Ressonâncias, Reflexos e Confluências: Três Maneiras de Conceber as Semelhanças Entre o Sonoro e o Visual em Obras do Século XX (Tese de Doutorado)

Share Embed


Descrição do Produto

   

UNIVERSITÉ PARIS-SORBONNE  

ÉCOLE DOCTORALE V : CONCEPTS ET LANGAGES ED 0433 Laboratoire de recherche : Observatoire Musical Français

THÈSE pour obtenir le grade de DOCTEUR DE L’UNIVERSITÉ PARIS-SORBONNE Discipline/ Spécialité : Musique et Musicologie Présentée et soutenue par :

Alexandre SIQUEIRA DE FREITAS le 5 septembre 2012

Résonances, reflets et confluences : trois façons de concevoir les ressemblances entre le sonore et le visuel dans des œuvres du XXe siècle Sous la direction de : Madame Michèle BARBE, professeure à l’Université Paris-Sorbonne Monsieur Henrique SOARES MONTEIRO, professeur à l’Universidade de São Paulo Membres du jury : Monsieur Jean-Yves BOSSEUR, directeur de recherche au C.N.R.S. Madame Yara Borges CAZNOK, professeure à l’Universidade Paulista Júlio de Mesquita Filho Madame Laurence LE DIAGON JACQUIN, professeure à l’Université Rennes 2 Monsieur Mário RODRIGEZ VIDEIRA JÚNIOR, professeur à l’Universidade de São Paulo

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO Escola de Comunicações e Artes Departamento de Música UNIVERSITÉ PARIS-SORBONNE École Doctorale V « Concepts et Langages » Musique/Musicologie

ALEXANDRE SIQUEIRA DE FREITAS

RESSONÂNCIAS, REFLEXOS E CONFLUÊNCIAS: Três maneiras de conceber as semelhanças entre o sonoro e o visual em obras do século XX

São Paulo 2012

ALEXANDRE SIQUEIRA DE FREITAS

RESSONÂNCIAS, REFLEXOS E CONFLUÊNCIAS: Três maneiras de conceber as semelhanças entre o sonoro e o visual em obras do século XX

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de PósGraduação em Música, Área de Concentração: Processos de Criação Musical, na Linha de Pesquisa: Técnicas Composicionais e Questões Interpretativas, da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, como exigência parcial para a obtenção do Título de Doutor em Música, sob a orientação do Prof. Dr. Eduardo Henrique Soares Monteiro e Prof. Dra. Michèle Barbe.

São Paulo 2012

FOLHA DE APROVAÇÃO Alexandre Siqueira de Freitas Ressonâncias, Reflexos e Confluências: três maneiras de conceber semelhanças entre o sonoro e o visual em obras do século XX. Tese de Doutorado apresentada ao Programa de PósGraduação em Música, Área de Concentração: Processos de Criação Musical, na Linha de Pesquisa: Técnicas Composicionais e Questões Interpretativas, da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, como exigência parcial para a obtenção do Título de Doutor em Música. Aprovada em: Banca examinadora Prof. Dr. _____________________________________________________________ Instituição:__________________________ Assinatura: _______________________ Prof. Dr. _____________________________________________________________ Instituição:__________________________ Assinatura: _______________________ Prof. Dr. _____________________________________________________________ Instituição:__________________________ Assinatura: _______________________ Prof. Dr. _____________________________________________________________ Instituição:__________________________ Assinatura: _______________________ Prof. Dr. _____________________________________________________________ Instituição:__________________________ Assinatura: _______________________ Prof. Dr. _____________________________________________________________ Instituição:__________________________ Assinatura: _______________________

Agradecimentos:

Ao Prof. Dr. Eduardo Henrique Soares Monteiro e a Prof. Dr. Michèle Barbe, que com competência me orientaram nesta pesquisa. A todos os membros da banca examinadora, que me horaram com sua participação; Aos financiamentos da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) e a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pelo precioso apoio; Aos amigos Miqueli Michetti, Paulo da Costa e Silva, Daniel Andrade, Tatiana Sakurai, Marjolein Mordyck, David McDonald, Fernanda McDonald, Graziela Andrade, Carolina Natal e Fabien Goddefroy pelas contribuições, conselhos, mas sobretudo pela amizade. Aos funcionários da Biblioteca Municipal Mário de Andrade, em especial, Aline Barbosa e Luísa Wainer; A minha família, pelo apoio incondicional;

À querida Elisa Maria de Mesquita, por tudo.

RESUMO

Esta tese tem como principal objetivo sugerir diretrizes para se observar encontros entre artes, matérias e técnicas artísticas distintas e caracterizar algumas das passagens possíveis e interações entre o sonoro e o visual. Primeiramente, discorremos sobre as diferenças entre as artes e as maneiras de organiza-las em sistemas classificatórios. Em seguida, nos voltamos ao estudo da noção de semelhança das mesmas, à Estética Comparada e apresentamos algumas elos e interseções entre os fenômenos musicais e visuais. As semelhanças são expostas, mais à frente, através de traços específicos, aos quais chamamos de “similitudes”, de acordo com o entendimento de Michel Foucault. A partir dessas últimas, apresentadas pelos nomes de simpatia, emulação, analogia e convenientia, propomos maneiras de se observar encontros entre o sonoro e o visual. Da simpatia provém a noção ressonância, que se baseia na liberdade do receptor de estabelecer correspondências entre pares de obras de arte distintas e fertilizar mutuamente seus entendimentos. Os reflexos se endereçam às obras cujos artistas procuraram aplicar em sua própria arte elementos provindos de uma outra arte e encontram suas bases nas similitudes de emulação e analogia. Finalmente, as confluências. Neste terceiro grupo incluem-se obras que contém em sua própria estrutura matérias sonoras e visuais. Na origem das confluências está a convenientia, similitude que trata da coexistência entre elementos heterogêneos. Pablo Picasso, Igor Stravinsky, György Ligeti, Mark Rothko, Henri Dutilleux, Paul Klee, Alban Berg e Serguei Eisenstein são os artistas cujas obras ilustraram as ressonâncias, reflexos e confluências de nossa pesquisa.

Palavras-chave: Estética Comparada, semelhança entre artes, música e pintura, classificação das artes.

RESONANCE, REFLECTIONS AND CONFLUENCES: Three ways of conceiving the resemblances between the sonorous and visual in twentieth century art works

ABSTRACT

The main objective of this thesis is to suggest guidelines in observing meetings between arts, materials and separate art techniques and to characterize some of the possible passages and interactions between the sonorous and visual. First we talk about the differences between the arts and the ways to organize them into classification systems. Then we turn to the study of the concept of resemblance between the art forms, introduced in Comparative Aesthetics and present some links and intersections between the musical and visual phenomena. Their similarities will be exposed, later, through specific traits, which we call “similitudes”. From these latter, presented by the names: sympathy, emulation, analogy and convenientia, according to the ideas of Michel Foucault, we propose ways of observing encounters between the sonorous and visual. From sympathy comes the notion of resonance, which is based on the liberty of the receiver to establish correspondences between pairs of distinct art works and to mutually fertilize their understandings. The reflections address the art works whose artists sought to apply in their own art, elements coming from another art and find their bases in the similitudes of emulation and analogy. Finally, the confluences. In this third group are included the art works that contain, in their own structure, sonorous and visual materials. At the origin of the confluences is the convenientia, similitude that deals with the coexistence between heterogeneous elements. Pablo Picasso, Igor Stravinsky, György Ligeti, Mark Rothko, Henri Dutilleux, Paul Klee, Alban Berg e Serguei Eisenstein are the artists whose works illustrate the resonances, reflections e confluences of our research. Key-words: Comparative Aesthetics, resemblance of arts, music and painting, classification of the arts.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................... 25

PRIMEIRA PARTE: DIFERENÇAS E SEMELHANÇAS ................................................. 29

Capítulo 1: As Diferenças Entre as Artes ......................................................................................... 31 1. As Musas: Como Metáfora das Artes ........................................................................................ 33 a) Do Singular ao Plural ........................................................................................................... 33 b) Por Um Entendimento Amplo de “Matéria” nas Artes ............................................. 36 c) O Papel da Técnica na Construção da Pluralidade das Artes .................................. 39 2. Limites Móveis: Sistemas de Classificação das Artes ............................................................ 43 a) Dos Gregos ao Idealismo Alemão .................................................................................... 44 b) No século XX ......................................................................................................................... 50 c) As Artes e os Juízos de Valor ............................................................................................ 58 3. Contornos Estáveis: Em Busca de Atributos Constantes em Artes Sonoras e Visuais. 61 a) Música ...................................................................................................................................... 61 b) Pintura ...................................................................................................................................... 64 c) A Autonomia das Musas .................................................................................................... 67

Capítulo 2: As Semelhanças Entre as Artes ................................................................................... 69 1. As Musas: Reencontrando a Unidade Original ........................................................................ 70 a) Do Plural a um Outro Singular ......................................................................................... 70 b) Substâncias e Atributos Comuns das Artes .................................................................. 72 c) O Coro das Musas: A Sinestesia como Regra ............................................................. 76 2. Comparar Incomparáveis: Pressupostos para uma aproximação das artes ................ 85 a) Estética e Estética Comparada ......................................................................................... 85 b) Comparatismo ........................................................................................................................ 91 c) Refletindo Sobre os Métodos ......................................................................................... 100 3. Semelhanças Informes: Por uma atualização da noção de semelhança ...................... 104 a) “Assinaturas” e Similitudes como Marcas de Semelhança .................................... 105 b) Crise e Descrença das Semelhanças ...............................................................................109 c) Novas Semelhanças ............................................................................................................ 111

Capítulo 3: Quatro Similitudes ............................................................................................................ 117 1. Simpatia ................................................................................................................................................ 118 a) Afinidades e Transformações ............................................................................................ 119 b) Simpatias Absolutas e Intuitivas ...................................................................................... 122 c) Liberdade e Movimento ...................................................................................................... 126 2. Emulação .............................................................................................................................................. 127 a) Choque de Significações .................................................................................................... 128 b) Mimeses, Imitação e Emulação ....................................................................................... 129 c) Mutação e Distância ............................................................................................................ 134 3. Analogia ................................................................................................................................................ 135 a) Unívocos e Equívocos ......................................................................................................... 136 b) Analogias da Experiência ................................................................................................... 141 c) Sobrepondo Diferenças ....................................................................................................... 144 4. Convenientia ........................................................................................................................................ 145 a) Harmonia das Significações .............................................................................................. 146 b) Encontros de Similitudes ................................................................................................... 150 c) Movimento e Transformação .............................................................................................152

SEGUNDA PARTE: OS PERCURSOS DAS SEMELHANÇAS ..................................... 155

Capítulo 4: Ressonâncias ...................................................................................................................... 161 1. Ressoar ................................................................................................................................................. 162 a) Das Simpatias às Ressonâncias ....................................................................................... 162 b) Ressonâncias nas Artes: Pré-condições ....................................................................... 164 2. A Sagração da Primavera e Les Demoiselles d’Avignon .................................................... 166 a) Stravinsky: Quatro Chaves ............................................................................................... 167 b) Sagração da Primavera ..................................................................................................... 171 c) Picasso: Unidade e Transformação ................................................................................ 177 d) Les Demoiselles d’Avignon ............................................................................................... 181 e) Stravinsky e Picasso ............................................................................................................ 186 f) O Sagrado e o Bordel: Ressonâncias .............................................................................. 189 3. György Ligeti encontra Mark Rothko: Atmosphères e Black Painting n.1 ............. 194 a) As Obras ................................................................................................................................. 194 b) Arte Fractal ............................................................................................................................ 196 c) Afirmando Uma Nova Teatralidade ............................................................................... 201

d) “Protegendo” e “Violando” Sistemas ............................................................................ 206 e) Obras Multissensoriais ....................................................................................................... 210 4. Outras Ressonâncias ....................................................................................................................... 214

Capítulo 5: Reflexos ............................................................................................................................... 219 1. Refletir .................................................................................................................................................. 220 a) Das Emulações e Analogias aos Reflexos ..................................................................... 220 b) “Reflexos” nas Artes: Pré-condições ............................................................................. 222 2. Henri Dutilleux e Vincent Van Gogh: Noites Estreladas .................................................. 223 a) Sobre o Músico ..................................................................................................................... 223 b) Noites de Van Gogh ............................................................................................................ 230 c) Noite Estrelada de Saint-Rémy ........................................................................................ 232 d) O Pintor e a Música ............................................................................................................. 234 e) Reflexos da Noite ................................................................................................................. 236

3. Bach, no Estilo de Paul Klee ........................................................................................................ 250 a) “Magia do Devir” ................................................................................................................. 250 b) A Música de Klee ................................................................................................................ 251 c) No Estilo de Bach: Cores e Movimento ........................................................................ 254 d) Ritmo e Grafismo ..... ........................................................................................................... 259 e) Olhos e Fermatas .................................................................................................................. 264 4. Outros Reflexos ................................................................... ........................................................... 267

Capítulo 6: Confluências ..................................................................................................................... 277 1. Confluir ................................................................... ............................................................................ 278 a) Da Convenientia à Confluência ....................................................................................... 278 c) Confluência nas Artes ......................................................................................................... 280 2. Confluências na Ópera ................................................................................................................... 281 a) Gesamtkunstwerk .................................................................................................................. 281 b) A Conquista da Unidade na Ópera .................................................................................. 286 c) Coexistências em Alban Berg ........................................................................................... 288 d) Lulu: Metáfora da Ópera .................................................................................................... 291 3. Confluências no Cinema ................................................................................................................ 295 a) O Som da Imagem ............................................................................................................... 295

b) Sincronização dos Sentidos ............................................................................................. 298 c) O Jogo das Similitudes ...................................................................................................... 301 d) O Encouraçado Potemkin ................................................................................................ 302 4. Outras Confluências ...................................................................................................................... 305 CONCLUSÃO ................................................................... ................................................................... 317 a) Diferenças .............................................................................................................................. 317 b) Semelhanças ......................................................................................................................... 318 c) Similitudes ............................................................................................................................ 320 d) Ressonâncias ........................................................................................................................ 321 e) Reflexos ................................................................... .............................................................. 322 f) Confluências .......................................................................................................................... 323 g) A Dinâmica das Semelhanças ......................................................................................... 324 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................................ 327

ÍNDICE DE DIAGRAMAS

Diagrama 1: LLORT LLOART, Victoria (2010). Sistema de classificação das artes segundo F. W. J Von Schelling. ........................................................................................ 49 Diagrama 2: SOURIAU, Étienne (1947). Quadro de classificação das artes. ..................... 53 Diagrama 3: Representação do sistema de classificação das artes de Étienne Gilson. ..... 56 Diagrama 4: NARCISSE, Gilbert (1997). Tipologia da similitude convenientia. ........... 151 Diagrama 5: DUTILLEUX, Henri (1980). Esquema de organização da orquestra para Timbres, Espace et mouvement. ............................................................................ 244

LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1: PICASSO, Pablo. Les Demoiselles d’Avignon. .......................................................... 181 Figura 2: PICASSO, Pablo. Esboço para Les Demoiselles d’Avigon. ................................... 184 Figura 3: ROTHKO, Mark. Black Painting n.1. ……………………………………………….. 195 Figura 4: ROTHKO, Mark. Number 18. ......................................................................................... 209 Figura 5: MASSYS, Quentin. Adoração dos Magos. ................................................................. 209 Figura 6: CÉZANNE, Paul. Os Jogadores de Cartas. ................................................................ 214 Figura 7: VAN GOGH, Vincent. Noite Estrelada. ...................................................................... 232 Figura 8: KLEE, Paul. Im Bach’schen Stil. .................................................................................... 255 Figura 9: KLEE, Paul. Insula Dulcamara. ...................................................................................... 261 Figura 10: KLEE, Paul. Kamel in rhythmischer Baumlandschaft. …………………………. 261 Figura 11: KLEE, Paul. Fuge in Rot. ............................................................................................... 262 Figura 12: KLEE, Paul. Desenhando com a Fermata. ............................................................... 265 Figura 13: KLEE, Paul. Captive. ...................................................................................................... 265 Figura 14: KLEE, Paul. O olho de Beethoven. ............................................................................. 265 Figura 15: KLEE, Paul. Auto-retrato. ............................................................................................. 266 Figura 16: KLEE, Paul. Auto-retrato. ............................................................................................. 266 Figura 17: KLEE, Paul. O Timbalista. ............................................................................................ 266 Figura 18: KANDINSKY, Wassily. Impression III (Konzert). …………………………… ... 271 Figura 19: KUPKA, Frantisek. Étude pour Amorpha, fugue à deux couleurs. ………….. . 272 Figura 20: IANELLI, Arcangelo. Sinfonia em Verde. ................................................................. 274

ÍNDICE DE EXEMPLOS MUSICAIS Ex. 1: CRAFT, Robert (1969). Extrato de material folclórico para Dança da Terra da Sagração da Primavera de Igor Stravinsky. .............................................. 176 Ex. 2: LIGETI, György (1980). Compassos 75-79 de Atmosphères. ...................................... 198 Ex. 3: LIGETI, György (1980). Compassos 38-42 de Atmosphères. ....................................... 205 Ex. 4: LIGETI, György (1980). Compassos 44-47 de Atmosphères. ....................................... 207 Ex. 5: DUTILLEUX, Henri (1980). Compassos 65-66, primeiro movimento de Timbres, espace et mouvement. ............................................................................... 240 Ex. 6: DUTILLEUX, Henri (1980). Compassos 1-7, primeiro movimento de Timbres, espace et mouvement. ............................................................................... 242 Ex. 7: DUTILLEUX, Henri (1980). Compassos 34-35, segundo movimento de Timbres, espace et mouvement. ............................................................................... 243 Ex. 8: DUTILLEUX, Henri (1980). Compassos 76-82, p. 29, primeiro movimento de Timbres, espace et mouvement. ............................................................................... 245 Ex. 9: DUTILLEUX, Henri (1980). Compasso 42, primeiro movimento de Timbres, espaces et Mouvement. ............................................................................. 247 Ex. 9.1: DUTILLEUX, Henri (1980). Compassos 43-44, primeiro movimento de Timbres, espaces et mouvement. ..............................................................................248

 

25  

INTRODUÇÃO

Esta tese tem como principal objetivo sugerir diretrizes para se observar encontros entre artes, matérias e técnicas artísticas distintas e caracterizar algumas das passagens possíveis e interações entre o sonoro e o visual. Em outras palavras, trata-se de sugerir perspectivas ou ângulos a partir dos quais podemos analisar paralelamente obras de arte de diferentes naturezas, como uma peça musical e uma pintura, ou certa obra que comporte em seu núcleo diferentes matérias artísticas, como uma ópera ou um filme. Partimos do pressuposto de que é possível, através do exercício de aproximação de obras e matérias, fertilizar nossos entendimentos sobre as obras e renovar seus sentidos. Como deve acontecer em grande parte das pesquisas, esta tese nasceu de uma curiosidade momentânea que, aos poucos, foi ganhando cada vez mais espaço. Sua ideia embrionária surgiu da percepção de uma atmosfera comum, sobretudo entre certas obras musicais e pinturas. A partir daí, nos indagamos sobre a existência de equivalências estruturais ou de algum tipo de correspondência que aproximasse artes distintas. Persistia em nós a sensação de que semelhanças fugidias transitavam entre obras e, bastaria um olhar agudo sobre o quadro e a música, e suas semelhanças reluziriam, bem nítidas. No entanto, rapidamente percebemos que era preciso olhar mais de uma vez para que as semelhanças entre os objetos emergissem. Seria necessário, por um lado, uma reflexão ampla dirigida às questões que tangem o próprio estatuto dos objetos artísticos. Por outro lado, seria preciso que interviessem a experiência estética no contato com as obras e a análise específica dessas mesmas obras. Quando nosso interesse por esse tema se refletiu na leitura de obras de referência, verificamos que as teorias e as práticas que propõem cruzamentos entre atividades artísticas exercem há tempos uma fascinação em muitos artistas, filósofos, críticos, etc. São numerosos aqueles que, com seriedade, investigaram o parentesco das artes e não se contentaram com a descrição de suas reflexões por meio de metáforas rasas ou caracterizações imprecisas. Tão grande o interesse pelo tema foi se tornando que foi preciso solicitar auxílio de outras disciplinas, além da Musicologia, para se construir elos sólidos entre objetos artísticos. A Filosofia, a Estética, a Fenomenologia e as Artes Visuais foram as mais demandadas, mesmo que, como veremos, todas elas parecem atuar no interior da chamada Estética

 

26    

Comparada, disciplina que se define na confrontação entre obras e processos artísticos de diferentes artes. Na liberdade que tem o pensamento de tecer elos entre as coisas, reconhecer semelhanças e diferenças, reside seu poder de perturbar fronteiras e renunciar a saberes definitivos em detrimento de outros conhecimentos, muitas vezes provisórios. Nosso discurso se desenvolve em uma zona de tensão, entre os riscos de um excesso de relativismo e um pragmatismo reducionista. Uma atitude extrema de amor à concretude dos limites existentes entre as artes pode sacrificar compreensões mais amplas, que permitem um fecundo trânsito entre estéticas e se abrem às dimensões ontológicas da arte. E, pelo contrário, o apego excessivo àquilo que as artes têm de semelhante tende a produzir considerações muito genéricas que parecem se afastar do próprio objeto artístico. Procuramos, na medida do possível, evitar esses atitudes extremas de dúvidas ou certezas. Na tentativa de conjugar teoria e experiência, esta tese foi dividida em duas partes. Na primeira parte, nos concentramos no estudo de dois amplos parâmetros: as diferenças e as semelhanças. As diferenças representam os limites entre as artes, demarcados no curso da história de diversas maneiras e segundo vários critérios. Na medida em que avançamos neste estudo, percebemos que esses mesmos limites se revelam igualmente como pontos de contato entre as artes, e a estes últimos chamamos de semelhanças. Sem serem entendidas em seu senso restrito, estas semelhanças solicitam do leitor uma certa disposição de espírito para o reconhecimento de sinais e traços comuns entre obras de arte ou matérias artísticas diversas. Das diferenças passamos às semelhanças que, mais à frente, serão apresentadas como “similitudes”, demarcando traços específicos no interior da aproximação de objetos artísticos. Elegemos e estudamos quatro similitudes que nos auxiliarão na construção de nossa metodologia: a simpatia, a emulação, a analogia e a convenientia, de acordo com a apresentação de Michel Foucault em As Palavras e as Coisas (1966). O objetivo central da tese – uma proposta de como se observar os encontros entre artes, matérias e técnicas artísticas distintas – é apresentado na sua segunda parte. A partir da determinação do proponente dos encontros entre artes ou matérias, apresentamos três possibilidades que se desenvolvem nos três últimos capítulos da tese: 1. Ressonâncias: o encontro é proposto pelo receptor/analista. É ele quem aproxima obras autônomas e tece elos entre elas, independente da intenção do artista. Predomina a similitude simpatia.

 

 

27  

2. Reflexos: o encontro é proposto pelo artista, que se apropria e aplica explicitamente elementos da arte vizinha no interior de sua própria arte. O receptor/analista irá principalmente perceber e comentar esse encontro. As similitudes emulação e analogia serão as mais solicitadas. 3. Confluências: a própria natureza da obra já caracteriza e propõe um encontro de matérias e técnicas artísticas distintas. Uma ópera, um filme ou uma instalação, por exemplo, podem caracterizar esse grupo que tem como similitude principal a convenientia, a única das quatro similitudes que permite um contato efetivo entre as matérias distintas. Como veremos, esses olhares sobre os contatos de artes e matérias a partir de seus proponentes, surgem do próprio estudo das similitudes e de certos atributos que as definem. Cada umas das quatro contém em seu cerne algum elemento que estimulou e deu origem as nossas ressonâncias, reflexos e confluências. Cada grupo se constitui em um espécie de diretriz para o estudo comparado das artes e das matérias e será ilustrado por obras ou pares de obras. Nos concentramos em criações do século XX que nos pareceram emblemáticas no interior de cada um dos três grupos. A escolha das obras se deu a partir da observação atenta de um grande número de possibilidades que estão, a propósito, citadas no final dos capítulos da segunda parte da tese. Entretanto, mais que criar sistemas classificatórios ou fixar termos, o que move esta tese é o desejo de renovar olhares e nossa relação com os objetos artísticos, perturbando fronteiras e liberando novos sentidos. Nos parece mais importante confrontar incessantemente objetos, produzir conhecimentos e solicitar novas posturas perceptivas que classificar obras em sistemas fechados. Como a tese se situa em uma zona de interseção de disciplinas e teorias, foi preciso estabelece-la a partir de uma sólida estrutura global, que a protegesse dos riscos da dispersão. Não se deve perder de vista o fato de que, tanto as descrições de sistemas de classificação das artes, de disciplinas e das similitudes na primeira parte da tese, quanto as análises de obras precisas da segunda, são partes de um projeto maior e não objetivos em si mesmos. O arbitrário e não arbitrário nas inúmeras escolhas no interior da tese sempre se conformaram ao nosso objetivo principal, isto é, se estabelecem no interior das diretrizes propostas para a observação dos encontros entre artes e matérias. Aquilo que começou como intuição, tornou-se ideia, projeto e, agora, trabalho acadêmico. Este percurso foi movido por uma curiosidade e um amor pelo tema que se  

28    

mantiveram ativos da primeira à última linha. Esperamos que as reflexões e todo nosso esforço incite novas intuições para, quem sabe, tornar-se ideia, projeto e, mais tarde, novas pesquisas.

 

                             

PRIMEIRA PARTE      

Diferenças – Semelhanças – As Quatro Similitudes

AS DIFERENÇAS ENTRE AS ARTES Capítulo 1

31

Capítulo 1

As Diferenças Entre as Artes O título é claro e se abre a uma obviedade. Nada mais evidente que a existência de diferenças entre as artes. Seja na criação, na execução ou na recepção, os indivíduos se orientam e expressam preferências por uma ou outra arte. Mesmo aqueles que declaram apreço por todas, revelarão maior competência em uma arte em especial. Uns são mais tocados pela potência das cores, das formas visíveis, outros pelo som, musical ou encarnado em linguagem verbal, outros ainda pela plasticidade dos gestos ou a compreensão de um texto escrito. Nada mais evidente. As artes são diferentes. Cada arte tem seus próprios meios, suas técnicas, suas matérias, enfim, uma independência. Cada artista caminha, soberano, em seu domínio. Cada qual com seu conteúdo, com sua forma. Exclusivas e singulares são as artes. Comparar incomparáveis pode ser tarefa estéril e desnecessária. Cor e som de maneira alguma podem ser comparados, embora ambos remetam a uma fórmula superior, a partir da qual é possível deduzir cada um deles. Ambos são como dois rios que nascem na mesma montanha, mas devido a circunstâncias diversas correm sobre regiões opostas, de modo que em todo o percurso não há nenhum ponto em que possam ser comparados. Ambos são efeitos gerais e elementares segundo a lei universal que tende a separar e unir, oscilar, pesando ora de um lado, ora de outra lado da balança, mas conforme aspectos, maneiras, elementos intermediários e sentidos completamente distintos. (Goethe, 1993, p. 134).

Uma pintura tem autonomia, assim como uma peça musical ou um poema. As correspondências devem existir, conforme os escritos de Goethe, somente na instância primordial, em uma “mesma montanha” longínqua e inacessível. Embora uma arte possa evocar, estimular ou inspirar outra, elas permanecem autônomas, cada qual em seu território. Os problemas de cada arte são particulares e – segundo muitos – intransferíveis. Como pensou Francis Bacon, por exemplo, em relação à música e a pintura e suas possíveis influências mútuas. Acho que existem aí dois modos de expressão que não tem nada a ver entre eles e que cada artista, no seu território, se confronta com problemas muito diferentes. [...] acho que

     AS  DIFERENÇAS  ENTRE  AS  ARTES     Capítulo  1  

32

cada um trabalha em seu domínio e que as influências fundamentais provém do domínio no qual nos exprimimos. (Bacon, 1996, p. 87)1.

Mas assim que nos aproximamos da evidente diferença das artes e buscamos ampliar nosso olhar, a fragilidade de alguns de seus pressupostos se revela e percebemos que a questão suscita mais interrogações que certezas. Quando as obviedades não mais nos satisfazem e estendemos as reflexões para além delas, diferenças e semelhanças se relativizam e negam o pragmatismo do senso comum. Matéria e técnica podem ser facilmente citadas quando se trata de distinguir as artes entre elas. No entanto, essas noções carregam em seu interior toda uma nuance de sentidos e significações, seja no âmbito filosófico, seja nos entendimentos correntes. Apesar da incômoda e virtual singularidade primordial das artes, este capítulo afirma, em vez de diferenças absolutas, múltiplas faces das diferenças. Voltamo-nos aos “rios separados que nascem da mesma montanha”. Esses “rios”, porém, possuem contornos diferentes, de acordo com os olhares que lançamos sobre eles. São ao mesmo tempo singulares e plurais. O problema da diferença das artes esbarra em uma questão que, desde Aristóteles, instiga muitos estetas, filósofos e quem quer que reflita sobre ela. Trata-se da definição de limites ou do estabelecimento de sistemas de classificações das práticas artísticas. Estes vão variar enormemente, pois se baseiam em uma multiplicidade de critérios, tão ou mais numerosos que as próprias artes. Muitos deles, declarada ou implicitamente, são valorativos e estabelecem hierarquias, colocando tal ou tal arte em primeiro plano. Muitos têm sua origem na divergência de entendimentos das noções de matéria e técnica na arte. Quando observamos com algum distanciamento algumas classificações das artes, parece claro que nenhuma delas é definitiva e absoluta. Cada uma se estabelece segundo a arbitrariedade de um olhar. Isso não impede, no entanto, que cada modelo ou sistema carregue suas verdades. E essas verdades, embora às vezes contraditórias e excludentes, se constituem em elementos que fortalecem as marcas de cada arte e sustentam sua pluralidade essencial.

1

“Je pense qu’il y a là deux modes d’expression qui n’ont rien à voir entre eux et que chaque artiste dans son art est confronté à des problèmes très différents. […] je pense que chacun travaille dans son domaine et que les influences fondamentales proviennent du domaine dans lequel on s’exprime.”

AS DIFERENÇAS ENTRE AS ARTES Capítulo 1

33

1. As Musas: Como Metáforas das Artes Filhas da mesma mãe, as musas que incarnam as artes podem admirar-se mutuamente, caminhar lado a lado, até mesmo atuar em conjunto. Cada uma, porém, vive por si. Suas ligações são profundas, de sangue, mas suas existências têm, no mínimo, certa independência, caracterizada pela expressão individual de suas obras. Nas manifestações mais elementares, as artes se distinguem em sua natureza pela matéria e pela técnica. Nossa opção pela pluralidade das artes neste capítulo é abraçar, mesmo que temporariamente, um ideal empírico que vai, por vezes, sacrificar a unidade primordial da arte para afirmar a força e a autonomia das musas. Ou seja, a força e a autonomia das artes.

a) Do Singular ao Plural […] velha feiticeira, má e genial, plena de saber e de ressentimentos, a Memória conservava, em sua posse, as lembranças do Mundo, estrelas e cristais; aqueles do corpo e dos vivos, rugas e fósseis; e da sociedade, mentiras e arquivos. Ela tinha nove filhas. (Serres, 2011, p. 14)2.

A personagem citada sob o nome de Memória é a titânide Mnemósine. Suas nove filhas: as nove musas. A mitologia, atribuindo a maternidade das musas à memória, dava a esta última importância capital. A memória, na arte, não exerce um papel secundário ou auxiliar, mas uma função central, do lugar no qual ocorre a apreensão das sensações estéticas. Filha de Urano e Gaia, Mnemósine encarna a divindade da enumeração. Sua prole é caracterizada diferentemente de acordo com o autor ou a tradição. O filósofo francês Michel Serres as descreve da seguinte forma (ibid., p. 23-40): Polímnia incarnaria a pantomima. Suas mímicas reproduziriam as vibrações internas do mundo e de seus seres. Fascinada pela imitação, é ela quem inventa o ritmo. Sua outra irmã, Terpsícore, também extasiada pela imitação, reproduz e transforma os movimentos do mundo. Torções, tensões, saltos e gestos improváveis, de cem figuras e mil movimentos, tudo isso é obra de Terpsícore. As duas irmãs seguintes são musicistas. A primeira, Euterpe, toca flauta, e a segunda, Érato, dirige o coro que reúne gritos destituídos de razão, em uma harmonia de uníssonos raros ou de acordes complicados. A próxima irmã seria Urânia, a musa do saber preciso, rigoroso e universal, aquela que coordena a harmonia celeste. A elas, junta-

2

“[...] vielle sourcière, mauvaise et géniale, pleine de savoir et de ressentiments, la Mémoire, qui conservait, par devers elle, les souvenirs du Monde, étoiles et cristaux; ceux du corps et de vivants, rides et fossiles; et de société, mensonges et archives. Elle avait neuf filles.”

     AS  DIFERENÇAS  ENTRE  AS  ARTES     Capítulo  1  

34

se Clio, a musa da história e as três últimas, Melpómene, a musa da tragédia, Tália, da comédia, e Calíope, da poesia épica. Serres estabelece entre cada uma dessas musas uma íntima relação com a música. Outros as apresentarão de maneira diferente, divergindo em torno de suas funções e atribuições3. O senso comum fala de “musa inspiradora”, sobretudo para a pintura ou na poesia. Um museu, em sua origem etimológica, seria o templo das musas, embora entre as musas normalmente não se inclua uma para as artes visuais, entendidas no seu sentido corrente. Não entraremos em pormenores e nem procuraremos definir quais seriam as musas neste trabalho. Elas serão evocadas apenas como um pretexto para se falar de artes e das suas diferenças. Para evocar singularidade e pluralidade. Falamos em arte no singular, mas quase sempre falamos em musas, no plural. Porém, é preciso lembrar que arte no singular é algo recente. Data do século XIX, fruto do pensamento romântico, ou mais precisamente, da filosofia idealista alemã. A história nos mostra que, no tempo de Kant e Diderot, falava-se em belas-artes, que se distinguiam das belles-lettres. O conceito de belas-artes, ele mesmo, variou de acordo com as situações e épocas e segundo os mais variados posicionamentos filosóficos, ideologias e contextos sociais. Na Idade Média, por exemplo, pensadores da civilização ocidental falavam em artes liberais e servis. Na Antiguidade, fala-se em artes imitativas. Arte, no singular, é algo recente. Com as musas é diferente. “Existem as Musas, e não a Musa. Seu número pôde variar, assim como seus atributos, tanto quanto são várias as musas”, disse Jean-Luc Nancy (1994, p. 11)4. As etimologias de arte, música e musa estão, como nos mostra Munro (1954, p. 35), de certa forma, imbricadas. A palavra grega musiké-techné, que mais tarde tem o techné omitido, compreendia todas as artes em que presidiam as musas5. É claro que nosso entendimento atual de arte vai afetar a percepção do que as musas poderiam representar no passado, ou as artes das musas. Mas não se trata aqui de discutir definições de arte ou artes ontologicamente, nem de observar as transformações históricas dessa noção. Vamos nos concentrar, no momento, na questão do singular e do plural no universo das artes.

3

A título de curiosidade, o Dicionário Ilustrado da Língua Portuguesa, de Caldas Aulete (Rio de Janeiro, Editora Delta, 1948) traz a seguinte citação, atribuída a Castilho: “As musas quantas são? – diz que nove, eu sei lá!”. O mesmo dicionário apresenta também a significação de musa como engenho poético, a faculdade de fazer versos. Acrescenta ainda a expressão “correr a musa”, exemplificada com: “hoje não posso escrever, não me corre a musa”. 4 Il y a les Muses, et non pas la Muse. Leur nombre a pu varier, ainsi que leurs attributs, toujours les muses ont été plusieurs. 5 Do grego µουσική τέχνη - musiké téchne, a arte das musas.

AS DIFERENÇAS ENTRE AS ARTES Capítulo 1

35

As Musas são nomeadas a partir de uma raiz que indica o ardor, a tensão viva que plana na impaciência, no desejo ou na cólera, daquela que queima de desejo de conhecer e de fazer. Em uma versão mais amena, diríamos: “os movimentos do espírito”. (Nancy, ibid., p. 11)6.

Se nós nos atemos à pluralidade das musas, é possível crer que a pluralidade das artes é um característica inerente à própria natureza da arte. A multiplicidade se sobrepõe à unidade e esta última se converte em um pressuposto, quase sempre vago, de uma origem comum ou “mesma montanha”, como na metáfora de Goethe no princípio do capítulo. Existem muito mais tratados e estudos que se voltam a especificidade de cada arte, ou seja, àquilo que as diferencia, que estudos voltados a observar suas semelhanças ou aquilo que une as artes. Mesmo entre os filósofos, muitas vezes dedicados à busca de uma essência única da arte, existem aqueles que optam por creditar a essência da arte à especificidade de cada obra de arte. Evitam, dessa forma, apresentar algum conceito positivo e geral. Adorno, por exemplo, tanto em seu texto A Arte e as Artes (1997), quanto em sua Teoria Estética (1989), ilustra muito bem a opção daqueles que priorizam a diferença sobre a semelhança, o plural sobre o singular. Anne Boissière (1997, p. 54-55), comenta o fato de Adorno renunciar a todo conceito a priori de arte e procurar ordenar sua estética pelas especificidades das obras. Cada obra propõe dificuldades especiais e diversas seja para o artista, crítico ou filósofo. As existências de obras musicais são diversas das pictóricas, assim como são diversas suas execuções, interpretações e durações. Quando nos interessamos pelas particularidades, não renunciamos a crença em uma unidade fundamental, mas esta será tão somente um pano de fundo para este capítulo. Tratemos agora da pluralidade das artes, da pluralidade das musas. Um plural que encontra sua força justamente nas diferenças. Na diferença das musas, das artes. Essas diferenças serão percebidas ou demarcadas por vários filósofos, estetas e artistas de diversas maneiras. Elas variam em função dos critérios escolhidos e adquirem nuances mais ou menos sutis, como veremos neste capítulo. Mas antes vamos refletir sobre questões determinantes no que diz respeito à delimitação e à multiplicidade das artes. Não é possível tratar das diferenças das artes sem uma consideração mínima sobre suas matérias e técnicas. É evidente que a diferença das artes está ligada a esses dois fatores. Mas o que parece ser uma obviedade, mais uma vez, só o é superficialmente. Desde que nos voltamos com mais atenção para as noções de técnica e matéria nos deparamos com uma série de tensões que podem se 6

“Les Muses tiennent leur nom d’une racine qui indique l'ardeur, la tension vive qui s'élance dans l'impatience, le désir ou la colère, celle qui brûle d'en venir à savoir et à faire. Dans une version apaisée, on dit : « les mouvements de l'esprit».”

     AS  DIFERENÇAS  ENTRE  AS  ARTES     Capítulo  1  

36

abrir a mal-entendidos e confusões. Os dois polos que orientam esse capítulo, o singular e o plural, se revelarão também nos entendimentos de matéria e de técnica. O filósofo italiano Luigi Pareyson (2001) tratou em detalhe destas duas questões que fundamentam esse estudo das diferenças das artes. b) Por um Entendimento Amplo de “Matéria” nas Artes O entendimento de matéria, às vezes, não fica longe do lugar comum. Quando consideramos, por exemplo, que a matéria da música são os sons, da pintura são as tintas, da escultura as pedras, da poesia as palavras, etc. A matéria seria o objeto primordial sobre o qual o artista exerce sua percepção e sua inspiração, como entendeu o filósofo e ensaísta francês, Emile-Auguste Chartier, conhecido como Alain (1926, p. 35). A matéria está, também, fortemente vinculada à própria exteriorização da arte, ou à sua técnica. Ela representa a condição de possibilidade para que a arte se exteriorize. “Enfim, a lei suprema da invenção humana é que inventamos somente trabalhando.” (ibid., p. 35)7. Pareyson apresenta duas maneiras distintas de compreender a exteriorização da arte que se opuseram diversas vezes na história (2001, p. 150)8. A primeira maneira é entendê-la como puro reflexo de algo interior e baseada essencialmente no conhecimento do artista e seu poder de contemplar e intuir. A matéria da arte, por mais que pareça paradoxal, seria o espírito ou a própria “essência” da arte. Esse pensamento provém do chamado “espiritualismo estético”, que vigorou de Schopenhauer a Benedeto Croce, mas que tem suas raízes nos primeiros séculos da era cristã. O fazer artístico seria somente a concretização de uma imagem puramente interior. Os meios e as matérias físicas que servem de suporte para arte são coisas menos importantes. Em suma, a produção da obra de arte se esgota na figuração de uma imagem puramente interna, e com esta nada tem a ver a atividade sucessiva, que a exterioriza em um corpo físico: atividade não só é secundária e supérflua com respeito à arte, mas não tem nada de artístico, porque é antes um ato prático, dirigido ao fim da conservação e da comunicação. (ibid., p. 150).

7

“Bref, la loi suprême de l’invention humaine est que l’on n’invente qu’en travaillant.” Vamos entender a exteriorização da arte da maneira mais imediata que nos vem ao espírito, como a simples manifestação da arte. Ao termo “exteriorização”, a tradutora para o português desta obra, Maria Helena Nery Garcez, optou por empregar o neologismo extrinsecação. Acreditava ela que, desta maneira, seria mais fiel ao termo italiano extrinsecazione. Nesta pesquisa, a utilização do termo exteriorização em vez do neologismo de Garcez não parece interferir no nosso raciocínio.  

8

AS DIFERENÇAS ENTRE AS ARTES Capítulo 1

37

A antiga distinção entre arte liberal e mecânica ou servil, que perdurou da Idade Média aos fins da Renascença, trazia essa crença que valorizava a interioridade. Deixava, por isso, entre as artes mecânicas, que eram menos nobres, aquelas cuja existência era fortemente atrelada a um corpo físico, tais como a pintura ou a escultura. Os artistas renascentistas se esforçaram para incluir essas duas artes entre as artes liberais e as legitimarem como cosa mentale 9 . E, assim se delineava, gradativamente, a segunda maneira de entender a exteriorização da arte concretizada na matéria artística. Esta última seria, não mais um simples processo de afirmação daquilo que preexistia no interior dos artistas, mas a afirmação do aspecto executivo da arte. O que interessa nessa visão é principalmente sua produção, seu fazer. A arte se encarnaria e se realizaria efetivamente no gesto de construí-la. Esse pensamento exalta o puro ofício do artista, como se a obra de arte se instaurasse em seu próprio fazer. Correntes francesas de meados do século passado reivindicaram incisivamente a soberania desse aspecto na materialização ou exteriorização da arte (ibid., p. 151)10. A obra de arte, seja ela visual ou auditiva, consiste em sua realidade física e constitui-se propriamente nela e não como apenas um prolongamento de uma realidade interior, acreditam os adeptos dessa vertente. Nesta antítese estaria em jogo a arte como “fantasia ou ofício, ou sonho ou artesanato, ou pura interioridade ou simples exteriorização, ou figuração somente espiritual ou mero produto técnico, ou imagem puramente interior ou apenas objeto físico” (ibid., p. 152). Porém, em vez de criar oposições, a reflexão sobre a arte pode ter como complementares cada uma dessas forças. Enquanto esses dois aspectos da arte, interior e exterior ou “exteriorizante”, estiverem distintos ou separados, ou mesmo em oposição, existe o risco de um dos dois ser priorizado, ou de um anular o outro. É o que ocorre, por exemplo, quando julgamos, no senso comum, certa obra de arte como meramente técnica, ou, ao contrário, sentimos em um artista algum tipo de desprezo pela execução técnica ou materialização e consideramos a obra como puro intelectualismo. As obras de arte que parecem mais bem

9

A frase: “La pittura è cosa mentale” (A pintura é coisa mental), atribuída a Leonardo Da Vinci, é frequentemente citada nos mais diversos escritos sobre arte. A noção de arte liberal será comentada com mais detalhes na segunda parte desse capítulo.   10 Nos anos quarenta do último século, Francis Bacon (1909-1992) declarava que suas obras não existiam antes que ele pegasse no pincel e que seu pensamento se construía na medida em que traçava suas primeiras linhas e cores. Esse comentário de Bacon foi feito no documentário dirigido por David Hinton de 1985, intitulado Francis Bacon, e parece ilustrar muito bem uma maneira de entender o importante peso dado à exteriorização da arte, como centro ou conteúdo da própria arte.

     AS  DIFERENÇAS  ENTRE  AS  ARTES     Capítulo  1  

38

sucedidas são justamente aqueles em que os significados físicos coincidem com os espirituais, sem que nenhum deles se sobreponha. Uma explicação da arte está ligada à possibilidade de mostrar como nela, figuração interior e operação executiva, atividade espiritual e extrinsecação física, idealidade e sensibilidade, longe de se contraporem ou de se sucederem, ou de se anularem uma na outra, coincidem, pelo contrário, sem resíduo. (ibid., p. 152).

A apresentação dessa antítese e a conclusão do esteta italiano vão, por vias diferentes, ao encontro do pensamento do filósofo da arte Étienne Gilson que, em seu sistema das “artes do belo” que veremos mais abaixo, une a matéria, entendida em sua conotação mais simples, à técnica, como maneira de exteriorização de uma arte (Gilson, 1964, p. 37). Logo, a matéria e sua exteriorização estariam intimamente ligadas e se configuram em uma totalidade. A matéria, para o autor francês, encontra o senso comum, quando ele distingue as matérias em função da sua natureza, que faz dela pedra, madeira, cor, som musical, palavra escrita ou pronunciada. O artista vai ter sempre que levar em conta as determinações naturais no uso artístico que ele fará. Mas a matéria já possui sua própria vocação, com a qual o artista dialogará. Em um bloco de mármore de certo tamanho, forma e cor, ocorrerão, não sem sua resistência, as trocas entre as operações do artista e as atribuições da própria matéria. A liberdade do artista consiste em escolher suas matérias. O exemplo do escultor ilustra particularmente bem o contato do artista com sua matéria, mas relações análogas existem em todas as artes, até mesmo aquelas em que a materialidade se divide entre o aspecto visual, semântico e o sonoro, como é o caso das artes da palavra. A diversidade das técnicas nas artes reside justamente na diversidade das matérias, apesar de existirem muito mais matérias que artes11. Na tentativa de objetivar a noção de matéria sem estendê-la indefinidamente, nem tampouco fechá-la em alguma objetividade redutora, Pareyson (2001, p. 159-161) propõe seu entendimento segundo três ângulos. O primeiro diz respeito à sua constituição física, mensurável e inviolável em sua estrutura fundamental. A matéria se submete às leis “determinantes e necessárias, tais quais as da ótica, da acústica, da estática da química, da mineralogia, etc”. O segundo e o terceiro ângulo tratam da aplicação dessas matérias concretas. Ora no uso comum: as cores e linhas como sinais ou signos, ou na utilização corrente da língua destinada à expressão e à comunicação do pensamento; ora na destinação artística de um material. É importante notar ainda que a matéria, vista sob o primeiro ângulo, ou seja, em sua concretude, apesar de pressupor uma utilização que não é necessariamente 11

Nada impede, por isso, que novas artes possam surgir, comenta Gilson (1964, p. 25).  

AS DIFERENÇAS ENTRE AS ARTES Capítulo 1

39

artística, ela não é virgem e informe, e sim plena de carga espiritual e portadora de uma vocação de forma. Toda matéria teria um potencial ao mesmo tempo artístico e de uso comum. Essa dupla vocação fica evidente quando, em atividades cotidianas, verifica-se aquilo que Pareyson de “desejo de arte” (2001, p. 162). Um certo esmero e capricho em realizar qualquer tipo de tarefa reflete esse desejo e comprova que uma matéria já vem: [...] prenhe de modos operativos, de possibilidades formativas, de embriões artísticos: coisas que, com frequência, impõe-se ao artista com o peso da autoridade ou da tradição, exigindo dele submissão e obediência, e de quando em quando obstaculizam, ou retardam, ou favorecem a sua produção original, constituindo uma técnica na qual ele pode exercitar a própria habilidade, encontrar as próprias possibilidades e que está como que incrustada na matéria, chegando com a matéria ao seu ato criativo e inovador. (Pareyson, ibid., p. 161).

Segundo as compreensões de Pareyson e Gilson, a matéria será então algo interior, que reside nas dimensões ontológicas da arte, e sua explicitação, afirmada no processo executivo e seu suporte material. Uma compreensão mais ampla do que vem a ser a matéria das artes não deve renegar seu vínculo profundo com as dimensões de exteriorização da arte. No entanto, mesmo que essas duas instâncias da matéria, interior e de exteriorização, sejam indissociáveis, cada qual carrega seus traços mais fortes e predominantes. Grosso modo, a matéria – nos seus entendimentos correntes – tende para algo de concreto, enquanto a próxima noção a ser estudada, a de técnica, parece se instalar mais confortavelmente ao lado do artista e de sua ação. A noção de exteriorização da arte se apresentaria, então, como a interseção entre matéria e técnica. c) O Papel da Técnica na Construção da Pluralidade das Artes É na figura do artista que o senso comum propõe algumas soluções frente à problemática da técnica na arte. As pessoas geralmente distinguem o artista em que a técnica serve à arte daquele em que técnica serve a si mesma. A técnica do primeiro é somente um meio, enquanto no segundo ela é seu próprio fim. Essa parece ser a visão predominante. Há quem parta desta premissa quando procura caracterizar certo artista. “Esse é muito técnico, aquele tem mais emoção”. “Toda arte tem técnica, mas nem toda técnica tem arte”, diriam. Em outro grupo, menos numeroso, existem aqueles que, indo além desta primeira distinção, reconhecem que os aspectos formais de uma obra e que a habilidade técnica contém em si um potencial expressivo próprio. Estes últimos apreciam as dificuldades e as maneiras através das

     AS  DIFERENÇAS  ENTRE  AS  ARTES     Capítulo  1  

40

quais o artista encontra e propõe soluções técnicas. Existem ainda os que acreditam que essa questão é estéril e que, não se pode separar arte e técnica. E na obviedade da reflexão creem ter resolvido esse problema da Estética. Mas, como disse Pareyson, “se as diferentes atitudes se enrijecem e se contrapõem, a polêmica é nítida e a conciliação impossível“ (2001, p. 167). A própria existência destas três posturas, tão presentes no senso comum, já revela que esse encontro, entre técnica e arte, é complexo. Aliás, os citados posicionamentos muitas vezes se constituem como instrumentos importantes de julgamento estético. Acrescenta-se ainda à essas três atitudes, a corriqueira associação de técnica e estilo. Fala-se na técnica particular deste ou daquele artista ou associam técnica a conformidade a uma determinada escola. Essas maneiras de pensar, longe de se limitarem ao senso comum, estão presentes também, de outras formas, em reflexões filosóficas e estéticas. Ainda segundo Pareyson (2001, p. 167), dois são os posicionamentos principais face ao problema da técnica. O primeiro grupo é composto pelos “românticos”, para os quais o principal é a originalidade, a inspiração, a carga espiritual. A prática técnica não tem relevância por si mesma, pois a história de uma linguagem artística se constrói a partir das obras, e as condições técnicas, por si mesmas, são destituídas de importância artística. O segundo grupo é constituído pelos “técnicos”, aqueles que defendem a disciplina e o amor ao savoir-faire. Para eles, a técnica ocupa lugar de honra. Cada arte tem a sua técnica, a sua “linguagem”, com uma dada gramática e uma dada sintaxe, e o artista deve antes de tudo exercitar-se neste trabalho com uma rude disciplina e um exaustivo tirocínio; [...] a arte não é tal se não é também ofício, e, por isso, cada artista é, antes de tudo um artesão. [...] [Neste grupo] afirma-se que há um desenvolvimento autônomo da técnica e da linguagem de uma determinada arte, desenvolvimento que põe os artistas diante de determinados problemas técnicos que eles tentam resolver, e assim nascem, para eles, possibilidades expressivas que primeiro não existiam, de modo que adquire grande relevância artística o trabalho de exercitação, isto é, as pesquisas técnicas, estilísticas, formais. (ibid., p. 166-167).

O esteta italiano resume as duas posições da seguinte forma: Em suma, de um lado se afirma a autonomia da técnica, singularizável fora das obras do artista, comuns às obras de uma mesma arte, transmissível de um artista para outro, separável da criação artística, precedente, imanente, subsequente à atividade de um artista; de outro, pelo contrário, afirma-se que a técnica diz respeito à arte na medida em que se identifica sem resíduo com a criação, irrepetível e individual como a obra singular e a possibilidade artística, inseparável da atividade do artista, admissível, quando muito, em respeito pela arte passada e, por isso, como dever de correção ou regra de boa conduta. (ibid., p. 167-168)12. 12

Pareyson ainda cita a distinção feita por Croce entre “técnica interna” e “técnica externa”, a primeira é identificada como o próprio ato da criação e a segunda se refere ao “ato prático da ‘comunicação’, isto é, à entrega da figura artística”. (ibid., p. 166).

AS DIFERENÇAS ENTRE AS ARTES Capítulo 1

41

Que técnica é um termo ambíguo, não há dúvida. Se juntarmos o fato, manifesto, de que cada arte se relaciona de maneira distinta com sua técnica, também distinta, e de que cada fase da produção de arte comporta sua própria técnica, sem esquecer da percepção da técnica, que variará enormemente em função da profundidade da relação que o crítico, o amador e ou o artista tem com determinada arte, ou mesmo que o grau de exposição da técnica varia muito em função de cada arte – por exemplo, na execução musical ou de uma peça teatral a recepção dos aspectos técnicos passam por vias muito distintas que na apreciação de uma pintura – levando em conta todos esses fatores, e outros que o leitor pode facilmente acrescentar, parece muito difícil adotar uma posição clara no que concerne a técnica na arte. Parece tão difícil quanto apresentar uma definição verdadeira e peremptória de arte. Mesmo quando atribuímos valor de verdade à distinção comum entre técnica e arte, e pensamos poder diferenciar as artes a partir de suas técnicas, rapidamente perceberemos que existem muito mais técnicas que artes e que a dissociação de uma e outra pode ser frágil e artificial. Sem pretender encontrar soluções definitivas para esses impasses, nos concentraremos na própria tensão do conceito. Pois desta tensão emanam consequências importantes para a distinção das artes e a afirmação de suas diferenças. A etimologia da palavra arte revela uma associação imediata com a técnica ou habilidade (do latim, ars). A palavra técnica, por sua vez, remete à arte, ofício ou habilidade (do grego, téchné). Mas a história foi aos poucos imprimindo novos e, por vezes, contraditórios significados no interior do termo. O que acontece finalmente é que a arte, no seu sentido corrente, ao mesmo tempo que contém a noção de técnica, a exclui. E a aceitação comum dessa distinção que opõe o sublime e o técnico, a verdadeira arte e a pura técnica, acaba por paralisar o surgimento de entendimentos mais consistentes que deem conta dessa tensão. A crença em uma nítida linha demarcatória entre arte e técnica pode obliterar novas possibilidades de se entender esse jogo de forças. Jean-Luc Nancy diz que a arte se instaura justamente nesta articulação entre seus dois aspectos: um sublime e outro técnico (1994, p. 18). Mas essa tensão, ela mesma, permanece sem conceito, sem poder nomeada. O encontro, ou melhor dizendo, a coexistência entre as duas instâncias é tensa porque a tecnicidade da arte retira a própria arte da sua zona de conforto poiética, entendendo o poiético como a revelação de um sublime13. A técnica retira,

13

Segundo Souriau (1990, p. 1219), a “poiética” (poïétique) é o estudo filosófico e científico dos processos criativos das obras. O termo poética será muitas vezes usado como sinônimo de poiética neste trabalho, tal como fizeram alguns autores, por exemplo, Luigi Pareyson, John Cage, Stravinsky e Paul Valéry, embora tenha sido

     AS  DIFERENÇAS  ENTRE  AS  ARTES     Capítulo  1  

42

incessantemente, as artes de sua tranquilidade e, dessa forma, deixa de ser mero conjunto de procedimentos, instrumentos e cálculos. A técnica propulsiona o sublime na direção de seu fim. “O ‘fim da arte’ é sempre o começo de sua pluralidade.” (ibid., p. 66)14. De uma maneira mais estética que filosófica, mais positiva que especulativa, Pareyson situa na história o peso da técnica no interior da arte (2001, p. 21-24). Ele sintetiza uma das definições tradicionais da arte, no fazer. “Arte como fazer”, que antecedeu à “arte como conhecer” e à “arte como exprimir”. O fazer foi o mote central da arte da Antiguidade aos princípios da Renascença. Não que nessa arte não houvesse conhecimento ou expressão, mas o fazer predominava em sua dimensão utilitária, de uma aplicação artística mais prática e que não fosse completamente gratuita. A “arte como conhecer” não negava sua dimensão de fazer, mas enfocava no saber fazer, o savoir-faire, e dava maior dignidade para as artes antes consideradas como servis ou mecânicas, entre as quais a pintura se incluía. Na “arte como exprimir”, por outro lado, autônoma e bem desligada de sua obrigatoriedade prática, de sua funcionalidade, a dimensão do fazer é renegada a um plano inferior, o que pode ser algo prejudicial, pois desobrigando o artista de uma disciplina regular e o autorizando toda liberdade, acaba limitando o modo de formá-los e somente aqueles com talentos excepcionais conseguem se firmar. Pois em arte, mesmo que haja um valor de originalidade e de sensibilidade impossível de se ensinar, há também uma parte de ofício, de artesanato, algo possível de se aprender. Sem isso, não haveria razão de ser a existência de cursos, escolas e formações de artistas. Bastariam as galerias, teatros, salas de exposição, etc. O fazer divide com o conhecer e o expressar atributos no interior da própria definição social da arte. Embora o objetivo desta parte da tese seja somente verificar o quanto a tensão entre técnica e arte (sublime) pode interferir no entendimento da divisão das artes, há ainda uma distinção muito interessante, apresentada por Mário de Andrade em seu Baile das Quatro Artes (1964), que é aquela entre técnica e artesanato. Este último seria uma parte da técnica da arte. Mas uma parte que não a resume. O artesanato é a parte da técnica que se pode ensinar. [...]. Mas há uma parte da técnica de arte que é, por assim dizer, a objetivação, a concretização de uma verdade interior do artista. Esta parte da técnica obedece a segredos, caprichos e imperativos do ser subjetivo, em tudo o que ele é, como individuo e como ser social. (Andrade, 1964, p. 11).

Mário de Andrade decompõe, então, no interior da técnica, aquilo que se aprende, daquilo que é inerente à própria obra de arte e não se aprende. Em seu texto sobre Portinari, este último quem primeiro falou em poiética. Neste trabalho, o termo “poiética” será somente utilizado quando o autor citado se ater a esse termo. 14 “La ‘fin de l'art’, c'est toujours le commencement de sa pluralité.”

AS DIFERENÇAS ENTRE AS ARTES Capítulo 1

43

por exemplo, Mário o apresenta como artista que agrega em sua plástica o virtuosismo de artesão e uma significação poética possante e intensa (Andrade, ibid., p. 124). Existem muitas e variadas maneiras de entender o problema estético da coabitação tensa entre sublime e técnico, ou arte e técnica, ou arte e artesanato, ou qualquer outra combinação desses predicados. Vamos nos ater, porém, na constatação da tensão que existe na questão e suas consequências no interior desta tese. O singular da arte parece se ligar mais diretamente à dimensão do sublime, do ideal. E este singular, como disse Nancy (1994, p. 18), deve ser, no mínimo, indiferente à pluralidade das espécies de arte. O plural deve, assim, residir do outro lado, ou seja, na técnica. A arte, singular, só se materializa através da sua dimensão técnica, que é, por sua vez, plural. Mas a técnica da arte, seja em sua dimensão artesanal, acessível, que se pode ensinar, ou em sua maneira mais absoluta e intocável, indissociável do sublime, não existirá senão através de linhas, cores, sons, pedras, enfim de um suporte material. Do fato das artes e suas matérias e técnicas não se deixarem ordenar de maneira induvidosa e positiva originam-se as mais variadas diferenciações das artes e possibilidades de classificação e hierarquização. 2. Limites Móveis: Sistemas de Classificação das Artes São muito numerosos os limites das artes sugeridos ou impostos pelos tantos estudiosos que desejaram ordenar ou buscar maneiras de descrever a multiplicidade das artes. Atemos-nos naqueles que, com clareza, buscaram uma proposta mais empírica e classificatória. Embora reconheçamos a instabilidade das fronteiras entre as artes e recusemos uma tomada de partido definitiva por um ou outro sistema, a observação de algumas classificações vai nos ajudar a entender, de uma maneira ampla, as diferenças das artes. Ou seja, as artes em seu aspecto plural. Vamos percorrer sucintamente algumas importantes referências no que concerne o pensamento sobre as diferenças ou os limites entre as artes. É preciso lembrar, no entanto, que a concisão do texto que se segue, e suas inevitáveis lacunas, é um recurso necessário para evitar o distanciamento do objetivo geral da tese, que é o de propor uma maneira particular de se observar os encontros entre artes distintas. Uma visão panorâmica, mesmo que incompleta, deve ser o bastante para entendermos que a diferença das artes não habita somente nas próprias artes, mas também na subjetividade dos olhares de quem reflete sobre elas.

     AS  DIFERENÇAS  ENTRE  AS  ARTES     Capítulo  1  

44

a) Dos Gregos ao Idealismo Alemão Aristóteles, no século IV a.C., se voltando sobretudo à tragédia grega, revelou-se interessado em enumerar e diferenciar as diversas práticas do que hoje chamamos de arte. Acabou instaurando um pensamento que ressoa até a atualidade como potente material de reflexão: a ideia de arte como imitação ou mimeses. Em sua Poética, Aristóteles apresenta como imitação, logo no princípio do seu texto, a epopeia, o poema trágico, a comédia, o ditirambo, assim como a arte do aulética e da citarística (Aristóteles, 1996, p. 31)15. Todas as artes são mimeses realizadas em meios distintos ou através de materiais distintos. O pensamento central ou, como Gazoni (2006, p. 8) coloca, o centro da moral aristotélica, está na tragédia como mimeses de uma ação e na primazia do enredo frente ao caráter. Sua distinção das artes é também guiada pelo princípio do belo, entendido em sua relação com simetria e ordem (ibid., p. 11). As artes se diferenciam pelos meios em que se realizam a mimese, seja pela voz, seja pelas cores ou figuras. Apesar de um dos assuntos mais citados no estudo de Aristóteles ser a catarse e esta vir associada com frequência à música, em sua Poética, a arte dos sons é citada apenas como ornamento, sem se integrar na estrutura do enredo da tragédia. A música acaba tendo uma posição secundária nesta obra (ibid., p. 18). Porém, mesmo sem se estender em maiores reflexões que concernem especificamente a música, o pensador grego distingue as artes rítmicas (dança, poesia e música) das artes do repouso (pintura e escultura). Desta forma, ele coloca como fundamento da diferenciação das artes, além da ideia tão reputada da imitação, a noção de movimento. Segundo Pareyson, os primeiros esboços de uma filosofia da arte observados no pensamento grego antigo subsumiam, em um único gênero de imitação, três espécies de imitação: [...] a do figurar ou retratar (απειχαζειν), como na pintura, em que o meio da imitação coincide com o seu objeto, isto é, a cor é imitada com cor, a figura com figura, e assim por diante; a do mimar ou refazer (µιµεισϑαι), como no drama, onde o ato da imitação coincide com seu meio, isto é, trata-se de substituir e refazer palavras e gestos, de repetir o som dos animais, e por ai afora; a do representar ou exprimir (αφοµοιουν), como na música, cujo meio da imitação é diverso do seu objeto, e o produto do ato de imitação é, apenas, semelhante ao seu objeto, isto é, trata-se de reproduzir com o som as paixões da alma. (Pareyson, 2001, p. 174).

Entre autores da Antiguidade, dois se destacaram por se endereçarem de uma forma particular à classificação das artes. O poeta grego Simônides de Ceos (556-468 a.C.) refletiu sobre a natureza da poesia e a apresentou como uma pintura falante, enquanto que a pintura 15

Ditirambo: hino de louvor a Dionísio. Aulética: prática do aulos, instrumento de sopro da Grécia antiga, cuja origem é atribuída ao sátiro Marsias. Citarística: prática da cítara.  

AS DIFERENÇAS ENTRE AS ARTES Capítulo 1

45

seria um poema mudo. E esta antítese adquiriu bastante popularidade durante séculos e é por vezes citada como primeiro esboço de uma teoria da imagem. Outro autor bastante mencionado quando se trata do estudo da Estética que compara e aproxima as artes, é Horácio (65 a.C - 8 a.C.). A famosa citação “Ut pictura poesis” (poesia é como a pintura) vem de sua Ars Poetica. A frase foi tirada de seu contexto original e acabou quase se convertendo em uma teoria da poesia e servindo de argumento para a homogeneidade das naturezas da poesia e da pintura. De fato, a igualdade pretendida entre os poetas e os pintores, em Horácio, não se situava no plano da natureza dos materiais, mas na liberdade dos artistas de criarem o que bem quiserem16. Outros autores antigos também fizeram referência às distinção das artes, são eles: Plutarco (46-126 d.C.), que se concentrou sobretudo nos materiais com os quais as artes trabalham, mais do que com a natureza e os objetivos das artes; o escritor grego Filóstratos de Lemnos (170-250 d.C., aproximadamente), em sua obra Vida de Apollonius, menciona a dualidade da imitação e da imaginação, a primeira trabalhando com o visível e a segunda com o invisível; Dion Crisóstomus (nascido 40 a.C.) comparou, em Oração do Olimpo, o poeta épico Homero e o escultor Fídias no tratamento do deus Zeus. No século I d.C., Longinus, Caio Plínio Segundo e Quintiliano também fazem observações sobre alguns aspectos da teoria das artes, mas suas contribuições para a teoria da crítica artística permanecem bem limitadas, como notou o linguista e tradutor americano Edward Allen McCormick (Lessing, 1989, p. xiii e xiv). Nos séculos que se sucedem aos autores citados existe uma aparente lacuna no que diz respeito à teoria e à classificação das artes. O que se tem, entretanto, é uma distinção, com ares mais sociológicos do que propriamente estéticos, que tem origem nas classificações gregas, como mostra o Vocabulário de Estética de Étienne Souriau (1990, p. 1001). Trata-se da diferenciação entre artes liberais e artes mecânicas ou servis. As artes liberais eram sete e se dividiam no Trivum, composto pela gramática, retórica e lógica, e o Quatrivium, que compreendia aritmética, geometria, música e astronomia. As atividades essencialmente intelectuais das artes liberais se opunham àquelas ditas mecânicas, originalmente destinadas aos escravos e que eram trabalhos basicamente manuais e, por isso, depreciativos. A arte musical, estando entre as artes liberais, gozava de maior prestígio. Por isso, grandes artistas 16

Simonides e Horácio são mencionados por Edward Allen McCormick (Lessing, 1989, p. xii) em sua introdução para o Laocoone de Lessing. Quanto a Horácio, McCormick cita o seguinte trecho de Ars Poetica: “pictoribus atque poetis quidlibet audendi semper fuit aequa potestas.” Traduzido para o inglês como: “poets and painters have always had an equal license to venture anything at all”. (poetas e pintores sempre tiveram uma mesma licença para tudo ousarem).

     AS  DIFERENÇAS  ENTRE  AS  ARTES     Capítulo  1  

46

do Renascimento, em particular Leonardo da Vinci, dispenderam esforços para que a pintura fosse reconhecida como atividade tão nobre quanto às outras, já que ela também obedecia ao rigor da ciência das proporções e dos números17. Esses esforços foram coroados de sucesso, pois, no século seguinte, as belas-artes integravam as artes liberais, mesmo que tenha sido somente no século XVIII que a distinção entre artistas e artesãos se estabelece com maior nitidez. O vazio bibliográfico que perdurou por séculos e séculos após o pensamento dos gregos antigos é atribuído por McCormick (Lessing, 1989, p. xiv) a uma mania de alegorias que reinou tanto na pintura quanto na poesia. Nesse ínterim, isto é, entre os gregos da Antiguidade e a reafirmação da reflexão sobre a diferença das artes, McCormick cita somente dois autores: o italiano Ludovico Dolce, que em 1557 escreveu a obra Dialogo della Pittura, reverberando o pensamento dos antigos, segundo o qual o elemento comum entre as artes é a imitação, e o inglês Edmond Spencer, que comenta as alegorias medievais em Faerie Queene, de 1590. Thomas Munro (1954, p. 142-143), autor de uma obra de grande importância na compreensão dos diferentes sistemas de distinção das artes, inclui ainda Santo Agostinho (354-430) e a separação das artes em função dos prazeres que elas dirigiam aos diferentes sentidos, Francis Bacon (1561-1626) e os saberes humanos ora ligados à memória (história), à imaginação (poesia) e à razão (filosofia). O “silêncio”, no que concerne o domínio da teoria e diferenciação das artes, só é realmente rompido em 1766 pela obra Laocoonte do poeta, dramaturgo e filósofo alemão Gotthold Ephraim Lessing (1729-1781)18. O Laocoonte, ainda segundo McCormick (Lessing, 1989, p. xxv), é somente um fragmento de uma obra maior que tinha sido idealizada para ir além do estudo das relações entre pintura e poesia. A música, por exemplo, seria tratada em uma segunda e terceira parte e seria colocada em contato com a poesia e com a dança. Essas três artes se ligariam pelo fato de se relacionarem de maneira similar com o tempo. “[...] eu não prometo que, sob o nome de poesia, não vou dedicar alguma atenção também àqueles outras artes em que o método de apresentação é progressivo no tempo.” (ibid., p. 6) 19 . A noção aristotélica de imitação,

17

Da Vinci, em seu Tratado de Pintura, defendia a superioridade da pintura sobre a música, argumentando que esta última estava sempre submissa à ação do tempo e que era obrigada a nascer e morrer, enquanto a obra de um pintor preserva a imagem de uma beleza divina mais do que a própria natureza. (Bosseur, 1999, p. 25).   18 O título da obra vem da escultura Laocoonte e seus filhos, obra de autoria desconhecida, esculpida na primeira metade do século I a.C. e exposta atualmente no Museu do Vaticano. A escultura representa um episódio da Guerra de Tróia relatada na Ilíada de Homero e na Eneida de Virgílio. Laocoonte, sacerdote de Apolo que havia previsto o risco do cavalo de Tróia representava para cidade, é estrangulado por duas serpentes, junto ao seus dois filhos.   19 “[...] I do not promise that, under the name of poetry, I shall not devote some consideration also to those other arts in which the method of presentation is progressive in time.”  

AS DIFERENÇAS ENTRE AS ARTES Capítulo 1

47

segundo a qual as artes se diferem de acordo com os objetos e as maneiras como imitam, ainda é válida na obra de Lessing, mesmo que não seja propriamente afirmada. Sua obra apresenta as oposições entre pintura e poesia e as distingue sobretudo pela maneira como elas se relacionam com o tempo, ou seja, na instantaneidade do visual e a sucessividade do verbal. Entretanto, o autor não situa as duas artes, poesia e pintura, em locais distantes entre eles e sim em domínios fronteiriços. O filósofo alemão sugere ao leitor ouvir o grito ou o suspiro da escultura do Laocoonte, que luta para escapar da serpente que o envolve (ibid., p. 15). Apesar de não colocar em questão a oposição entre sucessão e instantâneo, Lessing diz que o pintor ou o poeta penetram os territórios um do outro quando, no caso do pintor, coloca na mesma cena pontos separados no tempo e, no caso do poeta, quando se esforça para dar a ideia de totalidade a partir da enumeração, parte por parte, de algo. No caso do pintor, o exemplo citado por Lessing é uma cena de Francesco Mazzuoli (1503-1540) em que existe uma agressão e uma reconciliação no mesmo espaço, e a representação do filho pródigo por Ticiano (ibid., p. 91). Assim, a força da poesia ou da pintura deve suspender ou mover as fronteiras entre esses domínios artísticos. O interesse e a admiração crescente pelo Laocoonte no modernismo, nos estudos de estética, semiótica ou linguística, é atribuído ao fato de Lessing ter estabelecido elos entre linguagem e meio de comunicação, sendo a linguagem considerada como meio poético (McCormick in: Lessing, 1989, p. vii). A herança do pensamento grego da arte como imitação resistiu, então, durante séculos e imperou até o limiar do Romantismo. Junto à ela, vinha a dupla existência da arte em sua unidade e em sua variedade, ou, nas palavras de Pareyson, reinou a “unidade da arte como imitação e a diferença das artes como pluralidade dos modos de imitar” (2001, p. 174). No final do século XVIII, surge uma importante obra da Estética, a Crítica do Juízo, publicada em 1790, de Immanuel Kant (1724-1804). Segundo Nancy (1995, p. 21), a diversidade das artes para Kant é um dado objetivo e que vai de si mesmo. Ele estabelece distinções entre arte, natureza, ciência e artesanato remunerado. A partir daí a arte é dividida entre mecânica e estética e esta última, por sua vez, se ramifica nas chamadas “arte bela” e “arte agradável”. Em arte bela incluem-se as artes da palavra (por um lado a retórica e a eloquência, por outro a poesia), as artes da forma (por um lado as artes plásticas, que para Kant eram a escultura e a arquitetura, e por outro as pinturas, que incluem a pintura entendida de maneira vasta, a arquitetura paisagista e o mobiliário decorativo e vestuário) e, por fim, a arte do belo jogo das sensações (música e arte da cor). A chamada “arte agradável” seria composta de atividades leves que levam a sociedade à descontração. Kant inclui nesse grupo o que chama de “música de mesa” (Tafelmusik), a arte de compor uma mesa, o divertimento e a

     AS  DIFERENÇAS  ENTRE  AS  ARTES     Capítulo  1  

48

narrativa (Munro, 1954, p. 154). Mas esse sistema kantiano está longe de ter uma grande aceitação. É simples reconhecer que no interior dele existem inúmeros elementos incômodos, como a inclusão de certas artes e a exclusão de outras. Nancy (1994, p. 22) se questiona sobre a falta de justificativa para sua tripartição e também quanto ao privilégio que ele concede à linguagem escrita. Entre o momento em que a Estética se afirmava como disciplina e o pensamento romântico se consolidava no século XIX, filósofos como J. G. Fichte (1762-1814), F. W. J. Schelling (1775-1854) et G. W. F. Hegel (1770-1831) constituíam os fundamentos do chamado pensamento idealista, que fundamentou o romantismo do século XIX. Sob influência de Kant, esses filósofos estabelecem como mote central de suas pesquisas, as relações entre o Eu e o Absoluto. As práticas artísticas e os debates sobre arte refletem, ou até mesmo, se constituem, questões centrais em suas filosofias. A partir de um artigo de Victoria Llort Lloart (2010, p. 68-74) e da obra de Thomas Munro (1954, p. 155-160) apresentamos uma síntese de dois sistemas de classificação das artes, o de Schelling e de Hegel. Para constituir seu sistema de artes, Schelling propõe uma divisão entre artes figurativas e discursivas. Dentro de cada uma delas se distinguiria três aspectos: um real (objetivo, natural, físico, corporal, externo), um ideal (subjetivo, espiritual, imaterial, interno) e uma síntese desses dois. É interessante observar no desenvolvimento deste sistema de artes que no interior de cada arte existem atributos de uma outra. Por exemplo, na melodia de uma música reside plasticidade, no desenho de uma pintura reside uma musicalidade. Esse sistema refletia certamente o ideal de unidade na multiplicidade do espírito idealista que se firmou no romantismo. Aliás, como observa Munro (ibid., p. 155), na série das artes “reais”, o Infinito se encarna no Finito, no princípio da beleza, mas particularmente da beleza antiga, e na série das artes “ideais” o Finito é ordenado no Infinito. Reproduzimos, traduzido do francês, o sistema de Schelling, tal como o representou Llort Loart (Diagrama 1, 2010, p. 73):

AS DIFERENÇAS ENTRE AS ARTES Capítulo 1

Sistema das artes

ordem

Artes figurativas

Artes do discurso

49

arte

unidade

correspondências

real

música

ritmo modulação melodia

(música na música) (pintura na música) (plástica na música)

ideal

pintura

desenho claro-escuro cor

(música na pintura) (pintura na pintura) (plástica na pintura)

síntese

plástica

arquitetura baixo relevo escultura

(música na plástica) (pintura na plástica) (plástica na plástica)

real ideal síntese

poesia lírica poesia épica poesia dramática

(música na poesia) (pintura na poesia) (plástica na poesia)

Diagrama 1: Sistema de classificação das artes segundo Schelling.

Munro (1954, p. 157) considera Hegel como o primeiro filósofo a explorar a história da arte em sua totalidade e a revelar uma visão global e um encadeamento lógico das fases. Entretanto, seu sistema das artes acaba sendo menos uma tentativa de classificação que uma teoria de evolução e da hierarquia das artes. Em sua obra Estética, publicada em 1835, ele constrói uma teoria completa da evolução das artes, entendendo-as como revelações da ideia em formas sensíveis20. No interior de uma ampla teoria ele inclui uma classificação das artes. O universo da beleza imaginada e da obra materializada percorre três estágios, complementares e sucessivos ao mesmo tempo: o simbólico, o clássico e o romântico. A esses três estágios correspondem três tipos de arte com o mesmo nome. E em cada uma das belasartes (para ele, arquitetura, escultura, pintura, música e poesia) coexistiriam os três estágios ou tipos de arte. Hegel atribui às artes particulares a existência de uma arte considerada como a manifestação da Ideia. Nancy, baseando-se e citando trechos da Estética de Hegel, a relação que o filósofo estabelece entre a unidade e a multiplicidade das artes: [...] a “unidade indivisível” da arte e a “diferenciação” de suas “formas” históricas exigem ainda, [...], “a realidade puramente exterior”, que deve ser aquela das “artes particulares”. Sobre esse aspecto, o “ideal se dissocia em seus momentos construtivos,

20

A Ideia, em Hegel, remete ao princípio inteligível da realidade. Um princípio que é uno e universal, desligado do que é particular, objeto ou fenômeno (Hegel, 1996, p. 35).

     AS  DIFERENÇAS  ENTRE  AS  ARTES     Capítulo  1  

50

deixando cada um subsistir de uma maneira independente [...] pois é às artes particulares que as formas de arte devem sua existência”. (Nancy, 1994, p. 23)21.

Somente na realidade “puramente” exterior das artes, no plural, que a unidade da arte pode se manifestar. Ou seja, a exterioridade das artes, no plural, é fundamental à própria essência da arte, no singular. “A pluralidade das artes é tão essencialmente irredutível quanto a unidade da arte é absoluta.” (ibid., p. 24)22. b) No Século XX A Filosofia ou a Estética do século XIX encontrou alguns modelos e sistemas classificatórios das artes que deixaram grandes marcas nas disciplinas em que se inscreveram. Porém, mais que se voltar para às diferenças, o pensamento romântico, de maneira geral, tendia a dar mais importância à função expressiva das artes ou à sua carga espiritual. O sentimento que anima a atividade artística era mais importante que a forma que a regia e a exteriorizava. Talvez como reação ao ideal romântico de totalidade, pululam, na primeira metade do século XX, reflexões sobre a diferenciação das artes. É o caso, por exemplo, das classificações citadas pelo escritor e esteta Ariano Suassuna em sua Iniciação à Estética (2008, p. 284-288). A primeira é a de Maurice Nédoncelle que divide as artes em visuais (pintura, escultura e arquitetura), auditivas (música e artes da linguagem, lê-se literatura), táteis-musculares (dança, mímica e esportes) e artes de síntese (teatro, cinema, ópera e balé). Esta diferenciação se apropria da distinção tradicional das artes a partir dos órgãos do sentido para o qual elas se dirigem ou estão ligados e, a partir daí, ela é desenvolvida. Mas alguns problemas emergem dessas distinções das artes. Suassuna nos aponta três. O primeiro diz respeito à confusão entre as instâncias artísticas da criação, execução e recepção. A dança como arte tátil-muscular privilegia o executante sobre o receptor, pois “do ponto de vista do sentido através do qual ela [a dança] se entrega à contemplação, é de uma Arte visual como a Pintura ou a Escultura” (ibid., p. 185). O que também representa um problema é o fato de incluir os esportes entre formas de arte. Embora vários esportes possam alcançar grande beleza plástica, a noção de identidade, as finalidades ou o grau de determinismo normalmente

21

“[…] l'‘unité indivise’ de l'art et la ‘différenciation’ de ses ‘formes’ historiques exigent encore, […], ‘la réalité purement extérieure’, qui doit être celle des ‘arts particuliers’. Sous cet aspect, ‘l'idéal se dissocie en ses moments constitutifs, laissant chacun subsister d'une manière indépendante [...] car c'est aux arts particuliers que les formes d'art doivent leur existence’.”   22 “La pluralité des arts est aussi essentiellement irréductible que l’unité de l’art est absolue.”  

AS DIFERENÇAS ENTRE AS ARTES Capítulo 1

51

atribuído às obras de arte, não encontram ressonâncias diretas nos esportes. Colocar literatura entre as artes auditivas também causa estranheza, já que já que o texto literário se dirige diretamente ao intelecto, independente de se revelar visualmente ou auditivamente. Outra diferenciação das artes parece se situar bem próxima a uma das distinções estabelecidas por Aristóteles e aproxima-se, mais sutilmente, das de Lessing. É a do esteta alemão Max Dessoir, que classifica as artes em espaciais (ou do repouso) e temporais (ou do movimento). As artes espaciais são caracterizadas por elementos concomitantes. É o caso da escultura, da pintura e da arquitetura. As artes temporais são conduzidas por elementos sucessivos (música, literatura e mímica). As outras artes, como o teatro, o cinema, a dança, a ópera e o balé seriam o que Dessoir chama de artes de associações. Suassuna critica essa última denominação pelo fato dessas artes, para ele, serem artes independentes e com vida própria. Chamá-las de artes de síntese, como Nédoncelle o faz, deve ser mais apropriado (ibid., p. 186). O filósofo Alain fez face à questão da classificação das artes, que ele preferiu chamar de sistema, ou seja, um conjunto de propostas, princípios e conclusões, para evitar que seu texto fosse entendido como algo excessivamente hermético. Uma das suas primeiras preocupações, entretanto, foi a de dizer que cada obra se afirma por si só e que cada obra cria sua regra. Dessa forma, como observou Etienne Gilson (1964, p. 23), o autor curiosamente nega o próprio princípio de um sistema e o próprio título de sua obra. Alain, em seu Systhème des beaux arts (Sistema de Belas-Artes) (1926), enfatiza as diferenças das artes, mas reconhece, em seu prefácio, que elos entre as artes se afirmam nos meandros dessas diferenças. Além das particularidades de seu sistema das belas-artes que veremos mais abaixo, o filósofo francês apresenta como fio condutor a figura da imaginação, entendida nos moldes cartesianos, ou seja, ligada primordialmente ao plano dos sentidos e a seus órgãos, antes de encontrar suas representações no pensamento racional. Por isso ele dedica a primeira das onze partes que compõe a obra citada ao que ele chamou de “imagination créatrice” (imaginação criadora). Do jogo entre as percepções – qualificadas como induvidosas – e a imaginação, e entre as imagens e os objetos, nascem as obras de arte. Elas seriam como a tradução de imagens combinadas por uma elaboração interior. A potência da imaginação se define como impressão e emoção misturadas e assim se firma como um mecanismo do corpo que altera a ação normal das coisas (ibid., p. 25). O estudo sistemático das diferentes artes seria, para o filósofo francês, como a verificação de sua doutrina da imaginação. Algumas vezes Alain exalta a beleza da atividade humana que age sobre a matéria e rompe sua resistência. Apesar de ter elaborado um quadro das belas-artes, o autor revela que seu método

     AS  DIFERENÇAS  ENTRE  AS  ARTES     Capítulo  1  

52

consiste em expor e explicar cada arte. E isso sem pretender provar nada, nem criar regras. Pois as regras são as obras que as trazem (ibid., p. 8). Antes de enumerar as artes, Alain menciona certa classificação natural em dois grupos que se delineiam por eles próprios. São as artes de sociedade e as solitárias, que não podem ser entendidas de maneira absoluta, evidentemente23. O fundamento desta distinção está na relação entre o artista ou artesão e seu objeto. No caso de um pintor, um escultor ou um escritor, a instauração do objeto artístico se dá sem interferência direta de uma coletividade, mesmo que sua obra se dirija a ela. Estas artes integram as artes solitárias, nas quais Alain ainda acrescenta a arte do mobiliário, do ceramista e um certo gênero de arquitetura. No caso da música, mesmo que possa haver improvisações solitárias, ela vai do indivíduo à assembleia presente e, por isso entraria no quadro das artes de sociedade, juntamente com a poesia e a eloquência. A arquitetura pública construiria o elo entre arte coletiva e solitária. Em seguida, Alain nos apresenta uma classificação das artes em três grupos. O primeiro abrange as artes do gesto, nas quais a ligação entre imaginação e ação é a mais direta. Incluem-se neste grupo: a dança, a mímica, a acrobacia, a equitação, a esgrima, a polidez, os costumes, a arte do estilista, do joalheiro, do cabelereiro, dos armamentos e a arte heráldica24. O segundo grupo é composto pelas artes vocais ou de encantamento e incluem principalmente a poesia, a eloquência e a música. E o terceiro grupo, as artes plásticas, que são definidas pelo auxílio que o gesto aporta à visão e comporta a pintura, a escultura, a arquitetura e a escrita, que é a mais solitária das artes. Alain alude a conhecida distinção entre artes do movimento e artes do repouso e apresenta a arte teatral como aquela que reúne em si todas as artes em movimento. Alain deixa claro, na sua recusa à imposição de regras ou provas, que as classificações são permeáveis e não devem ser tomadas como definitivas ou verdadeiras. Duas décadas depois de Alain, o esteta Étienne Souriau apresenta um sistema de belasartes como núcleo central de sua obra A Correspondência das artes (1947). Antes de chegar a um quadro que distingue e nomeia as artes, Souriau apresenta algumas classificações tradicionais e expõe o que ele julga como suas deficiências (ibid., p. 76-81). Cita, por exemplo, aquela que distingue às artes do espaço das artes do tempo. Qualquer maior reflexão, diz ele, revela a fragilidade da classificação, pois a música também é submissa a 23

“[…] sabendo-se que não existe, em tese, arte solitária.” (Alain, 1926, p. 42). “[...] étant bien entendu qu’il n’y a pas d’art solitaire à parler absolument.”   24 A inclusão de práticas esportivas, certas atividades profissionais, polidez e costumes na classificação das artes podem causar estranhamento. Essa inclusão se dá pelo fato de Alain reunir as chamadas artes maiores e as artes menores. Não se tratando de uma questão essencial desta pesquisa, o que é ou não é arte, ou a diferenciação entre artes maiores e menores, evitaremos nos debruçar sobre esta questão e nos ateremos aquilo que possa trazer contribuições diretas a esse histórico de modelos classificatórios.  

AS DIFERENÇAS ENTRE AS ARTES Capítulo 1

53

ação do espaço e a arquitetura e a pintura precisam do tempo para se revelar. E o cinema, onde se situaria? A classificação também corriqueira entre artes visuais e auditivas, para Souriau, é incompleta por não levar em conta aspectos cinéticos, excluindo assim um importante dado fenomenal. Ele cita ainda, de passagem e as desqualificando, a classificação das artes em reais ou ideias (Schelling); sociais e solitárias (Alain), em diversão, educação e afirmação de potência (George Sorel). Mais do que os materiais a partir dos quais uma arte é instaurada ou os sentidos para os quais uma arte se dirige, o que distinguirá as diferentes artes será o que Souriau chama de qualia, qualidades sensíveis das matérias. É baseado na enumeração desses atributos que Souriau desenvolve seu sistema. São eles: a linha, a cor, o relevo, a luminosidade (o claroescuro), o movimento muscular, a voz articulada e o som puro (ibid.., p. 86). Em seu quadro, as artes se dividem em função da hegemonia de uma certa gama de qualia, isso quer dizer que não existe uma pureza nas qualidades sensíveis dos materiais artísticos. Souriau não renunciou, entretanto, à distinção das artes entre não-representativas e representativas. Nas primeiras, os dados fenomenais puros, como cores, traços e sons, são organizados diretamente nos objetos artísticos. Nas últimas, os objetos artísticos são sustentados, sugeridos ou propostos por intermédio dos chamados “objetos do real”. Essa distinção provocará profundas consequências no seu sistema das belas-artes. As artes do primeiro grau serão as não-representativas e provirão diretamente de um qualia. As de segundo grau provém tanto do qualia quanto de sua arte de primeiro grau equivalente.

1. Linhas; 2. Volumes; 3. Cores; 4. Luminosidades; 5. Movimentos; 6. Sons articulados; 7. Sons musicais. Diagrama 2: Sistema de classificação das artes segundo Étienne Souriau.

