprio, produzir efeitos que afetem o cidadão se estes mesmos atos não encontrarem no ambiente estatal mais intrínseco, estrutural, a sua justificação a partir da correção. Exemplificarei com um caso em que a teoria y é tomada como padrão. Por oportunidade do julgamento do agravo regimental no recurso extraordinário nº. 633.138/DFT, embora sem conhecer do recurso excepcional interposto em razão da necessidade de revisitar matéria probatória (o que é vedado a teor do verbete sumular nº. 279 da Corte), o Supremo Tribunal Federal conformou-se com posicionamento adotado pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios no sentido da responsabilidade civil subjetiva da Administração Pública em caso no qual uma professora havia sido agredida, 10

ALEXY, Robert. Conceito e validade do direito. Tradução de Gercélia Batista de Oliveira Mendes. São Paulo: Martins Fontes, 2011, p. 43-48. 11 AUSTIN, John Langshaw. Como hacer cosas con palavras. Palabras y acciónes. Traducción de Gernaro Carrió y Eduardo Rabossi. Buenos Aires: Ediciónes Páido SAIFC, 1981., p. 42-52. 12 Para uma breve explicação acerca da teoria da dissonância cognitiva: http://www.portaleducacao.com.br/psicologia/artigos/41439/teoria-da-dissonancia-cognitiva. Acesso em: 14 abr. de 2016. 13 ALEXY, op. cit., p. 43-47. O Autor chega a mencionar, acerca da pretensão de correção, que “Sistemas normativos que não formulam explícita ou implicitamente essa pretensão à correção não são sistemas jurídicos”. E, mais adiante, que “Se e na medida em que essa pretensão tem implicações morais, fica demonstrada a existência de uma conexão conceitualmente necessária entre direito e moral.” Página 6 de 25

moral e fisicamente, por aluno em sala de aula. Na oportunidade, a Corte de origem assentou que “A falta do serviço decorre do não funcionamento, ou então, do funcionamento insuficiente, inadequado ou tardio do serviço público que o Estado deve prestar.”. A teoria y foi utilizada, como se pôde perceber, para sustentar entendimento segundo o qual o Estado deve permanecer à sombra das condutas levadas a cabo por terceiro e, somente nos casos de não funcionamento, funcionamento insuficiente ou tardio do serviço, no caso de segurança pública, pode ser responsabilizado. Este posicionamento, conquanto guarde sonância com uma visão pragmática da ação estatal, não se ajusta à sua estrutura de formação, que ostenta como alicerce o padrão de correção exigido para que as suas condutas não revelem atos de pura contradição performativa. É que, se o fim da atuação estatal deve ser o ser humano, acordo com a fórmula II de Kant, não há como compreender, sem malferir esta regra que traz em seu bojo a correção da conduta estatal, que, no caso preciso da segurança, esteja o Estado legitimado a não ocupar um lugar que deveria ser de primazia; e, ao contrário, acaba por se revelar residual. A questão pode, em primeiro momento, parecer de mera perspectiva de visão: ao invés de se admitir que o Estado ocupe um lugar passivo, exige-se que aja, assumindo proatividade e comportamento positivo no sentido de evitar, sem margens para dúvidas, qualquer malferimento aos seus constituintes finais, os cidadãos. Se, de um lado, esta diferença de visão pode parecer mera lente com a qual se observa a situação, em um exame mais profundo e atrelado à formação estrutural do Estado lastreado na razão prática, não há como admitir comportamento diverso, sob pena de: a) relegar-se o cidadão, constituinte do próprio Estado, a um segundo plano; b) desconsiderar direitos humanos fundantes da própria ideia de Estado; c) deslocar indevidamente a causalidade que emerge da situação de um ambiente jurídico e ético correlacionado à razão prática (agir por imposição constitucional) para a mera causalidade fática que se situa nos meandros da razão teórica (aguardar o agir alheio para, se for o caso e considerando circunstâncias fáticas, agir); e, finalmente, e) instrumentalizar o ser humano, a partir de visão utilitarista, ponderando em qual situação deverá agir e qual bem jurídico haverá de proteger, se a todos não consegue. Por estas razões, compreendo que a estrutura de formação do Estado não é compatível com o ato de fala fundado em contradição performativa que a utilização da teoria y representaria. Da mesma forma que não se admite no plano intersubjetivo contrassenso ente falar e atuar, em plano institucional e público deve dar-se o mesmo, inadmitindo-se, por igual, a formação de uma estrutura para salvaguardar bens primários cuja execução fique relegada a um momento temporal de reticência fática. E, nesse campo, ainda estrutural, há um elemento a mais a considerar: o princípio da legalidade, fundante do Estado e que atualmente encontra-se submetido a releitura que, também correlacionada à razão prática, ostenta caráter dinâmico. Vejamos como isso se desenvolve. 2.1.2. O princípio da legalidade como processo Francisco Laporta, em interessante trabalho voltado à releitura da legalidade baseada em comportamentos esperados, sustenta, a partir da concepção de “contextos paramétricos” a retomada da compreensão legal como forma de estabilidade de comportamentos, isto é, baseando-se na filosofia do discurso prático. O pilar de sustentação das condutas estatais, para Laporta, seria obtido não da utilização de princípios, ainda que oriundos de assumida conduta proativa do Poder Judiciário, senão da retomada do viés legal, isto é, da lei em sentido formal

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como ente capaz de estabilizar comportamentos e garantir comportamentos esperados pelos seus destinatários14. Essa visão congrega dois fundamentos diversos: o primeiro está ligado ao princípio da legalidade como processo; e o segundo, sequencial ao raciocínio anterior, o da estabilização de comportamentos a partir do primado da legalidade. Em breve escorço, é possível dizer, porque já não representa qualquer tipo de novidade, que o princípio da legalidade, sobremodo no tocante ao funcionamento do aparelho público, encontra na reserva de lei a sua exteriorização mais fundamental. O cânone é o seguinte: no tocante ao aparelho público, somente se pode agir quando a lei autorize, o que é diverso do ambiente privado, em que tudo o quanto não vedado pela lei pode ser levado a cabo. No campo público, a reserva de lei figura como uma espécie de garantia do cidadão, por meio da qual o Estado não interferirá em sua esfera individual a menos que lei em sentido estrito o autorize15. Ocorre que esta visão está muito mais atrelada à atividade estatal do que, propriamente, à influência gerada pelo veículo legal no comportamento do indivíduo, esta vista sob a perspectiva do participante do sistema jurídico. Sob o olhar do cidadão, a lei, a par da limitação estatal, deve ser compreendida como capaz de estabilizar comportamentos seus, de terceiros e do Estado em relação a si. A limitação à atuação do Estado, sob essa perspectiva, não importa mais do que saber o que exatamente esperar a cada instante do desenvolvimento da vida em sociedade. Com isso, não é que o princípio da legalidade perca em valor ou força. Ao contrário, se, em um primeiro momento, encontra na visão estática da limitação defensiva à atividade do Estado como instrumento de empoderamento do cidadão, em uma segunda etapa de raciocínio, mais intrinsecamente vinculada à dinâmica das relações sociais, preocupa-se, além do limite à atuação estatal, também com os efeitos diretos e indiretos, anexos ou laterais, das condutas desempenhadas pelo aparelho público. É desta forma de ver o princípio da legalidade de que trata Laporta e outros teóricos que, fundados na perspectiva bilateral “indivíduo ↔ Estado”, compreendem a legalidade 14

