RESSENTIMENTO, DESESPERO, MORTE: TRAGÉDIAS IMPRESSAS NOS PERIÓDICOS OITOCENTISTAS

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RESSENTIMENTO,

DESESPERO,

MORTE:

TRAGÉDIAS

IMPRESSAS

NOS

PERIÓDICOS OITOCENTISTAS.1

Estevão de Melo Marcondes Luz*

Dentre as muitas matérias impressas nas páginas dos periódicos oitocentistas é possível encontrar informações oficiais dos trabalhos da Assembleias Legislativas Provinciais, das câmaras municipais, informações dos trabalhos parlamentares na Corte, assim como artigos científicos, cartas enviadas por seus correspondentes, propagandas de estabelecimentos comerciais e algumas notícias bem curiosas que retratavam aspectos variados do cotidiano daquela população. O presente texto busca justamente mapear, contextualizar e analisar algumas destas passagens, com especial atenção a fatos que classifico como histórias tristes, passagens trágicas e chocantes que foram divulgados pela imprensa periódica. Em 24 de janeiro de 1856, o jornal mineiro O Bom Senso, noticiava um acontecimento dramático. A matéria trazia o título de “O dedo de Deus” e relatava o impressionante desfecho de um ataque desesperado de uma mulher. Este fato “horroroso e exemplar teve lugar no hospital da cidade de São João Del Rei” e era divulgado “não para divertir aos curiosos, mas para que possa dar mais uma ideia dos horrores a que estão sujeitas as criaturas no momento em que Deus descarrega sobre elas o castigo merecido pela transgressão de seus divinos preceitos”. (O BOM SENSO, 1856: N.377) A mulher de aproximadamente 40 anos havia sido recolhida para o hospital daquela cidade e segundo foi relatado “sua vida e costumes nunca atestarão boa morigeração”. Já hospitalizada ela teria dito aos médicos que “o diabo exigia que ela tirasse naquele dia ambos os olhos e a língua! O médico conheceu que se achava a tal mulher em estado de algum delírio”. O doutor receitou alguns medicamentos e orientou que “por cautela fosse ela posta 1

Este texto teve sua versão inicial apresentada na IX Semana de Museus e publicada no livro deste evento realizado no Museu Histórico Municipal “José Chiachiri” em Franca (SP), tendo sido reformulado e complementado posteriormente. * Doutorando em História pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP/Franca). Bolsista Capes.

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em uma camisola (aparelho de conter os loucos)”. Porém, o estado daquela mulher piorou muito e ela conseguiu soltar-se daquela camisa de força que conseguia conter até mesmo “homens robustos que no estado de loucura parecem redobrarem-se de forças”. Com os braços livres a mulher “lançou as mãos aos olhos e tirou-os”. Foi contida, mas sua fúria insana não parou por ai e em seguida ela mordeu e arrancou metade da própria língua. (O BOM SENSO, 1856: N.377) A cena chocante não terminou por ai e a mulher enlouquecida,

não podendo mover os braços movia todo o corpo horrivelmente, dando de contínuo com a cabeça pelas paredes, quebrando os dentes, e assim evitou de dilacerar o resto da língua, pois era todo o seu intento, para cumprir a ordem do diabo, segundo dizia ela. Depois de longo lidar caiu em profundo abatimento e não tardou recobrar os sentidos: e então achando-se em trevas, passou a dirigir com pungentes e dolorosas exclamações a Virgem Senhora das Dores padroeira do hospital, implorando o perdão de suas culpas, e das iniquidades que praticou no decurso de uma vida passada no lodaçal da devassidão, e da maldade. (O BOM SENSO, 1856: N.377)

Alguns termos utilizados pelo redator do periódico são bem significativos e possibilitam questionamentos sobre a vida daquela pobre mulher, assim como da própria sociedade em que ela vivia. Depois de passar o momento de loucura e de recobrar a sua consciência a mulher revelou a motivação para tamanha agressividade. Disse que seus olhos

presenciaram tantas maldades, que tanto espreitaram a vida do próximo; a língua que tanto difamou a honra e o recato da donzela, que blasfemou contra o Criador, que com malícia, e não se temendo a excomunhão da Igreja, impediu um casamento, ou fê-lo dissolver com calunias, e muitas outras coisas. (O BOM SENSO, 1856: N.377)