     AS  DIFERENÇAS  ENTRE  AS  ARTES     Capítulo  1  

54

Sobre seu esquema (ibid.., p. 98-105), Souriau comenta por exemplo o fato de ter incluído o arabesco e o defende, dizendo que se trata de um importante princípio na história da arte, tendo sido usado em ornamentações, pinturas, volutas, flâmulas. Quanto à dupla arquitetura-escultura, diz que uma escultura pode ser do primeiro grau, desde que submetida à uma estética autônoma dos sólidos e das formas no espaço à três dimensões. Na parte dedicada às luminosidades, Souriau nota que as projeções luminosas, ainda que possam atuar como artes autônomas, intervém mais frequentemente em síntese com outras artes, como o teatro ou a arquitetura. É nesta mesma região que o autor situa o momento em que a presença do movimento começa a intervir mais diretamente, quando a foto e a aquarela ocupam a mesma região que o cinema. A partir daí, nas três regiões seguintes, nada mais é imóvel. No grupo em que o qualia predominante são os sons articulados, para o que ele chamou de prosódia pura não existe exatamente uma arte, pois ela seria tão somente a combinação de sons articulados sem intenção de significação e serviria de material para a poesia. A prosódia pura estaria em paralelo com a música dramática ou descritiva, pois estas últimas não existem em uma instância absoluta. Apesar de um aparente hermetismo em seu sistema, Souriau reconhece a inviabilidade de uma classificação absoluta e que a questão mais difícil, na verdade, está em saber sobre que plano podemos estabelecer alguma divisão (ibid.., p. 81). O filósofo Étienne Gilson também apresenta as maneiras a partir das quais ele distingue o que chamou de arts du beau (artes do belo) em seu Système des beaux-arts (1926), já citado mais acima. Gilson se refere a um belo que não é, evidentemente, aquele que se liga ao ideal platônico ou a um tipo de categoria ideal, e sim o belo como propriedade inseparável de uma arte que não visa o imitar e sim o produzir, instaurar beleza. Para Gilson, a atividade poiética, da qual provém todas as artes, é única em sua origem e em seus efeitos gerais. É a mesma atividade poiética que se diversifica em efeitos particulares de acordo com a diversidade das matérias sobre as quais ela se aplica. As diferentes artes se originam de um conjunto de possibilidades que se definem tanto pelos órgãos do corpo humano, quanto pelas propriedades físicas das matérias da arte. Assim como Alain, Gilson também critica a diferenciação das artes baseada nas duas formas de sensibilidade: o espaço e o tempo. Esta distinção viria de uma má compreensão de preceitos kantianos, pois o próprio Kant observou que a forma do tempo incluiria aquela do espaço. Gilson afirma, então, a impossibilidade de distinguir as belas-artes em arte do espaço e do tempo, se nos colocamos no lugar do sujeito que apreende uma obra. Sendo a estética a ciência da experiência do belo e a filosofia da arte

AS DIFERENÇAS ENTRE AS ARTES Capítulo 1

55

a disciplina que se ocupa da atividade humana de produzir belos objetos, será esta última que pode se dar ao trabalho de distinguir e até mesmo de esboçar uma espécie de classificação das artes. Aquilo que existe de diversidade nas técnicas das artes se liga realmente às matérias sobre as quais elas operam, mas talvez não nos exprimamos com propriedade quando falamos de arte como um esforço para vencer a resistência imposta pela matéria. Esta resistência é real, por isso criar é sempre um esforço, mas ao mesmo tempo em que o artista se impõe para vencê-la, ele se apoia nela para superá-la. (Gilson, ibid., p. 36)25.

Logo, para Gilson, uma classificação das artes viável teria de levar em conta, simultaneamente, as matérias em si e as técnicas utilizadas para trabalhá-las e somente a partir daí seria possível pensar em distinguir as artes. Gilson apresenta dois grupos vastos divididos de acordo com a natureza da matéria, se ela é inorgânica ou orgânica. No primeiro ele inclui as artes de extensão e as artes do som. O segundo se compõe das artes que, quase exclusivamente, tem como matéria o próprio homem, distinguidas entre as artes do corpo humano e as artes da linguagem, falada e escrita (ibid.., p. 37-39). As artes da extensão são divididas em artes do volume, principalmente arquitetura e escultura, e artes da superfície, o desenho, a pintura e suas associações ou derivações. Entre as artes do som, ele distingue as músicas vocais e aquelas que ficam no limiar das artes inorgânicas e orgânicas: as músicas instrumentais. As artes orgânicas, ou as artes do humano (les arts de l’humain), dividem-se entre aquelas para as quais o corpo fornece a matéria, como é o caso da dança; aquelas cuja matéria é a linguagem, que incluem as diversas formas de poesia escrita ou falada; e, enfim, aquelas que têm como matéria a própria vida humana, seja como imitação ou como recriação livre, como a mímica e o teatro. Essas últimas requerem a maior parte das aparências que são dadas na experiência, como os gestos e as entonações. A partir desses dados compusemos o seguinte modelo esquemático:

25

“Ce qu'il y a de diversité dans les techniques des arts tient donc vraiment à celle des matières sur lesquelles ils opèrent, mais on ne s'exprime peut-être pas toujours avec propriété quand on parle de l'art comme d'un effort pour vaincre la résistance que lui oppose la matière. Cette résistance est réelle, et c'est pourquoi créer est toujours un effort, mais en même temps qu'il s'y oppose pour a vaincre, l'artiste s'appuie sur elle pour la surmonter.”  

     AS  DIFERENÇAS  ENTRE  AS  ARTES     Capítulo  1  

56

volume (escultura-arquitetura) arte da extensão superfície (desenho/pintura) inorgânica instrumental arte do som vocal Arte corpo como matéria (dança) orgânica

linguagem (poesia) vida humana como matéria (mímica/teatro)

Diagrama 3: representação do sistema de classificação das artes segundo Étienne Gilson.

Gilson nos aponta o que poderia ser uma objeção em sua classificação, a ausência de certas artes. O romance, por exemplo, não aparece na divisão e isso porque, apesar de se tratar de uma grande arte e de poder existir grande beleza, ele não se consagra essencialmente ao belo. Para que seja “arte do belo” é preciso que o fim da palavra seja sua própria beleza, independentemente de sua verdade (ibid., p. 42-43). Poucos anos depois de Étienne Gilson, Luigi Pareyson abordou a questão da classificação das artes, em Problemas da Estética (2008, p. 175-176). Apesar de reconhecer que, historicamente, o estudo da diversidade das artes está sempre vinculado à preocupação de explicar sua unidade, o pensamento moderno traz consigo duas posturas fundamentais. De um lado, os empiristas que creem veementemente na concretude de cada arte. Julgam estéril maior reflexão sobre a compreensão da experiência estética, no seu sentido amplo. Para eles, a diferença das artes é evidente e pressuposta. Do outro lado estão aqueles para os quais os atributos mais genéricos da arte sobrepõem os aspectos mais diretos e empíricos. Esses últimos acreditam que a aproximação da especificidade os afasta do núcleo central de onde se origina a arte e onde a arte encontra sua pureza. Acabam, dessa forma, desprezando os próprios dados da experiência. Essas posturas, como Pareyson tão bem observou, extremadas como o são na modernidade, negam o princípio fundamental de que a unidade das artes se realiza nas diferenças. “A unidade e a diferença das artes só se afirmam e se explicam juntas, e ambas são problemas da estética, isto é, problemas estritamente filosóficos.” (ibid., p. 176). Logo, é importante que a Estética, numa posição mais aberta e compreensiva, se dirija à especificidade e à diferença das artes e isso sem o temor de que se ofusque sua unidade. Pois, tanto a unidade quanto a pluralidade são pressupostos da arte.

AS DIFERENÇAS ENTRE AS ARTES Capítulo 1

57

Pareyson coloca o problema da multiplicidade das artes como um dos assuntos mais discutidos e complexos da estética, e observa que vários critérios foram adotados para explicar a diferença das artes, como por exemplo (ibid., p. 175): 1. Segundo o órgão do sentido ao qual as artes se dirigem (pintura à visão, escultura ao tato, música ao ouvido); 2. Segundo o espaço e o tempo (artes espaciais como as artes plástico-figurativas e temporais a poesia e a música); 3. Segundo o grau de fisicidade (situadas entre dois extremos, da arquitetura que implica a intervenção mais pesada de fisicidade, e a música, como pura imaterialidade)26; 4. Segundo maior ou menor carga semântica (em um extremo estaria a poesia e certas pinturas, com grande carga semântica, e no outro extremo a arquitetura e a música, no seu caráter construtivo e não representativo). Aproximando-se desta quarta categoria, Suassuna (2008, p. 283) cita ainda a possibilidade de ordenarmos as artes tendo como ponto de partida a pureza formal. Neste caso a música seria a mais pura, seguida de perto pela pintura abstrata. O mesmo autor cita igualmente o grau de complexidade de expressão humana, onde a literatura fica em primeiro lugar. Poderíamos ainda acrescentar outros critérios à enumeração de Pareyson e de Suassuna. Incluir, por exemplo, os de Gilson, que se baseiam na organicidade da matéria artística. Ou os de Souriau, baseado nas qualidades sensíveis da matéria (qualias). Ou mesmo um dos critérios de Alain, que se liga ao número de pessoas presentes no momento da instauração do objeto artístico, distinguindo artes de sociedade das artes solitárias. Se nos voltamos ao passado, veremos que outros critérios eram adotados, quase sempre associados a ideia da imitação, que impregnou o pensamento por séculos, mesmo que outros critérios tenham sido aplicados pontualmente, como é o caso de Santo Agostinho e a sua distinção baseada no prazer que a arte causa aos sentidos. Muitos outros sistemas não devem ter sido mencionados neste texto, assim como outros novos sempre podem surgir, dependo do olhar e do objetivo do pensador. Enfim, longe de ser algo resolvido, o problema da multiplicidade das artes vai depender mais de uma tomada de partido em relação a escolha de certo critério de classificação, que da crença em uma teoria ou um quadro classificatório com valor absoluto e 26

A palavra fisicidade, utilizada na tradução de Pareyson por Maria Helena Nery Garcez, é um neologismo que deve significar a propriedade de algo ser expresso em sua forma física.

     AS  DIFERENÇAS  ENTRE  AS  ARTES     Capítulo  1  

58

peremptório. Definir e legitimar critérios para observar a diversidade das artes será certamente tarefa difícil, porém mais fecunda que enumerar e classificar de maneira precisa as artes, algo provavelmente impossível e estéril. c) As Artes e os Juízos de Valor Quando apresentamos algumas das possibilidades de se observar a diversidade das artes, esbarramos em outra questão que merece ser discutida, ainda que brevemente. Trata-se da valoração ou hierarquização das diferentes artes, frequentemente implícitos quando se trata de aproximar e distinguir. Desde a Poética de Aristóteles já vemos a natural tendência de ordenar e, ordenando, tomar partido ou declarar preferência por uma ou outra arte. O autor grego sempre deixa claro que dentro de cada gênero existem gradações de qualidade, que vão do mais vulgar ao mais nobre. De qualquer forma, Aristóteles conclui sua Poética situando a tragédia como superior à epopeia, pelo fato da primeira, além de possuir todos os méritos da segunda, contar com a contribuição da música e do espetáculo. Além disso, a tragédia tem uma existência viva seja quando lida, seja quando encenada. Aristóteles estabelece, desta forma, um juízo hierárquico no que diz respeito as diferentes mimeses (1996, p. 60). Como mostrou a primeira parte deste capítulo, na Idade Média existiu uma distinção hierárquica bem clara entre as artes mecânicas e as artes liberais. Sendo as últimas mais nobres que as primeiras, artistas plásticos renascentistas lutaram para dar à sua arte um status superior. A pintura não devia ser considerada como simples arte mecânica, pois nas telas também habitava o saber humano em toda sua plenitude. Além disso, as obras eram perenes e resistiam ao passar dos anos mais que a própria natureza, ao contrário da música, sempre submissa ao tempo. Das muitas hierarquizações possíveis das artes, talvez as mais problemáticas sejam aquelas que concernem diretamente a questão dos próprios limites da arte e que, dessa forma, tocam em cheio no problema da definição da arte. É o caso da diferenciação entre arte maiores e menores, ou a inclusão de certas atividades em detrimento de outras, ou mesmo uma nítida exposição do que vem a ser belas-artes. Se consideramos a cerâmica, a tapeçaria e a gravura como artes menores que a pintura, priorizamos a natureza do material artístico ao tipo de trabalho de criação que se exercita sobre ele. Alain, por exemplo, colocou entre as artes maiores o arabesco, Nédoncelle incluiu esportes no seu grupo das artes tátil-musculares, Gilson excluiu a prosa de suas artes do belo. É óbvio que o próprio conceito de arte comporta

AS DIFERENÇAS ENTRE AS ARTES Capítulo 1

59

uma série de variáveis. Logo, mesmo que certo estudioso evite a todo custo uma confrontação entre as artes, ele já parte de um pressuposto que exclui e inclui e que, de certa maneira, não deixa de ter algo de hierárquico. Isso acontece, por exemplo, quando Gilson inclui a poesia entre as artes do belo e exclui a prosa, mesmo que ele afirme que a prosa possa se tornar arte do belo cada vez que o objetivo da palavra é sua própria beleza, independentemente de sua verdade. Em seu sistema, no entanto, quem se inscreve é a poesia, como arte orgânica da linguagem. Entre os filósofos, muitos dos que se interessaram pelo problema da multiplicidade das artes, se posicionaram em defesa de uma arte sobre outra. Kant, como vimos mais acima, privilegiava a linguagem e fundou seu sistema das artes nas maneiras através das quais os homens comunicam seus discursos (Nancy, 1994, p. 22). Não com a mesma justificativa, mas chegando ao mesmo fim, Schelling também enfatiza a supremacia da linguagem, como força suprema. Hegel, no interior de sua classificação das artes, apresentou para cada tipo de arte (simbólica, clássica e romântica), aquelas que incarnavam mais apropriadamente a Ideia ou o espírito cósmico que se revela nas formas sensíveis. A arquitetura era a mais apropriada ao tipo simbólico, a escultura ao tipo clássico e a pintura, a música e a poesia ao tipo romântico (Munro, 1954, p. 158). Suassuna (2008, p. 281) diz que para Hegel a arte suprema e superior é a poesia, por nela se encontrarem o espírito das artes plásticas, o ritmo da música e ainda o pensamento. A poesia é a arte que mais se aproxima do ideal hegeliano de arte: reveladora, no sensível, da Ideia absoluta. Bem mais tarde, Heidegger, segundo Nancy (1994, p. 19), declara que “toda arte é em sua essência poema”. Nietzsche, ecoando ideias de Schopenhauer, situa a música como a mais potente das artes, como uma linguagem universal ao extremo, mas na universalidade da mera forma, sem conteúdo. Os sons expressariam diretamente a Vontade, sem descrever fenômenos particulares nem sentimentos individuais (Suassuna, 2008, p. 282). Nietzsche, em sua famosa distinção entre o apolínio e o dionisíaco do Nascimento da Tragédia no Espírito da Música (1996), apresenta o primeiro como o impulso que constitui a nitidez dos limites e a vivacidade da coloração dos objetos representados e o segundo como sua contrapartida e como uma força que leva a indistinção do todo em sua totalidade originária. Apolo se liga mais diretamente à arte visual, enquanto Dionísio ao som. Mas ambos são produtores de imagens. “[...] a música incita a uma intuição alegórica da universalidade dionisíaca, a música, em seguida, faz aparecer a imagem alegórica em sua mais alta significação.” (Nietzsche, 1996, p. 39) .

     AS  DIFERENÇAS  ENTRE  AS  ARTES     Capítulo  1  

60

Seria possível citar ainda muitos outros filósofos e também artistas que elegeram uma arte como soberana. Várias vezes a história da estética conheceu tais posicionamentos. Em certos casos, observou Pareyson (2001, p. 178), priorizou-se uma determinada arte como se todas as outras se conduzissem a ela. Mais uma vez, vemos que as fronteiras só se delimitam com clareza quando toma-se partido por determinado critério que fundamentará tanto a classificação quanto alguma forma de hierarquia. Estabelecer critérios pressupõem opções, que por sua vez implicam exclusões e inclusões. A questão mais importante parece ser a própria escolha dos parâmetros e, sobretudo, quais os fins de tal classificação. Os sistemas filosóficos e as preferências pessoais acabam por interferir de modo decisivo na construção das marcas da diferença das artes, seja hierarquizando seja tentando nivelá-las. Se tomamos como exemplo o modelo de Gilson, música e pintura ocupam a mesma categoria de arte inorgânica, apesar de em um segundo momento se diferenciarem. Por outro lado, na classificação de Souriau, música e pintura se distinguem de imediato, por se originarem de qualidades sensíveis diferentes. Ou seja, a marca da diferença variará sempre em função das fronteiras e distinções estabelecidas. Artes se aproximam e se afastam segundo nossos olhares. A diferença das artes parece se definir na diferença dos olhares. Mas essa negação de fronteiras peremptórias e absolutas não pressupõe necessariamente negar as diferenças. As artes se manifestam de maneiras diferentes e a partir de matérias artísticas indubitavelmente diferentes. Uma realidade aberta e inexaurível como a expressão estética, dificilmente pode habitar em uma construção filosófica fechada e definitiva. Impossível, portanto, estabelecer o número das artes, mas não menos impossível instituir entre elas uma hierarquia ou uma ordem que implique uma recíproca e constante tomada de posição, apesar de que este assunto tenha sido tentado por mais de mil vezes. Um sistema das artes cada um o faz, concretamente, por sua própria conta, com base na própria cultura, na própria sensibilidade, nas próprias preferências, nas próprias aberturas espirituais: poucos têm uma sensibilidade igual para todas as artes; uma igual cultura nas diversas artes é difícil de ser conseguida, e a espiritualidade pessoal de cada um tem necessidades próprias e peculiares. (Pareyson, 2001, p. 179).

O significado de uma arte, além do mais, vai variar segundo as situações culturais de um povo, segundo seus valores e o grau de desenvolvimento de uma arte em relação a outra. Os sistemas de artes podem, por isso, adquirir uma maior importância histórica e cultural que verdadeiramente estética e filosófica.

AS DIFERENÇAS ENTRE AS ARTES Capítulo 1

3.

Contornos

Estáveis:

61

Em

Busca

de

Atributos

constantes

em

Artes

_______________________Sonoras e Visuais Depois de percorrer brevemente algumas das possibilidades de diferenciação das artes e, de certa forma, apontar para a fragilidade desses sistemas, vamos nos aproximar de duas artes: música e pintura. Sempre representadas por obras específicas, serão estas artes as protagonistas da segunda parte desta tese, ainda que outras artes sejam solicitadas eventualmente. No lugar de limites ou fronteiras rígidas, apresentaremos apenas alguns contornos que devem vir a nos auxiliar mais à frente. Esses contornos serão compostos por uma breve apresentação de alguns atributos sobre os quais a diferença das artes deve se afirmar. Este estudo será fundamentado por um lado em definições gerais e globalizantes, recorrentes nos sistemas acima apresentados, e por outro lado em observações, intuições e em aparentes obviedades do senso comum, que algumas vezes coincidem com as mais elaboradas teorias. Vamos delinear algumas considerações sobre música e pintura, no que concerne, sobretudo, três aspectos fundamentais: sua natureza, sua matéria e sua forma.

a) Música “Melodia, harmonia e ritmo”, diria a voz virtual do senso comum. Algum manual de teoria musical liberou esta definição e ela adquiriu, para muitos, ares de verdade absoluta. Não que não haja verdade alguma nesta definição, mas o senso comum, desta vez, no lugar de ser a consequência de alguma sabedoria coletiva, se tornou apenas repetição mecânica de algum velho manual. Vamos nos ater primeiramente ao elementar. Música é a arte dos sons. Nada mais verdadeiro, mesmo que bastante vago. Já em um tom mais poético poderíamos ir ao encontro das classificações tradicionais e dizer que música é a arte do tempo. A partir daí uma multiplicidade de significações emergiria, principalmente para a filosofia, que tem pelo tempo tão grande estima. De Aristóteles à Deleuze, passando por Santo Agostinho, Nietzsche, Bergson, Einstein e outros mais, a noção de tempo vai liberando novas e inspiradas faces. Um histórico das relações entre o tempo musical e noções filosóficas poderia ter grande interesse e, certamente, já foi tema de mais de uma tese. É evidente que com as transformações da

     AS  DIFERENÇAS  ENTRE  AS  ARTES     Capítulo  1  

62

música no correr da história ocidental, modificou-se também a relação que ela estabelece com o tempo. Mas a música, em sua generalidade, seria realmente a arte do tempo? A música contemporânea não deixa dúvidas de que o espaço pode por vezes tomar o papel principal na obra. Tantas e tantas pesquisas recentes falam do espaço musical, sobretudo nas músicas mais atuais27. Para além da música contemporânea, até mesmo o posicionamento dos músicos de uma orquestra sinfônica não deixa dúvidas de que as relações com o espaço são partes integrantes de uma obra musical. É fato que a música, de acordo com suas situações históricas, se relacionará de maneira diferente com o tempo e que das diferentes músicas emergem, em vários casos, novas maneiras se posicionar em relação a esse parâmetro. De qualquer modo, no entanto, a música não deixa de ser uma arte ligada ao tempo de maneira mais nítida que um quadro, por exemplo. Só o fato dela ser sempre submetida à autoridade de uma duração cronométrica já seria um forte argumento para tratá-la como arte do tempo, por mais que ela induza outras percepções temporais e nos dê a impressão de retrair ou estender esse mesmo tempo. A sucessão, que aporta o nascimento e a morte constantes de cada som, a define como arte do tempo ou arte do momento, como entende Gilson: Não é somente uma arte do tempo, mas uma arte do momento, em que sua existência como arte tem a mesma natureza que a dança, a poesia, o teatro, enfim, toda ação na qual a unidade é a de uma duração de elementos que se precipitam no silêncio do nada na medida em que passam, se a memória não a constituísse conferindo-a uma substância menos provisória e uma maneira de espiritualidade. A música, sendo essencialmente efêmera, é, como dissemos, a arte que vai morrer, mas é também a arte daquilo que quer nascer, e sua aptidão vitoriosa de afirmar a existência que ela criou é inseparável de sua resignação essencial à perecer. (Gilson, 1964, p. 147)28.

Seja ela tonal, atonal, eletroacústica, minimalista, “estática”, dodecafônica, espectral, a música não escapa de seu desígnio: ela é sucessão de eventos sonoros. E o artista deve criar incessantemente matéria para que sua arte exista. A matéria da arte musical são os sons e os silêncios que os separam, no entendimento mais direto. Sem ofuscar essa tentativa de estabelecer contornos estáveis para arte dos sons, poderíamos ainda incluir na matéria

27

Um bom exemplo seria a obra de Francis Bayer, De Schoenberg à Cage, essai sur la notion d'espace sonore dans la musique contemporaine, Paris: Klincksieck, 1987, 216 p. 28 “Ce n’est pas seulement un art du temps, mais un art du moment, dont l’existence comme art est de même nature que celle de la danse, de la poésie, du théâtre, bref de toute action dont l'unité n'est que celle d'une durée dont les éléments retomberaient au néant du silence à mesure qu'ils passent, si la mémoire ne la constituait en leur conférant une subsistance au moins provisoire et une façon de spiritualité. La musique étant essentiellement éphémère, elle est, comme on l'a dit, l'art de ce qui va mourir, mais elle est aussi l'art de ce qui veut naître et son aptitude victorieuse à affirmer l'existence qu'elle crée est inséparable de sa résignation essentielle à périr.”  

AS DIFERENÇAS ENTRE AS ARTES Capítulo 1

63

musical, os instrumentos e as técnicas, estas últimas entendidas como a parte artesanal do fazer. O interessante, e o que constitui uma particularidade importante, é o fato da matéria da música ter sido criada pela própria música. Os barulhos e sons da natureza, observou Gilson (ibid., p. 148), são apenas matéria para a matéria musical, que são os sons musicais. Quando reconhecemos semelhanças entre os sons musicais e os sons da natureza, como o canto dos pássaros, o uivo do vento ou gotas esparsas em meio ao silêncio, a analogia se dá, na maioria das vezes, da música em direção a esses sons. O inverso ocorre em número bem menor, somente quando o compositor inclui em sua música elementos colhidos da natureza. Apenas nestes casos, bem pontuais, os sons da natureza são a matéria para música. Os sons musicais, por sua vez, possuem a particularidade de se estabelecerem em uma uniformização mais palpável que na pintura, por exemplo, onde no interior de uma mesma denominação de cor, nuances numerosas e inclassificáveis se revelam29. Os sons musicais, em sua grande parte, são identificáveis pela sua intensidade, seu timbre e duração. Embora também existam infinitas nuances no interior desses parâmetros, a formalização e categorização parece mais acessível. Dissemos em sua grande parte porque, no caso de músicas atuais, como a eletroacústica, os sons muitas vezes não se deixam facilmente domesticar e sua uniformização não parece perto de ser estabelecida, até porque os parâmetros sonoros podem ser variáveis em uma mesma nota. Falar na música como arte dos sons não deve causar grande espanto, nem suscitar qualquer tipo de perplexidade. Falar em forma musical, porém, só parece natural aos ouvidos dos músicos, musicólogos ou alguém com certo grau de intimidade com a música e suas teorias. Conceber a noção de forma em uma arte cuja matéria se limita a impalpáveis e efêmeras vibrações no ar não deixa de ser um exercício de abstração. A própria noção de forma, em seu sentido mais direto e corrente, solicita uma solidez de matéria. Por isso, a forma musical tende a estabelecer algum tipo de analogia com as formas visuais. É mais fácil, entretanto, conceber um princípio de unificação entre vários pontos simultâneos no espaço que tentar unificar e ordenar elementos que se sucedem no tempo, como é o caso da música. A forma musical precisa de uma matéria para nascer e existir, mas ela só existe na memória. É ela quem recolhe gradativamente os elementos, para que a inteligência, ajudada pela imaginação, possa as congregar em grupos distintos e estabelecer um diálogo virtual entre o todo e a parte que constituirá a forma musical. 29

É evidente que, assim como na voz humana, não existem dois sons iguais em diferentes instrumentos. No entanto, pelo menos no que diz respeito aos últimos três séculos no ocidente, a música é mais facilmente uniformizável. Basta pensar no diapasão e no sistema temperado, que certamente não encontram equivalentes de tanto peso na pintura ou escultura, por exemplo.

     AS  DIFERENÇAS  ENTRE  AS  ARTES     Capítulo  1  

64

Se sairmos do plano da natureza musical como arte do tempo e arte dos sons e privilegiarmos a recepção, como fizeram alguns sistemas de classificação das artes, trataremos da música como arte auditiva. E, mesmo sabendo que a visão dos gestos e da aparência física de um pianista interfere em nossa percepção musical, não podemos deixar de reconhecer que são aos ouvidos que a música é endereçada, não aos olhos. Então, para afirmar a arte musical em suas diferenças ou em seus atributos mais estáveis, nos apegamos aos entendimentos mais tangíveis da natureza da música, ou seja, seus sons, sua relação de submissão ao tempo e ao sentido para o qual ela se dirige, a audição. b) Pintura Ecoando Étienne Gilson (ibid., p. 115), definiremos, de maneira direta, uma pintura como uma superfície sólida coberta de formas coloridas. Gilson desenvolve sua definição e sugere que a pintura deve ter uma forma que agrade aos olhos, que contenha beleza. De nossa parte, nos absteremos de comentar o que seria “agradar os olhos” ou “beleza”. Vamos dizer apenas que, para esta superfície sólida coberta de formas coloridas ser arte será preciso que existam qualidades sensíveis reconhecíveis e que permita a certo grupo de considerá-las como arte. Vimos, na segunda seção deste capítulo, que as noções sobre os quais filósofos e estetas estabeleceram suas classificações e, em certos casos, impuseram os limites das artes, são critérios muitas vezes sujeitos a questionamentos fundamentais. Cada um, à sua maneira, vai argumentar e legitimar os parâmetros que eles elegeram como principais. Eles variaram segundo a relação com o tempo e com o espaço, os órgãos do sentido para os quais a arte se dirige, segundo a carga semântica, a fisicidade, a diferença do prazer proporcionado, entre outros critérios. Em todas as classificações um grau de veracidade e validade se imprime, pois cada uma delas sustenta seu pressuposto de maneira mais ou menos convincente. Entretanto, se aplicarmos no interior de um sistema princípios utilizados em um outro, poucas classificações resistirão. Considerar a pintura como arte espacial, como por exemplo acontece em uma de suas classificações mais recorrentes, seria, em alguns sistemas, a negação ou negligência de sua relação com o tempo. Isso pode causar uma série de incômodos. Reconhecemos, com facilidade, a intervenção do tempo em todas as instâncias de uma pintura, da ideia primordial à apreciação. Mas existem duas maneiras de se evitar esse incômodo. A primeira é a de considerar a superfície sólida na qual a pintura se inscreve como espaço e parar por aí. A

AS DIFERENÇAS ENTRE AS ARTES Capítulo 1

65

outra, que não se opõe completamente à primeira, é a de, aceitando o fato das determinações do tempo serem parte integrante da pintura, reconhecer que a noção de espaço tem atributos mais facilmente associáveis com uma solidez material que a noção de tempo. Considerar pintura como arte do espaço não é necessariamente uma recusa à sua temporalidade. Medir formas e cores no espaço parece mais tangível que medir as interferências do tempo na instauração, na execução ou na recepção de uma pintura. Outra maneira de compreender a pintura, ainda mais antiga que a de “arte espacial”, é a de considerá-la como “arte do repouso”. Aristóteles a opôs às “artes rítmicas”, como vimos, e seu pensamento ecoou por muito tempo. Podemos, evidentemente, colocar em questão essa maneira de entender a pintura. E isso sem grandes dificuldades. Se recorrermos às nossas primeiras lembranças da arte das formas e cores em uma superfície, pensamos provavelmente na ilustração de manuais de História da Arte e seus bisões no interior escuro de grutas. Esses bisões, embora são representados estáticos. Já nesta época, na da chamada pintura rupestre ou parietal, existia um esforço para representar o movimento. Muitas vezes o movimento, aliás, está entre os objetos centrais de uma pintura. Sugerir sólidos em movimento, a partir de linhas e cores imóveis, foi e é o desejo de muitos pintores. Mas por mais que esse desejo exista e que ressoe nos espíritos do pintor e do receptor, aquela imagem está ali no espaço, na tela, estática, como a “arte do repouso”, na antiga classificação aristotélica. De qualquer maneira, a tarefa do pintor é a de produzir objetos materiais, visuais, no espaço, mesmo que reconheçamos que tanto o tempo quanto o movimento sejam elementos inerentes e inseparáveis da pintura. Arte do espaço sim, mas que não renuncia o movimento e, por consequência, não exclui o tempo. Bem mais imprecisa que essas definições tradicionais de pintura, parece ser aquela que a distingue entre abstrata e figurativa, ou representativa e não-representativa, como apresentou Souriau (1947, p. 100)30. A pintura comumente chamada de figurativa também é abstrata na medida em que faz abstração, por exemplo, de uma das qualidades ou dimensões mais importantes do espaço, que é a perspectiva. É preciso um exercício de abstração, tanto do pintor quanto do receptor para entender aquela figuração espacial. “Como transformar uma superfície plana em um homem, uma árvore, uma montanha, ou um deus, com algumas linhas e cores segundo uma certa ordem? Todas as formas e linhas e cores não seriam já derivadas de objetos e dos seres naturais?, resumem-se as indagações de Gilson, em suas considerações

30

Cf. página 54.  

     AS  DIFERENÇAS  ENTRE  AS  ARTES     Capítulo  1  

66

sobre matéria e forma (1964, 120). Em uma pintura dita abstrata, é muito comum estabelecer relações, voluntária ou involuntariamente, com objetos “reais” que sempre estarão carregados de alguma carga simbólica. Se mostramos, por exemplo, algumas telas modernistas ditas figurativas, sem mencionar seu nome, muitos seriam incapazes de reconhecer nelas o objeto representado. O contrário também pode ser válido. Outro aspecto interessante de se mencionar, também sugerido por Gilson (ibid., p. 122), é o fato da forma, em uma pintura, tomar seu sentido mais direto, imediato. Ou pelo menos dar esta impressão. Por mais que uma pintura seja um complexo conjunto de gradações de cor e luz, de linhas e curvas nos mais diversos ângulos, a forma, na sua significação corrente e no seu jogo entre a parte e o todo, parece estar ali, ao alcance dos olhos. Embora nem sempre consigamos explicá-la ou reproduzi-la, a impressão de que se estamos face à forma é bem viva. Não foi por acaso, afinal, que a pintura, junto com a arquitetura e a escultura, foi incluída como arte da forma, na classificação kantiana. Mais uma vez o tempo vai interferir na construção interna que faremos daquela expressa na pintura. E, agora pensando especialmente do lado do receptor, de acordo com nossa capacidade de absorção e da duração desse diálogo com a obra, a forma se revelará mais ou menos à nossa sensibilidade. A separação entre desenho e pintura, que vimos em algumas classificações, como a de Alain, nos parece estranha. Conceber pinturas sem vestígios de desenho não é nada fácil, apesar do contrário ser mais compreensível. Existe sim, aqueles artistas que privilegiam o desenho e outros que fazem o que Gilson chamou de “pintura de cor”. Mas o desenho, mais ou menos afirmado, deve sempre ecoar. Para que a pintura garanta sua identidade enquanto definição ela deve se ater ao entendimento mais amplo e agregador de matéria. Aquele que inclui, não apenas as tintas, a tela ou qualquer superfície sólida em que se inscrevem as cores, mas também cada instrumento utilizado, bem como as técnicas, os eventuais modelos, o tema, os aspectos simbólicos, etc. Toda caracterização de pintura, como de qualquer outra arte, pode ser colocada em questão, criticada ou, pelo contrário, tomada como dogma e aceita como verdadeira. No interior de cada um dos posicionamentos adotados por filósofos, estetas e artistas, existem razões e verdades, e motivos para se duvidar dessas mesmas razões e verdades. Uma definição artística que prima pela demarcação estável do que vem a ser pintura deve aderir a um número mínimo de atributos que sejam, igualmente, estáveis. Ou pelo menos se aparentem estáveis. É por isso que para conquistar alguma solidez conceitual, vamos nos ater

AS DIFERENÇAS ENTRE AS ARTES Capítulo 1

67

às classificações que apresentamos como tradicionais, ou seja, pintura como arte visual e arte do espaço. Pintura como superfície sólida colorida, que se manifesta no espaço. Para que esses contornos tenham alguma aparência estável, em vez de nos apegarmos às classificações em si, vamos nos contentar com certas atribuições dadas no interior das classificações, nas especificidades propriamente ditas, sem inseri-las em grupos. c) A Autonomia das Musas Como foi dito, as musas, como metáforas das artes, agem no plural e no plural afirmam suas diferenças e seus atributos mais íntimos e intransferíveis. É possível contentarse com a pluralidade das artes como um dado da própria arte e, assim, estabelecer classificações e sistemas. Afinal, eles só existem porque o plural é aceito e se sobrepõe às características mais gerais da arte, no singular. Existem, porém, tantas classificações que, para afirmar e reafirmar as diferenças das artes, seria preciso classificar as classificações, elas mesmas divergentes no que se refere ao próprio entendimento da noção de arte. Tarefa de enorme extensão e que, provavelmente, nos levaria somente a apreciar o que Nancy chamou de “espectro de dispersão” das artes (1994, p. 12). É evidente que uma especificação absoluta das artes é inviável. A questão é saber sobre qual plano e para que fins estabelecer qualquer divisão. Quando nos dirigimos diretamente às particularidades das artes, temos duas opções, ou fechamos os olhos para a questão ontológica da unidade das artes ou a afrontamos. Ela pode tanto aparecer como um suave pano de fundo para uma pesquisa que aproxima artes diferentes ou como um espectro que nos assombra, pois a aceitação de unidade primordial pode interferir de maneira idêntica nas artes diferentes. As particularidades de cada arte são tão verdadeiras quanto suas subsunções à alguma totalidade de um fenômeno artístico em sua singularidade ontológica. Apesar de todas as tentativas de se afirmar as diferenças das artes comportarem alguma verdade, o que importa, nesta tese, não é tomar partido de um ou outro sistema. Isso parece ser um risco desnecessário. Como diz Alain no prefácio de seu Sistema de Belas-Artes (1926, p. 8), nós podemos provar e argumentar positivamente sobre tudo, o mais difícil é decidir o que queremos provar. Importa, para nós, poder vislumbrar alguns contornos do que definiria e afirmaria a autonomia e a força, ambas inegáveis, de uma arte particular. A unidade estaria em uma fonte intocável de onde as forças, plurais, das musas jorrariam. A arte, em sua realidade, é plural. E as musas afirmam sua força: de separação, de isolamento, de intensificação e de metamorfose, como notou Nancy (1994, p. 43).

     AS  DIFERENÇAS  ENTRE  AS  ARTES     Capítulo  1  

68

Aceitar plenamente a diferença das artes é concordar com o poeta que diz: [...] Compreendi que as cousas são reais e todas diferentes umas das outras; Compreendi isto com os olhos, nunca com o pensamento. Compreender isto com o pensamento seria achá-las todas iguais. [...] (Fernando Pessoa, 2004, p. 112).

Ou mesmo: [...] Porque o único sentido oculto das cousas É elas não terem sentido oculto nenhum, É mais estranho do que todas as estranhezas E do que os sonhos de todos os poetas E os pensamentos de todos os filósofos, Que as cousas sejam realmente o que parecem ser E não haja nada que compreender. Sim, eis o que os meus sentidos aprenderam sozinhos: As cousas não têm significação: têm existência. As cousas são o único sentido oculto das coisas. (Fernando Pessoa, ibid., p. 77).

AS  SEMELHANÇAS  ENTRE  AS  ARTES   Capítulo  2  

69  

 

Capítulo 2 As Semelhanças Entre as Artes Cada arte tem sua própria língua, ou seja, meios que só pertencem a ela mesma. Por isso, cada arte é um todo fechado sobre si mesmo. Cada arte é uma vida singular. É seu próprio império. Os meios das diversas artes são perfeitamente diferentes em suas aparências. Som, cor, palavra!... Porém, no final das contas, na sua profundidade, esses meios são absolutamente semelhantes; o objetivo final apaga as diferenças aparentes e revela a própria identidade. (Kandinsky apud Denizeau, 2004, p. 9)1.

Incisivamente as diferenças se exibem. Na variedade das matérias e técnicas, as artes, autônomas, afirmam seus territórios. Mas as fronteiras desse mesmo território, como mostrou o capítulo anterior, variam no ritmo dos diferentes olhares e, tanto em suas dimensões ontológicas quanto nas relações entre as artes, semelhanças vão surgindo pelos meandros das próprias diferenças. De um singular utópico que tudo engloba, surge a pluralidade das musas, diferentes e autônomas. No entanto, no que há de mais profundo de cada uma delas e na relação que estabelecem entre si, uma nova singularidade emerge. Surge então uma unicidade que deseja assimilar a diferença e convocar semelhanças. Afirmam-se, sempre sem negar as diferenças, substâncias e atributos comuns das artes, as matérias artísticas compartilham de sua condição qualitativa, imensurável, e as artes dividem uma maneira especial de se ligarem às noções de tempo e espaço, conforme a primeira seção deste capítulo, “As musas”, pretende mostrar. Os sentidos da percepção, embora individuais, revelam-se para a ciência cada vez mais impuros, confirmando aquilo que os artistas prenunciaram. Uma sinestesia generalizada, que admite uma comunhão entre sujeito e objeto, se reflete e é refletida no entendimento das semelhanças entre as artes. No domínio da Estética Comparada, disciplina onde se confrontam obras e processos artísticos distintos, se inscreve uma prática comparatista que almeja ultrapassar fronteiras e multiplicar os ângulos a partir dos quais observamos os encontros entre as artes. O Comparatismo se afirma como atitude de observação que, no respeito à individualidade das obras e dos encontros, legitima a subjetividade das conclusões e descobertas. A segunda seção deste capítulo, “Comparar incomparáveis”, reflete sobre a questão dos pressupostos do exercício de aproximar objetos e matérias artísticas distintas.                                                                                                                 1

“Chaque art a son langage propre, c'est-à-dire ses moyens qui n'appartiennent qu'à lui. C'est pourquoi chaque art fait un tout refermé sur soi. Chaque art est une vie singulière. Il est à soi-même un empire. Aussi les moyens des divers arts sont-ils en apparence parfaitement différents. Son, couleur, mot!... Mais, au bout du compte, dans leur profondeur, ces moyens sont absolument semblables ; le but ultime efface les différences apparentes et met à nu l'identité même.”

 

70  

   AS  SEMELHANÇAS  ENTRE  AS  ARTES   Capítulo  2  

A terceira seção, “Semelhanças Informes”, pretende construir um breve histórico da própria noção de semelhança. Fundadora de toda lógica, por muito tempo ela foi a noção fundamental a partir da qual o mundo se abria ao conhecimento. Mas, no fim do século XVI, a semelhança, como veremos, passa a ser desacreditada, ofuscada pela volubilidade que ela instaura. No entanto, uma vez que se deixa de lado seu entendimento fechado e excessivamente concreto, ela persiste e se abre à uma atualização de seus sentidos, a sua reabilitação. A semelhança, a partir desse capítulo, se impõe como noção de grande importância na condução das reflexões desta tese. 1. As Musas: Reencontrando a Unidade Original A arte e as artes – singular e plural – dialogam mais uma vez. As  musas  caminham   livres  e  autônomas,  mas  a  potente  memória  de  sua  mãe  Mnemósine   evoca suas origens e seu

sangue comuns. O uno, tendo se voltado ao múltiplo, afirma sua diversidade, sem negar, no entanto, sua ligação com o singular primordial. Afirma-se, deste modo, o oximoro que conduz boa das reflexões desta tese. Todas as aparentes evidências que definem as diferenças das musas revelam suas fragilidades assim que lançamos um segundo olhar. Um olhar que se volta sobretudo a um “pano de fundo” comum, no qual cada musa exerce o que há de individual em sua arte. E, embora atributos únicos se afirmem, as artes são sempre impuras, pois refletem a impossibilidade de se distinguir com nitidez os limites e fronteiras entre os sentidos, como veremos mais abaixo. a) Do Plural a um Outro Singular Pareyson nos apresentou duas atitudes predominantes quando se trata de abordar a unidade e a pluralidade das artes, como vimos no capítulo anterior2. A primeira é a dos empiristas, que evitam se confrontar com o conteúdo comum das artes, apesar de o reconhecerem. Os empiristas se concentram no que acreditam ser específico e único. As múltiplas artes são espécies de variações sobre um único tema, proveniente de uma Arte, com “a” maiúsculo, sobre a qual não se deve falar. No outro extremo está a atitude do filósofo que, apesar de não negar a existência das diferenças entre as artes, se concentra na sua natureza                                                                                                                 2

Cf. p. 56.

 

AS  SEMELHANÇAS  ENTRE  AS  ARTES   Capítulo  2  

71  

 

ontológica, no que a arte tem de uno. A Arte está acima de tudo. Julgam tarefa estéril o desejo de alguns de entender a diferença das artes ou hierarquizá-las. No entanto, quando nos voltamos ao capítulo anterior, nos deparamos com um certo número de pensadores que, sem negar uma dimensão globalizante do fenômeno artístico, se concentraram em refletir sobre a questão dos limites e diferenças entre as artes, com suas matérias e técnicas. Adotam uma posição híbrida entre as duas atitudes acima citadas, atitudes que ilustram de forma muito ampla a questão da diversidade e unicidade da arte, mas que não se aplicam de fato aqueles que pensaram e sistematizaram a diferença das artes. Pois, como o próprio Pareyson comentou, “o assunto de fundamentar a diversidade das artes quase nunca esteve desvinculado de explicar sua unidade” (2001, p. 174). A atitude “empirista” do “isso é isso”, “aquilo é aquilo” em geral não contenta a quem dirige mais de um pensamento à questão das diferenças das artes. O simples fato de cada pessoa enxergar e descrever diferentemente os limites entre as artes, segundo os critérios mais variados, já demonstra que a questão é ampla. Por outro lado, se nos apegarmos a uma atitude puramente filosófica, temos que aceitar o fato fundamental de que as palavras nunca tocarão o centro das coisas e do que gostaríamos de dizer3. Se os empiristas se atém ardentemente à experiência e recusam revelar a arte senão pela prática, os filósofos, por outro lado, abraçam o ontológico e negam as evidências das experiências mais diretas e concretas. O trajeto “do plural ao singular” proposto neste texto tem a particularidade de não se desfazer ou de deixar de crer nas diferenças das artes. O que propomos é, na verdade, um reencontro com uma unidade ou algo singular presente em cada arte. Toda obra de arte se instaura ao mesmo tempo como todo e como parte de uma totalidade. Tal é a força das musas: ao mesmo tempo de separação, de isolamento, de intensificação, de metamorfose. De algo que fazia parte de uma unidade de significação, ela faz outra

                                                                                                                3

Por analogia, o filósofo, sob esse prisma, seria uma espécie de místico que busca um sentido velado, enquanto o empirista seria, paradoxalmente, o poeta, aquele que se lança à arte, gratuitamente, como Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa o fez: Tu, místico, vês uma significação em todas as cousas Para ti tudo tem um sentido velado. Há uma cousa oculta em cada cousa que vês. O que vês, vê-lo sempre para veres outra cousa. Para mim, graças a ter olhos só para ver, Eu vejo ausência de significação em todas as cousas; Vejo-o e amo-me, porque ser uma cousa é não significar nada. Ser uma cousa é não ser susceptível de interpretação. (Pessoa, 2004, p. 154).

 

72  

   AS  SEMELHANÇAS  ENTRE  AS  ARTES   Capítulo  2  

coisa, que não é uma parte destacada, mas o toque de uma outra unidade – e esta última não é mais de significação. Ela está em suspenso, e toca suas extremidades. (Nancy, 1994, p. 43)4.

Do plural se vai ao singular, porém um singular que não recusa seu contrário. Neste oximoro, que tende a conciliar opostos, reside o núcleo de um pensamento que, por mais tenso que seja, parece um bom acordo que se faz entre os empiristas e os filósofos. O Um da unidade não é Um “uma vez por todas”, mas, pelo contrário, “todas as vezes por um”, se assim podemos dizer. Cada uma das artes expõe à sua maneira a unidade da “arte”, que não tem nem lugar nem consistência fora desse “cada um” – e ainda mais, a unidade de uma só arte é somente ex-posta nesse sentido em suas obras uma por uma. (ibid., p. 58)5.

As artes se separam da Arte Ideal, inatingível e única, se tornam plurais, afirmando seus contornos e limites, para, em seguida, se dirigirem novamente ao singular primordial. Mas se trata, porém, de um novo e paradoxal singular, que aceita a diferença. Aceita por perceber que autonomia não significa desconexão e que em sua independência não é ameaçada por esse parentesco. b) As Substâncias e Atributos Comuns das Artes Uma arte que é una e singular se converte em artes múltiplas e plurais. Como um tema musical a partir do qual se proliferam variações. Assim, desde que o conceito moderno de arte foi se estabelecendo, antecedido pela assimilação da pintura às chamadas artes liberais, a partir da Renascença, e com a posterior afirmação da disciplina Estética no século XVIII, fortaleceu-se e impôs-se uma tradição de distinção das artes que ainda vigora. Nos meandros das artes distintas, entretanto, persiste um apelo pela arte una, ou por certa singularidade primordial. Cada arte vai remeter a uma potência ontológica, pois a experiência estética insiste em nos recordar da origem comum das artes. E essa dimensão ontológica, porém, não é mais algo que se aproxima de um modelo platônico de Ideal. Tampouco algo completamente vago e incompatível com a atenção dispensada às nuances e diferenças reais de cada variação.

                                                                                                                4

“Telle est la force des muses : elle est à la fois de séparation, d’isolement, d’intensification, de métamorphose. De quelque chose qui faisait partie d'une unité de signification et de représentation, elle fait autre chose, qui n'est pas une partie détachée, mais la touche d'une autre unité - et celle ci n'est plus de signification. Elle en est un suspens, elle touche à ses extrémités.” 5 “ […] l'Un de l'unité n'est pas Un « une fois pour toutes », mais a lieu, au contraire « toutes les fois pour une », si l'on peut dire. Chacun des arts expose à sa façon l'unité d'« art» qui n'a ni lieu ni consistance hors de ce « chacun» - et plus encore, l’unité d’un seul art n’est ex-posée en ce sens que dans ses œuvres une à une.”

 

AS  SEMELHANÇAS  ENTRE  AS  ARTES   Capítulo  2  

73  

 

As semelhanças entre as artes devem residir justamente nas marcas deixadas pelo tema em cada uma de suas variações. Ou seja, nos sinais mais ou menos evidentes que nos fazem reconhecer, ou intuir, a origem comum de cada uma das artes. A esses sinais daremos o nome genérico de “substância”. Em um sentido bem amplo, substância seria ao mesmo tempo o suporte ou substrato para a materialização da arte, e o contexto espiritual sobre a qual o artista se move na instauração de sua obra, como suas crenças artísticas em relação com o “espírito do tempo”, por exemplo. Quando se fala em substância comum, em similaridade espiritual ou quando se remete a uma instância originária nas artes, tende-se a considerar tudo isso como obscuro e vago. Mas é preciso recordar que o fato de não podermos apreender intelectualmente com clareza não quer dizer que as coisas sejam realmente obscuras e vagas. Aliás, como notou Dewey (2010, p. 350), as sensações imediatas de que algo pertence a um todo são essenciais para que as coisas façam sentido. “A sensação de um todo extenso e subjacente é o contexto de toda experiência e a essência da sanidade. [...]. Sem um contexto indefinido e indeterminado, o material de qualquer experiência é incoerente.” (Dewey, 2010, p. 350- 351). É interessante observar que a presença do todo em uma obra de arte se constitui de maneira tão disseminada que é subestimada. Pois qualquer experiência tem um contexto total que é indefinido e que não pode ser descrito especificamente6. Talvez um importante atributo da arte, de modo geral, seja justamente esse poder de avivar a sensação de totalidade de algo definido que se impõe frente ao indefinido. Embora todas as experiências comuns estejam também cercadas por esse fundo inexplicável, a arte deve acentuar a presença desse mesmo fundo. Os artistas seriam os instauradores dessa realidade sensível potencializada, mas todas as pessoas que a reconhecem, instauram de maneira particular essa mesma realidade e se tornam, de certa forma, artistas. Desde que a realidade sensível é revelada e compartilhada, confronta-se com esse todo fundamental, cuja experiência é potencializada pela atividade artística. Esse fundo indiferenciado, não apreendido intelectualmente, mas intuído e experimentado, se constitui em uma substância comum e primordial das artes. No que diz respeito às matérias artísticas, entendidas em seu sentido mais direto e fundamental, ou seja, sons, pedras, tintas, etc., deve haver um atributo comum que liga as artes entre si. Trata-se de sua natureza predominantemente qualitativa. Isso não quer dizer que não seja possível medir o tamanho de um objeto em um quadro qualquer, ou a intensidade de                                                                                                                 6

Esse “contexto indefinido” pode também ser associado ao que Michel Serres (2011, p. 12) chamou de “ruído de fundo” (bruit de fond) do mundo, quando narrou a infância de Orfeu e sua busca por um lugar silencioso que, como o personagem rapidamente descobriu, não existia.

 

74  

   AS  SEMELHANÇAS  ENTRE  AS  ARTES   Capítulo  2  

uma cor, ou a duração e a altura de um certo acorde em uma sonata qualquer. O que acontece em arte é que cada som, cada forma, cada cor só existe artisticamente em relação à totalidade dos elementos da obra. Uma pequena tela pode evocar ou construir percepções de amplitude e infinitude e, inversamente, podemos nos sentir comprimidos por uma tela de grandes proporções. As coisas são estáticas como produtos físicos, mas móveis como objetos estéticos. As propriedades das matérias das artes se encontram no fato de serem, todas elas, reforçamos, qualitativas. Endereçando-se ao mistério da natureza em analogia à obra de Beethoven, disse Debussy: Certas páginas do velho mestre [Beethoven] contém a expressão da mais profunda beleza de uma paisagem. Isso acontece simplesmente porque ela não é uma imitação direta, mas uma transposição sentimental daquilo que é invisível na natureza. Por acaso descobriríamos o mistério de uma floresta medindo o tamanho de suas árvores? (apud Bosseur, 1999, p. 170)7.

As matérias das artes têm em comum o fato de não poderem, de fato, ser medidas. Desde que abandonam a condição de matéria ordinária do mundo para se tornar matéria artística, uma caracterização quantitativa dos elementos de uma obra é sempre insuficiente para penetrar efetivamente seu interior. Dois elementos ou parâmetros muito frequentemente utilizados nas classificações das artes para distingui-las, podem, curiosamente, ser usados também para aproxima-las: o espaço e o tempo. A música, de modo análogo a uma obra de arte plástica, é também objeto estético, objeto de contemplação estética. A sua objetalidade mostra-se, claro está, menos de um modo imediato do que indireto: não no instante em que ressoa, mas só quando o ouvinte, no fim de uma frase ou de um membro, se vira para o que decorreu e o representa para si como um todo consistente. A música toma ao mesmo tempo uma forma quase espacial; o que foi ouvido consolida-se em algo que está diante de nós, numa objetividade por si subsistente. (Dahlhaus, 1991, p. 23).

O que Dahlhaus fala sobre a música pode ser aplicado para qualquer outra arte que se desenrola no tempo de maneira mais evidente. Essa “objetalidade” de uma arte temporal se inscreve em um espaço, talvez no fundo indiferenciado, citado como substância comum das artes. “A ocupação do espaço é uma condição geral da existência de tudo – até de fantasmas, se eles existirem.” (Dewey, 2010, p. 388). E isso não exclui o fato de reconhecermos, ainda                                                                                                                 7

“Combien certaines pages du vieux maître [Beethoven] contiennent d’expression plus profonde de la beauté d’un paysage, cela simplement parce que il n’y a plus d’imitation directe mais transposition sentimentale de ce qui est « invisible » dans la nature. Rend-on le mystère d’une forêt en mesurant la hauteur de ses arbres ?”

 

AS  SEMELHANÇAS  ENTRE  AS  ARTES   Capítulo  2  

75  

 

ecoando Dewey, que, em toda experiência, tocamos o mundo através de um “tentáculo específico” (ibid., p. 352). Nossa interação com o mundo se dá através de um órgão especializado que opera por um meio particular. Mas a substância comum se encontrará em uma instância que precede e sucede a instauração da obra de arte. Ela deve residir neste “objeto de contemplação estética”, sobre a qual nos falou Dahlhaus e onde não é permitido que se separe arte, matéria, entendida em sua conotação mais direta, e os meios, como gestos e técnicas para se chegar ao objeto artístico. A dimensão do tempo nas artes também pode ser, digamos, imobilizada, de forma semelhante à dimensão espacial. Isso acontece quando as chamadas artes temporais transcendem o plano das linguagens articuladas e referem-se a eventos passados que se constituem como estruturas permanentes. Desta forma a obra se caracterizará em uma ambiguidade fundamental que estabelece elos entre o passado, o presente e o futuro. Essa maneira de perceber as artes temporais, em especial a música, insere-se na ótica estruturalista de Claude Lévi-Strauss, associando ao mito a chamada estrutura permanente que tem o poder de suprimir e imobilizar o tempo (Lévi-Strauss, 1997, p. 71). O tempo, como vazio, não existe; como entidade, o tempo não existe. [...]. Romances, poemas, dramas, estátuas, prédios, personagens, movimentos sociais ou argumentos, assim como quadros e sonatas, todos são marcados pela solidez ou pela magnitude, ou pelo inverso. (Dewey, 2010, p. 374-375).

Por outro lado, deve-se dizer que a ideia de que uma obra visual possa se apresentar de uma só vez, ou revelar sua estrutura subitamente é, certamente, uma impossibilidade. A instantaneidade na entrega da arte à experiência é somente virtual. Nem o menor dos quadros revela sua estrutura de uma só vez. Uma impressão total emana, mas é preciso tempo para que os elementos definidores se apresentem. É preciso um processo de interação entre o objeto artístico e o mundo. E em um processo, subentende-se uma temporalidade. Todas as artes são submissas ao tempo para revelarem suas estruturas, que, sendo inesgotáveis, exigem uma continuidade no ato de perceber. Uma fuga qualquer de Johann Sebastian Bach pode trazer consigo uma experiência estética próxima à apreciação de uma bela escultura ou catedral, para dar um exemplo concreto. Mas para que as estruturas se revelem é preciso mais de uma escuta, mais de um olhar apressado. Toda estrutura será sempre um reservatório de lembranças e um enorme registro de expectativas futuras (ibid., p. 362). Embora cada arte lide de sua própria maneira com os parâmetros tempo e espaço, as artes têm em comum o fato de trazer à tona uma maneira especial de gerir esses dois polos fundamentais.

 

76  

   AS  SEMELHANÇAS  ENTRE  AS  ARTES   Capítulo  2  

Uma ampla compreensão dos termos tempo e espaço também pode nos levar à noção de movimento como denominador comum e, por consequência, o ritmo como regulador do tempo e do espaço. Linhas, acentos e intervalos foram os elementos citados por Dewey como atributos comuns das artes. A linha se apresenta como aquilo que relaciona e liga e é, ao mesmo tempo, meio para se determinar o ritmo. Musicalmente falando, a corriqueira expressão “linha melódica” revela nada mais que uma sequência de sons que se “ligam” e, embora a ideia de linha ou desenho remeta a uma virtualidade, a experiência musical nos mostra que, sem essa “linha”, a música, ao menos no seu entendimento corrente, dificilmente existiria. É ela quem constrói a materialidade em todas as instâncias, seja ela real ou virtual. No interior, ou no decorrer, dessas linhas, musicais ou pictóricas, para que relações internas se estabeleçam, será preciso que existam diferenciações externas: pontos de referência, marcas que nos situem no cerne de um certo desenho, acentos devem se fazer notar em meio às linhas que constroem o ritmo. O terceiro elemento, os intervalos, não são entendidos no sentido convencional de intervalos musicais como diferença entre as alturas, mas como o espaçamento entre linhas. São tão necessários quanto os acentos no interior do ritmo. São eles que permitem que a nossa atenção se mantenha ativa na apreensão de imagens e sons. Entendidos dessa maneira, linha, acento e intervalo se afirmam como atributos comuns entre a arte dos sons e das formas no espaço. Tendo como pano de fundo e substância comum o contexto indeterminado no qual se inscrevem as diferentes artes, vamos aos poucos percebendo que semelhanças fundamentais e originárias produzem consequências das mais diretas e potentes. O fato de não ser possível uma apreensão intelectual sólida desse contexto indeterminado ou de não podermos ver com clareza os atributos quantitativos em uma obra, ou mesmo da maneira muito particular com a qual as artes lidam com as dimensões temporais e espaciais das matérias, nada disso abole ou invalida o parentesco existente entre as artes. Pelo contrário, esses fatores, entre outros, tão somente confirmam a existência de elos profundos entre as diversas manifestações artísticas. c) O Coro das Musas: A Sinestesia como Regra Oliver Sacks, em suas Alucinações Musicais (2007, p. 167), reproduz a maneira através da qual E. T. A. Hoffman, apresenta um dos heróis de seus contos: Johannes Kreiler era um “homenzinho de paletó cor de dó sustenido menor com um colarinho cor de mi maior”. Na literatura pululam exemplos de escritores e poetas que, das mais diversas maneiras, fazem jogo de palavras semelhante. É a chamada sinestesia, figura de linguagem  

77  

AS  SEMELHANÇAS  ENTRE  AS  ARTES   Capítulo  2  

 

que sugere a junção de planos sensoriais diferentes. Goethe, Rilke, Maupassant, Raul Pompéia, Cruz e Souza, Balzac, Georges Sand, André Gide, Garcia Lorca, são alguns exemplos de uma lista, certamente enorme, de escritores que se utilizaram de sinestesias8. No entanto, o que parece um simples jogo de palavras pode ser também o reflexo de uma profunda crença na conjunção dos órgãos da percepção ou mesmo algum real ou mesmo patológico cruzamento dos sentidos. Em meados do século XIX, por exemplo, alguns poetas europeus teceram certas associações dos sentidos de forma tão intensa e afirmada que fica difícil imaginar que não havia nada a mais que simples figuras de linguagem. Os exemplos mais citados são os poemas Les Voyelles (1883) de Arthur Rimbaud (1854-1891) e, principalmente, Correspondances (1857) de Charles Baudelaire (1821-1867)9. No início do século, outros escritores parecem ter elevado a carga sinestésica da linguagem escrita à máxima potência, fusionando-a com amplas noções de tempo ou espaço, como fez Marcel Proust (1871-1922). Suas famosas madeleines de Em Busca do Tempo Perdido (1908-1922) dissipavam suas inquietudes e despertavam sentimentos em estado puro. Ainda no terreno das palavras, porém na maneira de nomear artes não literárias, uma sinestesia aparece – como recurso poético ou, talvez, como a expressão de algum tipo efetivo de interseção dos sentidos – e se fixa em títulos dos mais evocativos. Entre os pintores,                                                                                                                 8

Sérgio Bittencourt Sampaio em seu artigo “Som e Cor: Realidade ou Fantasia”, publicado na Revista da Academia Nacional de Música, vol. XII, 2001, p. 141-169, cita trechos de textos e poemas de cada um dos escritores mencionados. 9 La Nature est un temple où de vivants piliers A Natureza é um templo vivo em que os pilares Laissent parfois sortir de confuses paroles ; Deixam filtrar não raros insólitos enredos; L’homme y passe à travers des forêts de symboles O homem o cruza em meio a um bosque de Qui l'observent avec des regards familiers. segredos Que ali o espreitam com seus olhos familiares. Comme de longs échos qui de loin se confondent Dans une ténébreuse et profonde unité, Vaste comme la nuit et comme la clarté, Les parfums, les couleurs et les sons se répondent.

Como ecos longos que a distância se matizam Numa vertiginosa e lúgubre unidade, Tão vasta quanta a noite e quanto a claridade, Os perfumes, as cores e os sons se respondem.

II est des parfums frais comme des chairs d’enfants, Há aromas frescos como a carne dos infantes, Doux comme les hautbois, verts comme les prairies, Doces como o oboé, verdes como a campina, - Et d’autres, corrompus, riches et triomphants, E outros já dissolutos, ricos e triunfantes, Ayant l'expansion des choses infinies, Comme l’ambre, le musc, le benjoin et l’encens Qui chantent les transports de l’esprit et des sens.

Com a fluidez daquilo que jamais termina, Como o almíscar, o incenso e as resinas do Oriente, Que a glória exaltam dos sentidos e da mente.

* O poema reproduzido, com sua tradução foi retirado da versão bilíngue de As Flores do Mal feita por Guilherme de Almeida (2006, p. 126-127).

 

78  

   AS  SEMELHANÇAS  ENTRE  AS  ARTES   Capítulo  2  

exemplos não faltam: Paul Klee (Fuga em Vermelho e No Estilo de Bach), Lévi-Dhurmer (as telas das nove sinfonias de Beethoven e sua sonata Apassionata), František Kupka (Amorpha, fugue en deux couleurs), Arcângelo Ianelli (Sinfonia em Verde) e Vassily Kandinsky (improvisos e composições). Todos eles, e muitos e muitos outros, manifestaram também em seus escritos e teorias a crença em algum tipo de parentesco das artes. Kandinsky (18661944), em seu famoso Do Espiritual nas Artes (1911), afirmava a sinestesia para além da mera figura retórica: “Os sons e as cores se correspondem porque a pintura não se recebe exclusivamente pelos olhos, nem a música exclusivamente pelos ouvidos, mas ambas as artes se dirigem aos cinco sentidos”. (2000, p. 258). Partindo da premissa de que toda arte tem a mesma raiz, proveniente de uma correspondência profunda entre natureza e arte, Kandinsky situa a diferença somente nos meios de expressão: música como os sons no tempo e pintura como cores em uma superfície. Ele acreditava ainda que essas diferenças aparentemente grandes eram abrandadas pelo fato de “leis enigmáticas”, porém precisas, guiarem o trabalho de composição do artista (ibid., p. 256). Existe uma identidade originária das leis de composição das diferentes artes e é aí, segundo o pintor, que se encontra a solução e a porta aberta da arte sintética do futuro. Leis universais regem as diferentes artes. Quanto aos sons e cores, ele especifica: amarelo com a propriedade de subir para regiões cada vez mais agudas, como um trompete pontiagudo; o azul é oposto ao amarelo, desce e se assemelha aos sons da flauta, do violoncelo e do contrabaixo; verde é como os sons médios do violino; e o vermelho pode associar-se a fortes toques de tambor (ibid., p. 257). Nos títulos de obras musicais, a associação principalmente visual é recorrente. A obra Quadros de uma Exposição (1874) de Modest Mussorgsky (1839-1881) acabou se tornando emblemática da capacidade da música, muitas vezes questionada, de representar imagens. Quando nos deparamos com os títulos de obras de Claude Debussy, por exemplo, não temos dúvidas de que eles se relacionam intimamente com os sons. A obra de Olivier Messiaen (1908-1992) está repleta de associações que vão além do título da música e que foram reveladas por ele como uma dinâmica de transposição de cores e sons calcadas em experiências sinestésicas, agora não mais entendida como figura de linguagem e sim como fenômeno psíquico. Os limites entre as duas instâncias da sinestesia, figura de linguagem e fato psíquico, são certamente bem sutis. A sinestesia sugere uma unidade dos sentidos e, por consequência, a unidade das artes, muitas vezes associada a algum tipo de arroubo poético ou a um

 

AS  SEMELHANÇAS  ENTRE  AS  ARTES   Capítulo  2  

79  

 

romantismo, entendido em seu mais amplo sentido10. A unidade dos sentidos e das artes, a qual chamamos metaforicamente de “coro das musas”, evoca quase sempre algo de ideal e inatingível. Não conhecemos corretamente as regras que regulam a interferências dos sentidos um sobre os outros. Não sabemos ao certo de que maneira a arte pode “transportar seus espíritos e seus sentidos”, como aparece nas Correspondências de Baudelaire (2006). A evocação da sinestesia, por parte dos artistas e também do público, se funda nos variados procedimentos e se baseia em uma infinidade de convicções, das mais cientificistas às mais filosóficas ou mesmo esotéricas11. Kandinsky foi motivo de desdém para Adorno, por sua fragilidade metodológica na aproximação dos sentidos em Do Espiritual na Arte (Lauxerois e Szendy, 1997, p. 31). Até hoje, para muitos, falar em unidade de sentidos e, por consequência, em unidade das artes, pode passar por ingênuo devaneio. Para falar da unidade dos sentidos, antes da unidade das artes, é preciso que a ciência intervenha com mais força que a filosofia ou a estética. Às vezes parece que arte e ciência habitam em regiões de diferentes fusos horários ou, no melhor dos casos, que existe uma sincronia secreta que liga essas duas instâncias. Arte e ciência celebram de maneiras bem diversas e em momentos também diversos as interseções entre os sentidos ou entre as artes. A sinestesia, na ciência, ocupa um lugar não muito confortável, pois a certeza de sua existência fisiológica e psicológica é sempre perturbada pela dificuldade em precisar seus limites. As diversas pesquisas comentadas por Oliver Sacks, por exemplo, mostram uma série de discrepâncias, tanto no que diz respeito a própria definição de sinestesia, quanto sua incidência. Estudos epidemiológicos mostram resultados que variam de um caso para cada duas mil pessoas até uma sinestesia generalizada que atinge todo ser humano em diferentes graus (Sacks, 2007, p. 169-171). A ciência se interessou pelo fenômeno da sinestesia desde o século XVIII em vários, porém pontuais, períodos históricos. Alguns momentos foi deixada de lado, talvez pelo fato das mirabolantes imagens mentais e metáforas dos artistas a transformarem em “meras elucubrações”. Somente em 1883 foi publicado um trabalho consistente sobre a questão da sinestesia: Inquiries into Human Faculty de Francis Galton, resultado de duas décadas de pesquisa, apresentou a sinestesia como fenômeno fisiológico e capacidade inata da mente.                                                                                                                 10

O termo romantismo é aqui entendido da maneira como é apresentado pelo curador Teixeira Coelho do Museu de Arte de São Paulo na exposição Romantismo – A Arte do Entusiasmo, iniciada dia 5 de fevereiro de 2010 e sem previsão de encerramento. O romantismo é visto de maneira vasta, atemporal e se liga sobretudo ao modo como o artista se relaciona com seu trabalho e o mundo exterior, sua individualidade e a intensidade de sua expressão. 11 A sinestesia reivindicada pelo compositor Alexander Scriabin (1872-1915) e seu desejo de totalidade, por exemplo, se relacionam intimamente com a doutrina teosófica apresentada por Helena Blavatsky, amálgama de religião, filosofia e ciência.

 

80  

   AS  SEMELHANÇAS  ENTRE  AS  ARTES   Capítulo  2  

Depois disso, apenas nos últimos trinta anos do século XX o interesse dos cientistas foi reascendido, em grande parte devido as técnicas avançadas de imageamento cerebral, também chamado de mapeamento cerebral (ibid., p. 177)12. Oliver Sacks cita ainda estudos que dão provas da ativação simultânea de áreas no cérebro de certos indivíduos e apresenta, em um dado momento, a sinestesia como fenômeno fisiológico subordinado à integridade de certas áreas do córtex cerebral (ibid., p. 172)13. Mas considerar sinestesia como algo anormal parece estranho para Sacks, pois ele “descobriu” vários sinestetas quando começou a questionar pacientes que o procuravam por outras razões. Ou seja, a sinestesia não era vivida de forma alguma como um problema, deficiência ou anomalia. Os estudos mais recentes deste século sugerem que os sentidos dos recém-nascidos são fundidos em uma grande confusão sinestésica e que somente com a maturação cervical que as diferenciações vão se estabelecendo. Isso explica o fato da sinestesia ser mais verificada nas crianças14. Embora seja real e de existência indiscutível, a sinestesia não é, reafirmamos, algo palpável e com margens bem definidas. Na medida em que a tecnologia dos imageamentos cerebrais se desenvolve, novas abordagens da sinestesia vão sendo possíveis. A ciência, no seu pretenso objetivismo, engenhosamente manipula as coisas, mas se mantém distante do interior dessas mesmas coisas. Pelo menos é que o sugere Merleau-Ponty. “A ciência manipula as coisas e renuncia habitá-las”, é a primeira frase de O Olho e o Espírito (2004, p. 13). Antes de abordar a fenomenologia de Merleau-Ponty, Yara Caznok apresentou a unidade dos sentidos ou o “fenômeno da multissensorialidade” a partir de três tendências da psicologia (Casnok, 2008, 117-124). A primeira enxerga os objetos como carregados de propriedades que se assemelham ou se diferenciam e solicitam, assim, a união ou a separação dos sentidos. Essa crença seria baseada no conceito aristotélico de sensus communis que inclui o repouso, o movimento, o número, o tamanho, a unidade e a forma como atributos sensíveis comuns. O segundo ponto de vista desloca do objeto para o sujeito a possibilidade de correspondência entre os sentidos. Cada sentido teria uma série de propriedades comuns                                                                                                                 12

O mapeamento cerebral tenta relacionar a estrutura do cérebro com a sua função ou descobrir que regiões cerebrais se ligam à certas habilidades ou percepções. 13 Como os estudos de Gian Beeli, Michaela Esslen, Lutz Jäncke, John Harrison, Richard Cytonic, Julia Simmer, Jamie Ward e Daphne Maurer. 14 Certas pesquisas, como a de V.S. Ramachandran e E.M. Hubbard, buscam uma distinção entre os sinestetas verdadeiros e os pseudo-sinestetas, sendo os primeiros aqueles em que a relação entre os sentidos se dá de forma regular e estável. Pesquisas como esta tem razão de ser pelo fato das sinestesias constantes e muito bem determinadas serem algo raro e sempre atrelado à capacidade maior ou menor do sujeito em descrevê-la ou expressá-la.

 

AS  SEMELHANÇAS  ENTRE  AS  ARTES   Capítulo  2  

81  

 

que seriam os sentidos suprassensoriais resumidos em: intensidade, qualidade, extensão e duração. A terceira corrente psicológica se interessa mais diretamente ao relacionamento entre sensações e respostas sensoriais e às características dos estímulos físicos. Ou seja, o estudo da multissensorialidade se restringiria, ou ao objeto, ou ao sujeito ou à relação dos dois. Merleau-Ponty apresentou uma quarta via para se explorar as relações entre o objeto e o sujeito. Sua fenomenologia não enxerga esses dois termos como exteriores um ao outro e propõe o entendimento de sensação como uma espécie de comunhão ou coexistência. O filósofo francês acredita que toda percepção se dá sobre uma “atmosfera de generalidade” e que a experiência nunca é clara em si mesma (Merleau-Ponty, 1945, p. 257). Existiria, assim, uma espécie de “ruído de fundo”, nos termos de Michel Serres, ou “fundo indiferenciado” conforme Dewey entende, que age como substância comum de toda experiência. A dificuldade em descrever essa “atmosfera de generalidade” não invalida o fato dela ter existência real, como já dissemos. A ciência, ou o pensamento empírico, tem dificuldade em assumir que cada objeto possui uma profundidade que nenhuma amostragem sensorial é capaz de esgotar (ibid., p. 261). Levando ao extremo a argumentação em torno da unidade dos sentidos e como maneira de enfatizar a comunicação dos sentidos, Merleau-Ponty fala em sua Fenomenologia da Percepção (ibid., p. 274) sobre as implicações sinestésicas de uma substância chamada mescalina. Sob seu efeito, o som de um flauta se converte em um verde azulado, o som de um metrônomo se apresenta como manchas cinzas, os intervalos espaciais da visão correspondem a intervalos temporais dos sons. Foi sob o efeito dessa mesma substância que Aldous Huxley reuniu material para a publicação de seu livro As Portas da Percepção (1954)15. No entanto, nos relatos do escritor inglês, mais do que o estabelecimento de correspondências como na descrição de Merleau-Ponty, houve a acentuação da percepção das cores e dos sons, esse último em escala bem menor. Os sons musicais, apesar do prazer que proporcionavam sob o efeito da mescalina, não foram nada comparáveis às suas impressões visuais16. Era na relação com o tempo e o espaço que a mescalina parecia evocar a sinestesia, segundo a descrição de Huxley. As noções de perspectiva eram quase abolidas e a sensação do correr do tempo quase nula17.                                                                                                                 15

O título provém de uma poesia de William Blake, o mesmo que mais tarde deu o nome ao conjunto de rock The dors. 16 Dentre as obras que ouviu, alguns madrigais de Gesualdo foram as que mais o impressionaram. Como por milagre, as vozes serviam de ponte para seu retorno à percepção normal do mundo (Huxley, 1954, p. 45). 17 Mas não há relato de sons que se convertem em cores ou vice-versa. Há sim, a descrição da reprodução de um quadro de Cézanne, um autorretrato, em que o pintor sai da tela e volta seu olhar para o ambiente, descrito por

 

82  

   AS  SEMELHANÇAS  ENTRE  AS  ARTES   Capítulo  2  

É verdade que soa algo místico e, embora a narração tenha um tom lúcido e linguagem bem clara, o texto não deixa de ser uma descrição dos efeitos de uma droga alucinógena. Apesar da divergência no que concerne os efeitos da mescalina, Merleau-Ponty e Huxley convergem em pontos importantes, ao menos dois. Ambos se posicionam de maneira similar contra um certo intelectualismo e seu objetivismo extremado. O escritor inglês, parafraseando Blake, diz que aqueles que são puramente movidos pelo raciocínio sistemático são os anjos insolentes e arrogantes (Huxley, 1954, p. 68). Diz ainda que a palavra enfeitiça nosso sentido de realidade tão bem que somos capazes de tomar conceitos como dados e palavras como coisas reais (ibid., p. 25). As Portas da Percepção está repleta de críticas diretas e indiretas ao empirismo e sua suposta prepotência. De maneira análoga, o filósofo francês dedica praticamente toda a primeira parte de O Olho e o Espírito à crítica ao intelectualismo. Críticas similares também estão diluídas ou explícitas no decorrer de toda sua Fenomenologia da Percepção. Huxley e Merleau-Ponty compartilham igualmente outras ideias, mesmo que por motivações e vieses distintos. Ambos apresentam as coisas como portadoras de um brilho próprio e uma significação profunda. Os dois autores convergem na crença em uma comunhão e na conexão que existe entre o objeto e o sujeito, o sentinente e o sensível. Os objetos não são somente vistos. Eles também nos observam e simpatizam conosco, como sugere o título do livro do esteta Georges Didi-Huberman, O que vemos, o que nos olha18, inspirado pela fenomenologia de Merleau-Ponty. Seja na fenomenologia, na psicologia moderna ou na semiótica, ou mesmo no texto de Huxley, o que se verifica é a aderência do sujeito ao objeto e vice-versa. Apesar da delicadeza do tema abordado e dessa aproximação místico-científica que faz pensar em ideias teosóficos em moda nos princípios do século XX, Aldous Huxley prenuncia até mesmo as mais recentes pesquisas feitas nesse novo milênio. Ele fala no reencontro com a inocência perceptual da infância, quando o sensum não é subordinado ao conceito (1954, p. 26), e assim conflui com a hipótese de que na mais tenra infância a sinestesia é bem afirmada e nítida, na apresentação de Sacks, ou como Lévi-Strauss comentou em seu Olhar, Escutar, Ler19 (1997, p. 101). Cada vez mais nos convencemos de que a sinestesia não é necessariamente uma anormalidade e muito menos se restringe à licenças poéticas próprias aos artistas. O fenômeno

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                          Huxley como uma natureza morta de Braque ou Gris. Há também o deslumbramento do pintor frente às dobras da saia da Judith de Botticelli que, aliás, não eram muito diferentes das dobras de sua calça de flanela. 18 Didi-Hubermann, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 1998. 19 Lévi-Strauss fala particularmente da associação entre o som vocálico /a/ e a cor vermelha, recorrente nas crianças.

 

AS  SEMELHANÇAS  ENTRE  AS  ARTES   Capítulo  2  

83  

 

da multissensorialidade ou da unidade dos sentidos é fato que vai além de supostas divagações dos artistas. A percepção sinestésica é a regra e, se nós não a percebemos, é porque o saber científico desloca a experiência e nós desaprendemos a ver, ouvir e, em geral, sentir, para deduzir de nossa organização corporal e do mundo, tal qual o concebe o físico, aquilo que devemos ver, ouvir e sentir. (Merleau-Ponty, 1945, p. 275)20.

Os olhos e os ouvidos seriam somente instrumentos de excitação corporal e não apenas da própria percepção. Conforme ensina a fenomenologia de Merleau-Ponty (ibid., p. 257), é preciso restituir à noção de “sentido” um valor negado pelo intelectualismo. O azul, o vermelho, as notas musicais não são uma aparência efêmera à mercê de nosso olhar ou audição. A noção tradicional de “sentido” é impensável, pois as pessoas não são capazes de guardar exterioridade em seu olhar, escutar ou sentir. Existe uma troca intersubjetiva entre os sujeitos e os objetos que a ciência tradicional, atribuindo aos sentidos uma exterioridade utópica, não consegue atingir. A música não está no espaço visível, mas ela o mina, o investi, o desloca, e logo os ouvintes cerimoniosos – que assumem ares de juízes e trocam palavras e sorrisos sem perceber que seu chão se abala – estarão como uma tripulação agitada que se expõe a uma tempestade. Os dois espaços [do sujeito e do objeto] só se distinguem sobre o fundo de um mundo comum, e só podem rivalizar porque ambos têm a mesma pretensão ao ser total. (ibid., p. 271)21.

Desde que dedicamos completamente nossa audição ou visão a um objeto preciso, em pouco tempo nos perdemos no interior desse mesmo objeto e nos encontramos com aquilo que já foi algumas vezes mencionado, por autores de contextos bem diversos: a “atmosfera de generalidade” (Merleau-Ponty), o “contexto indeterminado e subjacente” (John Dewey) ou o “ruído de fundo do mundo” (Michel Serres). Sem negar a obviedade das diferenças entre os sentidos, a fenomenologia adere à crença em sua unidade ou em uma sinestesia generalizada, ideia que, longe de ser absurda, encontra ressonâncias nas recentes pesquisas científicas, como vimos acima. Com os avanços dos imageamentos cerebrais, se pode vislumbrar claramente a complexidade e a plasticidade                                                                                                                 20

“La perception synesthésique est la règle, et, si nous ne nous en apercevons pas, c'est parce que le savoir scientifique déplace l'expérience et que nous avons désappris de voir, d'entendre et, en général, de sentir pour déduire de notre organisation corporelle et du monde tel que le conçoit le physicien ce que nous devons voir, entendre et sentir.” 21 “La musique n’est pas dans l’espace visible, mais elle le mine, elle l’investi, elle le déplace, et bientôt ces auditeurs trop bien parés, qui prennent l’air de juges et échangent des mots et des sourires, sans s’apercevoir que le sol s’ébranle sous eux, sont comme un équipage secoué à la surface d’une tempête. Les deux espaces ne se distinguent que sur le fond d’un monde commun et ne peuvent entrer en rivalité que parce qu’ils ont tous deux la même prétention à l’être total.”

 

84  

   AS  SEMELHANÇAS  ENTRE  AS  ARTES   Capítulo  2  

das redes neurais. Todo trânsito, substituição ou confluência que pode haver entre os sentidos se reflete na arte em todas as suas instâncias, sejam elas poéticas, estéticas ou críticas. Tudo que parece arroubo poético, especulação filosófica ou devaneio de artista romântico pode ser simplesmente a expressão do caráter intercambiável ou dessa comunhão entre os sentidos que se reflete nas artes. Não se trata mais simplesmente de “vagas metáforas” e sim da expressão de uma realidade ou uma vocação comum para a sinestesia. Baudelaire, quando fala nos perfumes, nas cores e nos sons que se respondem em Correspondências, ele vai além do que somente comunicar o Zeitgeist, o “espírito do tempo”, mas nos aponta para a natureza sinestésica de toda percepção. Muito mais ilusório que pensar em uma unidade dos sentidos e das artes, é pensar que cada sentido e cada arte são puros e permanecem isolados em seus domínios. O “coro das musas”, maneira metafórica de se falar na generalização da sinestesia, afirma também o oximoro do singular e do plural das artes. A afirmação da sinestesia é a afirmação do novo singular que, paradoxalmente, não nega as diferenças dos sentidos e das artes, mas se apresenta como “simultaneidade integrada dos mundos sensíveis”, como sugeriu Nancy (1994, p. 28). Quando ouvimos, por exemplo, o grito do Laoconte que tenta se livrar da serpente que o envolve, aceitando a sugestão de Lessing (1989, p. 15), ou quando é ouvido o som dos cascos do touro de Corridas de Francis Bacon, como narrou Nancy (ibid., p. 45), em ambos os casos notamos que é possível trazer à tona visualmente percepções de outros sentidos. “Cada obra é, a sua maneira, uma sinestesia e a abertura de um mundo.” (ibid., p. 58)22. Ainda no entendimento de Nancy, o singular-plural aparece como lei e como problema na arte e nos sentidos (ibid., p. 30). O “coro das musas” tem a sinestesia como regra. Uma sinestesia que compreende as artes e os sentidos como multiplamente únicos e unicamente múltiplos. Que, pelos meandros de figuras de linguagem e metáforas, afirmam entendimentos mais tarde confirmados pela ciência, tanto fenomenológica quanto neurológica. Mas a totalidade da percepção não nega a especificidade dos sentidos. Cada um deles tem uma maneira peculiar de se integrar e de se entregar à percepção. Embora esse jogo se reflita na vida de maneira geral, a arte parece potencializá-lo e explicitá-lo.

                                                                                                                22

“Chaque œuvre est à sa façon une synesthésie, et l’ouverture d’un monde.”

 

AS  SEMELHANÇAS  ENTRE  AS  ARTES   Capítulo  2  

85  

 

2. Comparar Incomparáveis: Pressupostos para uma aproximação das artes A reflexão e a discussão sobre a dicotomia entre singular e plural, ou unicidade e multiplicidade, se estabelece concretamente na forma das relações entre elementos. No núcleo dessas relações se situa um processo cognitivo fundamental chamado comparação. A realidade da diferença das coisas não impede que semelhanças, objetivas ou não, e de todas as naturezas, possam ser observadas. No entanto, é importante que essas semelhanças se afirmem em algum espaço e com algum rigor. Tratando-se da aproximação de objetos artísticos, a Estética Comparada pode ser um terreno adequado para visualizar semelhanças e diferenças. No interior dela instala-se o Comparatismo, que se afirma não como uma pura técnica, mas como uma verdadeira disciplina, no sentido mais geral do termo, como um ramo de conhecimento, com objetivos e metodologias próprias. a) Estética e Estética Comparada Em meados do século XX, Étienne Souriau, professor titular de Estética na Sorbonne, em Paris, definiu a Estética Comparada, de maneira geral, como a disciplina que aproxima obras e processos artísticos de artes distintas (1947, p. 11). No entanto, embora o exercício de comparação entre artes não seja nada raro, a denominação Estética Comparada ainda não é muito usada. Souriau a afirmou e a definiu em seu La Correspondance des arts (1947) e em seu Vocabulaire d’Esthétique (1990). Outros autores o ecoaram, como Thomas Munro em Les Arts et leurs relations (1954) ou em certo número de artigos, monografias e teses, sobretudo na Universidade de Paris-Sorbonne, nos trabalhos dirigidos pela Profa. Dra. Michèle Barbe. Jean-Jacques Nattiez, recentemente, mencionou a Estética Comparada no subtítulo de seu livro La Musique, les images et les mots (2010), comentando o uso das metáforas no interior da disciplina23. Nattiez, em alguma medida, contribui para legitimar tal disciplina. Mas de qualquer maneira, a denominação ainda é pouco utilizada. Os próprios autores que teoricamente praticariam estética comparada, por confrontarem obras e processos artísticos, parecem reticentes na afirmação de tal disciplina. Temem, talvez, as implicações filosóficas e teóricas que isso pode acarretar. Ou mesmo, consideram que a própria natureza da Estética já subentende algum tipo de aproximação interartística.                                                                                                                 23

“Du Bon et du moins bon usage des métaphores dans l’esthétique comparée” é o subtítulo do livro de Nattiez citado.