LAPORTA, op. cit., p. 41-42. Interessante, a este respeito, os dois conceitos de liberdade de Isaiah Berlin, autor que fornece importantes elementos teóricos, cujo esforço não se pode empreender nesta oportunidade, para a compreensão da linha argumentativa utilizada no texto, remeto, portanto, o leitor aos seguintes trabalhos: BERLIN, Isaiah. Dos conceptos de libertad y otros escritos. In: filosofia, Alianza Editorial, Madrid, 2005, 160 páginas. Disponível em Acesso: 23 de março de 2016; CARTER, Ian. Libertad negativa y positiva. In: Astrolabio. Revista internacional de filosofia, 2010, n.10, ISSN 1699-7549, pg. 15-35. Disponível em Acesso: 23 de março de 2016; CASARIN, Júlio César. Isaiah Berlin: afirmação e limitação da liberdade, 2008. In: Revista Sociologia Política, vol.16, n.30, p. 283-295. Disponível em Acesso: 23 de março de 2016; ELIAS, Maria Lígica G. Granado Rodrigues. Isaiah Berlin e o debate sobre a liberdade negativa, 2012. Disponível em Acesso: 23 de março de 2016; EMHART, Alberto Pinto. El concepto de libertad em Isaiah Berlin, 2006. In: Derecho y Humanidades, nº12. Disponível em Acesso: 23 de março de 2016; FARRELL, Martín D., Libertad negativa y libertad positiva, 1985. Disponível em Acesso: 23 de março de 2016; SARALEGUI, Miguel. La lbertad de los modernos y la libertad negativa. Diferencias y similitudes entre los discursos ‘liberales’ de Constant y Berlin. In: Thémata. Revista de Filosofia, n.38, 2007. Disponível em Acesso: 23 de março de 2016; SILVA, Elisabete do Rosário Mendes. Liberalismo e os preceitos da ética cosmopolita em Isaiah Berlin, 2011. Disponível em Acesso: 23 de março de 2016; SIMÕES, Luziana Sant’ana. Os conceito de liberdade de Isaiah Berlin e a democracia, 2010. Disponível em Acesso: 23 de março de 2016. 15

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como algo dinâmico, um verdadeiro processo, em que ora uma característica é demandada – por exemplo, a reserva defensiva da atuação do Estado – ora outra é invocada – por exemplo, a necessidade de demandar atuação positiva e proativa do Estado como forma de resguardar a legalidade. A visão da legalidade como processo impede e obstaculiza vislumbrar eventual comportamento contraditório estatal que resultaria da exigência, em um dado momento, de comportamento ativo, como no caso da teoria x e, em outro momento, a conformação da inação e responsabilização por exceção, como se verifica na teoria y. Na legalidade como processo, a questão não é, propriamente, de atuações estanques, mas da perspectiva de atuação constante, conquanto variável a partir da violação ao direito já ocorrida ou por ocorrer. A um só turno, a legalidade como processo protege o cidadão, por sempre poder contar com comportamento constante por parte do Estado, e garante a atuação vanguardista, proativa por parte do aparelho público, proscrevendo a contraditoriedade que emana da aplicação da teoria x em alguns momentos e da y em outros por parte do mesmo ente público, cuja estrutura não pode ser cambiante, episódica e, quiçá, oportunística. Agora, sob o aspecto empírico, acaso não se logre cogitar do Estado presente a todo momento, sempre apto e capaz de proteger o cidadão, dar-se-á a responsabilização, que não pode ser considerada como uma espécie de prêmio pela sua inação quando deveria atuar, como no caso da teoria y (dificultando ainda mais a comprovação da eiva estatal), mas sim de forma mais gravosa ainda do que se efetivamente tivesse tomado à frente da situação e não lograsse impedir o dano: a teoria x. A expectativa de comportamento constante oriunda da legalidade como processo será sobremaneira violada e achacada acaso o Estado não se demonstre apto e capaz de evitar o dano; e, por isso, a responsabilização deve ser até de mais fácil comprovação e não, como sói ocorrer, mais dificultosa, em que o prejuízo deva ser arcado pelo prejudicado em ao menos duas oportunidades: quando sofre o dano e quando não consegue comprovar a inação do Estado. A visão, neste caso, revela-se turva e imprópria, coisificando o cidadão e preferindo o prejuízo à satisfação do seu direito. A estabilização de comportamentos, na essência, permite ao cidadão gerenciar a sua vida, porque sabe o que esperar de terceiros e, principalmente, do Estado. Por isso considerar a legalidade como processo, capaz de instrumentalizar diversas relações de direito material em seu bojo sem, contudo, perder o foco da estabilização. Nesta perspectiva, a teoria y não só inviabiliza esta estabilização justamente por quem deveria zelar pela sua manutenção, como estimula comportamentos contrários ao direito, porque a responsabilização será de difícil comprovação. Neste ponto, não resta dificultoso comprovar, ainda que perfunctoriamente e sob o estrito aspecto estrutural, que a teoria y não se coaduna com o Estado de Direito que tenha a pretensão de correção como fundamento, a legalidade como processo que salvaguarda relações de direito material baseadas em estabilização de expectativas de comportamentos e o ser humano como fim. Entretanto, ainda sob o aspecto semântico, acredito necessário agregar alguns argumentos relacionados ao sentido formal, material e teleológico do funcionamento do Estado. 2.2. A função formal: o Estado enquanto garantidor de liberdades e protetor de desigualdades Amartya Sen, em “Desenvolvimento como Liberdade”, postula tese segundo a qual o desenvolvimento, que não se confunde com o crescimento econômico, pode ser visto como um processo de expansão das liberdades reais que as pessoas desfrutam. Nesta perspectiva, de acordo com o Autor, o Estado tem o papel de remover as principais fontes de privação de Página 9 de 25

liberdade, tais como a pobreza, tirania, negligência de serviços públicos, entre outras que menciona. Assim agindo, estará incrementando o desenvolvimento embasado na crescente qualidade de vida e no aumento da participação dos cidadãos na vida pública16. A tese de Sen é interessante e em um primeiro momento parece tratar do objetivo do Estado, ou, ao menos, de sua função material. Entretanto, ao postular que o Estado atue promovendo a expansão de liberdades reais e removendo fontes da privação desta mesma liberdade, o Autor procedimentaliza a função do Estado, tornando-a instrumental a algo apriorístico e fundante em sua teoria: a liberdade. Esta, por sua vez, funcionará como elemento nuclear que deverá ser tanto incrementado (enquanto liberdade real), como protegida de circunstâncias que ensejem a sua privação. Por isso o caráter formal da função do Estado, ao menos de acordo com a leitura que empreendo de Amartya Sen. Sob esta concepção formalizada da função do Estado, demanda-se um inequívoco agir, seja para incrementar a liberdade, seja para protegê-la. Curioso observar que o próprio Sen fornece a eliminação de negligência no serviço público como exemplo de conduta que o Estado deve promover com o fito de retirar amarras que privem a liberdade, o que, acaso utilizada a teoria que usualmente se adota para fins de responsabilização, seguiria a teoria y. O Autor nada menciona acerca de teorias de responsabilidade civil do Estado, mas acaso o fizesse e adotasse a teoria y, haveria nisso uma espécie de contradição performativa entre o ato de fala afirmativo do Estado consistente na proteção da liberdade e a utilização da teoria y para tanto. A concepção formal de atuação do Estado, como se pode perceber pela brevíssima menção à teoria de Amartya Sen, encontra-se atrelada a proteção de algo que lhe serve de elemento nuclear. Para Sen é a liberdade. Para outros Autores a igualdade, livre concorrência, direitos sociais e, no ponto que pretendo chegar, os direitos fundamentais. Robert Alexy nos auxilia, neste ponto, a compreender que os direitos fundamentais, entre os quais se encontra a liberdade, situam-se no núcleo do Estado de Direito que pretenda ter a correção como fundamento17. Tendo em conta o núcleo fundamental a que deve o Estado observar, salvaguardar e garantir de maneira procedimentalmente ativa, não há como compreender que justamente a responsabilidade que decorra da inobservância do aspecto central da sua atividade formal possa ensejar a responsabilização com base e lastro na teoria y. Fosse o Estado uma pessoa natural, estaria com as ações malsinadas por evidente dissonância cognitiva ao apresentar semelhante postulação, isto é, de, ao mesmo tempo, proteger algo ou alguém e, na hipótese de dano ocorrido, argumentar que sua responsabilização deve ser aferida tendo como enfoque não a sua função primordial, senão a falha em deixar de observar algo a que já estava aprioristicamente obrigado. Isso sem falar em outro problema que decorre desta contradição performativa. É que a teoria y relega a responsabilização para o campo probatório, obrigando o interessado a comprovar a culpa do ente público, ao revés de situá-la no quadrante de atuação do Estado enquanto promotor e defensor ativo de direitos fundamentais. Ocorre que esta função cuja culpa deve ser comprovada é a sua própria atividade nuclear, sem a qual o Estado sequer encontraria razão de existir, ou existiria sem padrão de correção. Então, adotando a teoria y e situando o problema na questão probatória, imperioso admitir que o Estado pode deixar de exercer a sua função primordial e, mesmo assim, não sofrer sanção, o que equivaleria a dizer