Tais motivações foram ironicamente exploradas pelo jornal que, apelando a certo moralismo, busca impressionar ainda mais seus leitores, não bastasse a própria história horrorosa. A opinião do jornal era fruto da mentalidade de uma época em que ainda estavam presentes alguns resquícios patriarcais. Em relação às mulheres, tais heranças eram ainda mais acentuadas. O autor do texto informa ainda que visitou aquela mulher tempos depois do 2

ocorrido. Ela é retratada com termos depreciativos como incestuosa, suicida, terrível pecadora, sem respeito e sem religião. Declara ainda, para deleite de seus leitores, alguns detalhes sórdidos da vida da pobre mulher. Sabei que é uma mulher sem religião e como tal sem respeito ao Criador; sabei que é uma mulher, cujas horas de vida foram manchadas pelo mais asqueroso pecado! Sabei que esta mulher foi incestuosa (segundo nos afirmam) com seu próprio pai; sabei que o seu ciúme foi causa de sua própria mãe descer à sepultura: um homicídio se cometeu, e com ele, ó desgraça, um infanticídio, que todos deram um matricídio, um fratricídio! (O BOM SENSO, 1856: N.377)

O triste drama desta mulher estava marcado por questões bastante delicadas. Uma suposta relação incestuosa com o pai pode ser pensada por diferentes ângulos. Pode significar que ela fosse abusada pelo mesmo, talvez ameaçada e impossibilitada de contar a alguém tal situação. Esta possibilidade é bastante provável, especialmente levando-se em conta o contexto social da época e a delicada posição da mulher na sociedade. Este pai poderia ser um indivíduo violento e a posição de mulher e filha a impediriam de contestar ou relatar tal situação sem que fosse submetida a um julgamento prévio das pessoas, sem constrangimento. Existe ainda a possibilidade de que esta mulher sofresse de sérios problemas mentais, de algum distúrbio psiquiátrico, e que possivelmente, como disse o jornalista, tenha realmente matado a mãe em função do ciúme com o pai. É preciso relativizar este acontecimento dramático, pois além de toda a problemática relativa às características sociais e culturais da época, da frágil posição da mulher naquela sociedade, o relato ainda é fruto do julgamento realizado pelo autor do texto e seus interesses na divulgação do fato. O termo “infanticídio” sugere que a mulher, além de ter supostamente matado sua mãe, teria ainda causado a morte do filho incestuoso. Além disto, ela teria sido a causa do fim de um casamento. A todas aquelas maldades por ela realizadas somava-se com gravidade o fato de ser uma mulher sem religião, algo particularmente grave em uma sociedade extremamente religiosa. Outra história chocante foi publicada com o sugestivo título de “Assassinato horroroso”. Trata-se de um crime bárbaro, minuciosamente premeditado e com detalhes assustadores. Os envolvidos, uma mulher casada, seu marido e o amante. A tal mulher convidou o amante para jantar em sua casa dizendo que o marido não estaria. Mas antes do 3

amante chegar ela friamente mata o marido com um golpe de machado, abre seu peito e arranca o seu coração. O pior ainda estava por vir. Ela cozinha o coração do marido e deixa o jantar pronto para receber o amante. O que acontece a seguir? Bem, o jornal detalha com mais intensidade a chocante cena.

Chega o amante, ela lhe apresenta o coração de seu marido guisado, mas não quis cear! Logo que o amante acaba de devorar o coração do infeliz ela lhe pergunta – que tal esta o guisado? – Ele respondeu que bem feito; ela então o conduz ao sitio onde tinha seu marido com o peito aberto e lhe diz: – Olha, vê-lo ai esta meu marido, e o que tu comeste foi o seu coração!!! – O amante se horroriza, corre, da parte à justiça e este monstro com figura de mulher é capturado!!! (O UNIVERSAL, 1840: N.125)

O autor desta matéria termina a sua dramática narrativa afirmando que “treme-nos a pena ao exarar fatos tão horrorosos”. De acordo com ele “a natureza se horroriza, a filosofia esmorece, e um grito geral pede pronto castigo a ver se para o carro da desmoralização”. [...] “Santo Deus, aonde irá isto parar!!!” (O UNIVERSAL, 1840: N.125) O periódico Correio Mercantil, instructivo, político, universal publicou em 1848 os detalhes de mais um terrível assassinato cometido contra outra mulher. Este caso deu-se na França e foi publicado na seção Exterior deste periódico. O crime envolveu uma nobre família francesa em uma trama sinistra que culminou com a morte da duquesa de Praslin. O assassino foi seu próprio esposo.