 

86  

   AS  SEMELHANÇAS  ENTRE  AS  ARTES   Capítulo  2  

Mesmo que as definições, por si só, não revelem as naturezas das coisas e existam somente para designar, serão essenciais algumas considerações preliminares sobre a Estética para, em seguida, situar a Estética Comparada, território sobre o qual se funda a maior parte das reflexões da segunda parte da tese. Estética A Estética, como boa parte das disciplinas, é una e múltipla. Defini-la com alguma clareza pode ser possível, mas com exatidão, dificilmente. Chamá-la de reflexão sobre a arte, pode ser correto, porém muito impreciso. Contudo, quanto mais precisos formos, mais sujeitos a contradição e a erros também estaremos, pois o sentido da Estética deve ser o conjunto dos seus usos, e estes foram e são bem variados. O problema de considerá-la como simples reflexão sobre as artes é que outras instâncias ou disciplinas distintas, tais como a Poética, a Crítica e a Teoria das Artes, poderão intervir e gerar confusões conceituais e certos problemas metodológicos. Por isso, na tentativa de apresentar a Estética Comparada, será importante primeiro fazer um breve panorama da Estética, apresentar um tipologia e constituir, assim, alguns importantes pressupostos para esta pesquisa. Definir Estética como “reflexão sobre arte” nos remete à sua pré-história, ou seja, à Antiguidade e à Idade Média, períodos nos quais a metafísica do belo, nos preceitos platônicos, o aproxima do Verdadeiro e do Bom. Na Idade Média a beleza se associa a uma realidade inteligível, que, por sua vez, se liga à metafísica e mesmo a uma noção de harmonia moral (Talon-Hugon, 2010, p. 17). Mas a pura reflexão sobre a arte ou sobre o belo, por mais interessante que seja, não é ser propriamente a Estética. Mesmo porque, como vimos, a noção de arte se difere consideravelmente segundo épocas e contextos. Logo, a não distinção entre arte e técnica na Antiguidade e na Idade Média já pode ser um impedimento para considerar que os autores antigos praticavam Estética. O fato é que cada reflexão sobre arte, assumidamente estética ou não, vai se instalar em meio a certo ordenamento de ideias que transcendem as consciências individuais. É o que se chama de episteme ou solo epistemológico. A Estética, com esse nome e com o desejo de ser efetivamente disciplina, surge na obra do filósofo alemão Alexander Gottlieb Baumgarten (1714-1762), como “ciência do belo” em 1735 (Souriau, 1990, p. 725). Opondo a noêta, fatos da inteligência, da aistheta, fatos da sensibilidade, Baumgarten colocou o sensível como figura central e assim permitiu a emancipação da disciplina. Ela só pôde existir efetivamente, graças a uma transformação epistemológica que se produziu entre os séculos XVI e XVII na maneira de conceber o  

AS  SEMELHANÇAS  ENTRE  AS  ARTES   Capítulo  2  

87  

 

mundo e como ele se entrega às nossas sensações24. A emancipação das artes visuais e sua inclusão entre as artes liberais na Renascença contribuiram para o surgimento da ideia moderna de arte, ou de belas-artes. Mas, além da questão do belo e do estatuto da arte em si, havia ainda a importância crescente que se atribuía ao sensível no cerne das reflexões sobre arte. No século XVIII nasce a figura do crítico, como comentador da arte, e pululam reflexões críticas sobre pintura, poesia e música. A Crítica da Razão Pura, publicada em 1781 por Kant, embora não se apresente explicitamente como um estudo de Estética, acaba produzindo efeitos fundamentais na afirmação e no estatuto da disciplina. Percebemos ainda hoje as ressonâncias do pensamento de Kant nas modernas definições de Estética, como aquela do Vocabulário Técnico e Crítico da Filosofia de André Lalande (1999, p. 343), que apresenta a disciplina como “estudo do julgamento do gosto”, ou no Systhème des Arts (1926) de Alain, no qual o autor deixa claro sua fundamentação kantiana. O que os estetas modernos nomeiam Estética kantiana consiste na análise transcendental do julgamento de gosto que exprime a experiência estética da beleza entregue aos sentidos (Talon-Hugon, 2010, p. 57). No século XIX, a reflexão e o discurso sobre a arte e as práticas artísticas eram atividades bastante próximas. A Estética se constituía muitas vezes como prolongamento da atividade artística e vice-versa. Filósofos como Schopenhauer e Nietzsche ou os idealistas alemães como Schlegel e Schiller, refletiram sobre questões estéticas e Hegel, considerando a disciplina como filosofia da arte, dava maior enfoque às significações e ao conteúdo das obras de arte que a própria experiência nos sentidos. No século XX, a Estética se vê frente a inúmeros desafios, muitos deles em função das transformações no próprio entendimento da noção arte. Tudo parece inclassificável e a obra de arte, como totalidade sensível e claramente delimitada, nem sempre está presente. No início do século passado, a reflexão estética se prolonga no pensamento de filósofos como Benjamin e Adorno. O primeiro anuncia a “perda da aura” da obra de arte “na era de sua reprodutibilidade” e o segundo afirma a não existência de uma essência intrínseca à uma obra de arte25 (ibid., p. 89-92). No século XX, o Vocabulaire d’Esthétique (1990, p. 728-729) dirigido por Étienne Souriau distinguiu cinco tipos de Estética, que resumimos da seguinte forma:

                                                                                                                24

Michel Foucault apresentou com clareza em As Palavras e as Coisas (1966) essa transformação essencial do solo epistemológico. 25 Citamos o célebre texto de Walter Benjamin: A Obra de Arte na Era da Sua Reprodutibilidade Técnica, publicado em 1936.

 

88  

   AS  SEMELHANÇAS  ENTRE  AS  ARTES   Capítulo  2  

1. Estética Filosófica: a mais antiga, vem desde Platão e se constitui em um método reflexivo e analítico. 2. Estética Psicológica: surge na segunda metade do século XIX e se dedica à compreensão dos efeitos da arte e do belo sobre o pensamento. Inclui a estética psicanalítica. 3. Estética Sociológica: Tem como principais representantes Marx, Taine e Guyau e se preocupa em estabelecer o lugar da arte na sociedade. 4. Estética Comparada: Permanece exclusivamente nos fatos propriamente estéticos. Coloca em valor o que as artes distintas podem ter em comum, o que pode ser transposto e suas influências mútuas. 5. Estética Morfológica: Emprega método analítico e até mesmo matemático. É prospectiva e busca revelar princípios de invenção e maneiras de construir estruturas no interior das obras artísticas. É interessante observar que se nomeou Estética Filosófica as reflexões sobre arte feitas antes mesmo do efetivo nascimento da disciplina. Quanto às Estéticas Psicológicas e Sociológicas, o vocabulário parece meio reticente em relação a elas pelo risco que correm de se afastar de conteúdos propriamente estéticos. Por outro lado, no decorrer do texto, Souriau não disfarça certa simpatia pelas duas últimas Estéticas: a Morfológica e a Comparada. Em sua apresentação da disciplina a partir das semelhanças, afinidades e filiações das mais variadas acepções de estética, Carole Talon-Hugon a definiu da seguinte maneira: “A Estética é a reflexão sobre certo campo de objetos dominado pelos termos ‘belo’, ‘sensível’ e ‘arte’.” (2010, p. 4) 26 . Mesmo que ainda soe algo vago, o que essa definição tem de interessante é que quando se observa historicamente a Estética sobre essa tríplice base vemos que existe uma alternância entre esses polos. Ora é a própria noção de arte que é o centro, ora o sensível, ora a noção do belo. Essas três instâncias estão sempre presentes, mas nunca em proporções equilibradas. Em um olhar bem distanciado, vemos por exemplo que na Antiguidade e na Idade Média o sensível aparecia somente em doses homeopáticas. Sua importância aumenta a partir da Renascença e, séculos depois, atinge seu ápice na Estética Psicológica, particularmente com a Fenomenologia. No século XX, a reflexão sobre o próprio

                                                                                                                26

“L’esthétique est réflexion sur un certain champ d’objets dominé par les termes de ‘beau’, de ‘sensible’ et ‘d’art’.”

 

AS  SEMELHANÇAS  ENTRE  AS  ARTES   Capítulo  2  

89  

 

conceito de arte e seus limites ganhou grande destaque. Ou seja, na história existe certamente uma alternância entre essas três instâncias apresentadas por Talon-Hugon27. O belo, o sensível e a arte habitam a Estética que, nesta pesquisa, será regida por outras duas diretrizes, distintas e indissolúveis. A Estética deve ser concreta e especulativa ao mesmo tempo. A experiência e especulação servem de pano de fundo para a prática da disciplina pois, permanecer na especulação pura é permanecer na abstração e, por outro lado, firmar-se na pura experiência é contentar-se com a simples descrição. A estética é constituída deste dúplice recâmbio ao caráter especulativo da reflexão filosófica e ao seu vital e vivificante contato com a experiência: não é estética aquela reflexão que, não alimentada pela experiência da arte e do belo, cai na abstração estéril, nem aquela experiência de arte ou beleza que, não elaborada sobre um plano decididamente especulativo, permanece na simples descrição. (Pareyson, 2010, p. 8).

É preciso notar também que Estética e experiência estética são coisas distintas, mesmo que complementares. Na experiência estética se situam duas instâncias interligadas: a crítica e a poética. A crítica vem da exigência que toda obra tem de ser avaliada, mesmo se isso não se apresentar em termos explícitos. A poética, por sua vez, é um determinado programa de arte representado pela espiritualidade de uma época ou uma pessoa (ibid., p. 11-17)28. A Estética, ainda nos termos de Pareyson (ibid., p. 11-17), tem unidade como reflexão filosófica e compete a ela estabelecer o que é específico de uma determinada arte em um plano que interesse todas as artes. Ela deve levar em conta a totalidade dos aspectos da experiência artística e a suas repercussões no âmbito das outras artes. A Estética deve ser, então, única em sua pluralidade. Entendida dessa forma, qual seria então o interesse em apresenta-la como Estética Comparada se, em sua natureza, já habita todas as “estéticas” particulares? Estética Comparada Por um viés distinto do de Pareyson, Victoria Llort Llopart (2006), em sua tese de doutorado, defende a instauração da Estética Comparada em meados do século XVIII. A partir deste período, para explicar ou caracterizar uma arte, era indispensável recorrer a                                                                                                                 27

Como se não bastasse a amplitude das noções, digamos, acadêmicas da Estética, ainda existem os entendimentos do senso comum que coexistem, nem sempre harmoniosamente. É o caso da confusão entre estilo e estética. Isso acontece, por exemplo, quando se fala da “estética de um autor”. Ou quando se caracteriza algo como estético, considerando-o sinônimo de belo. Desconsideraremos essas acepções. 28 Vale lembrar que poética aqui é entendida em seu sentido amplo, associada à chamada poiésis. Ela não se ligará somente à poesia, evidentemente, e sim ao estudo da instauração das obras de arte em geral. No final da década de 30, Paul Valéry já havia agregado em “poética” conotações de “poiética”, termo que ele próprio instituiu.

 

90  

   AS  SEMELHANÇAS  ENTRE  AS  ARTES   Capítulo  2  

termos de uma arte distinta. Mas a indagação persiste: se a Estética já nasceu comparada, por que não chama-la tão somente Estética? A resposta é simples: porque a chamando de Estética Comparada explicita-se o fato dela se ocupar especificamente dos contatos entre artes distintas, confrontando obras e processos artísticos de artes distintas. A Estética Comparada não se contenta com a afirmação de um parentesco global das artes e deseja penetrar o núcleo central de cada arte e buscar correspondências, colocando em evidência o que as artes podem ter em comum, o que se pode transpor de uma arte para outra ou as influências mútuas (Souriau, 1947, p. 10). Entretanto, a construção de uma disciplina sólida, que se aproxime da problemática da correspondência das artes com rigor e profundidade, implica a necessidade de um método que permita revelar o que Souriau chamou de “semelhanças secretas”. Três premissas são necessárias para a constituição das linhas de força metodológicas (Souriau, ibid., p. 20-23): 1. Transpor rigorosamente e ampliar, de maneira legítima e metódica, uma terminologia permanente. 2. Buscar a extensão de cada fato percebido e avaliar sua importância e lugar arquitetônico, isto é, sua posição hierárquica entre as diversas leis morfológicas que regem a obra. 3. Tenacidade, paciência e exigência para forjar os instrumentos (vocabulário, método, experiências) visando uma progressão fecunda, acumulação do conhecimento, organização sistemática e uma penetração efetiva no coração dos fatos. Baseando-se nestas premissas, a abordagem metodológica será tão variada quanto as possibilidades de interferências mútuas nas diversas atividades artísticas. Devemos evitar que as “semelhanças secretas” se tornem afirmações de caráter universalista com significados excessivamente amplos ou imprecisos. O uso indiscriminado de metáforas ou figuras de linguagem representa um obstáculo para a consolidação da Estética Comparada. Quando utilizadas sem real fundamentação, as metáforas enfraquecem o caráter científico e podem vir a construir falsas referências terminológicas de comparação estética ou interferir nas terminologias já existentes. O “doce” som da sinfonia, os “acordes” produzidos pelo bailarino, o “perfume” de um quadro, a “luz” e o “brilho” de uma sonata, etc., são impressões pessoais que resultam em metáforas e acabam por escamotear observações ou julgamentos  

AS  SEMELHANÇAS  ENTRE  AS  ARTES   Capítulo  2  

91  

 

fundamentados em analogias buscadas com mais rigor e cuidado. Metáforas deste tipo foram chamadas de “pestes” por Souriau (1947, p. 35). A Estética Comparada busca e ressalta as semelhanças e dessemelhanças entre objetos, que se instauram como artísticos, e visa uma maior riqueza de entendimento, fruição e contemplação dos mesmos. As figuras de linguagem, nas quais destacamos a metáfora e a sinestesia, embora muitas vezes reveladoras, representam frequentemente um ensaio simplista de Estética Comparada. É preciso que cada arte guarde seu próprio idioma e que o léxico das traduções seja estabelecido com muito cuidado. Mas para uma construção sólida de pressupostos na reflexão de artes comparadas, será importante entender em que consiste uma proposta comparatista, tanto em seus sentidos gerais quanto na especificidade da sua aplicação no diálogo entre as artes. b) Comparatismo Comparar? Não é nada que o espírito humano faça tão naturalmente. (Detienne, 2002, p. 68)29.

Reconhecer, diferenciar, escolher. Todas essas tarefas essenciais esbarram no processo cognitivo chamado comparação. Do desejo de sistematizar a comparação e tornar sua prática uma disciplina emerge o Comparatismo. Ele se define na maneira como aborda fenômenos e encontra explicações. Suas características variam em função da ou das disciplinas às quais ele se vincula. “Porém o comparatismo não é nada além da exigência do princípio de multiplicação dos ângulos de visão, o que chamamos de tópicos, para ressaltar os elementos de uma hermenêutica plural.” (Jucquois, 2000, p. 3) 30 . De imediato, como pressuposto fundamental de um exercício comparatista, impõe-se uma alteridade filosófica e histórica, pois a crença na interação entre cada ser e cada coisa será fundamental. Uma interação que, no entanto, preserve as individualidades, as identidades. A disciplina se situa, desta forma, em um centro dinâmico de pensamento visando renovar os olhares e trazer à tona novas interpretações e apropriações particulares dos objetos aproximados. Como o ato de comparar faz parte da natureza humana, nada mais natural que registros de comparações datem dos tempos mais remotos e das mais diversas disciplinas. Entretanto, por serem pontuais e não se submeterem a algum tipo de sistematização mais palpável, essas manifestações não se encaixam no que chamamos de disciplina. Somente no século XVI                                                                                                                 29

“Comparer ? Il n’est rien que l’esprit humain fasse si naturellement.” “Or, le comparatisme n'est autre que l'exigence du principe de multiplier les angles de vision, ce que nous appelons les topiques afin de dégager les éléments d'une herméneutique plurielle.”

30

 

92  

   AS  SEMELHANÇAS  ENTRE  AS  ARTES   Capítulo  2  

europeu é que nasce um verdadeiro Comparatismo, quando “espíritos livres”, aproximaram-se de diferentes religiões para comparar suas crenças, suas relações com os textos sagrados e suas interpretações (Détienne, 2002, p. 68). Uma vez realizadas todas as comparações, esses mesmos pioneiros tratam de colocá-las em perspectiva, segundo seus critérios e interesses. O núcleo do espírito comparatista abrigava o objetivo de suspender o que Detienne chamou de “verdade íntima das convicções e adesões” (ibid., p. 68)31. No Renascimento, ao mesmo tempo em que a noção moderna de distinção das artes vai surgindo, sob as luzes do ideal grego, buscava-se uma concepção globalizante da arte. A comparação encontra seus fundamentos nas práticas antigas e tende a aproximar a pintura da poesia, da escultura e do desenho, e, de uma maneira mais ampla, buscar pontos de contato entre as artes do visível, as artes do discurso e a música (Nativel, 2007, p. 235). As cores e as proporções, nas artes plásticas, se aproximam da elocutio na retórica. O movimento que uma imagem suscita corresponderia à ação oratória. Um quadro deve ser lido, como um poema, pois ambos se encontrariam no silêncio de suas representações (ibid., p. 235). Ainda no Renascimento, a arte reivindica, além de um ideal comum, uma aproximação com a ciência. O predomínio de uma arte “como saber” contrapõe-se a uma arte “como fazer”, conferindo assim uma dimensão entendida como mais nobre para as práticas artísticas32. Os humanistas renascentistas redescobrem o poder da analogia e as semelhanças tendem a se apresentar como um tipo de norma do conhecimento. A epistemologia da Renascença se baseia em uma forte crença no poder da semelhança, como demonstrou Foucault em As palavras e as coisas (1966). Embora a avaliação por semelhança perca sua força nos séculos seguintes, o Comparatismo vai penetrando, em diferentes graus de legitimação, tanto nas disciplinas das Ciências Humanas, quanto nas Ciências Biológicas33. A Literatura Comparada, por exemplo, teve em sua gênese no século XVIII características bem diferentes das atuais, a ponto de Brunel, Pichois e Rosseau (1983, p. 27) tratarem esse período como “anos de limbo e diletantismo”. Mesmo no início do século XIX, a disciplina comparatista ainda tinha um viés

                                                                                                                31

“[…] vérité intime des convictions et des adhésions.” Arte como fazer, conhecer e exprimir vem da definição de arte apresentada por Luigi Pareyson em seu livro “Problemas da Estética” (2001). Recordamos ainda os esforços de Leonardo da Vinci, já mencionados no primeiro capítulo (cf. p. 46), no sentido de buscar um reconhecimento de uma dimensão cientifica da pintura e sua inserção entre as artes liberais e não entre as artes mecânicas, atribuindo assim caráter mais nobre à sua arte. 33 Jucquois (2000, p. 17) diz que o pensamento francês chama de “Ciências Humanas” todas as disciplinas ensinadas nas faculdades de Filosofia e Letras, de Psicologia e Ciências da Educação e disciplinas especificas das faculdades de Direito, de Ciências Sociais e Políticas, como a Economia, a Sociologia e a Antropologia. No caso das Ciências Biológicas, é na Anatomia que o comparatismo mais se afirma efetivamente. 32

 

AS  SEMELHANÇAS  ENTRE  AS  ARTES   Capítulo  2  

93  

 

predominantemente valorativo34. Mas o Comparatismo, longe de se limitar a julgamentos de valor, deve ter como premissa colocar em perspectiva as produções do espírito humano além de épocas e fronteiras e buscar os elos sutis que unem obras. Ele vai designar ao mesmo tempo a unicidade e universalidade das obras e criar um novo e original corpus de pesquisa (Auzolle, 2005, p. 7). Bayard situa a integração efetiva do Comparatismo entre as disciplinas universitárias no século XIX, sobretudo na História e na aproximação de sociedades (2007, p. 10). A disciplina se afirma como uma busca por semelhanças e dessemelhanças entre meios sociais diversos. No mesmo século, as práticas comparatistas universitárias são verificadas na Psicologia, no Direito, na Economia, na Gramática e na Anatomia, sendo que no interior das duas últimas, adquirem quase uma autonomia (Jucquois, Veille, 2000, p. 7). Mas é só no século XX que ocorre nas Ciências Humanas, individualmente e entre elas, uma reflexão mais intensa sobre seu papel e suas aplicações. A tarefa essencial do Comparatismo é a de elaborar uma “inter-linguagem”, através da qual ele pode se definir como um procedimento de descrição que permita visar múltiplos “discursos” (entendidos como “atos e comportamentos comunicativos”) [...]. Através do comparatismo, elabora-se uma inter-linguagem descritiva que permite exercer uma etnografia aberta, estudando culturas como polissistemas em contato. (Jucquois, Swiggers, 1991, p. 17)35.

Os autores desta citação se reportam às práticas etnográficas de aproximação de culturas distintas. Não nos parece um equívoco, entretanto, transpor o que eles entendem como polissistema para quaisquer objetos que comportem elementos internos passíveis de suscitar tensões e contatos. O sujeito que exerce o Comparatismo elabora a “inter-linguagem” e descreve encontros entre objetos. E quem descreve, traduz. A comparação é, com efeito, um tipo de tradução de um objeto de um dado campo cultural e civilizacional em um outro. [...]. O Comparatismo, no que ele tem de

                                                                                                                34

Na gestação da Literatura Comparada os paralelos entre textos eram traçados sempre com o fim de apreciar o mérito de um entre eles. Para exaltar virtudes, sob o comando das mais variadas conveniências, era preciso que um dos elementos desse jogo fosse menosprezado, sutil ou grosseiramente. Na cultura europeia desse período as comparações preferidas eram entre a língua grega e a latina e a francesa e a inglesa. Sob os olhares indignados dos humanistas, em uma era positivista e científica, reivindicava-se superioridade de uma língua sobre outra. Mesmo que bem no princípio do século XIX já existisse uma disciplina intitulada “Estudo Comparado das Literaturas Nacionais”, uma prática efetiva da literatura comparada ainda não se expunha. A mera comparação de literaturas não legitima a disciplina. Foi preciso que predominasse um espírito cosmopolita e liberal, negando todo e qualquer exclusivismo, para que nascesse uma literatura comparada isenta de querelas e espírito de competição (Brunel, Pichois e Rosseau, 1983, p. 29). 35 “La tâche essentielle du comparatisme sera alors d'élaborer un interlangage, par lequel le comparatisme pourra se définir comme une démarche de description, permettant d'envisager une multitude de ‘discours’ […]. L'élaboration d'un interlangage descriptif par le comparatiste permettra d'envisager une ethnographie ouverte, étudiant les cultures comme polysystèmes en contact.

 

94  

   AS  SEMELHANÇAS  ENTRE  AS  ARTES   Capítulo  2  

verdadeiramente humanista, assim como na sua dimensão ética, inclui epistemologicamente uma perpétua superação daquilo que sempre permanecerá como “novas fronteiras”. (Jucquois, 2000, p. 26)36.

Dentre os estudos que se inclinam a domínios artísticos, a prática comparatista se mostra melhor estabelecida na Literatura Comparada. É nesse campo que a escritora Catherine Coquio diz ter retido duas constantes em suas inúmeras aproximações literárias (1992, p. 257). A primeira é o fato das comparações serem sempre confrontos feitos para se colocar um problema. Mesmo sem negar os propósitos humanistas fundamentais de respeito à diversidade, os julgamentos de valor e estéticos estarão sempre em jogo. As aproximações acabam criando espaço de confronto de práticas diferentes ou rivais. A segunda constante reconhecida por Coquio é de que nossa atenção é quase sempre atiçada pelas obras que perturbam a solidez das fronteiras as disciplinas e suas teorias (ibid., p. 259). Dentro desse quadro, o pesquisador busca transformar a comparação em instrumento de síntese e análise. Construindo ligações virtuais entre objetos de contextos diversos visam-se novas compreensões e perspectivas. A partir de obras singulares e das ligações que se fazem entre elas, constrói-se passo a passo um sistema dinâmico que busca atualizar o continuum dos sentidos dessas obras. O dinamismo da comparação vem de sua função crítica, seja colocando em evidência as particularidades de uma obra em detrimento de outra, seja no exame de uma obra de caráter polimorfo ou transdisciplinar (ibid., p. 260). Bricoleur, é como Coquio chama o pesquisador que exerce o comparatismo (ibid., p. 252). O termo francês remete à figura do sujeito que conserta algo, de maneira improvisada, engenhosa ou não. Apesar de também conter conotações negativas, um bricoleur é comumente alguém com atributos de habilidade e destreza. Embora conheça a vulnerabilidade dos seus critérios e seus fundamentos, ele persiste em sua tarefa. E seus meios, sempre inventados, improvisados, podem se revelar instrumentos originais e de fácil aplicação. Este sujeito bricoleur, ainda na perspectiva de Coquio, carrega consigo aquela criança que, após concluir seu desenho, o rasga e recomeça. Mas ao contrário dela, guarda seu “desenho” e são eles que constituirão sua hipótese de trabalho. Hipótese que ordenará as diferenças e semelhanças para construir um sentido e persistir em sua busca por uma unidade, nunca

                                                                                                                36

“La comparaison est, en effet, une sorte de traduction d'un objet d'un domaine culturel et civilisationnel donné dans un autre. […]. Le comparatisme, dans ce qu'il a de proprement humaniste, de même que dans sa dimension éthique, inclut épistémologiquement un perpétuel dépassement de ce qui demeurera toujours de ‘nouvelles frontières’.”

 

AS  SEMELHANÇAS  ENTRE  AS  ARTES   Capítulo  2  

95  

 

atingida. De qualquer maneira, ressalta Coquio, a unidade que não é virtual e sim positiva é ciência, no melhor dos casos, ou ideologia, no pior37. Essa bricolage, no entanto, compreende uma série de riscos. A disciplina comparatista não se situa em um terreno estável e tranquilo. O distanciamento das certezas empíricas parece ser uma vocação natural da disciplina. Mas, [comparar] é estabelecer finalmente analogias furtivas, entrever semelhanças, apontar para certas diferenças e, em seguida, insensivelmente se lançar em um julgamento de valor [...]. Nenhuma verdadeira atividade comparativa pode nascer desse olhar familiar e limitado. (Detienne, 2002, p. 68)38.

Esse impulso espontâneo e nossa genérica vocação para a comparação pode minar, logo a princípio, a força do Comparatismo. E um olhar restrito e restritivo brota, não raramente, de um lugar-comum: o fato de querermos sempre “comparar o comparável”, como se os critérios para estabelecer o que é ou não comparável fossem sempre nítidos e certeiros. São tão certos quanto o “bom senso”, que todos, absolutamente, acreditam ter. Apesar da inerência do ato de comparar ao espírito humano, sabemos que os objetos comparáveis e os ensinamentos que tiramos das comparações vão diferir sensivelmente de um indivíduo a outro e, por isso, é impossível estabelecer definitivamente o que realmente pode ser comparado. Quando nos aproximamos de estudos comparatistas, seja em História, Literatura ou Arte, observamos certa prudência por parte dos pesquisadores em precisar os limites do alcance de suas conclusões e em colocar em questão o quadro da própria pesquisa. Pois a postura reflexiva daquele que está entre dois “mundos” será certamente desconfortável. O Comparatismo encontra-se em um centro dinâmico de pensamento e isso não é nada cômodo. A explicitação inicial da impotência frente à complexidade do objeto de pesquisa, tão comum no discurso acadêmico, é ainda mais acentuada no exercício comparatista. E isso é perfeitamente justificável não só pelo desconforto em se situar em uma zona de tensão, mas pelo fato desta prática abrir facilmente precedentes para críticas. Lacunas e tomadas de partido individuais serão muito frequentes e quase inevitáveis no quadro desta disciplina. Bayard, reportando-se à História da Arte, nos apresenta três riscos (2007, p. 11) da prática comparatista. O primeiro é o não se levar em consideração a especificidade de cada entidade e chegar à conclusão de que mesmos elementos causadores produzem similares                                                                                                                 37

A pesquisadora observa ainda que a palavra “disciplina” comporta nela mesma um fator bricolage. Na universidade, por princípio, as disciplinas guardam um espaço de liberdade. Um espaço necessário a toda pesquisa que almeja realmente “descobrir” alguma coisa. 38 “Mais c’est alors établir des analogies furtives, entrevoir des ressemblances, relever quelques différences puis, insensiblement, se laisser aller à un jugement de valeur […]. Aucune véritable activité comparative ne peut naître de ce regard familier et borné.”

 

96  

   AS  SEMELHANÇAS  ENTRE  AS  ARTES   Capítulo  2  

consequências. Ou seja, sucumbe-se à negação da complexidade da entidade observada. O segundo risco situa-se no outro extremo. Aceitando a complexidade do objeto tem-se a dificuldade de delimitá-lo e este acaba se tornando inacessível. O terceiro risco é o de perder de vista o caráter único de cada fenômeno, cada obra de arte, e negar sua individualidade para poder construir mais confortavelmente tipologias ou se convencer da existência de sistemas. Os autores da obra de referência Qu’est-ce que la literatture comparée? (Brunel, Pichois, Rosseau, 1983, p. 95) nos atentam para mais um risco do Comparatismo. No interior da dicotomia ciência/não ciência existe uma natural tendência de se desenvolver uma linguagem absolutamente impessoal para relatar os resultados das comparações. Eles atribuem essa tendência ao fato de se existir uma vontade de negar a dimensão subjetiva da disciplina. E essa observação, embora tenha sido apresentada no domínio da Literatura, pode ser válida em todos os outros domínios das Ciências Humanas. É preciso que se aceite a virtualidade da aspiração científica para não ofuscar os resultados pessoais que, por vezes, são mais reveladores e de maior interesse que as conclusões mais objetivas e generalizadoras. O Comparatismo coloca em questão os limites das disciplinas. Mais do que isso, seu objetivo implica em uma rejeição da dicotomia ciência e não ciência (Jucquois, Swiggers, 1991, p. 16). Para ser viável é preciso que a proposta comparatista assuma uma relativa e provisória desestruturação e, apesar de alguma incoerência ou insegurança suscitada, ela deve prever uma integração de elementos inicialmente tomados por estranhos e ameaçadores. É importante notar ainda que o exercício comparatista interdisciplinar certamente terá implicações mais complexas que no interior de uma única disciplina ou entre objetos de mesma natureza. Como consequência é bem possível que se privilegie uma disciplina frente à outra e, dessa forma, lacunas documentais, erros de compreensão e interpretação estarão sujeitos a emergir. No que concerne a prática comparatista entre domínios artísticos, Jean-Pierre Bartolli a considera como um dos exercícios mais difíceis, exigentes e arriscados que existem. É preciso muita coragem, explica, para expor inter-relações frente “às suspeitas desgostosas dos partidários da compartimentação e dos especialistas de assuntos restritos” (2006, p. 12)39. Bartolli aponta também para o risco de um discurso interartístico amparado pelas metáforas, transformar-se em uma fonte de mal-entendidos que pode fazer com que a atividade se situe entre o uso abusivo de similaridades e o excesso de riqueza poética, e renunciar, assim, as exigências cientificas. Bartolli converge dessa com as considerações de Souriau em La                                                                                                                 39

[...] “aux soupçons chagrins des partisans du cloisonnement et des spécialistes des sujets restreint.”

 

AS  SEMELHANÇAS  ENTRE  AS  ARTES   Capítulo  2  

97  

 

Correspondence des arts (1947) quando nos alerta para os perigos das “vagas metáforas” no exercício da Estética Comparada. Bartolli não nega, no entanto, o poder da metáfora: “Quando ela é potentemente construída, ela chega ao ponto de saturar a mensagem de uma intensa polifonia semântica. A metáfora é esclarecedora, ela ilumina o discurso pela sua irradiação.” (2006, p. 12)40. Sem negar a diferença das coisas, nem cair em afirmações globalizantes que podem minar sua força, o Comparatismo se ampara no poder de ultrapassar, de transcender os domínios e as disciplinas, abolindo ou rompendo limites entre ciências e ideologias, reflexões teóricas e práticas cotidianas (Jucquois, Swiggers, 1991, p. 13). Embora a disciplina comparatista não se deixe enquadrar com facilidade, alguns autores refletiram sobre certos padrões ou tipologias no que concerne o exercício comparatista. Jucquois (2000, p. 25), por exemplo, apresenta três tipos de comparação que podem ser feitas no interior da disciplina. A comparação, no primeiro tipo, se apresenta como exame das relações de semelhança e diferença. Observa-se os traços comuns e diferenciais entre objetos, sem que isso implique necessariamente em juízo de valor. A comparação ocorre sem a perda de identidade dos objetos, ou seja, as diferenças e semelhanças reconhecidas não irão interferir no interior dos objetos comparados. Em seu segundo tipo, a comparação é definida como uma aproximação que visa à assimilação. Aproxima-se para buscar traços comuns e construir elos que unam os objetos comparados. Corre-se o risco de se fechar os olhos para toda diferença e a reduzi-la à identidade. Nesse tipo de comparação, a força que se dá às amplas fórmulas de generalização, ou mesmo à crença excessiva no poder das metáforas, ambas podem levar ao desprezo das identidades em função de uma pretensa conjunção e de uma perspectiva tipológica. Partindo deste entendimento, podemos acabar por considerar os fenômenos como sombras da realidade que tomam formas distintas de acordo com a luz que a acordamos, mais que nunca equivale à realidade ela mesma. A terceira definição, finalmente, fala da aproximação de pessoas ou coisas de natureza ou de espécie diferentes que não podem ser totalmente assimiladas. Toda assimilação pode se tornar artificial nesta definição e por isso é preciso aceitar e até mesmo enfatizar a identidade das coisas. Quanto maior a distância espacial, temporal ou das naturezas dos objetos comparados mais risco e menos evidente se torna a comparação.                                                                                                                 40

Quand elle est puissamment construite, elle est à même de saturer le message d'une intense polyphonie sémantique. La métaphore est éclairante, elle illumine le discours par son rayonnement.”

 

98  

   AS  SEMELHANÇAS  ENTRE  AS  ARTES   Capítulo  2  

No caso de um projeto comparatista interartístico, o terceiro tipo de comparação adequa-se mais convenientemente. No entanto, o primeiro tipo, a comparação como revelação de diferenças e semelhanças, e o segundo, a comparação como tentativa de assimilação, também poderão intervir em diferentes medidas. Pois na essência do projeto comparatista existe algum desejo de unidade que será sempre frustrado graças à necessidade de aceitação das diferenças, muitas vezes mais explícitas que as semelhanças. A virtualidade da unidade deve ser conduzida pela realidade da diferença. Para qualquer que seja a abordagem comparatista nos parece importante distinguir três polos, citados por Jucquois e Swigers (1991, p. 52), a partir dos quais inúmeras comparações podem se guiar, são eles: a) homologias: correspondências de ordem qualitativa e que se situam nas instâncias do conteúdo; b) equivalências: correspondências quantitativas, que incluem todo tipo de correspondência mensurável (de ordem cronológica, numérica e outras); c) homomorfias: reconhecimento de correspondências formais ou estruturais. Se nos voltamos para a aplicação dessas noções como instrumentos da Estética Comparada, serão necessários certos ajustes. As homologias, segundo a apresentação acima, tendem a ser quase descartadas de imediato. Como seria possível tecer correspondências de ordem qualitativa entre objetos artísticos de naturezas distintas e que se dirigem a sentidos também distintos? A tentativa de aproximação homológica estaria fadada a considerações muito amplas e, possivelmente, vagas. O conceito de homologia encontra um território mais favorável nas áreas das ciências biológicas, na observação de uma origem comum no processo evolutivo, ou na linguística, como aplicação recorrente de conceitos e palavras no interior de um discurso. Vemos, no entanto, uma brecha por onde algum sentido da homologia poderia se infiltrar. Como em Literatura Comparada, as correspondências homológicas em Estética Comparada podem se apresentar quando existe transferência de temas ou semelhanças nas motivações e objetivos. Mesmo levando-se em conta o alto grau de abstração de uma obra estritamente musical, por exemplo, alguns elementos simbólicos podem emergir, revelando motivações temáticas, estabelecendo elos com imagens e criando, assim, alguma relação de homologia com obras visuais.

 

AS  SEMELHANÇAS  ENTRE  AS  ARTES   Capítulo  2  

99  

 

Refletindo sobre as equivalências de Swiggers nos parece igualmente inviável a tarefa de comparar quantitativamente materiais de naturezas distintas. Em uma aplicação em Estética Comparada talvez seja melhor estabelecer ou forjar nossos próprios comparáveis, que não serão certamente submetidos a medidas e gradações matemáticas, mas surgirão do interior dos próprios objetos comparados41. A única correspondência de ordem mensurável imediatamente viável, e fundamental em um estudo que opte por uma perspectiva sincrônica, seria a equivalência cronológica e de procedência, ou seja, a época e o lugar em que as obras foram criadas. O conceito de homomorfia, por outro lado, pode se adequar convenientemente a um projeto de comparação interartística, desde que perca sua rigidez inicial. As correspondências formais entre artes distintas podem ser entendidas na medida em que artistas aplicam nas suas artes conceitos ou técnicas que, inicialmente, pertenciam à outra esfera artística. Por exemplo, quando um artista plástico busca um tratamento contrapontístico de suas imagens ou um músico busca de alguma maneira transpor formas visuais na construção de uma melodia. Esses casos podem ser passiveis de observação de uma relação homomórfica por ocorrer algum tipo de transferência de gêneros formais ou estruturas poéticas. É interessante observar que, apesar da relação homomórfica revelar-se mais viável em um estudo de comparação entre as artes, tanto a crença nas homologias quanto a busca por equivalências vão sempre intervir, mesmo que mais sutilmente. As equivalências e as homologias acabam nos remetendo às dimensões essenciais para atingir os objetivos comparatistas e a homomorfia. As dimensões históricas e temáticas são reveladoras e poderão esclarecer aspectos das estruturas das obras42. Ou seja, as três formas de correspondência se sobreporiam em um projeto comparatista interartístico. Não é difícil perceber que nas tipologias do Comparatismo apresentadas predomina complementaridade e não exclusão. O exame das relações de diferença e semelhança, a observação dos objetos visando a assimilação, a aproximação de objetos de natureza diferentes, as homologias, equivalências e homomorfias, tudo parece se sobrepor quando refletimos sobre uma eventual incursão de certos princípios comparatistas no confronto entre artes distintas. O método comparatista, como já foi dito, comporta a intenção de chegar a alguma forma de unidade, sem negar as diferenças. Os elementos diferenciadores podem aparecer                                                                                                                 41

Isso nos remete ao artigo de Marcel Detienne: “L’art de construire de comparables”, citado na bibliografia desta tese. 42 Estrutura entendida de maneira ampla como um sistema de relações das partes com o todo.

 

100  

   AS  SEMELHANÇAS  ENTRE  AS  ARTES   Capítulo  2  

como ameaças potenciais para o equilíbrio da disciplina e os elementos integradores, por outro lado, podem provocar uma paralisia das reflexões. Como equilibrar um discurso e uma análise que chegue a uma unidade ou a um modelo teórico, mas não negue as diferenças reais entre os objetos comparados? Daí a vocação para a utopia do projeto comparatista que nos faz enxergar na dicotomia diversidade-unidade um dos seus maiores desafios, juntamente com a busca por uma metodologia que atenda às aspirações da disciplina. c) Refletindo Sobre os Métodos O Comparatismo, como disciplina, está continuamente pronto a atuar no interior ou entre domínios distintos. De modo geral, ele sempre se ligará a busca e ao confronto de um conjunto de dados para que, em seguida, se estabeleça relações sistêmicas ou algum tipo de analogia estrutural. Na infinidade de “lugares” por onde o Comparatismo pode se instalar, é possível visualizar um objetivo comum. No entanto, o mesmo não pode ser dito em relação aos métodos empregados43. Na prática comparatista, a metodologia deve ser, antes de mais nada, uma atitude de observação. “O Comparatismo consiste principalmente em um olhar global e totalizador, um olhar personalizado, mesmo se ele for coletivo.” (Jucquois, 2000, p. 26)44. Os métodos devem brotar desse olhar pessoal, imerso na singularidade das experiências, da percepção e da cultura do pesquisador. E neste espaço, “o Comparatismo estabelece métodos de transposição isentos de hierarquização, nascidos da observação metódica do encontro das culturas”. (Auzolle, 2006, p. 8)45. Ele começa com uma tomada de consciência da complexidade dos objetos, para em seguida incitar uma percepção mais aguçada do seu caráter diverso e da necessidade de um pluralismo de ângulos de aproximação. Um novo olhar e uma nova interpretação são solicitados na aproximação comparatista. Com efeito, a interpretação clássica frequentemente se revela rígida, fora de contexto e autoritária. Espera-se que ela conserve e proteja os valores da tradição. As realidades atuais, chamadas pelo termo vago e contestado de “pós-modernidade”, exigem uma nova

                                                                                                                43

Por método entendemos “caminho para meta”, de acordo com sua etimologia grega (met = meta; odos = caminho). 44 “Le comparatisme consiste plutôt en un regard global et totalisant, un regard personnalisé, même s'il est collectif.” 45 […] “le comparatiste établit des méthodes de transposition exemptes de hiérarchisation, nées de l'observation méthodique de la rencontre des cultures.”

 

AS  SEMELHANÇAS  ENTRE  AS  ARTES   Capítulo  2  

101  

 

hermenêutica ou, mais exatamente, novos procedimentos hermenêuticos. Esses últimos recusam falsas certezas dos saberes totalitários e definitivos. (Jucquois, ibid, p. 19)46.

O Comparatismo, entendido no núcleo da Estética Comparada, deve se fundar nesse pluralismo hermenêutico, para assim propor uma multiplicidade de vias a partir das quais o pensamento interpretativo se elabora. Metodologicamente, o que nos parece importante, é o confronto incessante dos objetos e o desejo de liberar um complexo de conhecimentos, em vez de nos agarrarmos aos saberes definitivos, acima citados. A proposta comparatista, embora possa se basear nos mais rigorosos princípios, parece muitas vezes enfatizar uma dimensão arbitrária que toda pesquisa tem. Apesar das tentativas de formalização de procedimentos metodológicos deve-se estar atento para o fato de toda comparação ser permeada por algum elemento subjetivo. Assim sendo, qualquer tentativa de estabelecimento de regras estritas desses procedimentos não vai representar nada além de um congelamento de uma tomada de partido individual. O exercício do Comparatismo será como uma análise musical ou de uma obra plástica que, apesar de muitas vezes trazer consigo intenções objetivas e até mesmo científicas, sempre estará sujeita a relatividade do olhar do analista. Mas é na liberdade que tem o pensamento de criar elos entre as coisas, reconhecer semelhanças ou diferenças que reside a força da proposta comparatista de deixar em suspendo verdades – renunciar a saberes definitivos em detrimento de conhecimentos, muitas vezes, provisórios. Por mais arbitrários ou artificiais que possam ser os contatos entre as coisas, eles sempre perturbarão, com maior ou menor intensidade, a solidez das fronteiras entre os domínios dessas coisas. Pode ser assustador o potencial de abertura do projeto comparatista e a dificuldade de se validar um corpus teórico e metodológico. O desenvolvimento de uma clara proposta metodológica é sempre perturbado pela paradoxal condição da disciplina que faz com que os objetos ora se integrem ora se diferenciem. Mas a disciplina persiste e apresenta, desde seu surgimento, novas faces e, assim, vem se revelando ferramenta útil no entendimento dos encontros, virtuais ou reais, entre os mais diversos objetos. A proposta comparatista atual não é mais um mecanismo para indicar superioridades ou legitimar escolhas. Ela é, antes disso, o reconhecimento de uma diversidade, plural e tolerante, e dessa forma, como ressalta Bartolli (2005, p. 11), a proposta comparatista vai ao encontro dos fundamentos de um projeto humanista. Não com um objetivo de reduzir a criação humana a uma teoria globalizadora,                                                                                                                 46

“En effet, l'interprétation classique apparaît souvent comme rigide, hors contexte, autoritaire, elle est censée conserver et protéger les valeurs de la tradition. Les réalités actuelles, appelées du terme vague et contesté de la « postmodernité », exigent une herméneutique nouvelle ou, sans doute plus exactement, des procédures herméneutiques nouvelles. Celles-ci récusent les fausses certitudes des savoirs totalitaires et définitifs.”

 

102  

   AS  SEMELHANÇAS  ENTRE  AS  ARTES   Capítulo  2  

mas sim na ambição teórica de se produzir modelos dinâmicos que ultrapassem as fronteiras entre as disciplinas. Uma metodologia se esboça e se organiza a partir de três eixos: as obras comparadas (os objetos), as técnicas ou estratégias de comparação (os meios) e os pontos ou zonas de contato dos objetos observados (os encontros) (Jucquois, Swigers, 1991, p. 15). Nesses três eixos, a procura por paralelismos históricos, homologias, homomorfias, similaridades se confrontam com as diferenças, as vezes intransponíveis, das matérias, das técnicas e dos sentidos. E nesse confronto permeado de tensão se encontrará o centro dinâmico da disciplina. No interior da interdisciplinaridade, a prática comparatista flerta frequentemente com o objetivo, quase utópico, de ultrapassar as categorias disciplinares tradicionais. Daí a atualidade reivindicada no Comparatismo entre as artes. Sua boa realização tem a força de sublinhar os pontos fracos dos cortes disciplinares tradicionais e indicar novos agenciamentos desses limites. Ele se encaixa perfeitamente nas recentes tendências interdisciplinares, que, muito mais que um modismo, parecem representar um reflexo desse histórico comparatista apresentado brevemente por esta pesquisa. Endereçando-se à aproximação de atividades artísticas distintas (música, pintura e literatura), Gérard Dénizeau (2009, p. 30) aponta sete etapas metodológicas para se reduzir ao máximo o risco de lacunas e incoerências na proposta interdisciplinar: 1. Histórico cronológico de obras das três artes colocadas em paralelo; 2. Inscrição das obras em um processo histórico geral; 3. Revelação dos princípios de uma exploração temática comum de um determinado tempo (ele cita como exemplo o exotismo, o naturalismo e o humanismo); 4. Paralelos de ordem estética (por exemplo, o pensamento intimista na passagem dos séculos XIX e XX); 5. Posição dos pintores no olhar dos escritores e dos músicos; 6. Posição dos escritores no olhar dos pintores e dos músicos; 7. Posição dos músicos no olhar dos pintores e escritores. Na apresentação das sete etapas de Dénizeau, é possível visualizar três linhas de força. Os dois primeiros itens resumem-se à história, ou seja, à inserção e ao paralelo das obras no tempo e no espaço. Os itens três e quatro são de natureza histórico-estética, tratam da especificidade das obras. E os últimos três itens parecem ter sido criados no intuito de se  

AS  SEMELHANÇAS  ENTRE  AS  ARTES   Capítulo  2  

103  

 

evitar especulações a propósito de falsos parentescos entre as obras, como uma maneira de limitar o surgimento de semelhanças muito arbitrárias ou sem fundamentos. Para haver reais correspondências, é preciso que existam reais contatos entre os artistas, segundo o pesquisador. Para que haja semelhanças entre uma obra literária, uma musical e uma visual, os respectivos autores devem ter revelado posicionamentos em relação às artes vizinhas, ainda de acordo com o sistema acima. Denizeau, na busca positiva pela veracidade e rigor na comparação das artes, acaba negando a dimensão puramente receptiva de uma obra de arte. O reconhecimento de semelhanças por parte do receptor não é necessariamente vinculado à poética ou a estética explicitada pelo criador da obra. Em uma visão panorâmica, Jean-Jacques Nattiez apresentou quatro famílias metodológicas no que concerne o estudo das interseções entre música e artes visuais (2010, p. 35-39). A primeira tem como mote o chamado Zeitgeist, o “espírito do tempo”. Explica-se a relação entre música e pintura através das forças históricas que perpassam determinadas situações de tempo e espaço. O que une as artes são as forças de uma determinada sensibilidade sincrônica. A arte está integrada em todo um quadro histórico e, quando observamos uma obra, podemos buscar os princípios subjacentes que revelam a mentalidade de uma nação, de uma classe, de uma filosofia, etc. Nattiez cita Panofsky como o mais importante nome dessa corrente metodológica. Na Estética Comparada recente, outros autores podem incluir-se nesse grupo, tais como François Sabatier, com seus dois grandes volumes que tentam dar conta das correspondências entre música, pintura e literatura da Antiguidade à Modernidade ou Gérard Denizeau, que descreve e apresenta obras dessas três artes tendo como elo principal o espírito do tempo47. Essa abordagem pode se ligar ao que Souriau chamou de Estética Sociológica e que corre o risco, recapitulamos, de se afastar do próprio interior do objeto estético. As obras se constituiriam como símbolos ou sintomas culturais de uma época e local. A segunda família metodológica para Nattiez se situa no âmbito das próprias obras, e não é necessariamente guiada pelo espírito do tempo. Essa metodologia se funda em uma maneira mais tradicional de se entender a história e, a partir daí, revelar elos temáticos entre obras. Nattiez cita os trabalhos do grupo de pesquisa Musique et Arts Plastiques (M.A.P.) da Universidade Paris-Sorbonne, dirigido pela Profa. Dra. Michèle Barbe, como melhores representantes desta proposta metodológica. Porém, uma observação mais atenta dos                                                                                                                 47

“Miroirs de la musique” de François Sabatier em dois volumes, Paris: Fayard, 1998; e “Le Dialoge des arts” de Gérard Dénizeau, Paris: Larousse, 2008.

 

104  

   AS  SEMELHANÇAS  ENTRE  AS  ARTES   Capítulo  2  

trabalhos publicados pelo grupo revelam uma enorme variedade de abordagens e nos parece injusto reduzi-los à relações temáticas. A terceira família metodológico deve ter sido embalada pela corrente estruturalista que viveu um momento importante em meados do século XX. Essa família pode ser representada por Étienne Souriau quando, em seu La Correspondance des arts (1947), buscou revelar estruturas similares entre os distintos domínios artísticos. Recusa-se a intervenção do processo criador para se estabelecer elos entre as artes. A quarta família metodológica, finalmente, parece ser uma mistura das três anteriores, porém, tanto os processos criadores quanto os perceptivos devem intervir nas operações de passagem entre música e artes plásticas. Jean-Yves Bosseur parece abordar os elos entre as artes de maneira a fundir as instâncias do Zeitgeist, temáticas e estruturais. Estar consciente da existência de um feixe de possibilidades e caminhos para se exercer o Comparatismo no interior desta pesquisa parece tão importante quanto entender a necessidade do que Nattiez chama de “individualidade metodológica”. A singularidade das obras e/ou dos encontros entre elas construirão a singularidade dos métodos para abordá-los. A busca por semelhanças, secretas ou não, dependerá da aplicação de um método que respeite a identidade das obras, mas que não negligencie novos entendimentos da própria noção de semelhança. 3. Semelhanças Informes: Por uma atualização da noção de semelhança Em uma visita ao Louvre, Paul Valéry é surpreendido por veemente reação de seu amigo, o escritor simbolista Marcel Schwob, quando passavam em frente ao retrato de René Descartes feito por Franz Hals em 1649. Schwob se dizia surpreso pela extrema semelhança entre o pensador do século XVII e o retrato. Valéry, não se contendo, pergunta-lhe se, por acaso, o amigo já havia visto Descartes. Sem embaraço, Schwob responde: “Assim   DEVIA   ser   Descartes”   (Valéry, 1962, p. 327)48. O filósofo e poeta francês conclui que Hals tinha ido além do “fazer” um Descartes. O problema da semelhança pura e simples não o atormentava. A tela de Hals revelava Descartes, assim como Descartes revelava Hals. Em De la Ressemblance et de l'art (1962), Valéry discorre sobre a questão dos retratos e das semelhanças. Esta pequena anedota ilustra uma característica importante do termo em

                                                                                                                48

“Ainsi DEVAIT être Descartes.” (Maiúsculas de Valéry).

 

AS  SEMELHANÇAS  ENTRE  AS  ARTES   Capítulo  2  

105  

 

questão: mais do que valor de verdade, a semelhança é um valor atribuído. É nessa faculdade que ela revela sua força, mas também toda sua fragilidade. Sem refletir sobre os desdobramentos filosóficos que a anedota facilmente suscita, a noção de semelhança apresentada no texto de Valéry converge com a acepção de conformidade encontrada tanto em uma semântica lexicográfica, quanto na semântica filosófica. “Conformidade, relação de fisionomia entre duas ou mais coisas ou pessoas que se parecem mutuamente; afinidade de caracteres”, é a primeiro definição de semelhança no Michaelis (1998). No Dictionnaire de Philosophie de Godin (2004) entre as definições de ressemblance está: “Maior   ou   menor   grau   de   conformidade   entre   coisas   ou   entre   seres”   e   “conformidade entre uma obra de arte e o original”49. A semelhança, como várias outras noções, irá adquirir novas cores, de acordo com a área do conhecimento na qual é empregada. Entretanto, estará sempre impregnada da crença em alguma conformidade. Quando uma coisa se assemelha a outra, quer dizer que ambas ou uma delas carrega em si uma menção a outra, seja ela objetiva ou não. O que nos faz supor que as coisas, para se assemelharem, devem possuir algum sinal, alguma marca comum ou uma espécie de “assinatura” ou assinalação. a) “Assinaturas” e Similitudes como Marcas da Semelhança As semelhanças até a Renascença detinham um enorme poder. A partir da observação de sinais, atributos físicos ou espirituais das coisas, o homem distinguia e agrupava aquilo que considerava semelhante. Os indivíduos deviam discernir os bons e maus frutos ou os animais que representavam perigo, pois aqueles que se detinham longamente em reflexões para distinguir e classificar colocavam a própria existência em risco. Era preciso, por isso, considerar como idêntico algo que trazia um certo número de traços comuns50. Esses sinais, que permitiam o reconhecimento dos traços comuns entre as coisas, foram, em meados do segundo milênio da era cristã, chamados de “assinaturas”, “assinalações” ou “marcas”,51.                                                                                                                 49

“Degré plus ou moins grand de conformité entre des choses ou entre des êtres” ou “Conformité entre une œuvre d’art et l’original.” 50 Em Gaia Ciência (1982, p. 186), Nietzsche comenta esse impulso humano do reconhecimento dos sinais e situa a tendência de considerar o semelhante como idêntico na origem da lógica e seu principal fundamento. Interessante notar que a atribuição de algo como idêntico ainda persiste, mesmo que raramente, em definições de “semelhança” em certas lexicografias, como por exemplo no dicionário da língua francesa Petit Robert (1990). 51 A versão brasileira da obra As Palavras e as Coisas de Michel Foucault feita por Salma Tanus Muchail (São Paulo: Martins Fontes, 1990) traz a palavra “signature” traduzida como “assinalação”. Sua versão portuguesa, realizada por Isabel Dias Braga (Lisboa: Edições 70, 1988), a traduziu como “marca”. Nós optamos por privilegiar a tradução direta em “assinatura”. Chamar de assinaturas essas marcas das semelhanças suscita um certo estranhamento que, de imediato, desperta a atenção do leitor para, em seguida, remeter, como uma metáfora, à ampliação de seu sentido. As traduções dos trechos dos textos de Foucault representam exceção entre

 

106  

   AS  SEMELHANÇAS  ENTRE  AS  ARTES   Capítulo  2  

Deus deu um intercessor a cada planta, a fim de que sua virtude natural pudesse ser reconhecida e descoberta. Esse mediador só pôde ser uma assinatura externa, quer dizer, uma semelhança de forma e figura, verdadeiros indícios de bondade: sua essência e perfeição, e, até mesmo, como já disse, esses sinais mágicos que nos falam através de suas assinaturas. (Crollius, 1917, p. 98) 52.

Todos os seres e coisas seriam marcados por sinais: as “assinaturas do mundo”. O Tratado de Assinaturas ou Verdadeira Anatomia do Grande e do Pequeno Mundo (Traicté de signatures ou vraye anatomie du grand & petit monde) do médico e filósofo Oswaldus Crollius (1580-1609) ilustra uma das crenças que permeava o pensamento científico do século XVI53. As assinaturas, como instrumentos do reconhecimento das semelhanças, aparecem como influente noção filosófica na Renascença e é através delas que o conhecimento do mundo se tornava acessível e permitido (Fraenkel, 1992, p. 221). As assinaturas teriam o poder de anular o risco que corre o homem de não compreender o mundo que o rodeia. Poupando-nos desse perigo, Deus revelaria nas assinaturas um verdadeiro sinal de sua bondade. Elas seriam, dessa forma, as marcas de suas ideias, manifestação sutil de sua sabedoria e de sua habilidade em se comunicar através de signos mágicos transmitidos por sua infinita misericórdia (ibid., p. 221). A força das semelhanças, pelo viés das assinaturas no século XVI, é explicitada por Michel Foucault: Não existem semelhanças sem assinaturas. [...]. O saber das similitudes se funda sobre o histórico dessas assinaturas e sua decifração. As semelhanças exigem uma assinatura, pois nenhuma entre elas poderia ser marca se não fosse legivelmente marcada. (1966, p. 41-43)54.

As semelhanças, mesmo as mais fugidias, precisam de sinais aparentes para se revelar, senão todas as suas combinações correriam o risco de se esvaziar, “de permanecerem obscuras” (ibid., p. 40)55. O mundo, através das semelhanças, se desdobra sobre ele mesmo, se reflete, se encadeia e, assim, se abre ao entendimento. Foucault afirma que a episteme do                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                           os demais trechos em língua estrangeira nesta tese, pois são um amálgama de nossa própria tradução e das outras duas citadas, a de Muchail (1990) e a de Braga (1988). 52 “Dieu a donné un truchement à chaque plante, afin que sa vertu naturelle puisse estre connue et decouverte. Ce truchement ne peut être que la signature externe, c'est-à-dire, ressemblance de forme et figure, vrais indices de la bonté : essence et perfection d’icelle, voire, comme je l’ai déjà dit, ces signes magiques parlent avec nous par leur signatures.” 53 Crollius foi discípulo da escola de Paracelso (1493-1541), importante médico, alquimista, físico e astrólogo suíço. 54 “Il n’y a pas de ressemblance sans signature. […] Le savoir des similitudes se fonde sur le relevé de ces signatures et sur leur déchiffrement. […]. Les ressemblances exigent une signature, car nulle d’entre elles ne pourrait être remarquée si elle n’était lisiblement marquée.” 55 “[…] de demeurer dans la nuit.”

 

AS  SEMELHANÇAS  ENTRE  AS  ARTES   Capítulo  2  

107  

 

século XVI sobrepôs hermenêutica e semiologia na forma da semelhança e que a busca pelo sentido era, na verdade, verificar e perceber aquilo que se assemelhava (ibid., p. 44)56. Os movimentos secretos do entendimento são, então, expressos pela voz; [...] as ervas falam ao médico curioso através de sua assinatura, [...]. Logo, aquele que deseja ser um médico perito (com a teoria de sua arte) deve ter o conhecimento da significação interior das assinaturas, até porque tudo aquilo que está no interior das assinaturas, traz a face de seu segredo, tanto às criaturas sensíveis quanto às insensíveis. (Crollius, 1917, p. 100)57.

As coisas do universo, do macro e do microcosmos, se comunicavam pelos meandros da semelhança. Até mesmo a cura de doenças era possível graças a revelação de uma assinatura comum58. A trama semântica em torno da palavra “semelhança” na Renascença era muito rica e compreendia uma gama enorme de noções: Amicitia, Aequalitas (contrasencsus, consensus, matrimonium, societas, pax e similia), Consonantia, Concertus, Continuum, Paritas, Proportio, Similitudo, Conjunctio, Copula, Convenientia, Æmulatio, Analogie e Sympathia, etc. (Foucault, 1966, p. 32). As últimas quatro, ainda segundo Foucault, seriam as mais importantes figuras articuladoras da semelhança no seu auge no século XVI: as similitudes. Enquanto as assinaturas são expressas por sinais visíveis nos elementos aproximados, as similitudes são ao mesmo tempo as noções que articulam a semelhança e os próprios traços ou marcas de semelhança. Ou seja, as similitudes englobam as assinaturas e, de certa maneira, as classificam. Mas se a distinção entre “assinatura” e “similitude” é evidente, o mesmo não pode ser dito em relação à “semelhança” e “similitude”. Existe certa confusão entre esses dois termos do ponto de visto lexicográfico. Similitude aparece com frequência entre as significações de semelhança, seja como sinônimo, seja como variação. E semelhança aparece, na grande maioria dos dicionários consultados, como primeiro e às vezes única significação de similitude59. O Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa (Cunha, 1982) nos revela que                                                                                                                 56

Foucault chama de hermenêutica o conjunto de conhecimentos e técnicas que nos permitem falar dos signos e desvendar seus sentidos, e semiologia os conhecimentos e técnicas que permitem distinguir onde estão os signos, o que os designa como signos e conhecer suas ligações e leis de seus encadeamentos (ibid., p. 44). 57 “Doncques les secrets mouvements de l’entendement sont manifestes par la voix; (…) les herbes parlent au curieux medecin par leur signature, (…) Donc celuy qui desire estre expert medecin (avec la theorie de son art) doit avoir la cognoissance de la signification intérieur des signatures, d’autant que tout ce qui est à l’interieure des signatures, porte la figure de son secret tant aux créatures sensibles qu’aux insensibles.” 58 Como por exemplo a semelhança entre uma noz e um cérebro, que revelava que a primeira poderia ser útil na cura de doenças da membrana cerebral, o pericrânio (Crollius, 1917, p102). 59 O Dicionário Aurélio traz uma interessante citação para ilustrar a noção de similitude: “Fundo silencioso, contrastando com as chapadas e as elevações onde o dia fulgura e a vida rumoreja, não nos impõe [o vale] a sua similitude com as almas recolhidas e pensativas, mas boas e fecundas?” (Amadeu Amaral, O Elogio à Mediocridade, apud Aurélio, 1986, p. 80). Tece, dessa maneira, uma comparação entre uma paisagem e um

 

108  

   AS  SEMELHANÇAS  ENTRE  AS  ARTES   Capítulo  2  

entre os séculos XIII e XV existe uma variação no interior de “símile”: semeldue (séc. XIII); semeldũe (séc.XIV) e simildõoe (séc.XV ). Sendo o verbo “semelhar” proveniente de “similiare”, isso confirma a raiz comum dos dois termos. Persiste ainda hoje a confusão entre semelhança e similitude, a ponto do pintor belga René Magritte propor ele mesmo uma distinção, em uma carta endereçada a Michel Foucault e relacionada a aplicação dos termos “ressemblance” e “similitude” no livro As Palavras e as Coisas (1966): As palavras Semelhança e Similitude lhe permitem sugerir enfaticamente a presença – absolutamente estranha – do mundo e de nós mesmos. Entretanto, creio que essas duas palavras não são bem diferenciadas, os dicionários não são muito edificantes naquilo que as distingue. Parece-me que, por exemplo, as ervilhas possuem entre elas relações de similitude visíveis (sua cor, sua forma, sua dimensão) e invisíveis (sua natureza, seu sabor, seu peso). Existem até mesmo similitudes falsas, autênticas, etc. As “coisas” não têm semelhanças entre elas, têm ou não similitudes. Somente o pensamento pode ser semelhante. Ele se assemelha sendo aquilo que ele vê, ouve ou conhece, ele se torna aquilo que o mundo o oferece. (Magritte apud Foucault, 2005, p. 86)60.

Magritte situa a semelhança entre as coisas do mundo em uma instância utópica e se remete, de alguma maneira, a um entendimento fundamental de semelhança, comentado mais abaixo e que se funda na teologia medieval. A semelhança carrega algo de intangível e que só pode ser vivida como pensamento, pois as coisas materiais nunca se assemelham verdadeiramente. Podem somente ter similitudes, nunca semelhanças. Existiria, então, no mundo, uma interdição à semelhança. Porém, tanto Foucault, quanto Didi-Huberman, entendem e distinguem os termos com uma maior leveza. Parecem compreender as similitudes como traços daquilo que é semelhante e, quanto à noção de semelhança, esta deve ser entendida da maneira que André Lalande propôs como primeira significação em seu Vocabulário Técnico e Crítico da Filosofia (1999, p. 985): “Característica de dois objetos de pensamento que, sem serem qualitativamente idênticos, apresentam, todavia, elementos ou relações que podem dizer-se ‘os mesmos’”.

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                          estado de espírito. Aproxima uma paisagem a um estado de espírito. A “similitude”, além dos significados mais próximos à “semelhança”, traz ainda “uniformidade” e “simulacro”. 60 Les mots Ressemblance et Similitude vous permettent de suggérer avec force la présence – absolument étrange – du monde et de nous-mêmes. Cependant, je crois que ces deux mots ne sont guère différenciés, les dictionnaires ne sont guères édifiants quant à ceux qui les distingue. C’est me semble-t-il que, par exemple, les petits pois entre eux ont des rapports de similitude, à la fois visibles (leur couleur, leur forme, leur dimension) et invisibles (leur nature, leur saveur, leur pesanteur). Il en est de même du faux et de l’authentique, etc. Les « choses » n’ont pas entre elles de ressemblances, elles ont ou n’ont pas des similitudes. Il n’appartient qu’à la pensée d’être ressemblante. Elle ressemble en étant ce qu’elle voit, entend ou connaît, elle devient ce que le monde lui offre.

 

AS  SEMELHANÇAS  ENTRE  AS  ARTES   Capítulo  2  

109  

 

Logo, embora se reconheça que semelhanças absolutas não existam, o termo pode ser utilizado quando observamos certa “disposição do espírito” que nos faz perceber as coisas como semelhantes. Enquanto as similitudes teriam a dupla natureza, mencionada acima, de ser ao mesmo tempo marca e figura articuladora das semelhanças. O fato é que a importância dada às noções de semelhança, similitude ou assinatura antigamente, sobretudo na Renascença, em nada tem a ver com o descrédito dessas mesmas noções nos séculos seguintes. Mesmo que o homem tenha continuado a se ater, conscientemente ou não, à lógica das semelhanças, elas foram deixando de ser “marcas da sabedoria divina”, ordenadoras do saber, e perderam drasticamente seu prestígio. b) Crise e Descrença das Semelhanças As semelhanças e suas marcas, nítidas e reveladoras, não eram mais confiáveis. A mobilidade ou mutabilidade das coisas e dos olhares abalava a força da noção. Tudo poderia se assemelhar. Rigorosamente falando, dois objetos de pensamento quaisquer têm sempre alguma coisa em comum: uma gota de óleo assemelha-se a uma folha de papel pelo fato de ambas serem materiais, translúcidas, combustíveis, de origem vegetal, etc. (Lalande, ibid., p. 985).

Quanto mais se olha e se compara, mais semelhanças afloram e, com elas, uma certa descrença. As semelhanças não brotam mais de Deus, e sim dos olhares do homem. A semelhança perde sua importância central e se torna figura secundária excessivamente relativa. Figura charlatã, uma impostora sempre pronta à resolver problemas filosóficos, a semelhança não passa de uma simuladora, existe como efeito de indução arbitrária, decretou o filósofo estadunidense Nelson Goodman em Problems and Projects (1972, p. 437). Não é preciso muita reflexão para verificar que a semelhança está por toda parte. Mas desde que se olhe com mais agudeza, elas vão se dissipando e as coisas vão afirmando sua unicidade. Como um escultor que, na busca de materializar formas e proporções de um modelo, se dá conta da volubilidade das similitudes. Quanto mais o artista olha para o modelo e para sua escultura, mais ambos insistem em afirmar suas individualidades e toda semelhança desaparece, como nos relatos do artista plástico Alberto Giacometti (1901-1966) em Giacometti: La Ressemblance impossible (Soavi, Knapp, 1991, p. 10) .

 

110  

   AS  SEMELHANÇAS  ENTRE  AS  ARTES   Capítulo  2  

Mas a falência da semelhança há tempos já havia sido anunciada. Os teólogos da Idade Média não tinham dúvidas quando, por exemplo, apresentavam uma tipologia e uma hierarquia da noção. Hugo de São Vitor (1096-1141) descreve três tipos de semelhança. A primeira era a de igualdade, reservada a Deus e Seu único Filho, a segunda era a da imitação, reservada aos homens, já que eles foram criados a imagem e semelhança de Deus (ad imago et similitudo Dei). E, finalmente, a terceira e a mais baixa categoria: a semelhança de contrariedade ou rivalidade, domínio de Lúcifer, o anjo que invejou o homem na sua imagem divina 61 . Lúcifer, caracterizado por Ezequiel como a plenitude da ciência e sinal da semelhança da gloria divina, perverte a divindade (Javelet, 1967, p. 251). Seu orgulho, junto à desobediência do homem no paraíso fazem com que se instaure uma dessemelhança espiritual total, que não apaga, porém, as semelhanças com o criador. O anjo caído e Adão quiseram ser mais do que semelhantes, “com-semelhantes” (ibid., p. 252). Nesses breves explanações teológicas do século XII relatadas por Robert Javelet, a transgressão e a dessemelhança entram no cerne da semelhança. Somente em uma humanidade plena, a semelhança, pura e perfeita, se revela. Não sendo este o caso, as dessemelhanças estarão por toda parte, nos seres e nas coisas. “Para as criaturas, as semelhanças são sempre acompanhadas de dessemelhanças” (ibid., , p. 267) 62. Mas a descrença efetiva na força das semelhanças, segundo Foucault, é consequência de um ruptura epistemológica no final do século XVI, quando foram levantados profundos questionamentos em torno de questões relativas à representação e à imitação. A partir daí, a semelhança deixou de ser um local de encontro pacífico das coisas ou das palavras, se torna figura incômoda e perturbadora, para, mais tarde, se tornar noção periférica. Ela perde sua força como ordenadora do mundo e se revela semelhança informe, ou até mesmo, semelhança impossível. O incômodo das semelhanças vem do incômodo dos limites. Quando se trata imagens, coisas e palavras como termos com significações intrínsecas, essas mesmas imagens, coisas ou palavras vão tendo suas significações fixadas e vão criando a ilusão de serem definitivas. E a semelhança se enrijece atraída pela promessa de ordem, que, a propósito, é sempre arbitrária. Da impossibilidade das semelhanças provém todos os problemas no entendimento dos limites entre as coisas, entre as artes, entre o singular e o plural, as matérias e as formas, e                                                                                                                 61

“Tu signaculum similitudinis, plenus sapientia, perfectus decore!" (Tu eras o sinal da semelhança, pleno de sabedoria, perfeito em beleza!) (Javelet, 1967, p. 251). 62 “Pour les créatures, la ressemblance s’accompagne toujours par dissemblance.” Os teólogos medievais, a partir de Santo Agostinho se expressaram dizendo que o homem, quando deixa o paraíso, está condenado ao erro no mundo material em uma “região de dessemelhança” (regio dissimilitudinis) (Didi-Hubermann, 1995, p. 26).

 

AS  SEMELHANÇAS  ENTRE  AS  ARTES   Capítulo  2  

111  

 

mesmo dos limites entre os órgãos dos sentidos. As semelhanças, tão falsamente palpáveis, entram no reino das utopias, na regio similitudinis. Por um lado, ela é utópica e inatingível e, por outro, ela é a regra a partir da qual as coisas e seres se ordenam, regra que, mesmo após todo o tempo em que ela é colocada em questão, continua a vigorar com bastante força. Crer na semelhança das coisas, tal como os dicionários ou a episteme medieval a apresenta – como similitudes, traços de semelhança, que fazem com que coisas se atraiam naturalmente e que nos permite ordená-las de acordo com a sua significação intrínseca – é nos instalarmos confortavelmente em um mundo organizado e perfeito. É achar que o olhar não intervém no ouvir, que os sentidos ou as artes não se comunicam. É perceber as coisas como fixas e definitivas. Embora a exploração de semelhanças e diferenças revele sempre alguma arbitrariedade e esteja sujeita à relatividade dos olhares, toda identificação é regida por um certo número de princípios e critérios. E estes fundamentaram toda ordenação possível. […] na verdade, mesmo para a mais ingênua experiência, não há nenhuma similitude, nenhuma distinção que não resulte de uma operação precisa e da aplicação de um critério previamente estabelecido. Um “sistema de elementos” – uma definição de segmentos sobre os quais poderão aparecer as semelhanças e diferenças, os tipos de relação que poderão afetar este segmento, o limite sob o qual haverá similitude – é indispensável para o estabelecimento da mais simples ordem. (Foucault, 1966, p. 10)63.

O fato das semelhanças verdadeiras e fixas não mais existirem, não quer dizer que extinguiram-se as semelhanças. Elas entram, não mais apoiadas no absoluto, mas na validade das deduções e induções, das premissas e conclusões. Uma validade que não se liga necessariamente à verdade. A validade deve ser assegurada pela conformidade com um raciocínio e certas regras de inferência coerentes que, sendo bem estruturadas, não afirmam verdades absolutas e sim, raciocínios verdadeiros64. c) Novas Semelhanças Do objeto, as semelhanças migram para o olhar, e seu reconhecimento se insere na experiência. Em uma dupla experiência, que é ao mesmo tempo uma prova, algo ao qual se                                                                                                                 63

“[...] en fait, Il y a même pour l’expérience la plus naïve, aucune similitude, aucune distinction qui ne résulte d’une opération précise et de l’application d’un critère préalable. Un « système des éléments » - une définition des segments sur lesquels pourront apparaitre les ressemblances et les différences, les types de variation donc ce segment pourront être affectés, le seuil enfin au-dessous duquel il y aura similitude – est indispensable pour l’établissement de l’ordre le plus simples.” 64 O mesmo filosofo que teceu severas críticas à noção de semelhança, Nelson Goodman, nos auxiliou nessa distinção entre verdade e validade em Ways of worldmaking (1988, p. 148).

 

112  

   AS  SEMELHANÇAS  ENTRE  AS  ARTES   Capítulo  2  

submete, e uma experimentação, uma ação, como notou Georges Didi-Huberman (1995, p. 9). No primeiro sentido somos impelidos a prová-la, não podemos decidi-la previamente e ela vem, de certa maneira, nos surpreender e revelar um ponto de vista fenomenológico. O segundo sentido exige atividade e decisão, vontade e gesto. Revela um ponto de vista formal ou estrutural. A experiência deve ser sempre pensada sob esse duplo olhar, como algo experimentado e algo por fazer. As assinaturas, essas marcas que permitem com que as coisas se assemelhem, saíram de sua zona de conforto, e a leitura das coisas se abre a uma percepção que deve ir além da óbvia descrição dos contornos. É algo vão buscar somente no aspecto das coisas, os sinais inteligíveis que permitem distinguir diversos elementos uns dos outros. Aquilo que salta aos olhos humanos não somente determina o conhecimento das relações entre os diversos objetos, mas também certo estado de espírito decisivo e inexplicável. É assim que a visão de uma flor denuncia, é verdade, a presença de uma certa parte de uma planta; mas é impossível contentar-se com esse resultado superficial: com efeito, a visão desta flor provoca no espírito reações muito mais consequentes pelo fato dela exprimir uma obscura decisão da natureza vegetal. [...] é inútil negligenciar, como fazemos geralmente, essa inexprimível presença real, e rejeitar como absurdo e pueril certas tentativas de interpretação simbólica. (Bataille apud Didi-Huberman, 1995, p. 187)65.

Nos ideais de Georges Bataille (1897-1962), Didi-Huberman reconhece uma ruptura decisiva na maneira de se pensar a semelhança, perturbando seus fundamentos em uma certa “crueldade das semelhanças” (ibid., p. 21). Aproximando imagens das mais diversas origens e épocas ele trouxe uma nova, e ainda inexplorada, maneira de pensar as formas e semelhanças. Ele as pensa, não como termos fixos, mas como eternamente lábeis, com grande aspiração ao movimento66. Fazendo isso, Bataille não nega as semelhanças, mas opta por aquelas que transgridem sistemas, em oposição às dessemelhanças absolutas. De absoluto, somente a concretude da abertura de suas semelhanças em detrimento do fechamento abstrato da noção entendida no senso comum (ibid., p. 22). Bataille repudia o pensamento corrente da noção pelo viés de um simbolismo cristão, apresentado por ele como “tomismo” 67. Os princípios de                                                                                                                 65

“Il est vain d’envisager uniquement dans l’aspect des choses les signes intelligibles qui permettent de distinguer divers éléments les uns des autres. Ce qui frappe des yeux humains ne détermine pas seulement la connaissance des relations entre les divers objets, mais aussi bien tel état d’esprit décisif et inexplicable. C’est ainsi que la vue d’une fleur dénonce, il est vrai, la présence de cette partie définie d’une plante ; mais il est impossible de s’arrêter à ce résultat superficiel : en effet, la vie de cette fleur provoque dans l’esprit des réactions beaucoup plus conséquentes du fait qu’elle exprime une obscure décisions de la nature végétale. […] il est inutile de négliger, comme on fait généralement, cette inexprimable présence réelle, et de rejeter comme une absurdité puérile certaines tentatives d’interprétation symbolique.” 66 Georges Bataille não sucumbe à tentação de se tomar a forma como algo fixo no interior de um discurso (DidiHuberman, 1995, p. 19). 67 O tomismo é frequentemente criticado pelo fato de seus raciocínios, extremamente complexos, acabarem convergindo com conclusões bem próximas aos entendimentos correntes.

 

AS  SEMELHANÇAS  ENTRE  AS  ARTES   Capítulo  2  

113  

 

São Tomás de Aquino associavam a perda da semelhança divina como origem de todo pecado. O “problema” da semelhança reside no fato de se aspirar à sua pureza, pois, na impossibilidade de uma semelhança de igualdade, os homens se esforçam em imitar Deus e buscar uma semelhança impossível. Por outro lado, a transgressão, associada ao anjo caído e a semelhança de rivalidade, se ligava a perda da semelhança. Entendida desse modo, a semelhança tem uma estrutura de mito, porque não é uma relação natural imanente, mas é metafísica e sobrenatural por implicar na relação do homem com Deus. A criação de Adão por Deus “ad imaginem et similitudinem suam” e a interdição fundamental ao fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal afirmam a semelhança como um grande tabu (ibid., p. 26). A semelhança, em suas definições mais tradicionais, tem um caráter autoritário que deve vir, acreditamos, da obrigatoriedade de um mimetismo, que supõe a cópia de um modelo. A filosofia de Bataille supera ou despreza essa impotência frente a impossibilidade da semelhança completa. Não há limites nítidos para o que pode ou não ser comparado. Reportando-se a esta tese, quando um compositor se baseia ou tira alguns elementos de uma obra visual ou de uma imagem qualquer e a transpõe em sua própria obra, ele pode estar produzindo algum tipo de contato, ou um “choque de formas”. Forças de semelhança percorrem caminhos interiores e o contato entre obras pode ser produzido pelo desejo de aproximar as coisas, mesmo que seja somente através de um discurso sobre as obras68. Bataille não reivindica semelhanças da regio similitudinis, que se ajustam convenientemente em categorias herméticas, nem tampouco da regio dissimilitudinis, onde só existe diferença. O importante seria exaltar o conflito das formas e o informe, sem esquivar-se da inevitável tarefa de transgredir. Transgredir as formas não quer dizer se desligar das formas, nem se manter alheio ao local onde elas habitam. Reivindicar o informe não quer dizer reivindicar as não-formas, mas se engajar em um trabalho das formas equivalente ao que seria um trabalho de parto ou de agonia: uma abertura, uma ruptura, um processo dilacerante levando algo à morte e, nessa própria negatividade, inventando algo absolutamente novo, atualizando algo, mesmo no interior da crueldade do trabalho das formas e nas relações entre as formas – uma crueldade das semelhanças. Dizer que as formas “trabalham” na sua própria transgressão, é dizer que tal “trabalho” – discussão tanto quanto ordenamento, ruptura tanto quanto entrançamento – faz com que as formas se voltem contra outras formas, se devorem por outras formas. Formas contra formas e, constataremos rapidamente, matérias contra formas, matérias tocando e, algumas vezes, devorando formas. (ibid., p. 21)69.

                                                                                                                68

Esse desejo pode ser aquele “desejo de arte” que mencionamos no capítulo anterior (cf. p. 39). “Transgresser les formes ne veut donc pas dire se délier des formes, ni rester étranger à leur site. Revendiquer l’informe ne veut pas dire revendiquer des non-formes, mais plutôt s’engager dans un travail de formes équivalent à ce qui serait un travail d’accouchement ou d’agonie : une ouverture, une déchirure, un processus déchirant mettent quelque chose à mort et, dans cette négativité même, inventant quelque chose d’absolument

69

 

114  

   AS  SEMELHANÇAS  ENTRE  AS  ARTES   Capítulo  2  

Para caracterizar e ilustrar o informe de Bataille, Didi-Huberman abre sua obra La Ressemblance Informe (ibid., p. 5) com uma passagem do livro XII das Confissões de Santo Agostinho. O teólogo se indaga sobre o informe adotando uma posição herética, ou pelo menos incompatível com a teologia cristã. Aceitando a não existência de um informe absoluto, Santo Agostinho o situava na própria mutabilidade das formas, ou melhor, na passagem de uma forma para outra. O informe seria um processo e não um estado. O santo católico e Bataille convergem na crença da não-existência do informe absoluto, além de enxergarem na mobilidade das formas, o local onde se inscreve o informe. Bataille se lança em defesa da transgressão. A transgressão se liga à forma e aos limites e não é uma recusa, mas o começo de um conflito e de uma investida crítica (ibid., p. 20). Mas mesmo que a palavra transgressão tenha essa carga violenta que Bataille fazia questão de afirmar, o simples fato de descrever, friamente, se quisermos, a experiência da semelhança, em seu duplo entendimento, sem se preocupar em fixar sentidos, isso já ressoa como um gesto de extrema força70. O que nos parece interessante é criar um vasto conjunto aberto de relações e, no contato entre as artes e suas redes de relações, liberar sentidos, em vez de defini-los. As semelhanças perseveram. Como transgressão, incômodo, perturbação, mas também como lugar de contato ou encontro. O contato entre artes distintas vai se estabelecer sobretudo no tecido das relações abstratas que pode existir entre quaisquer obras. As semelhanças deverão vir desse contato entre as artes, seja ele real ou virtual, no interior da heterogeneidade dos materiais e das operações. A criação ou a observação do contato brotará sempre, neste trabalho, de uma experiência concreta, ou melhor, do reconhecimento de semelhanças, sejam elas desejadas ou não pelos criadores das obras. Nossas semelhanças surgirão da integração entre as semelhanças percebidas e as construídas. No contato forjado e desejado entre obras busca-se as forças que comandam, muitas vezes secretamente, a transmissão das semelhanças ou o jogo entre as semelhanças e dessemelhanças.

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                          neuf, mettent quelque chose au jour, fût-il le jour d’une cruauté au travail dans les formes et dans les rapports entre les formes - une cruauté de ressemblances. Dire que les formes « travaillent » à leur propre transgression, c’est dire qu’un tel « travail » - débat autant qu’agencement, déchirure autant que tressage - fait se ruer des formes contre d’autres formes, fait dévorer des formes par d’autres formes. Formes contre formes et, nous allons vite le constater, matières contre formes, matières touchant et, quelques fois, mangeant des formes.” 70 Os textos de Bataille têm muito frequentemente um tom provocador, mesmo quando ele defende as mais interessantes perspectivas. Sua maneira particular de tratar as imagens, apreendida por etnólogos que podem até mesmo se dizer “batailliens”, não foi absorvida pelos historiadores da arte, que enfatizam principalmente sua excentricidade, de acordo com Didi-Huberman (1995, p. 379).

 

AS  SEMELHANÇAS  ENTRE  AS  ARTES   Capítulo  2  

115  

 

E o que estará em jogo em tal “trabalho”, em tal conflito fecundo, não é nada mais que uma nova maneira de pensar as formas, processos contra resultados, relações lábeis contra termos fixos, aberturas concretas contra fechamentos abstratos, insubordinações materiais contra subordinações à ideia [...]. (Didi-Hubermann, ibid., p. 21-22)71.

As “semelhanças informes”, título da terceira parte deste capítulo, não são uma negação da forma, mas uma outra maneira de pensá-la. É preciso aceitar a condição de uma informidade ou disformidade de todos os objetos e na observação das semelhanças72. Logo, as semelhanças desta pesquisa tendem à transgressão, à informidade e surgirão, na segunda parte desta tese, do contato tenso entre obras de naturezas distintas. A semelhança – seja ela informe, transgressora, espontânea, forçada ou secreta – perpassa a diferença pelos mais diversos caminhos em um território onde tudo pode ser comparado, mas nada se iguala. De qualquer maneira, como a mitologia cristã nos ensinou, a semelhança de igualdade reside em uma instância que não é a nossa.

                                                                                                                71

“Et c’est qui aura fait l’enjeu d’un tel “travail”, dans tel conflit fécond, n’était rien d’autre qu’une nouvelle façon de penser les formes, processus contre résultats, relations labiles contre termes fixes, ouvertures concrètes contre clôtures abstraites, insubordinations matérielles contre subordinations à l’idée […].” 72 O “informe” não tem forma determinada, enquanto no “disforme” supõe-se que haja desproporção no interior do objeto.

 

116    

 

 

117  

AS  QUATRO  SIMILITUDES   Capítulo  3  

 

Capítulo 3 As Quatro Similitudes Nas estradas sinuosas dos Pirineus franceses, um jovem chamado Paul se vê perseguido por um senhor grisalho a cavalo. O velho homem, movido por uma emulação fora do comum, não cessa de dirigir olhares de simpatia a Paul. Alguns quilômetros depois, eis que os dois se encontram em um abrigo nas encostas da estrada. O jovem, de origem humilde, incomodado com a situação, exige explicações sobre o estranho comportamento do velho grisalho, que se apresenta como Senhor Despin, prefeito de uma pequena cidade e dono de uma pequena fortuna. Seus últimos quatro meses foram devastados por uma tristeza enorme, pois havia perdido o filho, que também se chamava Paul. Sua esposa, que passava horas a fio sobre o túmulo do filho, havia recebido de Nossa Senhora a seguinte mensagem: “Vá às estradas do Pirineus e lá reencontrará seu filho”. Despin segue as orientações da mulher e, após dias de busca, encontra o jovem Paul e o reconhece como seu filho. Comovido, o prefeito convida o jovem a acompanha-lo e diz-lhe: “Uma palavra e você será rico”. Paul reflete um pouco, mas recusa a proposta, para o desespero do prefeito. Aceita-la seria negar sua verdadeira família. É deixar-se seduzir pela riqueza e vender seus valores pessoais. Seu nome, sua idade e seu aspecto físico coincidiam com o filho do Senhor Despin. Nada mais. Seu verdadeiro filho é insubstituível, como Paul também o é para sua verdadeira família. Charles Nodier (1780-1844), o autor desse relato que acabamos de resumir, diz que, por analogia, podemos tirar lições morais exemplares desta história. O escritor nos aponta também para o fato de se tratar de um fato real e que até os nomes dos personagens, diz Nodier, foram preservados, mesmo se eles parecem se ajustar convenientemente como em uma ficção. O conto Paul ou la ressemblance (Nodier, 1961, p. 643-659) ilustra algumas das principais nuances etimológicas de “semelhança”. Os termos acima em itálico – simpatia, emulação, analogia e convenientemente – foram todos utilizados na versão original e se ligam estreitamente à noção estudada, nem sempre associados à óbvia relação de conformidade entre Paul e seu homônimo. Esses traços ou atributos da semelhança, que parecem englobar uma importante gama etimológica da semelhança, chamaremos de “similitudes”. A noção de acordo e ajuste, também presente no cerne da semelhança, se inscreve no texto quando o autor comenta o fato dos personagens reais se adequarem convenientemente aos ficcionais. Embora cada uma dessas quatro similitudes tenha características próprias e bem afirmadas, suas  

 

118  

AS  QUATRO  SIMILITUDES   Capítulo  3  

significações se entrecruzam, se imbricam ou se reforçam. Elas convergem tanto com as principais acepções observadas em uma pesquisa etimológica, quanto com as quatro figuras de articulação das semelhanças do século XVI apresentadas por Foucault: a sympathia, a æmulatio, a analogia e a convenientia. Entretanto, ao contrário da pretensão à verdade que essas similitudes renascentistas possuíam, nossas similitudes não se configuram na imposição de um sentido particular ou em um termo fixo, mas como um espectro de significações. Rastros da semelhança, as similitudes estudadas nesta pesquisa (simpatia, emulação, analogia e convenientia) se construirão a partir de um certo número de definições e reflexões provindas das mais diferentes situações de espaço e tempo. Óbvio dizer que é impossível dar conta de todas as suas nuances e que importantes reflexões em torno de algumas noções não foram nem sequer mencionadas. A apropriação futura de alguns sentidos apresentados neste capítulo justifica, mesmo que parcialmente, a arbitrariedade na escolha das fontes. Em um espectro de significações, sejam elas baseadas em estudos etimológicos, filosóficos, teológicos ou propriamente estéticos, buscaremos as similitudes das similitudes. Ou melhor, os pontos comuns que podem existir entre os mais variados entendimentos de cada uma dessas forças de semelhança. Mais do que se apegar às articulações, as vezes complexas, do interior das semelhanças, deve-se deixar que a gama de significações apresentada construa uma espécie de atmosfera conceitual que será, certamente, mais eficaz que o apego a algum termo fechado e restritivo. As similitudes que elegemos nesta pesquisa (simpatia, emulação, analogia e convenientia), todas elas, corporificam-se como conceitos abertos, suscetíveis de evolução. Embora pareçam distanciar-se de objetos artísticos neste capítulo, nossas semelhanças e similitudes se adequarão à proposta geral da pesquisa como importantes instrumentos de observação. Elas vão se inserir naquilo que chamamos “percurso das semelhanças”, na segunda parte desta tese. Em meio à grande quantidade de definições e de direções conceituais pululam algumas anedotas ou relatos de histórias que ilustram curiosas aplicações de alguns dos termos estudados e colocam em evidência alguns de seus mais importantes significados. 1. Simpatia Em uma busca bibliográfica e etimológica da primeira das quatro similitudes estudadas, nos deparamos subitamente com uma curiosa referência a certo “pó da simpatia”. Discours fait en une célèbre assemblée: touchant la guérison des playes par la poudre de  

119  

AS  QUATRO  SIMILITUDES   Capítulo  3  

 

sympathie, escrito por Kenelm Digby e publicado em 16581. O discurso de Digby, cujo mote foi resumido logo abaixo, é de fato um relato, dito verídico, no qual o autor é também importante personagem. O ilustre senhor Jacques Howell, secretário do duque de Buckingham, teve sua mão gravemente ferida. “Vamos amputá-la!” – ordena o cirurgião do rei. Nervos, músculos, tendões e ossos foram gravemente afetados por impiedosa lâmina quando Howel tentava interromper um duelo entre dois amigos seus. Um gesto apaziguador seria injustamente recompensado com a perda de um membro, se não fosse a intervenção do cavaleiro Kenelm Digby. Ele recolhe uma pequena amostra de sangue da lesão em um tecido e a mergulha em uma solução diluída em água, longe da presença física do ferido. Instantes depois, eis o começo de um processo de cicatrização que, em poucos dias, leva a cura ao desacreditado Jacques Howel. Ele foi salvo por simpatia: pelo “pó da simpatia” (poudre de sympathie) (Digby, 1658, p. 3-10). O pó da simpatia era defendido com ardor pelo cavaleiro Digby contra as acusações de bruxaria ou charlatanismo. Tratava-se simplesmente de um produto que contribuía à harmonização cósmica do mundo e seus elementos. Dessa maneira ele revelava “os efeitos surpreendentes da simpatia”2. Uma simpatia que transforma, cura, harmoniza. Sem contato ou feitiço. Essa curiosa anedota ajuda a ilustrar uma noção que comporta ao mesmo tempo grande potência, volatilidade e abstração. Ela será observada em uma breve topografia que parte de sua etimologia mais fundamental para chegar à sua posição central na metafísica de Henri Bergson, passando por um histórico de seus entendimentos enriquecidos pela apresentação de Michel Foucault e outros filósofos que o precederam na reflexão sobre a semelhança e suas forças. a) Afinidades e Transformações Embora sympathia seja um termo latino, sua origem é grega, συµπάθεια (sumpátheia), e seu equivalente no latim é compassio (Dandrey, 2007). O Dictionaire Culturel de la langue française (Rey, 2005) registra sua primeira definição em 1409 como “atração por algo” ou                                                                                                                 1

O título pode ser traduzido para o português como: Discurso feito a uma celebre assembleia: a propósito da cura de ferimentos pelo pó da simpatia. A obra original foi consultada na seção de obras raras (La Reserve) da biblioteca Sainte Geneviève de Paris. 2 A título de curiosidade, Les effects surprenants de la sympathie é o título de um romance de 1714 de Pierre de Marivaux (1688-1863).