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SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 1999., p. 18-19, 30-31. 17 O desenvolvimento da teoria do Autor é complexo e, por isso, não comporta um breve resumo. Limito-me, portanto, a remeter o leitor ao exame, entre muitas, das obras já enunciadas anteriormente neste trabalho alusivas ao Autor em foco. Página 10 de 25

que em algumas situações de deficiência probatória pode agir deixando de observar critérios de correção. Seria uma espécie de padrão modus in rebus de correção. Ao que se pode observar, portanto, sob o aspecto formal também não se admite outra conclusão senão a de que a teoria y deve ser afastada em prol da teoria x, hic et nunc aplicada. 2.3. A função material: o Estado enquanto promotor da efetividade máxima de direitos fundamentais. A teoria dos direitos humanos encontra-se de certa maneira atrelada ao estudo dos direitos fundamentais. É corrente a voz no sentido de que os direitos fundamentais representam a positivação dos direitos humanos na Carta da República. Esta inserção de valores no direito positivo acarreta ao menos duas consequências imediatas: i) a necessidade de potencializar ao máximo os direitos fundamentais que representem a versão positiva dos direitos humanos; ii) a impossibilidade de se relegar ao desdém, ou diminuir em incremento, as garantias aptas ao desenvolvimento e execução destes direitos, tão caros ao ordenamento18. Sob o aspecto do Estado, ambos elementos se relacionam, em movimento recíproco, um demandando e esperando o outro. Assim é que ao Estado não deve ser dado apenas proteger direitos fundamentais, senão garanti-los efetivamente, sob pena de a sua função primordial e essencial deixar de ser observada. Diversa, anoto, é a conduta verificada em âmbito particular. Se, por exemplo, o cidadão celebra um contrato cujo conteúdo se desajusta às normas compreendidas no contexto dos direitos fundamentais, o ajuste é imperativo, seja pela via contratual, seja judicial, mas a garantia desta atuação não se encontra no instrumento em si, senão externamente, na atuação, efetiva ou potencial, do Estado. Ao contrário, se é o Estado em um dos polos contratuais, não haverá como se despir precisamente de ambas as características mencionadas, já que a contradição performativa no âmbito da correção não é uma opção válida no tocante ao exercício das funções para as quais constituído. Muito bem. Admitir a teoria y é exatamente conferir efeitos a essa contradição. A despeito de esperar que o Estado seja o promotor maior, o garantidor, dos direitos fundamentais, que representam a positivação dos direitos humanos, repita-se, admite-se, por outro lado, que possa deixar de ser responsabilizado quando se percebe uma falha, um malferimento aos direitos desta natureza, mas a prova da culpa não se verifica. A prova da culpa, releva mencionar, não está situada no mesmo quadrante da violação ao direito. Esta é inequívoca mesmo nos casos em que a responsabilidade civil é afastada com amparo na teoria y, porque a culpa não está comprovada. Isso, todavia, não pode ser admitido quando em campo o Estado, cuja função material primordial é, repito, promover ao máximo os direitos fundamentais e garanti-los em todos os seus aspectos. A contradição, desse modo, adviria da aquiescência à lesão ao direito, mas a utilização de uma espécie de barreira externa à responsabilização. Semelhante teoria equivaleria a dizer que ao Estado cabe promover e garantir, mas nem tanto, os direitos fundamentais; e esse “nem tanto” adviria daquelas situações em que fica patente o ilícito, mas se afasta a responsabilização em virtude da falta de comprovação da culpa, ou seja, na esteira de uma deficiência probatória, afasta-se o direito. E há, ainda nessa linha de pensamento, um argumento a mais a considerar. Na composição da pretensão de correção inserida no contexto da teoria discursiva do direito, que, por sua vez, serve de base para a argumentação enquanto veículo promotor de legitimidade, 18

Para o estudo e reflexão deste importantíssimo tema dos direitos humanos e a sua correlação necessária com o Estado também por intermédio dos direitos fundamentais, imprescindível a leitura das seguintes obras: PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 11ªed. São Paulo: Saraiva, 2010. PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e Justiça Internacional. Um estudo comparativo dos sistemas regionais europeu, interamericano e africano. São Paulo: Saraiva, 2006. Página 11 de 25

algumas diretrizes chamadas de “regras do diálogo ideal” são invocadas para garantir a imparcialidade, intelegibilidade e a própria correção do diálogo. Habermas as menciona 19 e, na mesma toada, Alexy. Entre o catálogo das 28 (vinte e oito) regras apresentadas por Alexy, encontramos as seguintes, qualificadas como fundamentais: (1.1) Nenhum falante pode contradizer-se. (1.2) Todo falante só pode afirmar aquilo que ele mesmo acredita. (1.3) Todo falante que aplique um predicado F a um objeto A deve estar disposto a aplicar F também a qualquer objeto igual a A em todos os aspectos relevantes.20

Estas são regras confessadamente procedimentais e atreladas a um discurso ideal, ou seja, à formação do diálogo ideal entre falantes. Por isso, representam a maneira de obtenção, para a teoria discursiva do direito que encontra lastro em Estado e Constituição principiológicos, de legitimidade do ato de fala. Considerando, por essa maneira, a função de promotor máximo e garantidor dos direitos fundamentais, ou direitos humanos positivados, não haveria como, sem violação às normas mencionadas e, por isso, total discrepância ao cerne procedimental e material de seu funcionamento, que o Estado viesse a: i) afirmar a proteção dos direitos fundamentais e admitir a sua irreparabilidade, conquanto violado, a partir de pressupostos probatórios não verificados no caso judicial, traduzidos pela não comprovação da conduta culposa – violação à regra (1.1); ii) postular, enquanto forma de obtenção de legitimidade democrática, a potencialização, o incremento e a garantia de direitos fundamentais e, ao mesmo tempo, admitir sua não reparação em caso de lesão, satisfazendo-se com a possibilidade de incutir ao lesado o prejuízo moral ou material – violação da regra (1.2); e, finalmente, iii) admitir, em evidente violação ao princípio da imparcialidade, que um mesmo predicado – a lesão aos direitos fundamentais – possa acarretar consequências indenizatórias para os fins da teoria x e, mesmo reconhecido o malferimento a direitos de mesma estatura, inadmitir a reparação tendo por base a teoria y – violação da regra (1.3). Reitero que neste último caso, da violação da regra 1.3, ao aplicar a teoria y, o Estado não deixa de reconhecer que o dano se deu, o prejuízo se consumou e, portanto, o direito fundamental foi efetivamente alvo de derrocada, ou perecimento; apenas afasta-se a possibilidade de reparação pela condição de não comprovação do elemento anímico da culpa. Assim, em ambos os casos, de aplicação da teoria x, ou y, o direito fundamental foi proscrito, mas a reparação ocorre somente em um deles. Ou seja, predicados iguais, resultados diversos. Talvez se pudesse argumentar que a não reparação no caso da teoria y teria por base o sinal característico da utilização do elemento culpa, ao invés da aferição eminentemente objetiva da situação jurídica descrita. Esta cláusula de isenção para resultados iguais estaria igualmente prevista nas regras do diálogo ideal – regra (1.3´), segundo a qual “Todo falante só pode afirmar os juízos de valor e de dever que afirmaria dessa mesma forma em todas as situações em que afirme que são iguais em todos os aspectos relevantes” – e, na mesma medida, na regra da inércia perelmaniana. Esta linha argumentativa, entretanto, não colhe. Isso porque a exceção à imparcialidade argumentativa a partir de um sinal característico se situa no caso, é fática e não jurídica 21; e, 19