Entrara no quarto de sua mulher, não precipitando-se violentamente sobre ela com um punhal na mão, nem procurando chegar-se sem bulha ao seu leito, para ali surpreende-la descarregando-lhe os golpes do instrumento; sim entrara e se aproximara dela sem nenhum mistério. Longe de aterra-la tinha pelo contrario procurado reanimar-lhe sua ternura; e no momento em que ela se lhe rendera com inteira confiança, por um movimento rápido, procurara ele passar-lhe um laço por cima da cabeça, e em roda do pescoço, para enforca-la. Querendo deste modo fazer acreditar depois em um suicídio. O laço porém não tendo sido bem [testamente] dirigido, nem habilmente colocado, pode a duquesa repulsa-lo; e foi então que o duque vendo que se não tinha saído bem com aquela tentativa, e que ela o ia deitar a perder, recorreu numa espécie de delírio furiosa às outras armas com que ia precavido. Um rastro de sangue apareceu em volta de todo o quarto: a duquesa em uma luta longa, e sobremodo desigual, ora fugia diante do assassino que ai a feria pelas costas, outrora sentindo-se apanhada e ferida fazia-lhe frente, e derrubava os trastes para coloca-los entre ambos, ao passo que as punhaladas lhe rasgavam os braços, o pescoço, o peito. (CORREIO MERCANTIL, 1848: N.36)

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Na calada da noite o marido enlouquecido por algum motivo ceifou a vida de sua própria esposa num crime premeditado, que havia sido tentando anteriormente outras vezes sem que a morte da mesma se consolidasse. O duque empregou todos os meios possíveis para disfarçar a autoria do assassinato, tendo até mesmo incriminado outras pessoas que chegaram a ser presas até que a verdade fosse descoberta. O Hospital de Misericórdia da cidade do Rio de Janeiro foi palco de outro assassinato. Estava internado naquela instituição um senhor chamado João Evangelista de Alvarenga, natural da cidade de Campanha, “que havia sido recolhido por alienado”. Ele “estava sendo curado de uma ferida no pé pelo enfermeiro do mesmo hospital a quem cravou uma faca no peito, arrancando-a da mão do ajudante”. O enfermeiro morreu imediatamente após o golpe. Triste passagem cujas motivações e detalhes, além destes narrados pela imprensa periódica, nunca saberemos. (O UNIVERSAL, 1839: N.70) Não faltavam na imprensa também histórias de escravos assassinados por seus senhores, assim como relatos de senhores assassinados por seus escravos. As relações de tensão, agressividade e conflito no período da escravidão são sintomas tristes de um momento ainda mais triste da nossa história. Tal violência era, portanto, inevitável. Por volta de 2 de novembro de 1835 um assassinato brutal ocorreu no distrito de Bento Rodrigues, próximo a cidade de Mariana, em Minas Gerais. Um senhor proprietário, cuidadosa e intencionalmente retratado como “um cidadão estimável, um pai de família”, ia de sua fazenda para o arraial quando “foi acometido por uma porção de negros, entre os quais três escravos seus que andavam fugidos, e por eles barbaramente ferido, mutilado, quebrados os ossos”. (O UNIVERSAL, 1835: N.2052) Os escravos estavam lançados à própria sorte. A violência que sofriam constantemente por parte de seus senhores, por parte das forças públicas, assim como pela população em geral, em função da situação medíocre em que se encontravam na sociedade, era vez ou outra extravazada também na forma de violência. A crueldade sem limites era em certos momentos combatida por eles com a mesma fúria. Nas proximidades da cidade de Ouro Preto, em 1835, foram encontrados os restos mortais de um escravo que havia fugido acorrentado. O fato era comunicado por um correspondente do jornal O Universal indignado com a situação 5