 

 

120  

AS  QUATRO  SIMILITUDES   Capítulo  3  

“aceitação de algo”, seguido de um registro de 1534 como “afinidade moral, semelhança de sentimentos, conveniência de gostos entre duas ou mais pessoas, acordo, harmonia”3. No Dictionnaire de la langue française du seizième siècle (Huguet, 1932), encontramos somente duas definições: “semelhança” e “relação”. Para o verbo simpatizar (sympathier), o mesmo dicionário acrescenta: “unir, colocar-se em acordo” e para simpatizante (sypathizant): “parecido”4. O Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa (Cunha, 1932) traz como a mais antiga definição de simpatia em português: “tendência ou inclinação que reúne duas ou mais pessoas”, inscrita no século XVI5. A partir do século XVII, a simpatia passa a designar também acepções físicas, químicas e biológicas, retomando uma denotação utilizada na Grécia antiga, como maneira de caracterizar doenças contagiosas. Essa atribuição se mantém ainda hoje entre seus significados: “característica e qualidade afim de dois estados mórbidos, que leva à potencialização de sinais e sintomas” (Houaiss, 2009). Mas é no século XVIII que a noção de simpatia vai sofrer uma importante transformação epistemológica, quando surgem modos particulares de conceber a simpatia. A maneira como o filósofo inglês David Hume (1711-1776) entendeu a simpatia, por exemplo, pode ser bem ilustrativa dessa transformação, como verificou Saltel (2002, p. 541): “A impressão que temos de nós mesmos é particularmente viva, de maneira que ela transfere uma parte dessa vivacidade aos objetos aos quais somos ligados.”6 A simpatia, no contexto do século XVIII europeu, sobretudo britânico, se impõe como importante noção que implica em um conjunto de relações em que a percepção de si mesmo não é nada sem a percepção do outro. Assim, as ideais que fazemos dos outros e as ideias que os outros fazem de nós devem estar harmoniosamente associadas. Entra em cena a noção de “transferência” afetiva, que o senso comum atual toma quase por sinônimo da palavra simpatia. Interessante observar que a centralidade da noção da simpatia na filosofia britânica pode encontrar equivalência no estoicismo, escola filosófica da Grécia do século II a.C. que

                                                                                                                3

“Attirance pour quelque chose” ou “acceptation de quelque chose”. “Affinité morale, ressemblance de sentiments, convenance de goûts entre deux ou plusieurs personnes, accord, harmonie” 4 “unir, se mettre em accord”; “semblable”. 5 Curiosas aplicações do termo se verificam na Renascença. Além do pó da simpatia (poudre de sympathie), citado no começo desse texto, existia ainda a tinta da simpatia (encre de sympathie), que era invisível, mas, quando submetida a um agente químico, reaparecia. 6 “L’impression que nous avons de nous-mêmes est particulièrement vive, de sorte qu’elle transfère une partie de cette vivacité aux objets auxquels nous sommes reliés.”

 

121  

AS  QUATRO  SIMILITUDES   Capítulo  3  

 

durou até o século VI d.C.7. No entanto, a diferença é que, enquanto na moral estoica proclamava-se a imperturbabilidade e aceitação de uma ordem cósmica na qual a simpatia atuava como força de harmonização do mundo, no século XVIII, a simpatia impõe seu aspecto passional, de algo que foge ao controle (Auroux, 1990, 2522). É como se no interior de uma simpatia que enfatizava a harmonia de sistemas, uma subjetividade ou intersubjetividade fosse gradualmente penetrando suas significações. No século XIX, de acordo com o Vocabulário de Estética de Étienne Souriau (1990, p. 1331), a simpatia aparece como noção dinâmica que ilustra a maneira como percebemos as relações de força entre os objetos. Simpatia é entendida como movimento para adaptação das partes à suas funções e à destinação final de seu conjunto. No século XIX, houve ainda uma distinção entre a simpatia, como simples inclinação empírica, e a “sympoésie”, como forma mais autêntica de conjunção ou comunhão (Auroux, 1990, p. 2522). Eu não vivo em mim mesmo, mas me torno uma parte daquilo que me rodeia. As montanhas e os riachos e os céus não serão partes de minha alma, como eu sou uma parte deles? (Byron, Childe Harold III apud Souriau, 1990, p. 641) 8.

Embora a simpatia, desde o fim do século XVI, tenha se enfraquecido como “semelhança verdadeira” e ordenadora do mundo, a aceitação de seu aspecto psicológico, que engloba todo tipo de assimilação, contaminação, absorção, identificação, idealização, é atual e encarada como uma realidade inegável e atuante, na sua abstração e subjetividade. Patrick Dandrey (2007, p. 5) ratifica esse duplo caráter da simpatia, de harmonização de sistemas e de intersubjetividade, quando observa sua topografia etimológica. Dois entendimentos fundamentais são visíveis. Inicialmente, embalada pelas noções grega e estoica, a simpatia se apresenta como uma prática e uma conduta. O homem se inseri no mundo e simpatiza com ele, adaptando-se em uma troca permanente com o meio. Só mais tarde ela se converte em sentimento e afeição. Mas esse aspecto sentimental da simpatia pode ser visto por outros ângulos e nos remete a uma outra noção, a empatia. A Encyclopédie Philosophique Universelle (Aurox, 1990, p. 774) apresenta a empatia no quadro da filosofia geral e a partir de Husserl, como noção que engloba a simpatia e tem                                                                                                                 7

O estoicismo foi a corrente filosófica predominante na Antiguidade Clássica que perdurou por mais de cinco séculos (300 a.C. – 200 d.C.). Grosso modo, esta filosofia exalta a prática de meditação conduzindo uma vida em harmonia com a natureza e com a razão, para atingir a sabedoria e a felicidade, entendida dissociada das paixões (Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura, 1964, p. 293). 8 “Je ne vis pas en moi-même, mais je deviens une partie de ce qui m’environne. Les montagnes et les flots et les cieux ne sont-ils pas une partie de mon âme, comme moi je suis une partie d’eux ? “

 

 

122  

AS  QUATRO  SIMILITUDES   Capítulo  3  

como condição de possibilidade de um “ressentir” afetivo a inter-relação que funda no mundo nossas trocas intersubjetivas, perceptivas e existenciais. Esta comunicação se dá em três níveis: 1. O sujeito se harmoniza espontaneamente no afeto do outro em uma ressonância comum: estado da participação afetiva. O caso limite é o contágio ou a fusão afetiva, próxima de uma identificação completa. Vivido sobre um modo não meditado, a identificação se apresenta de dois tipos: idiopática (o afeto do outro é, de alguma maneira, absorvido pelo meu) e a heteropática (ambos os afetos são cativados em uma relação dialética). 2. A empatia implica a ressonância vivida do sujeito na presença transcendental do objeto (estético) ou do comportamento do outro. Comporta uma co-naturalidade de participação afetiva sem que haja necessariamente participação efetiva. Não revela conhecimento, mas uma apresentação afetada. 3. A empatia visa uma reciprocidade afetiva em uma temporalidade partilhada. É o sentimento de simpatia. A empatia nos remete ainda a uma outra noção bem próxima, que é até mesmo considerada como sua tradução direta, a Einfühlung. Tomada em seu sentido psicológico geral, é uma projeção de nosso eu nos seres e nas coisas. É também uma objetivação de nossa vida afetiva e identificação do sujeito e do objeto pelos sentimentos. Essa identificação é, segundo os teóricos do Einfühlung, a própria essência do sentimento estético (Souriau, 1990, p. 641). A tendência profunda de nossa vida afetiva é de se projetar nos objetos com os quais simpatizamos e nessa projeção, identificamos os objetos em nós e nós nos objetos. Mas essa atitude só é estética na medida em que é o sentimento de nosso eu que nos coloca no objeto representado9. b) Semelhanças Absolutas e Intuitivas A força de similitude denominada “simpatia” tem ambições enormes. Sua força é tão grande que é capaz de assimilar os mais distantes e diferentes objetos, de todas as naturezas. As forças de semelhança, as similitudes, eram figuras muito poderosas até o começo do século XVII, como mostrou Foucault (1966). Organizavam os saberes e, embora se                                                                                                                 9

Max Scheler (2003, p. LXXXX) critica a teoria da “intuição” projetiva (Einfühlung) por suas pretensões, não alcançadas, de unir os atos e atitudes com a simpatia.

 

123  

AS  QUATRO  SIMILITUDES   Capítulo  3  

 

estabelecessem como sólidas verdades, poderiam ter grande liberdade, como é o caso da simpatia. Ela é apresentada como uma similitude com tão grande potência que é capaz de aproximar as coisas independentemente das distâncias à percorrer no tempo ou no espaço. Nela nenhum caminho é determinado de antemão, nenhuma distância é suposta, nenhum encadeamento prescrito. A simpatia atua livremente nas profundezas do mundo. [...]. Ela é um princípio de mobilidade [...]. Mais ainda: atraindo as coisas umas contra as outras por um movimento exterior e visível, suscita secretamente um movimento interior [...]. A simpatia transforma. Também altera, é certo, mas na direção do idêntico, de maneira que, se seu poder não fosse contrabalançado, o mundo se reduziria a um ponto, a uma massa homogênea, à sombria figura do Mesmo: todas as suas partes se sustentariam e comunicariam entre si sem ruptura ou distância, [...]. Por isso, a simpatia é compensada por sua figura gêmea: a antipatia. É ela que mantém as coisas no seu isolamento e impede 10 a assimilação; (Foucault, 1966, p. 38-39) .

Foucault ilustra a simpatia com exemplos citados por Giambattista Della Porta em Magie Naturelle (1587). O aroma triste e moribundo da rosas de um velório, a atração de uma corrente de metal por um imã e o movimento do girassol estão entre as ilustrações de simpatia, que conduz ainda os astros e suas relações com o comportamento das coisas e dos seres. Fazendo com que as coisas se atraiam em um fluxo exterior e visível, a simpatia vai além, demandando um movimento interior que aproxima o relevo das coisas (Foucault, 1966, p. 38). A simpatia, na apresentação de Foucault, estimula as coisas a se assemelharem, mesmo as mais afastadas. Mas toda esta força não vem desacompanhada de riscos. Ela pode atrair tanto as coisas entre elas, ao ponto de torná-las idênticas, pelo seu poder de assimilação. Assim a simpatia pode anular a individualidade das coisas, tornando-as estranhas ao que elas eram e as transportando a utópica regio similitudinis. A simpatia seria a única das quatro similitudes apresentadas que vem acompanhada de uma noção complementar. Como vimos na citação acima, é a antipatia que impede o mundo de se tornar um só ponto e garante a identidade das coisas, preservando suas singularidades. Os exemplos da noção de antipatia são de plantas e animais que se repulsam e se exterminam e que, através dos tempos,

                                                                                                                10

“Là nul chemin est déterminé à l’avance, nulle distance n’est supposée, nul enchaînement prescrit. La sympathie joue à l’état libre dans les profondeurs du monde. […]. Elle est principe de mobilité […]. Bien plus, en attirant les unes vers les autres par un mouvement extérieur et visible, elle suscite en secret un mouvement intérieur […]. La sympathie transforme. Elle altère, mais dans la direction de l’identique, de sorte que si son pouvoir n’était pas balancé, le monde se réduirait à un point, à une masse homogène, à la morne figure du Même : toutes ses parties se tiendraient et communiqueraient entre elles sans rupture ni distance, […]. C’est pourquoi la sympathie est compensée par sa figure jumelle : l’antipathie. Celle-ci maintient les choses en leur isolement et empêche l’assimilation;”

 

 

124  

AS  QUATRO  SIMILITUDES   Capítulo  3  

infinitamente, se detestarão e, “contra toda simpatia, manterão seu voraz apetite” (ibid., p. 39)11. Através deste jogo da antipatia que dispersa, mas que ao mesmo tempo que os impele ao combate, os torna mortíferos e os expõe, por sua vez, à morte, verifica-se que as coisas e os animais e todas as figuras do mundo permanecem, ao fim e ao cabo, aquilo que são. (ibid., p. 39)12.

A identidade das coisas, caracterizada como aquilo que preserva suas singularidades, será assegurada pelos constantes fluxos de simpatia e antipatia, pelo movimento e pela dispersão. E todas as outras forças de similitude, que ainda serão apresentadas, se inserem no cerne da simpatia: Todo o volume do mundo, toda a vizinhança da conveniência, todos os ecos da emulação, todos os encadeamentos da analogia são sustentados, mantidos e duplicados por esse espaço da simpatia e da antipatia que não cessa de aproximar as coisas e de mantê-las à distância. (ibid., p. 40)13.

As dimensões da simpatia são tão amplas que podem até mesmo nos remeter a algo de absoluto, como é o caso das reflexões sobre simpatia de Henri Bergson e sua inclusão como importante noção metafísica no La Pensée et le mouvant (1946). Existem duas maneiras profundamente diferentes de entender as coisas e nas quais parecem convergir tanto as definições metafísicas, quanto as concepções do absoluto (Bergson, 1946, p. 177). A primeira depende do ponto de vista onde nos localizamos e dos símbolos através dos quais nos expressamos. É como se girássemos em torno de um objeto e tentássemos descrevê-lo. Limita-se ao relativo. A segunda é indo ao interior do mesmo objeto sem se apoiar em nenhum símbolo, nem depender de nenhum ponto de vista. Busca o absoluto. O movimento de um objeto no espaço, por exemplo, será percebido e traduzido diferentemente, de acordo com o ângulo a partir do qual o observamos. Isso ilustra a maneira relativa de perceber o mundo. No absoluto, Bergson atribui ao objeto uma interioridade e “estados de alma”. E assim, através da simpatia, ele se insere nesses estados, por um “esforço de imaginação” (ibid., p. 178). O que ele experimentará não dependerá nem do ponto de vista nem dos símbolos através dos quais poderia se traduzir. Ele estará no próprio objeto e renunciará a todas as traduções para possuir o original e experimentar, assim, o absoluto.                                                                                                                 11

[...] “ contre toute sympathie maintiendront leur féroce appétit .” “Par ce jeu de l’antipathie qui les disperse, mais tout autant les attire au combat, les rend meurtrières et les expose à leur tour à la mort, il se trouve que les choses et les bêtes et toute les figures du monde demeurent ce qu’elles sont.” 13 “Tout le volume du monde, tous les voisinages de la convenance, tous les échos de l’émulation, tous les enchainements de l’analogie sont supportés, maintenus et doublés par cette espace de la sympathie et de l’antipathie qui ne cesse de rapprocher les choses et de les tenir à distance.” 12

 

125  

AS  QUATRO  SIMILITUDES   Capítulo  3  

 

O dualismo relativo/absoluto e a atuação da simpatia nos parecem bem nítidos quando Bergson toma como exemplo o personagem de um romance. O romancista poderá multiplicar os traços do caráter, fazer seu herói falar e agir o quanto quiser: tudo isso não valerá o sentimento simples e invisível que experimentarei se coincidir um instante com o próprio personagem. [...]. O personagem me será dado de uma só vez na sua integralidade, e os mil incidentes que se passam com ele, ao invés de acrescentar à ideia e a enriquecer, me parecem, ao contrário, se desligar dela, mas sem esgotá-la ou empobrecer sua essência, apesar disso. (ibid., p. 179)14.

As descrições, histórias e análises que o escritor faz de seu personagem constituem o relativo. O que Bergson chamou de “coincidência” vai ao encontro do absoluto, que, por sua vez, se dá como intuição. Uma intuição que se liga estreitamente à simpatia e se opõe à análise. Chamamos de intuição a simpatia através da qual nos transportamos ao interior de um objeto para coincidir com aquilo que ele tem de único e, por consequência, inexprimível. A análise, pelo contrário, é a operação que leva o objeto à elementos já conhecidos, quer dizer, comum a este e a outros objetos. (ibid., p. 179)15.

Em Bergson, o conhecimento real é inexprimível, passa pelo acesso ao interior do objeto através dos caminhos da intuição, como simpatia. E a análise, embora possa ser expressa em códigos, será sempre um esforço de representação sempre incompleta que pode continuar infinitamente “em seu desejo eternamente insaciável de abraçar o objeto em torno da qual ela é condenada a girar” (ibid., p. 181)16. Se existe um meio de possuir absolutamente uma realidade, em vez de conhecê-la relativamente, de se colocar nela em vez de adotar pontos de vista sobre ela, de ter intuição em vez de analisá-la, de enfim entendê-la fora de qualquer expressão, tradução ou representação simbólica, este meio é a metafísica. (Bergson, ibid., p. 181-182)17.

A simpatia se situa dessa maneira em um lugar privilegiado na metafísica apresentada pelo filósofo francês.                                                                                                                 14

“Le romancier pourra multiplier les traits de caractère, faire parler et agir son héro autant qu’il lui plaira : tout cela ne vaudra pas le sentiment simple et invisible que j’éprouverais si je coïncidais un instant avec le personnage lui-même. […]. Le personnage me sera donné tout d’un coup dans son intégralité, et mille incidents qui le manifestent, au lieu de s’ajouter à l’idée et de l’enrichir, me sembleraient au contraire alors se détacher d’elle, sans pourtant en épuiser ou en appauvrir l’essence.” 15 “Nous appelons ici intuition la sympathie par laquelle on se transporte à l’intérieur d’un objet pour coïncider avec ce qu’il a d’unique et par conséquent d’inexprimable. Au contraire, l’analyse est l’opération qui ramène l’objet à des éléments déjà connus, c'est-à-dire commun à cet objet et à d’autres.” 16 [...] “dans son désir éternellement inassouvi d’embrasser l’objet autour duquel elle est condamné à tourner.” 17 “S’il existe un moyen de posséder une réalité absolument au lieu de la connaitre relativement, de se placer en elle au lieu d’adopter des points de vue sur elle, d’avoir l’intuition au lieu d’en faire l’analyse, enfin de la saisir en dehors de toute expression, traduction, ou représentation symbolique, la métaphysique est cela même.”

 

 

126  

AS  QUATRO  SIMILITUDES   Capítulo  3  

c) Liberdade e Movimento Embora haja certa conformidade em torno das acepções gerais de simpatia, existe, como dissemos, duas vertentes de significações principais em seu interior. Na primeira, a similitude aparece principalmente como laço de união entre os elementos do cosmos e “como princípio do grande organismo da Natureza” (Mora, 2001, p. 2690). Tem, dessa forma, seu aspecto passional reduzido. Não só a filosofia dos estoicos e gregos antigos, mas também todos os neoplatônicos e várias correntes da filosofia moderna adotaram esse entendimento. A harmonia, a conformidade, o equilíbrio e a unidade devem ser o centro da simpatia, que pode, até mesmo, ser o princípio ou uma noção importante na formulação de juízos morais. Não por acaso, o Dictionaire Culturelle de la langue française a apresentou como “afinidade moral”. Alguns acreditaram, como notou Mora (ibid., p. 2690), que era a simpatia o elo que ligava entre si todas as coisas e realidades e que os fenômenos terrestres eram influenciados pelos fenômenos celestes. Nada nem ninguém poderia escapar do olhar de Deus. O conceito cósmico precedia o conceito humano. A segunda vertente nas acepções de simpatia deve provir dos chamados filósofos “do sentimento moral”, como Francis Hutcheson (1694-1746), Adam Smith (1723-1790), e David Hume. Apesar de crerem na simpatia como uma força que contribuía na construção de juízos morais, eles enfatizaram também aspectos afetivos da noção. A simpatia trazia consigo a ideia de participação afetiva, experiência de emoções análogas, contágio de afetos e emoções. Mas, de qualquer maneira, a simpatia ainda era algo que incitava a uniformidade, o equilíbrio e a fusão. Nos meandros da simpatia como fusão harmônica, a emoção vai ganhando espaço juntamente com a aceitação da subjetividade, a partir do Romantismo. Àquela simpatia aparentemente estática, ou, no máximo, com movimentos lentos na direção do equilíbrio, se sobrepõe uma outra mais dinâmica e passional. Dessa forma, afirma-se de fato a segunda vertente da simpatia, que não rejeita a anterior e nem mesmo todas as acepções do senso comum que o estudo etimológico nos revelou. Sem negar sua dimensão ontológica, como o absoluto na metafísica apresentada por Bergson, a simpatia se apresenta como função afetiva e não mais um estado definitivo ao qual se almeja. Ela se instaura também como “comunicação interior de seres que não estão em relação por meio de movimentos exteriores ou sensações” (Lalande, 1999, p. 1020) ou até mesmo como um instinto ou atração instintiva (Bergson apud Lalande, ibid., p. 1020). À uma simpatia harmônica e lenta impõe-se uma

 

127  

AS  QUATRO  SIMILITUDES   Capítulo  3  

 

simpatia baseada na e-moção, dinâmica e passional. Aproxima-se, assim, de sua versão latina, compaixão (compassio). Interessante notar que Michel Foucault, quando caracteriza essa similitude, a apresenta como um modo de ver e organizar as semelhanças do mundo até os inícios do século XVII, mas a descreve, baseado em autores do Renascimento, como Porta e Girolamo Cardano, de maneira a enfatizar seus aspectos de liberdade e movimento. Ou seja, algo que poderia ser hermético, ordenador e uma diretriz para que se estabeleçam limites, aparece caracterizado principalmente pela liberdade e movimento. “Todo limite talvez seja somente um corte arbitrário em um conjunto indefinidamente móvel.” (Foucault, 1966, p. 64)18. A simpatia não escapa desse movimento do conjunto, pois ele provém de uma relação de forças no núcleo dos objetos que se adéquam, se ligam por afinidade, por contágio, por compaixão, como movimento em direção a um mesmo ponto. As simpatias, com toda potência, atuam sem cessar

“nas

profundezas

do

mundo”,

onde

“nenhum

caminho

é

determinado

antecipadamente”, como nos disse Foucault mais acima. A liberdade da simpatia deve brotar da nossa incapacidade em desvendar e revelar suas leis. Ela deve ser, assim como o contexto indeterminado ou o ruído de fundo do mundo citados nos capítulos anteriores, tão real e potente quanto nossa incapacidade em descrevê-la. A simpatia, irrequieta e nunca imóvel, reside no absoluto, nos cernes, na intuição que move as coisas e os seres em direção a um ponto, em uma maneira de poder possuir uma realidade. Tanto em um movimento recíproco espontâneo quanto em uma ação voluntária e parcial, a simpatia vai sempre comportar uma ressonância comum entre elementos. O “pó da simpatia”, com seu poder especulativo e factual, atua em qualquer distância, seja do tempo ou do espaço. Aproxima, altera, harmoniza. 2. Emulação Era uma vez um homem com uma aparência física assustadora. Seu aspecto incitava repulsa por onde passava. Seus traços físicos repeliam os olhares alheios. Mesmos os mais céticos não duvidavam se tratar de algum tipo de punição divina, tamanha era a feiura do pobre homem. Para seus próximos era estranho pensar em castigo dos deuses, pois o que o sujeito tinha de feio, tinha de bom. Sua grande bondade não o permitia conceber um filho que pudesse lhe assemelhar. Por isso, a força desse temor fez com que ele reunisse imagens das                                                                                                                 18

“Toute limite n’est peut-être qu’une coupure arbitraire dans un ensemble indéfiniment mobile.”

 

 

128  

AS  QUATRO  SIMILITUDES   Capítulo  3  

mais belas aparências. Uma vez feito isso, o pobre homem recomendou a sua esposa que as observasse regularmente. Assim, estariam prontos para se unir e dessa união inspirada nasceria a mais bela das criaturas. É dessa maneira que o historiador e crítico do teatro grego Dionísio de Halicarnasso (1992, p. 25) ilustra, ainda no primeiro século da era cristã, uma das similitudes estudadas neste capítulo. A noção de emulação (æmulatio), como veremos, aparece frequentemente ligada à imitação, apesar de conter certas diferenças essenciais. Optamos por nos ater a alguns filósofos e estetas que fazem menção direta à emulação em seus textos ou fundamentam reflexões sobre o tão amplo conceito de imitação ou mimeses. À primeira vista, a emulação parece fundamentar-se conceitualmente com mais vigor que a simpatia. Mas essa consistência só é efetiva quando associada à estrutura de modelo e imitação impondo, no cerne da emulação, uma relação de referência à algo anterior. Veremos, entretanto, que nem sempre esse jogo se concretiza e, por vezes, confundem-se modelos e “cópias”. Alguns dos principais atributos da noção estudada nutrirão as aplicações mais práticas da segunda parte da tese. Esses atributos virão de uma sucinta exposição lexicográfica, uma apresentação também sucinta das noções de mimeses e imitação, até chegar a uma emulação desligada de uma causalidade direta. a) Choque de Significados No Dictionnaire étymologique de la langue latine (1985), a noção de émulation na língua francesa se deriva de æmulus, que significa “émulo e rival; invejoso19. Sua derivação æmulor quer dizer “igualar imitando, ser émulo ou rival de”20. O Dictionnaire de la langue française du seizième siècle traz seu sentido associado ao de ciúme, inimizade e hostilidade. O Dicionário Essencial da Língua Portuguesa de Sacconi (2003) a apresenta como “sentimento nobre e generoso que impele uma pessoa a imitar, igualar ou suplantar as boas ações de outrem” e o dicionário de Morais Silva (1987) a define simplesmente como “sentimento que provoca o desejo de imitar”. O Trésor de la Langue Française (2011) ratifica todas essas significações e acrescenta que, no latim clássico, é enfatizado o desejo por se igualar, tanto em um aspecto positivo como no negativo. Sob um aspecto positivo, emulação                                                                                                                 19 20

“Émule et rival ; envieux.” “Égaler en imitant, être émule ou rival de.”

 

129  

AS  QUATRO  SIMILITUDES   Capítulo  3  

 

significaria: “sentimento considerado como nobre, louvável, que incita a superar seus concorrentes na aquisição de competências, de conhecimentos, nas diversas atividades socialmente provadas”21. A etimologia de “emulação” carrega uma interessante ambiguidade, que não pode ser negada. Saltarelli (2009, p. 255), comentando a inserção da “emulação” na literatura, a revela: O termo grego traduzido pelos latinos como æmulatio é zélosis, o qual está na origem da palavra portuguesa zelo, mas também da espanhola celo, da francesa jalousie e da italiana gelosia. Enquanto no português a palavra denota cuidado ou proteção, no espanhol, no francês e no italiano ela significa ciúme, inveja. Essa polissemia gerada na evolução do sentido da palavra define bem a relação do escritor com seu modelo: trata-se de uma relação dúbia, de cuidado e ciúme, simultaneamente.

Embora algumas dessas significações tenham sido excluídas da lexicografia moderna do termo, nos parece interessante recordar essa coexistência, talvez tensa, entre os atributos com carga semântica distinta e, às vezes, quase divergentes, como é o caso de inveja e cuidado, por exemplo. b) Mimeses, Imitação e Emulação As três noções do título são vizinhas ou parentes. As duas primeiras são quase sinônimas, pois a mimeses foi traduzida do grego para o latim como imitatio22. No cerne da imitação brotam novas significados que irão construir o que entenderemos como emulação neste trabalho. A emulação carrega consigo as duas outras noções e imprime nelas novas nuances. A conceptualização da mimeses é a mais antiga das três. Reside nas primeiras reflexões da Grécia antiga sobre o que entendemos hoje por arte. Os desdobramentos dessas reflexões se sentem ainda hoje no território teórico da arte. A mimeses em Platão foi mencionada em inúmeros pontos de sua obra e foi aplicada nos mais diferentes contextos, como na aplicação de preceitos da retórica, nas reflexões sobre instituições, coisas naturais e nos seus pensamentos sobre todas as artes. O Timeu apresenta a mimeses como maneira de se imitar os movimentos divinos no interior dos pensamentos e argumentos. No Crátilo, a essência das coisas se afirmam como mimeses nos caracteres da escrita. E no Crítias todos os                                                                                                                 21

“sentiment, considéré comme noble, louable, qui pousse à surpasser ses concurrents dans l'acquisition de compétences, de connaissances, dans diverses activités socialement approuvées.” 22 Na Poética de Aristóteles, por exemplo, o mesmo termo foi traduzido como imitação no livro publicado pela Editora Nova Cultural e mimeses na tradução de Fernando Maciel Gazoni em sua dissertação de Mestrado (2006).

 

 

130  

AS  QUATRO  SIMILITUDES   Capítulo  3  

sinais do mundo e toda criação de imagens é mimeses de algo ideal. Enfim, para Platão a mimeses será construída por imitações de modelos ideais das coisas e dos seus próprios princípios (Chevrolet, 2008, p. 37). Platão apresenta uma hierarquia de mimeses que varia em função do grau de aproximação com a Verdade (alétheia). A articulação de categorias é feita a partir das noções fundamentais de mimeses e de acordo com seu grau de semelhança com a Verdade. As artes se situam em um grau bastante baixo de uma hierarquia, por serem sempre cópias imperfeitas e, muitas vezes, mentiras em que se mistura um pouco de verdade, como as fábulas, por exemplo (Platão, 1947, p. 154, 376e). Saltarelli (2009, p. 252) situa o pensamento platônico no que concerne a arte e o relaciona com mimeses: Assim, ela [a mimeses] estimula a parte concupiscível da alma (epithymetikón), responsável pelos apetites do instinto e pelo julgamento sem medida, ao invés de promover o desenvolvimento da parte racional (logistikón), que mede, pesa e calcula. Por isso, constitui-se num elemento nocivo à elevação moral e racional do homem. Uma vez que a filosofia platônica nunca se desprende de uma dimensão moral e pedagógica, a mimeses, para ser boa, ou pelo menos aceitável, deveria debruçar-se sobre um objeto belo e bom, tentando transformá-lo num modelo justo para o ensino dos homens.

A mimeses dos artistas é entendida por Platão como algo meramente ilusório, [...] cópia do real, o qual ela deforma por incapacidade e não por escolha, não permitindo nunca a ascensão, em seus irrisórios rascunhos à plenitude luminosa dos originais. [...]. Privada da verdade, a arte acaba também sendo, para Platão, privada da Beleza. (Chevrolet, 2008, p. 37-38).

O uso da mimeses deveria então ser limitado e destinado apenas à imitação dos homens de bem, para se evitar que vícios e baixezas se reproduzam na realidade (Platão, 1947, 395c). Assim, a mimeses se volta para um modelo de belo e do bom, ou seja, ela deve ser seletiva. Dessa forma ela pode se aproximar da noção de emulação como um modelo que se deseja imitar. A mimeses platônica teria esse fardo da incompetência, da incapacidade em imitar dignamente. O modelo é o ideal, o bom, o verdadeiro, o inatingível. Somente com Aristóteles a mimeses vai encontrar sentidos um pouco mais amenos e se afastará do peso moral e ideal que portava. Imitar é natural ao homem desde a infância – e nisso difere dos outros animais, em ser o mais capaz de imitar e adquirir os primeiros conhecimentos por meio da imitação – e todos têm prazer em imitar. (Aristóteles, 1996, p. 33).

 

131  

AS  QUATRO  SIMILITUDES   Capítulo  3  

 

A imitação não seria mais uma cópia da natureza, afastada da verdade, e sim uma representação, com estatuto de realidade independente (Saltarelli, 2009, p. 253). A natureza não precisa necessariamente ser imitada tal como ela é. Os homens poderiam ser representados melhores, piores ou semelhantes às suas realidades. O objeto principal da mimeses, para poesia, é a práxis humana, as ações desempenhadas pelos homens. Segundo Chevrolet (2008, p. 43), a mimeses torna-se, em Aristóteles, uma noção polarizada, ambivalente, capaz de todos os compromissos, articulando relações com a verdade e com a ficção. Aristóteles reabilita, dessa forma, a arte imitativa no domínio do conhecimento (Souriau, 1990, p. 863). Assim, para Aristóteles, a mimeses é imitação idealizada e verossímil da natureza, em que a razão das leis e proporções mantém-se como elemento comum entre a realidade imitada e a obra. A verossimilhança torna-se o novo ideal a ser buscado pela poesia, que passa a ser definida por um caráter mais técnico e operacional, em oposição ao caráter ontológico subjacente à noção de Verdade almejada por Platão. (Saltarelli, 2009, p. 253).

À noção de mimeses se sobrepõe sua noção irmã: a imitação. No princípio da era cristã, Dionísio de Halicarnasso, achando que era preciso apresentar uma definição de imitação mais bem construída, dedicou-lhe um tratado, dividido em três livros: um estudo sobre a imitação, uma apresentação de textos de autores que imitam poetas, filósofos, historiadores ou oradores e uma terceira parte tratando das maneiras de imitar. A obra, no entanto, foi completamente perdida e o que restou dela e é reconhecido como autêntico foi uma descrição em uma carta, mas tarde publicada em versão bilíngue (grego e francês) sob o título de De l’imitation (1981). No primeiro livro do tratado, definições sucintas de duas noções são apresentadas: a de imitação, claro, e a de emulação. “A imitação é a ação de reproduzir o modelo nas regras.” “A emulação é o impulso ativo da alma, colocada em movimento pela admiração daquilo que, para ela, parece belo” (Halicarnasse, 1992, p. 27)23. A imitação deve supor a observação de regras muito precisas que se aprende nas escolas de retórica, enquanto a emulação é o simples desejo de atingir aquilo que foi reconhecido como belo nas obras das outros. Para ilustrar de outra maneira “imitação” e “emulação”, Dionísio de Halicarnasso relata um acontecimento real que adaptamos abaixo. Zeuxis, reputado pintor em Crotone, tinha a tarefa de pintar Helena de Tróia em sua nudez. Nada fácil, tratando-se da mulher mais bela que já existiu. No dia em que iria começar seu trabalho, os habitantes da cidade o enviaram jovens moças para que ele as visse nuas. Já                                                                                                                 23

“L’imitation est l’action de reproduire le modèle dans les règles”. “L’émulation est l’élan actif de l’âme, mis en mouvement par l’admiration de ce qui lui paraît beau.”

 

 

132  

AS  QUATRO  SIMILITUDES   Capítulo  3  

que elas não eram todas belas, certamente bem distantes da beleza de Helena, Zeuxis, na sua sabedoria, concentrava seus esforços em reunir em uma só imagem o que em cada uma delas merecia ser reproduzido (ibid., p. 32)24. A emulação se configurava como o desejo de extrair e atingir certo modelo imaginário, enquanto a imitação seria o gesto concreto de reproduzir o que cada uma das moças tinha de mais belo. Na terceira parte do seu livro, Dionísio de Halicarnasso enumera aspectos a serem imitados em diversos autores. Para uma imitação verdadeira e pessoal, é preciso que haja modificação no interior daquilo que o modelo tem de melhor (ibid., p. 32). Halicarnasse incentiva ainda que se tome como exemplo a habilidade de Homero em “pintar” os costumes sociais, o vocabulário e as ideias de Pindare, o rigor da composição de Simonide ou a propriedade em matéria de caráter e emoção encontrada em Ésquilo. O escritor grego apresenta e coloca em valor aspectos dos autores de poemas, de tragédias e de comédias, além das qualidades que ele encontra em historiadores, filósofos e eloquentes oradores. Mais ou menos na mesma época em que Halicarnasso esboçava as distinções essenciais entre imitação e emulação, isto é, meados do século I d.C., o professor de retórica e escritor Marcus Fabianus Quintilianus, conhecido por Quintiliano, discorria sobre o tema da imitação no décimo livro do quarto volume de Instituição Oratória. Não é uma regra geral da vida querer fazer nós mesmos aquilo que aprovamos nos outros? É assim que, para se habituar a escrever, as crianças repassam sobre as letras que traçamos; é assim que os músicos se guiam pela voz doe seus professores, os pintores sobre as obras de seus precursores, os camponeses sobre os procedimentos de cultivo que já foram testados; vemos, enfim, todas as disciplinas, no início, se referirem a um modelo. (Quintiliano, 1934, p. 57)25.

Mas logo nas primeiras páginas, Quintiliano ressalta o risco que corre uma imitação que não seja regulada com precaução e judiciosamente. Porém, antes de tudo, a imitação sozinha não é suficiente, quando ela será somente uma marca de preguiça de espírito de se contentar com aquilo que os outros acharam. [...]. Da mesma maneira que alguns pintores se aplicam unicamente em copiar quadros ajudados por medidas e linhas, também seria vergonhoso contentar-se em igualar o modelo que imitamos. (ibid., p. 57-58)26.

                                                                                                                24

Os pintores franceses François-André Vincent (1746-1816) e Victor Mottez (1809-1897) representaram em suas obras a cena de Zeuxis frente às suas modelos. 25 “N’est-ce pas une règle générale de la vie de vouloir faire nous-mêmes ce qui nous approuvons chez les autres ? C’est ainsi que, pour s’habituer à écrire, les enfants repassent sur des lettres qu’on leur a tracées ; c’est ainsi que les musiciens se règlent sur la voix de leur professeurs, les peintres sur les ouvrages de leurs devanciers, les paysans sur les procédés de cultures qui on fait leurs preuves ; bref, nous voyons toutes les disciplines, pour le début, se référer à un modèle.” 26 “Or, avant tout, l’imitation toute seule ne suffit pas, quand ce ne serait que parce que c’est une marque de paresse d’esprit, que de se contenter de ce que d’autres ont trouvé. (…) De même que certains peintres

 

133  

AS  QUATRO  SIMILITUDES   Capítulo  3  

 

Embora não tenha mencionado a emulação, a imitação em Quintiliano apresenta atributos próximos aos apresentados na emulação. Ele diz que, mesmo entre aqueles que não almejam atingir o ápice ou o auge naquilo que fazem, é necessário rivalizar com seus predecessores. Pois, qualquer opção é melhor que simplesmente “seguir a corrente”, pois, mesmo que nos igualemos, “necessariamente estamos sempre atrás de alguém que seguimos” (ibid., p. 59)27. O autor aponta ainda outra questão: a cópia perfeita é impossível e inviável. E acrescenta que, “geralmente é mais fácil fazer mais que fazer igual” (ibid., p. 59)28. Nem mesmo a natureza consegue reproduzir perfeitamente a identidade das coisas, observa o autor. Quintiliano propõe ainda, dessa vez se reportando especificamente à literatura, que a imitação seja como um empréstimo, uma apropriação das qualidades de escritores. Citando exemplos precisos de escritores de diversos gêneros e seus principais atributos, Quintiliano não vê nenhum inconveniente em tomar como modelo um ou mais escritores. Apropriar-se daquilo que cada um tem de melhor e fazer o uso nos lugares convenientes, parece mais simples que ater-se a apenas uma fonte (ibid., p. 67)29. A noção de imitação de Quintiliano contém, para nós, elementos essenciais do que nesta pesquisa se compreenderá como emulação. Nos apropriamos das ideias de Quintiliano quando diz que é preciso extrapolar a matéria bruta na qual trabalhamos, no caso, a palavra, e enriquecer, transformar a imitação, agregando mais elementos e vigor em seu interior. Mas a imitação, não cessarei de repetir, não deve se limitar às palavras. Nossa inteligência deve dirigir nossa atenção à arte com a qual os grandes oradores adaptaram suas palavras às circunstâncias e às pessoas, sobre seus desígnios, sobre o plano, sobre a maneira pela qual tudo contribui à vitória, mesmo aquilo que parece destinado a agradar: maneira pela qual eles apresentam o exordium [exposição, primeira parte de um discurso], método e variedade da narração, vigor na demonstração e na contestação, ciências à tocar todo gênero de sentimentos, mesmo o talento através do qual eles atraem, para serem úteis a seus clientes, os aplausos do auditório, aplausos honrosos quando são espontâneos, não provocados. Se observarmos bem todos esses pontos, seremos verdadeiramente capazes de imitar (ibid, p. 67)30.

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                          s’appliquent uniquement à copier des tableaux à l’aide de mesures et de lignes, il serait honteux également de se contenter d’égaler le modèle que l’on imite.” 27 [...] “nécessairement l’on est toujours derrière quelqu’un que l’on suit.” 28 [...] “généralement, il est plus facile de faire plus que de faire de même.” 29 Quintiliano toma como exemplo: o rigor de Cesar, a aspereza de Célius, a precisão de Polliun e o gosto de Calvus (ibid., p. 67). 30 “Mais l’imitation, je ne cesserai de le répéter, ne doit pas se borner aux mots. Notre intelligence doit porter notre attention sur l’art avec lequel ces grands orateurs ont adapté leur parole aux circonstances et aux personnes, sur leur dessein, sur le plan, sur la manière dont tout contribue à la victoire, même ce qui semble destiné à plaire : façon dont ils présentent l’exorde, méthode et variété de la narration, vigueur dans la preuve et la réfutation, sciences à toucher tout les genres de sentiments, talent même avec lequel ils attirent, pour être utile à

 

 

134  

AS  QUATRO  SIMILITUDES   Capítulo  3  

c) Mutação e distância A emulação, tal como Michel Foucault a apresentou, abandona parcialmente seu apego à causalidade. Não é mais “escrava” da relação modelo-cópia. Foucault enfatiza, em sua definição de aemulatio, aspectos que concernem à noção de espaço. A segunda forma da similitude é a aemulatio: uma espécie de conveniência, mas que fosse liberada da lei do lugar, e atuasse, imóvel, na distância [...]. Através desta relação de emulação, as coisas podem se imitar de uma extremidade a outra do universo sem encadeamento nem proximidade: pela sua reduplicação em espelho, o mundo suprime a distância que lhe é própria; 31 assim triunfa sobre o lugar que é dado a cada coisa. (Foucault, 1966, p. 34) .

Aemulatio será um tipo de semelhança sem contato que produzirá um efeito de reflexo e espelho. Existe, no entanto, uma recusa a causalidade, quando ele diz que nem sempre é possível saber qual é a imagem original e qual é a imagem projetada. A emulação é uma espécie de desdobramento fundamental do mundo, como a imagem de dois gêmeos que se assemelham perfeitamente sem que seja possível dizer quem levou ao outro sua semelhança32 (ibid., p. 35). Sob um prisma mais filosófico ou mesmo metafísico, æmulatio, na apresentação de Foucault pode ser entendida também como um combate de formas similares que foram separadas de uma totalidade, seja pelo peso da matéria, seja pelas distâncias dos lugares. E, nesse duelo, as figuras que se afrontam se apoderam uma da outra. O similar envolve o similar, que por sua vez será envolvido por algo similar e assim infinitamente. Os anéis da emulação, ao contrário dos elementos da convenientia, que veremos no final deste capítulo, não formam uma cadeia, mas círculos concêntricos, refletidos e rivais (ibid., p. 36). O termo “emulação” neste trabalho será entendido a partir de suas noções vizinhas: a “mimeses” e a “imitação”. A mimeses nos remete a um sentido que, apesar de parecer obsoleto por se reportar às noções platônicas de Ideal, ainda permanece vivo na nossa persistente vocação em sacralizar o gesto artístico e no desejo de superação de modelos artísticos reais ou imaginários. A mimeses aristotélica nos dá a liberdade de imitar sem o compromisso de igualar, ou seja, a imitação pode ser também criação. A imitação, em nosso trajeto em direção à emulação, vai afirmando sua inclinação à rivalidade. Seja negativa ou positiva, a rivalidade sempre brotará de uma admiração, que pode vir sob a forma de cuidado,                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                           leurs clients, les applaudissements de l’auditoire, applaudissements honorés quand ils sont spontanés, non provoqués. Si nous voyons bien tous ces points, nous seront vraiment capables d’imiter.” 31 “La seconde forme de similitude, c’est l’aemulatio une sorte de convenance, mais qui serait affranchie de la loi du lieu, et jouerait, immobile, dans la distance. […]. Par ce rapport d’émulation, les choses peuvent s’imiter d’un bout à l’autre de l’univers sans enchaînement ni proximité : par sa réduplication en miroir, le monde abolit la distance qui lui est propre ; il triomphe par là du lieu qui est donné à chaque chose.” 32 Exemplo retirado por Foucault de uma obra de Parecelso chamada Liber Parmirum.

 

135  

AS  QUATRO  SIMILITUDES   Capítulo  3  

 

zelo, ou brotar de algum tipo de inveja ou despeito. A imitação pura, além de impossível, não deve ser desejada. O modelo não deve ser imitado, mas se converter em um “impulso ativo” que “coloca em movimento” o espírito, como entendeu Dionísio de Halicarnasse. A emulação é como um estímulo para a superação e pressupõe a extração daquilo que existe de melhor no ou nos modelos seguidos. 3. Analogia Quando exprimimos alegria, produz-se uma extensão de todos os traços do rosto a partir dos olhos, enquanto para o sofrimento os traços se concentram em direção a eles. Quando exprimimos amor, todos os traços do rosto se estendem paralelamente à linha de ligação dos olhos e se alargam suavemente; se for ódio ou cólera que os animam, eles se franzem todos em direção à linha central, de modo que as rugas horizontais da testa se chocam perpendicularmente à linha dos olhos. Disso podemos deduzir com certeza a expressão dos mesmos estados de alma nos anjos, supondo que essa expressão seja tão perfeita neles quanto lhos permite sua forma perfeita. Assim, a esfera de um anjo se dilatará em todos os pontos ao exprimir alegria, ao passo que se retrairá inversamente na expressão da dor; para exprimir amor, ela se estenderá na forma de disco em direção a seu objeto, enquanto no ódio se estenderá como uma lança que se afasta de seu objeto. A cabeça do homem não é capaz dessas expressões porque ela representa apenas, por assim dizer, um anjo aleijado e em parte esclerosado; por isso o homem busca exteriorizar melhor sua expressão com o auxílio de todo o corpo; na alegria ele não se contém e salta em todas as direções, a dor o faz curvar-se sobre si mesmo, no amor ele abre os braços para acolher o objeto de seu desejo, no ódio brande o punho cerrado e se lança com ímpeto para golpear o adversário. Com todos esses movimentos, o homem não está pronto para se tornar um anjo. (Fechner, 1998, p. 32-33).

Embora não seja propriamente uma exaltação da semelhança, muito pelo contrário, essa citação ilustra, de maneira peculiar, uma forma de pensamento analógico. As similitudes germinam, ou não, da aproximação de dois seres, dois corpos. O filósofo e psicólogo alemão Gustav Flechner (1801-1887), descreve detalhadamente traços que nos diferem das “criaturas solares superiores”, chamadas por ele de anjos. No entanto, por mais que a diferença seja central, a força da analogia só aproxima coisas que tenham traços similares, sejam quais forem suas naturezas. O que une os anjos e os homens são os sentimentos em si. O que os diferencia é o modo como exteriorizam, e aí se estabelecem as analogias. De uma maneira menos alegórica que o exemplo anterior, mas não menos interessante, estão as analogias no Renascimento, citadas por Foucault (1966), que deram origem a Anatomia Comparada. Por exemplo, Pierre Belon em 1555, no sexto capítulo de L'Histoire de la nature des oyseaux, avec leurs descriptions et naïfs portraicts retirez du naturel33, colocou                                                                                                                 33

O título do livro pode ser traduzido para o português como História da Natureza dos Pássaros, com Suas Descrições e Ingênuos Retratos Retirados de seus Modelos Naturais.

 

 

136  

AS  QUATRO  SIMILITUDES   Capítulo  3  

em paralelo os esqueletos de um homem e de um pássaro, ou a analogia entre o homem e uma planta estabelecida pelo filósofo, médico e botânico Andrea Cesalpino (1519-1603) e comentado por Hendrik de Wit. Como as plantas se assemelham aos animais, nós podemos observar que as lianas entrelaçam as árvores da vizinhança assim como as mãos [...]. Podemos comparar a medula do caule de uma planta ao cérebro, que é a parte mais nobre de uma planta. É ela que produz as sementes e os germes. (Wit, 1992, p. 351)34.

A analogia deve ser, entre as quatro similitudes apresentadas, aquela que mais se abre ao espírito científico e, ao mesmo tempo, é a que mais se abre a verdadeiros equívocos. Com um pouco de descuido, torna-se laxista, comportando procedimentos demasiadamente permissivos. Isso acontece talvez por ser ela a similitude mais usada no senso comum como sinônimo de semelhança. Mas a analogia, riscos à parte, tem importante valor cognitivo como modo de conhecimento e reflexão. Nos debruçaremos de imediato no aparente paradoxo da noção. A força de sua univocidade, mas também de sua equivocidade, aparece expressa em definições pinçadas de fontes de variadas origens e épocas. A reflexão sobre sua etimologia nos remete a acepções matemáticas que, por sua vez, nos envia à Antiguidade Clássica. Após uma rápida passagem por visões orientadas por uma tradição religiosa, apresentamos as analogias de experiência de Kant, enfatizando a unidade da percepção a partir de sua ligação com o tempo e seus modos. Michel Foucault amplifica as significações apresentadas e enfatiza algumas das características que a distinguem da emulação e da convenientia, apresentada na parte seguinte. a) Unívocos e Equívocos Composto pela preposição ana e pelo substantivo logía, o termo não trata de uma simples relação, mas de uma relação da relação ou uma igualdade mediada (Auroux, 1998, p. 80). Ana significa “no alto”, “em direção ao alto”, o que remete a ideia de passagem ou superação (Secretan, 1984, p. 6). A analogia vai transpor, de certa forma, as barreiras entre os diferentes domínios e pode aproximar formalmente coisas materialmente intransponíveis. O Littré (1990) remete à ideia de uma adequação de valores entre os termos ou “proportio, relação das partes entre elas, e com o todo” 35 . Sua primeira significação concerne uma                                                                                                                 34

“Comme les plantes ressemblent aux animaux, on peut observer que les lianes enlacent en quelque sorte les arbres du voisinage ainsi que les mains […]. On peut comparer la moelle de la tige d’une plante au cerveau et c’est donc la partie la plus noble d’une plante. C’est elle que produit les graines et les germes.” 35 “Proportio, rapport des parties entre elles, et avec leur tout”.

 

137  

AS  QUATRO  SIMILITUDES   Capítulo  3  

 

identidade de relação de quatro termos ou mais, observados dois a dois e tende a designar toda semelhança entre dois grupos de dois termos (Rey, 2005, p. 300). O principio de analogia, segundo a Encyclopédie philosophique universelle (1998, p. 80) foi elaborado na escola de Pitágoras e é teorizado como proporção aritmética, geométrica ou harmônica36. Com o passar do tempo, a analogia vai se distanciando de seu embasamento matemático e instaura-se em novas ordens. Ela passa a ser aplicada a todo raciocínio em que o espírito humano deduz a partir de uma semelhança observada entre objetos diversos em qualidade e quantidade, de ordens e naturezas que podem ser muito distintas. Jean François Richard, a define da seguinte maneira: A analogia consiste em utilizar conhecimentos adquiridos sobre certos fenômenos ou situações para aplicá-los a outros fenômenos visando compreendê-los [...]. A analogia permite abordar o desconhecido a partir daquilo que conhecemos: ela tem, dessa maneira, um grande valor adaptativo. (Richard apud Sander, 2000, p. III)37.

“Neste sentido, a analogia é um dos modos de raciocínio mais essenciais e mais incertos.” (Rey, 2005, p. 300)38. Seu uso tende a generalizar sua significação e acaba por se tornar uma simples semelhança encontrada entre dois ou mais objetos de pensamento essencialmente diferentes. Nesse caso, podemos estabelecer elos entre objetos que não apresentam nenhuma semelhança global ou geral (ibid., p. 302). A abertura se torna ainda maior quando constatamos que, segundo o tipo de discurso, a analogia encontra significações muito variadas e transita ao longo do tempo e segundo planos filosóficos, filológicos, teológicos, biológicos, estéticos, etc. Esse alargamento da noção de analogia gera, há séculos, vários incômodos, como mostra o Dictionnaire de la langue française du seixième siècle (1932). Na rubrica “analogie”, o filólogo do século XVI Henri Estienne, no que concerne a literatura, diz evitar o emprego dessa palavra, por ela ser ligada à prática, que não lhe agrada, de confrontação textos antigos e modernos. As analogias podem também, muitas vezes, comportar uma falta de rigor, na medida em que se omitem as diferenças que as tornam improváveis ou não pertinentes.                                                                                                                 36

Proporção aritmética: quando o primeiro termo excede o segundo tanto quanto o segundo excede o terceiro (a - b = b - c); proporção geométrica: quando o primeiro se relaciona ao segundo como o segundo ao terceiro (a/b = c/d); proporção harmônica: quando o primeiro excede o segundo por uma parte dele mesmo e o segundo o terceiro pela mesma parte (a - b = a/x, b - c = c/x). 37 “L’analogie consiste à utiliser des connaissances acquises sur des phénomènes ou des situations pour les appliquer à d’autres phénomènes pour les comprendre […]. L’analogie permet d’aborder l’inconnu à partir de ce que l’on connait : elle a donc a priori une valeur adaptative majeure.” 38 “En ce sens, l’analogie est un des modes de raisonnement les plus essentiels et le plus incertains.”

 

 

138  

AS  QUATRO  SIMILITUDES   Capítulo  3  

A dificuldade engendrada pela imprecisão do raciocínio por analogia não impede que ele se torne um lugar comum no discurso argumentativo da retórica. Os textos religiosos, filosóficos, literários ou políticos recorrem ao princípio da analogia como a uma figura de estilo, particularmente eficaz, por ela parecer se repousar sobre um raciocínio simples, rigoroso e acessível ao senso comum (Rey, 2005, p. 303)39.

O fato da palavra comportar algo de unívoco – que fixa o termo em uma única definição – e algo de equívoco – que o dilui diversas significações sem grandes relações entre elas –, perturba profundamente a legitimidade dessa similitude. [...] seria ela uma relação objetiva entre objetos [...] ou uma associação de imaginação entre representações mentais, onde o espírito reagrupa o dado exterior em categorias de maneira arbitrária, de acordo com critérios vagos e flutuantes de semelhança? (Rey, 2005, p. 303)40.

Assim, a validade das analogias nem sempre é garantida por uma certeza empírica. Apesar disso, entretanto, elas aparecem no quadro da apreensão do mundo pelo individuo e é graças à sua abertura, com todos os riscos que comporta, que o pensamento encontra liberdade para se movimentar. Quando são acompanhadas por pressupostos sólidos, as analogias tendem a se tornar férteis e interessantes. De um ponto de vista estético, elas podem enriquecer nossa contemplação, restituindo sua integralidade, mesmo que seu conhecimento não seja indispensável para a apreciação do valor de certa obra (Souriau, 1990, p. 111). Em uma primeira abordagem, o conceito de analogia parece ser somente um conceito escolar razoavelmente esquecido e de pouca importância. Não obstante, como principio dominante na esfera das categorias da realidade, sensível e supra-sensível, ele contém a expressão conceitual da vivência do mundo, plenamente qualificado e valorado, referenciado na transcendência do homem medieval; ele é a expressão conceitual da forma definida, ancorada na relação primordial da alma em Deus, na existência interior como ela foi vivida na Idade Média, em uma rara plenitude. (Heidegger apud Secretan, 1984, p. 6)41.

                                                                                                                39

“La difficulté engendrée par l’imprécision du raisonnement par analogie n’a pas empêché qu’il devienne un lieu commun du discours argumentatif, de la rhétorique. Les textes religieux, philosophiques, littéraires ou politiques recourent au principe d’analogie comme à une figure de style particulièrement efficace, puisqu’elle feint de reposer sur un raisonnement simple, rigoureux et accessible au sens commun.” 40 […] “s’agit-il d’un rapport objectif entre objets [...] ou d’une association d’imagination entre des représentations mentales, l’esprit regroupant le donné extérieur en catégories de manière arbitraire, selon de critères flous et fluctuants de ressemblance ?” 41 “Au premier abord, le concept d’analogie semble n’être qu’un concept d’école passablement effacé et de peu d’importance. Pourtant, comme principe dominant la sphère catégoriale de la réalité, sensible et suprasensible, il contient l’expression conceptuelle du monde vécu, pleinement qualifié et valeureux, référé à la transcendance, de l’homme médiéval ; il est l’expression conceptuelle de la forme définie, ancrée dans la relation primordiale de l’âme à Dieu, de l’existence intérieure comme elle fut vécue au Moyen Age dans une rare plénitude.”

 

139  

AS  QUATRO  SIMILITUDES   Capítulo  3  

 

Para reaver a univocidade, digamos, plena da analogia é necessário se reportar aos seus fundamentos, por um lado sob os preceitos construtores da noção na Grécia antiga e por outro lado sob a orientação do pensamento religioso que predominou na Idade Média. A analogia na antiga Grécia é portadora tanto da noção de proporção quanto da relação entre elementos que parecem incomensuráveis. Sua ideia revela a grande aposta grega na unidade harmoniosa do Todo e sua mediação frequentemente ligada à ideia de Natureza e de Cosmos. É o que Secretan (1984, p. 19) apresentou como “analogia do Uno”. Platão transpõe suas significações de uma esfera matemática para uma rede de considerações cosmológicas. A analogia é estendida ao mundo e suas coisas, na medida em que ele se organiza como cópia e modelo, como estabelecimento de uma igualdade mediada entre domínios heterogêneos. Assim ela vai permitir o acesso ao desconhecido através de uma projeção proporcional daquilo que é conhecido. No livro IV da República (1948, p. 258, 434 c, d, e), Platão apresenta um sistema de correspondências entre o homem e o Estado, como uma relação de semelhanças entre as partes e o todo. A Justiça, definida como unidade da sabedoria, comporta analogicamente, a unidade do bem e a diversidade das virtudes. Segundo Aristóteles, a analogia tem seu principio na determinação de um termo que opera a mediação entre as coisas e as relações dessemelhantes. Aristóteles distingue uma analogia quantitativa (proporcionalidade no sentido estrito da palavra) de uma analogia qualitativa (que pode existir, por exemplo, entre figuras geométricas ou órgãos de seres vivos diferentes) (Hoffding, 1931, p. 8). Ele autoriza, assim, o conhecimento não científico entre os diferentes gêneros do saber. Aristóteles propõe que as atividades humanas sejam regidas por um principio matemático de analogia, visando assim uma norma rigorosa que formalizasse uma concepção de justiça em uma proporção analógica (Rey, 2005, p. 301). A tradição religiosa também aborda a noção de analogia em uma perspectiva que se pretende unívoca, pelo fato de se apoiar em certos termos fixos. Em São Tomás de Aquino, por exemplo, o conceito de analogia, assim como o de convenientia, não é descrito como teoria, mas utilizado em função dos problemas e das questões que ele estabelece. Em Comentário de Sentenças, o autor distingue dois tipos de analogia: uma quando os dois análogos dividem alguma característica (analogia de atribuição) e outra quando um dos análogos imita o outro (analogia de imitação). Ele privilegia a primeira categoria e compara a relação entre Deus e suas criaturas com a relação das criaturas com suas qualidades (Ashworth, 2008, p. 33 e 38)42.                                                                                                                 42

A tradição religiosa do período medieval, que encontra referências comuns nas culturas da Torá, dos evangelhos e do Corão, utiliza a analogia como modelo para se pensar a comparação entre o homem e Deus. Um

 

 

140  

AS  QUATRO  SIMILITUDES   Capítulo  3  

De acordo com Secretan (1984, p. 48) a tradição religiosa nos apresenta ainda a noção de analogia entis. Desta última brotam duas formas de analogia: a horizontal, que tem como principio formal a relação dos seres entre eles, e a analogia vertical, que se funda na relação das criaturas com o criador. Nesses dois tipos de relação a analogia é a medida e o meio. A analogia horizontal da proporção entre “o outro e o outro” é transpassada pela analogia vertical da semelhança e dessemelhança entre criatura e criador. Obviamente, considerando todas os entendimentos possíveis de analogia, a aplicação desta noção vai se revelar de uma incômoda multiplicidade que só encontrará certa estabilidade quando se liga ao vasto entendimento do senso comum, na observação de semelhanças entre coisas ou fatos distintos. Mas essa significação ampla pode provavelmente se chocar com algumas outras noções e, por isso, multiplicar os equívocos. Cabe, então, apresentar algumas distinções: - Analogia e Correspondência Como Souriau (1990, p. 111) observou, as noções de analogia e correspondência são vizinhas, aproximadas pela noção comum de semelhança43. Entretanto, quando as coisas se correspondem, elas sugerem uma relação distinta da analogia na medida em que esta última trata de coisas desiguais e proporcionais. A correspondência sugere uma relação de complementaridade enquanto a analogia mantém um nível de tensão não abrandada entre as partes. A correspondência pode se dar entre uma forma e um conteúdo, uma função e uma competência, uma expectativa e um evento, etc. (Secretan, 1984, p. 13-14). A correspondência parece se ligar mais diretamente à similitude convenientia, a próxima a ser estudada. - Analogia e Transposição Também um conceito vizinho, transposição, se aproxima da analogia pelo fato de ambos apresentarem semelhanças em meio à diferença. Um conjunto semântico pode ser transposto, de uma língua à outra, com as adaptações necessárias para uma boa tradução. Seja na transposição de um discurso de um estilo para outro, seja na passagem de uma melodia de                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                           ritmo especifico vai marcar a analogia medieval: o da afirmação (Deus é sábio) e o da negação (Deus não é sábio no senso humano do termo) e essa dialética marcará o que Secretan (1984, p. 32) chama de analogia do Ser. 43 Secretan (1984, p. 13) nota ainda que, em alemão, o termo Entsprechung designa tanto analogia quanto correspondência.

 

141  

AS  QUATRO  SIMILITUDES   Capítulo  3  

 

um tom para outro, todos os casos devem mostrar certa identidade na diferença. Essa diferença, porém, é puramente “circunstancial”, colore diferentemente uma mesma substância (ibid., p. 16). A analogia, por sua vez, concerne elementos mais distantes uns dos outros. A transposição se adequa mais confortavelmente com a similitude de emulação, apresentada mais acima. - Analogia e homologia Tratando das aproximações perceptivas entre as diferentes artes, Spampinato (2008, p. 91) distingue as relações analógicas das relações homólogas. As primeiras se definem como superficiais e aparentes enquanto as segundas são as que apresentam semelhanças de origem mais profunda. Spampianto ilustra de maneira curiosa essas distinções citando como exemplo de homologia os membros superiores do homem e as asas de um pássaro e, como analogia, as asas de um inseto e as de um pássaro. Embora tenham certo grau de clareza, essas distinções apresentadas acima podem adquirir alguma flexibilidade, quando tratar da aproximação de obras de arte distintas, na segunda parte desta tese. Sua rigidez poderia impedir o pensamento de se movimentar com liberdade no contato entre as artes e dessa maneira restringir análises à óbvias e sistemáticas considerações de ordem formal ou da natureza dos materiais. Se, por exemplo, aderimos firmemente à conceptualização apresentada da homologia, toda analogia poderia ser anulada na segunda parte desse trabalho. Logo, consideraremos homólogas somente as relações onde existir algum tipo de semelhança muito palpável e evidente. b) Analogias da Experiência Quando nos voltamos às linhas gerais da história da analogia, vemos que, sobretudo na Idade Média, havia um forte elo entre lógica e mística no interior da noção. Esse elo, no entanto, vai se enfraquecendo até que se torna uma cisão radical. A analogia, que antes se fundava em relações entre Deus e as criaturas, passa a se basear em uma razão que se toma por unívoca. (Secretan, 1984, p. 53). Mas essa razão, longe de ser somente uma pura afirmação da lógica, vai habitar a sensibilidade, a potência cognitiva e a experiência. Neste quadro, Kant apresenta as chamadas “analogias da experiência”. Se na Matemática a analogia se configura em fórmulas que estabelecem a igualdade de duas relações de quantidade, em Filosofia as relações se dão em uma instância qualitativa. O quarto  

 

142  

AS  QUATRO  SIMILITUDES   Capítulo  3  

termo de uma regra de três, em Filosofia, não se configura como termo fixo constitutivo, e sim como regulador e qualitativo. Uma analogia da experiência será uma maneira de se compreender a unidade da experiência a partir da síntese das percepções, pois “a experiência só é possível mediante uma representação da conexão necessária das percepções” (Kant, 1996, p. 166). Kant apresenta três tipos de analogia associadas às três formas possíveis de inscrever algo no tempo44: permanência, sucessão e simultaneidade. Resumimos da seguinte maneira: - Primeira analogia: princípio da permanência da substância O princípio da permanência se baseia na necessidade da existência de algo que sirva de referência para que exista sucessividade e simultaneidade. O principio da permanência parte do seguinte questionamento: como poderíamos determinar se um objeto é simultâneo ou sucessivo sem se fundamentar em algo que está sempre presente, que permanece? (ibid., p. 254, 170). A permanência é a base das relações de sucessividade e simultaneidade45. As mudanças só podem ser percebidas com relação a algo que permanece. No princípio da permanência se encontra, principalmente, uma condição para as relações, mais do que as relações em si. - Segunda analogia: principio da sucessão cronológica seguindo a lei da causalidade Sendo toda apreensão sucessiva, é a partir da lei de causa e de efeito que se dão todas as mudanças. Essa segunda categoria de analogia de Kant se liga à continuidade temporal. Mas uma continuidade temporal que não se reduz a um simples princípio de ordem, pois a percepção das coisas às vezes se antecipa e se dá quase simultaneamente (Marty, 1980, p. 95).

                                                                                                                44

Os modos de tempo indicam, segundo Marty (1980, p. 82), simplesmente as formas de o homem habitar o tempo e mundo em uma existência que permanece, se sucede ou é simultânea à outra. 45 O tempo como algo permanente em Kant é uma retomada do « tempo absoluto » em Newton, segundo Marty (1980, p. 85).

 

143  

AS  QUATRO  SIMILITUDES   Capítulo  3  

 

- Terceira analogia: princípio da simultaneidade seguindo a lei de ação recíproca ou da comunidade “Duas coisas são simultâneas quando, pela percepção de uma somos conduzidos à percepção da outra e, assim, reciprocamente.” (ibid., p. 97)46. É a existência do diverso em um único ser. É importante notar que as analogias da experiência se interligam e comportam uma noção de síntese. Segundo Kant (1996, p. 186), essas três analogias não são nada além da determinação de fenômenos no tempo de acordo com seus três modos: o próprio tempo como uma grandeza (duração), a relação que intervém no tempo como uma série (sucessão) e a relação interna do tempo como o conjunto global de toda a existência (simultaneidade). Em outras palavras, as analogias de Kant mostram que: a) tudo o que existe só existe na medida em que oferece uma dimensão de permanência; b) todo evento supõe algo em um estado precedente; c) o diverso pode estar simultaneamente em uma relação recíproca. Marty (1980, p. 515) apresenta a analogia em Kant como identidade de relações entre realidades que podem ser completamente dessemelhantes. A analogia do filósofo alemão é renovada e tratada como procedimento de transformação. Quando ele fala em identidade é para que seja possível falar em transformação, em transposição de uma ordem de realidade para outra. No caso desta pesquisa, as analogias de Kant nos mostra uma maneira comum ou semelhante através da qual os fenômenos musicais e visuais se inscrevem na experiência, a partir de sua relação com o tempo e seus três modos47.

                                                                                                                46

“Deux choses sont simultanées, lorsque, de la perception de l’une, on est conduit à la perception de l’autre, et réciproquement.” 47 É evidente que uma compreensão mais ampla da analogia em Kant não se resume à relação com o tempo. Outras noções, como as de substância, substrato, apercepção e percepção, atuam decisivamente nas analogias do filósofo alemão. No entanto, entender a interferência de cada uma dessas noções e outras mais no quadro desta pesquisa nos parece exaustivo e inviável.

 

 

144  

AS  QUATRO  SIMILITUDES   Capítulo  3  

c) Sobrepondo Diferenças Nessa analogia se superpõem-se convenientia e æmulatio. Tal como esta, assegura o maravilhoso confronto das semelhanças através do espaço; mas, tal como aquela, de ajustes, de liames e de junção. Seu poder é imenso, pois as similitudes de que trata não são as similitudes visíveis e maciças das próprias coisas; basta-lhe que sejam as semelhanças mais sutis das relações. Assim alijada, ela pode tramar, a partir de um mesmo ponto, um número indefinido de parentescos. [...]. Esta reversibilidade, que é também uma polivalência, confere à analogia um campo universal de aplicação. Graças a ela, todas as figuras do mundo podem se aproximar. Existe, entretanto, nesse espaço sulcado em todas as direções, um ponto privilegiado: ele é saturado de analogias (cada uma delas pode encontrar o seu ponto de apoio) e, ao passarem por ele, as relações invertem-se sem se alterar. (Foucault, 1966, p. 36-37)48.

Foucault cita exemplos retirados de diversas fontes para caracterizar a analogia, que vão desde a aproximação entre a anatomia de um homem e de uma planta, até uma apoplexia (hemorragia cerebral) e uma tempestade. O espaço das analogias, o mundo, é um espaço de irradiação. O homem é englobado por esse mundo e, inversamente, ele transmite as semelhanças que recebe dele (ibid., p. 38). O conceito de analogia oscila entre a semelhança que ela significa e a dessemelhança que ela transpõe, sem a rejeitar. A univocidade dos seus fundamentos é tão verdadeira e visível quanto a sua abertura às certezas menos empíricas e, por consequência, próximas à equivocidade. Inicialmente ligada à proporção matemática, a analogia encontra, em um segundo momento, sua aplicação estendida a saberes de todas as naturezas. É nesta dimensão que ela se afirma como instrumento de “descoberta” do mundo centrado em suas semelhanças e diferenças. O Uno, Deus, a razão e a experiência sensível se alternam, e muitas vezes se sobrepõem, na constituição dos referenciais da analogia. A partir daí, ela se torna proporção, atribuição, imitação ou experiência e são conduzidas por variados princípios, podendo ser inscritos como permanência, sucessão ou simultaneidade. Graças a esses princípios e referências, a analogia se torna algo que une aquilo que não se assemelha. “A analogia é uma

                                                                                                                48

“En cette analogie se superposent convenientia e æmulatio. Comme celle-ci, elle assure le merveilleux affrontement des ressemblances à travers l’espace, mais elle parle, comme celle-là, d’ajustements, des liens et de jointure. Son pouvoir est immense, car les similitudes qu’elle traite ne sont pas celles, visibles, massives, des choses elles-mêmes; il suffit que ce soient les ressemblances les plus subtiles des rapports. Ainsi allégé, elle peut tendre, à partir d’un même point, un nombre indéfini de parentés. […] Cette réversibilité, comme cette polyvalence, donne à l’analogie un champ universel d’application. Par elle, toutes les figures du monde peuvent se rapprocher. Il existe cependant, dans cet espace sillonné en toutes les directions, un point privilégié : il est saturé d’analogies (chacune peut y trouver l’un des ces points d’appui) et, en passant par lui, les rapports s’inversent sans s’altérer.”

 

145  

AS  QUATRO  SIMILITUDES   Capítulo  3  

 

ponte sobre uma fronteira – que não se encontra abolida por isso; pois a proporção racional não destrói as diferenças reais.” (Secretan, 1984, p. 8)49. Entre as quatro similitudes apresentadas nenhuma se liga mais à diferença que a analogia. O caráter de “pano de fundo” da diferença, embora apareça em cada uma das similitudes, será mais pronunciado na analogia. Pois o traço de semelhança se encontra predominantemente nas relações, mais que nos próprios termos. 4. Convenientia Convenientia é o equivalente latino para conveniência. Diferentemente de æmulatio e sympathia, seu equivalente em língua portuguesa tende a excluir algumas significações importantes para essa pesquisa, como veremos à seguir. Por isso, mantemos sua versão em latim. A noção de convenientia (ou convenance, do francês) é portadora de nuances que variam em função das tradições filosóficas e até no interior de textos de um mesmo autor. A convenientia tem sua origem no grego ὁµoλoíα e, de acordo com Cícero, é a disposição do homem em viver segundo a natureza e segundo a razão (Marianelli, 2008, p. 7). Esse sentido faz referência a uma cosmologia – correspondência, adequação, consonância e relação harmônica do ser com o cosmo – e a um sentido ético e moral, indicando ao homem a possibilidade de realizar sua felicidade vivendo de acordo com a razão e a natureza. Sua significação etimológica greco-latina a coloca no centro de uma demanda filosófica: o conhecimento como relação e como possibilidade de entender o mundo (ibid., p. 8). Apresentaremos diversas nuances que irão nutrir de significados a noção de convenientia e isso a partir de seu estudo em diversas fontes. Em um primeiro momento, levantamos questões mais gerais sobre a polissemia do termo, passando por certo número de acepções, na maioria das vezes complementares, algumas vezes divergentes. Em seguida, apresentamos alguns aspectos levantados por Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, que concernem direta e indiretamente convenientia como articulações entre o homem, a beleza, a natureza, a verdade e Deus. Em seguida, vemos alguns modelos teóricos de tipologias e concluímos com considerações de Foucault, que enfatizam a noção de espaço e movimento de convenientia e serão importantes para os desdobramentos que o termo terá neste trabalho.                                                                                                                 49

“L’analogie est un pont par dessus une frontière - qui ne s’en trouve pas abolie pour autant; car la proportion rationnelle ne détruit pas les différences réelles.”

 

 

146  

AS  QUATRO  SIMILITUDES   Capítulo  3  

a) Harmonia de Significações A noção de harmonia, em vários momentos, será o cerne da convenientia. É o caso da sua aplicação na moral estoica e na Estética Clássica50. Convenientia é, para os estoicos, um objetivo a ser atingido pelo sábio. É o bem soberano forjado na harmonia consigo mesmo e com a natureza51. A sabedoria do homem não vem de suas obras, e sim da maneira através da qual ele harmoniza suas ações com sua essência, ou seja, com aquilo que ele realmente é. Para a Estética Clássica, um conjunto belo é aquele em que as partes integrantes são convenientes umas às outras e todas são convenientes ao todo (Guenard, 2004, p. 15). Uma arte só é válida se evitamos as inconveniências criadas quando ligamos partes que não se acordam entre elas. A beleza deveria vir da harmonia (convenientia) das partes com o todo, conforme as determinações dos números, da proporcionalidade e da ordem, considerada como a lei absoluta da natureza. Ao contrário da moral estoica, onde a convenientia pressupõe uma harmonia subjetiva, a Estética Clássica tende a impedir que a marca do autor seja visível demais e a negar às apreciações subjetivas a decisão de considerar bela ou não uma obra. No século XVII francês, o termo convenance é recorrente e vasto, como mostra Florent Guenard (2004) quando apresenta suas aplicações na obra de Jean Jacques Rousseau52. O filósofo iluminista utiliza o termo em acepções que vão desde a descrição da ordem da natureza até as relações políticas, passando pela harmonia nas relações amorosas. A ideia de convenance de Rousseau determina uma ordem natural harmoniosa que se opõe às ordens artificiais construídas pela civilização, consideradas como normas sociais, nem sempre em conformidade com a moralidade. Por isso, o modelo a se imitar é a ordem natural. Rousseau valoriza a imitação da natureza e critica a imitação do homem pelo homem: “Tudo que sai das mãos do autor das coisas é bom: tudo degenera nas mãos dos homens.” (Rousseau apud Guenard, ibid, p. 40)53. As significações que os mais diversos dicionários de diferentes épocas trazem de convenientia, convenance ou conveniência, guardam certa harmonia. Das quatro similitudes, a                                                                                                                 50

Entendemos por Estética Clássica o conjunto de reflexões na antiguidade clássica sobre o que entendemos hoje como arte. 51 “Convenienter congruenterque que naturae vivere”, viver conforme a natureza e de acordo com ela (Cícero apud Guenard, 2003, p. 12). 52 Na introdução seu livro Rousseau et le travail de la convenance (Rosseau e a Ação da Conveniência), Guenard comenta as diversas acepções do termo que ele julga, por vezes, inconciliáveis. “A conveniência é incontestavelmente um equivoco” (“La convenance est incontestablement équivoque”) (2004, p. 10). O conceito de convenientia, de acordo com os domínios e épocas pelos quais ele transita, adquire diferentes formas e sentidos. 53 “Tout est bien en sortant des mains de l’auteur des choses: tout dégénère dans les mains des hommes.”

 

147  

AS  QUATRO  SIMILITUDES   Capítulo  3  

 

convenientia é a menos tensa no que concerne sua definição mais ampla. As noções de conformidade e de convenção ou acordo (as duas últimas têm a mesma raiz etimológica) são enfatizadas nos dicionários mais antigos ou em edições mais antigas, como o Dictionnaire de la langue française du seizième siècle (1932), o Caldas Aulete (1948) e o Trésor de la langue française (1978). Este último traz como primeira significação de convenance: “relação de conformidade entre duas ou várias coisas; acordo de uma coisa com uma outra, concordância”54. A convenance, acompanhada de sua versão inglesa agreement, foi incluída por Marc Parmentier, a partir dos conceitos de John Locke, como fundamento para o conhecimento: “Todo conhecimento consiste na percepção de uma relação de conveniência, ou ao contrário, de desconveniência das ideias.” (2002) 55. Agreement em Locke tem a particularidade de se aplicar tanto para as ideias entre elas quanto entre as ideias e as coisas. De acordo com o Vocabulário de Estética de Etienne Souriau (1990, p. 489), existe uma distinção entre o emprego do termo conveniência (convenance) no singular e no plural. As conveniências, no plural, são os pequenos deveres impostos pela sociedade na adaptação a funções e circunstâncias 56. O termo, nesta acepção, concerne à Estética na medida em que as artes e os artistas fazem parte de um todo social onde estão em jogo certas normas. Desta maneira, o termo pode também designar os pontos de contato entre uma obra e o país ou a época onde ela se encontra. Tanto no singular quanto no plural, a conveniência pode ser considerada como a boa relação entre uma obra, suas circunstâncias e a natureza de seu público. “A conveniência [convenance] consiste então em ter em vista seu público.” (ibid., p. 489)57. Nessa acepção, a conveniência compreende a escolha de um vocabulário que possa ser compreendido em seu meio. Considerando a adaptação da obra a ela mesma, ou seja, seus elementos internos, o termo ganha outro significado: A conveniência [convenance] é o acordo entre os elementos, que se convêm, quer dizer, se assessoram no efeito geral e à organização do conjunto. [...] A conveniência [convenance] é uma atividade quase orgânica, que faz com que todas as partes de uma obra se mantenham entre elas, e que o autor ou o artista não vai, para favorecer uma delas, perder de vista o todo no qual ela deve se integrar. (ibid., p. 489)58.

                                                                                                                54

““un rapport de conformité entre deux ou plusieurs choses, accord d’une chose avec une autre, concordance”.” “Toute connaissance consiste en la perception d’un rapport de convenance, ou au contraire de disconvenance des idées.” 56 O Novo Dicionário Aurélio (1986) traz a expressão “guardar as conveniências” significando: “não afastar-se das convenções sociais”. 57 “La convenance consiste donc à avoir l’égard à son public.” 58 “La convenance est l’accord entre les éléments, qui conviennent entre eux, c'est-à-dire concurrent à l’effet général et à l’organisation de l’ensemble. […]. La convenance est donc une qualité presque organique, qui fait 55

 

 

148  

AS  QUATRO  SIMILITUDES   Capítulo  3  

O Vocabulário de Estética de Souriau remete ainda à noção de bienséance (decoro) (ibid, p. 248) e economia (ibid, p. 631). A economia em uma obra de arte diz respeito a sua estrutura e indica a conveniência das partes entre elas, seus acordos funcionais e seu grau comparado de desenvolvimento, para que as partes não se prejudiquem entre si. A conveniência também está presente no conjunto dos aspectos de produção, do consumo e da circulação dos bens artísticos de uma sociedade, caracterizando assim outro sentido de economia em arte. Quanto à noção de decoro, quando aplicada à arte, será a relação entre a obra e seu público59. Dois aspectos principais devem ser levados em conta na apresentação de Souriau: as conveniências (convenances) como atributos de uma boa adaptação de obra a certa sociedade; e a conveniência como uma adequação interna de todos os elementos constitutivos da obra. Nossa convenientia será, então, esse amálgama, relativamente harmônico, de significados. A conformidade, a harmonia e o acordo entre os elementos internos de uma obra construirão nossa convenientia. Mas é preciso ir além da etimologia lexicográfica de um conceito para entendê-lo plenamente, ou melhor, apresentá-lo de maneira que possa ser útil na segunda parte desta tese. Por isso, vamos novamente recuar no tempo e apresentar duas interessantes aplicações do termo. A primeira provém de um livro de juventude de Santo Agostinho intitulado De pulchro et apto, traduzido para o português como O Belo e o Conveniente. A obra se perdeu, mas é mencionada no quarto livro de suas Confissões (Agostinho, 1990, p. 88). Para Fontanier (apud Marianelli, 2008, p. 93), o aptum de Santo Agostinho é a convenientia harmônica entre um objeto e um outro, e pulchrum é a conformidade de um objeto naquilo que ele deve ser, naquilo que lhe é conveniente: sua perfeição, sua beleza. Aptum indica também a tensão em direção a uma unidade e a necessidade de uma correspondência a um principio que une. Embora tenha sido utilizado o termo aptum, e não conveniens, a literatura crítica agostiniana tende a considerar aptum como sinônimo de conveniens (ibid., p. 15). De pulchro et apto é uma obra antes de sua conversão ao cristianismo e ele revelava um contexto ontológico particular, que faz da beleza um conjunto absoluto, espiritual e material. Caminhava para o abismo e dizia a meus amigos: “Amamos nós alguma coisa que não seja o belo? Que é o belo? Que é a belo, por conseguinte? Que é a beleza? Que é que nos

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                          que toutes les parties d’une œuvre se tiennent entre elles, et que l’auteur ou l’artiste ne va pas, pour faire un sort particulière à l’une d’entre elles, perdre de vue le tout auquel elle doit s’intégrer.” 59 O decoro faz parte também dos aspectos estudados pela Retórica. O decoro sintetiza o fundamento moral de uma concepção poético-retórica.

 

149  

AS  QUATRO  SIMILITUDES   Capítulo  3  

 

atrai e nos afeiçoa aos objetos que amamos? Se não houvesse nele certo ornato e formosura não nos atrairiam”. Eu notara e via que nos mesmos corpos se devia distinguir a beleza proveniente da união das suas partes – o todo – e a resultante da sua apta acomodação a alguma coisa, como por exemplo a parte de um corpo ao seu todo, ou o calçado ao pé, e outras semelhantes. (Agostinho, 1990, p. 88).

O belo, para Santo Agostinho antes da conversão, é o modelo da Unidade, a essência da Verdade e do Bem. E a convenientia, por sua vez, aparece como uma conformidade ou um acordo entre elementos distintos. Santo Agostinho (ibid. p. 90) explicita a significação dos dois conceitos fundamentais de De pulchro et apto: “Definia o belo ‘o que agrada por si mesmo’; e o conveniente ‘o que agrada pela sua acomodação a alguma coisa’.” Em sua obra de juventude, a convenientia indica uma relação de adequação da criatura ao princípio do Belo. E sua definição de Belo remete à semelhança, à conveniência, à correspondência, à igualdade e se refere à noção de unidade ou de Uno. “A unidade é a medida da beleza.” (Santo Agostinho apud Marianelli, 2008, p. 94)60. Em uma obra posterior, Da Verdadeira Religião, Santo Agostinho utiliza-se propriamente do termo convenentia, no sentido de congruência e harmonia, como elemento estético que visa a unidade em Deus. Da convenientia que nasce de um prazer ou um gozo sensual, ele passa para a convenientia que une as coisas e os seres à verdade divina. O problema do belo e do conveniente se liga ao problema da relação do Uno e suas partes. Na conveniência (aptum) está a possibilidade de encontrar harmonia no outro. São Tomás de Aquino, por outro lado, apesar de não ter teorizado claramente sobre convenientia, apresentou uma multiplicidade de afirmações a caracterizando, como verificou Gilbert Narcisse em sua obra Les Raisons de Dieu : L’argument de convenance et esthétique théologique selon saint Thomas d'Aquin et Hans Urs von Balthasar (1997)61. Baseando-se nas doutrinas platônicas, São Tomás diz que as coisas são convenientes entre elas de três maneiras (Narcisse, 1997, p. 106): 1. Em razão de sua essência: quando a relação se funda sobre as propriedades da natureza. 2. Pela participação: as relações do homem com as coisas ultrapassam o racional e se tornam inteligentes. A inteligência faz parte da essência dos anjos, da qual o homem pode se aproximar ou participar.

                                                                                                                60

“L’unità è misura della bellezza.” O título pode ser traduzido para o português como: As Razões de Deus: O Argumento da Conveniência e Estética Teológica segundo São Tomás de Aquino e Hans Urs von Balthasar.

61

 

 

150  

AS  QUATRO  SIMILITUDES   Capítulo  3  

3. A título de causalidade: revela a convenientia acidental com tudo aquilo que não encontra no próprio homem seu núcleo material, mas se adquire através da arte. A noção de convenientia em São Tomás comporta diversas nuances, entre elas, uma que a apresenta quase como um sinônimo de beleza. O belo e o conveniente (pulchrum et conveniens) são colocados em relação quando ele afirma que aquilo que é percebido como belo é percebido como conveniente e bom. E o belo, como não poderia deixar de ser, diz respeito à beleza de Deus. Todos os seres são transpassados pela luz do belo desde que haja: integralidade (integritas), proporções (proportio) ou harmonia (consonantia) e brilho (claritas) (ibid. p. 209). Dessa forma, São Tomás estabelece uma “convenientia estética” fundamental, na qual o belo, a partir de certos pressupostos, se firma como noção central. À convenientia São Tomás acrescenta ainda o conceito de verdade. Ele é mais um pressuposto que conduz ao belo e se configura como adæquatio. Com uma estrutura relacional e participativa, a verdade se firma na adequação na relação entre Deus e as criaturas, para o filósofo e teólogo (Marianelli, 2008, p. 30). Tanto em São Tomás quanto em Santo Agostinho é interessante observar como a noção de belo, embora calcada na teologia, penetra a convenientia, sempre associada à semelhança (divina) e amparada pelas noções de adequação ou acordo, integralidade ou unidade e proporção. b) Encontro de Similitudes Como todas as outras similitudes, a convenientia tem um alcance conceitual muito grande, às vezes excessivo. No entanto, também como as outras, a convenientia possui características intransferíveis e únicas. Uma delas se funda no fato da noção se ocupar de coisas distintas – até mesmo em matérias e substâncias – que se encontram, se tocam e se ajustam e se constituem em um novo objeto. Não se trata de uma relação à distância, onde os ajustes ou imitações se dão sem contato real, como acontece com as outras a emulação ou a analogia. A adequação da convenientia se dá no interior de um mesmo objeto. Porém, as outras forças de semelhança interferem decisivamente nesta quarta similitude, como mostra, por exemplo, a tipologia da convenientia apresentada por Narcisse (ibid., p. 94), através do diagrama reproduzido abaixo:

 

151  

AS  QUATRO  SIMILITUDES   Capítulo  3  

 

simples correlacionada antecedente subseqüente

argumentativa complexa

Convenientia

fundamental

analogia entis analogia fidei teologia e economia

correlativa

formal final exemplar

temática

Diagrama 4: tipologia da similitude convenientia apresentada por Narcisse.