HABERMAS. Jürgen. Teoria do Agir Comunicativo. Racionalidade da ação e racionalização social. Tradução de Paulo Asfor Soethe. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012. 20 ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação jurídica. A Teoria do Discurso racional como teoria da fundamentação jurídica. Tradução de Zilda Hutchinson Schild Silva. Rio de Janeiro: Forense, 2011., p. 287. 21 Para compreensão da regra da inércia perelmaniana e sua correlação com o denominado “sinal característico”, vide: GÜNTHER, Klaus. Teoria da argumentação no direito e na moral: justificação e aplicação. Tradução de Cláudio Molz. São Paulo: Landy, 2004. Página 12 de 25

além disso, verifica-se em situações em que os predicados se diferenciam e não naqueles em que são absolutamente iguais. No caso das teorias x ou y, o que altera não é o predicado – a violação aos direitos fundamentais – e tampouco existem diferenças fáticas, já que a dissonância entre as teorias se situa em quadrante jurídico. Dessa maneira, mesmo a regra do sinal característico não viria em socorro à teoria y. Vou explicar melhor com um exemplo, a fim de que a abstração não acabe afastando a relevante pragmática. No julgamento da Apelação Cível nº. 429.073-3, oriunda da 6ª Vara Cível da Comarca de Londrina, o Tribunal de Justiça do Estado do Paraná reconheceu a responsabilidade civil subjetiva da Administração Pública no tocante à conservação das vias públicas22. Este posicionamento coaduna-se com o que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça vem decidindo23. Assim, razoável concluir que existe um parâmetro de coerência jurisprudencial acerca da responsabilidade com amparo na teoria y em casos de conservação de vias públicas, 22

A ementa é a seguinte: APELAÇÃO CÍVEL. OMISSÃO DO PODER PÚBLICO NA CONSERVAÇÃO DE VIAS PÚBLICA. RESPONSABILIDADE SUBJETIVA. FALTA DO SERVIÇO. DANOS MATERIAIS. CULPA CONCORRENTE. INDENIZAÇÃO DEVIDA. REDUÇÃO. 1. Em se tratando de ato omissivo, embora esteja a doutrina dividida entre as correntes dos adeptos da responsabilidade objetiva e aqueles que adotam responsabilidade subjetiva, prevalece, na jurisprudência, a teoria subjetiva. 2. Constatado o fato danoso, o nexo de causalidade, a negligência dos agentes públicos e os danos materiais suportados pela apelada, incumbe ao Estado o dever de indenizar. 3. A culpa neste caso é concorrente, eis que ambas as partes (apelante e apelada) contribuíram para o fato danoso. 4. Aplicando-se a culpa concorrente o valor indenizatório deve ser minorado. RECURSO CONHECIDO E PARCIALMENTE PROVIDO. PARANÁ. Tribunal de Justiça do Estado. Apelação Cível nº 429.073-3 da 6ª Vara Cível da Comarca de Londrina. Relator: J. S. Fagundes Cunha. Pesquisa de jurisprudência, Acórdão 29/08/2007. Disponível em . Acesso: 29 fevereiro de 2016. 23 Podemos destacar como exemplo o seguinte julgado: RECURSO ESPECIAL. ADMINISTRATIVO. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. ACIDENTE EM BURACO (VOÇOROCA) CAUSADO POR EROSÃO PLUVIAL. MORTE DE MENOR. INDENIZAÇÃO. CASO FORTUITO E FORÇA MAIOR. INEXISTÊNCIA. SÚMULA 7⁄STJ. NÃO-INCIDÊNCIA. 1. Ação indenizatória proposta em face do Município de Costa Rica⁄MS, em que se pleiteia pensão vitalícia no montante de dois salários mínimos mensais e despesas de funeral, pela morte de filho menor, em decorrência de acidente em buraco (voçoroca) causado pelas águas da chuva. 2. A instância especial, por suas peculiaridades, inadmite a discussão a respeito de fatos narrados no processo - vale dizer, de controvérsias relativas à existência ou inexistência de fatos ou à sua devida caracterização -, pois se tornaria necessário o revolvimento do conjunto probatório dos autos. 3. Entretanto, a qualificação jurídica de fatos incontroversos, ou seja, seu devido enquadramento no sistema normativo, para deles extrair determinada conseqüência jurídica, é coisa diversa, podendo ser aferida neste âmbito recursal. Nãoincidência da Súmula 7⁄STJ. 4. Segundo o acórdão recorrido, a existência da voçoroca e sua potencialidade lesiva era de "conhecimento comum", o que afasta a possibilidade de eximir-se o Município sob a alegativa de caso fortuito e força maior, já que essas excludentes do dever de indenizar pressupõem o elemento "imprevisibilidade". 5. Nas situações em que o dano somente foi possível em decorrência da omissão do Poder Público (o serviço não funcionou, funcionou mal ou tardiamente), deve ser aplicada a teoria da responsabilidade subjetiva. Se o Estado não agiu, não pode ser ele o autor do dano. Se não foi o autor, cabe responsabilizá-lo apenas na hipótese de estar obrigado a impedir o evento lesivo, sob pena de convertê-lo em "segurador universal". 6. Embora a municipalidade tenha adotado medida de sinalização da área afetada pela erosão pluvial, deixou de proceder ao seu completo isolamento, bem como de prover com urgência as obras necessárias à segurança do local, fato que caracteriza negligência, ensejadora da responsabilidade subjetiva. 7. Em atenção à jurisprudência da Corte e aos limites do recurso especial, deve a indenização ser fixada no montante de 2⁄3 do salário mínimo, a partir da data em que a vítima completaria 14 anos de idade (28 de agosto de 1994) até o seu 25º aniversário (28 de agosto de 2005), calculado mês a mês, com correção monetária plena. 8. Os honorários advocatícios devem ser fixados em 10% sobre o valor atualizado da condenação, a ser apurado em liquidação de sentença. 9. Recurso especial conhecido e provido em parte. BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. RESp nº 135542. Relator: Min. Castro Meira. Pesquisa de jurisprudência, Acórdão 29 agosto de 2005. Disponível em: Acesso em 15 abril 2016. Página 13 de 25