desumana dos escravos. “É necessário prezar mais a vida destes infelizes, que não tem alguma proteção, contra bárbaros senhores, que tratam melhor suas bestas, que aos míseros escravos”. Ele pedia ainda que as autoridades responsabilizassem o senhor e que a prática de acorrentar os escravos fosse proibida, pois assim exigiam a “filantropia, a humanidade, os direitos do homem”. Lamentando a sorte daquele escravo, que provavelmente cometeu suicídio devido à situação desprezível e desesperadora em que se encontrava, o autor pressionava as autoridades e comunicava que estaria vigilante quanto à investigação do fato. (O UNIVERSAL, 1835: N.2037) A condição de vida dos escravos era sabidamente cruel, sua expectativa de vida era reduzida e as punições físicas e morais eram frequentes, motivos pelos quais, vez ou outra, cometiam crimes bárbaros contra aqueles que os tinham como mercadoria e propriedade. A partir da segunda metade do século as “elites intelectuais veiculavam na imprensa ideias que exaltavam o progresso, a civilização e a necessidade de eliminar a escravidão, responsável pelo atraso do império, assim como os resquícios da sociedade colonial”. A imprensa se tornava um “espaço privilegiado para divulgação destas ideias” que visavam “sensibilizar os setores escravistas sobre as consequências nefastas decorrentes da manutenção do cativeiro”, pois “fugas, revoltas, assassinatos de feitores e de senhores intensificavam-se”. (MACHADO, 2006: 142) Outra cena lamentável ocorreu em 24 de julho de 1875 em uma fazenda na província de Minas Gerais. A mulher e a filha do proprietário de apenas 10 anos de idade haviam saído para um passeio pela fazenda “por um caminho deserto que margeia o ribeirão do Angú” e tinham como única companhia uma cadelinha preta. No caminho tiveram um encontro fatal com “um crioulo de 18 anos, de nome Sabino, escravo da dita fazenda que de caso pensado achava-se de emboscada por essas paragens”. (CEARENSE, 1875: N.58)

Com uma cacetada dada na fronte da inocente menina deita-a por terra e depois com mão certeira fere-a no coração! Em balde de joelhos a coitadinha lhe diz súplice: Por que me queres matar, Sabino, nunca te fiz mal? Em seguida fere de morte a cadelinha, que com seus latidos tentava defender as vitimas de tão desumano algoz. Morta a menina o bárbaro dirige sua sanha para a outra senhora, que já tinha recebido um golpe na mão direita na ocasião em que, segurando a faca, procurava arrancá-la das mãos do assassino para obstar a morte da inocente menina. De joelhos lhe implora a nova vitima que a poupe e que em todo caso preferia morrer afogada no rio que a algumas braças caia em cachoeira com fragor medonho, a

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morrer ferida, pelo mesmo instrumento ainda gotejando do sangue de sua infeliz cunhadinha. A esta suplica cheia de angustia, fácil de imaginar, um frouxo lampejo de compaixão brilha na alma empedernida do assassino, e depois de uma hora de luta desigual e heroica, durante a qual a faca é arrebatada e arremessada para longe, a infeliz dama é arrastada pelos cabelos e lançada ao rio. (CEARENSE, 1875: N.58)

A mulher não veio a falecer. Ela foi levada pelo rio para longe daquela cena horrível que presenciara. Ironicamente a correnteza do rio, que ela desejou que a matasse afogada, a levou tão rapidamente que não teve tempo de se afogar. Foi encontrada quando já era noite desacordada sobre uma pedra. “É indescritível a cena de consternação e dor da família ao receber em seu teto o cadáver da pobre menina exangue e o corpo lacerado de sua denodada companheira”. A suspeita já recaia sobre o desafortunado escravo Sabino que havia desaparecido. O subdelegado de polícia foi avisado e se deslocou até a fazenda para realizar os exames e colher as provas. Ele permaneceu na fazenda esta noite e foi quando o astuto Sabino, “por uma ginástica das mais hábeis conseguiu penetrar de noite na casa de engenho de socar café, onde dormiam o subdelegado e os dois peritos, e sem ser pressentido apoderase e arma-se de uma pistola de dois canos”. Os próprios familiares das vítimas não sabiam dizer o motivo de ele não ter praticado outro crime naquela noite. Ele foi preso no dia seguinte, não sem muito resistir, e “com o maior cinismo tudo confessou sem mostrar-se arrependido”. (CEARENSE, 1875: N.58) O destino do escravo Sabino estava selado. Pego pela policia o escravo não tinha chance alguma de sair ileso. A elite de toucinheiros2 à qual ele estava submetido certamente não pouparia sua vida, especialmente pensando que a punição deveria servir de exemplo aos demais escravos. A pena capital seria certamente imposta não fosse o destino, que guardava um final ainda mais triste e violento para o desafortunado escravo.