Mesmo sem um aprofundamento nos inúmeros desdobramentos teológicos e estéticos propostos por Narcisse, uma rápida observação do esquema já é suficiente para supor a interferência das similitudes. Subsumidas à convenientia aparece, por exemplo, a analogia entis (do ser) e fidei (da fé), sendo que a primeira propõe uma relação de semelhança, um acordo, entre Deus e sua criatura que se impõe naturalmente e através da razão, e a segunda essa relação se baseia na fé. Ainda no último nível da tipologia, observa-se que a convenientia pode vir a ser correlacionada, antecedente ou subsequente e isso, por si só, já nos remete a uma causalidade e, a partir daí, podemos pensar em reflexos, imitações ou emulações. A interferência de outras similitudes fica clara também em outra tipologia da convenientia, apresentada por Jos Decorte (1996, p. 86) e baseada em reflexões teológicas medievais de Henri de Gand62. Trata-se da distinção entre convenientia similitudinis ou univocationes e convenientia imitationes. Na primeira, duas ou mais formas coincidem em uma forma global. Cada participante traz consigo semelhanças formais e, por isso, se aproximam, sem que uma forma tenha sido gerada por outra. As formais são autônomas,                                                                                                                 62

Henri de Gand (1217-1293) foi filósofo escolástico, conhecido como Doctor Solemnis, sucedeu São Tomás de Aquino na liderança da ordem de Santo Agostinho.

 

 

152  

AS  QUATRO  SIMILITUDES   Capítulo  3  

porém semelhantes e com a mesma vocação (univocationes). Em seu núcleo poderia residir a simpatia, como similitude que faz com que as coisas almejem um valor ou identidade comum. A convenientia imitationes trata de relações de causa e efeito. As formas se coincidem porque se espelham: uma é origem da outra. A similitude emulação deve se adequar muito confortavelmente neste tipo de convenientia. Esta pesquisa não se ocupará das ramificações internas, por vezes complexas, do interior da noção estudada. É possível, entretanto, concluir que para haver convenientia é preciso que as outras similitudes intervenham em diferentes medidas. c) Movimento e Transformação São “convenientes” as coisas que, aproximando-se umas das outras, se tornam contíguas; tocam-se nas bordas, suas fímbrias misturam-se, a extremidade de uma designa o começo da outra. Deste modo, o movimento comunica-se, tal como as influências, as paixões e as propriedades. (Foucault, 1966, p. 33)63.

Como figura articuladora das semelhanças até o Renascimento, Michel Foucault apresenta uma convenientia que enfatiza ajustes, comunicação, movimento e, pelo viés do contato, a noção de espaço. Sem excluir os entendimentos já apresentados, Foucault coloca em valor o poder da convenientia de assimilar as coisas que estão próximas umas das outras e o fato de, em uma relação contínua e recíproca, as partes serem capazes de se influenciar mutuamente. Convenientia se apresenta então como um termo polissêmico sobre o qual, a partir de uma significação mais geral, se articulam outros significados e entendimentos. Na acepção geral está a noção de relação, de encontro e harmonia. Conforme vamos avançando no estudo do termo vai se firmando uma noção ampla de ordem e economia, como adequação das partes com o todo. Sua aplicação se revela possível nas mais diversas situações, seja no campo das ideias puras, seja aproximando e comparando coisas, seja comparando ideias e coisas, enfim, a convenientia pode se ajustar como figura que visa a conformidade e a congruência dos mais variados elementos. A teologia cristã, sobretudo nas figuras de Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, nos mostra uma aplicação estética do termo, na medida em que o belo entra ora como objetivo da convenientia, ora como seu sinônimo. O belo se configura como modelo de unidade resultante da conformidade das partes. As tipologias que a noção pode fazer emergir,                                                                                                                 63

“Sont ‘convenantes’ les choses qui, approchant l’une de l’autre, viennent à se jouxter; elles se touchent du bord, leurs franges se mêlent, l’extrémité de l’une désigne le début de l’autre. Par là, le mouvement se communique, les influences et les passions, les propriétés aussi.”

 

153  

AS  QUATRO  SIMILITUDES   Capítulo  3  

 

mais que a demarcação de limites, nos revelam que outras similitudes atuam no interior da convenientia, mas sempre submissas à ela. É importante notar também que, embora admita uma conjunção harmoniosa de significações e traga em seu núcleo a noção de harmonia, a convenientia parece quase sempre ser resultado de um movimento: um esforço de adequação, que traz consigo algum tipo de tensão.

 

 

154    

 

 

                             

SEGUNDA PARTE   PERCURSOS  DAS  SEMELHANÇAS      

Ressonâncias – Reflexos – Confluências

 

 

 

 

157  

SEGUNDA PARTE Essas alegorias são graciosas e divertidas, e quem não gosta de brincar de semelhanças? (Goethe, 1992, p. 53)

Na primeira parte desta tese percorremos diversas instâncias das diferenças e das semelhanças entre as artes. Olhamos, através de algumas perspectivas, como as artes podem estabelecer seus limites e, ao mesmo tempo, colocá-los em questão. Vimos também que as fronteiras das artes variam no ritmo dos olhares daqueles que refletiram sobre elas. Todos os diferentes sistemas que as classificam podem ser válidos, de acordo com o grau de adequação às suas premissas, porém nunca são verdadeiros e absolutos. Mas qualquer que seja a fronteira traçada entre as artes, com suas diferenças e semelhanças, a Estética Comparada legitima e se ocupa da confrontação de obras e processos criativos e perceptivos provindos de obras de artes distintas. Ainda na primeira parte da tese, nos voltamos à própria noção de semelhança. A partir da construção de um breve histórico, no qual buscamos apresenta-la de uma nova maneira, elegemos quatro forças articuladoras das semelhanças que chamamos de “as quatro similitudes”. O estudo dessas quatro similitudes – simpatia, emulação, analogia e convenientia – foi a base de nosso pensamento entorno dos encontros das artes. Baseados nele propomos três maneiras de se entender esses encontros que serão desenvolvidas em cada um dos capítulos da segunda parte desta tese. Capítulo 4 Da nossa primeira similitude, a simpatia, com todas as suas nuances, surgem nossas ressonâncias, que não passam de encontros virtuais de obras de arte autônomas proposto pelo observador. O autor propõe o estudo paralelo de duas obras, uma peça musical e uma pintura, e gradativamente apresenta elos, que vão desde posicionamentos estéticos amplos dos artistas até especificidades comuns às obras aproximadas.

 

158    

Capítulo 5 As similitudes emulação e analogia orientam o que chamamos de reflexos nesse capítulo. Nesse grupo, o encontro entre música e pintura tem sua origem no desejo do próprio artista. Existe uma relação de causalidade implícita entre uma obra e seu modelo. Cabe a nós analisar e comentar os caminhos através dos quais o artista conseguiu transpor estruturas de uma arte para outra. Capítulo 6 Quanto à convenientia, é ela quem dará origem às nossas confluências. Matérias e técnicas artísticas distintas se encontram em um objeto artístico único. É a própria obra que propõe esse encontro e cabe ao analista observar como essas diferentes matérias e técnicas se articulam, se assemelham e se diferem. O diagrama abaixo ilustra as principais linhas que norteiam a segunda parte desta tese:

             

 

 

 

 

simpatia  

 

     

   

   

  emulação  

 

 

 

SEMELHANÇAS                  

               SIMILITUDES  

 

 

RESSONÂNCIAS  

 

 

REFLEXOS  

 

CONFLUÊNCIAS  

 

 

 

analogia  

     

     

     

convenientia        

 

   

No entanto, é preciso estar consciente de que não se trata de um sistema fechado ou de uma proposta classificatória em um sentido restrito. Trata-se, antes de mais nada, de uma construção teórica que nos permite abranger de uma maneira particular a questão da semelhança entre as artes. Cada similitude, e por consequência cada um dos três grupos apresentados, comporta alguns atributos bem definidos, mas também algum tipo de abertura que pode evocar os grupos vizinhos, como veremos mais adiante.  

 

159  

O estudo dos exemplos que ilustram os capítulos se baseiam no que Jean-Jacques Nattiez chamou de “individualidade metodológica” (2010, p.20). Ou seja, nossa aproximação dos objetos artísticos é particular e não se configura necessariamente em um modelo esquemático para outras pesquisas. As construções analíticas estarão sempre submissas às dinâmicas particulares das obras. Ressonâncias, reflexos e confluências são princípios e direções teóricas para se exercer livremente uma Estética Comparada.

 

160    

 

161  

RESSONÂNCIAS   Capítulo  4  

 

Capítulo 4 Nossas primeiras e mais espontâneas percepções são frequentemente nossas percepções mais valiosas, porque estas impressões intensas, frescas, vivas, invariavelmente derivam dos campos mais amplamente variados. (Eisenstein, 2008, p. 53).

Ressonâncias Motivada por nosso objetivo central – propor condições de observação dos encontros entre as artes – esta pesquisa apresenta a ressonância como a primeira das três noções que serão aqui desenvolvidas. Para que uma aproximação entre obras de diferentes artes seja considerada ressonância, nos termos desta tese, é preciso primeiramente que um sujeito intua semelhanças ou que tenha emoções análogas quando em contato com essas obras. Em seguida, é necessário que essa mesma intuição ou emoção análoga se sustente e se legitime com algum tipo de explicação ou demonstração. Isso se dará através de um discurso que, reconhecendo as diferenças essenciais que existem entre as obras, sugira e afirme certas semelhanças, certas interseções, sempre virtuais. Sem a elaboração de um raciocínio, as semelhanças percebidas acabarão permanecendo como analogias superficiais ou, no melhor dos casos, boas sugestões de ressonância. Nosso “percurso das semelhanças” é precedido de um outro percurso: o da construção de uma maneira de olhar e apresentar um contato entre artes distintas. Nossa opção será por aproximar obras musicais e pinturas. A simpatia reafirma sua labilidade, mas também seu grande poder de assimilar e unir. Com todos seus atributos, essa similitude se converte em ressonância para afirmar-se diferentemente como instrumento de análise e de renovação de perspectivas e entendimentos. Dentre os três encontros entre obras e matérias artísticas distintas que serão apresentados, são as ressonâncias as que mais solicitam a participação do receptor, pois é ele quem, de certa forma, as produz. A semelhança é percebida, estudada e validada na figura das ressonâncias. Sua legitimidade é garantida pela liberdade que a simpatia tem de percorrer as maiores distâncias e se fundamentar na subjetividade dos olhares. Não existem limites nítidos do que pode ou não ser comparado. Para que seja convincente, entretanto, é preciso que os elos visualizados entre as obras não se percam em nebulosas conjecturas ou em abstrações extremamente subjetivas.

 

162  

RESSONÂNCIAS   Capítulo  4  

Os dois encontros, que ilustram essas ressonâncias, são apresentadas de modo mais ou menos distinto. No primeiro, entre a Sagração da Primavera e Les Demoiselles d’Avignon, o contato foi gradual, parte de uma leitura mais ampla da trajetória de Stravinsky e Picasso, passa pelos paralelos e semelhanças dessas trajetórias para, finalmente, evocar as ressonâncias na especificidade das obras. Entre Atmosphères e Black Painting n.1, um diálogo é desde o início proposto. Uma aproximação mais sistemática dos percursos artísticos de Rothko e Ligeti não pareceu essencial para se visualizar as semelhanças apresentadas, caracterizadas neste capítulo como ressonâncias. Não serão exatamente os fatores históricos ou as coincidências biográficas as maiores forças que nutrem essas ressonâncias. Embora as obras estudadas tenham concomitância histórica, isso não impede que as semelhanças e as ressonâncias se manifestem sem sincronia. Não é a história que as sustenta. Os elos mais interessantes devem surgir justamente das ligações virtuais, das intuições e da subjetividade de olhares e métodos. A última seção deste capítulo, intitulada “Outras Ressonâncias” apresenta, sem desenvolver, alguns exemplos propostos por outros autores.   1. Ressoar a) Das Simpatias às Ressonâncias Assim como cada uma das similitudes estudas no capítulo anterior, a simpatia se constitui nesta tese como um amálgama de significações. E nesse amálgama afirmam-se algumas direções conceituais, algumas tendências que ao longo da história foram se estabelecendo no seu núcleo. Existe, por exemplo, a noção de “harmonia”, que alimentava a simpatia dos estoicos, e a de “contágio” ou “transferência”. Esta última, que para os gregos da Antiguidade se ligava à transmissão de doenças, se converteu e se afirmou mais tarde como um atributo muito importante da simpatia: a transferência de afetos. Harmonia e transferência preenchem o núcleo central dessa similitude que tem o poder de percorrer as maiores distâncias e aproximar coisas e seres das mais variadas naturezas, como as simpatias da época áurea das semelhanças, a Renascença. A simpatia aproxima, harmoniza e suscita um movimento interior que faz com que as coisas se assemelhem. Mas todo esse poder a transforma na mais lábil das similitudes desta tese, pois a liberdade que ela tem de circular em todas as instâncias possíveis pode reduzir consideravelmente sua legitimidade ou validade. Podemos explicar parcialmente o motivo  

RESSONÂNCIAS   Capítulo  4  

163  

 

pelo qual simpatizamos com alguém ou algo, mas restam sempre lacunas que oscilarão entre as mais reduzidas e as mais abissais. Não sendo intelectualmente apreendida por completo, tende-se a reduzir a simpatia a algo vago e obscuro. Mas o fato desta similitude não conseguir dissimular seu lado inexplicável, vago e obscuro não quer necessariamente dizer que ela seja ilegítima ou impostora. Transferência de afetos ou atributos físicos e um princípio geral de harmonia são características intrínsecas que podem ocorrer em qualquer território onde exista relação entre elementos. O inexplicável da simpatia pode ser, talvez, a potencialização daquela dimensão absoluta apresentada por Bergson no capítulo anterior, na qual a simpatia se configura em uma intuição que nos transporta ao próprio interior dos objetos. Entretanto, mesmo sem poder explicar satisfatoriamente as razões e princípios da simpatia, acreditamos que ela seja, no mínimo, presente e atuante. E seu reconhecimento será sempre legítimo na medida em que pertence à subjetividade do receptor. A partir do momento em que a ideia de transferência penetra e se consolida no núcleo da simpatia seu aspecto subjetivo é cada vez mais fortalecido. Sustentada por seus dois polos, “harmonia” e “transferência”, a simpatia tem um caráter ora passivo, ora ativo. Ao mesmo tempo em que seu reconhecimento, entre coisas e/ou seres, tem algo de espontâneo e involuntário, observa-se que existe uma ação interna, um movimento interior das coisas em direção a algum tipo de estabilidade ou harmonia. A partir desses princípios fundamentais da simpatia extraídos no estudo feito no capítulo anterior, começa a se delinear a noção de ressonância que conduz este capítulo. A definição de ressonância dos dicionários pouca relação tem com a noção de simpatia apresentada até agora. Em uma investigação etimológica veem-se registros de palavras que se relacionam com o termo ressonância desde o século XIII (Rey, 2005). Cunha (1982) nos envia à palavra som, que vem do latim sŏnus, e aponta para o primeiro registro de ressoar, datado do século XIV, originária de rěssŏnāre. Uma referência propriamente à ressonância (ressonantĭa) se encontra no século XVI: o prefixo re marca o movimento de retorno e o sufixo sonare sugere que este retorno seja de um som. Mas a maioria dos dicionários brasileiros e franceses, de diferentes épocas, notam como primeira significação de ressonância, mais que o sentido de repetição ou retorno, a acepção de reforço, intensificação, apontando para o aumento da duração ou da intensidade de um som. No sentido ligado à Fonética ou à Linguística esta significação é mantida, porém se associa à capacidade da boca e das fossas nasais de intensificar um som fundamental e seus harmônicos. A ideia de

 

164  

RESSONÂNCIAS   Capítulo  4  

prolongamentos das vibrações sonoras evoca, evidentemente, o aspecto mecânico que, por sua vez, alude às acepções físicas que o termo vai ganhando na história. Aos sentidos de retorno e reforço, acrescenta-se aquele que mais elos pode estabelecer com as simpatias: o de transferência. Em Física a ressonância se relaciona com a oscilação de sistemas elásticos ou se apresenta como um processo de transferência de energia de um sistema que oscila em frequência própria para outro que oscila na mesma frequência, conforme o dicionário Houaiss (2009) menciona. Transferência e harmonização, dois sentidos da similitude estudada fazem também parte da definição de ressonância nos dicionários. Em Música, teorias procuram explicar os sistemas vibratórios de instrumentos musicais, por exemplo, e tentam entender a maneira como as vibrações produzem tal ou tal timbre a partir da caixa de ressonância de certo instrumento. As ressonâncias se definem na maneira como um corpo transmite ondas sonoras. A física ainda fala em “estado” ou “fase de ressonância”, que é um estado de tensão no qual um átomo pode produzir uma radiação1. Afastando-se das ciências físicas, químicas e biológicas, mas sem recusar os traços fundamentais apresentados por estas mesmas ciências, a Literatura e a Psicologia também se apropriam e se servem da noção de ressonância. Na Literatura, ela aparece como um efeito que repercute no espírito ou no coração (Rey, 2005). Esse atributo de efeito ou impressão é utilizado em psicologia como “ressonância íntima”, como prolongamento dos acontecimentos na consciência de cada um, segundo a Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura(1964, p. 182). A apropriação do termo ressonância nesta tese se estabelece na interseção entre seus significados gerais apresentados acima e nosso entendimento de simpatia. b) Ressonâncias nas Artes: Pré-condições Em meio a todas as definições terminológicas apresentadas, das mais centrais às mais periféricas, é preciso entender onde e como estas ressonâncias se instalarão em uma pesquisa que pretende criar condições de observação para o encontro de diferentes artes. É preciso, em um primeiro momento, definir os elementos que abrigarão as ressonâncias no nosso contexto. Três serão os elementos: uma obra musical, uma pintura e, evidentemente, o sujeito ou receptor.                                                                                                                 1

A denominação “estado de ressonância” também é utilizado em química para caracterizar moléculas em que não é possível atribuir uma fórmula única, como o benzeno, por exemplo (Rey, 2005). Uma curiosa aplicação do termo vem da medicina, quando fala em “fratura por ressonância” (fracture par résonnance) ou “fratura por contragolpe (fracture par contre-coup). Indica uma tipo de fratura craniana onde a área atingida permanece intacta, enquanto em uma outra área verifica-se a lesão, como se ela tivesse sido refletida ou enviada para outro lugar.

 

RESSONÂNCIAS   Capítulo  4  

165  

 

Nossas ressonâncias aludem a uma maneira particular de se aplicar a noção de semelhança. Uma vez que uma semelhança entre duas obras, visual e sonora, é percebida, ela será digna de atenção e poderá ser reconhecida como autêntica. A partir desse momento, o receptor/analista “coloca em ressonância” as duas obras, para de certa forma tentar legitimar o encontro que propõe entre obras de naturezas artísticas distintas. O analista se volta, então, ao interior dos dois objetos e busca a legitimação das semelhanças nos seus atributos físicos e no estudo das suas origens, incluindo as dimensões poéticas, históricas e estéticas. As ressonâncias se apresentam em dois tempos. Primeiro, são reconhecidas semelhanças ou uma certa “atmosfera” similar entre duas obras. Em seguida, baseado nessas impressões iniciais de semelhança, investiga-se, analisa-se e busca-se todo tipo de elemento que possa se constituir como elo entre as obras aproximadas. Para, assim, “validar” como ressonâncias as emoções análogas sentidas e intuídas pelo sujeito receptor. A simpatia é a força maior que as estrutura, mas isso não impede que outras similitudes intervenham em diferentes medidas e maneiras, como veremos mais abaixo. É importante sublinhar que as ressonâncias propostas por esta tese brotam sempre da subjetividade de um olhar exterior. Não deve ter existido nenhuma intenção por parte dos autores de criar qualquer tipo de relação de semelhança entre as obras aproximadas. Essas ressonâncias, assim como as simpatias em geral, percorrem as maiores distâncias, tanto de tempo quanto de espaço. Logo, obras de contextos completamente distintos podem ser comparadas e ser importantes fontes para o estudo das semelhanças entre as artes. Antes de virem do reconhecimento de estruturas poéticas comuns ou da materialização da estética de uma época, do “espírito do tempo”, elas nascem da percepção de uma atmosfera comum atemporal. Ecoa seu aspecto de harmonia pacífica, de olhares distanciados que contemplam coisas separadas no espaço que se ajustam e que ressoam mutuamente. Antes de se converterem em saber, elas são intuições de saber. Primeiramente, podem ser descritas como emoções similares que o receptor reconhece entre obras de natureza distinta. Em um segundo momento, para que as ressonâncias ganhem força e não se tornem “vagas metáforas”, é preciso impor uma harmonia ativa, que deve vir do aspecto de transferência ou comunicação que as simpatias também comportam. A partir da similaridade percebida entre peças que, pode-se dizer, não se tocam, o receptor busca desvendar suas origens e pode “descobrir” ou “produzir” muitos outros paralelos, através da pesquisa e observação das obras e suas poéticas. O receptor provoca, assim, um contato virtual entre obras. É dado ao sujeito que compara a liberdade de aproximar quaisquer obras em que perceba ou identifique semelhanças, contanto que não haja indício de que essas marcas de  

166  

RESSONÂNCIAS   Capítulo  4  

semelhança foram desejadas pelos autores das obras aproximadas, pois isso deve ser característico de outras formas de aproximar as artes, que veremos adiante. Diferentemente dos dois grupos que serão estudados nos capítulos seguintes, nos reflexos e confluências, as ressonâncias colocam o receptor em uma posição central, pois é ele quem propõe efetivamente o encontro das obras. A responsabilidade do encontro se concentra na figura do sujeito que aproxima obras que não foram pensadas dessa forma por seus autores. Estes últimos são excluídos do processo de reconhecimento e construção das ressonâncias. Só existirão ressonâncias, nesta tese, quando partirem da observação de um receptor. Essas ressonâncias tratam de “encontros virtuais”, onde não há contato efetivo. As obras só se tocam realmente através do discurso sobre elas. Elas se constroem, como dissemos, em dois passos que podem ser resumidos como: perceber e investigar. 2. A Sagração da Primavera e Les Demoiselles d’Avignon Quando voltamos nosso olhar para a arte do século XX e pensamos em alguns nomes que tenham marcado a história das artes visuais e da música ocidentais, dois nomes vêm, invariavelmente, à tona: Igor Stravinsky (1882-1971) e Pablo Picasso (1881-1973). E quando interrogamos indivíduos, não necessariamente músicos ou artistas plásticos, sobre um possível paralelo entre esses artistas, normalmente não encontramos resistência nem surpresa. Para um especialista também não existirá grande espanto. Existe, como veremos, um certo número de alusões às aproximações desses dois nomes, seja devido à amizade e à admiração mútua, seja pela relação de trabalho estabelecida na montagem do balé Pulccinella em 1920 ou em desenhos, caricaturas e ilustrações de partituras realizadas pelo pintor espanhol2. Entretanto, no estudo que se segue, a relação de amizade entre os dois ou algum tipo de parceria na criação não intervirão de nenhuma maneira, pois as obras aproximadas pertencem a períodos anteriores ao encontro efetivo dos dois criadores3. Serão aproximadas as seguintes obras: a música do balé Sagração da Primavera (1913) e a tela Les Demoiselles d’Avignon (1907). Em um primeiro momento, podemos intuir ou mesmo perceber que existem semelhanças profundas entre essas importantes obras do início do século passado. Em                                                                                                                 2

Logo no primeiro contato com a correspondência trocada entre Stravinsky e Picasso sentimos um tom íntimo e amistoso entre os dois. “Meu velho” (mon vieux), “seu porcão” (grand cochon), “Pica”, são algumas das maneiras como o compositor se referia ao amigo. Emannuelle Bacquet (1994) reproduziu em sua monografia algumas dessas cartas. 3 De qualquer forma, trata-se de uma pré-condição para que existam ressonâncias segundo os termos desta tese.

 

167  

RESSONÂNCIAS   Capítulo  4  

 

seguida, lançamos um olhar panorâmico sobre questões estéticas gerais do artista e sobre as especificidades da Sagração e das Demoiselles. A maneira com a qual esses artistas se relacionavam com os conceitos de unidade, continuidade, coesão interna, assim como seus posicionamentos frente às histórias da arte e da música, serão fundamentais para revelar semelhanças mais diretas entre as obras estudadas. Na infinidade de estudos, acadêmicos ou não, que abordam separadamente a obra desses dois criadores, esta pesquisa se fundamenta sobretudo em Meyer Schapiro (2000) e no catálogo da exposição Les Demoiselles d’Avignon, realizada no Museu Picasso de Paris e organizada por Helène Seckel (1988), no domínio das artes visuais; e em Pierre Boulez (1982 e 1989) e André Boucourechliev (1982), na Musicologia. A ideia de aproximar essas duas obras surgiu, por um lado, de uma sugestão de Pierre Boulez (Paul Klee : le pays fertile, 1989, p. 24) sobre um paralelismo entre os dois autores e algumas de suas obras e, por outro lado, de uma impressão ou emoção análoga encontrada pelo autor desta tese quando em contato com essas obras específicas. A “revelação” das ressonâncias nesta pesquisa não deve se alongar em considerações biográficas ou mesmo reter-se em análises especificamente musicais ou estéticas que não sirvam diretamente ao nosso objetivo central4. Coincidências temáticas ou biográficas, embora possam reforçar os argumentos para as ressonâncias, não são necessariamente seus maiores fundamentos. Esta pesquisa se concentra em apontar alguns aspectos gerais das obras e suas gêneses que possam auxiliar no construção e na percepção das ressonâncias comuns que emanam das duas obras apontadas de Stravinsky e Picasso. Vamos, então, nos interessar pelos traços que se situam na interseção entre dimensões das criações e das percepções críticas. Veremos, de maneira geral, como a criação e a recepção das artes visuais e da música podem ser fertilizadas por gestos e atitudes artísticas similares e assim produzir ressonâncias. a) Igor Stravinsky: Quatro Chaves O ritmo? Claro. A invenção melódica? Talvez. A forma?

                                                                                                                4

Descrever em detalhes a Sagração da Primavera e descobrir, por exemplo, se sua harmonia se calca em politonalismo, em apogiaturas não resolvidas, acordes de passagem ou descrever a sua complexidade rítmica, como fizeram Boulez ou Boucourechliev, ou ver se a estrutura formal das Demoiselles fundamenta-se na retomada dos estudos de anatomia de Albrecht Dürer, na subversão das formas de Ingres ou na observação das deformidades ocasionadas pela sífilis (Rubin, 1988, p. 420), todos esses aspectos são interessantíssimos e poderiam facilmente se tornar tema principal de uma tese.

 

168  

RESSONÂNCIAS   Capítulo  4  

Muito pouco. As texturas instrumentais? Certamente. (Boulez, 1982, p. 60)5.

É somente nesta curta passagem de um texto em forma de poema que o compositor Pierre Boulez tece considerações mais diretas sobre a obra de Igor Stravinsky. Em Bilan? (Balanço?), Boulez diz um pouco mais à frente que deve haver, sim, “traços mais sutis” que escapam de seu entendimento. O compositor francês revela, desde o título de seu texto/poema, sua própria dificuldade em situar o músico russo na história e quão paradoxal e complexo pode ser a tarefa de traçar um balanço da obra desse artista. Situá-lo na história da música seria algo provavelmente vão neste trabalho. Mesmo porque, para se aproximar de Stravinsky, deve ser mais importante e viável observar como o compositor, ele mesmo, se relacionava com a história. Ao contrário dos compositores que despontaram alguns poucos anos depois, como aqueles da Escola de Viena, Stravinsky não se atinha com afinco a um determinismo na evolução musical. “Stravinsky não fez da história nem sua consciência nem sua lei, mas propriedade e seu instrumento.” (Boucourechliev, 1982, p. 9) 6 . Ele se aproximava da história, não por alguma aspiração passadista ou nostálgica, mas para, além dela e no interior dela, buscar constantes e raízes de sua própria invenção. Devido, talvez, a sua formação inicial e a sua origem russa, o compositor não percebia o mundo e o universo sonoro em ruínas, como era o caso de Schoenberg. Sua preocupação não era a de criar uma outra gramática musical visando uma nova concepção da música. Negando se inscrever ou representar um sistema, Stravinsky se apropriava, da maneira como o convinha, de polifonias medievais, de estruturas formais clássicas, de princípios dodecafônicos, sempre com muita liberdade sem que isso seja percebido como falta de rigor. Colocando-se à parte de prescrições de sistemas, Stravinsky expõe sua poética ao risco de ser considerada incoerente pelos que se atém a um uma visão mais determinista da história da música. Sua livre apropriação da história brota da força de uma emulação, que desponta como sentimento que incita no compositor uma imitação que não visa se igualar e aparece, na                                                                                                                 5

Le rythme? Bien sûr. L'invention mélodique? Peut-être. La forme? A peine. Les textures instrumentales? Certes. 6 “Stravinsky n'a fait de l'histoire ni sa conscience ni sa loi, mais sa propriété, et son instrument.”

 

RESSONÂNCIAS   Capítulo  4  

169  

 

verdade, como demonstração de zelo e apreço. Surgem emulações que se configuram em apropriações mais ou menos explícitas de modelos de diversas origens, épocas e estilos. Elas vão desde a Sagração e Pássaro de Fogo, que se inspiram de construções melódicas tradicionais ou folclóricas, até citações textuais de Tchaikovsky em Le Baiser de la fée. Boucourechliev cita ainda: Oedipus Rex e o oratório profano de Haendel; o estilo italiano de Glinka e o romantismo de Tchaikovsky em Mavra; a Sinfonia dos Salmos e a Missa que se referem ao espírito do Ars Nova; o concerto Ebony e sua ligação com o jazz; o concerto Dumbarton Oaks que se calca em um concerto de Brandemburgo; Jeu de cartes e o estilo de Rossini; o Rake’s Progress e seu apadrinhamento de Cosi fan tutte (1982, p. 20-21). Todas essas obras, segundo nosso entendimento, poderiam ilustrar diferentes maneiras através das quais a similitude emulação percorre distâncias no tempo e no espaço. A apropriação de fontes, estilos, técnicas ou de qualquer matéria artística estrangeira não foi, evidentemente, exclusividade de Stravinsky e sua particularidade não está na assimilação de referências ou na interação com modelos. Nenhuma obra, obviamente, existe desligada de sua história. A globalidade da arte de Stravinsky se distingue pela variedade dos modelos e pela liberdade com a qual o compositor percorria e se utilizava da história. Suas emulações eram tão livres quanto variadas e poderiam, por isso, abrir precedentes para críticas e equívocos, sob vários ângulos. Mas Stravinsky assume o risco de deixar as emulações perturbarem a coerência de sua obra e sua linha evolutiva de estilo e sintaxe musical. A homogeneidade global de sua obra persevera na heterogeneidade das técnicas, modelos e formas composicionais. O que parece produzir a unidade na obra do compositor russo é sua necessidade de individualizar e personalizar suas técnicas composicionais recolhidas e assimiladas nos diversos momentos da história da música. Aí reside o elemento de base de seu estilo e que pode ser reconhecido quaisquer que forem os modelos que Stravinsky desejar engajar. Afinal, “a técnica, por mais importante que ela seja, não decide a grandeza da obra […].” (1982, p. 81)7. A obra de Stravinsky é comumente divida em três fases: música de cunho nacional, período neoclassicista e serialismo. Mas essa divisão esquemática corrente, em vez de revelar e nos ajudar a entender as linhas de força que sustentam a arte de Stravinsky, incitam conclusões simplistas e errôneas. Optamos por expor a compreensão de Boucourechliev segundo a qual a globalidade da obra do compositor russo possui quatro motes, resumidos abaixo. Ele os chamou de “chaves” para o entendimento de Stravinsky (1982, p. 7-30).                                                                                                                 7

“[...] la technique, si importante soit-elle, ne décide pas le la grandeur d'une œuvre [...]. “

 

170  

RESSONÂNCIAS   Capítulo  4  

A primeira chave se liga a algumas características estruturais genéricas na música russa e que permeiam toda obra de Stravinsky. São elas: o diatonismo radical, uma forte e diferenciada pulsão rítmica, clareza nas linhas melódicas, aspereza nas harmonias, transparência na textura e solidez na ossatura formal8. Os principais aspectos da música russa e que constituem a primeira chave para compreender Stravinsky, não são definidos pelo folclore, mas por elementos sintáticos. Mesmo os materiais supostamente folclóricos tem um peso completamente diferente daquele observado em compositores tais como RimskyKorsakov. Ou seja, falar em uma fase de nacionalismo russo em Stravinsky é desconsiderar aspectos mais importantes de sua opção estética em detrimento de um sentimento nacional não declarado. Na poética de Stravinsky, as emulações e imitações de modelos tradicionais russos parecem quase sempre mais impuras e caóticas que, por exemplo, aquelas dos compositores do Grupo dos Cinco, mais próximas da corrente nacionalista. A segunda chave para o entendimento de Stravinsky apresentada por Boucourechliev (ibid., p. 17) trata-se de uma dimensão hierática que o compositor tenta imprimir, em diferentes graus, em toda sua obra. O aspecto ritualístico aparece mais ou menos explícito durante toda a carreira do músico. A Sagração da Primavera (cuja tradução em língua inglesa é Rite of Spring) contém, evidentemente, esta característica que, no entanto, será mais bem afirmada ainda em Noces. A Sinfonia para Instrumentos de Sopro, o Œdipus Rex, a Sinfonia dos Salmos, a Missa e suas últimas obras seriais, como o Threni e o Requiem Canticles, trazem bem explícitos a noção de ritual, quase sempre guiado mais por uma atmosfera, uma certa ambiência, digamos, espiritual, que por uma trama intrincada. Seja em obras sagradas ou profanas, a ordem ritualística e hierática se manifesta de forma particularizada e se exprime nas mais diversas técnicas. Lembramos que essas chamadas chaves de compreensão nada tem a ver com fases composicionais e que cada uma delas está presente, em diferentes gradações, em toda obra de Stravinsky. Isso fica particularmente evidente quando passamos para a terceira chave, que se configura no poder que as obras têm de se tornarem arquétipos, protótipos formais. As obras transcendem as temáticas, os traços musicais subjetivos são reduzidos a linhas de força estruturais e conquistam, através de uma convenção imposta à linguagem e à forma, um estatuto de universalidade (ibid., p. 18). Renard, História do Soldado, Apolon, Musagète e                                                                                                                 8

Quando observamos esse conjunto de características citadas por Boucourechliev vemos que a primeira fase da classificação usual da obra de Stravinsky acaba por tomar ares reducionistas. Vale lembrar que o compositor nunca reivindicou algum tipo de militância nacionalista, como era o caso do chamado Grupo dos Cinco (Borodine, Rimsky-Korsakov, Cui, Balakirev e Mussorgsky).

 

RESSONÂNCIAS   Capítulo  4  

171  

 

Agon, Mavra, Rake’s Progress, Œdipus Rex e Canticum Sacrum são os exemplos mais marcantes. A quarta e última chave se liga à relação que o compositor nutria com as técnicas composicionais de diversos momentos históricos. Ela abrange de uma forma bem peculiar com o que chamamos de similitudes de emulação e analogia. Os modelos tomam tal força referencial que eles acabam por modelar a própria linguagem, a subvertê-la e a subjugá-la. A imitação de Stravinsky subverte os modelos e estes acabam por se impor com certa força icônica. E esse princípio se mantém independentemente das características especificas dos modelos apropriados por Stravinsky. É por isso que, desde a Sagração até as obras seriais, persistem as identidades e as simetrias conceituais, mais que as oposições e rupturas. A quarta chave de entendimento se resume, portanto, à maneira com a qual o compositor se relaciona com obras de diversos períodos que servirão de modelo para suas próprias obras9. Interessante verificar que, apesar de se falar em arquétipos e ossatura formal sólida, suas obras raramente se configuraram em sistemas ou modelos composicionais. Sem criar propriamente um sistema com regras abrangentes, nem renunciar às aplicações e adaptações de sistemas por vezes anacrônicos, Stravinsky se impõe pela força individual das obras e, como a apresentação dessas chaves revelou, pelo domínio técnico do material sonoro, pela solidez formal, por sua vocação hierática, ritualística, arquetípica. Todas essas características são claramente sentidas em uma das suas obras mais marcantes, a Sagração da Primavera ou Le Sacre du Printemps. b) Sagração da Primavera A noite de 23 de maio de 1913 entrou para a história da música e para história das artes. Estreava o balé Sagração da Primavera no recém inaugurado Théâtre des Champs Elysées, em Paris. Após o sucesso de seus dois outros balés, Pássaro de Fogo (1910) e                                                                                                                 9

Mas essa crença na unidade ou em uma homogeneidade na obra de Stravinsky, bem aceita por Jarocinsky e Boucourechliev, não é unânime. Pierre Boulez, por exemplo, considera que depois de Noces (1923), a linguagem do compositor russo sofreu um esgotamento acelerado, que se manifestou em todos os âmbitos musicais. Sua música teria se atrofiado enormemente. A grande contribuição de Stravinsky, para Boulez, liga-se, quase exclusivamente ao tratamento rítmico, ao fato dele restabelecer um status, uma importância primordial à dimensão rítmica, que, desde o fim do Renascimento, foi relegada a um segundo plano (2008, p. 135). Essa discordância deve-se, provavelmente, ao peso que o compositor francês atribui à noção de evolução da linguagem e à dificuldade de fazer emergir contribuições evolutivas no terreno da forma e do seu tratamento harmônico. Em uma visão aparentemente mais distanciada, Boucourechliev diz que o grande legado de Stravinsky não se situa em um plano harmônico, timbrístico ou rítmico, mas na maneira como ele tratava ritmicamente as massas sonoras (1982, p. 104).

 

172  

RESSONÂNCIAS   Capítulo  4  

Petruschka (1911), e com o apoio da companhia de Sergei Diaghilev10, Stravinsky, aos trinta e um anos de idade, tinha sua obra apresentada em Paris, com uma grande orquestra sob a direção de um maestro renomado, Pierre Monteux. Com a coreografia de Vaslav Nijinsky (1889-1950), a estreia da Sagração provocou as mais intensas reações: gritos, vaias, objetos arremessados sobre os dançarinos e a orquestra. O reconhecimento, entretanto, não tardou a chegar. Menos de um ano depois, a obra foi reapresentada no mesmo contexto e a recepção foi mais que calorosa, como diz o próprio compositor em Croniques de ma vie (1962, p. 62). Aliás, mesmo na noite anterior à estreia em maio de 1913, a obra tinha sido muito bem recebida pelo seleto grupo que assistia ao ensaio geral, entre eles, Debussy, Ravel e vários jornalistas. Se as apresentações da Sagração, dissociadas da dança, não foram tão perturbadoras assim, é provável que os ousados figurinos e a coreografia tenham contribuído consideravelmente para o “fracasso” de sua estreia 11 . De qualquer maneira, com um distanciamento de quase cem anos, percebemos que a repercussão dessa rápida e transitória rejeição contribuiu também para a inserção peremptória da obra na história. A Sagração foi composta entre 1910 e 1912 e, como Stravinsky revelou em Croniques de ma vie, surgiu de seu fascínio, desde a infância, pela força com a qual a primavera se impunha na Rússia e a magia que comportava tal evento (2000, p. 44). A ideia central foi desenvolvida mais tarde, em 1910, em parceria com Diaghilev e o artista plástico Nicolas Roerich (1874-1947). A obra tem como subtítulo Cenas da Rússia Pagã e é dividida em dois quadros: Adoração da Terra e o Sacrifício, subdivididas em oito e seis seções, respectivamente. Um ponto que parece ser importante na gênese dessa obra é que Stravinsky insistiu para que o argumento central não fosse pormenorizado. Deveria apenas possuir um caráter estrutural. Tinha de ser uma ideia de base e não poderia se transformar em anedota ou uma espécie de conto. Tudo deveria ser unificado por uma só ideia fundamental: o mistério do poder criador da primavera (Boucourechliev, 1986, p. 77). A apresentação do primeiro e do segundo quadro e o nome de cada peça da obra já seriam suficientes para sua criação coreográfica. Ou seja, dava-se maior enfoque na própria ideia que na sua dimensão narrativa. Isso mostra uma preocupação com um aspecto simbólico imediato e certa rejeição a uma pura descrição. A obra, mesmo que submissa à linearidade temporal da música e da dança, deveria                                                                                                                 10

Diaghilev (1872-1929) foi um dos maiores animadores culturais do início do século europeu. Ficou conhecido pela criação e direção do Ballets Russes que foi, não somente para dança, mas também para a música e para as artes visuais, um veículo importantíssimo de expressão artística e da modernidade. 11 Mas mesmo a coreografia de Nijinsky não foi unanimemente reprovada. Na época da estreia, o crítico Jacques Rivière, como mostra Dufour (2006, p. 146), reconheceu, tanto na obra musical quanto na coreografia, sinais da modernidade e do rompimento de paradigmas artísticos.

 

173  

RESSONÂNCIAS   Capítulo  4  

 

ser percebida em sua globalidade, de imediato. Era preciso sentir, de uma só vez, a dimensão ritual e de glorificação da primavera que obra comporta em sua essência. Embora eu tivesse concebido o tema do Sacre du printemps, sem qualquer enredo, um plano de ação tinha de ser projetado para a ação sacrificial. Para isso, era necessário que eu consultasse Roerich [...]. Nós nos concentramos na concretização da Sagração e na sequência de seus diferentes episódios. (Stravinsky apud Pasler, 1986, p. 66)12.

Como notou Craft (1969, p. XLV), a trama, ou a ação coreográfica, esteve presente durante o trabalho de composição da Sagração e seus detalhes serviram como estímulo. No entanto, uma vez que ela cumpriu seu papel, é excluída do espírito do compositor. Eu receio que a Sagração da Primavera – obra na qual não apelo ao espírito dos contos de fada ou à dor e à felicidade humanas, mas esforço-me na direção de uma abstração um pouco vasta – não desconserte aqueles que testemunharam-me, até agora, uma cara simpatia. (Stravinsky apud Lesure, 1980, p. 14)13.

Nijinsky, o coreógrafo da primeira montagem da Sagração, ratifica esse desejo do compositor de dar maior ênfase em uma atmosfera comum que em uma trama pormenorizada. “Distante das anedotas, distante de uma ação sobrecarregada de pantomimas e reviravoltas mais ou menos engenhosas na trama, vamos exaltar somente a plasticidade do movimento em seu próprio proveito.” (Nijinsky apud Pasler, 1986, 70)14. A unidade desta obra de Stravinsky parece algo muito bem assegurado e se reflete mais na escuta do que em uma análise da partitura. Não são necessariamente os poucos retornos ou recorrências temáticas visíveis na partitura que parecem assegurar sua coesão15. Ela se estabelece em meio há várias ambiguidades e dicotomias, como a diversidade de abordagens analíticas existem sobre a obra pode revelar. Em sua poética geral, é muito frequente que materiais temáticos simples se fundam à complexidade dissonante da estrutura rítmica e harmônica. E, ainda que o aspecto áspero ou selvagem seja frequentemente evocado, vestígios românticos podem ressoar em um ponto ou outro, graças, provavelmente, ao fato do                                                                                                                 12

“Although I had conceived the subject of the Sacre du printemps without any plot, some plan of action had to be design for the sacrificial action. For this, it was necessary that I should see Roerich […]. We settled on the visual embodiment of the Sacre and the definite sequence of its different episodes.” 13 “Je crains que le Sacre du Printemps, où je ne fais plus appel à l’esprit des contes de fée ni à la douleur et à joie toute humaines, mais où je m’efforce vers une abstraction un peu plus vaste, ne déroute ceux qui m’ont témoigné, jusqu’ici, une sympathie chère.” 14 “Away with anecdotes, away with action encumbered by pantomimes and more or less ingenious twists in the plot; let us exalt solely the plasticity of movement for its own sake.” 15 O figurino criado por Roerich para as primeiras execuções da Sagração também se preocupou em refletir essa unidade através da uniformidade dos trajes decorados com padrões abstratos construídos com círculos, triângulos e outras imagens geométricas (Pasler, 1986, p. 68).

 

174  

RESSONÂNCIAS   Capítulo  4  

compositor não renunciar completamente alguns princípios de construção melódicoharmônica16. No caso da Sagração, o aspecto ritual, explícito no próprio título da obra, se baseia no desejo, compartilhado por Roerich e Nijinky, de buscar as raízes primordiais da arte, em uma arqueologia que, antes de ser guiadas por intenções científicas, se configurava em uma investigação interior e imaginária por épocas remotas. Segundo Boucourechliev (1986, p. 17), essa maneira de se dirigir a um passado originário não fazia de maneira alguma parte do “espírito do tempo” em que foi concebida a Sagração. Stravinsky estava atraído pela ideia de reconstruir um misterioso passado e, segundo Jann Pasler (1986, p. 69), essa aproximação com um passado imaginário lhe dava liberdade para buscar ritmos e sons não usuais. Eu queria que a totalidade da composição proporcionasse um sentimento de proximidade entre o homem e a terra, a comunidade de suas vidas com a terra, e eu procurei fazer isso com ritmos lapidares. Tudo deve ser colocado na dança do começo ao fim. Eu não fiz um só compasso de pantomima. (Stravinsky apud Pasler, ibid., p. 69)17.

Tanto Stravinsky quanto Roerich situavam o ritmo como elo principal entre homem e natureza. “Música existe se há ritmo, assim como vida existe se há pulso.” (Stravinsky apud Pasler, ibid., p. 69)18. O projeto de composição da Sagração deu a Stravinsky a oportunidade de utilizar o ritmo como elemento musical primário. Para Pierre Boulez, é no ritmo que a Sagração traz sua principal contribuição para a evolução da música ocidental (2008, p. 75136). A tensão harmônica vem da sobreposição de modos sobre uma mesma nota atrativa ou do tratamento das apogiaturas. As notas de passagem no interior da construção rítmica interviriam em nossa percepção harmônica, nos confundindo e escamoteando uma harmonia não tão inovadora, já que a maior parte dos temas são diatônicos ou, até mesmo, construídos sobre escalas defectivas de cinco notas (ibid, p. 77). Com a Sagração da Primavera, Stravinsky dá ao ritmo um estatuto de elemento capital, que conduz a própria estrutura harmônica da obra. O ritmo aparece como o retorno de uma força primeira, como esqueleto formal e até mesmo antecipando a concepção harmônica, como era feito na música de Phillippe de Vitry (1291-1361), Guillaume de Machaud (13001377) ou Guillaume Dufay (1397-1434), por exemplo (ibid., p. 135). Seria a busca pelo arcaísmo que teria permitido que Stravinsky fizesse as mais audaciosas experiências em                                                                                                                 16

“Música selvagem, com todo conforto moderno.” (“Musique sauvage, avec tout le confort moderne”). (Debussy apud Boucourechliev, 1982, p. 12). 17 “I wanted the whole of the composition to give feeling of the closeness between man and earth, the community of their lives with the earth, and I sought to do this with lapidary rhythms. The whole thing must be put on in dance from beginning to end. I give not one measure for pantomime.” 18 “Music exists if there is rhythm, as life exists if there is a pulse.”

 

175  

RESSONÂNCIAS   Capítulo  4  

 

relação ao ritmo. Boulez e Boucourechliev convergem em suas análises quando consideram o aspecto rítmico, na riqueza de suas variações, como o mais inovador e desconcertante no interior de seu momento histórico. Como Boulez tão bem expos em sua análise da Sagração, em seu livro Apontamentos de Aprendiz (ibid., p. 90), o ritmo ou o “tema rítmico” é dotado de existência própria no interior de uma verticalização sonora imóvel e esse pode ser o fenômeno mais importante da obra. O ritmo pode ser o maior centro de interesse da Sagração, porém a contribuição da obra não se limita a ele. A autonomia que Stravinsky confere ao elemento timbre e a importância da unidade encontrada na continua renovação rítmico-harmônica são aspectos fundamentais. Eles se sustentam graças a princípios técnicos generalizados e toda escrita: células rítmicas com suas variações assimétricas, agregados harmônicos sobrepostos, força das polaridades tonais e modais e ostinatos melódicos e rítmicos. No entanto, apesar da grande importância da disposição sonora e jogos de timbre, é na dimensão rítmica que se encontra o ponto de convergência da totalidade das relações que estruturam o fenômeno musical na Sagração (Boucourechliev, 1982, p. 105). Ainda de acordo com Boucourechliev (ibid., p. 93), a Sagração alterna três arquétipos: a Khorovode (K), que são canções tradicionais eslavas, como a melodia do folclore lituano do fagote na região super-aguda no inicio da obra ou como nas melodias que Stravinsky recolhe de um álbum de Rimsky-Korsakov e utiliza na introdução da segunda parte e nas Rodas; a dança (D), com os tempos predominantemente marcados; e a procissão (P), de caráter solene e hierático19. Uma alternância simétrica entre os três arquétipos citados estrutura um grande ritmo de formas que, somado à transferência de procedimentos rítmicos e aos blocos sonoros recorrentes, assegura a coesão da obra20. O verdadeiro escândalo da Sagração da Primavera, tanto para Boulez quanto para Boucourechliev, não se situa na sua polêmica estreia em 1913, mas no fato da obra permanecer como um fenômeno sem procedência e sem descendentes21. Ela se inscreve na                                                                                                                 19

I Introdução

II Introdução 20

Augúrios

Rapto

D

D

Rondas K Rodas

Cidades D Glorificação

Cortejo do sábio

Adoração

P

P

Evocação

Ação Ritual

Dança da Terra D Dança Sacra

O chamado “acorde da Sagração”, apresentado de maneira direta e incisiva no princípio dos Augúrios Primaveris, é repetido 280 vezes no decorrer da obra e, na estaticidade que emergirá, funções harmônicas se tornam valores próprios (Boucourechliev, p. 99). 21 Vagas influências são sentidas em Bartók, Milhaud e Varèse, mas elas se situam em um plano textual e não estrutural. Alguns posicionamentos poéticos de Heitor Villa-Lobos nos fazem pensar em uma possível convergência com Igor Stravinsky.

 

176  

RESSONÂNCIAS   Capítulo  4  

história musical como fenômeno isolado e sua estrutura rítmica, em suas consequências internas, permanece ainda pouco explorada. A sua disposição harmônica alterna verticalização e estaticidade enquanto a articulação formal se manifesta nas massas, nos timbres e nos registros, como vemos claramente na Glorificação. A simplicidade dos compostos sonoros assegura a força de impacto na percepção. […] a Sagração marca, estranhamente, um momento de suspensão. Ela parece se inscrever na contramão da revolução iniciada, fazendo sobre certos planos o balanço do passado e, sobre outros, projetando luzes visionárias. (Boucourechliev, p. 90)22.

E nesse estranho “momento de suspensão” a Sagração traz à tona os principais aspectos ou as principais chaves que apresentamos para uma aproximação da obra de Stravinsky. Ou seja, a solidez estrutural, o apego ao aspecto ritualístico ou sagrado, a vocação arquetípica e uma relação particular com os elementos do passado. Este último item, a propósito, se liga ao desejo de instauração de um passado distante ou algo de primário da relação entre o homem e a natureza. E esse desejo se configura em uma emulação de elementos musicais que lhe pareceram autênticos representantes do passado, não somente de um passado cronológico, mas de um passado como uma raiz que todos carregamos inconscientemente. Um exemplo disso pode ser o material folclórico que deu origem ao primeiro tema da Dança da Terra, citado por Robert Craft na introdução às sketches da Sagração da Primavera (1969, p. XLV):  

Ex. 1: Material folclórico na origem da Dança da Terra da Sagração da Primavera de Stravinsky

Por todas as razões ou atributos apresentados, e muitos outros que não devem ter sido nem mesmo mencionados, o Sacre se firma como obra icônica do século XX. Obra que exibe sua unidade em meio a uma infinidade de fontes, de uma falsa impressão de repetição e de um discurso sólido apesar de heterogêneo.

                                                                                                                22

“[…] le Sacre marque, étrangement, un moment de suspension, semble s'inscrire à rebours de l’évolution amorcée, faisant sur certains plans le bilan du passé, et sur d'autres jetant des lumières visionnaires.”

 

177  

RESSONÂNCIAS   Capítulo  4  

 

c) Pablo Picasso: Unidade e Transformação Em 2006, quando Carsten-Peter Warncke e Ingo F. Walther publicaram um livro sobre Picasso, a obra do artista espanhol ainda não tinha sido catalogada completamente. Há grandes chances de que isso ainda seja válido, visto que a dimensão de sua produção se estende por mais de 30000 obras, entre pintura, desenho, gravura, escultura e cerâmica. Dizem – não somos capazes de nomear a fonte – que Picasso trabalhou todos os dias de sua vida desde a adolescência. Por isso, se em alguma ocasião deparássemos com uma exposição de todas as suas obras, certamente não acreditaríamos se tratar de um único pintor, não só pela quantidade, mas também pela variedade colossal de composições. Tal exposição é tão utópica quanto à tarefa de sintetizar em algumas linhas os aspectos principais da arte de Picasso. Os estudos biográficos e analíticos devem ser quase tão numerosos quanto às próprias obras do artista. Optamos então por nos concentrar em alguns traços que julgamos capitais e que podem nos ajudar na construção de um certo “percurso de semelhanças” entre artes visuais e música. Esse rapaz de 20 anos é capaz de pintar de todas as maneiras atuais. Não sabemos qual é o seu estilo. Em todos é talentoso. Conseguirá ele encontrar um estilo? Tornar-se-á um artista comprometido com algo que pertença somente a ele? (Félicien Fagus apud Schapiro, 2002, p. 20).

O comentário acima foi feito em 1901 pelo poeta simbolista francês conhecido pelo pseudônimo Félicien Fagus (1872-1933). Na virada dos séculos XIX e XX foi quando começou a ser construída a obra de Picasso. Embora o comentário de Fagus seja quanto ao início da carreira do pintor espanhol, ainda hoje, segundo Schapiro, coloca-se em questão sua unidade estilística. Quando chega em Paris, em 1900, alguns dos personagens mais marcantes do Impressionismo ainda trabalhavam: Pierre-Auguste Renoir (1841-1919), Claude Monet (1840-1926) e Camille Pissaro (1830-1903). E muitos outros movimentos artísticos coexistiam nessa cidade: o Pontilhismo, cujo principal representante vivo, Paul Signac (18631935), apresentava uma nova possibilidade de se relacionar com as cores, através da sobreposição e não de misturas; o Simbolismo, com sua recusa à realidade aparente, representado sobretudo por Gustave Moreau (1826-1898) e Odilon Redon (1840-1916); a Art nouveau se misturava na vida cotidiana justamente no momento em que o artesanato se torna indústria e que a arquitetura instaura novos critérios de base. Havia ainda o Fauvismo, cujo representante mais marcante deve ter sido Henri Matisse (1869-1954) no início do século XX,  

178  

RESSONÂNCIAS   Capítulo  4  

exaltando a cor pura e recusando o espaço, à luz e o naturalismo. O gosto pelo exotismo e o interesse pelos povos ditos primitivos, como vemos em Paul Gauguin (1848-1903), também estavam presentes, assim como a particular simplicidade da arte naïf, como a de Henri Rousseau (1844-19010). Outros três nomes ainda devem ser citados como influências contemporâneas aos primeiros anos de Picasso em Paris: Henri de Toulouse-Lautrec (18641901), que se ligava ao mesmo tempo à crítica social e à aspiração a algum tipo de evasão através da arte, Pierre Puvis de Chavanes (1824-1898), com seu “classicismo elegíaco e o grande fôlego de suas vastas composições decorativas” (Argan, 2008, p. 422), e, enfim, Paul Cézanne (1839-1906), que estabelece as bases de uma visão de tendências abstratas onde se conciliam a atividade imediata do olho, que vê, e a atividade imediata do intelecto, que deduz e organiza (Bacquet, 1994, p. 17). Filho de professor de pintura e restaurador no museu de Málaga, Picasso tinha uma certa cultura artística, mas quando chegou em Paris percebeu que estava à margem das principais correntes contemporâneas. É na capital francesa do início do século XX que se constroem as principais bases de seu trabalho artístico. Sua obra é dividida tradicionalmente em alguns momentos ou períodos. Começando pelos trabalhos de juventude (de 1890 a 1901); em seguida os períodos azul e rosa (1901 a 1906); o cubismo (de 1906 a 1915); seu “retorno à ordem”, conhecido como o período neoclássico e a tendência surrealista (de 1916 a 1936); as interseções entre guerra, arte e política (de 1937 a 1953); e, finalmente, uma retomada dos motivos e composições que ele desenvolveu ao longo de sua vida, quase sempre marcada por temas mais intimistas e sem muitas referências ao mundo exterior (de 1954 a 1973). Esta classificação, embora bem aceita, comporta imperfeições no que se refere a delimitação de seus limites. Apesar da clareza destas delimitações, apresentadas nos capítulos da obra de Carsten-Warncke (2006), observa-se concomitância ou interpenetração entre os momentos desta trajetória. O próprio artista, que pouco comentou sua própria obra, não consegue ver nesses períodos resultados de constantes e conscientes pesquisas artísticas23. Essa fragilidade nos limites entre os períodos artísticos e divergências no entendimento da trajetória de um artista não é, certamente, privilégio de Picasso. Mas o pintor espanhol extrapolava. Em um mesmo dia, Picasso poderia pintar na parte da manhã uma obra cubista e na parte da tarde                                                                                                                 23

“Causa-me mal-estar a compreensão do termo busca nas minhas relações com a pintura moderna. Na minha opinião, buscar não tem nenhum sentido em pintura. O essencial é encontrar.” Traduzido do francês: “Je comprends malaisément l’importance du terme recherche dans mes relations avec la peinture moderne. Selon moi, chercher n’a aucun sens en peinture. L’essentiel c’est de trouver. ” Ou: “Eu tento pintar aquilo que encontrei e não aquilo que eu busco.” Traduzido do francês: “Je tente de peindre ce que j’ai trouvé et non ce que je recherche.”. Estas citações foram extraídas do documentário Trèze journées dans la vie de Picasso de Pierre Philippe (1999).

 

RESSONÂNCIAS   Capítulo  4  

179  

 

uma tela no seu estilo neoclássico, caso único na história dos grandes pintores (Schapiro, 2002, p. 44). Sem falar das idas e vindas no interior do próprio trabalho. Características das pinturas que precederam e prepararam o cubismo, por exemplo, com seus estudos do corpo e da forma, foram retomados pontualmente em suas obras dos anos vinte (Deux femmes nues, Femme nue assise les jambes croisées de 1906 e Femme nu assise s’essuyant le pied de 1921 e La Flûte de Pan de 1923, por exemplo). Havia ainda curiosas interseções estilísticas, que podemos chamar de analogias diretas movidas pela emulação dos mais variados modelos. Como por exemplo, a aplicação de técnicas pontilistas ou neoclássicas em reinterpretações de obras de diversas épocas (Le Retour du baptême d’après Le Nain, La Siesta d’après Van Gogh, etc.). Se por um lado parece que a obra de Picasso pode ser lida de maneira sincrônica com os acontecimentos de sua vida afetiva, financeira e em relação com a história, por outro lado, as concomitâncias, os retornos e a diversidade criativa perturbam e muitas vezes tornam artificiais as tentativas classificatórias ou tipológicas. “Porém, o que caracteriza Picasso é seu progresso a partir de retornos ao passado e seu confronto, muito bem pensado e extremamente diversificado, com a tradição.” (Carsten-Peter Warncke, Ingo F. Walther, 2006, p. 143)24. Será que a tradição revisitada em função das exigências da contemporaneidade seria suficiente para creditar unidade à sua obra? Meyer Schapiro defende que, longe de ter uma trajetória artística desconexa por causa de escolhas arbitrárias ou caprichosas, Picasso representa uma ruptura ou uma transformação no próprio conceito de trabalho e produção artística. “Em toda a história não há exemplo de outro pintor que tenha sido capaz de criar tal diversidade de obras e de lhes conferir o poder uma arte bem-sucedida”. (Schapiro, 2002, p. 17). A obra não deve ser considerada incoerente somente por termos dificuldade de perceber a continuidade dos diferentes estilos e de entender que no interior da obra emerge gradualmente um objetivo geral. Sem renunciar a classificação tradicional da obra de Picasso, Schapiro explica as transformações da obra do artista a partir de uma análise que une, de maneira particular, os aspectos biográficos e especificidades de certos trabalhos. A coerência de Picasso estaria na sua gradativa afirmação pessoal e artística, quando, por exemplo, um personagem introspectivo de olhar distante e rodeado de azul vai, pouco a pouco, encarando o receptor, impondo sua personalidade, abrindo os braços, exibindo suas mãos.                                                                                                                 24

“Mais ce qui caractérise l'artiste Picasso, c'est qu'il progresse par des retours en arrière et par une confrontation parfaitement réfléchie et extrêmement diversifiée avec la tradition.”

 

180  

RESSONÂNCIAS   Capítulo  4  

Querer aclarar a questão da unidade em Picasso é o pretensioso desejo de apresentar alguma chave para acessar elementos do núcleo central em sua obra, como buscamos fazer em Stravinsky. Mais do que as confrontos com as tradições e suas idas e vindas na história da arte e em sua própria história, o que parece dar coesão a sua obra residi na própria noção de transformação. A unidade em sua arte surge na medida em que um conjunto de forças preenche cada estágio de sua trajetória. Assim, há dois tipos de transformação: da realidade para abstração, e da abstração para realidade. Picasso é dotado para os dois, tem pleno domínio deles; é capaz de explorá-los e produzir milhares de tipos diferentes de pinturas por meio dessa descoberta da reversibilidade dos processos de transformação na arte. (Schapiro, 2002, p. 57).

A heterogeneidade da obra de Picasso, com essa suposta concomitância de estilos, vem acompanhada de uma potente unidade, nem sempre intelectualmente apreensível. Muitas de suas obras carregam marcas dessa ambiguidade ou paradoxo. Entre as mais marcantes está Les Demoiselles d’Avignon, obra capital na história da arte do século XX.  

 

181  

RESSONÂNCIAS   Capítulo  4  

 

d) Les Demoiselles d’Avigon                                                 Figura 1: Pablo Picasso. Les Demoiselles d’Avignon,1907. Óleo sobre tela, 243.9 x 233.7 cm – Nova Iorque, THE MUSEUM of Modern Art, 201125.

No fim de 1906, as formas tornam-se mais duras, mais angulosas. Elas se afastam da natureza. No lugar do rosa delicado, do amarelo claro e do verde pálido, vemos os tons densos pesarem sobre as formas massivas. No princípio de 1907, Picasso começa um grande e estranho quadro onde aparecem mulheres, tecidos e frutas. Os nus se erguem, congelados como manequins com seus grandes olhos calmos. Os corpos rígidos têm um padrão estritamente arredondado. No primeiro plano, estranhas ao estilo do resto, uma figura agachada e algumas frutas. É o início do combate desesperado que vai se seguir: a conquista do céu. (Kahnweiller apud Seckel, 1988, p. 658)26.

                                                                                                                25

As letras capitais remetem aos sites na internet que estão referenciados no final desta tese. “Vers la fin de 1906, les formes deviennent plus dures, plus anguleuses. Elles s’éloignent de la nature. Au lieu du rose délicat, du jaune clair et du vert pâle, on voit des tons plombés s’appesantir sur des formes massives. Au début de 1907, Picasso commence un grand tableau étrange, où figurent des femmes, des tentures et des fruits. Les nus se dressent, figés comme des mannequins aux grands yeux calmes. Les corps rigides ont un modelé strictement rond. Au premier plan, étrangères au style du reste, une figure accroupie, et une coupe de fruits. C’est le début du combat désespéré qui va suivre, à l’assaut du ciel. ”

26

 

182  

RESSONÂNCIAS   Capítulo  4  

Nem Matisse, Braque, Derain ou Apollinaire, nem outros artistas do círculo de Picasso. Somente o marchand Daniel-Henry Karlnweiler foi capaz de perceber, de imediato, a força da tela Les Demoiselles d’Avignon, que representaria o ponto de partida da arte moderna (Bernadac, Bouchet, 1986, p. 45). Karlnweiler via na obra um desesperado e titânico combate de um pintor que se confrontava com todos os problemas formais da pintura e saudava, no lado direito da tela, o início do cubismo (Steimberg, 1988, p. 320). No entanto, mesmo tal marchand achava que a obra carecia de unidade e ainda não estava acabada. As reações iniciais que a pintura inspirava eram, em geral, uma espécie de susto e surpresa negativa. Ou era vista como uma provocação ou um escândalo. Ou ainda: “É como se você quisesse nos fazer comer estopa ou beber petróleo”, nas palavras de George Braque endereçadas ao amigo espanhol (ibid., p. 45)27. Embora a grande parte da obra de Picasso tenha surgido de um só impulso, a gênese de Demoiselles d’Avignon é constituída de centenas de esboços e estudos. Tantos, a ponto de ter sido considerada a obra que mais possui estudos preparatórios e esboços da história da arte, ao todo, oitocentos e nove (Carsten-Peter, 2006, p. 146). Desenhos, pinturas levadas a cabo, aquarelas, óleos, tudo distribuído entre telas e cadernos de rascunho com uma cronologia difícil de apreender. Picasso avançava e retrocedia em seus estudos, pintava ou desenhava no caderno que via na frente, sem se importar em revelar a ordem das suas descobertas ou pesquisas. A história da arte não conhece nenhum caso comparável em que uma única obra tenha sido precedida de um tão penosa preparação. Esse simples fato exclui totalmente a possibilidade de Picasso ter agido sem reflexão, ou mesmo inconscientemente, ou ainda em um estado de embriaguez criativa. Como mostra a documentação detalhada que possuímos atualmente, essa obra é, ao contrário, fruto de um procedimento lógico e racional, que impressiona pela sua coerência e fecundidade. (Carsten-Peter, ibid., p. 146)28.

Algumas controvérsias aparecem de imediato quando observamos os estudos e críticas sobre o quadro. O histórico de seu título não é tão claro, assim como a duração de sua execução. Foi chamado inicialmente de Les Filles d’Avignon ou Bordel d’Avignon pelo próprio criador ou Bordel Philosophique pelo escritor e crítico de arte Guillaume Apollinaire (1880-1918), em referência ao livro de Marques de Sade intitulado Philosophie dans le                                                                                                                 27

“C’est comme si tu voulais nous faire manger de l’étoupe ou boire du pétrole.” “L'histoire de l'art ne connaît aucun cas comparable où une œuvre unique ait été précédée d'une préparation aussi pénible. Ce seul fait exclut totalement que Picasso ait agi ici de manière irréfléchie, voire inconsciente, ou encore dans un état d'ivresse créative. Comme le montre la documentation détaillée dont nous disposons aujourd'hui, cette œuvre est tout au contraire le fruit d'une démarche logique et rationnelle, impressionnante à la fois par sa cohérence et par sa fécondité.”

28

 

RESSONÂNCIAS   Capítulo  4  

183  

 

boudoir. Seu nome final e atual, dado por um amigo íntimo de Picasso, o poeta André Salmon (1881-1969), não agradou muito ao pintor (Rubin, 1988, p. 376). O que Helène Seckel chama de “mise-en-scène” do quadro, revela algumas informações interessantes com relação à sua gênese. Picasso parte da ideia de ter cinco mulheres nuas acolhendo entre elas dois homens: um marinheiro, vestido de azul e sentado, e o outro, que chega à esquerda do quadro para se encontrar com o grupo, vestido com um paletó marrom, seria um estudante de medicina, que segura algo com o braço direito. Estaria segurando, de acordo com o amigo de Picasso, Alfred Barr, um crânio humano, e daria à imagem alguma conotação moral (Seckel, 1988, p. 642). Mas outras hipóteses quanto à inclusão do marinheiro e do estudante surgem ao longo da história, como de William Rubin, por exemplo, que vê nos dois personagens representações do próprio pintor29. Não nos estenderemos em especulações sobre esses dois personagens masculinos, já que o fato deles terem sido descartados, e com eles uma dimensão narrativa explicitada, deve ser, para nós, o fator mais importante. Algum tipo de abertura para se pensar em uma mensagem moral do tipo vanitas também é eliminada com a saída dos dois homens30. De acordo com Steinberg (1988, p. 324), a obra tem um princípio anti-narrativo, já que as figuras vizinhas não dividem necessariamente um espaço comum, não reagem entre si, nem se comunicam, mas se endereçam separadamente e diretamente ao espectador. Essa ausência de conexão psicológica entre as personagens representadas deveria ser até mesmo algum tipo de intenção estilística deliberada. A despeito da intenção de se desmontar a dimensão narrativa, ela acaba solicitando, de qualquer forma, uma leitura evolutiva, da esquerda para direita. Existe, então, uma tensão entre imobilidade e rigidez quase icônica de um lado, e essa leitura horizontal evolutiva do outro31. Porém essa tensão deve ser resolvida pelo fato das personagens não se relacionarem entre si e acabarem por interpelar o observador de maneira muito incisiva e direta. De qualquer maneira, o abandono da “significação” das Demoiselles veio em proveito de um abstração auto-referencial e fez com que a obra se tornasse, para alguns, como o mais importante documento pictórico produzido no século XX e o paradigma de toda arte moderna, como notou Steinberg (ibid., p. 320). Com a observação dos estudos foi possível concluir que o pintor abandonou o projeto alegórico e, dessa maneira, parece que a forma se sobrepôs ao                                                                                                                 29

William Rubin justifica essa hipótese reunindo vários elementos biográficos e nos esboços e estudos para Les Demoiselles. É possível verificar uma transformação na fisionomia dos homens nos estudos. Eles se convertem gradativamente em mulheres (1988, p. 426). 30 Vanistas é uma categoria de natureza morta com grande carga simbólica, que sugere a volubilidade da natureza humana. 31 A título de curiosidade, observamos que Les Demoiselles d’Avigon e essa leitura horizontal e icônica encontra correspondências na tela Chorinho (1942) de Cândido Portinari (1903-1962).

 

184  

RESSONÂNCIAS   Capítulo  4  

conteúdo. O espaço pictórico, entretanto, ainda parece o espaço de um espetáculo, por mais que evitemos a leitura evolutiva citada acima ou busquemos conectar as mulheres da tela.

Figura 2: Pablo Picasso. Esboço para Les Demoiselles d’Avigon com os personagens masculinos, citado por Hélène Seckel (1988. p. 25). Também acessível no site http://blistar.net/photos/photo14403.html

Durante a gênese de Demoiselles se inscrevem uma série de estudos sobre a forma, a geometrização de elementos e o tratamento do espaço. Por isso, a obra foi considerada, desde as críticas do marchand Kahnweiler, e durante vários anos, como inaugural do Cubismo. Porém, desde os anos oitenta, esta visão não é mais consensual, já que outra obra feita no mesmo período que Demoiselles, a tela Les trois femmes, é considerada por alguns estudiosos, entre eles William Rubin, como o verdadeiro início do Cubismo. De qualquer maneira, o fato da obra ser ou não cubista pertence sobretudo a um plano semântico, ou seja, de como o Cubismo se define (Rubin, 1988, p. 386)32. Quando o marchand Kahnweiller fala na citação acima do combate que se segue à obra, ele alude o que considera a principal missão do cubismo: a incorporação da multiplicidade na unidade. Em boa parte das obras cubistas que se seguirão a Demoiselles d’Avignon ou a Trois Femmes essa tensão entre unidade e multiplicidade fica latente, as formas parecem se construir e se desconstruir aos nossos olhos. É particularmente claro em Demoiselles o posicionamento de Picasso em defesa de uma coerência artística que independe de uma homogeneidade estilística das coisas representadas.                                                                                                                 32

No entanto, Rubim é certo de que a ideia de uma concepção cubista não é o “fato” capital na concepção das Demoiselles (1987, p. 384).

 

185  

RESSONÂNCIAS   Capítulo  4  

 

E essa coerência emerge em meio a um número enorme de emulações e analogias. Sem dúvida, uma certa emulação endereçada a Matisse e Derain atuam como um estímulo para Picasso, incitando-o a superar a arte desses pintores em uma obra-prima que resumiria e ultrapassaria ao mesmo tempo sua própria obra anterior. (Rubin, 1988, p. 368)33.

Três entendimentos do sentido de emulação coexistem nas Demoiselles. O primeiro é de uma emulação como uma dose de desejo de ultrapassar os fauvistas Henri Matisse e André Derain, que pareciam prolongamentos da estética impressionista. O segundo, como apropriação, imitação e transformação daquilo para o qual se tem zelo, apreço. E essas fontes são as mais variadas. Havia de um lado, obras de diferentes períodos que o influenciaram em Demoiselles: A Visão de São João (1609-1614) de El Greco, Trois baigneuses(1879-1882) e Cinq baigneuses (1877-1878) de Cézanne, Le Bain turc (1862) de Ingres, Nu bleu (1906) de Matisse. Por outro lado, uma tendência ao chamado “primitivismo” dos ideais de Gauguin (cerâmica Oviri), nas esculturas ibéricas mais antigas da Espanha encontradas perto de sua cidade natal ou no conhecimento da arte egípcia presente no Louvre e nas máscaras e objetos tribais observadas com surpresa e admiração no museu de etnologia do Trocadéro, em Paris, no verão de 1907. E um terceiro entendimento da noção de emulação – ligada a qualquer relação modelo-cópia, associada diretamente à mimeses ou à imitação – pode se aplicar ao fato de Picasso ter revelado particular interesse pelos doentes de enfermidades venéreas, tendo, inclusive, visitado a enfermaria da prisão de Saint-Lazare em Paris e o hospital Santa Cruz e São Paulo em Barcelona. Observando as fotos de doentes desses hospitais no final do século XIX, que foram reproduzidas por William Rubin, não fica difícil estabelecer alguma relação com as mulheres do lado esquerdo da tela34. Em meio a essa profusão de referências, tensões internas, ambiguidades, impactos, rupturas estilísticas, a unidade do quadro deve vir, segundo Steinberg, “da consciência siderada de um espectador que se percebe visto (1988, p. 324)35. Junto às emulações de obras de períodos longínquos veio o desejo do pintor de isolar os componentes fundamentais da linguagem plástica e buscar as origens do modo de representação do homem pelo homem. Assim, o deslumbramento de Picasso em face das                                                                                                                 33

“À n’en pas douter, une certaine émulation à l’endroit de Matisse et Derain joua le rôle d’aiguillon pour Picasso, en l’incitant à dépasser leur art dans un ‘chef-d’œuvre’ qui résumerait et surpasserait en même temps son œuvre antérieur.” 34 Rubin reproduz algumas fotos de doenças cutâneas e sifilíticas do acervo do museu do hospital Saint-Louis de Paris. Algumas das deformidades não parecem muito distantes da aparência da mulher agachada no lado direito da tela estudada (1988, p. 421). 35 “[...] de la conscience sidérée d’un spectateur qui se voit vu.”

 

186  

RESSONÂNCIAS   Capítulo  4  

obras do Museu de Etnografia do Trocadéro chegou a ser descrito pelo pintor como a descoberta do próprio sentido da pintura (Rubin, 1988, p. 373). E essa descoberta das obras antigas, ditas “primitivas”, foi determinante na gênese de Demoiselles. O arcaísmo acaba por conferir à tela uma dimensão hierática como manifestação original de expressividade. As obras do Trocadéro tinham o peso de uma função ritual e psicológica que suscitou em Picasso grande interesse, a ponto dele mesmo considerar Les Demoiselles como uma tela de exorcismo, uma espécie de talismã curativo associado a ritos de passagem (Rubin, ibid., p. 373). A pintura nessa grande tela funcionaria como um catalisador de uma crise emocional e sentimental, uma maneira de exorcizar seus próprios demônios, conforme entendeu Rubin. A variedade de estilos empregados somente exteriorizava os instrumentos que Picasso forjara para escavar as camadas mais profundas de seu espírito. Como toda grande obra, Les Demoiselles d’Avignon levanta uma série de questões e se revela como um extenso campo de descobertas e de leituras. Tomando-se consciência ou não da complexidade de sua gênese e do lugar que a obra se inscreve na história, o poder de chocar, o imediatismo, a percepção da dimensão hierática, enfim, toda força expressiva da tela parece estar latente na própria natureza de sua combinação de formas e cores. e) Stravinsky e Picasso Não seria nada surpreendente encontrar semelhanças na trajetória de dois artistas que se tornaram amigos e dividiram durante anos a mesma cidade. Através do Zeitgeist explicaríamos, por exemplo, o fato de ambos, na década de vinte, se voltarem para modelos de expressão clássica e rejeitarem temporariamente à arte de vanguarda36. Mas nem o espírito do tempo, nem a relação de amizade, seria o bastante para explicar ou elucidar algumas outras semelhanças, igualmente profundas, que notamos ao confrontar Stravinsky e Picasso. Quando nos aproximamos de obras de vários períodos dos dois artistas, mesmo em momentos anteriores à vida em Paris, salta aos olhos o domínio técnico dos gestos pictóricos e composicionais e a liberdade com a qual ambos se apropriavam dos sistemas técnicos de diversos períodos. As ligações, na grande maioria das vezes, não são diretas, óbvias ou mesmo reveladas nas cartas e depoimentos das pessoas que testemunharam a relação dos artistas, como por exemplo, Sergei Diaghilev, o empresário dos Ballets Russes. Os elos mais                                                                                                                 36

Aquilo que foi chamado por Jean Cocteau de rappel à l’ordre, algo como “convocação da ordem”, se refletiu em várias instâncias artísticas em resposta ao cenário do período pós-guerra. A Neue Sachlichkeit (nova objetividade) na Alemanha, as obras literárias de T.S. Eliot e Paul Valéry e o neorrealismo do artista plástico André Derain, também ilustram essa tendência.

 

187  

RESSONÂNCIAS   Capítulo  4  

 

interessantes se situam principalmente em instâncias poéticas e em uma dimensão mais profunda da relação que ambos entretinham com seu tempo e a história. Em um entendimento amplo da noção de apropriação ou aplicação, podemos dizer que tanto um artista plástico como um compositor, quando intencionam fertilizar suas obras, podem se utilizar de vetores externos ao seu próprio domínio, sem que isso represente, necessariamente, uma ameaça à autonomia de sua arte. É nesse sentido que são guiadas as reflexões de Pierre Boulez nas suas curtas alusões a algum tipo de paralelo entre Picasso e Stravinsky nas conferências no Collège de France entre 1978 e 1988, reunidas e apresentadas por Jean-Jacques Nattiez no livro Jalons (pour une décennie) (1989)37. [...] o gesto do compositor recorre à reflexão sobre o estado presente de seu ser musical, de sua consciência, e, através da transgressão e da dedução, ele força certas barreiras que, até então, pareciam intransponíveis. [...]. Todo criador pode ser sensível a uma experiência que não lhe concerne diretamente e, indo além da diferença de aspecto, ser influenciado por um ou outro ponto de vista que ele encontre na sua própria linguagem. (Boulez, 1989, p. 130-131)38.

Seria possível, então, estabelecer tipologias de encontros, virtuais ou não, entre compositores e artistas plásticos como Webern e Mondrian, Debussy e as obras finais de Cézanne, Léger e Varèse, Schoenberg e Kandinsky, Stravinsky e Picasso, Ravel e Matisse. Mesmo que uma similaridade, ou um gesto profundo, dependa de uma época, nem sempre serão as circunstâncias diretas que levarão dois criadores a “formular sua expressão através de meios de uma profunda similaridade” (Boulez, ibid., p. 131)39. Quando um artista se apropria de uma referência exterior à sua arte e a percebe como próxima ao objetivo da sua própria criação, ele não o faz pelo valor intrínseco dessa referência, mas sim pelo que ela pode trazer para sua obra. Ou seja, o valor central será sempre sua própria estética. O compositor francês, mesmo reconhecendo semelhanças profundas entre poéticas de artes distintas, insiste sobre o fato dos objetos artísticos nunca se tocarem realmente e dos gestos do pintor e do compositor serem sempre autônomos. Existiria, então, um reconhecimento ou identificação de valores estéticos comuns implícitos, voluntariamente ou não, na poética da produção de Stravinsky e Picasso, apesar da autonomia de suas artes.                                                                                                                 37

Em outra obra intitulada Le Pays fertile: Paul Klee, Pierre Boulez sugere a existência de profundas semelhanças entre Demoiselles d’Avignon de Picasso e Le Sacre du Printemps de Stravinsky. Como o livro se concentra evidentemente no entendimento da obra de Klee pelo autor/compositor, as identidades comuns entre Picasso e Stravinsky não são aprofundadas. 38 “[...] le geste du compositeur a recours à la réflexion sur l’état présent de son être musical, de sa conscience, et par la déduction et la transgression, il force certaines barrières qui, jusqu’alors, luit avait paru infranchissables. […]. Tout créateur a pu être sensible à une expérience qui ne le concerne pas directement, et par-delà la différence de l’aspect, être influencé par tel ou tel point de vue qu’il trouvait dans son propre langage.“ 39 “[...] formuler leur expression avec des moyens d’une similarité profonde.”

 

188  

RESSONÂNCIAS   Capítulo  4  

As apropriações de sistemas pictóricos e musicais emergem sob a forma de uma emulação em que o apreço por certas obras e artistas parece predominar sobre um possível sentido de disputa ou competição. Em Picasso, Boulez cita a “visita” que ele faz a Manet, à Delacroix e a Velásquez40. Em Stravinsky, exemplos não faltam. Além dos já apresentados neste texto, o compositor francês cita: Debussy no Rossignol, Webern em Agon e a apropriação da música de Pergolèse na suíte do balé Pulcinella. É nessa última, de 1924, que se concretiza uma parceria objetiva entre os dois, quando Picasso projeta o cenário para a balé. O compositor e o artista plástico são guiados por uma espécie de “universalidade” nas apropriações que fazem de um corpus musical ou pictórico extremamente amplo. Na liberdade dessas assimilações e na aparente heterogeneidade de suas obras residem alguns dos elementos a partir dos quais reconhecemos os gestos do pintor e do compositor em cada obra. Na aparência de rupturas emerge a continuidade na trajetória desses artistas. Além da maneira similar com a qual os dois se relacionavam com a história, um outro aspecto deve ser notado. Mesmo na aparência, por vezes arquetípica de suas obras, ambos não se atêm a sistemas, pois o foco principal deve habitar nas ideias e é no interior delas que as hierarquias se estabelecerão. No caso do artista plástico, a figuração, entendida na sua forma corrente, não é negada. No compositor, o sistema tonal também não é rejeitado, em grande parte de sua obra. Quanto menos sistema existir, mais teremos livre arbítrio, mais a percepção deverá passar pela reflexão, a vontade de apreender, a necessidade de re-escutar para estar pronto para apreciar. A liberdade da ação de escrever induz inexoravelmente a uma escuta ativa, capaz de analisar e de estabelecer relações. (Boulez, ibid., p. 333)41.

Tanto em Picasso quanto Stravinsky, embora obedeçam a certas normas gerais, não parecem ter tido a preocupação em reforçar estruturas de sistemas. Na pintura, qualquer pequena referência a complementaridade cromática, já é suficiente para ir ao encontro de um sistema de cores bem estabelecido. Na música, se um ou outro elemento individual faz menção ao sistema tonal, já é o bastante para que o ouvinte, instintivamente, se referencie. São as ideias dos dois artistas que constroem seus próprios sistemas, sem acomodar-se ou estabelecer claramente novos códigos42.                                                                                                                 40

“Le Déjeuner sur l’herbe” de Manet, “Les Demoiselles d’Algérie” de Delacroix e “Las meninas” de Velasquez estão entre as obras que serviram de modelo para Picasso. 41 “Moins il y a de système, plus il y a de libre arbitre, plus la perception devra passer par la réflexion, la volonté de saisir, la nécessité de réentendre pour être en mesure d'apprécier. La liberté dans l'action d'écrire entraîne inéluctablement une écoute active, capable d'analyser et de mettre en rapport.” 42 “Mais o sistema é forte, até mesmo tirânico, mais existe espontaneidade na reação do ouvinte, até entrar no domínio, desigualmente bem-vindo, do previsível.” (Boulez, 1989, p. 333). (“Plus le système est fort, voire

 

189  

RESSONÂNCIAS   Capítulo  4  

 

Mesmo sendo possível estabelecer certas conexões diretas entre obras precisas dos dois criadores estudados, as forças que aproximam suas estéticas parecem se situar em um plano mais profundo: na maneira como eles buscaram respostas para os impasses da arte do fim do século e em suas relações com a história das artes musicais e plásticas. f) O Sagrado e o Bordel: Ressonâncias Embora exista uma infinidade de interseções biográficas nas trajetórias de Picasso e Stravinsky, no momento em que construíam Les Demoiselles e Le Sacre não encontramos nenhum registro que comprove algum tipo de aproximação dos dois. É importante lembrar que, para que haja ressonância, segundo o entendimento desta pesquisa, não pode ter havido nenhum tipo de contato entre as obras ou os artistas colocados em relação. O primeiro encontro de Picasso e Stravinsky deve ter se dado somente em 1917, quando passavam alguns dias em Roma. O compositor apresentaria o Pássaro de Fogo e Fogos de Artifício com o balé russo de Diaghilev, enquanto o pintor cuidava do cenário do balé Parade, em colaboração com Eric Satie (1866-1925), Jean Cocteau (1889-1963) e Leonide Massine (1896-1979), obra que seria apresentada pela mesma companhia de dança43. Vimos, na parte anterior, que as ressonâncias começam como impressões de semelhança e terminam como similitudes legitimadas por uma observação mais aprofundada. No caso da Sagração e Demoiselles, a primeira semelhança percebida deve ser na maneira direta e imediata com a qual essas duas obras nos interpelam. A potência desses sons, cores e formas se afirmam logo em um primeiro olhar ou audição podem, no mínimo, deixar nossos sentidos em estado de alerta e provocar algum incômodo, seja ele agradável, próximo da surpresa e da estupefação, ou desagradável, horror diante de algo visto como feio e informe. Talvez, por isso, tenha causado escândalo. Júlio Medaglia, parafraseando um crítico da época, nomeou “Massacre du printemps” um capítulo de seu livro Música Impopular (2003). Medaglia interrogou o maestro Pierre Monteux, regente da estreia no Théâtre des Champs Elysées, e reproduz seu depoimento da seguinte forma: O mundo vinha, literalmente, abaixo. Caíam ininterruptamente coisas sobre a orquestra e o palco. Os apupos mal permitiam ouvir a execução, que eu, bravamente, levava adiante. De diversos pontos da orquestra, músicos, que também não acreditavam na obra,

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                          tyrannique, plus il y a spontanéité dans la réaction de l'auditeur, jusqu'à entrer dans le domaine, inégalement bienvenu, du prévisible”). 43 A título de curiosidade, foi nessa ocasião que Picasso conhece Olga, sua primeira esposa. Ela fazia parte do corpo de dança de Diaghilev.

 

190  

RESSONÂNCIAS   Capítulo  4  

tocavam, mesclando com os sons do “Sacre”; a Marselhesa, Frère Jacques e coisas assim. Ao término da apresentação, com receio de sermos linchados, Stravinsky, Diaghilev, Nijinsky e eu, ao som dos ruidosos gritos de protesto, escapamos por uma saída subterrânea. (Medaglia, ibid., p. 49).

No que diz respeito às reações contra Les Demoiselles d’Avignon, o escândalo se restringiu às pessoas próximas a Picasso, como mostra os testemunhos organizados no catálogo organizado por Seckel. Henri Matisse, por exemplo, ficou furioso quando viu pela primeira vez a tela e sua reação imediata foi de considerá-la como uma tentativa de ridicularizar o movimento moderno, segundo o depoimento de Fernande Olivier, a primeira relação de longo termo de Picasso (Seckel, 1987, p. 671). A escritora Gertrude Stein, de acordo com Alice Toklas, ficou tão chocada que não foi capaz de falar sobre o quadro (ibid., p. 683). Mais tarde, na medida em que a tela foi sendo conhecida, as reações eram sempre apaixonadas e imediatas. O crítico de arte Leo Steinberg, ainda no catálogo organizado por Seckel, disse o seguinte: “Nenhuma obra moderna consegue nos interpelar com um imediatismo tão brutal.” (ibid., p. 322)44. E o mesmo autor cita, em nota de rodapé, outro crítico, Robert Rosemblun, que evoca ainda “a potência dissonante, bárbara da obra, sua força mágica e sua intensidade psicológica.” (ibid., p. 321)45. Quando passamos dessas analogias que tem como termos comuns o imediatismo e os escândalos e resolvemos penetrar um pouco mais profundamente no conteúdo das obras, outros elos vão se revelando. Como por exemplo, no que concerne suas dimensões hieráticas. Ambas carregam um aspecto emblemático e solene que parece logo se converter na imposição de uma espécie de “liturgia”. E quando nos voltamos à gênese das obras essa convergência de intenções fica bastante clara. Existia um desejo pelo originário, por redescobrir essências. De um lado a “virtude mágica” que move os homens na fabricação das imagens, de outro o anseio de acessar tempos primitivos e as raízes primordiais da arte, simbolizadas ou “materializadas” pelo ritmo. Ambos os artistas estavam atrás das origens dos modos de representação ou corporificação da arte, sejam eles sonoros ou visuais46. O hierático das obras também pode ser evocado na sua função ritual. Stravinsky, durante a composição do Pássaro de Fogo, em 1910, imaginara uma música para balé tendo                                                                                                                 44

“Aucune peinture moderne ne vous interpelle avec une immédiateté aussi brutale.” “la puissance dissonante, barbare de l’œuvre, sa force magique et son intensité psychologique.” 46 Poderíamos pensar que essa tomada de posição estética provinha do “espírito do tempo”, mas logo, com um pouco mais de reflexão, veríamos que, nas artes visuais, o chamado “primitivismo” evocava o passado de maneira bem diferente, em um procedimento mais arqueológico e em uma alusão mais romantizada do exótico. Na música, Boucourechliev fala de um lirismo e de um espírito de divertimento que predominavam na época da Sagração (1982, p. 17). 45

 

191  

RESSONÂNCIAS   Capítulo  4  

 

como mote a chegada triunfal da primavera na Rússia pagã, segundo sua autobiografia (2000, p. 44). Sua impetuosidade criadora imaginava rituais dantescos, nos quais tribos primitivas da “Rússia pagã” se exorcizavam através da música e da excitação física, ou, como no caso da “Sagração”, em que uma virgem era sacrificada, dançando até a morte, a fim de homenagear os deuses que traziam de volta a tão esperada primavera. (Medaglia, 2003, p. 46).