isto é, o Estado, pela via judiciária, assentou que: dando-se o predicado F, a resposta haverá de ser a teoria y. Ocorre que o predicado F, neste caso, não é, ou pode ser, simplesmente a não conservação da via pública – esta é a sua materialização fática no caso em tema, mas não a sua caracterização –, mas a violação a um direito fundamental do cidadão previsto no caput do artigo 37 da Carta da República, a eficiência na prestação do serviço público de conservação da via. Posicionando a lesão do direito fundamental de eficiência como predicado F, não há como sustentar a aplicação da teoria y, sob pena de se admitir a lesão ao predicado F, ou seja, ao direito fundamental reconhecido pela Carta da República como tal, sem a consequência jurídica da reparação. De outro turno, considerando a conservação da via como o próprio predicado F, teríamos que aceitar que o Estado deve ser eficiente, à exceção do caso da conservação da via, quando não precisa assumir este aspecto em seus serviços. Isto, somente para fins de aplicação da teoria y, equivale a relegar a correção do Estado, enquanto padrão último de sua formação, ao desdém, ademais de autonomizar situações fáticas em ambientes não propícios para tanto. Dessa maneira: a) ou se admite o princípio lógico da explosão para fundamentar ora a aplicação da teoria x, ora a teoria y diante do mesmo predicado (a eficiência na prestação do serviço público)24; b) ou se admite que a conservação das vias públicas é um caso especial da eficiência, que não demanda tanta eficiência assim, porque excepcionada da regra geral em função da aplicação da teoria y; c) ou se admite, e daí também advém contraditoriedade, que a conservação das vias públicas não representa caso especial da eficiência, mas mesmo assim adota a teoria y; d) ou, finalmente, admite-se que há apenas um predicado (a eficiência) e, portanto, apenas uma resposta possível, a teoria x, que deriva do próprio padrão de correção e máxima eficiência dos direitos fundamentais. Note-se que o exame da questão condiz com a função que o Estado escolhe exercer. Esta é, de fato, uma opção política e no caso da República Federativa do Brasil, foi feita no sentido de garantir a máxima eficiência dos direitos fundamentais, de modo que não há como admitir posicionamento reverso do Estado, isto é, do falante, no campo jurídico-pragmático, ou eminentemente teórico. 2.4. A função teleológica do Estado diretrizes internacionais de defesa dos direitos humanos e padrões ético-valorativos de condutas socialmente esperadas Conquanto o exercício das funções estatais, de ordem material, seja uma opção política – no caso do Estado brasileiro a máxima efetivação dos direitos fundamentais – a bem da verdade, doravante ao pós-segunda guerra, esta parece ter sido a diretriz verificada em boa parte dos Estados nacionais. Com a Declaração Universal dos direitos do homem e do cidadão parece ter ficado claro que o ser humano não pode ser, em hipótese alguma, coisificado, instrumentalizado, ou utilizado com algum escopo extrínseco. Ao que se pode perceber, existe toda uma estrutura de aquisição, garantia e defesa de direitos que sobrepaira mesmo aos ordenamentos jurídicos nacionais. De fora parte discussões universalistas e relativistas, parece que boa parte dos Estados soberanos aderiu ao quadro normativo e principiológico que garante a proteção dos direitos humanos. No contexto doméstico, esta hipótese já alcança status de conclusão. A partir da Constituição da República de 1988 e dos pactos firmados pelo Brasil na sequência, não há qualquer novidade em sustentar a acomodação de parâmetros valorativos oriundos do cenário 24

Para compreensão do princípio da explosão, sugiro a leitura, entre vários autores, de: SILVESTRE, Ricardo Sousa. Um curso de lógica. Petrópolis: Vozes, 2011, p. 40-43 e, ainda, COPI, Irving M., Introdução à lógica. Tradução de Álvaro Cabral. São Paulo: editora Mestre Jou, 1968, p. 47. Página 14 de 25

internacional ao ambiente brasileiro. Condenações oriundas da Corte Interamericana de Direitos Humanos confirmam esta afirmativa25. Toda esta conjuntura permitiu uma releitura do princípio da soberania a partir da divisão de poderes. Este não é o momento e nem seria possível, por ora, aprofundar o exame desta temática, para a qual remeto o leitor a outras produções26, de modo que utilizarei esta nova conformação da soberania para salientar que mesmo a liberdade estatal, em quaisquer segmentos dos poderes constituídos, encontra-se, senão relativizada por normas que lhe são imediatamente externas, ao menos esquadrinhada nos moldes destas. Esta compreensão converge com a ideia da teoria discursiva, por meio da qual direitos humanos revelam-se de acentuada prevalência, tornando-se algo centrais no ambiente normativo e pragmático da atuação institucional dos Poderes. Philip Pettit, em escrito especificamente voltado ao exame da teoria da liberdade, a conecta, muito propriamente, com o que denomina “interação discursiva”, atrelando-a aos discursos práticos que confluem no sentido do reconhecimento da liberdade apenas se existente a capacidade raciocinativa e relacional27. Diante dessa premissa, lançada no sentido de que existe um quadro internacional que delimita padrões ético-valorativos até mesmo para definir a liberdade, a nível institucional ou individual a partir da construção discursiva, não há como deixar de conceber, como seguimento desta postulação teórica, que o Estado venha a se comportar: i) ou de maneira dissonante ao preconizado no aparato normativo internacional; ii) ou violando padrões discursivos, o que o enviaria para uma espécie de limbo epistemológico; ou iii) concebendo diversas formas de liberdades, uma atenta aos parâmetros internacionais, outra, aplicável internamente, nem tanto. Adotadas quaisquer das condutas delineadas anteriormente, o Estado poderá ter funcionamento pragmático, mas estará eivado em sua estrutura, atuando cegamente, blindado por sua ignorância epistêmica e acreditando nos valores do imediatismo consequencialista. Esta não parece ser a finalidade que a Constituição de 1988, com todas as suas deficiências e méritos, elegeu como objetivo da República. Daí que, saindo um pouco da abstração e testando o raciocínio ao âmbito da realidade dura, não se poderia admitir que, ao mesmo tempo, o Estado postulasse teoricamente os valores mais nobres que enlevam os direitos humanos e, no plano fático e jurisprudencial, venha a adotar postura diversa. Observe-se o que ocorreu no julgamento do caso do AgRg no Agravo de Instrumento nº. 1.349.117-GO. No caso, a mãe de um tenente da polícia militar postulava indenização em decorrência do homicídio praticado contra seu filho por outro militar que havia sido incluído em procedimento administrativo disciplinar conduzido por aquele. A Corte de origem compreendeu que no caso a teoria y deveria ser aplicada, mas, felizmente, a Administração Pública deveria ser condenada ao pagamento de indenização em decorrência da comprovação das ameaças de morte direcionadas ao tenente da polícia militar que, ao final, restou vitimado. O Superior Tribunal de Justiça concordou com a conclusão exarada pela Corte de origem, a Vide, entre outros, o caso nº. 12.051, “Maria da Penha Maia Fernandes, em que o Brasil foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Relatório disponível, na íntegra, em https://cidh.oas.org/annualrep/2000port/12051.htm. Acesso em: 14 abr. de 2016. E, ainda, o caso “Garibaldi Vs. Brasil”, em que o Brasil restou igualmente condenado pela mesma Corte. Sentença disponível na íntegra em http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_203_por.pdf. Acesso em: 14 abr. de 2016. 26 Entre outras: ALBERTO, Tiago Gagliano Pinto. Poder Judiciário e argumentação no atual Estado Democrático de Direito. Rio de Janeiro: editora Lumen Juris, 2012. 27 Esta não é, tampouco, a seara própria para aprofundar o estudo da teoria da liberdade de Philip Pettit. No texto, portanto, apenas são citados referenciais semânticos de passagem que servem de base para a elaboração da teoria. Para conhecimento do trabalho completo, remeto o leitor à obra do autor mencionado: PETTIT, Philip. Teoria da Liberdade. Tradução de Renato Sérgio Pubo Maciel. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2007, p. 96-99. Página 15 de 25 25

aplicação da teoria y, conquanto tenha inadmitido o recurso especial pela impossibilidade de nova análise da matéria probatória. No caso, uma vida foi ceifada e o nexo causal era bem claro no sentido de que o crime fora praticado como represália ao procedimento administrativo outrora conduzido pela vítima. A violação ao direito fundamental era patente e a consequência jurídica, acaso aplicada a teoria x, estaria em consonância com todas as funções do Estado anteriormente mencionadas e, principalmente, com a diretriz axiológica que emana das declarações internacionais a respeito dos direitos humanos. A despeito de todo este quadro, a resolução da questão acabou sendo delimitada por força da aplicação da teoria y ao campo probatório, não se prescindindo da comprovação de que ameaças de morte advieram e, não tendo havido comportamento proativo do Estado, tal inação gerou, como contraponto ao direito fundamental violado, o direito à indenização. Este prisma de visão denota, de maneira bem nítida, a contradição performativa na atuação do Estado. A indenização, ao final verificada, decorreu não da violação ao direito fundamental, mas da ineficiência na comprovação da proteção. Estas duas circunstâncias parecem assemelhadas, mas revelam um abismo valorativo de distância. Fosse o caso de alguma medida protetiva ao direito fundamental ameaçado ter sido comprovada, a indenização não teria trânsito, a despeito de evidentemente lesado o direito em si. A discussão relativa ao direito à vida, no caso dos autos, cedeu passo de maneira bem evidente à refrega pertinente à comprovação ou não de condutas proativas no sentido da sua defesa. Esta é uma forma algo turva de ver o ser humano. A indenização, no caso, era devida pela só configuração do nexo de causalidade – o soldado processado ceifou a vida do policial que conduzia o procedimento administrativo –, sendo absolutamente irrelevante, para fins de reparação, material e imaterial, do direito fundamental lesado, se a Administração Pública adotou ou não medidas tendentes à proteção. A violação ao direito foi apriorística e, apesar de levada a cabo, ficou condicionada a uma situação posterior, a comprovação da inação, ou ação ineficiente, estatal. Portanto, na estrutura da linguagem proposicional que na segunda parte deste artigo examinaremos, o que enseja a indenização estatal não é a lesão o direito, mas a lesão do direito + uma condição que lhe é externa, a comprovação da ineficiência estatal. Assim poderia ser estruturada a argumentação dedutiva lastreada em modus ponens deste caso: Hipótese 01: Lesão ao direito fundamental enseja indenização: D