Quando o subdelegado no terreiro da fazenda interrogava-o para descobrir se havia alguns cúmplices entre seus parceiros, começa a acudir de longe e de diversas localidades uma multidão de pessoas de todas as classes e nacionalidades, atraídas 2

Assim se refere Wlamir Silva a esta elite “representante da sociedade de abastecimento mineira”. O termo seria fruto de um insulto proferido por um deputado da província do Rio de Janeiro aos colegas mineiros em 1831. Ver sobre o tema o texto do referido autor intitulado: “A imprensa e a pedagogia liberal na província de Minas Gerais (1825-1842)”. In. NEVES, Lúcia Maria Bastos P. das; MOREL, Marco; FERREIRA, Tania Maria Bessone da C. (orgs.). História e imprensa: representações culturais e práticas de poder. Rio de Janeiro: DP&A, Faperj, 2006, p.40.

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pelo clamor de um crime revestido de tanta atrocidade. Aos gritos, ameaças, impropérios, vias de fato, em uma palavra, a indignação levada ao seu auge, de uma multidão que infrene queria com suas próprias mãos vingar o sangue inocente derramado, a autoridade não pode, apesar de todos os esforços, já persuasivos, já coercitivos, manter a ordem e fazer respeitar a lei. Foi baldado o esforço. O povo indignado arrancou o algoz da égide da justiça e pouco tempo depois fê-lo cadáver informe. (CEARENSE, 1875: N.58)

Casos como estes deixam transparecer o uso de uma violência extrema. Quais seriam as causas de atos extremos como estes. Levado por este questionamento fui buscar algumas explicações, tendo inicialmente uma possível ideia das motivações e sentimentos que geraram tais acontecimentos. Os escravos, em especial, tinham uma condição social única e estavam constantemente submetidos às mais variadas formas de humilhação e violência, como vimos anteriormente. O ressentimento é bastante compreensível em situações traumáticas como estas. Embora a noção de ressentimento seja difícil de precisar, David Konstan analisa as relações entre os três tipos de ressentimentos em seus estudos, o psicológico, o social e o existencial. O ressentimento seria “um sentimento duradouro, não fugaz: o ressentimento é cultivado e acalentado”. A ideia é que seria algo alimentado ao longo do tempo com base em humilhações – e aqui podemos pensar em situações humilhantes como inferioridade, desfeita, ofensa, preconceito, discriminação, constrangimento, submissão – e não poderia ser descrito como “uma breve explosão de raiva”. (KONSTAN, 2004: 61) O ressentimento seria então,

uma atitude mental duradoura, causada pela repressão sistemática de certas emoções e afetos que são componentes normais da natureza humana. A repressão dessas emoções leva a uma tendência constante de se permitir atribuir valores incorretos e juízos de valor correspondentes. As emoções e afetos primordialmente referidos são vingança, ódio, malicia, inveja, o impulso a diminuir e desprezar. (KONSTAN, 2004: 62)

Tal definição parece esclarecer, até certo ponto, as motivações que levaram o escravo Sabino a cometer tamanha barbárie contra a criança e a mulher. As condições de vida humilhantes e a repressão sistemática de sentimentos e situações degradantes teriam se cristalizado e naquele momento Sabino acabou por extravazar toda sua condição, projetando 8