Por outro lado, Picasso estabelecia analogias entre sua própria arte e os talismãs protetores das antigas culturas. Sua obra seria uma maneira de dar forma aos espíritos e assim exorcizá-los47. Dessa forma, Picasso, ao pintar Les Demoiselles, também praticava algo próximo a um rito de passagem, já que o exorcismo também seria uma forma de sacrifício. Ambos percorriam um duplo caminho na construção de seus rituais: a busca pelo primordial, que se configura em algo interior e inato; e uma livre investigação do passado cronológico, materializado pelo interesse de Picasso pelas esculturas negras e ibéricas e pela apropriação de temas musicais da Rússia antiga por parte de Stravinsky. Esse desejo de se apropriar do passado, movido por apreço e admiração, é o que chamamos de emulação. Ambos os artistas tinham em comum, como vimos, a liberdade em transitar e se apossar da história e, paradoxalmente, essa mesma liberdade e a heterogeneidade dos modelos acabam por construir a unidade de suas artes. E o que verifica na globalidade da produção, também se vê na individualidade das obras. No caso de Demoiselles e da Sagração a questão da problemática da unidade parece ser potencializada. Certas obras que as antecederam e as sucederam, encontram uma unidade, digamos, mais confortável. Petruschka (1910-1911) e Noces (1923, porém iniciada em 1914) de Stravinsky, e o Autorretrato (1906) ou Le Joueur de guitarre (1910) de Picasso são alguns exemplos de obras bem-sucedidas e menos tensas do ponto de vista formal. A consideração que Steinberg fez sobre Demoiselles deve também ser válida para a Sagração: “Existe, apesar de tudo, um espírito dominante que anima o conjunto da obra, uma unidade de tema e de estrutura, e esta intimidação insolentemente lançada na direção de quem a observa.” (Seckel, 1987, p. 343-344)48. Interessante observar que esse “incômodo” da unidade intriga e, provavelmente, estimula inúmeras teorias e hipóteses a cada nova inserção nessas duas obras. Em Picasso, além das já tradicionais associações com a arte negra e ibérica, existem as referências aos                                                                                                                 47

A psicanálise chama de “ab-reação” um processo inconsciente que resolve problemas através da exteriorização. 48 “Il y a bien, après tout, un esprit dominant qui anime l’ensemble de l’œuvre, une unité de thème et de structure, et cette sommation insolemment lancée à celui qui regarde.”

 

192  

RESSONÂNCIAS   Capítulo  4  

doentes de sífilis e à arte egípcia no Louvre, por exemplo. Em Stravinsky, somente o primeiro acorde de Augúrios Primaveris, logo após a introdução, suscitou numerosas divergências na sua classificação49. Existe, em ambas, uma coerência estilística nada evidente de se penetrar e, talvez por isso, seja tão difícil apreciar a significação artística das duas obras. Um outro aspecto no que concerne à gênese das duas obras deve ser mencionado: a opção de ambos os artistas por renunciar ou reduzir aspectos narrativos em suas criações. Stravinsky, como mostramos, se esforçou na direção de uma abstração mais vasta, e tentou, na medida do possível, se afastar de um enredo muito detalhado e descritivo. Queria se ater ao fundamental, no sentido mais vasto da palavra, tanto musicalmente quanto plasticamente, na execução do balé. Picasso renunciou à ideia original que comportava personagens masculinos e trazia à tona conteúdos que poderiam ser considerados como anedóticos e moralistas. No entanto, embora seja esse desejo de concisão se configure no imediatismo com o qual as obras nos interpelam, na pintura e na música as dimensões temporais também se impõem com bastante força. Em Demoiselles, o tempo cronológico se revela na linha evolutiva, da esquerda para direita que conduz a transformação das mulheres e na evidente ruptura entre o lado direito e o esquerdo da tela. Na Sagração é a variedade ou alternância rítmica e dos diferentes arquétipos (“Khorovode”, danças e procissões) que contribuem ao “resgate” da linearidade musical. Nas duas obras coexistem um tipo de temporalidade visual e sonora e uma vontade de suprimi-la. Esses diálogos entre o instantâneo e o cronológico são particularmente acentuados e geram um tipo de tensão no interior de cada obra, independentemente do espectador conhecer a gênese da tela ou da música do balé. A consequência mais importante dessa “renúncia” à narração, entretanto, pode não ser essa tensão temporal. O grande passo que Picasso dá em direção à modernidade está no fato da obra se auto-referenciar e impelir o espectador a participar daquela imagem. Stravinsky, por sua vez, nega ou subverte o romantismo que ainda se fazia presente na época e, dessa forma, também avança em direção ao moderno. O lirismo que podemos sentir na Sagração provém das melodias, intencionalmente ancestrais, que são, muitas das vezes, informes ou assimétricas. Pelo fato das duas obras possuírem um núcleo que, ao mesmo tempo, enfatiza um argumento imediato em detrimento de uma narratividade e impõe uma dimensão hierática,                                                                                                                 49

A mais tradicional classificação é a de um acorde de fábMaior com três apogiaturas inferiores (mib, sol, sib) acrescido de um réb. Uma outra seria o inverso dessa: acorde tonal de mibM com três apogiaturas inferiores no grave (fáb, láb, dób), e a apogiatura inferior da tônica, réb, constituindo a sétima acrescida do acorde de base. Outro entendimento vê o acorde como politonal constituído de um fábM e de um mibM simultâneos (Boucourechliev, 1982, p. 103-104).

 

RESSONÂNCIAS   Capítulo  4  

193  

 

ambas acabam por ganhar uma aura de arquétipo. Mas, curiosamente, nem a tela nem a música se configuram efetivamente como ou em um sistema claro. A música tem um lugar isolado na história e nem mesmo seu autor perseverou no caminho que abriu. Quanto à pintura, embora seja inegavelmente um marco da modernidade, ela não é nem mesmo aceita como primeira obra cubista. O aspecto arquetípico que as duas obras comportam talvez venha do virtuosismo formal, da solidez estrutural e pela paradoxal coesão de seus sistemas e ordens internos. As ressonâncias entre Les Demoiselles d’Avigon e a Sagração da Primavera podem provir ainda de outro fator, o ritmo50. No caso da tela de Picasso, o aspecto rítmico inovador, embora não se possa esboçar com a precisão da música de Stravinsky, é intuído e pode ser descrito como uma maneira nova de se tratar a forma e sugerir novos caminhos na representação de relações tridimensionais. Quanto à Sagração, por mais que existam análises que enfatizem aspectos melódicos e harmônicos, há um certo consenso em creditar ao ritmo a função central nessa música. Observa-se, nas duas obras, que é o ritmo, como organizador do tempo ou do espaço, que parece conduzir o tratamento harmônico e melódico da música e as cores na tela. A dimensão litúrgica e a vocação arquetípica convocam o “sagrado” dessas obras. Mas são acompanhadas de seus mais ferrenhos opositores. Forças “profanas” nos fazem ver caos em meio à ordem e evocam novos estados mentais. Observar, em paralelo, as duas composições, é admirar o confronto dessas duas forças, o percurso das semelhanças no interior de cada obra e a ressonância que se produz entre elas e no nosso espírito. Mais ainda, o imediatismo, a vocação hierática e ritual, o desvio da narratividade, o ritmo “bárbaro e dissonante”, a liberdade na emulação de modelos, a relação com a história, a maneira particular de buscar o “primitivo” e o originário, a unidade paradoxal e tensa, a importância como evento na história da pintura e da música, tudo isso deve justificar inclusão das Demoiselles d’Avignon e da Sagração da Primavera no interior das ressonâncias reivindicadas neste capítulo.

                                                                                                                50

Se em uma tela o termo “forma” se ajusta mais confortavelmente que em música, o contrário acontece com o “ritmo”. Vamos considerá-lo em pintura como a maneira através da qual se divide o espaço da tela, ou seja, como elemento organizador do espaço físico, onde um conjunto de linhas, formas e cores se inserem.

 

194  

RESSONÂNCIAS   Capítulo  4  

3. György Ligeti encontra Mark Rothko: Atmosphères e Black Painting n.1 Diferente da aproximação entre as obras da seção anterior deste capítulo, o encontro entre Atmosphères e Black Painting n.1 não foi sugerido nem desenvolvido por outros autores. Parte de uma intuição de semelhança, ou seja, de uma emoção análoga no contato com essas obras, e segue em direção a uma investigação de aspectos poéticos e estéticos que permitiram tal percepção. As ressonâncias surgem desse contato virtual entre obras e de uma reflexão sobre uma série de coincidências e correspondências de diversos aspectos na trajetória artística e nas especificidades do trabalho desses dois artistas. a) As Obras Atmosphère (1961) […] é uma música que desperta a impressão de fluir continuamente, como se não houvesse início nem fim. O que escutamos é um corte de algo que começou desde sempre... Há muito poucas cesuras; a música realmente flui. Sua caracterização formal é a de ser estática: somente uma impressão. No interior dessa estagnação, do estático, acontecem progressivas transformações. Imaginaria a superfície da água, sobre a qual uma imagem se reflete. Essa superfície se dobra pouco a pouco, e a imagem desaparece, porém muito progressivamente. A água se torna novamente lisa e nós vemos uma outra imagem. (Ligeti apud Embeoglou, 1992, p. 29) 51.

Black Painting n.1 (1964) A paleta negra de Rothko pode ter exacerbado o sentido da dificuldade dos observadores em apreender seus quadros. Ele deixou cada vez mais seus observadores, literalmente, no escuro, lutando para ver os traços de seu pincel, sua tênue linguagem pictórica, e trazer à tona sua escuridão, focalizar seus retângulos desfocados. Para alguns críticos, esta opacidade esta associada com qualidades atmosféricas, e os retângulos são frequentemente citados como nuvens vaporosas. As formas de Rothko nunca são tão indefinidas, informes, ou insubstanciais como esta metáfora sugere, e, no entanto, eles não se movem sem direção. Ao contrário, eles são inequivocamente, se não precisamente, ajustados, centrados, alinhados, e hierarquicamente ordenados. Enquanto os retângulos de Rothko são frequentemente vistos como névoas ou nuvens, os limites de suas pinturas são normalmente descritos em termos arquitetônicos como janelas ou aros, por exemplo. Mas os limites de suas pinturas, quando possível, evidenciam uma insubstancialidade – ora através de sua grande estreiteza, sua relativa escuridão, ora através da fantasmagórica

                                                                                                                51

“[…] c’est une musique qui éveille l'impression de s'écouler continument, comme si elle n'avait ni début, ni fin. Ce que nous entendons est une coupe de quelque chose qui est déjà commencé depuis toujours.... Il y a très peu de césures; la musique continue donc vraiment à couler. Sa caractérisation formelle est d'être statique: qu'une impression. A l'intérieur de cette stagnation, de cette statique, il y a de progressives transformations. Je penserais ici à une surface d'eau, sur laquelle une image se reflète. Cette surface se ride au fur et à mesure, et l'image disparaît, mais très progressivement. L'eau redevient lisse et nous voyons une autre image.”

 

195  

RESSONÂNCIAS   Capítulo  4  

 

fragilidade que foi conseguida através de uma pincelada à seco em uma fina camada de cor sobre uma tonalidade branca ou luminosa. (Chave, 1989, p. 184)52.

                                                        Figura 3: Mark Rothko. Black Painting n.1, 1964. Óleo sobre tela, 105 x 80 cm. – Basileia, KUNSTMUSEUM Basel, 200953. Também acessível no site: http://www.tate.org.uk/whatson/exhibition/rothko/room-guide/room-6-black-form-paintings

                                                                                                                52

Rothko’s dark palette may have exacerbated the viewers’ sense of the difficulty apprehending his pictures. He left viewers increasingly, literally, in the dark, struggling to read the traces of his brush, his faint painterly language, and to bring his murky, blurry rectangles into focus. In some critics' eyes, this blurriness is associated with atmospheric qualities, and the rectangles are often described as vaporous clouds. Rothko's forms are never quite so undefined, amorphous, or insubustantial as this metaphor implies, however, and they do not drift aimlessly. To the contrary, they are unmistakably if not precisely, squared off, centered, aligned, and hierarchically ordered. Whereas Rothko's rectangles are often seen as mists or clouds, his paintings' borders are often described in architectural terms as windows or doorframes, for example. But it is the paintings' borders, if anything, that evince an insubstantiality – sometimes through their very narrowness, sometimes through their relative darkness, and sometimes through a ghostly fragility of surface that was achieved by dry-brushing a thin layer of color over another white or light tone. 53 Todas as reproduções de obras de arte são, evidentemente, cópias imperfeitas de um modelo. Essa premissa é particularmente verdadeira na obra de Rothko, já que todos os efeitos da incidência luminosa previstas pelo pintor são quase inteiramente aniquilados na imagem reproduzida. Anna Chave (1989, p. 12) comenta na introdução de seu livro a incapacidade de se imprimir em papel a obra deste artista. Por isso, solicitamos um esforço de abstração para aqueles que não tenham entrado em contato com Blacking Painting n.1.

 

196  

RESSONÂNCIAS   Capítulo  4  

b) Arte Fractal As maquinações da ambiguidade estão entre as raízes da poesia. (Epson, 1966, p. 3)54.

O cientista Benoît Mandelbrot era fascinado por geometria. Sentia-se, porém, incomodado com a vocação dessa disciplina de simplificar as formas das coisas. Ele queria apreender o mundo com suas reentrâncias e imperfeições, em vez de, em grosseiras analogias, entender a lua como uma esfera ou uma montanha como um cone, por exemplo. A geometria precisava dar conta da realidade e sair do mundo platônico de formas perfeitas e inexistentes. Mandelbrot notou que as coisas, em suas finitudes aparentes, comportavam algo de infinito. Embalado por uma ciência que não parece assim tão longe da poesia, o cientista estabelece as bases do que chamou mais tarde de “geometria fractal”. Fundamentou-se em objetos matemáticos propostos em meados do século XIX, que supostamente não tinham grande valor científico. Um fractal, em uma rasa explicação, seria o gráfico de uma função matemática contínua em uma área limitada. O cientista, que lecionou Fisiologia na Faculdade Albert Einstein de Medicina, Economia em Harvard, Engenharia em Yale, corroborou com a teoria de que as formas geométricas poderiam conter contornos de extensões ilimitadas no interior de uma área restrita. Através de um processo de adição de triângulos no interior de uma circunferência que delimitava as extensões do primeiro triângulo, e a partir de um principio organizador chamado “autossemelhança”, Mandelbrot afirmava o infinito contido no finito55. Sem a coerência ou o rigor da matemática, mas com a potência de uma metáfora, esse princípio fundamental da geometria fractal inicia nossa busca por ressonâncias em um estudo comparado de uma tela do artista estadunidense de origem russa Mark Rothko (1903-1970) e de uma obra orquestral do compositor húngaro György Ligeti (1923-2003). Pois a primeira impressão de semelhança percebida pelo autor desta tese entre Black Painting n.1 (1964) e a obra orquestral Atmosphères (1961) surgiu justamente da ambígua e paradoxal impressão de um continuum no interior de superfícies e durações bem delimitadas. Essa analogia com a

                                                                                                                54

“The machinations of ambiguity are among the very roots of poetry.” O pensamento de Mandelbrot encontrava seu fundamento em um objeto matemático chamado “curva de Koch”. Ela funciona da seguinte maneira: no meio de cada lado de um triângulo equilátero, acrescenta-se um triângulo com o terço do tamanho original. Surgirá a forma de uma estrela de Davi, com um contorno mais extenso que o triângulo inicial. Repete-se o processo, dessa vez desenhando dois pequenos triângulos em cada lado das pontas da estrela. E então se repete indefinidamente o processo (Sales, 2010).

55

 

RESSONÂNCIAS   Capítulo  4  

197  

 

geometria fractal, no caso de Atmosphères, já tinha sido sugerida pelo próprio compositor húngaro em seu livro Neuf essai sur la musique (2001, p. 21) 56. Sabemos que a ambiguidade é uma força que move boa parte das grandes obras de arte. No caso das duas obras analisadas, não é o fato delas terem uma ambiguidade interna que as aproxima e sim as similitudes existentes nos termos dessa ambiguidade. Frente à tela de Rothko e à música de Ligeti somos surpreendidos por uma experiência em dois tempos. Black Painting e Atmosphères se revelam imediatamente como algo estático: por um lado uma massa sonora e, por outro lado, um tecido monocromático. Em seguida, após alguns segundos, desde que fixamos nossa atenção, aquilo que parece estático vai se transformando e se movimentando, como gazes que se expandem e se contraem. Chamar essas manifestações sonoras e visuais de “gasosas”, por mais que possa parecer algum tipo de licença poética, não é de maneira alguma gratuito ou puramente especulativo. Os próprios artistas revelaram, em suas poéticas, estratégias que nos estimulam a perceber as obras como gazes. Em Ligeti, isso fica evidente desde o título, propositalmente colocado em língua francesa por ela comportar dois sentidos: uma conotação mais material, digamos, meteorológica, como evocação de camadas atmosféricas flutuantes, vagas e sem contorno; e uma conotação mais figurada, equivalente ao que em português chamamos de “clima” e em inglês “mood”. Seu equivalente em língua alemã, “Atmosphäre”, se limita à primeira conotação (Delaplace, 2007, p. 44). Segundo as regras inscritas nas primeiras páginas da partitura, não se deve perceber as entradas dos instrumentos e a peça se inicia com um cluster de 59 notas em pianissimo e em uma extensão de cinco oitavas. Não é difícil pensar nessa massa sonora, densa e delicada ao mesmo tempo, como vapores, gazes ou “nuvens de sons” 57 . Um grande cluster pode se representar como um enorme bloco monolítico denso, pesado e, provavelmente, agressivo. Mas se esse mesmo grande bloco for tocado com leveza, sem métrica visível e sem ataque inicial ele acaba enfatizando seu aspecto “atmosférico”. Em determinado momento, do compasso 75 ao 78, ouvimos todo o naipe de metais produzindo, em pppp senza surdina, sons de sopros sem notas precisas, o que, de mateira diferente que o efeito inicial de bloco sonoro, também pode remeter a efeitos de gases (ex. 2).

                                                                                                                56

Mandelbrot e Ligeti chegaram a se encontrar em um congresso de matemática em Bad Neuenahr em 1986. O compositor situou o Kyrie de seu Requiem (1963-1965) como obras pré-fractal inconsciente. 57 Este último termo, aliás, foi muito usado pelo compositor grego Xenakis que o aplicou, no entanto, para caracterizar um tipo de cluster pulverizado ou distribuído no tempo, como descreveu Francis Bayer (1987, p. 128)

 

198  

RESSONÂNCIAS   Capítulo  4  

 

Ex. 2: compassos 75-79 de Atmosphères de Ligeti.

Na obra de Rothko, o aspecto vaporoso também é mencionado. Por exemplo, na citação de Anna Chave do início desta parte, na qual ela alude “qualidades atmosféricas” nas obras de Rothko, ou nas intenções do próprio pintor de conceber telas em que o espectador fique envolvido em gazes, de acordo com Rosenthal (2007, p. 60). A percepção de algo vaporoso vem do efeito de transparência (light-filled) que Rothko utilizou desde os anos quarenta até nas telas escuras monocromáticas (Rosenthal, ibid., p. 56). Como Youssef Ishaghpour nos relata, Rothko tinha todo um processo de preparação da tela e toda uma técnica para nos deixar fruir de suas transparências (2003, p. 3). Primeiro ele cobria sua tela com uma cola colorida com pigmentos, em seguida deixava uma camada fina de tinta óleo  

199  

RESSONÂNCIAS   Capítulo  4  

 

para que a própria matéria da tela se tornasse cor. Sobre esse fundo ele aplicava mais uma camada de tinta, com pigmentos em pó, têmpera de ovo e solvente. Aplicando leves camadas de cor transparente, ele reduzia a matéria até o momento em que as partículas dos pigmentos estivessem dissociadas da fina película e aderissem à superfície. Dessa forma, a luz poderia penetrar a leve camada de tinta, atingir as partículas de pigmento e retornar para inundar a superfície que irradiava cor. Variando texturas, as gradações tonais e a profundidade das camadas, experimentando graus de transparência com as misturas de óleo, têmpera de ovo e solvente, Rothko levava suas cores ao limiar da desintegração para criar sua luz. (Ishaghpour, ibid., p. 10-11)58.

Logo, pensar na tela de Rothko e na música de Ligeti como obras relacionadas à matérias gasosas não é simples e vaga metáfora. E uma primeira ressonância pode ser visualizada com clareza na similitude com a qual os dois criadores produziram “matéria gasosa” em suas artes. Esses “gazes” visíveis e audíveis das obras dos dois artistas aparentam-se estáticos e tranquilos em uma primeiro contato, mas, desde que fixamos nossa atenção, se expandem e se retraem sem cessar. Como dissemos, foi essa impressão inicial que nos fez vislumbrar ressonâncias comuns nos trabalhos de Rothko e Ligeti. Na música, massas sonoras formadas por clusters que variam em extensão, duração e em timbre bastam para produzir uma sensação de expansão e retração que é, na maioria das vezes, lenta. Quando nos aproximamos da partitura, podemos verificar que, no interior dessas grandes expansões ou retrações, existem dinâmicas internas, crescendos e diminuendos em vários momentos. Em um grande crescendo geral, por exemplo, muitos instrumentos “incham” e “desincham” sem cessar e, mesmo no interior de dinâmicas estáticas, isso acontece. Deve vir daí as incessantes vibrações internas que percebemos em Atmosphères. Uma perpétua mobilidade é acompanhada de uma estagnação quase total produzida pelo efeito gasoso dos clusters. Este efeito ambíguo na percepção foi desejado por Ligeti quando buscou conscientemente uma unidade entre simultaneidade e sucessão em sua música e teve, de acordo com Michel, inspiração de Anton Webern e seu tratamento de cânone em uníssono com variação rítmica em um grande número de vozes (1995, p. 172). Na pintura, as vibrações internas também são percebidas, porém de maneira mais sutil. Rothko dizia que para encontrar o que ele queria dizer com suas telas era preciso buscar                                                                                                                 58

Appliquant des couches légères de couleur transparente, il amincissait la matière jusqu'à ce que les particules de pigments soient dissociées de la fine pellicule et adhèrent à la surface. Ainsi la lumière pouvait pénétrer la légère couche de peinture, frapper les particules de pigment et revenir inonder la surface qui irradiait de couleur. En variant les textures, les gradations tonales et la profondeur des couches, en expérimentant des degrés de transparence avec des mixtures d'huile, de tempéra à l'œuf et du diluant, Rothko portait ses couleurs au seuil de la désintégration pour créer leur luminosité.

 

200  

RESSONÂNCIAS   Capítulo  4  

aquilo que estava entre a expansão e a contração que anima suas superfícies (Arasse, 2006, p. 84). Como diz Rothko, seus quadros se dilatam, abrem-se a todo espaço e em toda direção […] e, ao mesmo tempo, todo o espaço, de toda direção, se contrai e se fecha em si mesmos. Este movimento contrário ele chama de “sopro” dos seus quadros. “Entre esses dois polos, vocês encontrarão o que quero dizer”. (Ishaghpour, 2003, p. 20)59.

As ambiguidades de base que apresentamos, sob a égide do “finito infinito” da geometria fractal, geram alguns outros paradoxos não menos interessantes. É o caso da dialética entre a horizontalidade e a verticalidade das obras. Ligeti, quando quer buscar uma unidade entre sucessão e simultaneidade, é a união do vertical e do horizontal que ele persegue (Caznok, 2007, p. 155). O compositor se interessava pela articulação dessas duas dimensões através das relações de distancia que se instaura entre compassos e pelo papel de cada partícula musical em relação ao todo que produz energia (Dellaplace, 2007, p. 26). Essa maneira especial de tratar das dimensões verticais e horizontais, muito visível em Atmosphères, foi chamada por Francis Bayer de “espaço sonoro unitário” (“espace sonore unitaire”), onde as duas instâncias tendem a se apagar (1987, p. 13). […] eu sempre penso em vozes, em camadas, e construo meus espaços sonoros como texturas, como fios de uma teia de aranha, sendo que a teia é a totalidade e o fio o elemento de base. [...]. Se você me pergunta: “por que o cânone?”, eu lhe responderei: “pela unidade horizontal/vertical. (Ligeti apud Michel, 1995, p. 172)60.

Quanto a Rothko, é sobretudo através da sensação de suspensão do retângulo no centro da tela que se pode produzir essa dupla ressonância vertical/horizontal. Devido à fragilidade das linhas que delimitam o bloco central, ele se relaciona com o fundo com simultaneidade e sucessividade e a própria sensação de expansão e retração em todas as direções parece construir esse espaço unitário, vertical e horizontal.

                                                                                                                59

“Comme le dit Rothko, ses tableaux se dilatent, s’ouvrent à tout l’espace et en toute direction [...] et en même temps c’est tout l’espace, de toute direction, qui se contracte et s’enferme en eux. Ce mouvement contraire il appelait, « le souffle » des ses tableaux. ‘Entre ces deux pôles, vous trouverez ce que je veux dire’.” 60 “[...] je pense toujours en voix, en couches, et je construis mes espaces sonores comme des textures, comme les fils d'une toile d'araignée, la toile étant la totalité et le fil l'élément de base. […]. Si vous me demandez: ‘pourquoi le canon ?’, je vous répondrai : ‘pour l'unité horizontal/vertical’.”

 

201  

RESSONÂNCIAS   Capítulo  4  

 

c) Afirmando Uma Nova Teatralidade Algo que também pode vir a se constituir como ressonância nesta tese tem a ver com a maneira radical com a qual os dois artistas lidavam com o tempo em suas obras ou, mais especificamente, com as noções de narrativa e argumento. Por vias diferentes das duas obras estudadas anteriormente (Sagração da Primavera e Les Demoiselles d’Avignon), Ligeti e Rothko buscam conscientemente um imediatismo na comunicação de suas obras. Ambos querem incluir, da maneira mais direta possível e de uma só vez, o espectador no núcleo da música e da imagem, independente dos julgamentos de gosto ou estético. A impressão de imediatismo na peça orquestral de Ligeti, por exemplo, reflete o desejo do compositor de ver suas obras apreendidas, não como fruto de uma racionalização temporal, mas como vivência corporal imediata (Casnok, 2007, p. 180). A significação deve se impor antes de qualquer procedimento analítico de nossa compreensão. Trata-se de redescobrir, da maneira mais intacta possível, esta realidade musical primária e imediata, anterior a toda formatação do tipo discursivo, e de restituir todo seu poder expressivo, geralmente neutralizado e aprisionado por regras de uma organização artificial de origem cultural. (Bayer, 1987, 129-130)61.

O “poder de choque” de algumas obras de Ligeti, ainda segundo Bayer, pode ser atribuído ao fato dos clusters serem portadores de uma significação imanente para o sensível e se revelarem imediatamente na experiência perceptiva (ibid., p. 141). No caso de Mark Rothko, a comunicação imediata e o desejo de obter um impacto perceptivo, também estavam entre suas preocupações centrais. “Um quadro não é uma pintura de uma experiência, ele é uma experiência”, disse Rothko em 1959. [...]. Os quadros de Rothko foram calculados para terem um intenso impacto perceptivo, para se endereçarem ou confrontarem-se com os observadores do modo mais claro e imediato possível, engajando suas emoções e respondendo, pelo menos, às suas necessidades não materiais. (Chave, 1989, p. 172)62.

Em ambos os artistas, essa comunicação direta e inclusão do espectador, além de ser uma negação da narratividade linear, submissa ao tempo cronológico e à memória, é também proposição de um outro tipo de aproximação ou de experiência estética. Tanto em Rothko                                                                                                                 61

“Il s'agit donc de redécouvrir, aussi intacte que possible, cette réalité musicale première et immédiate, antérieure à toute mise en forme de type discursif, et de lui restituer tout son pouvoir expressif, généralement neutralisé et emprisonné par les règles d'une organisation artificielle d'origine culturelle.” 62 “’A painting is not a picture of an experience; it is an experience’, said Rothko in 1959. [...]. Rothko’s pictures were calculated to have an intense perceptual impact, to address or confront viewers as clearly and immediately as possible, engaging their emotions and responding, at the least, to their nonmaterial needs.”

 

202  

RESSONÂNCIAS   Capítulo  4  

quanto em Ligeti havia um desejo de se aproximar diferentemente dos seus respectivos materiais artísticos. Em Rothko, um “novo mundo plástico” deveria ser perseguido, como o próprio afirmou diversas vezes em seu livro La réalité de l’artista (2004). Os efeitos de expansão e retração, e da unidade entre horizontalidade e verticalidade, mencionados mais acima, substituíam uma dimensão mais explicitamente anedótica. Esse efeito se estabelece no decorrer do tempo, evidentemente, mas é o espaço que parece precedêlo. E essa porção de espaço acaba por se constituir como uma espécie de emblema dos artistas. Em Ligeti, o efeito espacial levado às últimas consequências em Atmosphères, já podia ser sentido na sua obra antecedente, Apparitions (1958-1959), e se reproduziu em outras de anos seguintes, como Volumina para órgão (1961-1962), Lux Æterna para coro misto (1966) e Lontano para grande orquestra (1967), por exemplo. Ele cria, assim, uma sonoridade bem característica, sobre a qual outras considerações virão no decorrer deste texto. Em Rothko, seus blocos imprecisos flutuantes, a transparência e a luz das imagens que se estabeleceram como fundamentos de sua pintura desde os anos 50, tomam igualmente ares de emblema. Os dois visavam comunicar-se de maneira direta e sem muitas complexidades intelectuais. Esse aspecto emblemático, talvez icônico, das obras dos dois artistas acaba por converter a narratividade convencional em algum novo tipo de teatralidade. A narrativa se transforma em um lugar onde a “história” se apresenta de imediato, na interseção das retrações e expansões, da simultaneidade e da sucessão. Mas essa vontade de ambos os artistas de construir o que chamamos de “nova teatralidade” não era mais uma aspiração de ruptura com estéticas românticas ou impressionistas tardias, como o foi poucas décadas atrás com Stravinsky e Picasso, por exemplo. No caso de Rothko, havia um apego enorme ao aspecto trágico da arte como reflexo da vida. Sua fascinação pelos mitos gregos e seu apreço pelo Nascimento da Tragédia de Nietzsche, nunca abandonaram sua visão artística. A espiritualidade do pintor invocava o trágico, a Grécia antiga, sem que o pintor se engajasse necessariamente em alguma tradição mística (Chave, 1989, 192)63. A pintura de Rothko é retórica no sentido em que ela rearticula, na abstração, a busca retórica (clássica) de efeito patético. [...]. Nesse pintor, a teatralidade é indissociável de uma busca retórica de efeito. (Arasse, 2006, p. 89)64.

                                                                                                                63

Apesar dele ser frequentemente associado com algum tipo de religiosidade, ele não tinha uma firme visão espiritual e não seguia dogmas ou doutrinas. (Chave, 1989, 192). 64 “[...] la peinture de Rothko est rhétorique au sens où elle réarticule, dans l’abstraction, la recherche rhétorique (classique) de l’effet pathétique. [...] Chez lui, la théâtralité est indissociable d’une recherche rhétorique de l’effet.”

 

203  

RESSONÂNCIAS   Capítulo  4  

 

Em Ligeti, por outro lado, a dimensão trágica não estava sempre explicitamente declarada, ao menos no caso de Atmosphères. No entanto, algum tipo de teatralidade se inscreve em sua obra. Não foi por acaso que o diretor Stanley Kubrick escolheu Atmosphères para introduzir o filme 2001: Uma Odisseia no Espaço, produzido em 1964, três anos depois da estreia da obra orquestral. Durante os dois minutos e meio que dura o trecho da obra musical vemos uma tela completamente negra. Interessante observar também que essa “nova teatralidade” não estava necessariamente em acordo com o Zeitgest, o “espírito do tempo”. Rothko e Ligeti guardam uma distância estratégica frente aos movimentos e códigos de sua época. Embora tenha tido um contato próximo com a vanguarda europeia, sobretudo em Darmstatt, e tenha manifestado simpatia pelo movimento Fluxus, Ligeti se manteve aberto às músicas e influências artísticas que vinham de toda parte do planeta65. Não apenas em Atmosphères, mas na totalidade da obra de Ligeti, não existe nenhuma adesão à sistemas que parecessem fechados – como o serialismo integral do fim dos anos cinquenta e começo dos sessenta – ou abertos – como a entrega ao acaso, nos passos de John Cage. Além da não adesão a sistemas e ordens do tempo, havia também em Ligeti uma recusa espontânea ao euro-centrismo. No caso de Rothko e dos abstracionistas norte-americanos, havia de fato um anti-eurocentrismo que se configurava na afirmação da autonomia de Nova Iorque como centro de vanguarda, sobrepondo-se à Paris. No entanto, Rothko não se enquadrava nos movimentos vigentes e nem gostava de ser incluído no grupo dos abstracionistas da chamada Escola de Nova Iorque, por considera-los afastados da vida das pessoas que o cercam (Chaves, 1989, p. 194). Essa “nova teatralidade” se configura igualmente na caracterização da impressão de algo estático: de uma superfície negra aparentemente imóvel e de uma música que parece não ter início nem fim, uma mobilidade discreta, mas imperiosa, vai se estabelecendo através de diversas estratégias. Atmosphères está repleta de transformações tímbricas e no tecido sonoro. Na dialética do continuo e do descontínuo impõe-se uma vibração interna constante onde mobilidade e estagnação oscilam perpetuamente. Ligeti se instala no mundo do contínuo, desde o início, e é no seio dessa continuidade original que aparecerão gradualmente pequenos elementos sonoros, infinitesimais e muito

                                                                                                                65

Em Darmstadt eram realizados festivais anuais onde se reuniam estudantes de música a partir de 1946 e que veio a se tornar um importante polo de criação musical nos meados do século passado. Quanto ao movimento artístico Fluxus, ele surgiu nos anos sessenta sob a tutela de John Cage e sob influências do dadaísmo e da filosofia zen. O movimento se caracterizava, entre outras coisas, por uma recusa às instituições de arte e ao próprio conceito de obra de arte.

 

204  

RESSONÂNCIAS   Capítulo  4  

diversificados, que vão instaurar uma micro-descontinuidade no próprio interior da continuidade do conjunto da trama sinfônica. (Bayer, 2007, p. 137)66.

Curiosamente, esta música contínua com micro-descontinuidades é chamada de música estática. De acordo com Griffits (1983, p. 41), Ligeti já havia tido a ideia de fazer uma música deste tipo dez anos antes de Atmosphères. A obra Apparitions para orquestra (19581959) e Fragments (1961) já comportam características do caráter estático desejado pelo compositor húngaro. É também de Griffts a única alusão a Mark Rothko encontrada na bibliografia consultada sobre o compositor húngaro. O autor se refere a obra Fragments e a um dos nove ensaios sobre a música escritos por Ligeti (Neuf essai sur la musique, 2001): A peça inteira é um estudo do que Ligeti chamou de “permeabilidade” de estruturas musicais em “Metamorfoses da Forma Musical”, mostrando como algumas texturas podem se misturar com muitas outras, enquanto outras se mantem sempre separadas. Não é, no entanto, uma obra que convida a apreciação detalhada de como ela é composta: seus clusters resistem à penetração da inteligência, e ficamos com um sentimento de temor, como diante de um dos grandes painéis de Rothko. (Griffiths, ibid., p. 38)67.

Em Atmosphères existe apenas um verdadeiro golpe contra a continuidade. Quatro flautins atingem notas muito agudas (pautas superiores) junto a quatro violinos (pautas centrais), quando são surpreendidas por um pequeno, porém violento, cluster nos contrabaixos no compasso 40, letra G, reproduzida na página seguinte. Logo em seguida a continuidade é retomada.

                                                                                                                66

“Ligeti s'installe dès le départ dans le monde du continu, et c'est au sein de cette continuité originelle que vont apparaître peu à peu quantité de petits événements sonores infinitésimaux fort divers qui vont instaurer une microdiscontinuité à l'intérieur même de la continuité d'ensemble de la trame symphonique.” 67 “The whole piece is a study in what Ligeti in 'Metamorphoses of Musical Form' calls the 'permeability' of musical structures, how some textures will mix with a great many others, some stand always apart. It is not, however, a work that invites detailed appreciation of how it is composed: its clusters resist the penetration of the intelligence, and one is left with a feeling of awe, as before one of Rothko's large panels.”

 

205  

RESSONÂNCIAS   Capítulo  4  

 

 

Ex. 3: compassos 38-42 de Atmosphères de Ligeti.

No caso da Black Painting, a sensação de que estamos frente a algo estático é perturbada pelos contornos nítidos e imperfeitos do retângulo central, bem como pelas marcas de pincel em diversas direções, sobretudo na parte inferior da tela. Os retângulos não retangulares de Rothko atuam, teatralmente, no papel das figuras com relação ao fundo sobre o qual eles surgem; mas são também lugares, vibrantes de uma presença ausente, virtual. (Arasse, p. 90)68.

A teatralidade mencionada na citação de Arasse não se manifesta, no entanto, em uma linearidade narrativa, mas como um efeito geral e espetacular do que o pintor chamou inúmeras vezes em seus escritos de “drama humano”. Um nova teatralidade era buscada pelo                                                                                                                 68

Les rectangles non rectangulaires de Rothko jouent, théâtralement, le rôle des figures para rapport au fond sur lequel ils surgissent; mais ce sont aussi des lieux, vibrants d’une présence absente, virtuelle.

 

206  

RESSONÂNCIAS   Capítulo  4  

pintor. Algo que o aproximaria, talvez, do cinema de Michelangelo Antonioni (1912-2007). “Seus quadros são como meus filmes, não falam sobre nada...com exatidão”, disse uma vez o pintor ao cineasta (apud Wick, 2008, p. 45)69. No sentido inverso, do cineasta ao pintor, existe o seguinte relato em carta: [...] a cada vez, nesses quadros que parecem feitos de nada, quer dizer, somente de cor, eu descubro algo novo, descobrimos tudo que está por trás da cor, que lhe dá sentido, drama, enfim, poesia. [...]. Tive a ocasião de te dizer até que ponto eu sinto – talvez com presunção - que sua pintura é próxima do meu trabalho, que seria apenas como uma experiência fantástica. (Antonioni apud Wick, ibid., p. 45)70.

Independente das distintas motivações que moviam os dois artistas, Rothko e Ligeti, e do fato deles não terem tido algum tipo de relação durante suas vidas, existem ressonâncias importantes nas maneiras com as quais esses artistas trouxeram à tona, em Atmosphères e Black Painting n.1, uma “nova teatralidade”, seja na preocupação de incluir imediatamente o espectador ou ouvinte, seja no modo em que suas “histórias” são contadas. d) “Protegendo” e “Violando” Sistemas Tanto o pintor quanto o músico se relacionavam de maneira similar com o passado e os sistemas artísticos vigentes. Dellaplace, para ilustrar a relação que Ligeti entretinha com o passado, fala que o compositor se comportava como uma Vestal, virgem que protegia o fogo sagrado no Fórum Romano, e como o ladrão desse mesmo fogo (2007, p. 21). Ao mesmo tempo que protege, viola, se apropria do fogo e dá a ele um novo fim. É evidente que a quase totalidade dos artistas se apropriam de técnicas do passado para readaptá-las, cada qual à sua maneira. Desde que não se acomodem em um sistema e sigam à risca seus códigos, os artistas serão sempre “protetores e ladrões do fogo”. No caso de Ligeti, porém, essa atitude de proteger e violar parece extremamente realçada em sua obra. Uma maneira bem particular de se articular o passado e o novo se faz notar em Ligeti quando ele se apropria, por exemplo, daquela que é talvez a mais “clássica” das estruturas

                                                                                                                69

“Vos tableaux sont comme mes films, ils parlent de rien... avec exactitude.” “[...] chaque fois, dans ces tableaux qui paraissent faits de rien, c'est-à-dire seulement de couleur, je découvre quelque chose de nouveau, on découvre tout ce qu'il y a derrière la couleur, qui lui donne du sens, du drame, bref de la poésie. […]. J'ai eu l'occasion de vous dire à quel point je sens - peut-être avec présomption - que votre peinture est proche de mon travail, ne serait-ce que comme expérience fantastique.”

70

 

207  

RESSONÂNCIAS   Capítulo  4  

 

musicais, o contraponto71. Em Atmosphères, assim como em outras obras posteriores (como Lux Æterna, 1966), Ligeti se utiliza da linguagem canônica. Sua formação musical tradicional unida à admiração que tinha pela obra de Johannes Ockeghem, compositor belga do século XV, o fez explorar, ou extrapolar, os limites da polifonia. Em Ockenghem, ele diz afeiçoar-se pelas imitações, ao mesmo tempo retrogradadas e livres (Michel, 1995, p. 171). O que acontece em Atmosphères é que Ligeti sobrecarrega de tal maneira a linguagem polifônica que ela acaba por se tornar imperceptível. Na verdade, o que na partitura é cânone, na recepção é uma massa sonora. A emulação de modelos de um passado remoto na história da música acaba se elevando ao paroxismo. Ligeti trabalha com a saturação das vozes, chegando até mesmo a sobrepor canonicamente 48 vozes, como vemos a partir do compasso 44, letra H, que reproduzimos somente as pautas dos 14 primeiros violinos.

 

Ex. 4: compassos 44-47 de Atmosphères de Ligeti.

[...] eu utilizei inúmeras vezes o cânone, eu o nomeei “sobressaturado”, pois existem tantas vozes, ele é tão denso, que não escutamos a polifonia, mas um bloco sonoro com movimentos interiores. Eu utilizei muito essa técnica, mesmo em obras bastante recentes. (Ligeti apud Michel, 1995, p171)72.

                                                                                                                71

Clássica entendida em um sentido amplo, comportando uma solidez arquitetural e uma grande coerência na distribuição das partes em um todo. 72 “[...] j'ai utilisé de nombreuses fois le canon, je l'ai nommé canon "sursaturé", car il a tellement de voix, il est tellement dense, que l'on n'entend pas la polyphonie, mais un bloc sonore avec des mouvements intérieurs. J'ai beaucoup utilisé cette technique, même dans des œuvres assez récentes.”

 

208  

RESSONÂNCIAS   Capítulo  4  

A analogia de Delaplace da Vestal e do ladrão do fogo faz mais sentido quando, após a experiência de ouvir Atmosphères, nos voltamos para a partitura. Ligeti potencializa a tensão entre presente e passado na medida em que ao mesmo tempo é fiel a uma técnica antiga e, ao leva-la às últimas consequências e sobrecarrega-la, acaba por traí-la de maneira fatal. Somente abandonando o elemento épico da história é possível buscar um digno encontro presente-passado continuamente renovado que seja sempre uma experiência particular que destaque os principais pontos da história em vez de apresentar uma imagem eterna, suavizada pela ditadura dos desdobramentos de ordem casual. A inquietude é também aquela, legítima, de se deixar absorver pela herança, de imergir na abertura cultural na qual o compositor deve ao mesmo tempo levar em conta e abstrair. (Delaplace, 2007, p. 21)73.

Assim como Ligeti, Mark Rothko também parece ser um artista que “protege e rouba o fogo”. Rothko entretinha uma forte relação com uma arte visual de uma grande solidez estrutural, aquela da Renascença. Ao contrário de Ligeti, em que a obra estudada pode ser considerada como auge de sua primeira fase, ou mesmo o estopim de sua carreira internacional, a pintura negra da qual nos aproximamos ilustra o final da carreira e da vida de Rothko. Até chegar em seus retângulos transparentes e flutuantes da sua chamada fase clássica, da qual Black Painting n.1 é herdeira direta, o pintor teve uma trajetória artística de uma grande coerência. Anna Chave (1989) apresenta algumas das forças maiores que orientaram a obra de Rothko na seguinte ordem: um apreço pelo expressionismo e pelos temas seculares orientados por certa inclinação política; segue-se um interesse pelo mito e pelo drama, que ele guardou por toda vida; uma afeição pelo surrealismo; um impulso primitivista e um interesse crescente pelo conteúdo emocional; e, finalmente, sua fase clássica, que começa nos anos 40 e que quase todos os aspectos anteriores são preservados, acentuando-se, porém, a busca pela luminosidade e as tensões entre figura e fundo, ausência e presença, mobilidade e estaticidade, sujeito e objeto, microcosmo e macrocosmo. Em textos que escreveu entre 1940 e 1941 e que se foram editados somente em 2004 com o título de Realidade do Artista, Rothko comenta sua relação com o passado. O artista diz não pretender se desprender do passado e sim avaliá-lo da maneira mais consciente

                                                                                                                73

“C’est au prix de l’abandon de l’élément épique de l ‘histoire qu’il est possible d’envisager un rencontre présent-passé digne à chaque fois renouvelée, qui soit toujours une expérience particulière, qui éclaire les points saillants de l’histoire au lieu d’en présenter une image éternelle, lissée par la dictature des enchainements d’ordre causal. L’inquiétude est aussi celle, légitime, de se laisser absorber par l’héritage, de se noyer dans le ban culturel dont le compositeur doit à la fois tenir compte et faire abstraction.”

 

209  

RESSONÂNCIAS   Capítulo  4  

 

possível e reorientá-lo em direções onde ele possa ser perpetuado com uma força crescente e criar assim, o que o pintor chamou de “novos mundos plásticos” (2004, p. 77). Nas pinturas a partir dos anos quarenta, em sua fase chamada de clássica, Rothko recapitula e se apropria de obras figurativas do passado e as transforma através de analogias estruturais que preserva certos traços de alguns códigos preexistentes. O pintor aplica em uma arte não figurativa elementos de uma arte figurativa e estabelece assim uma série de relações formais. Rothko vai construindo sua obra a partir de duas vias complementares: um sentido intuitivo de distribuição de valores no espaço e um apego por proporções exatas, como notou Oliver Wick (2008, p. 8). Por trás de telas supostamente não figurativas, emulações e analogias de modelos de quinhentos anos no passado. É o caso da tela Number 18 de 1948 e seu modelo Adoração dos Magos de 1526, pintado por Quentin Massys74.

 

 

                                                                                                                                                            Figura 4: Mark Rothko. Number 18, 1948. Óleo sobre tela,170,18 x 142,24 cm. Collection of the Vassar College Art Gallery, Poughkeepsie (Chave, 1989, p. 195)

                                                                                                                                      Figura 5: Quentin Massys. Adoração dos Magos,1526, Têmpera e óleo sobre madeira, 103 x 80 cm. – Nova Iorque, THE METROPOLITAM Museum of Art, 2011

Imagens disponíveis em : http://www.vassar.edu/archives/2011/12/02 e http://www.wga.hu/index1.html

As estruturas clássicas perseveram consciente e intencionalmente nas obras de da maturidade de Rothko, mas só se revelam se nos aproximamos do seu pensamento e de sua                                                                                                                 74

Anna Chave cita ainda o Number 17 de 1947 e Madona e a criança de Giovanni Bellini e o Untitled de 1949 da coleção do Wadsworth Atheneum de Hartford, que tem como referência direta a Sagrada Família, painel de um tríptico atribuído a Roger van der Weyden do Museu da Capela Real de Granada.

 

210  

RESSONÂNCIAS   Capítulo  4  

poética. A Black Painting n.1 não nos remete diretamente a um modelo preciso de emulação, no entanto, aquele que veio a ser uma das maiores recorrências da obra de Rothko, o retângulo flutuante, permanece. Na coerência da trajetória artística desse artista, é certo que as forças ou reflexões sobre o espaço a partir dos modelos antigos permanecem também na Black Painting n.1. É nessa maneira particular de manter vivas linguagens ou conteúdos artísticos do passado, ainda que com efeito “desvirtuado”, que os dois artistas apresentam o que sentimos como ressonâncias comuns em suas obras. Elas devem brotar do afinco com o qual eles se apegam e protegem o passado. O músico e o pintor desenvolvem suas emulações, permeadas de muita admiração e apreço, e violam algo de muito profundo nesses modelos. Preservam e violam os objetos de suas emulações. e) Obras Multissensoriais Tanto Ligeti quanto Rothko tinham uma maneira especial de se relacionar com a percepção de suas próprias obras e com as artes vizinhas. Ligeti força o aparecimento de uma nova postura perceptiva. Como notou Caznok, o compositor procura convocar as sensações globais do nosso corpo para moldar as texturas e densidades das massas sonoras que cria (2007, p. 137). O compositor admitia o complexo psíquico-emocional como um sistema híbrido e sinestésico e, por isso, procura evocar no ouvinte uma sensação de organicidade e a consciência de uma multisensorialidade (Caznok, ibid., p. 136). Além de um pensamento mais amplo sobre a integração dos sentidos, o músico, em seus escritos e entrevistas, nos expõe sua vasta cultura visual e seu interesse por diversos artistas plásticos. Maurits Escher (1898-1972), por exemplo, com suas ilusões óticas, o influenciou na composição de Continuum, de 1968, para cravo (Ligeti, 2001, p. 20). Seu interesse pelas artes vai além de um sentido de complementaridade e chega realmente a planos técnicos. “A pintura, em primeiro lugar, influenciou enormemente seu procedimento criador. Ele se refere, entre outros, a Van Gogh, Magritte, Escher, Mondrian, Paul Klee, Steinberg, Peter Blake, Roland Topor.” (Michel, 1995, p. 143)75. Da parte de Rothko, havia também algum interesse pela arte dos sons e, de acordo seu livro A Realidade do Artista (2001, p. 91), ele estava a par das experiências dos anos quarenta                                                                                                                

75  “La   peinture   en   premier   lieu   a   fortement   influencé   sa   démarche   créatrice.   Il   se   réfère   entre   autres   à   Van  

Gogh,  Magritte,  Escher,  Mondrian,  Paul  Klee,  Steinberg,  Peter  Blake,  Roland  Topor.”  

 

211  

RESSONÂNCIAS   Capítulo  4  

 

em que a música deseja se apropriar de maneira mais efetiva do espaço através de amplas harmonias verticais e da pintura que tentava produzir sensações de tempo através de intervalos rítmicos. Segundo Youssef Isaghpour (2003, p. 15), Rothko tocava bandolim e piano, chegando até mesmo a desejar se tornar músico profissional. Para o pintor, as duas formas de expressão artística, música e pintura, eram ambas ligadas pela noção maior de movimento. […] existe aí uma espécie de experiência sinestésica originária onde o sonoro se mistura intimamente não somente ao visual [...], mas também e, talvez, sobretudo ao cinestésico, que parece atuar em primeiro plano. Com efeito, quando falamos de espessura de um bloco sonoro, trata-se de uma sensação essencialmente cinestésica, da qual a percepção de um cluster nos fornece uma espécie de equivalente sonoro; da mesma maneira, o espessamento e a retração progressivos dos clusters produzem, no auditor, uma manifesta impressão de mobilidade cinestésica. A percepção dos clusters, de glissandi, de nuvens de sons, assim como os movimentos que os ligam, é uma percepção que, além da sua dimensão estritamente auditiva, solicita uma atenção e uma participação ativa de nosso corpo; nós podemos falar, então, de uma fixação corporal dessas estruturas figurativas elementares do tipo contínuo nas profundezas de nosso “sentir originário”. Isso talvez explique que suas significações, de ordem essencialmente qualitativas, sejam captadas de uma vez pela percepção, sem que nós tenhamos necessidade de recorrer a qualquer de mediação, seja de qual tipo for. (Bayer, 1987, p. 130-131)76.

Essa dimensão cinestésica, em Rothko, é frequentemente citada sobretudo no seu entendimento de plasticidade e no seu objetivo, diversas vezes citado em seu livro, de buscar “novos mundos plásticos”77. A palavra “plástica”, para o pintor (2004, p. 83), comporta em si uma dimensão de maleabilidade e mobilidade que se aplica perfeitamente a toda pintura, embora seja mais fácil seu entendimento no campo da escultura. Na compreensão de Rothko, a plasticidade estaria intimamente ligada ao movimento, devido à sensação que todas as coisas produzem de ir e vir no espaço (ibid., p. 88). O pintor se situa entre os artistas que acreditam e buscam em uma totalidade perceptiva.

                                                                                                                76  “[…]  

il   y   a   là   une   sorte   d'expérience   synesthésique   originale   où   le   sonore   se   mêle   intimement   non   seulement  au  visuel  [...],  mais  aussi  et  peut-­‐être  surtout  au  kinesthésique  qui  semble  jouer  ici  un  rôle  de   tout   premier   plan.   En   effet,   lorsque   nous   parlons   de   l'épaisseur   d'un   bloc   sonore,   il   s'agit   là   d'une   sensation   essentiellement   kinesthésique   dont   la   perception   d'un   cluster   nous   fournit   une   sorte   d'équivalent   sonore;   de   même,   l'épaississement   et   le   rétrécissement   progressifs   des   clusters   font   naître,   chez   l'auditeur,   une   impression   manifeste   de   mobilité   kinesthésique.   La   perception   des   clusters,   des   glissandi,  des  nuages  de  sons,  ainsi  que  des  mouvements  qui  leur  sont  liés,  est  donc  une  perception  qui,   au-­‐delà   de   sa   dimension   strictement   auditive,   sollicite   une   attention   et   une   participation   actives   de   tout   notre  corps;  on  peut  donc  parler,  à  ce  sujet,  d'un  ancrage  corporel  de  ces  structures  figurales  élémentaires   de  type  continu  dans  les  profondeurs  de  notre  «sentir  originaire».  C'est  peut-­‐être  ce  qui  explique  que  leurs   significations,   qui   sont   d'ordre   essentiellement   qualitatif,   soient   saisies   d'emblée   par   la   perception,   sans   que  nous  ayons  besoin  de  recourir  à  une  quelconque  médiation,  de  quelque  type  que  ce  soit.”   77  O  prefixo  latino  cine  se  associa  a  ideia  de  movimento  e  cinestesia   se  define  pelas  sensações  através  das   quais  se  percebe  o  movimento.    

 

212  

RESSONÂNCIAS   Capítulo  4  

A plasticidade, na concretude de uma obra pictórica, vem acompanhada de uma dimensão tátil e de maleabilidade. É esta última que atrai, quase obrigatoriamente, o toque, o tátil. Por isso, Rothko chegou a considerar que o objetivo maior de um artista seria despertar nas pessoas esse sentido e dar a ilusão de sensações musculares diversas (Rothko, ibid, p. 83). O pintor russo-estadunidense faz uma distinção entre duas poéticas artísticas: a da tatilidade e a da ilusão. Na primeira, o artista deve buscar na sua obra a realidade da tatilidade, na segunda, a realidade da aparência é seu objetivo (ibid., p. 93). Rothko faz clara opção pela primeira poética que se distingue pelo fato da dimensão tátil não vir, de maneira alguma, separada dos outros sentidos. Ela integrará sempre um todo perceptivo, pois os valores táteis não são tão distanciados da retina. A opção pela aparência, ao contrário, exclui os outros sentidos em detrimento da visão e cria um espaço ilusório, uma ilusão de aparência. Rothko cita alguns exemplos para ilustrar sua distinção. Giotto e a pintura mural egípcia no caso da tatilidade, Michelangelo e Perugino para a opção pela aparência e pela ilusão (ibid., p. 107). Mesmo que os exemplos venham de épocas remotas, o pintor considera esses dois caminhos como partes constituintes das “crenças espaciais” que se alternam e se misturam na pintura europeia desde a Renascença (ibid., p. 113). No caso de Ligeti, a tatilidade entra por outro viés. A experiência tátil brota e emana do gesto do intérprete. A sucessão de notas em suas figuras melódicas não é apenas ouvida, mas é experimentada como modelagem tátil, o que produz certo deleite muscular, um prazer físico. Yara Caznok nos apresenta o conceito de técnica instrumental de Ligeti como sendo a conciliação da fruição cinética e sonora dos movimentos no instrumento (2007, p. 187). Nos Estudos para Piano essa tomada de partido pela tatilidade atinge seu ápice78. Na plasticidade dos gestos instrumentais requeridos para a execução de boa parte de suas obras podemos perceber a importância que Ligeti acorda à dimensão motora, de maneira geral. A tatilidade se apresenta como uma potencialização da expressão dos gestos. E toda essa potência necessariamente refletirá na recepção das obras e irá, dessa forma, solicitar novas posturas frente a sua música. A sensação tátil solicitada em Atmosphères é certamente menos direta que em outras obras, mas não deixa de se fazer presente. É fácil perceber a obra como uma exibição de texturas sonoras ou de maneiras de “moldar” ou “esculpir” o tecido sonoro, como notou Steinitz (2003, p. 10).

                                                                                                                78  A   abertura   de   Ligeti   em   relação   à   música   extraeuropeia,   em   especial   a   dos   percussionistas   africanos,  

também   contribuiu   para   sua   busca   de   uma   intensificação   do   prazer   motor   e   acústico   no   instrumento,   assinala  Yara  Casnok  (2007,  p.  186).          

 

RESSONÂNCIAS   Capítulo  4  

213  

 

Uma última ressonância entre os dois artistas e suas obras estudadas pode surgir ainda de um paralelismo entre a cor e o timbre musical. Mais uma vez a noção de movimento participa como termo comum dessa analogia. E o movimento, lembramos, está intimamente ligado, na Black Painting e em Atmosphères, ao ir e vir, a expansão e a retração que habitam indubitavelmente a poética das duas obras. Através da técnica chamada Bewegungsfarbe (cor do movimento), mencionada mais acima, o músico liga intrinsicamente o ritmo ao timbre, fundamentando-se em seus estudos de sobreposição de partes e experiências de ilusões acústicas. Na pintura, Rothko fala em “respirabilidade” (brethingness) e Arasse atribui às cores desse artista a função do movimento e da nova teatralidade de seus quadros (2006, p. 92)79. O timbre, assim como a cor, será, então, o responsável pelo avanço e o recuo dos elementos em jogo. Mesmo que partam de fundamentos muito diferentes, Rothko e Ligeti convergem em uma causa final similar: aquela de nos convidar a perceber as obras além de seus lugares perceptivos tradicionais. O sentido tátil deixa de ser algo periférico para se transformar em origem e fim. Dessa forma, por vias distintas, os dois artistas se encontram em suas vocações sinestésicas e na percepção de uma globalidade sensorial. Rothko e Ligeti eram conscientes das diferenças das maneiras através das quais as artes da visão e da audição chegam até nós, mas ambos visavam uma percepção global e sintética, em que os órgãos dos sentidos são apenas vias para acedê-la. Assim, as forças da simpatia, que se situam na origem da nossa percepção de semelhanças, se convertem em ressonâncias, segundo os preceitos desta tese, através de uma abordagem ampla e variada de duas obras provindas de contextos bem distintos.

                                                                                                                79

É interessante notar que a percepção do preto, seja como cor ou não-cor, permanece enigmática mesmo para a ciência. Sabe-se como as células nervosas reagem ao verde, ao vermelho, aos círculos, triângulos, aos movimentos de barras, mas não consegue-se observar como, exatamente, as células registram o preto. Ele deve ser processado, na verdade, nas áreas reservadas às formas e movimentos (Rosenthal, 2007, p. 14). Além de Mark Rothko, muitos outros artistas em Nova Iorque se interessaram pelo preto em meados do século XX, é o caso de Frank Stella, Rauschenberg e Ad Reinhardt. Cada um deles tinha uma maneira bem particular de lidar com o preto. Frank Stella impõe uma rítmica muito bem definida e apresenta formas muito nítidas. Rauschenberg tende a trabalhar com texturas, mistura de cores e colagens de papeis, por exemplo. Ad Reinhardt enfoca a alternância de gradações do preto. Outros artistas pintaram telas negras na mesma época, tais como Barnett Newnam, Willem de Kooning e Franz Kline, mas não chegaram a criar séries, como Rothko, Stella, Rauschenberg e Reinhadt.

 

 

214  

RESSONÂNCIAS   Capítulo  4  

4. Outras Ressonâncias As ressonâncias são herdeiras daquela que é a mais livre das similitudes estudadas, a simpatia. Uma simpatia em dois tempos, que se instaura a partir de uma inclinação espontânea e, em seguida, impele uma assimilação, que nunca se dá. O fluxo das antipatias, ou das diferenças, bloqueia o fluxo das simpatias, ou das semelhanças, e impede que as coisas se igualem. A maior parte da literatura que aproxima música e artes visuais, ou se ocupa dos artistas que se engajaram efetivamente em dialogar com o domínio vizinho, ou se preocupa em estabelecer paralelismos históricos ou estéticos. Mas é bom lembrar que o “espírito do tempo” nem sempre é capaz de justificar homologias e correspondências e pode somente explicar parcialmente os contatos entre as artes. As ressonâncias, na forma que apresentamos neste capítulo, pululam bem numerosas, tanto nos meandros da literatura especializada em Estética e Estética Comparada, quanto no olhar e na reflexão de qualquer sujeito que reconhece algum tipo de paralelismo entre uma pintura e uma obra musical e se volta ao interior dessas obras. Embora a Sagração da Primavera e Les Demoiselles d’Avignon, e Atmosphères e BlackPainting n.1 sejam obras do mesmo período histórico, as ressonâncias não se limitam às concomitâncias de tempo e espaço. Elas podem não ter nenhuma sincronia histórica, como quando John Dewey, por exemplo, se deu conta ou percebeu semelhanças entre a pintura Os Jogadores de Cartas de Cézanne, da última década do século XIX, e dos primeiros compassos da Quinta Sinfonia de Beethoven de 1808.

Figura 6: Paul Cézanne. Os Jogadores de Cartas, 1890-1892. Óleo sobre tela, 65,4 x 81,9 cm. - Nova Iorque, The METROPOLITAM, Museum of Art, 2011. Disponível em: http://www.metmuseum.org/Collections/search-thecollections/110000301

 

215  

RESSONÂNCIAS   Capítulo  4  

 

Essas semelhanças percebidas, que no nosso entendimento se funda nas similitudes de simpatia, se convertem em ressonâncias, quando o autor justifica e legitima, em poucas linhas, tal aproximação: Em consequência de a qualidade volumosa fazer parte de ambos, tanto a sinfonia quanto o quadro tem poder, força e solidez – como uma ponte de pedra bem construída. Ambos expressam o duradouro, aquilo que é estruturalmente resistente. Dois artistas, por meio de diferentes veículos, colocam a qualidade essencial de uma pedra em coisas tão diversas quanto um quadro e uma sequência de sons complexos. Um faz seu trabalho usando cor e espaço, o outro, som e tempo – o qual, nesse caso, tem o volume maciço do espaço. (2010, p. 372).

O escritor brasileiro Ariano Suassuna, em sua Iniciação à Estética (2008, p. 322), também sugeriu algumas aproximações entre autores. Botticelli e Vivaldi convergem no apolíneo das obras equilibradas, ordenadas e luminosas. Michelangelo, El Greco e Goya se juntam a Beethoven no espírito dionisíaco dos contrastes violentos, da carga dramática e vibrante, onde a “harmonia é conseguida como uma vitória sobre a desordem”. Mas a descrição dessas semelhanças para por aí e, de certa forma, se reduz a meras sugestões e não chega de fato a se configurar como ressonâncias nesta tese. Pierre Boulez, em Le Pays fertile: Paul Klee (1989), também aponta para alguns encontros partindo de obras do pintor suíço: L’Ordre du contre-ut pode ser aproximada, por exemplo, da Seconde pièce pour quatuor à cordes de Stravinsky, que data de 1913-1914. O lado humorístico, maneirista desse Klee é bem próximo, para mim, de obras de Stravinsky de um período um pouco anterior, o período russo, que apresenta as mesmas características: Pribaoutki, Berceuses du chat, etc. Os dois tipos de obras manifestam uma correspondência de inspiração e de realização. (Boulez, 1989, p. 28)80.

Menos precisa que esta aproximação entre peças específicas, mas não menos interessantes, estão os paralelos que Boulez aponta entre a obra de Anton Webern e Pietr Mondrian. Os dois artistas, muito provavelmente, se ignoravam totalmente e haviam uma reduzida cultura da arte vizinha. Tiveram, no entanto, uma evolução similar da representação para a abstração, através de uma disciplina cada vez mais rigorosa e uma redução dos elementos de invenção.                                                                                                                 80  “L’Ordre  du  contre-­‐ut  peut  être  rapproché  de  la   Seconde  pièce  pour  quatuor  à  cordes  de  Stravinsky,  qui  

date   de   1913-­‐1914.   Le   côté   humoristique,   maniériste   de   ce   Klee-­‐là   est   très   proche,   pour   moi,   d’œuvres   de   Stravinsky  d’une  période  un  peu  antérieur,  la  période  russe,  qui  présentent  des  mêmes  caractéristiques  :   Pribaoutki,  Berceuses  du  chat,  etc.     Les   deux   œuvres   manifestent   une   correspondance   d’inspiration   et   de   réalisation.”  

 

216  

RESSONÂNCIAS   Capítulo  4  

Sem que eles nunca tenham se encontrado, sem que tenham se influenciado mutuamente de maneira direta, suas obras encontram-se em “simpatia”. E, seguindo uma via idêntica, eles se observam, no fim de suas existências, para mostrar mais fantasia, mais vida, e tudo isso, permanecendo no interior de fronteiras voluntariamente limitadas. (Boulez, ibid., p. 25)81.

No que diz respeito ao paralelo estabelecido entre a libertação da tonalidade e o rompimento com a representação, Arnold Schoenberg e Wassily Kandinsky poderiam ser exemplos análogos ao de Webern e Mondrian. Porém, não se incluiriam nas nossas ressonâncias, já que houveram influências mútuas e contato estreito entre esses dois artistas. A similitude central não seria mais a simpatia, reconhecida por um observador exterior, sem que tenha havido contato entre as obras e artistas. O exemplo mais emblemático de Boulez que se inscreveria nas ressonâncias desta tese, talvez se dê entre a tela Le Pays Fertile (1929) de Paul Klee e sua obras Structures para dois pianos (primeiro livro, 1951-1952). “Descobrindo pela primeira vez a aquarela de Klee, olhando-a, constatei um procedimento similar, tendendo a despersonalização do criador, a seu anonimato.” (Boulez, 1989, 175)

82

. As ressonâncias nascem, no compositor, do

reconhecimento de similitudes, ou seja, de uma impressão inicial de semelhança, uma forma de simpatia, e nas analogias estruturais que o compositor é capaz de discernir entre seus próprios procedimentos criativos e aqueles de Klee. As similitudes de simpatia e analogia dialogam, assim como o Boulez receptor dialoga com o Boulez criador, e desse diálogo surgem as ressonâncias. Partindo de atitudes estéticas e de obras precisas, Jacques Parrat apresentou alguns exemplos que também poderiam se juntar às nossas ressonâncias (1987). A primeira aproximação que ele faz de obras e criadores de universos distintos se dá entre obras do compositor estadunidense Steve Reich (nascido em 1936) e do artista plástico francês François Morellet (nascido em 1923). Seus estilos se fundam em uma arte sistêmica, que pressupõe a aplicação de um método, de um programa, mais que a obediência a uma fantasia ou a livre imaginação (1987, p. 17). Parrat aponta para preocupações comuns aos dois artistas no que concerne a estrutura da obra, com sua intangibilidade, e a repetição como preceito construtivo. Na simplicidade dos materiais sonoros e pictóricos, Reich e Morellet buscam                                                                                                                 81  “Sans   qu’ils   se   soient   jamais   rencontrés,   sans   qu’ils   aient   été   influencés   de   manière   directe   l’un   par  

l’autre,  leurs  œuvres  se  sont  trouvées  en  «  sympathie  ».  Et,  suivant  une  voie  identique,  ils  se  mirent  à  la  fin   de   leur   existence,   à   montrer   plus   de   fantaisie,   plus   de   vie,   tout   en   restant   à   l’intérieur   de   frontières   volontairement  limitées.”   82  “En  découvrant  pour  la  première  fois  l’aquarelle  de  Klee,  en  la  regardant,  j‘y  ai  constaté  une  démarche   similaire,  tendant  à  la  dépersonnalisation  du  créateur,  à  son  anonymat.”    

 

RESSONÂNCIAS   Capítulo  4  

217  

 

uma emoção estética formal, a mais “pura” possível, a partir de um princípio gerador claro e simples. Parrat aproxima a obra Four Organs (1970) de Reich com as justaposições evolutivas dos quadros de Morellet compostos por pequenos traços83; a obra musical Phase Patterns para quatro órgãos elétricos, também de 1970, é aproximada de fórmulas de superposição, justaposição evolutiva e de interferências utilizadas por Morellet nas suas obras Interférence de deux trames différentes 0° 1° e Tirets verticaux avec deux interférences, de 1974; Parrat compara igualmente a peça Six Pianos de 1972, na qual a ideia de superposição também está presente, aos trabalhos do artista plástico que se baseiam em tramas84, como Deux doubles trames + 1° – 1°, de 1970. Outras aproximações são propostas por Parrat e, mais uma vez, o anacronismo dos objetos comprados não impedem que as ressonâncias sejam sentidas e legitimadas. O autor coloca em contato a obra do artista francês Jean Dewasne (1921-1999) e a fuga da Sonata op. 106 de Beethoven. As ressonâncias sentidas pelo observador/auditor neste caso se fundam na analogia entre certos traços de suas linguagens. Parrat percebe atributos musicais na dimensão temporal das pinturas murais de Dewasne, como uma que se encontra no metrô de Hannover, ou certos tratamentos temáticos que ele observa, por exemplo, em Chateau d’Argel. A clareza, a leveza estrutural e a racionalidade complexa do jogo de forças que se equilibram e se repulsam incitam Parrat a perceber e estabelecer ressonâncias entre artistas de períodos bem distantes. O mesmo autor propõe e valida ainda convergências entre a arte de Pierre Soulages (nascido em 1919) e as obras Hyperprismes (1923) e Intégrales (1925) de Edgard Varèse e sugere ainda, sem desenvolver, possíveis paralelos entre Wozzeck de Alban Berg as Pinturas Negras de Goya. Tomando como elemento central um instrumento musical, a guitarra, representada visualmente pelo artista plástico Juan Gris (1887-1927) e musicalmente pelo compositor Manuel Ponce (1882-1948), Julien Siguré (2006), dirigido por Michèle Barbe, observa e valida ressonâncias entre a obra e as atitudes estéticas desses dois artistas que provavelmente nunca se encontraram. Após traçar algumas referências biográficas dos dois artistas, Siguré pode discernir cinco grandes eixos que sustentam suas ressonâncias: a síntese das influências populares e do estilo moderno; o contato com o mundo artístico parisiense; as emulações de mestres do passado; a utilização de formas fixas; e a síntese desses fatores e de suas pesquisas                                                                                                                 83  Por  exemplo  as  obras  de  1970  intituladas:  Tirets   dont   la   longueur   et   l’espacement   augmentent   à   chaque  

rangée   de   5   millimètres.   Alignement   sur   la   gauche   et   Tirets   de   20mm   dont   l’espacement   augmentent   à   chaque  rangée  de  2  millimètres   84  Trama  no  sentido  de  linhas  que  se  cruzam.    

 

218  

RESSONÂNCIAS   Capítulo  4  

realizadas nas suas últimas obras. Para cada um dos eixos definidos, Siguré analisa uma obra do compositor mexicano e uma obra do pintor espanhol visando ilustrar e legitimar as semelhanças percebidas como ressonâncias sentidas e reveladas85. Mas a maior concentração de trabalhos em que a noção de ressonância desta tese pode se aplicar provem de pesquisas, que como a de Siguré, foram dirigidas por Michèle Barbe durante os mais de vinte anos à frente do grupo de pesquisa Musique et Arts Plastiques (MAP) do Observatoire Musical Français na universidade Paris-Sorbonne. Teses, monografias e anais de seminários doutorais e pós-doutorais podem fartamente ilustrar nossas ressonâncias e motivar novos desdobramentos desta pesquisa. Pode-se citar, como exemplos entre muitos outros, os trabalhos de Cindy Fardella (Bonnard et Debussy, 2006), de Marina Gatti (Delacroix et Berlioz, 1993), de Florence Collin (Debussy, Monet et Cézanne, 1996), de Christel Farvacque-Pothier (Prokofiev et Matisse, 2000) e de Manuel Brosse (Goya et Beethoven, 1996). Limitamo-nos a apresentar alguns exemplos de encontros entre artes que preenchem a dupla exigência das ressonâncias. A de constituir-se como emoção análoga que o receptor reconhece entre música e artes visuais e, em um segundo momento, esse mesmo receptor, agora como pesquisador, legitima suas impressões através de uma investigação de instâncias poéticas e estéticas das obras aproximadas. Os exemplos apresentados acima, longe de se configurarem em uma relação ou lista, são simplesmente ilustrações dessa maneira de se conceber encontros entre as artes a qual denominamos ressonâncias.

                                                                                                                85  Respectivamente:   La  Guitare   e   Estrellita   ;   Guitare  et  papier  à  musique   e   Thème  varié  et  finale   ;   La  Guitare  

et  incrustations   e   Sarabande   da   Suite  en  la   ;   La  Fenêtre  ouverte   e   Variations  sur  Folia  de  España   ;   La  Femme   à  la  guitare  e  Variationes  sobre  un  tema  de  Antonio  de  Cabezón.    

 

219  

REFLEXOS   Capítulo  5  

 

Capítulo  5       É uma sensação tão agradável ocuparmo-nos com algo que só conhecemos pela metade, que ninguém deveria censurar o diletante, quando este se dedica a uma arte que nunca aprenderá, e nem o artista que, transpondo as fronteiras de sua arte, se deleita em passear pelos campos vizinhos. (Goethe, 1992, p. 149).

    Reflexos     Extremamente ampla, a noção de reflexos neste trabalho não se restringe ao olhar solitário de alguém que tece semelhanças entre artes sem nem mesmo levar em conta o desejo do artista de se assemelhar, como vimos nas “ressonâncias”. Em comum com a noção anterior, somente o fato de não haver contato entre obras aproximadas: elas se mantêm autônomas e soberanas. Porém, para que exista algum reflexo, é necessário, evidentemente, algo que se reflita. Impõe-se assim uma causalidade direta. É preciso que um artista deseje se apropriar de algo de outra arte em sua própria arte. As maneiras de se produzir reflexos são, com certeza, infinitas. Mas não será exatamente o caminho tomado por um artista para refletir determinada obra ou estética que caracterizará nossos reflexos. Eles serão constituídos tão somente por um grupo onde se reúnem obras que encontram suas raízes na arte vizinha. Obras em que um artista encontrou apoio, estímulo ou inspiração na arte fronteiriça para construir outra obra, independente, na sua própria linguagem. O caminho a percorrer é similar ao do quarto capítulo. A noção de reflexos é constituída a partir das similitudes de emulação e analogia apresentadas na primeira parte da tese. Alguns dos significados dessas similitudes serão solicitados tanto no início deste capítulo como também implícita e explicitamente no interior das análises musicais e visuais. Dois artistas ilustrarão nossos reflexos: um músico, Henri Dutilleux (nascido em 1916), e um pintor, Paul Klee (1879-1940). Ambos se apoiaram em modelos artísticos de outros contextos que, no entanto, não comprometem em nada a modernidade de suas obras. O primeiro volta-se a Vincent van Gogh e o segundo à música de Johann Sebastian Bach. Como também foi feito no capítulo anterior, a abordagem das obras e dos encontros virtuais propostos se dará de maneira distinta para cada obra. Uma individualidade metodológica é solicitada na medida em que tratamos de obras de contextos, e mesmo naturezas, bastante distintas. Os reflexos se configuram como uma segunda maneira de compreender o encontro das artes e apreciar o percurso de similitudes desejadas ou sugeridas pelo compositor ou artista plástico.  

220  

REFLEXOS   Capítulo  5  

1.  Refletir     a)  Das  Emulações  e  Analogias  aos  Reflexos   Como nas ressonâncias, são certos traços de semelhança que constituem os fundamentos dessa segunda maneira de se observar e entender o encontro entre as artes. Os reflexos nesta tese emergem da união de duas figuras que articulam semelhanças: a emulação e a analogia. Das quatro similitudes estudadas (simpatia, emulação, analogia e convenientia) a emulação deve ser a que mais diretamente se aplica às práticas artísticas. Sobretudo pela sua proximidade à noção de mimeses ou imitação. Desde Platão, a imitação já norteava de maneira ampla o pensamento ocidental, na necessidade de visar o modelo ideal, que se aproximava de uma certa verdade (aletheia). As artes estariam em categorias inferiores entre as atividades nas sociedades, por serem cópias imperfeitas da verdade. Pior que isso, eram cópias de cópias, pois os modelos para arte provinham das coisas naturais, elas mesmas defeituosas imitações da verdade. Platão enfatiza a aspiração ao perfeito, a emulação de um modelo ideal que só existe na instância do absoluto. Mais tarde, no século seguinte, Aristóteles abranda essa compreensão e valoriza a imitação na arte colocando-a no centro de sua Poética (1996). Mas seja qual for a maneira de entender a noção de imitação, é preciso lembrar que não existe um começo absoluto e que qualquer criação precisa se basear em algo para existir. Como notou Pareyson (2001, p. 170), não existe outro caminho para ser original senão a imitação. O paradoxo que aparece de imediato é logo atenuado por uma segunda reflexão, que percebe a necessidade de modelos, mesmo para serem abolidos ou transformados. Outro paradoxo vai surgir sobretudo no interior da noção de emulação, quando sua etimologia nos revela ora apreço, ora inveja. A emulação carrega esse duplo sentido que, se nos reportarmos à mitologia grega, podemos pensar no deus Zelos (Zễlos), que ao mesmo tempo zela e rivaliza, protege e viola. Na emulação, a partir do início da era cristã, fica explícito um conteúdo sentimental expresso pelo desejo de se igualar ou rivalizar. Embora na mimeses ou na imitação esse sentido esteja subentendido, essas duas noções devem evocar mais diretamente uma inferência de regras que propriamente um sentimento e um desejo, atributos bem nítidos na emulação. A outra “força de semelhança” ou similitude que intervém em nossos reflexos é a analogia, noção que ao longo do tempo, adquiriu os mais variados sentidos, desde os  

REFLEXOS   Capítulo  5  

221  

 

restritivos, como as aplicações em matemática e geometria, aos amplos e difusos, como sinônimo de semelhança. Como denominador comum, entretanto, está uma qualidade que reside nas origens gregas do termo: a capacidade de transpor, contida no prefixo ana, que significa passagem. A analogia carrega consigo uma função de transposição e de adequação entre valores e termos. Desde o pensamento grego antigo, a analogia se associa a ideia de projeção, que permite o acesso ao desconhecido. Aristóteles alarga seu entendimento e se serve dela para aproximar coisas de naturezas bem distintas. As analogias também vão significar, sob os preceitos de Kant em sua Crítica da Razão Pura (1996), o caminho através do qual se afirma a necessidade de uma síntese das percepções. As “analogias da experiência” de Kant, baseadas nas premissas da permanência, sucessão e simultaneidade temporais, se configuram na ligação das percepções em uma unidade da experiência. Outro atributo fundamental desta similitude é a necessidade que ela tem de ser ajustada, para poder transpor e corresponder. Longe de igualar as coisas, as analogias se concentram mais nas próprias relações que em seus termos. A diferença será o pano de fundo necessário sobre o qual as analogias vão sendo construídas. Dependendo do domínio em que se aplica, a analogia se liga à similitude emulação quando vem acompanhada de um sentimento que se apresenta como um desejo de transpor ou igualar, como vimos nos entendimentos de analogia ligados à tradição religiosa no terceiro capítulo. Também muito importante na definição tanto de analogia quanto de emulação está o fato das duas não permitirem contato efetivo dos termos da relação. Ou seja, por mais que se aparentem e que haja um esforço de transposição, as coisas nunca se encontram em um mesmo ponto ou se igualam. Em vez disso, as coisas se refletem. Sem se tocar. Em seu mais óbvio sentido, o termo “reflexo” nos envia à ideia de reprodução ou de retorno de uma imagem. Mas a imagem refletida, é preciso lembrar, será mais enfraquecida que a imagem primeira. “Fenômeno através do qual uma luz, colorida ou não, enviada por um corpo ou uma superfície refletora, produz em uma zona menos iluminada uma imagem enfraquecida desta luz”1, é o primeiro significado do Trésor de la Langue Française (2011) para “reflet” (reflexo). O Michaelis (2009) também chama atenção ao enfraquecimento da imagem em seu reflexo, apresentando-o como “clarão vago amortecido”. O reflexo seria uma espécie de reprodução atenuada de algo. Assim entendido, ele se afirma como uma                                                                                                                 1  “Phénomène  

par   lequel   une   lumière,   colorée   ou   non,   renvoyée   par   un   corps   ou   une   surface   réfléchissante,  produit  dans  une  zone  moins  éclairée  une  image  affaiblie  de  cette  lumière.”    

 

222  

REFLEXOS   Capítulo  5  

reprodução ou reprodução suavizada de um modelo. A causalidade fica evidente na relação do objeto e de sua reprodução e sua ligação com a similitude de emulação, pelo viés da imitação. Em seu sentido figurado – onde reside a maior riqueza de significados – o reflexo guarda, em um primeiro momento, a mesma causalidade da definição anterior. Aparece como traço de semelhança. Um homem reflete seu brilho em alguém ou em algo. Pode ser também empregado figurativamente como sinônimo de consequência – reflexos do passado. Porém, enquanto similitude, um reflexo poderia eventualmente obnubilar a relação imediata de causa e efeito e, assim, levantar dúvidas sobre quem é a imagem primeira e quem é a imagem reproduzida. Se alguém reconhece sinais comuns entre dois objetos, é necessário conhecer o contexto para que se possa atribuir à direção da relação. Uma vez que nos voltamos, porém, para uma observação exterior dos dois termos da relação, o objeto e o reflexo, similitudes e diferenças emanam dos termos comparados. Neste sentido insere-se em nossos reflexos a analogia, como articuladora dessas mesmas similitudes e diferenças. b) Reflexos nas Artes: Pré-condições Após apresentar sucintamente certas significações das noções de emulação e analogia e chegar a um entendimento particular do termo “reflexos”, resta saber de que forma essas forças poderão se aplicar a um estudo comparado das artes. Ao contrário das ressonâncias, nas quais a aproximação das artes é proposta por um interlocutor, em reflexos são os próprios criadores que propõem um encontro com a arte vizinha. O interlocutor e analista é somente aquele que estuda e comenta tal encontro. É preciso que o compositor ou o artista plástico tenha se apoiado declaradamente em uma obra da arte de natureza distinta para que se produzam reflexos em sua própria arte, nos moldes desta pesquisa. Os reflexos se originam primeiramente do desejo do artista de “imitar” algum elemento estético ou poético da outra arte, ou seja, parte de uma emulação. Em um segundo momento, o artista busca maneiras e caminhos para transpor ou aplicar esses elementos em sua arte, muitas vezes através da construção de analogias. Embora estas últimas, junto às emulações, sejam as protagonistas das relações entre as obras neste capítulo, a similitude da simpatia aparece como pano de fundo de um encontro, como força que aproxima, mesmo que virtualmente, as coisas entre si. É movido pela simpatia que um autor decide tomar como ponto de partida uma obra ou outra da arte vizinha. Mas essa escolha coube ao autor, e a nós, observadores e analistas, cabe contemplar à distância o jogo das  

223  

REFLEXOS   Capítulo  5  

 

similitudes, sobretudo emulações e analogias, que se constituem como os reflexos nesta tese. Assim como nas ressonâncias, os reflexos devem cumprir uma dupla exigência para poder ser assinalados com tal. Por um lado, deve-se expor os paralelismos poéticos que unem as obras e, por outro lado, esses mesmos paralelismos devem ser visíveis ou audíveis e deixar consequências fundamentais na obra refletida. 2. Henri Dutilleux e Vincent van Gogh: Noites Estreladas Não, não há fantasmas nos quadros de Van Gogh, nada de drama, nem assunto e direi que nem mesmo objeto, por que o tema mesmo qual é? Senão algo como a sólida e mística obscuridade de uma indizível música antiga, como um leitmotiv de um tema desesperado de seu próprio assunto. É a natureza nua e pura, vista tal como se mostra, quando sabemos chegar bem perto dela. (Artaud, 2003, p. 67).

  a) Sobre o Músico Em 2003, a Orquestra Filarmônica de Berlim encomenda uma obra ao compositor francês Henri Dutilleux. Dia 5 de setembro do mesmo ano, estreia Correspondances para soprano e orquestra, Dawn Upshaw como solista e Simon Rattle maestro. O título da obra faz referência, obviamente, à cartas, mas também ao poema homônimo de Baudelaire2. Os textos buscam engendrar diferentes formas de expressão lírica e, por isso, são muito variados. O primeiro foi escrito pelo poeta indiano Prithwindra Mukherjee (nascido em 1936) e se chama Cosmic Dance, o seguinte é um trecho de uma carta do escritor russo Aleksandr Solzhenitsyn (1918-2008), prêmio Nobel de literatura de 1970, endereçada ao casal Rostropovitch, descrevendo seus anos passados em campos de trabalho forçado na extinta União Soviética, os chamados gulags. Precedido por um curto poema de Rilke intitulado Gong, segue-se a terceira e última parte da obra, composta sobre trechos de cartas de Vincent van Gogh a seu irmão Théo, reproduzidas abaixo3: Tenho uma terrível necessidade de religião. Então, vou para fora, à noite, pintar as estrelas. Sentir as estrelas e o infinito, no alto, claramente, enquanto a vida permanece quase encantada. […]. Tudo e em toda parte, a cúpula do céu é de um azul admirável, o sol tem um brilho pálido de enxofre e é doce e encantador como os azuis celestes e os

                                                                                                                2

Cf. p. 77. Os trechos citados por Dutilleux correspondem a três diferentes cartas. O primeiro vem da carta n. 543, o segundo da carta n. 541, ambos de setembro de 1888. A última frase pertence a carta n. 520 de agosto do mesmo ano.

3

 

224  

REFLEXOS   Capítulo  5  

amarelos nos Vermeer de Delft. Infelizmente, ao lado do sol do Bom Deus, está, três quartos do tempo, o Diabo Mistral. (Van Gogh apud Cadieu, p. 34)4.

Correspondances ilustra alguns traços bem característicos de Henri Dutilleux, compositor francês pouco conhecido no Brasil. Entre esses traços estão a variedade e a heterogeneidade de referências musicais e extramusicais, certa religiosidade e um apreço por Van Gogh, por exemplo. Sobre este último, o compositor diz ter-se comovido particularmente com as cartas. A publicação dessas cartas no século XX contribuiu bastante para a apreciação da obra do pintor. Não que suas telas precisassem ser explicadas textualmente, mas o conteúdo das correspondências é tão profundamente sensível e tão coerente com suas pinturas que acaba, de certa forma, se somando a elas, na substância da obra como um todo. No famoso texto de Antonin Artaud, Van Gogh : Le Suicidé de la societé escrito em 1947, o homem do teatro francês chega a dizer que Van Gogh era tão grande escritor quanto pintor e que a descrição de sua obra, por ele mesmo, era da mais “ensurdecedora autenticidade” (“abassourdissante authenticité”, Artaud, 2004, p. 1451). Henri Dutilleux provavelmente não é o compositor mais celebrado da França. Isso se deve talvez pela sua maneira particular de se ligar à noção de evolução da linguagem, sem colocá-la como o centro de sua busca. Em seus textos mais recentes, mostra-se bem informado da nova produção musical francesa, como a música de Pascal Dusapin ou Bruno Mantovani, compositores muito atuantes na música contemporânea. Mas sempre se manteve à parte dos movimentos ou tendências mais organizadas. Durante os anos 50, por exemplo, tinha dificuldades em ver o serialismo integral como uma verdadeira necessidade histórica. Em uma conversa com Claude Glayman (Dutilleux, 2003, p. 76), que insiste em atribuir ao serialismo um caráter terrorista, Dutilleux reage serenamente dizendo que, para alguns compositores, a música serial foi importante por permitir que se ultrapassassem algumas etapas. Diz ainda nunca ter conseguido aceitar o princípio dos serialistas de abolir toda hierarquia entre as notas da escala cromática, mas admira a transparência e o refinamento do timbre às vezes conquistados por eles. Reconhece em sua própria música alguns procedimentos seriais, aprecia e divide com esses compositores a busca por uma coerência entre forma e linguagem. Quando em contato com biografias, depoimentos e entrevistas de Henri Dutilleux, é fácil imaginá-lo como alguém que caminha lentamente, mas com passos                                                                                                                 4

“J'ai un besoin terrible de religion. Alors, je vais, la nuit, dehors, pour peindre les étoiles. Sentir les étoiles et l'infini, en haut, clairement, alors la vie est tout de même presque enchantée. […]. Tout et partout, la coupole du ciel est d'un bleu admirable, le soleil a un rayonnement de soufre pâle et c'est doux et charmant comme la combinaison des bleus célestes et des jaunes dans les Vermeer de Delft. Malheureusement, à côté du soleil du Bon Dieu, il y a, trois quarts du temps, le Diable Mistral.”