então C já que W

Operando-se da seguinte maneira: D: premissa fática (o dano sofrido como decorrência da morte); W: premissa normativa (art. 37, § 6º da Constituição Federal); e C conclusão: condenação do ente público ao dever de reparar os danos sofridos em vista do não atendimento de suas responsabilidades legais. Esta estrutura guarda consonância com as diretrizes valorativas internacionais, o âmbito normativo previsto na Carta da República (artigo 37, §6º) e o padrão de correção que confere validez ao sistema jurídico como um todo. Agora vejamos a outra hipótese. Hipótese 02: Lesão ao direito fundamental + comprovação do comportamento estatal ineficiente como elemento apto a gerar o direito à reparação: Página 16 de 25

então C

D+Z já que W

Perceba que o Z se situa na premissa fática, inserindo-se como se de fato tivesse o mesmo status da violação ao direito fundamental. Dito de outro modo: a premissa fática não estará configurada em sua completude se, lesado o direito fundamental, os autos não denotarem comprovação nesse sentido. Mas... a não comprovação significa o não malferimento? Evidente que não, a não ser que se inverta a ordem de prevalência de direitos e nos situemos, enquanto sociedade, para além da racionalidade e do Estado de Direito. Objetos, apenas e não sujeito de direito.

2.5. Conclusões parciais Ao que se pode depreender por ora, a teoria y não se adequa às facetas estrutural, formal, material e teleológica do Estado, tampouco, nestes âmbitos, à legalidade enquanto processo, ao padrão de correção que se exige do ente público para sua própria formação e desenvolvimento institucional e, bem assim, à compreensão do ser humano enquanto sujeito e não objeto de direitos fundamentais. Para ajustar essa rota, a teoria x deve ser chamada a atuar mesmo nos casos em que se verifiquem atos omissivos por parte do ente público. Esta é, todavia, a hipótese, lastreada em uma análise semântica, que responde ao primeiro problema de que trata o texto: a responsabilidade civil por omissão baseada na teoria y se ajusta à formatação do Estado Democrático de Direito a nível semântico? A resposta é, inequivocamente, negativa! Agora, pretendo explorar o exame da temática a partir de visão sintática, a fim de responder a outro problema: existe espaço lógico-normativo para, diante do artigo 37, §6º da Constituição da República, a teoria y ser aplicada? A hipótese: inexiste tal espaço; ao contrário, encontra-se vedada a utilização da teoria y a partir da determinação contida no artigo 37, §6º da Carta da República. Vejamos como se desenvolve a hipótese à luz da lógica deôntica.

3. O APOIO SINTÁTICO 3.1.

Lógica deôntica

Sem tomar partido na disputa pela primazia na criação da lógica de natureza deôntica28, pode-se dizer, com razoável aceitação, que a lógica em foco surgiu em 1951, a partir de artigo “As primeiras reflexões sobre lógica deôntica remontam ao século XIV (Knuuttila, 1981). Em 1926, já sob o impacto da lógica matemática, o austríaco Ernst Mally escreveu um minucioso livro pioneiro sobre a lógica do dever (Mally, 1926). Entre 1937 e 1939, Jørgen Jørgensen, Karl Menger, Albert Hofstadter e J. C. C. McKinsey também escreveram textos nessa área. Porém, por várias razões, todos esses estudos das décadas de 20 e 30 tinham insuficiências importantes (Føllesdal; Hilpinen, 1971). Em 1951, o finlandês Georg Henrik von Wright publicou o artigo "Deontic Logic", também pioneiro e ainda insatisfatório, mas que veio a desempenhar um papel seminal, pelo avanço que representou relativamente aos seus antecessores (von Wright, 1951). Esse artigo de von Wright foi debatido e aperfeiçoado por vários lógicos, daí resultando o assim chamado sistema-padrão, que pode ser considerado como maduro e logicamente plausível (Føllesdal; Hilpinen, 1971)”. GOMES, vol. 49 no.117, 2008. Íntegra do artigo disponível em http://dx.doi.org/10.1590/S0100-512X2008000100002. Acesso em 25 março de 2015. Página 17 de 25 28

de Georg Henrik Von-Wright intitulado “Deontic Logic”29 e partia do reconhecimento da insuficiência dos conceitos modais aléticos (possível, impossível e necessário) para estruturação de tautologias em lógica proposicional. No sistema clássico de Von-Wright30 as variáveis proposicionais (os modais aléticos, portanto) são substituídas por modais deônticos (proibido, permitido e obrigatório), aceitando-se as tautologias como fórmulas válidas do sistema ao momento em que o operador deôntico é seguido por uma expressão de lógica proposicional. Aceitam-se, ainda nesse sistema deôntico clássico, as definições de proibido e obrigatório em termos de permissão; e, ainda, axiomas como a lei da distribuição 31 e o princípio da permissão32. Há bastante material de pesquisa sobre o tema33, mas, em síntese e no que interessa ao presente trabalho, é a virada da lógica deôntica em seu sistema clássico preconizado por VonWright enquanto ainda lógica de normas para o seu posterior aperfeiçoamento, a lógica de proposições normativas, tratada pelo Autor na obra intitulada “Norma y acción”34, que trará subsídios teóricos para enfrentar a questão da insuficiência da teoria y para fins de responsabilização da Administração Pública. A partir do reconhecimento da lógica das proposições normativas, viabilizou-se concluir no sentido da: i) existência de uma lógica de sistema normativo, ao passo que a lógica de normas se situa tão somente no quadrante da lógica normativa; ii) possibilidade de uma mesma ação estar proibida (permitida/obrigatória) em um dado sistema, ao mesmo tempo em que não está proibida (permitida/obrigatória) em outro; iii) do reconhecimento de que o fato de determinada ação estar proibida não é completa, pois, enquanto não se indique de qual sistema normativo se trata, a oração não estará dotada de valor de verdade35. Como decorrência destas asserções, vincula-se a lógica das proposições normativas ao sistema ao qual inserida, conquanto se permita trabalhar, num juízo descritivo, com possibilidades que a mera prescrição não concede. A partir destas concepções, tratarei de escandir, em forma de modais deônticos, o comando emergente do artigo 37, §6º da Constituição da República e a sua compreensão na forma sugerida pela lógica deôntica tratada por Von Wright em “Nomras y acción”. O mencionado dispositivo constitucional institui a aplicação da teoria x ao dispor, de maneira expressa, que: “As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros (...)”. VON WRIGHT, G. H.. Deontic Logic in Mind – A quarterly review of Psychology and Philosophy. New Series, Vol. 60, nº 237. (Jan., 1951), pp. – 1-15. Disponível em: http://wnswz.strony.ug.edu.pl/von%20wright,%20deontic%20logic.pdf . Acesso em 30 março de 2015. 30 Von-Wright variou em muito sua abordagem sobre o tema ao longo dos anos de pesquisa, como salienta: CABRERA, Carlos Alarcón. Las lógicas deónticas de Georg H. von Wright. In: DOXA: Cuadernos de filosofía del derecho, nº. 26, 2003., p. 109-126. 31 P(pvq)↔PqvPq. 32 PqvP-q. 33 PERON, 2009. Disponível em: http://www.cle.unicamp.br/prof/coniglio/Dissertacao%20Newton.pdf. Acesso em 26 março de 2015; CONIGLIO, Marcelo E.. Logics of Deontic Inconsistency. Department of Philosophy, IFCH, and Centre for Logic, Epistemology and The History of Science (CLE). State University of Campinas (UNICAMP), Campinas, SP, Brazil. Disponível em: http://www.cle.unicamp.br/prof/coniglio/Logics%20of%20Deontic%20Inconsistency.pdf. Acesso em 26 março de 2015; LEWIS, David. Papers in ethics and social philosophy. United States of America: Cambridge University Press, 2000; GOMES, Nelson Gonçalves. Um panorama da lógica deôntica. Kriterion [online]. 2008, vol.49, n.117, pp. 9-38. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/kr/v49n117/a0249117.pdf. Acesso em 25 março de 2015. 34 VON WRIGHT. Traducción por Pedro Garcia Ferrero. Madrid: Editorial Tecnos, 1970. 35 Estas ponderações encontram-se detalhadas em BULYGIN, Eugênio. Lógica Deôntica. In: ALCHOURRÓN, Carlos E. Lógica. Madrid: Editorial Trotta, 1995., p. 129-141. Página 18 de 25 29