naquelas mulheres o seu ressentimento contra tal situação, e que é significativamente diferente da reação que tiveram as pessoas que o espancaram até a morte. O ressentimento, como ressalta Claudine Haroche, surgiria ainda como “uma resposta inconsciente, efeito longínquo de uma angústia ignorada, recalcada, ligada ao sentimento ameaçador de uma negação da existência”. (HAROCHE, 2004: 340) Outro episódio triste publicado pelo jornal O Universal ocorreu no Rio de Janeiro em 1839. Na Fortaleza da Lage estavam presos quatro “réus condenados a pena última pelos crimes de assassinato e roubo”. Eles aguardavam o fatídico dia, mas quando os soldados foram buscá-los para a execução os mesmos estavam “livres dos machos dos pés por meio de uma lima que conseguiram introduzir na funda de um deles; e com esta lima e os pedaços de ferro fizeram a mais porfiada resistência instigando os soldados a que os matassem com tiros”. Ordenou o chefe de polícia que os mesmos fossem isolados em uma cela “para reduzilos pela fome e sede a entregarem-se”. Mas eles pareciam preferir por fim às suas próprias vidas do que se entregar. No dia da execução, quando abriram a cela, “um dos condenados procurou arrojar-se fora da porta e caiu quase desfalecido pela perda de sangue de uma ferida que acabava de fazer no pescoço tentando suicidar-se”. Em seguida os soldados puderam ver que “os outros três estavam mortos e degolados; uns aos outros se tinham tirado a vida com uma navalha”. Momentos de completo desespero viveram estes homens isolados dentro da cela tendo como certa a morte próxima. Aquele que havia caído desmaiado fora da cela não morreu na hora, mas foi executado cumprindo-se a pena a que tinha sido condenado. (O UNIVERSAL, 1839: N.24) Algumas passagens dos jornais ainda anunciavam as mortes de diferentes pessoas. Histórias não tão trágicas, mas não menos tristes, eram publicadas geralmente em uma seção denominada Necrologia. Causavam forte comoção nos leitores e em alguns casos geravam poemas, elogios e biografias que eram publicadas sobre os mortos. Assim foi anunciada a morte do jovem Antonio Cesário Alves Jardim de apenas 12 anos de idade. “Prepara-se para uma caçada, carrega a arma e cautelosamente encosta-se à mesma: de repente dispara-se esta e toda a carga emprega-se sobre o coração da infeliz vitima”. A morte do jovem, que morava na vila de Grão Mogol, no norte de Minas Gerais, e estudava no Seminário de Mariana, foi um golpe terrível para seus pais e amigos. (O UNIVERSAL, 1842: N.31)

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Em outra ocasião divulgava-se a morte de D. Anna Joaquina Perpétua ocorrida no dia 14 de outubro de 1840 na cidade do Serro “por efeito de um cancro no seio que por longo tempo a martirizou, sem minguar nunca sua constância heroica e santa resignação”. O texto ressaltava as qualidades da senhora e seus hábitos familiares como qualidades a serem invejadas pelas mulheres. D. Anna era realmente uma mulher especial, pois além de todas suas qualidades tinha uma deficiência física que não lhe permitia andar. Era uma pessoa de grande conhecimento musical, que “tocava otimamente flauta, e com aplauso viola, e salteio”. Tinha prática na arte dos bordados tendo ensinado “suas patrícias esta delicadeza e perfeição de bordar em pano branco que tanta reputação e glória tem trazido as bordadeiras da cidade do Serro”. Um fato ainda mais interessante envolve esta senhora. Ela tinha a destreza de “fazer flores artificiais; com especialidade, as rosas imitando esta flor, seus botões, folhas, espinhos e ramos, com tal propriedade que encantava”. Por este motivo ela conheceu pessoalmente o naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire, que teria levado para Paris alguns exemplares de seu trabalho. (O UNIVERSAL, 1841: N.05) Em outra passagem narra-se a morte de D. Isabel Jacinta de Oliveira Campos durante as comemorações das festas de São João realizadas na fazenda da família. “A 23 de junho de 1840, estando assistindo a fogueira de S. João [...] junto de seu marido, parte de seus filhos e pessoas de sua amizade, foi acometida de um antigo incomodo que sofria”. Tratava-se de uma hérnia umbilical e apesar de todos os recursos que lançou mão seu filho “Ignacio Alvarez da Silva, professor em medicina, não pode vedar o estrangulamento, nem salvar a vida de sua mãe”. Três dias depois, “tendo recebido todos os sacramentos, entregou sua alma ao Criador, deixando a seu esposo, seus filhos e mais família na mais profunda dor e aflição”. (O UNIVERSAL, 1840: N.81) O uso da linguagem figurativa adotado pelos jornalistas do século XIX, assim como o emprego de narrativas carregadas de sentimento, de juízo de valor, eram utilizados como uma forma de causar emoção nos leitores, assim como de se combater ou defender alguém numa determinada situação, ou também de desqualificar, de difamar e comover o público. O desenvolvimento da imprensa, portanto, foi central neste processo e possibilitou a formação de uma cultura dos impressos. A sociedade, marcada por uma forte oralidade, foi lenta e gradualmente se transformando com o desenvolvimento da imprensa. As relações entre as pessoas mudaram, assim como a relação entre as pessoas e as instituições. 10