 

225  

REFLEXOS   Capítulo  5  

 

firmes. Sua obra não é numerosa, porém boa parte atingiu algum sucesso, que se ilustra com as inúmeras gravações feitas pelas mais renomadas orquestras e solistas, além da boa aceitação do público. Dutilleux tem uma leveza, talvez rara, em falar da própria música, de suas preferências musicais, de seu apreço pela natureza e de coisas simples que alguns grandes artistas evitam comentar. Fã de Catty Berberian, que soube, com humor, fazer a ponte entre clássico e popular, de Charles Trenet, de Aznavour, de Sarah Vaughan e seu sentido de fraseado, senso rítmico e incrível timbre, e de muitos outros artistas, ditos, populares. Acredita no poder de encantamento, ou mesmo de feitiço, que a voz humana carrega, no interior de qualquer que seja o gênero musical (ibid., p. 211). Essa abertura de espírito pode ter vindo, ou se refletiu, no fato de, durante a ocupação alemã da França, entre 1940 e 1944, ter trabalhado em boates, brasseries, de ter dedicado quase vinte anos de sua vida ao serviço de radiodifusão francesa e do seu contato com o cinema, trabalhando como compositor em parceria de diretores como Jean Gremillon em l’Amour d’une femme, em 1953, e Jean Gehret, em Le Crime des justes de 1948. Em seus depoimentos, Dutilleux não deixa de mencionar coisas aparentemente simples, como seu apreço pela natureza. É fascinado pelas árvores e pelos pássaros. As árvores poderiam até mesmo ser usadas como metáforas para seus processos de composição. Certas obras ele começou pelo meio, por algum elemento forte, e, a partir daí, esse núcleo ia se propagando para as partes precedentes e posteriores. Essa arborescência ficou evidente no seu Concerto para Violino de 1985, composto sob encomenda para Isaac Stern e a Orquestra Nacional da França dirigida por Lorin Maazel. Eu preciso da natureza. Mais que tudo, eu amo as árvores. Olhar uma árvore, sua estrutura, sua vida, me faz bem. Eu ainda não encontrei um título para meu Concerto para violino recentemente estreado por Isaac Stern e a Orquestra Nacional da França sob direção de Lorin Maazel, mas existe nessa música alguma coisa de árvore, de galhos, de arborescências. É uma obra de um só sustento… (Dutilleux, Cadieu, 2007, p. 110)5.

Ao título desse concerto, acrescentou mais tarde: Arbre des Songes (Árvore dos Sonhos). Dutilleux tinha também um apreço especial pelos pássaros. Uma vez saiu para gravar um som particular que havia ouvido em Cande-Saint-Martin, no centro-oeste francês, não                                                                                                                 5

“J'ai besoin de la nature. Plus que tout, j'aime les arbres. Regarder un arbre, sa structure, sa vie, me fait du bien. Je n'ai pas trouvé de titre encore pour mon «Concerto pour violon» récemment créé par Isaac Stern et l'Orchestre national sous la direction de Maazel, mais il y a dans cette musique quelque chose de l'arbre, des branches, des arborescences. C'est une œuvre d'un seul tenant... ”

 

226  

REFLEXOS   Capítulo  5  

reencontrou o mesmo canto, mas acabou fascinado com outros sons de pássaros. Eles eram “maravilhosamente desorganizados” (Dutilleux, 2003p. 176). O interesse de Dutilleux pelos pássaros parecia passar por vias mais simples que, por exemplo, de outro compositor, Olivier Messiaen (1908-1992), que era praticamente um ornitólogo. Dutilleux simplesmente gostava, fruía seus cantos e aplicava de alguma forma essa experiência em suas obras. Toda essa leveza, no entanto, não quer dizer superficialidade, nem tampouco falta de cultura. Sem ter participado das vertentes mais populares, digamos, da música de concerto de seu tempo, durante sua vida esteve sempre a par do que estava sendo feito, como dissemos, e se revela grande apreciador de certas obras de Stockhausen (Gruppen, Carré, Momente e Ironi), Luc Ferrari, François-Bernard Mâche, Michel Chion, Tristan Murail, Fraçois Bayle e Philip Manoury, por exemplo. Toda sua carreira foi pontuada de alguns dos mais importantes prêmios que um compositor pode receber. Desde o Prix de Rome em 1938 até o prêmio Ernest von Siemens em 2005, que nos seus 37 anos de existência só havia premiado dois músicos franceses antes dele, Olivier Messiaen e Pierre Boulez. Em 2010, na ocasião de sua homenagem no Festival de Auvers-sur-Oise, compositores como Phillipe Hersant, Bruno Mantovani, Guillaume Connesson e Pascal Dusapin escreveram peças para piano dedicadas a ele. Na serenidade que parece o caracterizar, o compositor francês se diz fortemente atraído pela luz e mesmo por um sentido de sagrado, dissociado, entretanto, da religião. “A prática de uma religião talvez não seja indispensável para possuir o senso do sagrado.” (Dutilleux, 2003, p. 26)6. Os títulos de suas partituras muitas vezes fazem menção à luz, como Vagues de Lumières (Ondas de Luz), quarta parte de Shadows of Time (Sombras do Tempo) para orquestra e vozes infantis de 1995, e Flamboyant (Flamejante), quinta parte de Métaboles para orquestra, de 1965. Acho que tenho um pouco do senso do sagrado, mesmo que não tenha escrito obras de caráter litúrgico... Entretanto, eu reconheço que minha maneira de crer tem alguma coisa de bastante vago e, se eu evoco frequentemente a atração que a natureza exerce sobre mim, podemos pensar em um tipo de panteísmo. No entanto, me parece que essa aspiração ao sagrado se afirmou pouco a pouco com o passar dos anos. (Dutilleux, 2003p. 39-40)7.

                                                                                                                6

“La pratique d'une religion n'est peut-être pas indispensable pour avoir le sens du sacré.” “Je crois avoir un peu le sens du sacré, même si je n'ai pas écrit d'œuvres de caractère liturgique... Cependant, je reconnais que ma forme de croyance a quelque chose d'assez vague, et si j'évoque souvent la fascination qu'exerce sur moi la nature, on pensera à une sorte de panthéisme. Cependant il me semble que cette aspiration vers le sacré s'est affirmée peu à peu au fil des années.”

7

 

REFLEXOS   Capítulo  5  

227  

 

Talvez pela descendência eslava de sua mãe, diz ter uma inclinação relativa à melancolia e grande apreço pela escola polonesa de compositores como Witold Lutoslawski (1913-1994) e Krzysztof Penderecki (nascido em 1933) (Cadieu, 2003, p. 28). Não por acaso interessou-se tanto por Baudelaire, com seus speens, e compôs para Mstislav Rostropovich, em 1970, um concerto para violoncelo inspirado pelo poema La Chevelure. A obra levou o nome de Tout un monde lointain (Todo um Mundo Longínquo). Na sua estreia, em uma apresentação ao ar livre em Aix-en-Provence, o compositor ficou fascinado com a analogia que sentia entre o som do vento fazendo as folhas vibrarem ligeiramente e a sonoridade geral que tinha buscado no concerto (Dutilleux, 2003, p. 133). Admirador do filósofo Vladimir Jankélévitch, autor de La Musique et l'ineffable (A Música e o Inefável) (1961), melancólico e com uma noção difusa de espiritualidade, como mostrou a citação acima, também não é de se espantar que Dutilleux tenha feito de sua música a expressão de um mistério. Ele parece insistir em um efeito de suspensão como maneira apropriada de caracterizá-lo. O título Mystère de l’instant (Mistério do Instante) para címbalo, orquestra de cordas e percussão de 1989 foi emprestado da obra de Jankélévich, Debussy et le mystère de l’instant (1950). A fascinação por Marcel Proust (1871-1922) deve também tê-lo inspirado a criação de duas obras mais recentes, Shadows of Time e Le Temps l’horloge (O Tempo e o Relógio) (2007) para voz e orquestra, acrescido de um interlúdio orquestral e da inserção de um poema de Baudelaire, Enivrez-vous (Embriague-se), estreado por Renée Fleming em 2009 em Paris. Seu avô materno, de origem polonesa, foi diretor de um conservatório em Roubaix, próximo a Lille, no norte da França, aluno de Camille Saint-Saens e amigo íntimo de Gabriel Fauré, de quem Henri Dutilleux aprecia enormemente a evolução da obra (Dutillieux, 2003, p. 22). Na sua ascendência paterna, tem como bisavô Constant Dutilleux (1807-1865), pintor de relativa importância, colecionador de obras, como as de Corot, e grande apreciador da obra de Eugène Delacroix, de quem foi amigo próximo, a ponto de ter sido testemunha de seu testamento 8 . As artes visuais faziam parte da história de sua família e o compositor deslumbrava-se com os impressionistas em sua infância e adolescência. Era intrigado, mais que fascinado, pelos cubistas e sempre adorou Kandinsky. Mas quem realmente o perturbou, em um bom sentido, foi Vincent van Gogh.                                                                                                                 8

Cadieu sugere que Constant Dutilleux chegou a possui o retrato de Chopin por Delacroix, fato não confirmado por Henri (Dutilleux, Cadieu, 1993, p. 37).

 

228  

REFLEXOS   Capítulo  5  

Henri Dutilleux, embora não tenha se utilizado de algum tipo de notação não convencional, como vários de seus contemporâneos, é fascinado pelo grafismo e pela distribuição dos espaços na página branca da partitura. Diz que a modernidade de Beethoven já podia ser percebida na disposição gráfica das páginas de suas últimas sonatas e quartetos, sobretudo se pudermos consultar os manuscritos. A relação entre o aspecto plástico e o domínio sonoro é, às vezes, surpreendente, dizia. Páginas de orquestra de Schoenberg então, como, por exemplo, Farben das suas Cinco Peças op. 16, são praticamente telas abstratas. “Frequentemente, no meu trabalho, se eu não estou satisfeito com uma página de orquestra, do ponto de vista estritamente plástico, é que alguma coisa não vai bem.” (Dutilleux, 2003, p. 33)9. A ideia da simetria formal que ele apresenta em sua Primeira Sinfonia, em 1951, muito o agrada. Aprecia que seus quatro movimentos sejam monotemáticos, que o primeiro e o segundo se imbriquem tanto quanto o terceiro e o quarto, além do fato dela começar com um grande crescendo e terminar com um grande diminuendo. Na estreia dessa mesma sinfonia, Pierre Boulez, diz ele, o virou às costas (ibid., p. 73). Nesta época, os cursos de verão de Darmstadt proclamavam ideias, talvez intransigentes, sobre a modernidade musical e Boulez se apresentava como importante figura nesse cenário. Indagado por Glayman se ele havia sofrido com o peso de um pensamento quase dogmático da década de 50, Dutilleux responde: “Eu não posso dizer que tenha sentido isso. Simplesmente, em toda independência, eu tinha vontade de empreender esse tipo de trabalho – escrever uma sinfonia – e eu fiquei contente com isso.” (ibid., p. 73)10. A partir de Métaboles para orquestra, de 1965, as reações de Boulez eram mais brandas e acompanhadas de um interesse pela obra de seu conterrâneo. Chamar Henri Dutilleux de inovador soaria certamente artificial. Do ponto de vista harmônico, ele não se desapegou de uma noção particular de “centro tonal”, da solicitação frequente da memória, da noção de variação e, às vezes, de um molde quase clássico. O sentido de suspensão parece conter elementos de uma tradição francesa, considerada frequentemente como impressionista. Em sua música há voluntariamente uma espécie de sensualidade de ordem harmônica, expressa no desejo de fundir timbre e ritmo, sem necessariamente se ligar às curvas melódicas provindas de uma estética romântica. Lidou com a noção de espaço de maneira quase sempre sutil, solicitando alguns posicionamentos particulares dos músicos, como em sua Segunda Sinfonia, Le Double (1959), em que um grupo reduzido de instrumentistas dialoga com uma grande orquestra. De qualquer forma,                                                                                                                 9

“Souvent, dans mon travail, si je ne suis pas satisfait d'une page d'orchestre, du strict point de vue plastique, c'est que quelque chose ne va pas.” 10 “Je ne peux pas dire si j'ai vraiment senti cela. Plus simplement, en toute indépendance, j'avais envie d'entreprendre ce genre de travail - écrire une symphonie - et j’en étais heureux.”

 

229  

REFLEXOS   Capítulo  5  

 

como ele mesmo sabe, disposições espaciais particulares no palco já tinham sido experimentadas há séculos. Considerar seu tratamento rítmico como revolucionário ou inovador, no sentido de poder exibir tal ou tal contribuição, também seria algo forçado. Mas essa maneira talvez convencional de se colocar esteticamente, que alguns poderiam precipitadamente considerar como anacrônica, não invalida de nenhuma forma a potência e a atualidade de sua obra, que tem uma enorme coesão e coerência interna. Sem poder ser considerada ressonância segundo os preceitos deste trabalho, por não haver uma investigação consistente sobre da pertinência do paralelismo, a obra de Dutilleux pode, pelo menos, sugerir certos paralelismos ou simpatias com a arte de um Lucien Freud (1922-2011), que encontra nas entrelinhas de uma arte figurativa sua expressão própria e potente. Todas essas sucintas informações em torno do compositor francês vêm, na verdade, para nos aproximar de uma de suas obras mais importantes, Timbres, espace, mouvement ou La Nuit étoilée composta em 1978 e acrescida de um interlúdio para violoncelos em 1991. A obra foi encomendada por Rostropovich para National Symphony Orchestra, com sede em Washington, e foi dedicada ao maestro Charles Münch. A ideia de compor uma música motivada pela noite, ou que nos remetesse à ela, um ano antes já havia sido concretizada em um das suas obras mais tocadas, o quarteto Ainsi la nuit. As noções de suspensão, mistério, sagrado e até mesmo um certo sentido de luz, comentados acima, podem facilmente se ajustar ao espírito da noite que encontramos em Dutilleux, que não deixa de nos remeter a uma tradição de música noturna, que nos faz imediatamente pensar em Chopin e Debussy, mas também em Liszt, Scriabin, Grieg ou mesmo no primeiro movimento do Concerto para Violino de Shostakovich. Embalado pelo sentido do mistério, certa melancolia, sentimentos noturnos, a estética da suspensão, crença na unidade temática, não fica difícil imaginar que tal compositor tenha se extasiado face à tela Noite Estrelada de Van Gogh e que ela tenha sido o estopim de uma obra orquestral. Essa pintura é visionária. [...] Vi essa tela, tentei dizer minha emoção. Tudo se passa no céu e, na terra, nosso planeta, somente um cipreste e uma igreja. Que nostalgia!... Nós experimentamos uma vertigem, uma potente atração, cósmica. (Dutilleux apud Cadieu, 2007, p. 16)11.

                                                                                                                11

“Cette peinture est visionnaire. […]. J'ai vu cette toile, j'ai essayé de dire mon émotion. Tout se passe dans le ciel avec, pour la terre, notre planète, seulement un cyprès et une église. Quelle nostalgie!... On éprouve un vertige, une attraction puissante, cosmique.”

 

230  

REFLEXOS   Capítulo  5  

b) Noites de Van Gogh Aos quadros que ilustram girassóis, seu quarto, um café em Arles e um autorretrato, se junta a Noite Estrelada entre as mais famosas telas de Vincent van Gogh. Talvez excessivamente famosa. Somos rodeados por tantas e tantas reproduções, muitas delas de má qualidade, que, como disse Gombrich, uma pessoa pode facilmente cansar-se delas. “Sempre que isso acontece, é uma grande revelação voltar às originais de Van Gogh e descobrir até que ponto ele podia ser sutil e deliberado em seus efeitos mais fortes”. (Gombrich, 1993, p. 436). Grosseiramente comparando, seria algo como ouvir uma boa orquestra tocar a Ode à Alegria da Nona Sinfonia de Beethoven quando saturados por suas execuções em propagandas comerciais ou mesmo em toque de telefones. Van Gogh, segundo Meyer Schapiro, foi o primeiro pintor a investir nas cores puras (1983, p. 23). Antes dele nenhum outro pintor ousou aplicar amarelo-cromo diretamente na tela e em uma grande área, como ele o fez em Arles. Os impressionistas ressaltavam a força e a pureza das cores, mas ao mesmo tempo a abrandavam por vários meios (ibid., p. 23). Certamente a cor pura de Van Gogh está entre os elementos que fizeram com que Artaud (2003), em seu apaixonado texto sobre o pintor, tenha considerado suas telas como “fogos gregos”, “bombas atômicas”, “acordes de órgão”, “epifanias atmosféricas” ou “fogos de artifício”. A temática noturna, em Van Gogh, acompanhou boa parte de sua carreira. “Frequentemente me parece que a noite é ainda mais ricamente colorida que o dia, colorida de violetas, de azuis e os mais intensos verdes”, disse Van Gogh em carta à sua irmã Wilhelmina (apud Coli, 2006, p. 100 e 102). Em suas pinturas de cunho social, que se concentram no início de sua curta carreira, Van Gogh retratava a vida dura de classes marginalizadas e simpatizava fortemente com as pinturas de Jean-François Millet (1814-1875). Ao mesmo tempo, em 1883, segundo Stolwijk, o pintor holandês elogiava as águas-fortes de James Whistler (1834-1903), pintor famoso pela precisão de suas cenas noturnas (2008, p. 19). A representação da noite era também, na formação do pintor, como um desafio a transpor, conseguir acrescentar algo a uma tradição de longa data dos temas noturnos que floresceu nos séculos XVI e XVII nos países baixos meridionais. A primeira obra que tanto o próprio pintor quanto seus críticos afirmam como sendo sua primeira obra-prima, Os Comedores de Batatas (1885), é uma cena noturna e de interior12. Nela Van Gogh coloca em prática as teorias das                                                                                                                 12

Todas as referências consultadas em torno de Van Gogh consideram esta tela como sua primeira grande obra.

 

231  

REFLEXOS   Capítulo  5  

 

cores de Delacroix e usa abundantemente tons obtidos por uma mistura de cores complementares (vermelho e verde; violeta e amarelo; azul e laranja). O desafio era pintar a luz na obscuridade, desafio que já tinha sido enfrentado por artistas como o próprio Rembrandt por exemplo. Deste último, a tela que Van Gogh mais admirava era A Sagrada Família à Noite (1640) (Stolwijk, 2008, p. 19). Apesar dos temas religiosos ocuparem uma posição bastante secundária, alguma religiosidade devia emergir de sua obra noturna. Uma religiosidade que o artista havia tentado em vão exercer como evangelista em Borinage, na Bélgica, foi convertida em um sentimento profundo pela natureza e pelo homem comum. O sentimento religioso se delineava na sua experiência sensorial direta e na sua declarada aspiração ao infinito, afirmada pelo próprio pintor quando ele comenta, por exemplo, como preencheu o fundo de um retrato: Além da cabeça, em vez de pintar a parede banal de uma sala insignificante, pinto o infinito, faço um fundo simples do azul mais rico e mais intenso que posso conceber; por essa combinação simples da cabeça brilhante contra o fundo de azul intenso, obtenho um efeito misterioso, como uma estrela nas profundezas do azul do céu. (Van Gogh apud Schapiro, 1983, p. 21).

A religiosidade se expressava em Van Gogh no seu apreço pelo mistério ou pelo encantamento que tinha face às coisas simples. Por trás disso, havia seu desejo de fazer com que as coisas brilhassem de suas próprias luzes, evidente em seus famosos girassóis ou no calor de uma tela como La Siesta (1989), onde um casal de camponeses se repousa em um monte de feno sob o sol, ultra-amarelo, baseado na tela de mesmo nome de Jean-François Millet. Sua religiosidade se infiltra também através do simbolismo que o pintor dava a suas cores. O amarelo como luz pura e também o amor, o azul infinito como o céu noturno. Sobre as complementares verde/vermelho de seu Café Noturno de Arles (1888), ele diz: “Tenho tentado exprimir as terríveis paixões da humanidade pelo vermelho e o verde” (apud Schapiro, ibid., p. 22). Um ano antes de pintar a Noite Estrelada, durante o verão de 1888, o tema da noite já tinha se tornado uma obsessão para Van Gogh e se revelava como catalizadora de reflexões filosóficas, religiosas e poéticas. Durante essa época, o pintor cita em suas cartas passagens que mencionam a noite em livros de Victor Hugo, Walt Whitman e Alphonse Daudet e sua novela Les étoiles (As Estrelas).

 

232  

REFLEXOS   Capítulo  5  

c) Noite Estrelada de Saint-Rémy Em abril de 1889, Van Gogh se interna voluntariamente no asilo Saint-Paul-deMausole, nos arredores de Saint-Rémy, na Provence da França. Sob os cuidados do doutor Peyron, por quem Van Gogh tem grande estima, o pintor é autorizado a trabalhar no interior do instituto e um cômodo é transformado em ateliê13. Como comprovam as cartas do pintor e do médico enviadas a Théo Van Gogh, os primeiros dias passados em Saint-Rémy foram de calma e de saúde. Ele podia até mesmo sair para pintar no exterior do asilo. Estranhamente, logo após ter recebido alta no fim de maio, o artista foi intimado pela polícia a se internar novamente, graças a uma petição de cerca de oitenta assinaturas (Van Gogh, 1997, carta 580, p. 329). Consideravam o pintor como homem indigno de viver em sociedade. Essa reputação se originava dos rumores que circulavam sobre sua automutilação, mais do que propriamente de sua atitude em relação aos habitantes da cidade. A tela Noite Estrelada é realizada em junho do mesmo ano, pouco depois dele ter deixado a instituição e ter ido morar de fato em Saint-Rémy.

Figura 7: Vincent van Gogh. Noite Estrelada, 1889. Óleo sobre tela, 73,7 cm × 92,1 cm. Nova Iorque, THE MUSEUM of Modern Art, 2011. http://www.moma.org/collection/object.php?object_id=79802

                                                                                                                13

O Museu de Arte de São Paulo possui uma tela pintada durante esse período intitulada Banco de Pedra do Asilo de Saint Rémy.

 

REFLEXOS   Capítulo  5  

233  

 

A obra corresponde a uma fase de Van Gogh em que, sem rejeitar os jogos de cores complementares, afirma uma espécie de grafismo, onde contornos e preenchimentos se confundem. Um ritmo potente, quase agressivo, aparece nesta tela. “Havia muito tempo que a pintura linear pura me enlouquecia, até que encontrei Van Gogh que pintava, não linhas ou formas, mas coisas da natureza inerte como se estivessem em plena convulsão.” (Artaud, 2003, p. 45). A convulsão da natureza é facilmente sentida em Noite Estrelada, como também percebeu Coli: “[...] convulsos, em plásticas contorções, seus quadros não são desordenados, pois, se tudo gira em turbilhoes, está agora mais presente do que nunca o contorno firme que modela, sinuoso, que não apenas limita, mas constrói.” (2006, p. 107). Van Gogh, como vimos, já havia enfrentado o desafio de pintar cenas noturnas há certo tempo e, no ano que precedeu a Noite Estrelada, 1888, ele havia pintado outras duas paisagens noturnas de exterior que se tornaram particularmente célebres, o Terraço do Café à Noite e uma outra Noite Estrelada, que para se distinguir da sucessora foi chamada Nuit étoilée sur le Rhône (Noite Estrelada sobre o Ródano). Ao contrário das outras cenas noturnas que são iluminadas por luzes artificiais, esta deve sua luz somente às estrelas – onze ao todo – e à lua, que pode ser percebida como uma espécie de lua-sol, tanto pela sua forma quanto pela intensidade de seu brilho. Assim como a tela de mesmo nome de Jean-François Millet, que Van Gogh certamente conhecia, a Noite Estrelada do pintor holandês também deve sua luz somente a potência dos astros. Além disso, o que se imagina ser a representação da noite de Saint-Rémy é na verdade uma paisagem imaginária, que não reproduz paisagens existentes, como o terraço da praça do Fórum de Arles ou o rio Ródano (Schapiro, 1983, p. 103). A força da noite de uma Saint-Rémy irreal não emana de um lirismo quase sóbrio, como aquele de seus quadros noturnos anteriores de Arles, ou da compaixão pelas classes marginalizadas de sua primeira obra-prima, Os Comedores de Batatas. Sua potência parece provir de uma carga religiosa, entendida em seu sentido mais amplo, como um deslumbramento frente ao mistério e ao sagrado. Esta estupefação se converte nos turbilhões celestes, na intensidade dos brilhos dos astros, no ritmo frenético, no fluxo torrencial do todo e, como notou Schapiro, nos ciprestes que se aparentam a chamas (1983, p. 102). De um ponto de vista simbólico, tanto os ciprestes quanto as estrelas se ligam à noção de eternidade. Schapiro sugere ainda um possível elemento apocalíptico nesta obra. Existiria nela uma reminiscência inconsciente ao livro bíblico Revelações (capítulo 12, versículo 1) que fala de uma mulher em trabalho de parto, coroada por estrelas, envolta pela lua e pelo sol, que vê seu

 

234  

REFLEXOS   Capítulo  5  

recém-nascido ser ameaçado por um dragão14. De qualquer maneira, não existem teologias ou representações divinas explícitas claramente na tela. Aliás, as alusões diretas à religião na obra de desse pintor não estão entre suas mais bem sucedidas obras. A religiosidade na Noite Estrelada é exaltada pelo desejo de uma “união e libertação místicas” (Schapiro, 1983, p. 45). Além dessa provável dimensão místico-religiosa, Noite Estrelada tem uma espontaneidade de gesto, um impulso passional percebido na aparente convulsão de formas e cores. Como observou Sjraar van Heugten (2008, p. 85), não existem traços de um desenho anterior nesta tela, o que sugere o imediatismo de sua composição. Por outro lado, a exacerbação de gestos ou a expressão apaixonada da tela vem acompanhada do que Schapiro chama de “capacidade de desligamento” do artista. É ela que permite ao pintor articular elementos e fugir de efeitos óbvios de contraste. Ao turbilhão celeste opõe-se um vilarejo aparentemente sereno que culmina no preenchimento regular e calmo da torre da igreja. O amarelo das luzes da cidade se harmoniza sutilmente com o brilho dos astros. O contraste também é produzido pela espessura mais pastosa do céu em relação às tintas mais diluídas da parte inferior da tela e, além disso, regiões de azul intenso se opõem aos amarelos mais vivos do céu. Dessa forma, ele vai criando um equilíbrio das diversas luminosidades que reforçam o sentido de claridade na escuridão. Entre a agitação celeste e a calmaria da vila duas regiões fazem o elo. Na primeira, de baixo para cima, pincelas mais tranquilas e paralelas delineiam os campos e montanhas. Na segunda, uma espécie de bruma parece refletir o luar da noite estrelada. Essas duas regiões funcionam como uma de zona de repouso para a tela. Schapiro tece uma analogia formal entre a igreja que corta o horizonte e o grande cipreste perfurando o enorme espiral (1983, p. 103). Noite Estrelada carrega em si, extremadas, duas das forças fundamentais nas criações em geral: uma espontaneidade imaginativa e um distanciamento que permite a articulação inteligente, seja ela intuitiva ou não, da enorme carga emocional da tela. d) O Pintor e a Música Antes de uma aproximação efetiva da música de Henri Dutilleux que se refere à Noite Estrelada de Van Gogh, pode ser pertinente investigar que tipo de relação o pintor guardava com a arte dos sons. É importante lembrar que nas cartas do pintor holandês, que tanto                                                                                                                 14

Na página 234 desta tese foi citada uma passagens das cartas de Van Gogh, usada na obra Correspondances de Dutilleux, em que o pintor fala de sua necessidade de religião e da ameaça do diabo chamado de “Mistral”, como os ventos frequentemente violentos que sopram para o noroeste e são muito comuns e caracterizam o clima provençal na França.

 

235  

REFLEXOS   Capítulo  5  

 

fascinaram Dutilleux, existem numerosas alusões à música. Embora em um primeiro momento essas menções à arte vizinha soem periféricas e como leves metáforas, em uma segunda reflexão podemos nos interrogar sobre a posição da música talvez como um pano de fundo do pensamento artístico de Van Gogh. “A pintura, no estado em que se encontra, promete tornar-se mais sutil – mais música e menos escultura –, enfim promete a cor.” (2010, p. 255, carta 529). E num quadro eu gostaria de dizer algo consolador como uma música. Gostaria de pintar homens e mulheres com aquele não sei o que de eterno, do qual outrora a auréola era o símbolo, e que procuramos através da própria irradiação, da vibração de nossos coloridos. (ibid., p. 257, carta 531).

Van Gogh intuía ainda uma proximidade entre pintura e a música de Wagner. “Mas eu estou novamente como estava em Nuenen, quando fiz um esforço vão para aprender música, já então eu percebia muito bem as relações que existiam entre nossas cores e a música de Wagner.” (ibid., p. 266, carta 541). Comentando sua tela Berceuse de 1889, Van Gogh tece também algumas analogias musicais: “Uma mulher vestida de verde com cabelos alaranjados destaca-se contra um fundo verde com flores rosa. Agora estes disparates agudos de rosa cru, laranja cru, verde cru são suavizados pelos bemóis dos vermelhos e dos verdes.” (ibid., p. 323, carta 574). Essas analogias e aproximações entre as artes, além de ser um traço que o romantismo herdou do idealismo alemão, sobre o qual falamos no primeiro capítulo, antecipava também, de alguma maneira, paralelismos estruturais entre pintura e música da primeira metade do século XX, sobretudo em seu início, quando a música foi muito frequentemente citada como modelo de abstração por artistas, como Kandinsky, Delaunay ou Kupka. Mas essas analogias não se limitavam a Van Gogh e também eram tecidas pelo seu amigo Paul Gauguin, quando, por exemplo, o último comenta, e critica, a obra do primeiro: “Com todos os seus amarelos sobre violetas, todo esse trabalho de cores complementares, ele só conseguia chegar a harmonias suaves, incompletas e monótonas; faltava ali o som do clarim.” (apud Van Gogh, ibid., p. 304). Um interessante ponto levantado por Bosseur (1999, p. 153) quando ele comenta a relação de Van Gogh com a música, liga-se a emulação de obras que ele encarava como “interpretação musical”. O artista pintou, por exemplo, o Bom Samaritano ou Pietà, ambos a partir de Delacroix (d’après Delacroix). Impunha àquelas obras bem sucedidas do romantismo francês novas cores e um novo ritmo. Os modelos eram espécies de partituras para sua interpretação.  

236  

REFLEXOS   Capítulo  5  

Algumas outras analogias entre a obra do pintor e a música ou os sons musicais são sugeridas também por Antonin Artaud: Vejo, no momento em que escrevo essas linhas, o rosto vermelho sangrento do pintor vir a mim, numa muralha de girassóis esventrados, num formidável incêndio de restos carbonizados de jacinto opaco e de touceiras de lápis-lazúli. Tudo isso, em meio a um bombardeio meteórico de átomos que se mostram um a um, prova de que Van Gogh, sem dúvida, pintou suas telas como um pintor, e unicamente como um pintor, mas que seria, por isso mesmo, um formidável músico. (2003, p. 71). [...] Assim, ninguém depois de Van Gogh soube mover o grande címbalo, o timbre sobre-humano, perpetuamente sobre-humano, a cuja ordem retrograde vibram os objetos da vida real, quando se possui ouvido suficiente para perceber o avanço da pororoca. É assim que a luz da vela vibra, que a luz do castiçal aceso sobre a poltrona de prata verde vibra como a respiração de um ser que ama ao lado de um corpo de um doente adormecido. (ibid., p. 7475).

A relação do pintor com a música, ou os olhares externos que aproximam a arte de Van Gogh à arte dos sons, como aquele de Artaud, ambos revelam, no mínimo, alguns traços de simpatia ou, no máximo, estimulam emoções análogas em diferentes instâncias das artes vizinhas, seja na recepção ou na reflexão sobre poéticas distintas. Entretanto, aquilo que se pode identificar como reflexos nesta tese, surge sobretudo na maneira como Dutilleux se posiciona em relação a obra pictórica que serve de ponto de partida para sua obra musical, ou seja, de que forma Noite estrelada de Vincent van Gogh se reflete na poética de Timbres, espace et mouvement de Henri Dutilleux. e) Reflexos da Noite Como na “estrada com ciprestes”, mas em um sentimento de exaltação ainda mais acentuado, o clima no qual “noite estrelada” se envolve me perturbou infinitamente... O poder de choque de tal pintura exerceu-se sobre mim desde minha juventude. (Dutilleux apud Vanthala, 1999, p. 40)15.

Quando Dutilleux recebeu do regente da National Symphony Orchestra, Mstislav Rostropovich, a encomenda de uma peça orquestral, o compositor lia as correspondências de Van Gogh a seu irmão Théo. A lembrança que a tela Noite Estrelada despertava no músico somava-se à potência com a qual a sinceridade das cartas do pintor parece atingir quem quer que seja. O resultado foi o desejo de transformar a tela, mas precisamente suas impressões em                                                                                                                 15

“Comme dans la "route aux cyprès", mais dans un sentiment d'exaltation plus accusé encore, le climat dans lequel baigne la "nuit étoilée" m'a toujours infiniment troublé... Le pouvoir de choc d'une telle peinture s'exerça sur moi dès ma jeunesse.”

 

237  

REFLEXOS   Capítulo  5  

 

relação à ela, em ponto de partida para uma obra musical. É assim que em 1978, 91 anos após a pintura de Van Gogh, Dutilleux cria Timbres, espace et mouvement ou Nuit étoilée. A obra comportava inicialmente duas partes e, mais tarde, o compositor acrescenta a elas um interlúdio, estreado em 1991, apresentado como um díptico em um clima extático, para afirmar o equilíbrio e a densidade da partitura (Vanthala, ibid., p. 40). A impressão que a tela de Van Gogh causava em Dutilleux era algo próximo a uma fascinação, talvez provinda de uma simpatia do compositor pelo misticismo, em seu sentido amplo, e por seu gosto pelo mistério. Eu tentei encontrar musicalmente o aspecto místico evocando o infinito da natureza e o infinito, simplesmente. Foi assim que se produziu em mim uma espécie de osmose, um lento trabalho obscuro, quase inconsciente, em torno desse mundo interior, ao mesmo tempo misterioso e violento, inquieto e exaltado no qual o espiritual não está ausente. (Dutilleux apud Vanthala, ibid., p. 41-42)16.

Apesar da relação com a religiosidade ser algo extremamente pessoal e, visto de uma maneira pragmática, os dois artistas não dividirem uma mesma religião, nem terem exercido uma prática religiosa similar, tanto Dutilleux quanto Van Gogh foram movidos por impulsos místicos em boa parte de suas obras e, certamente, em suas Noites Estreladas. Uma religiosidade forte e presente é ao mesmo tempo um tanto vaga e imprecisa, sem rótulos. A aspiração ao infinito exaltada por Van Gogh se reflete, como vimos na citação mais acima, no desejo do compositor de traduzir em música esse mesmo infinito. É preciso lembrar que, desde o início do era cristã e no período bizantino, o amarelo, que alimentava o dourado dos mosaicos, “era a aparência ideal da luz como substância divina” e o azul, “mais recessivo, sugere um distante espaço celestial ou uma interiorização do espírito, restaurado a sua fonte celestial – o azul do céu tornado absoluto em cor, quase no estado de escuridão” (Schapiro, 1983, p. 21). Esse simbolismo do amarelo como luz pura e do azul associado ao infinito persevera na obra de Van Gogh. Em Noite Estrelada, o amarelo ilumina tanto pelo jogo de contraste que estabelece com o azul, quanto por seu próprio brilho, apesar de ser menos dourado que aquele que estamos acostumados a ver em seus famosos girassóis. Ainda segundo Schapiro (ibid., p. 21), parte da energia da cor é convertida em energia da linha. Mas assim mesmo predomina em Noite Estrelada o azul profundo do céu provençal, embora por vezes alguns grossos contornos escuros ou brancos venham minar um pouco de sua potência. O azul habita até mesmo o grande cipreste em forma de chama. Não                                                                                                                 16

“J'ai tenté d'en trouver musicalement l'aspect mystique évoquant l'infini de la nature et l'infini tout court. Il s'est ainsi produit en moi une sorte d'osmose, un lent travail obscur, presque inconscient autour de ce monde intérieur, à la fois mystérieux et violent, inquiet et exalté dont le spirituel n'est pas absent.”

 

238  

REFLEXOS   Capítulo  5  

parece equivocado associar a religiosidade de Van Gogh, baseada em um sentimento profundo pela natureza e pelo homem, com a cor azul, símbolo do infinito. As cores complementares que predominam na pintura de Van Gogh, amarelo e azul, são citadas por Kandinsky em Do Espiritual na Arte e associadas com timbres e movimentos melódicos de alguns instrumentos. O AMARELO, por exemplo, tem a propriedade especial de “subir” cada vez mais alto e atingir alturas insuportáveis para os olhos e para o espírito – o som do trompete, tocado cada vez mais alto, tornando-se cada vez mais “pontiagudo”, dói no ouvido e no espírito. O AZUL com seu poder totalmente oposto, de “descer” nas profundezas infinitas, desenvolve os sons da flauta (quando o azul é claro), do violoncelo (“descendo”), do contrabaixo com seus sons magníficos e profundos, e nas profundezas do órgão “vemos” profundidades azuis. [Maiúsculas no texto original]. (2000, p. 257).

A associação entre timbres musicais e cores parece ser o mais intuitivo paralelo que se pode traçar entre música e artes visuais, embora possamos divergir quanto à precisão dessas correspondências. Essa imprecisão, no entanto, não invalida a veracidade dos impulsos que nos fazem perceber, no sentido mais pleno da palavra, elos entre objetos de distinta natureza perceptiva. Associar, por exemplo, sons agudos e a cor amarela ou sons graves e a cor azul, nos parece mais fácil que pensar na inversão desses mesmos termos. Interessante lembrar também que Kandinsky era o fundador do grupo Der blaue Reiter (O Cavaleiro Azul) e que justamente a cor azul foi escolhida para nomear um grupo com uma orientação decididamente espiritualista. Devido a esses mesmos ideais místicos, que ecoavam com frequência em suas teorias sobre arte e sinestesia, Kandinsky pode ser fortemente criticado ou vítima de descrença, assim como o foram, em menor escala, Mondrian ou Klee. No entanto, no que concerne a cor azul e sua associação com sons graves, até mesmo a fenomenologia de Merleau-Ponty vai convergir de alguma maneira com o que diz o pintor russo. O som grave, para o filósofo, torna a cor azul mais profunda e escura (Merleau-Ponty, 1945, p. 274). Timbres, espace et mouvement foi composta para uma formação orquestral inabitual: 16 madeiras (4 flautas, 4 oboés, oboé d’amore, 4 clarinetes, 4 fagotes e contra-fagote), 11 metais (4 trompas, 3 trompetes, 3 trombones e tuba), 12 violoncelos, 10 contrabaixos, percussão (um jogo de crotales17, 2 címbalos suspensos, 3 tantãs, 3 bongôs, 3 tom-tons, caixaclara, bumbo, marimba, glockenspiel, 4 tímpanos e 1 tímpano piccola), harpa e celesta. Sem violinos e violas, as cordas graves ganham maior destaque, efeito que é ainda ressaltado pelo interlúdio confiado somente aos violoncelos.                                                                                                                 17

Um conjunto de pequenos pratos cromados.

 

REFLEXOS   Capítulo  5  

239  

 

Não deve ter sido fortuita a escolha de Henri Dutilleux de convocar um contingente importante de violoncelos e contrabaixos quando inspirado por uma obra predominantemente azul. Na primeira parte de Timbres, espace et mouvement existe um tratamento harmônico que privilegia ligeiramente as texturas mais extremas, graves e agudas. Em certas passagens fica muito explícito o contraste entre os violoncelos e os contrabaixos, e seus movimentos melódicos descendentes, e as madeiras, que parecem almejar regiões cada vez mais agudas. Na passagem citada abaixo (exemplo 1), por exemplo, as cordas, amparadas pelos trombones, fagotes, clarinete baixo e harpa, descem e convocam sons graves, enquanto o restante das madeiras permanece em regiões bastante agudas.

 

240  

REFLEXOS   Capítulo  5  

 

Ex. 5: Henri Dutilleux. Compassos 65 e 66, primeiro movimento de Timbres, espace et mouvement.

Outras vezes, contrastes de timbres são obtidos na sobreposição de notas muito graves nos metais, principalmente tuba e trombone, e muitos altas das madeiras agudas. Essas  

REFLEXOS   Capítulo  5  

241  

 

oposições muitas vezes produzem uma sensação particular de um “envelope” sonoro, ou de um vazio entre as notas limítrofes, convocando, de algum modo, uma noção de espaço sonoro particular. Pelo simples fato da exclusão dos violinos e violas, Timbres, espace et mouvement produz, naturalmente, um contraste mais acentuado entre os timbres instrumentais. A própria opção do compositor por tal formação orquestral já reflete seu desejo de traduzir os jogos cromáticos da tela. Dutilleux busca algum tipo de analogia entre as oposições das cores complementares e os registros e cores instrumentais. Ainda no que concerne os timbres da obra, ao menos cinco outros aspectos ou procedimentos recorrentes podem ter uma íntima relação com as cores da tela de Van Gogh. 1. Os contrastes dinâmicos bruscos, que também podem ser observados nos registros graves do trecho acima citado, contribuem para o estabelecimento de analogias com os efeitos contrastantes do quadro. O movimento solicitado pelos espirais e pela geometrização da forma global da pintura favorece uma ágil percepção das gradações de cor. 2. A escrita ligeiramente pontilista de diversos trechos da obra, como no primeiro tema (exemplo musical 2), ou nos ataques rápidos de notas repetidas alternando diferentes instrumentos nas madeiras e metais na segunda parte, que começam na número 7 e terminam no número 8 da partitura (exemplo musical 318). Os ataques pontuais nos sopros, prolongados ou repetidos, podem se associar aos pontos de luz dos astros de Noite Estrelada. 3. O fato do interlúdio orquestral ser inteiramente dedicado aos violoncelos enfatiza esse instrumento que, como vimos, pode ter sido associado a ideia de infinito e a predominância da cor azul da tela. 4. A inclusão de certos instrumentos de percussão na obra também sublinham características do quadro. Por exemplo, os címbalos suspensos que pontuam a música tem efeito análogo à explosões de luz, o timbre metálico do glockenspiel e dos crotales podem também, sem dificuldade, ser associados aos pontos de luz mais intensa no interior da tela. 5. A sensação de uma certa unidade temática em Noites Estreladas de Dutilleux, ou mesmo a recorrente percepção de centro tonais, pode igualmente colaborar na                                                                                                                 18

Reproduzimos apenas os dois primeiros compassos da seção.

 

242  

REFLEXOS   Capítulo  5  

construção de analogias com um quadro que tem uma unidade cromática na cor azul como mote central.  

Ex. 6: Henri Dutilleux. Compassos 1-7, primeiro movimento de Timbres, espace et mouvement.

 

REFLEXOS   Capítulo  5  

 

 

Ex. 7: Henri Dutilleux. Compassos 34-35, segundo movimento de Timbres, espace et mouvement.

 

243  

244  

REFLEXOS   Capítulo  5  

É interessante observar que, apesar das obras sugerirem espontaneidade no gesto e certa violência na expressão existe em ambos uma preocupação muito consciente e afirmada em encontrar um equilíbrio, uma harmonia sutil entre os diferentes planos ou os diferentes naipes. O músico enfatiza contrastes de timbres na própria orquestração, mas ao mesmo tempo procura amenizá-los através de diversas combinações instrumentais que visam preencher certos “vazios” harmônicos deixados pela ausência dos violinos e violas. Van Gogh, por outro lado, reduz um pouco a dinâmica da tela nas pinceladas mais calmas da parte inferior que representa a cidade e a igreja. E, como vimos, para aliviar a impressão exagerada de contraste ele preenche com traços paralelos e regulares as montanhas e a luz do luar. Esta simultaneidade de algo ao mesmo tempo acentuadamente espontâneo e muito consciente é bem ressaltada na Noite Estrelada de Van Gogh. A tela é ao mesmo tempo resultado da imaginação do artista, como comentou Schapiro, e fruto de uma longa observação do céu. Malasy Vanthana cita a reconstituição da noite de 19 de junho de 1889 em Saint Rémy na hora aproximada da cena, 3 da manhã, feita pelo observatório Griffith Park de Los Angeles. O triângulo escaleno de Áries é representado com precisão à esquerda da tela, próximo ao cipreste, e o planeta Vênus, que em 1889 estava no auge do seu brilho pelo fim do seu ciclo de 8 anos, foi representado pelo pintor próximo à linha do horizonte, com a mais distinta coloração entre os astros (Vanthala, 1999, p. 86). Através do próprio posicionamento dos músicos, Henri Dutilleux buscou traduzir atributos do espaço pictórico visando criar uma impressão de “espaço insólito” (Vanthala, ibid., p. 172). Na partitura consultada (1980), o compositor solicita a seguinte organização do grupo instrumental:

Diagrama 5: Henri Dutilleux. Esquema de organização da orquestra para Timbres, Espace et mouvement, (reproduzido a partir da partitura, 1980, p. 5).

 

REFLEXOS   Capítulo  5  

245  

 

No que concerne a dimensão espaço, Vanthala aponta ainda para a sensação de profundidade e espaço infinito que a utilização dos registros extremos dos instrumentos podem causar (ibid., p. 172). No trecho abaixo (exemplo 4), por exemplo, os 12 violoncelos vão em direção a sua nota mais grave enquanto os contrabaixos repetem o mesmo gesto uma oitava abaixo. O efeito é reforçado pelo contra-fagote, os trilos dos tímpanos, os harmônicos de mi bequadro produzidos pelos contrabaixos, além da sensação de suspensão produzida pelas ressonâncias do tantã grave. Levando-se em conta que os compassos anteriores estão repletos de sforzandi no interior de uma dinâmica geral de ff, o efeito de profundidade desse trecho, que vai subitamente para as mais graves notas em pp, fica mais evidente ainda.  

Ex. 8: Henri Dutilleux. Compassos 76-82, p. 29, primeiro movimento de Timbres, espace et mouvement.

 

246  

REFLEXOS   Capítulo  5  

O espaço denso da obra pictórica pode também ter sido traduzido pelo compositor através do contingente significativo de músicos e pela densidade dos registros, sobretudo a potencia dos graves e dos agudos que, como vimos, devem estar ligados ao azul e ao amarelo, respectivamente. Quanto ao terceiro termo do título da obra musical, o movimento, Dutilleux certamente o percebeu entre os principais elementos da tela do Van Gogh, talvez o preponderante. Em Saint-Rémy, Vincent está extremamente sensível ao movimento; parece superestimar as direções variáveis das formas das coisas que o cercam, e ele as vê como movimentos reais dos objetos. É como se a visão estimulasse nele tendências motoras, que por sua vez afetavam a reprodução das formas. (Schapiro, 1983, p. 31-32).

Em uma sutileza que parece dar continuidade à tradição francesa de Fauré ou Debussy, Dutilleux ressalta o movimento de sua obra através da alternância entre trechos mais estáticos e extremamente agitados. No entanto, a percepção imediata do movimento da obra plástica passa bastante longe da gradual e, às vezes sutil, sensação de mobilidade da música. A análise de Vanthala aponta uma série de procedimentos rítmicos e métricos, como rupturas bruscas, trocas de compasso e rubatos. Esses efeitos estão ligados ao que chamou de “vertigem pictórica” da tela de Van Gogh (1999, p. 148). Como não era intenção do compositor traduzir “literalmente” a obra do pintor, e sim criar uma peça autônoma que não fosse descritiva, elos precisos entre certas passagens musicais e certas regiões da tela podem soar uma tanto artificiais. Em uma passagem, entretanto, é inevitável a associação entre os espirais do quadro e os numerosos e crescentes trilos, que começam nas madeiras e terminam englobando a quase totalidade dos instrumentos (exemplos 9 e 9.1).

 

REFLEXOS   Capítulo  5  

 

 

Ex. 9: Henri Dutilleux. Compasso 42, primeiro movimento de Timbres, espaces et Mouvement.

 

247  

248  

REFLEXOS   Capítulo  5  

 

Ex. 9.1: Henri Dutilleux. Compassos 43-44, primeiro movimento de Timbres, espaces et mouvement.

 

249  

REFLEXOS   Capítulo  5  

 

Várias características da tela obra estão refletidas na música de Dutilleux e são inúmeras as correspondências estruturais e analogias possíveis, tanto aquelas feitas pelo próprio compositor em sua poética, quanto aquelas provindas da recepção e da aproximação posterior das obras por um interlocutor. A emulação do compositor aparece, não como desejo em igualar-se ou realizar uma tradução musical de uma forma pictórica, mas como fonte de ideias e de fertilização de sua própria obra. Esta pode ser apreciada independentemente do fato de se conhecer ou não sua ligação que o compositor francês teria com o quadro. É preciso lembrar que os elos virtuais que existem entre cores e sons são sempre elos relativos, como o próprio Kandinsky observou: A correspondência entre os tons da cor e da música só é relativa, naturalmente. Assim como um violino pode produzir sonoridades variadas, suscetíveis de corresponder a cores diferentes, da mesma forma o amarelo pode exprimir-se em nuanças diferentes, por meio de instrumentos diferentes. (Kandisnky, 2000, p. 258).

Mesmo que se possa reconhecer no interior da peça musical estratégias poéticas similares, Timbres, espace et mouvement é autônoma e original. O interesse em revelar entre as obras esses reflexos, de acordo com o entendimento do termo neste trabalho, está em renovar olhares e incitar interrogações sobre os limites entre os objetos artísticos distintos. Uma análise que aproxima obras de diferentes artes pode, sim, fertilizar entendimentos e, em vez de instalar-se confortavelmente sobre pretensas verdades, ampliar ângulos de visão e apontar para uma nova epistemologia: uma nova maneira de perceber e apreciar certas obras de arte.

 

250  

REFLEXOS   Capítulo  5  

3. Bach, no Estilo de Paul Klee a) “Magia do Devir” Um quadro de Paul Klee (1879-1940) nem sempre nos arrebata. Não somos impelidos violentamente a sair de nossa zona de conforto. Está longe de ter o poder de choque de um Van Gogh ou dos “improvisos” de Kandinsky. Tampouco aproxima-se da força imediata das linhas de um Picasso, ou mesmo das cores fortes e aconchegantes de Matisse. As telas se aparentam, sim, a um convite. Um sutil convite ao segundo olhar. Somos suavemente conduzidos por uma afetuosa união de texturas, cores e formas. A potência é grande, porém não sabemos quando ela se revela. É como se ouvíssemos o som da orquestra, mas não pudéssemos reconhecer o primeiro golpe de arco dos violinos. Uma tela de Klee é sempre uma tela acabada, no entanto, paradoxalmente, está em perpétua construção. Regel chama isso de “magia do devir” no seu prefácio para Sobre Arte Moderna e Outros Ensaios (Klee, 2001, p. 9). Para Klee, o mundo era um processo e, ao mesmo tempo, um lugar de contemplação desse processo. A arte, assim como a natureza, instaura a gênese das coisas. “A arte não reproduz o visível, mas torna visível”, é a primeira frase de seu ensaio Confissão Criadora (ibid., p. 43). Quando se fala em “tornar visível”, “magia do devir”, “obra em perpétua construção”, pode-se pensar eventualmente em licença ou arroubo poético. Porém, com um mínimo de esforço, seja no contato com a obra, seja na leitura dos textos do artista, essas caracterizações se mostram mais efetivas que outras que o reduzem a um formalista, por exemplo. Klee não se enquadra. Ao mesmo tempo em que sua obra carrega importantes traços do “espírito do tempo”, ela parece comportar uma abertura, uma indefinição essencial que, estranhamente, a define. É possível vislumbrar algo do cubismo por vezes, ou a delicadeza do tratamento das cores de Cézanne, dos impressionistas, a liberdade de desenho como os de Toulouse-Lautrec ou as experiências com pontos de Seurat, mas as apropriações de Klee são sempre muito particulares, ou melhor, tem sempre uma própria poesia muito afirmada. Quando se associa Klee à figura do importante teórico do formalismo, faz-se pensando no fato do pintor ter integrado o corpo docente daquele que foi o principal centro de arquitetura e design europeu, a Baulhaus. Paul Klee, enquanto lecionou nesta escola (19211931), deixou em seus escritos e na transcrição de seus cursos, um importante legado para o estudo de comunicação visual e design. Entretanto, no que diz respeito especificamente à poética do pintor, excluindo – se é que isso é possível – sua atividade didática, o apreço pela  

REFLEXOS   Capítulo  5  

251  

 

forma não deve se firmar como centro de sua poética. Antes dela vem a preocupação com o movimento e antes ainda, sua maneira de ver o mundo, de entendê-lo como gênese, ou como um processo de criação sem começo nem fim. O formalismo pode se configurar no entendimento das coisas como estruturas móveis, é verdade, mas a palavra parece comportar o risco de obnubilar a poesia de sua obra. Afinal, Klee não quer somente relevar estruturas, ele quer entender essências e tornar visível o transitório. Com seus conhecimentos de matemática, álgebra ou física, Klee desvendava as formas do mundo, sempre partindo do que há de mais elementar, e apresentava didaticamente seus resultados. No entanto, por outro lado, sua fé na intuição e na imaginação eram tão presentes quanto o rigor das ciências exatas. Ele achava que, mais do que planejar, ele devia deixar a pintura crescer, como a natureza. Neste sentido, ele era um místico, e isso marca fundamentalmente sua obra. Gombrich afirma que Klee, junto a Kandinsky e Mondriam, queria “rasgar o véu das aparências para chegar a uma verdade mais elevada” (1993, p. 479). Melhor que caracterização de formalista parece ser o entendimento de Giulio Argan, segundo o qual Klee é um artista da “formatividade”, em que a obra é sempre algo que “vem a ser” (2008, p. 669) 1 . A “formatividade”, no entendimento de Pareyson, enfatiza o processo, o diálogo do artista com a matéria-prima e o poder que a própria obra tem de conduzi-lo (2008, p. 26). A forma e a estrutura, em Klee, só podem ser entendidas quando se tem por pano de fundo a poesia do dinamismo e da transformação. b) A Música de Klee Também como pano de fundo do pensamento estético do pintor aparece sua íntima e tão comentada relação com a música. Quase toda sua vida foi permeada pela reflexão e a prática musicais. Seus escritos, relatos, retratos e as próprias obras pictóricas ilustram fartamente a importância da música em sua vida. Klee era filho de músicos, casou-se com uma pianista, Lilly Stumpf, tocava violino a ponto de ter feito parte de orquestras profissionais2. O Zentrum Paul Klee em Berna, na Suíça, revela melhor que qualquer livro elos do pintor com a arte dos sons. Mas mesmo a simples leitura dos títulos de algumas obras já bastam para se pensar em algum tipo de contato entre as artes: Der Orden von Hohen C (A Ordem do Contra-Dó), Dymamisch-Polyphone Gruppe (Grupo Polifonicamente Dinâmico), Fuge in rot (Fuga em                                                                                                                 1

Argan nos aponta ainda para o fato de Paul Klee ter sido o primeiro dos grandes artistas a penetrar na região ilimitada do inconsciente (2008, p. 322-323). 2 Seu avô, grande organista, bem como seu pai, professor de música, ambos nasceram em Eisenach, cidade de Johann Sebastian Bach.

 

 

252  

REFLEXOS   Capítulo  5  

Vermelho), Rhythmisches (No Ritmo), entre muitos outros. Talvez baste simplesmente encontrar-se livremente com sua obra para perceber a presença da música, como o fez Rainer Maria Rilke em 1921: Naquele tempo eu já tinha adivinhado que seu desenho muitas vezes era transcrição de música. Ou melhor, naquele período, inclusive sem ele ter dito que sempre tocava violino, infatigavelmente, tinha adivinhado essa transcrição da música. Para mim, esse é o ponto mais desconcertante de sua existência de artista; pois, se a música de fato oferece ao traço do lápis uma base de necessidades que valem tanto num campo quanto no outro, em todo caso não consigo observar sem nenhum abalo esse tipo de conivência das artes, dando as costas para a natureza: como se um dia devêssemos sofrer um assalto do inferno e nos encontrássemos espantosamente indefesos. (Rainer Maria Rilke apud Klee, 2001, p. 104).

Um enfoque usual desse contato entre as artes na obra de Klee é aquele que enfatiza paralelos existentes no plano estrutural de seus quadros. É nesse prisma que se encaixa a maneira de pensar o encontro das artes de Étienne Souriau, por exemplo (Natiez, 2010, p. 39). Foi a partir de reflexões sobre as relações entre estruturas e formas nas artes distintas que Souriau fundamentou a disciplina Estética Comparada. Em um artigo publicado na revista Per Musi (2010, p. 7-18), Rosana Costa Ramalho de Castro sintetiza alguns dos procedimentos através dos quais Klee “traduz” elementos de natureza ou de grafia musical em vários de seus quadros. Ela cita na música movimentos melódicos de terças ascendentes que Klee associa a espirais, a representação de uma pauta musical, com suas linhas e barras, em correspondência com uma malha de construção com módulos, a aplicação da métrica musical em suas telas através do espaçamento de elementos na tela, uma utilização particular da noção de polifonia, além de outros interessantes paralelos. Mas é no livro de Pierre Boulez, Paul Klee : Le Pays Fertile (1989), que ficam particularmente claras as analogias musicais estabelecidas pelo pintor no plano estrutural e as emulações existentes da grafia musical, que percorre um grande número de seus quadros. Fica claro justamente porque o compositor francês consegue revelar a sutileza dessas mesmas analogias e emulações. Bem além da construção de paralelismos sistemáticos e didáticos, Boulez consegue fazer emergir questões que se ligam a posicionamentos poéticos essenciais do pintor de Berna. Jean-Jacques Nattiez (2010, p. 35-39), como vimos no segundo capítulo desta tese (cf. p. 103-104), apresentou quatro grandes famílias metodológicas que abordam a aproximação interartística. A primeira enfatiza o chamado Zeitgeist ou “espírito do tempo”, a segunda engloba os autores que procuram correspondências temáticas, a terceira baseia-se nas analogias estruturais, como a de Souriau, e a quarta e última, se fundamenta na  

REFLEXOS   Capítulo  5  

253  

 

individualidade metodológica e em uma síntese de todas as outras. Nattiez nos mostra como o olhar de Pierre Boulez na obra de Klee pode se representar cada uma dessas famílias metodológicas. Existe nas telas desse pintor uma onipresença do fenômeno musical. Boulez percebe isso quando tece, ou revela, analogias com a música em obras que não comportam, nem no título, nem na grafia, nem nos seus escritos, relações explícitas com a arte dos sons. Ou quando apresenta as principais de lições de Klee resumidas na importância de se saber reduzir os elementos de qualquer linguagem a seu próprio princípio, qualquer que seja a complexidade da linguagem e, em seguida, verificar como a dedução pode ser fértil no processo de criação, ou seja, como a partir de uma simples ideia é possível tirar as mais variadas consequências (Boulez, 1989, p. 10-11). O pensamento do pintor, como vimos, centrava-se no processo, na “magia do devir”. Ele queria, como percebeu Günter Regel (Klee, 2001, p. 36), desencadear reações plásticas puras, mas “não necessariamente abstrair das possibilidades objetivas naturais da comparação”, pois ele se interessava profundamente pelo significado e pelo valor simbólico das coisas. É por isso que pode ser arriscado tecer elos entre o abstracionismo e Klee, pois a busca do pintor pelas raízes da forma e a significação profunda das aparências não excluía por completo certas imagens e signos ditos figurativos. Todo tipo de signo podia ser usado na sua tentativa de tornar visível a criação e o processo. Sua obra fazia uma espécie de síntese entre autonomia pictórica e representação. A arte de Klee vê na música, como gênese e movimento, modelo de sua expressão máxima. Apesar da marca do tempo ser mais nítida na música, é preciso deixar claro que a arte plástica também se funda no tempo. Klee considera mera “divagação erudita” a distinção tradicional entre artes do tempo e do espaço do Laoconte de Lessing, apresentada no primeiro capítulo desta tese (cf., p. 47) (2001, p. 46). É preciso conscientizar-se da forte atuação da dimensão tempo na pintura. Klee estava muito certo disso e essa consciência, longe de se configurar somente como um posicionamento teórico distanciado, produziu consequências determinantes na sua poética geral. É apenas a partir dessa vontade de movimento, dessa aceitação consciente da intervenção do tempo, que as formas do pintor ganham vida. A forma é dinâmica, deve crescer organicamente diante de nossos olhos e mostrar-se como riqueza de conteúdo. Além disso, o entendimento de forma se estende para todas as instâncias possíveis, como para o tratamento do fundo, a luminosidade e a extensão das cores. Ele reconhece e

 

 

254  

REFLEXOS   Capítulo  5  

afirma a atuação temporal em cada elemento. Sua reflexão plástica tem o movimento como figura central3. Com relação à música, Klee desejava elaborar princípios de uma teoria harmônica, capaz de desenvolvimento, de forma similar à teoria musical (Argan, 2008, p. 669). Assim como um compositor, que toma as notas e a partir delas constrói sua música, o pintor deve pegar as formas, entendidas em seu mais amplo sentido, e conceber uma pintura. Como na música, onde as notas se auto-referenciam e o compositor não só cria como também assiste a música crescer por si, assim também deve ocorrer na pintura: o artista pensa a forma e as formas se pensam por si mesmas. A obra de arte deve ter uma existência autônoma: ser um novo ser da natureza. O artista, movido pelo desejo de movimento e de uma temporalidade musical, deve tornar visível a gênese e o trabalho das formas4. c) No Estilo de Bach: Cores e Movimento Uma obra deve brotar, como disse Boulez (1989, p. 127-130), do combate entre a disciplina e o caos. A primeira arma-se de um rigor imperioso, a segunda, do poder da livre imaginação. A poesia de Klee transcende esse combate e se funda no dinamismo da transformação. É preciso levar irracionalidade para um mundo que clama por estruturas sólidas, assim entende o músico francês. Procurando aderir à quarta família metodológica de Nattiez, aquela que está atenta ao contexto, ao tema e a estrutura, vamos apontar e, eventualmente, construir alguns elos entre a arte dos sons e a arte das formas na obra Im Bach’schen Stil (No Estilo de Bach) de 1919.

                                                                                                                3

“Dizem que Ingres ordenou o repouso; quero ri além desse pathos e ordenar o movimento.”(Klee, 2001, p. 10). A ideia de que as formas artísticas eram como novos seres da natureza foi citada algumas vezes por Klee e fica muito clara em várias de suas obras. Por exemplo, Park bei Luzern (Parque perto de Lucerna) e a Insula Dulcamara, que será reproduzida na página 261 , ilustram, literalmente, a ideia de germinação e gênese que percorre o pensamento plástico de Klee.

4

 

255  

REFLEXOS   Capítulo  5  

 

  Figura 8: Paul Klee. Im Bach’schen Stil, 1919. Aquarela e óleo sobre papel, 60 x 80 cm. – Coleção particular, ZENTRUM Paul Klee, 2010. Também disponível em : http://www.allposters.com/-sp/Im-Bachschen-Stil-1919Posters_i325382_.htm

   

O delicado tratamento das cores e o equilíbrio também delicado das linhas já seriam por

si só elementos suficientes para a apreciação da tela acima. Mas rejeitar o pensamento musical de Klee, seja na força da afirmação temporal, seja na conquista de uma autonomia das formas, seria rejeitar uma parte integrante de seu próprio posicionamento frente à arte. Mais do que isso, a arte, incluindo a música, não era para o pintor algo dissociado da vida dita normal. “A arte de dominar a vida é condição fundamental para qualquer expressão posterior.” (Klee, 2001, p. 25). Antes mesmo de maiores reflexões sobre a presença da música na obra analisada, um primeiro fator deve ser considerado: seu título. É preciso lembrar que o pintor também era poeta e que a escolha de seus títulos é cuidadosa e ajuda o observador a penetrar em suas imagens. Com a sutileza que o caracteriza, as palavras do pintor somam-se ao sentido de suas formas, no seu sentido mais amplo. Klee usa a linguagem vocabular assim como a linguagem plástica para desencadear efeitos psíquicos, liberando as imagens interiores, estabelecendo associações e sendo capaz assim de configurar de maneira experimentável o conteúdo de sentido da forma, num processo criador de recepção. (Regel apud Klee, ibid., p. 16).

 

 

256  

REFLEXOS   Capítulo  5  

A escolha de Bach como mote de uma obra visual pode se justificar por vários fatores. Seu repertório como violinista era constituído, em grande parte, pela obra de Bach, Haydn e Mozart (Klee, 2001, p. 17). Johann Sebastian Bach tinha um lugar de honra, de acordo com Günter Regel (apud Klee, ibid., p. 17). O porquê desse especial apreço pode ser explicado pelo fato de na música de Bach encontrarmos certos dispositivos que são tanto óticos quanto auditivos (Boulez, 1989, p. 98). Dessa forma, em Bach, o pintor encontrava algo que ele queria expressar plasticamente. “A dualidade do mundo da arte e do mundo do homem é orgânica, como em uma das Invenções de J.S. Bach.” (Klee, 2001, p. 116). O artista não repudiava a música de seu tempo, mas encontrou na música do século XVII e XVIII a expressão da modernidade que queria deixar na pintura5. Além disso, como também notou Boulez, Paul Klee, embora tocasse razoavelmente bem, se situou no mundo da música como amador e seu repertório devia ser mais abordável tecnicamente e em sintonia com sua formação de base (ibid., p. 15). Tendo hesitado entre tornar-se pintor, escritor ou músico profissional, sua decisão foi tomada, de maneira relutante, entre seus 21 e 22 anos (ibid., p. 11). Dos desenhos livres, Klee passa às aquarelas, e das aquarelas à pintura, mas em sua maturidade artística essas três técnicas dialogam e se interpenetram sem cessar. Mas é somente quando adquire maior domínio da cor, alguns anos mais tarde, que Klee abraça com mais segurança sua opção pela carreira de pintor. Isso se dá em 1914, depois de sua viagem à Tunísia, acompanhado do amigo e pintor August Macke (1887-1914). “A cor me possui. Não tenho que persegui-la. Ela sempre me possuirá, estou certo. Esse é o sentido deste momento feliz: cor e eu somos um. Eu sou um pintor.” (Klee apud Düchting, 1998, p. 26)6. Mas o interessante é que a opção pela pintura não foi uma renúncia à música. A arte dos sons continuou onipresente como reflexão e presente como prática durante toda a sua vida, ainda que na condição de atividade paralela. Sua afirmação profissional como pintor se deu somente após esse “encontro” com a cor em meados da primeira década do século XX e deveu-se, ao menos em parte, ao seu contato em 1911 com a obra e os escritos de Robert Delaunay (1885-1841) em Paris (Klee, 2001, p. 78). As luzes e cores das telas de Delaunay conduziam ritmicamente as formas e solicitavam um olhar particularmente ativo de suas telas. O movimento, que é a alma da música, também era o fundamento da reflexão plástica. Era preciso estar atento ao movimento das cores. Por isso,                                                                                                                 5

Pierre Boulez diz que Klee sempre esteve aberto e atento à música moderna e apreciava particularmente Debussy, no Péleas et Mélisande, por exemplo, e Hindemith, no seu anti-romantismo. A modernidade do Pierrot Lunaire de Schoenberg não o agradava, assim como toda estética romântica do século XIX (Boulez, 1989, p. 16). 6 “Colour possesses me. I don’t have to pursue it. It will possess me always, I know it. That is the meaning of this happy hour: Colour and I are one. I am a painter.”

 

REFLEXOS   Capítulo  5  

257  

 

Paul Klee trabalhou com rigor buscando um entendimento do funcionamento e do ritmo das cores. A crença na pintura como arte temporal, como a música, e fundada no movimento o acompanha desde antes dos 20 anos, quando um dos seus professores em Munique, Heinrich Knirr dizia com propriedade que era preciso “executar” um quadro. Se por um lado, suas reflexões se calcavam na mais pura racionalidade, por outro, elas eram guiadas por uma grande intuição imaginativa, é aí que aparece o viés quase místico do pensamento de Klee. Como disse Lilian Ried Miller Barros, o artista suíço-alemão queria buscar uma significação profunda, além das aparências das imagens, pela investigação das raízes da forma. Ele queria ir da imagem para o arquétipo, revelar as forças transcendentais da natureza e reduzir a um ponto mínimo o conglomerado dos fenômenos quantitativos (Barros, 2006, p. 112-113). O controverso livro de Goethe, A Doutrina das Cores (1993), era bem conhecido de Klee e a força simbólica das cores, além de seu movimento implícito, fazia parte do pensamento do pintor7. No caso de No Estilo de Bach, a tela emana como cor predominante o verde, que na “rosa dos temperamentos” de Schiller e Goethe (1799) representa a figura do poeta. No entanto, o valor simbólico não é o aspecto principal no que diz respeito ao tratamento das cores na obra estudada. A variedade de técnicas na aplicação da cor e suas combinações contribuem com mais força para o interesse da tela. Afinal, coexistem técnicas de impressão, pintura à óleo, além do uso de aquarelas. Linhas geométricas, linhas curvas, triângulos, cores no interior de formas bem delimitadas, cores que se espalham livremente, pontos que se assemelham a gotas de tintas, ou seja, um tratamento imensamente variado dentro do espaço modesto de 17,3 x 28,5 cm. A multiplicidade de tratamentos pictóricos e de cor pode estar ligada ao fato de Klee ter grande afeição pela ideia de polifonia, entendida como “um fenômeno simultâneo de várias dimensões que conduz o drama a seu ápice” (Klee, 2001, p. 54). Embora as telas que fazem menção direta à polifonia em seus títulos sejam dos anos que sucederam No Estilo de Bach, a variedade de tratamento das formas e cores e sua sobreposição podem ilustrar neste quadro a pluridimensionalidade tão cara a Klee. A polifonia entra, então, por duas vias. Por um lado, através do próprio tratamento da tela, na convivência das cores, como por exemplo nas sobreposições e nuances de claridade obtidas com aplicações graduais de branco. Por outro lado, aparece uma polifonia que se liga mais especificamente a atributos do grafismo musical.                                                                                                                 7

Will Grohmann (1985, p. 10) comenta o apreço de Klee por Goethe, sobretudo pela obra Afinidades Eletivas, lida três vezes seguidas por Klee.

 

 

258  

REFLEXOS   Capítulo  5  

Uma dimensão temporal semelhante a de uma partitura se expressa na horizontalidade da tela e é reforçada pelos linhas horizontais. Neste contexto, em que Klee divide conosco o desejo de um movimento da esquerda para direita, as mais diversas formas concorrem, paralelas, à atenção do nosso olhar. Como uma partitura cuja música, subjetiva, é desvendada pelos olhos, imersos na percepção do movimento das cores e das formas. Se buscamos evocar o trabalho do artista, é possível ver, pelos dois ângulos de observação apresentados, que o fator tempo atua um papel muito importante na elaboração conceitual da tela. Apesar da sensação de uma rítmica interna relativamente rápida, existe um tempo lento na poética de Klee. O pintor, quase como um alquimista, trama um trabalho cuidadoso e paciente onde as formas, incluindo as cores, vão conquistando uma autonomia, uma existência real. Aliás, mesmo nas formas mais agitadas e aflitas, Klee impõe a marca de uma ponderação e paciência. O processo de criação tem algo em comum com a descoberta e a escuta de uma obra musical. É preciso esperar o fim da obra para que se possa ter uma ideia global, tanto para um ouvinte, quanto para um artista plástico. Ainda no que concerne às cores, Klee as entendia, sob um plano teórico, no interior de um círculo cromático e como qualidade pura possuidora de um peso, quer dizer, de um sentido de claro-escuro definindo-se em denso ou difuso de acordo com a quantidade aplicada de branco ou de preto, e com uma extensão mensurável (ibid., p. 58). O pintor de No Estilo de Bach pensava, sempre com muita liberdade, na aplicação das cores segundo os contatos que haviam no círculo cromático entre as cores primárias (azul, amarelo e vermelho), secundárias (roxo, verde e laranja) e todo o jogo combinatório possível de nuances e passagens. Entre as cores complementares (vermelho-verde, azul-laranja e amarelo-roxo), por exemplo, existiria o cinza. Como o movimento está implícito em tudo, quando o vermelho vai em direção ao verde, sob a ótica de Klee, ele deve passar pelo cinza. O mesmo vale para as outras cores complementares e para os sentidos inversos. Sendo as cores tratadas no interior das formas e como formas, a riqueza de possibilidades de explorara-las devia ser guiada por uma noção de equilíbrio. Um equilíbrio sutil, provindo do olhar penetrante do artista que nem serve, nem domina. Apenas comunica (ibid., p. 53). O artista, ainda segundo Klee, é como o tronco de uma árvore: faz o elo entre a raiz e a copa, sendo a raiz a natureza, com suas formas, e a copa, a obra de arte que “deforma” a natureza e cria novas formas. No Estilo de Bach é perpassado pelo sentido de equilíbrio, tenso, porém muito bemsucedido. Se no lado direito da tela as cores e as linhas parecem mais densas, no lado esquerdo essa densidade é compensada pela nitidez e a extensão de certos gestos, como as espécies de degraus da parte inferior da tela, as linhas curvas ascendentes preenchidas de  

REFLEXOS   Capítulo  5  

259  

 

amarelo alaranjado e a clareza da figura da fermata. O azul é distribuído em três pontos da tela com diferentes extensões e pesos: no lado esquerdo, em forma de lua crescente; no centro, com extensão ampliada, mais leve ou difuso; e finalmente no lado direito ou no “final” da tela, em um azul profundo. De maneira quase análoga organizam-se as formas em rosa, porém se configuram como pontos livres nos dois lados da tela e como uma mancha difusa de pouca densidade nas regiões centrais. Na extremidade direita inferior dois elementos são ligeiramente contrastantes: dois triângulos, um verde e um azul-escuro se contrapõem e produzem aquilo que talvez se possa chamar de “dissonância” do quadro. Ela é produzida, não por cores complementares que se exaltam mutuamente, mas por cores que não se respondem no interior do círculo cromático de Klee. A forma triangular contraposta também auxilia na produção dessa tensão. O pintor provavelmente compartilhava com seu amigo Kandinsky o entendimento da forma triangular como propulsora de movimento e da circular tendendo ao estático e ao equilíbrio (Kandinsky, 200, p. 33-39). d) Ritmo e Grafismo Considerando a noção de ritmo em uma tela como distribuição dos limites espaciais, No Estilo de Bach tem sua dimensão rítmica guiada sobretudo pelas linhas demarcadas pelo preto. Seu ritmo é conduzido pela agilidade e firmeza dos traços, com suas extensões próprias, pelos círculos, que parecem se transformar em símbolos que ralentam o movimento, e pelos traços verticais que pontuam a tela, às vezes nos surpreendendo, às vezes paralisando nosso olhar. Formas geométricas se distendem e se contraem. As linhas curvas preenchidas de amarelo-alaranjado do lado esquerdo da tela suscitam a suspensão do gesto e do olhar. Os degraus descendentes do mesmo lado podem muito bem evocar a escrita por blocos ou as chamadas marchas harmônicas tão comuns em Johann Sebastian Bach. Klee conhecia suficientemente bem a música para poder fazer esse tipo de aplicação de princípios teóricos musicais. E as aplicações mais interessantes são justamente essas, que embora possam ter suas origens em estruturas precisas do universo musical, encontram na dimensão plástica uma expressão própria e se configuram como “novos seres”, como desejava o pintor. Klee tinha consciência de que traduções “literais” de peças musicais em obras plásticas puras não poderiam transmitir emoções análogas. Mesmo assim experimentou fazer uma transposição gráfica de uma das sonatas pra violino de Bach, reproduzida por Boulez em seu livro sobre Klee (1989, p. 56). A partir de uma minuciosa organização matemática e do estabelecimento de parâmetros, o pintor apresentava linhas horizontais, verticais e diagonais  

 

260  

REFLEXOS   Capítulo  5  

em diferentes planos e de variadas extensões. Um observador desprevenido, ingênuo ou entusiasta, poderia crer que Klee transformava música em imagens. Que talvez certas obras do pintor sejam traduções de obras musicais específicas. Mas o artista bem sabia que não é possível importar para as imagens a precisão e delicadeza das intervalos melódicos, com todos seus harmônicos, também tão precisos e delicados. E que o inverso, por exemplo, traduzir uma admirável curva pictórica em notas, poderia resultar em uma linha melódica das mais banais, como refletiu Boulez (ibid., p. 53). Aliás, a espacialização de melodias já havia sido cogitada bem antes, em meados do século XIX, na famosa obra de Eduard Hanslick, Do Belo Musical, onde o autor associa contornos melódicos e arabescos. Jules Combarieu, na mesma época também faz menção a tradução de “linhas sonoras”. É baseado nos trabalhos deste último que Étienne Souriau traduz em um diagrama de dois eixos (um para frequências sonoras e outro para durações) os primeiros compassos do Adágio da sonata Patética de Beethoven (1969, p. 195). Apesar de Souriau exaltar a coerência e o equilíbrio das curvas gráficas, o resultado não parece muito longe da sobreposição de gráficos de estatísticas. A representação plástica da música é certamente melhor ilustrada por sua própria partitura. A elucubração teórica de Klee, como em sua representação gráfica de uma notação musical a partir de um movimento a três vozes de J.S. Bach, citada acima, não encontra uma relação direta e óbvia com as formas musicais. Suas aulas e escritos teóricos, quando tomados ao pé da letra ou lidos dissociados de seu pensamento global, podem ser interpretados de maneira rasa de modo a forjar analogias mais confortáveis e diretas. As lições mais autênticas provêm das consequências mais profundas de suas reflexões. Hajo Düchting (2008, p. 35) nos mostra que a obra de Bach era usada como exemplo para explicar duas importantes noções da poética de Klee, o “individual” e o “estrutural” ou “dividual”. O primeiro caracteriza os componentes que são ritmicamente independentes, tem uma unidade irregular, não se repetem e são indivisíveis. A noção de “estrutural” diz respeito aos elementos que são divisíveis em pequenas unidades que guardam uma mesma estrutura fundamental. O elemento individual pode ser facilmente combinado com o elemento estrutural. Todos esses estudos e conceitos que o artista apresentava em seus cursos serviam principalmente para comunicar aquilo que Boulez apontou como sendo as principais lições de Paul Klee (1989, p. 10): a redução dos fenômenos aos elementos mais simples e a capacidade de se tirar desses mesmos fenômenos as mais criativas possibilidades e soluções. “Reduzir e deduzir” era seu mote. No ensaio/palestra: Sobre Arte Moderna (2001, p. 51-68), o pintor comenta a saturação de elementos no mundo e situa o artista como aquele que decifra e simplifica esses mesmos elementos e, em seguida, gera novas formas, que são praticamente  

261  

REFLEXOS   Capítulo  5  

 

novos seres da natureza. É mais uma vez a metáfora da árvore, na qual o tronco, o artista, extrai certos materiais através da raiz e a partir deles deduz novas formas que se constituirão, na copa, a obra de arte. A música de Bach, que o pintor conhecia muito bem, servia para nutrir reflexões profundas sobre a criação em arte. O grafismo musical penetra e fertiliza a obra de Klee. Mas o que antes era um sinal específico e preciso na música se torna uma forma com existência completamente autônoma: um novo ser. É o caso, por exemplo, de uma obra de 1938 intitulada Insula Dulcamara, onde notas, ligaduras, colchetes e fermatas adquirem e afirmam uma nova personalidade e sentido. Ou quando notas e pautas viram árvores e caminhos e determinam o ritmo de uma paisagem, como em Kamel in rhythmischer Baumlandschaft (Camelo em uma paisagem ritmada por árvores), pintado em 1920.

Figura 9: Paul Klee. Insula Dulcamara, 1938. Óleo e pastel sobre serapilheira, 88 x 176 cm. - Berna, ZENTRUM Paul Klee, 2010. Também disponível em: http://www.paulklee.net/insuladulcamara.jsp

 

Figura 10: Paul Klee. Kamel in rhythmischer Baumlandschaft, 1920/1943, Aquarela e óleo sobre tela, 48 x 42 cm. – Berna, ZENTRUM Paul Klee, 2010. Também disponível em: http://www.kunstkopie.de/a/paul_klee/kamel-in-rhythmischerbau.html  

A música, na obra de Klee, entra por vias distintas, que são mais ou menos óbvias, declaradas ou veladas. No mínimo três caminhos podem ser citados. O primeiro concerne o pensamento geral de um pintor que queria ver na sua obra a “metáfora da criação” (Grohmann, 1985, p. 7). A música, que só existe em movimento, serve de guia e inspiração  

 

262  

REFLEXOS   Capítulo  5  

para o desejo de instaurar formas que crescem aos nossos olhos. Os símbolos musicais, mais pelos sentidos subjacentes que pela especificidade no interior da teoria musical, também inserem dinâmicas musicais no interior de certas telas. Klee estava bem consciente de que ao inserir signos musicais no interior de suas telas, eles imediatamente encontravam novos sentidos. O artista manipulava as raízes da escrita musical quando, por exemplo, apodera-se das linhas da pauta musical para incitar a continuidade temporal no espaço de suas telas. A apropriação e “deformação” dos símbolos musicais seria uma segunda maneira através da qual a música podia penetrar em suas telas. Klee realiza, assim, uma espécie de emulação que mimetiza e concorre com seus modelos imprimindo neles novos significados. Um terceiro caminho possível é aquele que busca no interior da música estruturas organizacionais e tenta aplicá-las nas formas plásticas visuais. Seria uma maneira próxima ao pensamento que tende ao estruturalismo, como aquele de Étienne Souriau, citado mais de uma vez nesta tese, e que se enquadraria na terceira família metodológica de Nattiez para a aproximação de artes distintas. O melhor exemplo desse pensamento estruturalista está na mais famosa imagem quando se trata de exemplificar as ligações de Klee com a música: Fuge in Rot (Fuga em Vermelho) de 1921.

Figura 11: Paul Klee. Fuge in Rot, 1921. Aquarela e óleo sobre tela, 24,4 x 31,5 cm. – Berna, ZENTRUM Paul Klee, 2010. Também disponível em : https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Paul_Klee_Fuge_in_Rot.jpg

As analogias construídas por Klee com a escrita polifônica, longe de se configurarem em uma tradução literal, baseiam-se, na aquarela acima, naquilo que está na base dessa técnica musical. Boulez a define como sendo um certo tipo de retorno, de variação e repetição, e não a infinidade de regras muito precisas que um músico bem treinado é capaz de manejar (1989, p. 92). Mais uma vez o método de Klee se revela nitidamente. Ele reduz a fuga a seus elementos basais e, em seguida, deduz, com liberdade, consequências para sua  

263  

REFLEXOS   Capítulo  5  

 

apresentação plástica. Certo rigor na composição das figuras geométricas com suas variantes e reflexos se contrasta com a fantasia e a intuição do pintor em se apropriar dos fundamentos de uma técnica musical tão sofisticada. […] uma figura principal e uma figura secundária se perseguindo entre elas em diversas configurações, culminando em configurações bem apertadas. Como não temos interesse em retornar à fuga original, a pintura deve ser vista segundo aquilo que eu chamaria de sua própria execução de fuga; […] (Boulez, ibid, p. 93)8.

E sua “própria execução” plástica é bem diferente daquela aprendida nos conservatórios ou universidades. Embora não seja mencionado nas referências diretas à obra, tendemos à associá-la à música de Bach, compositor caro a Klee. No Estilo de Bach, porém, é mais sutil. Parece comportar uma dose maior de poesia. O rigor bachiano é diluído em meio a “acordes” de cores mais variadas. A poética da fuga vermelha tem uma rudeza imediatamente sentida na sua geometria, que não é camuflada por um fundo colorido, como é o caso de No estilo de Bach. Curioso verificar que a “rosa dos temperamentos” de Schiller e Goethe apresenta o vermelho associado à figura do monarca, no grupo dos melancólicos, juntamente com os estudiosos e os filósofos, enquanto o verde, como foi dito, associa-se aos poetas, junto ao bon vivant e aos amantes, no grupo dos sanguíneos. Por ter na forma visual um equivalente mais direto da ideia da escrita contrapontística musical, Fuga em Vermelho acaba se constituindo como uma exceção entre as telas de Klee que fazem menção à polifonia em seus títulos. Klee estava sempre buscando as dimensões mais profundas, que uns chamam de mística, outros de cósmica ou inconsciente. Existe realmente uma polifonia na música. A tentativa de transposição dessa essência para o campo plástico não seria em si nada demais. Mas, criar, na música, através do reconhecimento da particularidade da obra de arte polifônica, penetrando profundamente nesta esfera cósmica, a fim de emergir dela como um observador de arte transformando e então experimentar essas coisas na pintura, isso já é melhor. Pois não apenas na música pode existir a simultaneidade de vários temas independentes, assim como todas as coisas típicas que não são válidas apenas em um lugar, mas estão enraizadas, ancoradas organicamente em qualquer lugar e em toda parte (Klee, 2001, p. 25).

                                                                                                                8

“[...] une figure principale et une figure secondaire se poursuivant elles-mêmes en diverses configurations, culminant en des configurations très serrées. Et comme nous n’avons pas d’intérêt à revenir à la fugue originale, la peinture doit être regardée selon ce que j’appellerais sa propre exécution de la fugue ; ”

 

 

264  

REFLEXOS   Capítulo  5  

e) Olhos e Fermatas Entre as figuras claramente traçadas em No Estilo de Bach, duas entre elas podem ser ligadas sem hesitação à escrita musical: a fermata e a pequena nota inscrita em uma tênue linha na parte de cima da pintura, ligeiramente à direita. Outras analogias podem surgir, evidentemente, como a barra vertical que demarca compassos, duas colcheias invertidas no extremo direito da parte de cima da tela, as figuras circulares como semibreves, as linhas compondo uma espécie de pauta musical ou a grande curva ascendente como uma ligadura. Todas elas são, provavelmente, verdadeiras. Com maior clareza, porém, somente a fermata e a nota solitária. Aliás, rigorosamente falando, somente a fermata é absolutamente clara. Na globalidade da obra de Klee, a fermata merece uma atenção especial, porque aparece nítida ou sugerida, em grande quantidade de desenhos, aquarelas e pinturas. Vê-se fermatas desde a sua adolescência (Menino Jesus com Asas Amarelas, 1885) até suas obras finais, como em Cenário de Palco de 1937, onde a fermata aparece na parte mais iluminada e clara da tela e em outros pontos. Folheando um grande catálogo ou percorrendo uma exposição do artista de Berna é fácil perceber o quanto o semicírculo e o ponto que ilustram uma fermata é recorrente na globalidade de suas obras. Não deve ser exagero pensá-la até mesmo como um dos ícones que mais se repetem na obra de Klee. Composição Cósmica (1919), Vila Árabe (1922), Pastoral (1927), Uma Folha do Livro das Cidades (1928), Necrópolis (1930), são mais alguns dentre os muitos exemplos em que a fermata está lá, bem visível. Dos exemplos citados, apenas Pastoral e Vila Árabe foram mencionados na bibliografia consultada que comenta a aproximação de Klee com a música. Existem também alguns exemplos em que a fermata pode ser facilmente deduzida, como na já citada Insula Dulcorama, no Jardim Oriental (1937) ou no Parque perto de Lucerna (1938), onde a curva se separa do ponto. O mínimo que se pode dizer é que Klee tinha grande afeição pela fermata. Em 1919, em Desenhando com a Fermata, a afeição é afirmada, além de uma interessante e aparentemente óbvia associação: a fermata e o olho. Essa associação vai pontuando suas obras de maneira mais ou menos evidente (Gavinha, 1932; Lenda do Nilo, 1937; Du Starker, o – oh oh oh, 1919). Em Cativo (1940), uma de suas últimas telas, essa analogia é muito nítida.