A sua forma proposicional é, portanto, a seguinte: Od (pTp)36. A determinação no sentido do ressarcimento é conferida pelo modal “O”, de sorte que incidente a norma (Od) em virtude de um estado de coisas (T), produz-se a alteração deste estado de coisas (pTp), ensejando a responsabilização. O máximo que se admite de movimentação, digamos assim, no âmbito da lógica deôntica proposicional, do modal inicialmente utilizado é a sua negação, capaz, na situação jurídica discutida, de afastar a responsabilização. Dito de outro modo: o mesmo modal, no caso o obrigatório “O” permite no máximo a sua negação no corpo da mesma norma, de sorte que a inserção de outro modal, como no caso o permitido “P” que encontra sonância na teoria y aplicada à Constituição brasileira, violaria os princípios da unidade e reciprocidade, como indica Von Wright com a seguinte regra que propõe: “Una norma es la norma-negación de otra norma si, y sólo si, las dos normas tienen carácter opuesto y sus contenidos son las negaciones internas una de la outra.”37. Repare que seja na norma, seja na norma-negação, o mesmo modal está operando. O que não se pode admitir, sob pena de descaracterização do modal e, por conseguinte, da norma, é o intercâmbio de modais diversos no mesmo campo normativo, isto é, no mesmo sistema normativo. Isto não viabilizaria a compreensão do argumento enquanto sólido, porque o estado de coisas não poderia ser alterado de maneira adequada e apta a produzir um resultado normativo ao final consistente. Von Wright até admite a possibilidade de compatibilidade entre normas, o que denomina “conjunto consistente de normas”, mas entre as três condições que propõe para que tal se verifique, está a impossibilidade de contradição interna, verificável quando os modais se confrontam. Especificamente acerca da ausência de consistência no caso do confronto do modal “O”, obrigatório, com o permissivo, “P”, assim é a leitura proposicional do Autor: “Por ejemplo: Los mandatos expresados por O (d (pTp) & d (qTq)) y O (d (pTp) & f (qTq)) son incompatibles y también lo son el mandato expresado por O (d (pTp) & d (qTq) y el permiso expresado por P (d (pTp) & f (qTq)).” 38. Ao que se percebe, não há, pelo exame do dispositivo constitucional, a possibilidade de aplicação de teoria outra senão a x, já que esta é tida como obrigatória pela Constituição da República. Bem por isso, aliás, a teoria y encontra manancial apenas em setor doutrinário, que estabelece a sua casuística, elementos e pressupostos; mas, uma vez aplicada, enseja, ainda que indiretamente, a alteração do modal da norma inserta no art. 37, §6º da Carta Maior, que, em virtude do seu afastamento como decorrência da visão subjetiva da responsabilidade civil da Administração que encontra amparo meramente doutrinário, passa a se revelar opcional e, portanto, capaz de perpetrar visão permitida e, por isso, não vinculante da norma constitucional. Aliás, importante destacar que os modais são mutuamente excludentes, de sorte que tendo sido definido na norma constitucional o modal “O”, obrigatório, deixa-se de lado o modal “P”, permitido39. Dessa maneira, não podendo encontrar sonância na regra constitucional que delibera acerca da responsabilidade da Administração Pública, a aplicação da teoria y não contém força normativa para fazer frente ao modal contido na regra prevista na Constituição da República. O que se tem, em outras palavras, é o confronto entre uma fórmula definida pela Constituição, que conta com estrutura deôntica fincada no modal deôntico “O” (obrigatório) e, de outro lado, uma estrutura doutrinária cujo modal, quiçá existente, ou não pode ser Na forma sugerida por Von Wright, em “Normas y acción”, esclareço. Tratando-se deste Autor, importante pontuar em qual dos momentos da variação da teoria a sugestão lógica se insere, já que ao longo de sua vida recebeu a visão inaugural recebeu aprofundamento e evolução. Assim, faço alusão especificamente à formulação sugerida na obra mencionada. VON WRIGHT, Georg Henrik, op. cit., p. 90. 37 Idem, p. 152. 38 Ibidem, p. 163-157. 39 Ibidem, p. 73-74. Página 19 de 25 36

aplicado de maneira consistente com a regra constitucional, ou não ultrapassa o nível alético, trabalhando com conceitos modais aléticos (possível, impossível e necessário) e não linguagem jurídica que possa traduzir a coerção legal. Assim é que ambas as figuras tratam de coisas absolutamente diversas ao que prevê a regra constitucional, não podendo simplesmente afastar de maneira válida a obrigatoriedade de responsabilização com amparo na teoria x, que comporta previsão na Constituição da República. A teoria y não comporta aplicação, sob o aspecto da lógica deôntica, porque simplesmente não está contida na regra ou variáveis decorrentes do artigo 37, §6º da Carta da República. Em não estando prevista na moldura normativa que confere suporte à responsabilidade civil da Administração Pública, não passa de tentativa doutrinária de limitar o alcance da teoria x atuando em terreno diverso ao que a estabelece e sem legitimidade para tanto. Tentando explicar o que ocorre com o amparo de analogia, a aplicação da teoria y ao modal deôntico que confere validade à aplicação da teoria x prevista no artigo 37, §6º da Carta da República representaria, no mundo natural, colocar asas de borboleta em uma águia e pedir que tentasse voar. Ambas são asas, mas as suas formatações são diversas, assim como os escopos, objetivos e finalidades bem diferenciadas. Se se reconhece que com a formatação deôntica padrão não se encontra a teoria y, esta simplesmente não pode ser aplicada, porque se situa para além do padrão normativo que rege a responsabilidade civil da Administração Pública contida na Constituição da República. Qualquer tentativa em sentido diverso, ou seja, de aplicação da teoria y, equivaleria a alterar a formatação do artigo 37, §6º por uma via diferenciada a qual se encontra estruturado. Nesse caso, a doutrina estaria alterando, de maneira democraticamente ilegítima, a opção do Constituinte por estabelecer a responsabilidade civil eminentemente objetiva da Administração Pública, criando uma variação não contida na regra constitucional. E, ao criar uma regra sem sonância ao previsto na Constituição, não se poderá validamente empreender um raciocínio sintático apto a gerar argumento no sentido sólido. Ou seja, qualquer tentativa da aplicação silogística, ou por dedução, da regra constitucional, com o temperamento da teoria y, estaria gerando um silogismo falacioso, aparentemente correto, mas que, ao final, não encontra nas premissas a garantia da conclusão. A opção constituinte foi muito clara no sentido da responsabilidade civil objetiva da Administração, de modo que a premissa normativa já se encontra na totalidade estabelecida, não podendo ser objeto de relativização sem que, com isso, reste derruída a apriorística forma escolhida de tutelar os direitos do cidadão. E, finalmente, ainda há um ponto a considerar. Como decorrência da aplicação lógica (no sentido deôntico e cuidando da utilização do operador deôntico que a teoria x propicia), todos os casos tratados e resolvidos com base na teoria y também poderiam sê-lo pela teoria x, desde que adotado o critério semântico de formatação do Estado propugnado na primeira parte deste texto. Em assim sendo, acaso se admita que em todos os casos ou a teoria x (que tem previsão constitucional), ou a teoria y (que se pretende inserida no corpo da Constituição) possam ser aplicadas, estar-se-á diante de uma contradição entre premissas normativas. O resultado, como sói descrito em lógica clássica, é, nestes casos, o princípio da explosão, porque violado axioma lógico da não contradição. Em lógica proposicional, denomina-se “princípio da explosão” (α, ⌐ α)├ β, aquele princípio segundo o qual qualquer coisa pode surgir de uma contradição 40. Ou seja: se um Assim o explicita Ricardo Sousa Silvestre: “(...) Intimamente associado a estes dois últimos princípios temos o chamado princípio da explosão (também conhecido como ex contradictione sequitur quodlibet): (...) isto é, de uma contradição do tipo {β, ⌐ β} podemos concluir toda e qualquer fórmula”. Não se considera, neste texto, a compreensão da lógica paraconsistente, que abertamente afasta o princípio da explosão por considerar que a Página 20 de 25 40