Referências Fontes: Cearense: Orgão Liberal. Edição 58 de 25 de julho de 1875. Correio Mercantil, Instructivo, Político, Universal. Edição 36 de 06 de fevereiro de 1848 (FBN). O Bom Senso. Edição 377 de 24 de janeiro de 1856; edição 381 de 11 de fevereiro de 1856. O Universal. Edição 2037 de 28 de setembro de 1835; edição 2052 de 02 de novembro de 1835; edição 24 de 22 de fevereiro de 1839; edição 70 de 24 de abril de 1839; edição 81 de 17 de julho de 1840; edição 125 de 28 de outubro de 1840; edição 05 de 11 de janeiro de 1841; edição 31 de 14 de março de 1842. Bibliografia: ARAUJO, Valdei Lopes de & SILVA, Weder Ferreira da. “Fragmentos de um periódico perdido: a Sentinela do Serro e o sentido da ‘republicanização’ (1830-1832)”. Varia História, Belo Horizonte, v.27, n.45, p.75-95, jan./jun. 2011. BRESCIANI, Stela & NAXARA, Márcia (orgs.). Memória e (res)sentimento: indagações sobre uma questão sensível. Campinas: Editora da Unicamp, 2004. CAMISASCA, Marina & VENÂNCIO, Renato Pinto. “Jornais mineiros do século XIX: um projeto de digitalização”. Cadernos de História, Ouro Preto, ano II, n.01, p.1-8, 2007. CARVALHO, Marcus J. M. de. “A imprensa na formação do mercado de trabalho feminino no século XIX”. In. NEVES, Lúcia Maria Bastos P.; MOREL, Marco & FERREIRA, Tania Maria Bessone da C. História e imprensa: representações culturais e práticas de poder. Rio de Janeiro: DP&A; Faperj, 2006. HAROCHE, Claudine. “Elementos para uma antropologia política do ressentimento: laços emocionais e processos políticos”. In. BRESCIANI, Stela & NAXARA, Márcia (orgs.). Memória e (res)sentimento: indagações sobre uma questão sensível. Campinas: Editora da Unicamp, 2004. KONSTAN, David. “Ressentimento – História de uma emoção”. In. BRESCIANI, Stela & NAXARA, Márcia (orgs.). Memória e (res)sentimento: indagações sobre uma questão sensível. Campinas: Editora da Unicamp, 2004. KOUBI, Geneviève. “Entre sentimentos e ressentimento: as incertezas de um direito das minorias”. In. BRESCIANI, Stela & NAXARA, Márcia (orgs.). Memória e (res)sentimento: indagações sobre uma questão sensível. Campinas: Editora da Unicamp, 2004. MACHADO, Humberto Fernandes. “Imprensa e identidade do ex-escravo no contexto do pós-abolição”. In: NEVES, Lúcia Maria Bastos P.; MOREL, Marco & FERREIRA, Tania Maria Bessone da C. História e imprensa: representações culturais e práticas de poder. Rio de Janeiro: DP&A; Faperj, 2006. 11

MOREL, Marco. “Independência no papel: a imprensa periódica”. In. JANCSÓ, István (org.). Independência: história e historiografia. São Paulo: Hucitec, 2005. NAXARA, Márcia Regina Capelari. “Pensando origens para o Brasil no século XIX: história e literatura”. História: Questões & Debates, Curitiba, n.32, p.47-64, 2000. NEVES, Lúcia Maria Bastos P.; MOREL, Marco & FERREIRA, Tania Maria Bessone da C. História e imprensa: representações culturais e práticas de poder. Rio de Janeiro: DP&A; Faperj, 2006. SILVA, Wlamir. “A imprensa e a pedagogia liberal na província de Minas Gerais (18251842). In: NEVES, Lúcia Maria Bastos P.; MOREL, Marco & FERREIRA, Tania Maria Bessone da C. História e imprensa: representações culturais e práticas de poder. Rio de Janeiro: DP&A; Faperj, 2006.

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