mesmo caso pode ser solucionado pela teoria x e pela teoria y, forçoso será convir que: i) ou a teoria y encontra-se albergada pelo artigo 37, §6º, o que não é o caso; ii) ou a teoria x não está definida no artigo 37, §6º, o que também não é o caso; iii) ou ambas estão definidas pelo artigo 37, §6º, o que também não é o caso. Diante de quaisquer das possibilidades mencionadas, temos um artigo constitucional que não encontra qualquer aplicação na casuística envolvendo a responsabilidade civil administrativa, já que sequer define a sua teoria de base. Esta solução é absolutamente disparatada, como se pode perceber; e, por isso, não pode ser aceita. Enfim: seja pela: a) ausência de previsão da teoria y no artigo 37, §6º; b) impossibilidade de conceitos modais aléticos revogarem, relativizarem ou derrogarem modais deônticos; c) pela impossibilidade de gerar um silogismo logicamente válido, em que a conclusão é sustentada pelas premissas; d) pela violação à lei lógica da não-contradição que resultaria da possibilidade simultânea da aplicação da teoria x e y aos mesmos casos; não há como compreender viável a utilização da teoria y sob o aspecto sintático. 3.2.

Conclusões parciais

Portanto, retomando o início do tópico, ao menos na lógica de proposições normativas, tratada por Von Wright na obra intitulada “Norma y acción”, para que, diante do mesmo sistema normativo, a Constituição da República, determinada oração tenha valor de verdade, somente se poderá admitir que um mesmo modal opere. A opção do Constituinte foi, indelevelmente, o modal “O”, obrigatório, conforme se pode depreender da leitura do artigo 37, §6º. Assim, qualquer outra compreensão será: i) ou fundada em modal deôntico diverso; ii) ou fundada em modal alético, sem amparo deôntico; iii) ou fundada em sistema normativo diverso; iv) ou fruto de algo que não consubstancia a opção do Constituinte. Em nenhuma dessas opções se admite a prolação de argumento sólido com base no que se encontra previsto na Carta da República brasileira. Como consequência parcial, considero que também sob o aspecto sintático não base normativa a lastrear a utilização da teoria y para fins de definição da responsabilidade civil administrativa da Administração Pública.

4. NOTAS CONCLUSIVAS Aulis Aarnio, em interessante trabalho intitulado “¿Cambio o evolución?, sugere que os modelos teóricos sugeridos por Thomas Kuhn podem ser aplicados no âmbito da interpretação e dogmática jurídica. Nesta, haverá se empreender diferenciação entre a dogmática teórica e a prática, aquela consistente na releitura e interpretação de textos normativos já consolidados, o que, sob a sua óptica, consubstanciará uma modificação (cambio), que postulará evolução (evolución)41. Esta parece ser precisamente a situação da compreensão do artigo 37, §6º da Carta da República. Não retomarei os argumentos alinhavados, de modo que me limitarei a sustentar, nessa oportunidade, a necessidade de alteração na dogmática jurídica teórica que sempre existiu a respeito deste tema. Prosseguir com a visão subjetiva, amparada pela teoria y

verdade pode ser quantificada em graus. Esta formatação lógica não encontra trânsito nos casos de linguagem bem definida como a explicitada pelo art. 37, §6º, motivo pelo qual não é considerada como uma opção para aplicação da teoria y. SILVESTRE, Ricardo Sousa. Um curso de lógica. Petrópolis: Vozes, 2011., p. 40-43. 41 AARNIO, Aulis. ?Cambio o evolución? In: AARNIO, Aulis; ATIENZA, Manuel; LAPORTA, Francisco J. Bases teóricas de la interpretación jurídica. Madrid: Fundación Coloqui Jurídico Europeo, 2010., p. 81-119. Página 21 de 25

representa perpetrar um modelo de Estado que não se coaduna com o que se verifica atualmente. O assunto demanda, evidentemente, maior digressão, mas se pequena fração da problemática tiver sido, à suficiência, exposta, o texto terá atingido seu objetivo primário.

5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AARNIO, Aulis. ?Cambio o evolución? In: AARNIO, Aulis; ATIENZA, Manuel; LAPORTA, Francisco J. Bases teóricas de la interpretación jurídica. Madrid: Fundación Coloqui Jurídico Europeo, 2010. ALBERTO, Tiago Gagliano Pinto. Poder Judiciário e argumentação no atual Estado Democrático de Direito. Rio de Janeiro: editora Lumen Juris, 2012. ALEXY, Robert. Conceito e validade do direito. Tradução de Gercélia Batista de Oliveira Mendes. São Paulo: Martins Fontes, 2011. ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo. Tradução de Luís Afonso Heck. 4ª ed. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2015. ALEXY, Robert. Direito, razão, discurso. Estudos para a filosofia do direito. Tradução de Luís Afonso Heck. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015. ALEXY, Robert. Princípios formais e outros aspectos da Teoria Discursiva do Direito. Tradução de Alexandre Travessoni Gomes Trivisonno, Aziz Tuffi Saliba e Mônica Sette Lopes. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014. ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação jurídica. A Teoria do Discurso racional como teoria da fundamentação jurídica. Tradução de Zilda Hutchinson Schild Silva. Rio de Janeiro: Forense, 2011. ALEXY, Robert. Teoria Discursiva do Direito. Tradução de Alexandre Travessoni Gomes Trivisonno. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015. AUSTIN, John Langshaw. Como hacer cosas con palavras. Palabras y acciónes. Traducción de Gernaro Carrió y Eduardo Rabossi. Buenos Aires: Ediciónes Páido SAIFC, 1981. BERLIN, Isaiah. Dos conceptos de libertad y otros escritos. In: filosofia, Alianza Editorial, Madrid, 2005, 160 páginas. http://docplayer.es/173340-Dos-conceptos-de-libertad-y-otros-escritos-isaiah-berlin-filosofiaalianza-editorial-madrid-2005-160-paginas-jose-maria-lopez-jimenez.html BULYGIN, Eugênio. Lógica Deôntica. In: ALCHOURRÓN, Carlos E. Lógica. Madrid: Editorial Trotta, 1995. CABRERA, Carlos Alarcón. Las lógicas deónticas de Georg H. von Wright. In: DOXA: Cuadernos de filosofía del derecho, nº. 26, 2003.

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Tradução

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