 

265  

REFLEXOS   Capítulo  5  

 

 

 

Figura 12: Paul Klee. Desenhando com a fermata, 1918. Bico de pena, 15.9 x 24.3 cm. – Berna, ZENTRUM Paul Klee, 2010.

Figura 13: Paul Klee, Captive, 1940, óleo sobre serapilheira, 17,78 x 43,18 cm. Collection Mr. and Mrs. Frederick Zimmerman, Nova Iorque, ARTCHIVE, 2011.

Disponíveis respectivamente em: https://www.ufmg.br/online/arquivos/anexos/num21_cap_01.pdf.pdf http://celinejulie.wordpress.com/2007/06/13/captive-1940-by-paul-klee/

 

 

Na verdade, a forte relação entre o olho e a figura musical pode ser exibida desde antes de Klee ter feito sua opção de se tornar pintor. Já é observada em um pequeno desenho feito no seu caderno de geometria analítica, quando o pintor contava seus 19 anos de idade. Uma fermata é inscrita na quarta nota da Quinta Sinfonia de Beethoven, bem abaixo do desenho de um infeliz Beethoven, de quem só pode se ver com nitidez o olho e a boca, voltada para baixo como uma fermata sem ponto. É Beethoven, na mão de Klee, que estabelece o elo entre o olho e a fermata.  

Figura 14: Paul Klee. O Olho de Beethoven, 1898, caneta, tinta e lápis sobre papel, 23 x 18,5 cm coleção Felix Klee, Berna. Citado por Ramalho de Castro (2010, p. 8). Disponível em: https://www.ufmg.br/online/arquivos/anexos/num21_cap_01.pdf.pdf

Com um simples semicírculo e um ponto colocados nas mais diversas situações, o pintor consegue extrair uma grande potência de sentido e força simbólica. A fermata deixa de ser fermata para se tornar, conforme o desejo do pintor, um “novo ser” da natureza. As quatro notas da Quinta de Beethoven parecem anunciar solenemente uma fusão e uma gênese.  

 

266  

REFLEXOS   Capítulo  5  

Quanto à fascinação de Klee pelo olho-fermata, pode ser curioso observar os próprios olhos do pintor, tanto nos autorretratos, como em seus retratos fotográficos. São eles as figuras mais pronunciadas e marcantes na face do artista.

 

 

Figura 15: Paul Klee. Auto-retrato, 1899. Lápis sobre papel, 13,7 x 11,4 cm. coleção Feliz Klee, Berna, ZENTRUM Paul Klee, 2010.

Figura 16: Paul Klee. Auto-retrato, 1909. Aquarela sobre papel, 16.3 x 13,4cm. ZENTRUM Paul Klee, 2010.

Figura 15 também disponível em: http://fr.wahooart.com/@@/8LT488-Paul-Klee-Autoportrait

Não deve ter sido mera coincidência que uma de suas obras derradeiras e mais conhecidas, pintada na fase final de sua doença, a esclerodermia, seja justamente uma que associa olho e música, O Timpanista (1940). A intensidade do olhar dialoga com o dinamismo quase agressivo das pinceladas. “Como Cronos, o percussionista define a rítmica da passagem do tempo.” (Düchting, 2008, p. 88)9.

 

Figura 17: Paul Klee. O Timbalista, 1940. Óleo sobre papel, 36 x 21 cm. - Berna, ZENTRUM Paul Klee, 2010. Também disponível em: http://rachedikamel.wordpress.com/2012/11/29/paul-klee-joeur-timbale/40-joueurtimbale/

                                                                                                                9

“Like Chronos, the drummer defines the rhythmic passage of time.”

 

REFLEXOS   Capítulo  5  

267  

 

Paul Klee vai bem além de óbvias analogias possíveis entre gestos musicais e pictóricos e, olhando para as origens e para os processos internos das duas artes, o pintor deixa que a música se reflita com intensidade no espaço de suas telas. Ele mostra que a tradução de uma arte por outra é possível, desde que se acessem as dimensões profundas da lógica e da poética. Para Klee é preciso acessar as raízes de uma mesma árvore, cuja copa representa a obra de arte. Seja ela musical ou visual. Como pensamento, manifestação de movimento, grafismo, transposição de estruturas, a música se reflete com intensidade na obra de Paul Klee. Às vezes, de maneira tão fundamental, que não nos é permitido saber precisamente o que nos faz pensar em música. Como Rilke, simplesmente “adivinhamos” a musicalidade das telas. Em No Estilo de Bach, obra que serviu de mote para esse texto, encontramos várias frestas por onde a música entra. Na polifonia dupla, de figura e fundo, no grafismo musical, na rítmica variada, na escrita por blocos, tão comum em Bach, por exemplo, são alguns dos elos que a tela, fundamentada pela onipresença de toda uma filosofia, encontra com a arte dos sons. 4.  Outros  Reflexos     As maneiras através das quais é possível traduzir, refletir ou aplicar elementos de uma arte em outra são tão numerosas quanto à quantidade de artistas plásticos e músicos que se abriram à arte vizinha, seja estabelecendo analogias diretas com obras específicas, seja nutrindo-se de noções fundamentais da outra arte ou de posicionamentos estéticos mais amplos. A emulação aparece principalmente como um sentimento de admiração por um “modelo” que se configura no desejo de comunicar, através de outras matérias e técnicas, certos traços apreciados na arte vizinha. A mimeses, que habita o núcleo da emulação, só pode ser entendida de maneira relativa no interior do jogo de formas entre naturezas tão distintas. Artistas e compositores constroem, através da sua própria linguagem, as mais variadas analogias e maneiras de aplicar estruturas, temas, poéticas e assim produzir uma infinidade de reflexos entre as artes. O ouvinte/espectador, consciente das intenções dos criadores, busca enxergar e apreciar esses reflexos, que podem, por sua vez, multiplicar-se de maneira surpreendente. Encontrar reflexos ou correspondências entre as artes parece algo mais coerente no interior do século XX, como notou Boulez (1989, p. 23). Foi quando esse desejo de dialogar com a outra arte se tornou menos idealizado, mais explícito e conduzido por lógicas  

 

268  

REFLEXOS   Capítulo  5  

aparentemente mais objetivas. No entanto, o século XIX pontualmente anunciava, mesmo que por um viés distinto, o desejo por uma arte que fosse mais abrangente e que remetesse a um singular totalizante. Esboçava-se o apreço por uma arte que nos fizesse pensar na origem comum de todas as artes. Franz Liszt (1811-1886) deixava que fontes pictóricas penetrassem e fertilizassem sua obra. É o caso, por exemplo, de duas peças para piano do álbum Segundo Ano de Peregrinação (Itália): Il Sposalizio e Il Pensieroso, o primeiro baseado na tela de Rafael que leva o mesmo nome e o segundo inspirado no túmulo de Laurent de Médicis feito por Michelangelo10. Os artistas se preocupavam em trazer o “fundo comum” que havia entre as diversas expressões artísticas. Eugène Delacroix (1798-1863), ainda na primeira metade do século XIX, já pensava que as analogias entre as artes poderiam levar um novo impulso a sua arte. Por outro lado, Hector Berlioz (1803-1869), com a Sinfonia Fantástica, cria uma música que revela claramente o desejo de sugerir imagens ou, como notou Gérard Denizeau (2008, p. 160), o compositor inaugura em Sabbat, quinto movimento desta sinfonia, uma fusão inédita de espaço-tempo. Em meados do século XIX coexistiam o pensamento positivista e a imaginação romântica. O realismo objetivo da Escola de Barbizon, por exemplo, queria exaltar a verdade da natureza, tocar a essência das coisas, mas ao mesmo tempo tinha um compromisso com a objetividade científica. Ou seja, ao mesmo tempo focalizava a especificidade do gesto artístico e flertava com a unidade da arte. Algo similar, ainda que por vias distintas e menos pragmáticas, ocorre com o Impressionismo, onde o entendimento da cor pela ciência é incorporado com certo rigor no interior de imagens fluidas e livres. Opondo-se ao positivismo surge o Simbolismo que, por sua vez, parte do princípio de que o mundo é um organismo homogêneo e que somente os sentidos podem ser capazes de desfazer essa misteriosa unidade (ibid., p. 178). Os artistas simbolistas iriam, então, de uma firme crença na unidade das artes para a especificidade dos sentidos contrariando, de alguma maneira, o pensamento romântico que partia do específico em direção à unidade, e isso inclui tanto os impressionistas quanto os membros da Escola de Barbizon. O movimento simbolista evocou a música em alguns momentos, por exemplo, nas telas Orfeu e Parsifal de Odilon Redon (1840-1916) e, principalmente, porém já no século XX, em Lucien Lévy-Dhurmer (1865-1953), que “pintou” sinfonias e sonatas de Beethoven, o que poderia caracterizar muito bem o que chamamos de reflexos neste trabalho.

                                                                                                                10

Temáticas comuns à pintura e a música também são observadas em Liszt, como seu Jeux d’eaux de la ville d’este o Jardin de la villa d’Este de Jean-Baptiste Corot. Este caso, porém, não se adequa aos reflexos desta tese e sim às ressonâncias, por não haver contato nem intenção em fazer algum tipo de tradução de obras.

 

REFLEXOS   Capítulo  5  

269  

 

Henri Fantin-Latour (1836-1904) poderia igualmente inserir-se na família dos reflexos quando, embalado por um grande apreço pela obra de Wagner, estabelece uma série de analogias com a música do compositor alemão, como observou Michèle Barbe11. No século XIX, o que se pode considerar como o ápice do ideal romântico de totalidade das artes será, evidentemente, a Gesamtkunswerk, a arte total. O objetivo era mais que ambicioso. O projeto wagneriano da arte total queria alcançar a própria essência do universo através da arte, cuja diretriz principal era o gesto dramático. Mais que refletir as artes vizinhas na música, ele queria confluir, unir as forças das artes em um projeto comum. Esse viés, porém, se ajusta principalmente ao próximo capítulo desta tese, intitulado “confluências”. Ao menos de passagem, é preciso citar um importante compositor russo que também caracterizaria nossos reflexos. Trata-se de Modest Mussorgsky (1839-1881) e seu Quadros de uma Exposição de 1874, onde o compositor, com liberdade, “traduziu” musicalmente dez quadros de seu amigo pintor e arquiteto Viktor Hartmann. Na virada dos séculos XIX e XX, dois personagens do cenário francês tiveram enorme importância na direção de uma certa fusão de sensações. Claude Debussy (1862-1918) e Paul Cézanne (1839-1906) investem em um novo sentido de captação sensorial. O compositor dos Noturnos, às vezes antes da primeira nota escrita no papel, sabia que imagens e cores queria evocar (Denizeau, ibid., p. 188). Debussy chega inclusive a se basear em obras específicas de pintores de períodos distintos, como no caso da peça pra piano L’île Joyeuse e o quadro Embarquement pour Cythère de Jean-Antoine Watteau (1684-1721) ou na suíte sinfônica Printemps e a tela de mesmo nome de Sandro Botticelli (1445-1510). Cézanne, por outro lado, anuncia a primazia da sensação e se relaciona com a forma e com a profundidade de uma maneira particular que prenuncia o modernismo das artes. Na virada dos séculos na Europa havia ainda a influência da literatura de Marcel Proust (1871-1922), com seu princípio de fusão das sensações. Mas é no século XX que artistas plásticos e músicos, mais numerosos, irão realmente inaugurar uma nova relação com as artes vizinhas. Os exemplos são tão numerosos, como atesta a bibliografia que propõe um diálogo entre música e artes visuais, que nos ateremos apenas a alguns poucos movimentos e artistas, uns pelo caráter emblemático e pela importância histórica, outros pela particularidade de seus procedimentos artísticos. Todos

                                                                                                                11

“Fantin-Latour symbolista?”, in: Symbolisme et musique en France, Paris, Champion, 1995, p. 77.

 

 

270  

REFLEXOS   Capítulo  5  

visam somente ilustrar este capítulo com “outros reflexos”, sem a pretensão de criar uma lista ou dar uma visão panorâmica justa de um século de interseções das artes. Em 1902, em Viena, é realizada uma obra que parece ser a mais marcante do início do século no que diz respeito ao “reflexo” musical em uma obra visual. Gustav Klimt (18621918) pinta a Frisa Beethoven, onde os mais diversos elementos da Nona Sinfonia percorrem o extenso mural da Maison de la Sezession. Não só a música, mas também poesia e dança se encontram nesta obra pictórica. O movimento artístico da Secessão visava a síntese na arte e queria estabelecer um princípio de equivalência na renovação formal da linguagem artística (ibid., p. 203). Esse princípio encontrado na Frisa de Klimt se junta, de alguma maneira, ao ideal artístico da arte total do século anterior. Aquilo que Delacroix já havia anunciado um século atrás, foi proclamado por Wassily Kandinsky (1866-1944) em 1913 no célebre Do Espiritual na Arte. Leis universais regiam todas as artes e o artista moderno seria movido pelo que o pintor russo chamou de “necessidade interior” de estabelecer as sínteses das artes. Esses princípios ficam explícitos tanto no livro de Kandinsky quanto nas diretrizes do grupo chamado Blaue Reiter, impressas no seu Almanach em 1912. Como percebeu Jean-Yves Bosseur (2006, p. 16), no Almanach não existe nenhuma alusão à divisão tradicional entre técnicas artísticas, existe, sim, uma homogeneidade de pensamento, uma crença comum na vida interior do artista, na forma como exteriorização da intuição criativa, entre outras “leis”. Além de citar um certo número de obras em que Kandinsky incorporou livremente técnicas musicais, como em Fuga (1914), chamada por ele de “improvisação controlada”, Bosseur sugere que a tela chamada Impression III (Konzert) está ligada a um concerto que o pintor assistiu em 1911 com obras de Schoenberg (1874-1951). Kandinsky exaltava a fusão das sensações e proclamava a sinestesia. Acreditando no jogo de correspondências entre cores e sons, chegou a propor transcrições visuais de motivos musicais, por exemplo, na Quinta Sinfonia de Beethoven Kandinsky, 2006, p. 52).

 

271  

REFLEXOS   Capítulo  5  

   

Figura 18: Wassily Kandinsky. Impression III (Konzert), 1911. Óleo sobre tela, 78,5 x 100,5 cm. – Munique, Städtische Galerie im Lenbachhaus und Kunstbau, ABC Gallery, 2011. Também disponível em: http://arthistory.about.com/od/from_exhibitions /ig/kandinsky_retrospective/kandinsky_gugg_0 910_05.htm

 

Eu acredito justamente que não podemos encontrar nossa harmonia de hoje por vias “geométricas”, mas pelo contrário, pela via anti-geométrica, da mais absoluta anti-lógica. E esta via é aquela das “dissonâncias na arte” – tanto em pintura quanto em música. E a dissonância pictórica e musical de “hoje” não é nada mais que a consonância de “amanhã”. (Kandinsky apud Duplaix, 2004, p. 118)12.

No campo musical, é incontestável que Arnold Schoenberg tinha grande afinidade com os princípios do Blaue Reiter de “necessidade interior”, ao mesmo tempo que, como Kandinsky, se orientava na direção de um controle cada vez maior de sua linguagem. Nos anos em que o músico manteve maior contato com o pintor, eles tiveram dois projetos comuns, La Main heureuse (1909-1913), drama musical, e La Sonorité jaune (1909), “composição cênica”. Mas é em uma obra puramente musical que Schoenberg deve encontrar as maiores afinidades com o universo das cores. A terceira de suas Cinco Peças para Orquestra de 1909, intitula-se Farben (cor), e tornou-se uma de suas peças mais apreciadas. A maneira com a qual o compositor coloca em valor o timbre e suas transformações, o “cromatismo total”, anunciou a importância que esse parâmetro musical iria adquirir nas décadas posteriores. Também é bom lembrar que Schoenberg estabeleceu relações com outros professores da Bauhaus, tais como Johannes Itten (1888-1967), e que, entre as preocupações dessa importante escola de arquitetura e design estava a questão da unidade entre cor e som. Nos anos 10, no campo das artes visuais, o movimento artístico estadunidense chamado Sincronismo fundou abertamente suas bases no campo musical, mais especificamente, no aspecto rítmico. Queriam que suas telas se desenvolvessem como uma                                                                                                                 12

“Je crois justement qu’on ne peut trouver notre harmonie d’aujourd’hui par des voies « géométriques », mais au contraire, par l’antigéométrique, l’antilogique le plus absolu. Et cette voie est celle des « dissonances dans l’art » - en peinture comme en musique. Et la dissonance picturale et musicale « d’aujourd’hui » n’est rien d’autre que la consonance de « demain ».”

 

 

272  

REFLEXOS   Capítulo  5  

música e que a noção de duração se impusesse no interior das cores ritmadas. Morgan Russell (1886-1953) e Stanton Macdonald-Wright (1890-1973) estão entre os líderes do movimento e trazem alguma semelhança com o ideal artístico de interpenetração tempo/espaço buscado por na mesma época por Robert Delaunay (1885-1941) (Duplaix, 2004, p. 132-139). Nas primeiras décadas do século XX, a música penetrou o universo pictórico das mais diversas maneiras. Às vezes era modelo de abstração, outras vezes buscava-se princípios comuns de construção, outras vezes ainda era o pensamento ou a percepção sinestésica que se afirmava. Pintores do porte de Piet Mondrian (1872-1944), Henri Matisse (1869-1954) e Frantisek Kupka (1871-1957), por exemplo, estabeleceram algum tipo de diálogo com a arte dos sons. Mondrian pensava a arte em sua globalidade e achava que a música, assim como a pintura, deviam suprimir completamente a natureza de seus núcleos. Era preciso excluir os sons naturais, inventar novos instrumentos, abolir as curvas melódicas e as vibrações naturais do som (Bosseur, 1998, p. 111). Matisse fala frequentemente em dissonância e consonância, em acordes, harmonia e, por exemplo, na sua tela La leçon de piano de 1916 o pintor busca equivalentes estruturais e cromáticos entre a escala musical e a gama de cores (Denizeau, 2008, p. 218). Kupka acreditava que toda sensação implicava no cruzamento das diferentes modalidades sensitivas e que uma representação de linhas e cores não podia ser isolada de sua representação acústica e olfativa (Bosseur, 2006, p. 51).

 

Figura 19 : Frantisek Kupka. Étude pour Amorpha, fugue à deux couleurs, 1911-1912. Óleo sobre tela, 84 x 128 cm. – Paris, CENTRE George Pompidou, 2012. Disponível em : http://www.centrepompidou.fr/cpv/ressource.action;jsessionid=B6DC 13AE2480459CAF5FE8696456065B?param.id=FR_R6a9f3444ed8bf8b94dcb67bd2b526e¶m.idSource=FR_Odbb9bfd6c679e2f5d5187757e317c98

 

 

273  

REFLEXOS   Capítulo  5  

 

Eu tateio no escuro, mas creio que posso encontrar algo entre a visão e a audição e posso criar uma figura em cores como Bach o fez em música. De qualquer maneira, não me contentarei mais com uma cópia servil. (Kupka apud Duplaix, 2004, p. 117)13.

Na primeira metade do século passado havia ainda outros movimentos artísticos que teciam ligações estreitas com a música. Era o caso do Musicalismo, fundado nos anos 30 por Charles Blanc-Gatti, Henry Valensi, Gustave Bourgogne e Vito Stracquadaini. Cada artista desenvolvia seu próprio sistema de correspondências musicais com a preocupação de fundo de revelar ecos psíquicos no domínio visual (Bosseur, 2006, p. 44). Havia ainda o Vorticismo inglês que buscava um “ritmo absoluto” e também o Mecanicismo de Fernand Léger, com um viés similar. Bem no meio do século XX, Gérard Denizeau (2008, p. 232) cita como obra marcante do diálogo das artes, Autumn Rhythm (1950) de Jackson Pollock. A impressão do gesto, do ritmo, a autonomia da forma e o combate à descontinuidade temporal e espacial devem estar entre os elementos que constroem elos entre artes. Após os anos 50 pululam nas artes visuais exemplos do que chamamos de reflexos, sejam eles indiretos, isto é, inspirados por aspectos mais gerais da arte musical ou de certo compositor em especial, ou diretos, quando o artista se baseia em uma obra musical bem precisa. Jean-Yves Bosseur (2006) cita inúmeros artistas que, intencionalmente, dialogaram com a música e produziram reflexos diretos em sua arte. Serge Charchoune (1888-1975) buscou uma representação pictórica do Concerto no.4 de Beethoven e Sinfonia no.9 de Schubert, August Von Briesen (1935-2003) quis pintar a Música Aquática de Handel e Punkte de Stockhausen; Henri Nouveau (1901-1959) propôs uma representação gráfica da oitava fuga do primeiro livro do cravo bem temperado de Bach. Jacques Pourcher (nascido em 1964) compôs obras que se ligam à Lux Aeterna de Ligeti, Variações op. 27 de Webern, Jesús Rafael Sotto (1923-2005), caracterizando agora o que chamamos de reflexos indiretos mais acima, cria as Pinturas Seriais em analogia com o serialismo musical. Jaspers Johns, Jean Legros, Jean Dewasne, Stuart Davis, Sol Le Wit, Augusto Giacometti, Mikhaïl Matiouchine, Arnaldo e Bruno Ginanni-Corradini, Georgia O’Keeffe, Leopold Survage, Vlaimir BaranoffRossiné, Francis Picabia, Sophie Taeuber-Arp, Josef Mathias Hauer, Josef Albers, Théo Van

                                                                                                                13

“Je tâtonne toujours dans le noir, mais je crois pouvoir trouver quelque chose entre la vue et l’ouïe et je peux créer une figure en couleurs comme Bach l’a fait en musique. De toute manière, je ne me contenterai plus longtemps de la servile copie.”

 

 

274  

REFLEXOS   Capítulo  5  

Doesburg, todos, em algum momento, refletiram sobre o parentesco das artes e deixaram algum registro disso em suas obras14. No Brasil, o artista Arcangelo Ianelli, em sua fase geométrica, iniciada nos anos 70, evocava a música em seus quadros. Em uma poética que remetia a Mark Rothko, Ianelli parecia desejar envolver o observador e tornar-se íntimo dele, como a música pode fazer com o ouvinte. Telas como Balé das Formas (1973) e Sinfonia em Verde (1987) tem a arte dos sons como pano de fundo e podem caracterizar nossos reflexos indiretos.

 

Figura 20: Arcangelo Ianelli. Sinfonia em Verde, 1987. Óleo sobre tela, 240 x 10 cm. – São Paulo, PINACOTECA do Estado de São Paulo, 2010. Disponível em: http://www.pinacoteca.org.br/pinacotecapt/default.aspx?mn=545&c=acervo&letra=A&cd=2615 http://www.pinacoteca.org.br/pinacotecapt/default.aspx?mn=545&c=acervo&letra=A&cd=2615

Nas artes visuais os exemplos são certamente mais numerosos que aqueles encontrados na música. Mas isso não quer dizer que grandes compositores no século XX não tenham se debruçado no território da arte vizinha em algum momento de suas carreiras. György Ligeti, por exemplo, esteve sempre atento às consequências que um pensamento pictórico poderia produzir em sua música. A gravura de Paul Klee Lugar de Culto o inspirou na ideia do estatismo em música e, em suas Três Peças de 1976 por exemplo, levou em conta a noção de metamorfose evolutiva de M. C. Escher (1898-1972) (Bosseur, 2006, p. 181). Outro importante compositor que se relacionou intensamente com a arte fronteiriça foi o estadunidense Morton Feldman (1926-1987). Ele compôs em 1971 uma obra chamada Rothko Chapel para coro, viola, celesta e percussão e pretendeu traduzir certos elementos tanto das telas quanto de suas disposições no interior da capela octogonal construída para abrigar obras                                                                                                                 14

A maior parte desses artistas são citados em Musique et arts plastiques: Interactions au XXe Siècle e no catálogo da exposição Sons et lumières realizada em 2004 no Centro Nacional de Arte Moderna Georges Pompidou na França, ambos citados na bibliografia desse trabalho.

 

REFLEXOS   Capítulo  5  

275  

 

de Rothko em Houston, no Texas. Entre os compositores da chamada música espectral, Tristan Murail (nascido em 1947) criou Vues Aériennes em 1988 inspirado pelas Cathédrais de Rouen de Monet e La Barque Mystique em 1993 por pasteis de Odilon Redon, sempre baseando-se em relações de polos harmônicos e inarmônicos e dos polos do espectro luminoso dos raios ultravioletas e infravermelhos. Hugues Dufour (nascido em 1943) baseouse em sutis analogias entre o espaço sonoro e o espaço plástico para criar obras musicais que fazem menção à obras pictóricas, como La Philosophie selon Rembrandt (1992), La Maison du sourd d’après Goya (1999) e Lucifer selon Pollock (2001). Marc Battier, através de um rigoroso processo de tradução, interpreta musicalmente, com o auxílio de um programa de informática, nove pinturas do pintor chileno Roberto Matta na obra Invasion of the Night. No cenário brasileiro alguns importantes compositores estabeleceram, livremente, elos com as artes visuais. Heitor Villa-Lobos (1887-1959), por exemplo, não se voltou especialmente para as artes visuais, mas propôs uma maneira muito particular de se relacionar com as imagens. Era a chamada “melodia das montanhas”, um método didático que ele mesmo aplicou em algumas de suas obras. Baseado em desenhos, gravuras ou fotografias de montanhas traçava-se um contorno simples em uma folha de papel quadriculado. Traços horizontais determinavam durações e traços verticais as alturas musicais, ambos a partir de convenções preestabelecidas (Paz, 1988, p. 63). Do ponto de vista didático, Villa-Lobos queria estimular a imaginação de jovens estudantes de música. Olivier Messiaen, em seu Traité de rythme, de couleur e d'Ornithologie (1994, p. 55). chamou esse processo composicional de Villa-Lobos de “musique tectonique”, música tectônica. Sua Sexta Sinfonia leva no subtítulo: Sobre as linhas das montanhas do Brasil (1944) ilustra bem esse método, assim como a canção New York Skyline Melody (1939). No caso da última, as linhas sobre as quais ele se baseia para compor são as dos arranha-céus nova-iorquinos. O compositor petropolitano César Guerra-Peixe (1914-1993), sem a pretensão de algum tipo de tradução estrutural, mas antes como uma livre ilustração musical compôs Tributo a Portinari em 1992. Trata-se de uma suíte sinfônica dividida em quatro peças onde cada uma delas leva o título de uma tela de Cândido Portinari. São elas: Família de Emigrantes, Espantalho, Enterro na Rede e Bumba meu Boi. A música de Guerra-Peixe parece a perfeita trilha sonora para as telas de Portinari, fortemente narrativas e com senso dramático muito afirmado em um contexto figurativo pleno de tensões ou dissonâncias. Interessante observar que certos momentos da suíte, sobretudo a parte final da segunda peça, Espantalho, parece carregar algo de tragicômico que não é muito distante dos Quadros de uma Exposição de Mussorgsky.  

 

276  

REFLEXOS   Capítulo  5  

Como último exemplo citamos o jovem compositor canadense Simon Martin (nascido em 1981) e suas três obras: L’Heure mauve para três violões, Projections Libérantes para quarteto de saxofones e Iceberg e soleil de minuit – quatuor en blanc para quarteto de cordas. As obras são, respectivamente, homenagens aos artistas visuais Ozias Leduc (1964-1955), Paul-Émile Bourduas (1905-1960) e Jean Paul Riopelle (1923-2002). Na primeira obra, através de um continuum musical e de mudanças gradativas de timbre, o compositor buscou traduzir o senso de unidade e o simbolismo espiritual da tela L’Heure Mauve (1921) de Leduc. A obra sobre a qual Martin se baseou para compor Projections libérantes foi Composition 69 (1960) de Bourduas. Martin buscou na nos sons “multifônicos” dos saxofones um correspondente sonoro para o efeito de fragmentação e rachaduras na superfície desta pintura de Bourduas. Quanto à terceira composição citada, Iceberg e soleil de minuit – quatuor en blanc, Martin se baseou na tela Soleil de Minuit (1977). Assim como Ridopelle, Martin diz ter buscado explorar ao máximo as possibilidades da matéria, sem nunca se tornar se sistemático15. A lista de reflexos, segundo nosso vasto entendimento, poderia se estender quase indefinidamente. Apreciar qualquer reflexo entre as artes não é nada mais que contemplar tentativas declaradas de se aplicar na própria arte elementos que se encontram em outro território. Embora tenhamos nos concentrado nos contatos virtuais entre música e artes visuais, os reflexos poderiam eventualmente se aplicar a qualquer arte. No jogo das similitudes no interior dos reflexos, as emulações motivam algum tipo de imitação e as analogias ajudam a transpor diferenças e buscam igualar o inigualável. Mas cada obra permanece em seu próprio território, autônoma, sem nenhum contato físico com a obra refletida. A semelhança das artes aparece, mais uma vez, nas entrelinhas das diferenças.

 

                                                                                                                15

Tivemos a oportunidade de encontrar Simon Martin em Montréal, no Canadá nos dias 25 e 31 de maio de 2012, durante e após o Congresso Internacional de estudantes em Musicologia Sysmus 12 que ocorreu entre os dias 24 e 26 de maio na mesma cidade.

 

CONFLUÊNCIAS   Capítulo  6  

277  

 

Capítulo 6 Confluências Nos mesmos moldes das ressonâncias e dos reflexos, a apresentação e a construção de nossas confluências obedecerão a um certo trajeto. A similitude convenientia empresta alguns de seus principais atributos a essa noção de confluência. Evocá-la será uma maneira de se endereçar e observar uma obra única na qual coexistem matérias e técnicas artísticas de duas ou mais naturezas. Noções de harmonia, acordo, conflito, tensão, sincronização, convergência, entre outras, percorrerão as confluências desta tese. Diferentemente dos dois capítulos precedentes, as seções deste não são dedicadas a obras únicas ou a pares de obras. Ópera e cinema são eleitos entre as artes mais tradicionais nas quais existe um emblemático amálgama de distintas matérias artísticas, e são nossas principais ilustrações das confluências. Não são obras que referenciam o capítulo e sim uma reflexão mais global sobre a coexistência de elementos heterogêneos e sobre certo jogo de similitudes e diferenças em cinema e ópera. Mas isso não impede que duas obras tenham um grande peso como exemplos de obras no interior de duas seções deste capítulo. São elas: a ópera Lulu (1935) de Alban Berg (1885-1935) e o filme O Encouraçado de Potemkin (1925) de Serguei Eisenstein (1898-1948). A última parte do capítulo, como foi feito nos dois precedentes, cita, sem aprofundamento, obras e artistas onde uma reflexão nos moldes das confluências pode ser fértil. Os possíveis elos entre as artes, ou as matérias artísticas, estão na própria concretude da obra e são tão numerosos quanto o são as obras as quais chamamos de híbridas, que comportam uma diversidade de matérias artísticas distintas. Outras Confluências, a quarta seção do capítulo, além de exemplos de artes mais tradicionais, evoca certo número de manifestações artísticas relativamente recentes, como instalações, performances, ready-mades e esculturas sonoras. Entre as três famílias de encontros entre as artes – que são também condições de observação das obras – as confluências são talvez as mais complexas. Parecem tocar com muita força no próprio estatuto da arte. Trazem à tona questões ontológicas e colocam em questão os próprios limites das disciplinas artísticas. No cerne das confluências desta pesquisa se inclui toda obra em que coexistem matérias artísticas variadas. Pelo viés da semelhança ou do jogo das similitudes, observa-se a sincronia de variados elementos no seio de uma obra única e unificada. E observar essa sincronia é confrontar-se com as confluências nesta tese.  

278  

CONFLUÊNCIAS   Capítulo  6  

1.  Confluir     a) Da Convenientia à Confluência Tanto a convenientia quanto a confluência, apresentada mais abaixo, carregam em seu núcleo central um sentido de harmonia ou consonância. Tal sentido perdurou por vários séculos como principal diretriz dos dois termos. Desde os estoicos, do início do século III a.C., até meados do século XVII, residia no cerne da convenientia um amplo sentido de harmonia. A noção se firmou como uma força que harmonizava as ações e as essências. Para os estoicos a harmonia da convenientia era algo subjetivo e mais próximo de um horizonte moral, e, na medida em que firmaram-se princípios racionalistas, a convenientia se tornou mais objetiva, conduzida pelos números e pela ordem, sem, apesar disso, negar completamente os preceitos estoicos. Sempre tendo a harmonia como pano de fundo, a convenientia se liga igualmente à noção de “acordo”, por possuir, como foi dito, a mesma raiz que a palavra convenção. No século XVII, os franceses aplicavam a convenance a uma infinidade de situações, das mais vastas como a dos estoicos, às mais precisas, quando ela se constituía em regra ou lei. Os ingleses, ainda no século XVII, colocavam a percepção da convenientia (agreement) na base de todo o conhecimento e davam a esse conceito uma enorme importância. Souriau, em seu Vocabulário de Estética (1990, p. 513), inclui a convenance no núcleo da Estética e nos atenta para as relações de conformidade e adequação no interior dos objetos artísticos. Na convenance apresentada por Souriau reside a noção de economia, em seu sentido amplo, da relação das partes e o todo, e entre o todo e sua recepção. A convenance seria uma qualidade que faz com que as partes se ajustem e se integrem em um todo. Entretanto, é a Estética Teológica que, curiosamente, aporta uma sentido essencial para nosso entendimento de convenientia: trata-se da inclusão da noção de tensão. Como vimos no capítulo 3, no livro perdido de Santo Agostinho, De pulchro et apto (O Belo e o Conveniente), o Uno era designado pelo Belo (pulchro) e a convenientia (aptum) pressupunha algum tipo de divisão, segundo as descrições do próprio autor1. O aptum representava uma tensão em direção à unidade e a necessidade de um princípio unificador. Do ponto de vista teológico, era o movimento de adequação ao princípio divino e sua unidade. Sob uma outra                                                                                                                 1

Todas essas considerações sobre convenientia constituem ao mesmo tempo um síntese e uma apropriação da noção conforme ela foi apresentada entre as páginas 45 e 52 desta tese.

 

CONFLUÊNCIAS   Capítulo  6  

279  

 

perspectiva, Santo Tomás de Aquino, apresenta a convenientia quase como sinônimo de belo. De um belo, entretanto, que precisa de ajustes e pressupõe relações de causalidade. A convenientia, como toda similitude, comporta forças e articulações internas. Evoca com intensidade, por exemplo, as outras similitudes, que auxiliam no estabelecimento de laços entre os elementos diversos no interior do objeto, mas são logo anuladas pelo fato da convenientia envolver um contato real e direto entre as partes atuantes. Analogias sugerem correspondências formais e temáticas, as emulações emergem nas relações causais e as simpatias incitam conexões das mais surpreendentes ou improváveis. E este jogo ou percurso de similitudes nos revela toda uma dinâmica interna, plena de ajustes e assimilações. Nossa convenientia se definirá, então, como uma força que harmoniza, não sem tensão, elementos de natureza distinta. Em um fina articulação interna, onde simpatia, analogia e emulação se alternam em sua ações, a convenientia incita um movimento que aproxima e faz com que coisas naturalmente distintas ocupem o mesmo espaço, e nisso ela se difere das outras similitudes. É a única em que os objetos realmente se tocam. Como ocorreu com as ressonâncias e os reflexos, nossas confluências surgem da articulação entre os principais atributos apresentados da similitude que as guia, a convenientia, e as significações reveladas em um pequeno estudo do próprio termo confluência. Confluência não comporta uma ampla gama de significações. Surgiu nos dicionários de língua portuguesa no início do século XIX, precedidos pelas versões confluente e confluir no século XVII, derivadas por sua vez do latim conflŭěre (Cunha, 1982, p. 362). Na verdade, tudo parece ter derivado do verbo fluir, que também deu origem à efluente, influência, fluência, influxo, etc. Ainda de acordo com Cunha, fluir, queria dizer correr, escorrer (como os líquidos), proceder e derivar. Fluir é antecedido por fluído, significando “que corre como líquido” e deriva-se do substantivo masculino latino flume, que significa “rio”. Um pouco mais à frente aparece fluxo, que já está nos dicionários de português desde o século XIV e significa “fluido que corre, que deixa correr”. Entre as primeiras significações de confluência, ou de sua versão francesa confluence, nos dicionários atualizados, tais como Houaiss, Aulete, Petit Robert e o Trésor de la langue française, está a acepção de união de rios, ou a de um ponto de junção de dois rios. Os substantivos flume e fluxus deixam sua marca e imprimem no cerne da palavra a noção de movimento e de encontro. Um movimento de coisas distintas que vão em uma mesma direção. Um encontro que se dá em um ponto, um lugar, onde dois ou mais rios se confundem  

280  

CONFLUÊNCIAS   Capítulo  6  

“ou em que um se lança no outro” (Aulete, 1948). “Direção para um mesmo ponto, convergência, afluência”, é a segunda significação do Houaiss (2009). Nenhuma das primeiras significações surpreendem o senso comum. Embora pensemos mais frequentemente em confluência no sentido figurado, como convergência ou coincidência de ideias ou interesses, nos é fácil associar confluência, mesmo que intuitivamente, com essas primeiras significações ligadas a fluxos de água. Aliás, a própria sonoridade da palavra fluir parece nos remeter ao movimento das águas. Em Medicina, o termo é utilizado de duas maneiras. A primeira, análoga à sua aplicação nos rios, confluência é a junção de dois vasos sanguíneos ou linfáticos. A segunda aplicação relaciona-se com patologias que se manifestam na pele. Existe confluência quando pústulas (pequenos tumores) estão tão próximos que se tocam e se confundem. Em Botânica, a palavra confluente é aplicada aos órgãos das plantas indica que partes divergentes estão unidas ou enlaçadas (Houaiss, 2009). Em Matemática, a confluência se configura em uma “operação que se obtém uma equação diferencial a partir de outra que tem dois pontos singulares, fazendo um dos pontos tender para o outro” (ibid.). A confluência será, evidentemente, ligada ao verbo confluir, que por sua vez está sempre atrelado à ação de reunir-se, encontrar-se ou “couler ensemble” (fluir ou deslizar junto) (Petit Robert, 1990). Todas os entendimentos confluem harmoniosamente e as pequenas nuances que surgem na reflexão sobre o termo, sobretudo aquelas provindas das disciplinas mais afastadas do pensamento desta tese, trazem algumas cores interessantes para nossas confluências. São elas que, quando somadas à riqueza de entendimentos de convenientia, produzem uma confluência sólida e que poderá aplicada no âmbito das artes. c) Confluência nas Artes   Em outras palavras, a confluência consiste na coincidência de forças, ideias ou todo tipo de coisa em um certo ponto ou lugar. A esse significado primordial são acrescentados outros, que serão igualmente importantes, nas confluências desta tese. À noção de harmonia ou convergência, acrescentam-se as acepções de acordo (convenance ou agreement), economia estética e tensão. Derivadas da similitude convenientia, essas significações menos pacíficas e tranquilas se interligam na medida em que demandam ajustes, entre as partes e o todo, e entre o todo e a recepção. Por esse viés, a confluência nas artes acaba por se aproximar do entendimento do termo em Botânica, quando órgãos divergentes se enroscam uns com os  

CONFLUÊNCIAS   Capítulo  6  

281  

 

outros, ou na Medicina, quando não é possível saber onde começa ou termina uma pústula em uma varíola confluente, tão próximas elas se encontram. As confluências nas artes, embora se configurem no interior de uma obra única, carregam em seu núcleo significações do verbete que o antecede nos dicionários: conflito. Quando coexistem em uma mesma obra materiais artísticos distintos, entendidos nos seus sentidos mais concretos, tais como sons, cores ou gestos, essa coexistência irá pressupor alguma espécie de conflito. Elementos de tendências antagônicas devem ocupar o mesmo espaço, se ajustar e, de alguma forma, se harmonizar, como o encontro de dois rios formando um terceiro, onde o resultado não é algo único, mas algo ao mesmo tempo uno e múltiplo. Na confluência das artes existe, como na convenientia apresentada por Michel Foucault, uma comunicação de paixões e movimentos. Indissociáveis, as paixões se constituem nas forças que induzem o movimento que faz com que diversos elementos se aproximem e se toquem. No interior de um objeto artístico que é ao mesmo tempo singular e plural, as diferentes similitudes atuam ativamente, mas são imediatamente subsumidas pela convenientia, única similitude em que existe um contato físico entre os elementos, no nosso caso, as diferentes artes. A simpatia, que também se caracteriza pela comunicação de paixões, atua como um tipo de correspondência poética, de instauração do objeto artístico, surgindo de uma afinidade entre objetos artes e artistas distintos. Ela fica nítida nas artes ditas colaborativas, tais como cinema, ópera e balé. As analogias são intermediadoras que tratam diretamente dos ajustes. Os conflitos no jogo das diferenças e semelhanças são regrados pelas analogias internas que asseguram ao mesmo tempo a unicidade da obra, mas que não igualam nem suprimem as diferenças. E as emulações, estas estão presentes nos inevitáveis jogos de reflexos da dimensão de causas e efeitos que elas pressupõem. E assim, sempre guiadas pela força de convenientia e permeada de similitudes e diferenças, as confluências afirmam o dinamismo e a riqueza das relações entre as partes, de diferentes naturezas artísticas, e o todo, no interior do objeto artístico. 2. Confluências na ópera a) Gesamtkunstwerk Quando se fala em confluência das artes parece inevitável mencionar a noção de Gesamtkunstwerk, a “obra de arte total”. Suas raízes mais profundas remontam às tragédias de Ésquilo, provindas da Grécia antiga. Suas raízes mais próximas se situam bem no princípio do  

282  

CONFLUÊNCIAS   Capítulo  6  

pensamento idealista alemão. Em Dresde, Iena, Berlim e Heideberg, nomes como Novalis e Schelling esboçavam o desejo de reunir as artes, de expressar uma reconciliação naquilo que o filósofo Michel Onfray chamou de “epifania teatralizada da arte total” (2004, p. 19). Além da filosofia romântica alimentar a crença em uma estética global, teses científicas que apresentavam sons e cores como vibrações expressas como ondas também levam artistas do século XIX a especular sobre uma possível escala de equivalência entre matérias artísticas (Vergo, 2010, p. 8). Poesia e música lideram o “ranking” das artes. Hegel vê a primeira como a grande reveladora da Ideia absoluta. Schopenhauer vê a música como linguagem universal que expressa diretamente a Vontade, sem descrever fenômenos particulares nem sentimentos individuais2. Na poesia havia, por exemplo, Charles Baudelaire, que no seu famoso poema Correspondances (1857) sintetizava sua aspiração a um ideal totalizador e, mais tarde, Arthur Rimbaud, que no seu conhecido poema Les Voyelles (1883) tece elos entre sons e cores. O poema sinfônico, tão bem representado no século XIX, “transcreve” musicalmente conteúdos literários, evocando algumas imagens visuais. Entretanto, no século dos românticos o desejo de totalidade atinge seu ápice no projeto de arte total de Richard Wagner. Não somente a obra artística em si, no palco encenada, mas também seus escritos teóricos e os textos de seus críticos, tudo contribuiu para afirmação do ideal artístico do compositor, fundado em um projeto utópico segundo o qual a ópera ambicionaria uma fusão de música, drama, artes plásticas e literatura3. A obra de arte total almejava uma síntese superior em que cada arte deveria absorver e ultrapassar umas às outras (Scarpetta, 2004, p. 10). Apesar de ser consequência de um pensamento centenário, a Gesamtkunstwerk transformou-se em uma espécie de marca registrada de Richard Wagner. Foi ele quem, em seus textos teóricos, sobretudo na Obra de Arte do Futuro (1850), percebeu o termo como uma maneira conveniente de expressar suas próprias aspirações. Por ter sido ele também o autor dos libretos de suas óperas e muitas vezes exercer um controle total sobre a produção delas, o termo Gesamtkunstwerk pareceu se adequar satisfatoriamente.

                                                                                                                2

A Vontade em Schopenhauer, entendida de maneira bem geral, é a raiz de toda conduta humana, é concebida sem nenhuma meta ou finalidade e se configura em um querer irracional e inconsciente (Schopenhauer, s.d., p. 148). “A música de modo algum é semelhante às outras artes, ou seja, cópia de Ideias, mas cópia da vontade mesma, cuja objetividade também são as Ideias. Justamente por isso o efeito da música é tão mais poderoso e penetrante que o das outras artes, já que elas falam apenas de sombras, enquanto aquela fala da essência.” (Schopenhauer apud Wagner, 2010, p. 25). 3 Nos meados do século XIX e ainda hoje, os escritos teóricos de Wagner despertam grande interesse, especialmente em sua trilogia de ensaios (Arte e Revolução, Ópera e Drama e A Obra de Arte do Futuro). Peter Vergo comenta o fato de nos volumosos textos de Wagner ser fácil tomar emprestado frases de efeito e aforismos capazes de ilustrar todo tipo de argumento estético, musical, histórico ou político (2010, p. 18).

 

283  

CONFLUÊNCIAS   Capítulo  6  

 

Mas, como disse Onfray, visamos o cosmos, mas realizamos o microcosmos (2004, p. 21). Na ópera de Wagner existe, de fato, uma comunicação profunda entre música e texto, que não cabe aqui desenvolver. No entanto, no que diz respeito aos cenários, Wagner deixou, na maioria dos casos, que outras pessoas se esforçassem para realizá-los da maneira que os convinha (Vergo, 2010, p. 19). Apesar de ter demonstrado uma grande imaginação visual, confirmada pelos detalhes cênicos solicitados em seus libretos, o compositor provavelmente não tinha um grau de envolvimento profundo com o universo das artes visuais (ibid., p. 19). As inovações musicais e dramáticas não eram necessariamente acompanhadas por uma reforma equivalente na apresentação cênica. A inovação cenográfica se caracterizava muito mais pelas ideias e teorias do que pela sua concretização nos palcos (Dudeque, 2009, p. 1). A obra de arte total exibia assim sua utopia. Um homem da arte só pode estar completamente satisfeito através da unificação de todas as formas de arte em um esforço artístico comum. Qualquer fragmentação de sua sensibilidade artística limita sua liberdade, o impede de tornar-se plenamente o que ele é capaz de ser. A mais elevada forma de arte comum é o drama; ele só pode existir plenamente se abarcar todo tipo de arte... Quando olho e ouvido reforçam mutuamente as impressões que cada um recebe, só então o homem da arte está presente em toda a sua plenitude. (Wagner apud Vergo, 2010, p. 105)4.

A unificação das formas artísticas, é preciso frisar, não era para o compositor alemão a diluição das barreiras entre as artes ou um modo de ignorar suas diferenças. Essa unificação na arte total se associava, antes de tudo, ao território do drama que, por sua vez, ligava-se à vontade do artista de reproduzir à sua maneira o espírito da tragédia grega. Assim como Schelling, um dos mais importantes filósofos do idealismo alemão, Wagner estava entre aqueles que situavam a tragédia grega no ápice da realização humana. Não eram as afinidades e semelhanças entre as artes que estavam em jogo. As diferentes formas de arte, com suas fronteiras bem delimitadas, deveriam estar à serviço de um ideal artístico maior: o drama. De acordo com Peter Vergo (2010, p. 108), Wagner estava completamente convencido de que o profundo efeito que a tragédia grega produzia nos espectadores provinha parcialmente da subserviência de cada forma artística, principalmente poesia e música, ao propósito dramático global. Vergo aponta ainda para o fato das ideias de Wagner terem tomado vida própria e produzido alguns “frutíferos mal-entendidos” (ibid., p. 109). A Gesamtkunstwerk adquiri                                                                                                                 4

“Artistic man can be wholly satisfied only by a unification of all forms of art in the service of the common artistic endeavor. Any fragmentation of his artistic sensibilities limits his freedom, prevents him from becoming fully what he is capable of being. The highest form of communal art is drama; it can exist in its full entirety only if it embraces every variety of art… When eye and ear mutually reinforce the impressions each receives, only then is artistic man present in all his fullness.”

 

284  

CONFLUÊNCIAS   Capítulo  6  

sentidos bem distintos daqueles que Wagner havia imaginado e proposto. A noção de completude (Gesamt) e de unicidade do termo predomina sobre o objetivo wagneriano de glorificação do drama. No início do século XX, a Gesamtkunstwerk era associada a toda uma gama de atividades, tais como design de interiores, decoração, urbanismo e arquitetura5. Talvez seja, inclusive, uma aplicação do termo que se ajusta com mais facilidade que em ópera, já que nessas atividades o “total” liga-se primordialmente ao “funcional” e à noção de uma completude mais abordável. Em ópera não existe uma lei totalitária regendo-a, o que existe, no máximo, são alguns conceitos que servem de mote. “Ópera, arte loucamente completa. Quando se diz ‘completa’, porém, não se diz ‘total’, e se existe um termo, definitivamente, que se aplica mal ao gênero, o termo é com certeza este último.” (Moindrot, 1993, p. 6)6. O termo “total” pode não se ajustar convenientemente a uma compreensão geral de ópera, mas, no caso de Wagner, denominá-la como arte total não parece tão equivocado, pois, além de suas intenções mencionadas acima, existe ainda uma profunda simbiose entre seus escritos teóricos e sua obra, sobretudo a Tetralogia, O Anel do Nibelungo. O conjunto dessas quatro grandes óperas pretende ilustrar a origem da música e da Gesamtkunstwerk, fundada sobre um mito andrógino reunindo poesia e música, considerados respectivamente como encarnação do princípio masculino e feminino (Nattiez, 2010, p. 160). Não é surpreendente que exista uma conexão entre os textos teóricos e o conteúdo da Tetralogia, mas Nattiez nos mostra que ela é mais íntima e profunda do que se pode imaginar. O autor divide os escritos de Wagner em três “atos” que revelam uma espécie de história mítica da arte ocidental (ibid., p. 163-165). No primeiro reinam os gregos e homem total, aquele que é ator, dançarino e cantor em uma época em que não se distinguia o espectador do executante. No segundo ato, o cristianismo e o espírito mercantilista dão um golpe na unidade antiga, separam as artes uma das outras. E, finalmente, no terceiro ato se apresentam as condições para o retorno da unidade, o homem se reaproxima da natureza, se livra da servidão do dinheiro e celebra a morte de Deus. A ideia essencial desse ato, representado pelo artigo Ópera e Drama (1851) é o reencontro do poético e do musical, do princípio masculino e o feminino. A partir dessa divisão, Nattiez observa alguns momentos da Tetralogia e os coloca em paralelo com essa                                                                                                                 5

A famosa escola de arquitetura, design e artes plásticas Bauhaus, fundada em 1919 na cidade de Weimar, tinha entre seus motes a conjunção das artes. Por outro viés, mais concreto e explícito, a escola se aproximava um ideal artístico de completude. Um dos professores da Bauhaus, o artista húngaro László Moholy-Nagy, por exemplo, criou o Teatro da Totalidade, onde ele perseguia a abolição das fronteiras entre luz, som e texto nas artes cênicas. 6 Opéra, art follement complet. Or qui dit « complet » ne dit pas nécessairement « total », et s’il est un terme, en définitif, qui s’applique mal au genre, c’est bien celui-là.

 

CONFLUÊNCIAS   Capítulo  6  

285  

 

lógica evolutiva do pensamento teórico do compositor alemão. O mito do nascimento da música, por exemplo, é apresentado logo no início do Ouro do Reno com o famoso desenvolvimento do acorde de mi bemol que dura 136 compassos. A unidade artística originária é ilustrada pelas três moças do Reno que dançam juntas e representariam as três irmãs de A Obra de Arte do Futuro (poesia, dança e música). Ainda no Ouro do Reno e em Siegfried acontece a ruptura da unidade entre as três irmãs. Nattiez nos aponta também para o fato de Wagner proclamar um pensamento totalizador de uma androgenia não igualitária, onde o principio masculino, o drama, absorve e destrói o feminino, a música. “No drama musical, a música é a serva do drama”. (Nattiez, ibid., p. 172)7. A arte total na ópera de Wagner tem, realmente, algo de totalizante, ou mesmo, totalitário, como sugere Nattiez. A Gesamtkunstwerk não se constitui necessariamente como uma rede de correspondências entre todas as artes, nem tampouco configura-se funcional e utilitária como em suas derivações do princípio do século XX, mas seu peso simbólico e sua fundamentação filosófica e mitológica dão a arte total a força de uma metáfora alegórica, sobretudo na Tetralogia. A totalidade na ópera, ou melhor, no drama musical wagneriano, se afirma também na riqueza das relações estabelecidas através de seus Leitmotive. Definido genericamente como um trecho melódico que, uma vez ouvido, é diretamente associado a certa pessoa ou a um objeto, lugar ou alguma ideia abstrata, o Leimotif com essa função mnemônica não foi de uso exclusivo de Wagner. Outros compositores, tais como Schumann, Weber e Berlioz, se serviram dele (Vergo, 2010, p. 33). No entanto, o Leitmotif em Wagner adquire significação única, é levado às últimas consequências e dialoga com todas as instâncias possíveis do seu drama musical. Pelo viés do mito, na teoria e na prática, Wagner nos apresentou uma noção pessoal de obra de arte total, refletindo certas premissas do pensamento romântico do começo do século XIX. Por mais variados que sejam os entendimentos e apropriações da Gesamtkunstwerk no curso da história, a “obra de arte total” wagneriana mantém sempre no seu cerne, firme e atuante, a noção de unidade. E essa noção, longe de se restringir à obra de Wagner, conduzirá boa parte das reflexões sobre as confluências nesta tese.

                                                                                                                7

“Dans le drame musical, la musique est la servant du drame.”

 

286  

CONFLUÊNCIAS   Capítulo  6  

b) A Conquista da Unidade na Ópera O que chamamos de confluência se caracteriza pela problemática da combinação das artes entre si para produzir uma outra, múltipla e una, entendida pelo viés da semelhança. A ópera, de maneira geral, deve ser um fértil terreno para se entender certo “percurso” de semelhanças que ocorrem entre elementos de ordem visual (movimentação cênica, cenários, figurinos) e auditiva (música e texto)8. Por ser um gênero artístico colaborativo, a ópera sempre traz algum tipo de tensão no que concerne a coexistência de matérias artísticas distintas. Afinal, códigos musicais, linguísticos, dramáticos e cênicos podem tão somente aspirar a uma unidade e o ponto mais próximo que se pode chegar desta unidade se situa, na verdade, na recepção da representação de uma ópera (Moindrot, 1993, p. 7). É no espectador, mais que na poética ou na obra em si, que algum tipo de unidade se realiza. Uma diversidade de signos com relativa autonomia estabelece um compromisso provisório na recepção de uma ópera. Os discursos se articulam no interior da representação, às vezes se fundindo, às vezes se repelindo e a unidade só se torna possível devido a existência de códigos comuns a várias artes, quer dizer, pela articulação de códigos internos de cada uma delas em um único código próprio ao gênero operístico (ibid., p. 29)9. Entre a percepção musical, a inteligência do texto e a recepção da direção cênica (mise en scène) se situaria a unidade do gênero na representação e, por consequência, no espectador, pois é ele quem discerne pontos de convergência quando sua atividade perceptiva reconhece elementos provenientes de artes diferentes que se realizam em uma designação comum. A compatibilidade entre esses elementos e seus códigos, no entanto, é frequentemente um pouco delicada. A união entre texto e música, por exemplo, nem sempre é natural e estável. Os referentes da música são demasiadamente múltiplos e, por consequência, seu grau de subjetividade pode “perturbar” a sintaxe e o conteúdo de um texto literário. O texto, por sua vez, com suas vogais abertas ou oclusivas, os sons nasais, os diferentes impactos das consoantes, interfere e transforma consideravelmente os efeitos de certa linha melódica. Embora tenham uma autonomia, música e palavra são indissociáveis em qualquer canção e, por consequência, em uma representação de ópera. Mesmo que não atribuamos significados linguísticos por desconhecermos o idioma da ópera ou por não sermos capazes de compreender a articulação das palavras de um cantor, o texto vai intervir na construção dos                                                                                                                 8

Entre os estímulos visuais podemos acrescentar ainda a leitura das legendas, indispensável instrumento moderno de compreensão dos textos em uma ópera.   9 Moindrot (1993, p. 22) define “código” de maneira bastante ampla como sendo um acordo entre duas partes (o músico e sua obra, o músico e seus intérpretes, o músicos e seus ouvintes potenciais, o intérprete e seu ouvinte).

 

CONFLUÊNCIAS   Capítulo  6  

287  

 

códigos estabelecidos entre representação e recepção. Talvez sejam tão indissociáveis quanto o binômio dramaturgia (a expressão da narrativa teatral) e plasticidade cênica (movimentação dos personagens no espaço, figurinos e cenários). Embora um texto ou uma ideia dramática seja o impulso inicial para a existência da ópera, é a música que parece governar a obra. Apesar do imediatismo plástico imposto pelos cenários e figurinos, a música impõe um ritmo e uma temporalidade e solicita a acomodação dos elementos envolvidos. Pelo seu impulso em direção a uma semântica, ela acaba por envolver e ritmar sentidos literários e suas manifestações cênicas. O cantor, que também atua e fala ao mesmo tempo, cristaliza uma convergência entre música, texto e teatro (Moindrot, ibid., p. 31). Ao mesmo tempo em que uma ópera congrega elementos heteróclitos, , o gênero operístico aspira à unidade e isso o protege, mesmo que parcialmente, de uma saturação de componentes. A eventual percepção de uma pobreza literária ou de certa monotonia dramática, segundo Moindrot (ibid., p. 33), é consequência da economia do gênero, que tende a multiplicar códigos simples para facilitar a aparição de códigos unitários. Embora conduzida pela convenientia, nossas confluências comportam em seu cerne a ação de outras articuladoras de semelhanças. Tanto a analogia quanto a emulação imprimem marcas no interior da representação de uma ópera. Analogias e emulações se multiplicam e tecem elos em todas as direções possíveis. A poética da obra propõe um trânsito de similitudes a ser vivenciado pelo receptor. É ele quem renova os contatos propostos pelo compositor, forja novas analogias e percebe elementos que se imitam e se traduzem. Estas forças de similitude, entre outras, irão trabalhar em direção à conquista da unidade, tensa e quase utópica, da ópera. Ainda de acordo com Moindrot (1993), existe um jogo de compatibilidades, onde se inserem conformidades e não-conformidades, semelhanças e diferenças, substituições imitativas ou referenciais, tudo isso buscando uma espécie de convergência, sem negar algumas incompatibilidades. Analogias e emulações participam, no meio de várias outras forças, dos acordos internos entre os diferentes textos visuais e sonoros de uma ópera. A complexidade desses acordos está no grande número de elementos que eles comportam. Como arte colaborativa que é, a ópera guarda consigo um potencial enorme de multiplicação de acordos, que vem desde a junção entre libreto e música, até aqueles acordos – os mais imprevisíveis – que se dão entre a representação e seu público. Em meio a essa quase infinidade de códigos que parecem brotar em todas as instâncias da obra e entre elas, existe um personagem que deve ser mencionado e que, sobretudo no século XX e XXI, ganhou lugar de honra: o diretor cênico. A conquista da unidade e, por  

288  

CONFLUÊNCIAS   Capítulo  6  

consequência, da confluência na ópera passa pela figura do diretor, que funciona como um gestor ou mediador dos códigos operísticos. Cabe a ele promover a vitalidade do gênero, manter atento os sentidos do espectador e criar estratégias internas que renovem o interesse por obras do passado, cujos códigos foram gastos pelo tempo, e auxiliem o acesso do público a obras mais atuais, em que a nitidez dos códigos ainda não se afirmou. A empreitada da conquista da unidade é algo, obviamente, coletivo e cada um dos personagens envolvidos (diretor, cantores, orquestra, figurinistas, técnicos, etc.) participam dela em diferentes proporções. Se o teatro se articula em torno de referentes linguísticos, dramáticos e cênicos, a ópera acrescenta mais um que, por vezes, parece “devorar” os outros: a música. Mas apesar de seu papel motriz no cerne da ópera, o acordo entre as artes só deve se materializar mesmo em uma representação, sempre subjugada a um projeto dramático. A ópera brota do drama, como o teatro, mas se diferencia deste último pelo fato da música acrescentar aos sentidos textuais, cênicos e dramáticos uma espécie de incompletude. A música imprime na ópera uma abertura semântica que nunca é abolida, por mais conciso e sólido que sejam os sentidos dramáticos da obra. Uma ópera deve potencializar e enfatizar essa busca por uma coesão e unidade que existe na grande parte das obras de arte. Uma unidade que, no entanto, nunca é definitiva nem atingida plenamente. c) Coexistências em Alban Berg A música, pela abertura que comporta, deve colocar em evidência uma “ausência” de significação que existe na maior parte das artes. Essa “ausência” talvez seja tão somente o reflexo de nossa incapacidade de dar um sentido claro, preciso e possível de se expressar literalmente sobre toda e qualquer arte. Na ópera, como vimos, coexistem significações relativamente objetivas de um drama, com outras menos nítidas de uma encenação, e outras, ainda menos nítidas, da música. A particularidade da ópera reside na grande rede de códigos produzidos pelos contatos entre os elementos constituintes de uma representação. O problema da unidade pode ser colocado de modo diverso quando se pensa no problema da coexistência. Observar as confluências será observar como diferentes matérias artísticas se ajustam, coexistem, na construção de uma obra única. Toda e qualquer obra que comporte essa coexistência pode ser objeto de pesquisa das confluências, no sentido desta tese.

 

CONFLUÊNCIAS   Capítulo  6  

289  

 

Como boa parte dos grandes artistas, Alban Berg (1885-1935) possui uma obra com uma forte unidade estilística, que é ao mesmo tempo permeada de paradoxos e tensões internas. Um desses paradoxos pode residir no que disse Adorno a seu respeito (1989, p. 9): que Berg justapunha a devoção sem limites à causa da música do futuro à uma vigorosa fidelidade à tradição. Talvez por isso, entre os outros compositores da chamada Segunda Escola de Viena (Schoenberg e Webern)10, Berg foi aquele cujas obras parecem ter obtido maior receptividade junto ao público de concertos. Se com Schoenberg houve uma ruptura radical com o passado, com Berg houve uma “revolução sutil”11. Uma revolução, no entanto, mais pessoal, cujas consequências são menos palpáveis que as de seus colegas vienenses12. A obra de Alban Berg reflete os ensinamentos de seu professor Arnold Schoenberg, mas também sua estima pelos românticos tardios, principalmente Gustav Mahler (1860-1911). Adorno aproxima este último a Berg, não como modelo ou citação direta, mas na capacidade dos dois de reduzir a música a elementos simples e, sobretudo, na maneira com que ambos se relacionavam com a música, de maneira geral (ibid., p. 13)13. Sobre Richard Strauss, Berg dizia-se particularmente emocionado por Salomé, tanto que fez algumas citações em suas canções orquestrais baseadas em poemas de Peter Altenberg (Ross, 2007, p. 80). De Richard Wagner ele herda a crença da conjunção do drama e da música, e também o grande cuidado com as transições harmônicas e melódicas em suas peças. Não é fortuito o subtítulo dado por Adorno a seu livro dedicado a Berg: O mestre da transição ínfima (1989). O filósofo alemão, também músico, foi aluno de composição e amigo de Alban Berg. No prefácio da versão francesa do livro de Adorno, Jean-Louis Leleu comenta a estreita relação que o filósofo, nas entrelinhas de seu texto, estabelecia entre aspectos pessoais do compositor e sua obra. Adorno revelaria uma espécie de “fisionomia musical” de Alban Berg. O primeiro capítulo, por exemplo, é intitulado Tom, que não é entendido no sentido de tonalidade musical, mas como uma qualidade humana que o artista fixa em sua obra. A generosidade e o tom caloroso da voz de Berg deixariam marcas no interior de sua música. Por isso, embora sua música às vezes pareça amplificar traços do drama de Wagner, a obra do primeiro não comporta o tom narcísico da obra do segundo (1989, p. 13). Adorno insiste ainda                                                                                                                 10

A Primeira Escola de Viena seria aquela formada por Mozart, Haydn e Beethoven. Parafraseando o título do livro de André Boucourechliev sobre Debussy chamado Debussy, la révolution subtile, Paris: Fayard, 1998, 123p. 12 Na década de 50, os compositores que frequentavam os cursos de verão de Darmstadt expandiram a noção de série e suas regras para outros parâmetros musicais além das alturas e isso resultou no que convencionou-se chamar “serialismo integral”. Nesse contexto, a contribuição de Berg é certamente menos palpável que a de Schoenberg ou Webern. 13 Alex Ross (2007, p. 80) diz que Berg admirava Mahler a ponto de ter sido capaz de invadir seu camarim após um concerto e furtar sua batuta. 11

 

290  

CONFLUÊNCIAS   Capítulo  6  

em afirmar que há um gesto generoso de esquecimento de si mesmo impresso em uma música que,   no   momento   de   concluir,   fica   em   suspenso,   se   interrompe,   se   desagrega   e   simboliza   a  beleza  mortal,  sem  anseios  por  redenção,  nem  pessimismo  exagerado.    

O   tom   do   compositor   vienense,   de   sua   voz   e   de   sua   obra,   traz   consigo   marcas  

fortemente   autobiográficas,   algo   que   também   não   é   raro   em   grandes   artistas.   Em   sua   primeira  ópera  Wozzeck,  por  exemplo,  o  personagem  título  encontra  semelhanças  em  na   atormentada   passagem   pelas   forças   armadas   do   autor.   Em   Lulu,   a   segunda   e   última   ópera,  sua  relação  com  as  mulheres,  também  atormentada,  se  vê  igualmente  refletida  na   obra14.    

Os  traços  evolutivos  na  obra  de  Berg  são  nítidos  e  se  configuram  na  progressão  

de  uma  escrita  atonal  em  direção  à  dodecafônica,  cada  vez  mais  nítida.  Se  em  Wozzeck  já   vemos   se   esboçar   na   Passacaglia   uma   série   de   doze   sons,   em   Lulu   isso   fica   claro.   Porém,   a   dicotomia   dissonância-­‐consonância   está   sempre   presente,   mais   ou   menos   afirmada,   assim  como  a  busca  por  uma  expressividade,  materializada  talvez  nas  linhas  melódicas   que  se  lançam  para  baixo  e  para  cima,  herança  do  romantismo  tardio  (Ross,  2009,  p.  80).   As  dissonâncias  representam  ameaças  e  tragédias,  como  nos  acordes  tensos  do  início  de   Wozzeck,  quando  este  presta  serviços  de  barbeiro,  ou  no  acorde  de  doze  sons  da  morte   de   Lulu.   Os   elementos   tonais,   por   outro   lado,   se   ligam   a   emoções   mais   básicas   (Ross,   ibid.,  p.  83).  Berg  se  atém  ao  método  de  Mahler  e  Strauss  para  os  quais  o  conflito  entre   consonância  e  dissonância  resultaria  em  maior  intensidade  expressiva.        

É  evidente  que  todo  compositor  carrega  consigo  algo  do  passado  e  uma  vontade  

de   evoluir   ou   de   trazer   o   novo.   Mesmo   na   fase   mais   radical   de   Schoenberg   é   possível   perceber   traços   do   século   anterior,   sobretudo   no   que   diz   respeito   aos   gestos   e   frases   de   suas  partituras.  Por  exemplo,  quando  observamos  em  um  vídeo  os  gestos  físicos  de  um   pianista,  sem  o  áudio  fica  difícil  discernir  se  é  Brahms  ou  Schoenberg  o  que  ele  toca.  Os   gestos  se  assemelham  enormemente.  Permanece  aquilo  que  Dominique  Jameaux  (1980,   p.   9)   chamou   de   estilo   vienense,   caracterizado   pela   sequência:   anacruse-­‐acento-­‐ desinência.   Alban   Berg,   além   de   guardar   esse   traço   do   estilo   vienense,   se   apega   fortemente   às   estruturas   formais   tradicionais,   tais   como   sonata,   fuga,   variações,   passacaglia,   rondó,   etc.   E   no   fundo   de   todo   anacronismo   que   isso   pode   sugerir,   uma   linguagem  moderna  é  imposta  em  uma  obra  na  qual  transições  internas,  entre  um  tema                                                                                                                   14

Berg teve uma adolescência difícil, era um aluno ruim na escola, a família tinha problemas financeiros, sua saúde era e se manteve frágil, chegou a tentar suicídio por causa de um caso amoroso, teve um filho com a empregada doméstica de sua casa e, na música, estava longe de ser um virtuose (Ross, 2009, p. 79).

 

CONFLUÊNCIAS   Capítulo  6  

291  

 

e  seu  desenvolvimento,  por  exemplo,  estão  distantes  da  obviedade.  Em  Wozzeck,  o  fato   de   cada   cena   se   apoiar   em   uma   forma   musical   tradicional   não   perturba   a   fluência   de   uma   ópera   em   que   não   há   nem   mesmo   interrupção   entre   seus   atos.   Não   era   intenção   do   autor  que  o  público  percebesse  esse  modelo  esquemático  de  junção  de  música  e  drama   (Harewood,  1991,  p.  594).  O  autor  apreciava  uma  organização,  digamos,  matemática  da   forma  musical  conectada  ao  drama,  mas  ao  mesmo  tempo  negava  submeter-­‐se  ao  rigor   também  matemático  do  dodecafonismo  de  Schoenberg.  Regras  fundamentais  do  sistema   schoenberguiano,   como   a   não   repetição   de   notas   até   que   todas   as   doze   tenham   sido   ouvidas,   são   deixadas   de   lado   por   Berg.   Em   função   de   sua   necessidade   de   expressão   dramática,  que  é  evidente  desde  a  Sonata  op.  1  até  a  sua  última  obra,  a  ópera  Lulu,  ele   adapta   o   que   aprendeu   com   Schoenberg,   seu   professor   do   fim   da   adolescência   à   vida   adulta15.    

O   sentido   de   drama,   seja   na   sua   conotação   cinematográfica   corriqueira   ou   na  

simples  associação  com  a  noção  de  narração  expressiva,  parece  todo  o  tempo  presente   em   Berg,   efetivamente   em   suas   óperas   e   canções   e   virtualmente,   ou   como   desejo,   na   música   instrumental.   Sua   enorme   e   declarada   admiração   por   Salomé   de   Strauss   é,   no   mínimo,  sintomática.      

No  que  concerne  nosso  entendimento  de  confluência  nesta  tese,  entre  as  obras  de  

Berg,   é   na   ópera,   como   arte   híbrida,   que   reside   o   principal   campo   de   estudo.   Sem   a   pretensão   explícita   de   apontar   para   a   arte   do   futuro   ou   revelar   uma   nova   Gesamtkunstwerk,   Berg   se   lança   em   uma   empreitada   no   mundo   da   ópera   que,   muito   embora  não  tenha  uma  fundamentação  filosófica  ou  teórica  como  aquela  de  Wagner,  o   eleva  a  categoria  de  grande  compositor  de  ópera  do  século  XX.     d) Lulu: Metáfora da Ópera   A coexistência de um “hiper-romantismo”, nos termos de Ross (2009, p. 223), vanguarda, empatia e desumanidade, algo de majestoso e brutal, dodecafonismo, lirismo, além da integração simbiótica de sua vida pessoal e sua obra operística, todos esses atributos nos acenam para o fato de Lulu de Alban Berg ser um boa ilustração das confluências desta                                                                                                                 15

Na adolescência, além de aluno, Berg era uma espécie de secretário de Schoenberg, fazia cópias de partituras, carregava papéis, etc. Na vida adulta, Schoenberg chegou a invejar o sucesso de seu ex-aluno, enquanto Berg, sempre admirando o pai do dodecafonismo, incomodava-se com a reação positiva e da pretensa fácil absorção de sua música pelo público (Ross, 2007, p. 79).

 

292  

CONFLUÊNCIAS   Capítulo  6  

tese. Mas ainda não é o bastante para caracterizá-la como obra emblemática neste capítulo, como o foram nos capítulos precedentes a Sagração da Primavera, Les Demoiselles, Atmosphères, Black Painting n.1, Noites Estreladas, Timbres, Espace et Mouvement e No estilo de Bach. Considerada por alguns como marco do fim do gênero operístico (Jameaux, 1980, e Boucourechliev, 1993) ou como metáfora da ópera (Moindrot, 1993), Lulu de Alban Berg é, na pior das hipóteses, uma obra em que texto, música e cena se relacionam de maneira particularmente interessante. Alban Berg morreu em 1935 antes de concluir Lulu, mas a integralidade dos primeiros dois atos, assim como o libreto, as principais linhas melódicas e o começo da orquestração do terceiro e último ato foram compostos entre 1929 e 193516. De maneira bem reducionista, Lulu pode ser vista como a aventura trágica de uma anti-heroína, ou mesmo como uma “caricatura grotesca da mulher fatal”, nas palavras de Alex Ross (2009, p. 223). Baseado nas peças Erdgeist (Espírito da Terra, 1895) e Die Büchse der Pandora (Caixa de Pandora, 1904) do dramaturgo alemão Franz Wedekind (1864-1918), Alban Berg forjou seu libreto o ajustando com liberdade às suas próprias ideias e aos esquemas estruturais rigorosos que um estudo da obra pode mostrar. O trágico, que Ross (ibid., p. 223) atribui ao Zeitgeist das vésperas da catástrofe hitlerista, se exibe do primeiro ao último instante e de todas as maneiras possíveis. O grotesco, a morte dos principais personagens, incluindo o personagem título, ascensão e declínio, ironia, desejo cego, indiferença, desumanidade, cada um desses elementos percorre toda a obra. Do ponto de vista formal, a obra é construída como um grande palíndromo. No centro do segundo ato, ou seja, no meio da ópera, assistimos a um curto filme, inspirado talvez em Bertold Brecht (1898-1956) (Palácio Real) ou no teatro de Erwin Piscator (1893-1966)17. O filme deve mostrar o julgamento, a prisão e a fuga de Lulu após o assassinato de seu terceiro marido, o Dr. Schön, o único por quem ela demonstra algum afeto. A música prevista para acompanhar as imagens é composta de maneira espelhada. A partir do meio, todas as notas principais são o retrógrado da primeira metade, ou, seja, é sua sequência contrária. Esse procedimento de retrogradação, longe de ser uma descoberta, estava embutido nos fundamentos da escrita dodecafônica. No entanto, Berg o aplica dissociado de algumas das                                                                                                                 16

Lulu estreou incompleta em 1937 em Zurique e continuou a ser encenada desta forma até 1979, quando em Paris foi apresentada uma versão completa da ópera após o terceiro ato ter sido finalizado pelo compositor Friedrich Cerha (nascido em 1926), ex-aluno de Berg (Harewood, 1991, p. 594). 17 Piscator foi, junto com Brecht, uma figura de destaque no que concerne o teatro épico que trata de questões sociais e políticas. Em suas peças algumas vezes ele incluía projeções cinematográficas

 

CONFLUÊNCIAS   Capítulo  6  

293  

 

principais regras schoenberguianas e o utiliza igualmente em aspectos cênicos, como veremos adiante. Segundo Dominique Jameux (1980, p. 161), o compositor vienense era fascinado por esse efeito de arco, onde os reflexos produzem novas linhas melódicas, e isso faz de Lulu uma “apoteose do espelho”. As impurezas no que concerne o tratamento das séries de sons não impede, no entanto, que a peça seja considerada como dodecafônica. No começo do segundo ato se encontra o Canto de Lulu, composto por uma série de doze sons. Alguns autores, como Jameux (1980), Ross (2009) e Moindrot (1993), atribuem a esta série a posição de genitora de todas as outras séries, que são na verdade como leitmotives de cada um dos personagens principais. George Perle (1989), por outro lado, no lugar de uma série mãe, identifica três células básicas, entendidas como germes ou espécies de arquétipos a partir dos quais tudo é gerado18. De qualquer maneira, sejam células básicas, seja série principal, o fato é que a obra possui um núcleo central com certo caráter temático que auxilia na conquista da unidade global. Por mais minuciosa e detalhada que seja a análise musical, quando se trata de Lulu, ela se mostra ineficaz, devido ao grande peso que o cenário e o texto poético imprimem na ópera (Adorno, 1989, p. 189). Adorno diz ainda que, além de rever o que se entende por análise quando nos dirigimos à Lulu, é preciso ter em mente que todo o drama se situa entorno de um centro obscuro que se alimenta a todo o instante, construído com perfeição – maior que a de Wozzeck –, que é porém impenetrável. Essa impenetrabilidade, apontada pelo filósofo e músico, pode ter sido causada por vários fatores. Um deles vem do próprio caráter enigmático do personagem título. Berg frequentava o círculo intelectual das primeiras décadas do século passado em Viena. Não era distante dos artistas do movimento de Secessão, como Gustav Klimt (1882-1918) ou Josef Hoffmann (1870-1956), o compositor vienense contribuiu no Almanach do movimento Bleue Reiter, ao lado de Vassily Kandinsky, Arnold Schoenberg, Franz Macke. entre muitos outros, e tinha interesse pelas produções de teatro de seu tempo. Seu interesse não se restringia ao campo musical. Uma das peças que deu origem a sua última ópera, A Caixa de Pandora de Wedekind, já era conhecida de Berg desde 1904, vinte e quatro anos antes de começar a compor Lulu. A mulher fatal, ou a encarnação do “eterno feminino”, como entende Boucourechliev (1993, p. 79), adquire traços ainda mais complexos e inatingíveis na adaptação de Berg. Lulu permanece desconhecida, multiplicando e produzindo indefinidamente novos significados graças, não somente à própria abertura do gênero                                                                                                                 18

As três células básicas citadas por Perle são: - Uma sequência ascendente de si bemol - mi bemol - mi bequadro - lá; - Uma sequência ascendente de si bemol - mi bemol - fá - fá sustenido - si; - Um acorde formado pelas notas: si - ré - fá - lá bemol.

 

294  

CONFLUÊNCIAS   Capítulo  6  

operístico, mas também pela sua capacidade em fazer confluir dimensões dramáticas, musicais e cênicas. Essas confluências de elementos de matérias diversas podem também ser bem representadas por um objeto cênico, de acordo com Isabelle Moindrot (1993, p. 244). O retrato de Lulu surge no início do primeiro ato, logo após um narrador esboçar no prólogo da ópera as notas que constituirão mais tarde a série da protagonista. Na medida em que um pintor desenha o retrato de Lulu, esboça-se a série da personagem principal que é, ao mesmo tempo, chamada de Eva pelo artista. Existe então, logo no início, uma interessante convergência entre elementos que pode funcionar como uma metáfora da criação da ópera materializando-se através do gesto do pintor, do esboço da série e do nome Eva, a primeira mulher. Lulu, a mulher de múltiplas facetas, é então estabilizada em um objeto cênico imóvel que condensa forças dramáticas. Objeto extremamente complexo, ele é a encarnação absoluta da substituição entre as diferentes artes da arte: verticalização da duração e do tempo, este objeto de todos os reflexos e todos os espelhamentos, esta materialização do desejo, atua incessantemente com imitações, similitudes, conformidades, até o infinito e o escárnio. Através dele – e como se trata de uma última tentativa de fixar a dispersão de um gênero no qual o deslocamento é ele mesmo reivindicado – se estendem seções inteiras de dramaturgia. (Moindrot, 1993, p. 245)19.

   

Moindrot vai ainda mais longe e, a partir da análise de Lulu feita por Pierre Boulez,

tece uma correlação entre o retrato da personagem e os quatro acordes de três sons sobre os quais a obra é construída. “[...] da mesma maneira que o retrato detém no espaço traços provindos de algo efêmero, os acordes contribuem para inscrever no espaço o desenrolar linear da série, de fixá-la de algum modo, de parar o tempo.” (ibid., p. 244)20. A imagem estática de Lulu se sobrepõe a uma Lulu que nunca é a mesma e explicita o conflito entre o mutável e o imutável. Existe uma confusão entre o ser e a imagem, obra e modelo, como em uma emulação em que não é possível saber quem é o objeto primeiro e sua cópia. Mas apesar do retrato não mudar, seu enquadramento se transforma a cada ato. No primeiro o retrato está suntuosamente enquadrado, no segundo ele fica sobre um cavalete decorativo e no terceiro ato o retrato tem moldura dourada e está embutido no muro. Moindrot                                                                                                                 19

“Objet extrêmement complexe, il est l’incarnation absolue de la substitution entre les différents arts de l’opéra : verticalisation de la durée et du temps, cet objet de tous les reflets et de tous les miroitements, cette matérialisation du désir, joue à l’infini des imitations, similitudes, conformités, jusqu’à l’infini et la dérision. A travers lui, et comme s’il agissait d’une tentative ultime pour fixer la dispersion d’un genre dont la dislocation est elle-même revendiquée, se déploient des pans entiers de dramaturgie.” 20 […] de même que le portrait fige dans l’espace des traits empruntés à l’éphémère, des mêmes ces accords contribuent à inscrire dans l’espace le déroulement linéaire de la série, à la fixer en quelque sorte, à arrêter le temps.

 

295  

CONFLUÊNCIAS   Capítulo  6  

 

nos aponta para a convergência ou conformidade entre o aspecto dramático no último ato de uma vida entravada pela ameaça, pelo incômodo e pela chantagem, sua representação cênica na figura do retrato embutido no muro e o aspecto musical de uma obra que retém o tempo da melodia através de uma grande sobreposição de notas. O retrato se ausenta e entendemos assim a morte de Lulu (ibid., p. 250). O retrato deixa de ser em Lulu simples objeto cênico e se torna um personagem com vida própria e agente multiplicador de códigos internos, interferindo em todas as ações. Ele assegura uma abertura, talvez emblemática, do gênero operístico. Considerar Lulu como a última das óperas é perceber o poder de uma obra sólida e coesa de destruir uma unidade desejável (ibid., p. 257). Lulu acaba por se afirmar como uma espécie de ponto de convergência de similitudes e substituições, uma forma vazia que se deixa habitar por todas as artes, ainda no entendimento de Moindrot (ibid., p. 253). Cada manifestação artística presente em Lulu tem sua personagem principal como ponto de partida e de chegada, fazendo confluir, a partir de um complexo jogo de similitudes, artes em arte. Mas a unidade da obra é ao mesmo tempo alcançada e colocada em questão.  

 

3. Confluências no Cinema   a) O Som da Imagem O cinema, junto à ópera e à dança, deve estar entre as artes em que intervém matérias de naturezas distintas em um todo coerente. Como arte de síntese ou colaborativa, o cinema também pode emblematicamente ilustrar essa maneira de se entender o encontro das artes que chamamos de confluências. Ontologicamente, o cinema é uma arte visual, afirmou Michel Chion em L’audiovision (2005, p. 122). Mas apesar de um filme poder existir sem a participação direta dos sons, o silêncio das imagens parece comportar algo de perturbador e excessivamente imaterial. É tudo estranhamente silencioso. Tudo se desenvolve sem que ouçamos o ranger das rodas, o barulho dos passos ou qualquer palavra. Nenhum som, nem uma só nota da sinfonia complexa que acompanha sempre o movimento da multidão. Sem barulho, a folhagem cinzenta é agitada pelo vento e as silhuetas das pessoas condenadas a um perpétuo silêncio. Seus movimentos são plenos de energia vital e tão rápidos que mal são

 

296  

CONFLUÊNCIAS   Capítulo  6  

percebidos, mas seus sorrisos nada tem de vibrante. Ver-se-ão seus músculos faciais se contraírem, mas não se ouve seu riso. (Gorki apud Costa, 2007, p. 10).

O trecho acima faz parte de um depoimento de 1896, logo após a exibição de um filme dos irmãos Lumière, apenas um ano depois do que se considera habitualmente o início do cinema. O escritor russo Maximo Gorki (1868-1936) descreve seu estranhamento face à projeção de imagens mudas. As fotografias podiam ser silenciosas e isso não incomodava a ninguém, mas as imagens em movimento, por outro lado, pareciam clamar pelo som. O estático pode ser mudo, o móvel não. O movimento parece atrair o som. O desejo de “projetar” o som esteve presente desde o início da história do cinema, conforme o professor e pesquisador Fernando Morais da Costa defende (2007, p. 14). Entre os precursores do cinematógrafo dos irmãos Lumière estava o fonoscópio, criado por Georges Demeny em 1891. O fonoscópio era um aparelho que visava reproduzir em imagens o movimento labial de alguém. Em uma nítida tentativa de tornar visível o som, o invento encadeava imagens da boca de Demeny pronunciando “Vive la france” e “Je vous aime”. A leitura labial por parte dos espectadores supria, em alguma medida, a falta de som. Quase dez anos antes do nascimento efetivo do cinema, Thomas Edison (1847-1931) já havia iniciado uma busca pela reprodução simultânea de som e imagem (Costa, ibid., p. 11). Edison tentou em 1894, sem sucesso, inserir no mercado norte-americano o quinetofone, um aparelho que executava música ao mesmo tempo em que projetava imagens. Na França, Leon Gaumont (1864-1946) apresentava em 1902 seu cronofone, visando garantir a sincronia entre sons e imagens (Costa, ibid., p. 14). Enquanto o som ainda não pertencia ou emanava do universo das imagens puras, o silêncio precisava ser preenchido. Desde as primeiras projeções, alguma música ocupava a sala. O compositor e escritor alemão Hanns Eisler (1898-1962) chega a defender uma curiosa tese segundo a qual a música no cinema mudo atuava como agente subliminar. A música precisava entrar para afugentar uma espécie de efeito fantasmagórico produzido pela projeção de imagens. As pessoas, inconscientemente, temem a luz que se converte em formas e a música precisa, por isso, agir, exorcizando o medo dos espectadores (Eiler, 1947, p. 75). O cinema, em seus primórdios, seria um “reino das sombras” que precisaria dos sons para espantar os “fantasmas” e injetar vida nas imagens21.

                                                                                                                21

Máximo Gorki, em um outro trecho de seu depoimento de 1896, utiliza a expressão “reino das sombras” para descrever suas impressões de uma projeção dos irmãos Lumière. Gorki fala ainda da sensação de que o cinema não reproduzia a vida, mas era, antes, sombra da vida.

 

CONFLUÊNCIAS   Capítulo  6  

297  

 

Independente da defasagem que houve entre a projeção de imagens e a implementação de um aparato que permitisse a sincronização de sons, é importante ter a consciência de que raramente o cinema foi mudo. “O som não foi introduzido no cinema mudo: saiu dele.” (Eiseinstein apud Martin, 1990, p. 111). De um lado havia o acompanhamento musical ao vivo que, com maior ou menor eficácia, se juntava às imagens projetadas. De outro lado havia, como mostrou o fonoscópio, o poder da imagem em sugerir os sons, seja através do que se retrata ou da rítmica imposta às cenas. No cinema mudo, as imagens precisavam se fazer duplamente significativas e para isso eram simplificadas, facilitando a percepção temporal e limitando a percepção espacial (Chion, 2005, p. 14). A necessidade e o desejo de se ter sons nos filmes, além de todas as transformações ocorridas com a introdução do som na própria estrutura fílmica, tudo isso são indícios claros de que o cinema, embora ontologicamente visual, é extremamente vulnerável e compatível com a atividade dos sons. Em 1927 estreia O Cantor de Jazz, filme de Alan Crosland (18941936) em que a sincronia é perfeita entre o som e a imagem em algumas canções e falas, e em 1929, Lights of New York de Bryan Foy (1896-1977) comporta diálogos do início ao fim e marca a entrada definitiva das trilhas sonoras no cinema. A partir daí, os sons, sejam eles música, ruídos ou falas, nunca mais abandonaram a substância do cinema. Não que não existissem antes, mas desse momento em diante eles permaneceriam sempre os mesmos e não mais sujeitos às circunstâncias em que seriam apresentados ou à pura subjetividade do espectador. A estranha sensação de imaterialidade das primeiras projeções foram sendo substituídas por uma impressão de naturalidade, graças à fusão entre som e imagem. Uma naturalidade que, no entanto, pode não passar de uma frágil impressão, desde que voltamos nossa atenção ao que se passa na tela e ao que ouvimos. De onde poderia surgir a música que emana da imagem de dois náufragos no meio do oceano?, perguntaria um espectador ávido de realismo. Interessante observar que o som, de natureza tão imaterial, muitas vezes é o agente que leva materialidade à imagem. Basta pensar em uma luta em que os sons de socos e chutes são inaudíveis, ou uma colisão de carros silenciosa. Como comentou Michel Chion, o som acrescenta à imagem um valor informativo ou expressivo que pode até nos fazer pensar que sai naturalmente da cena, como se já fosse conteúdo da imagem (2005, p. 9). Esse efeito, por parecer tão natural, leva muitas pessoas a considerar o som como um detalhe menos importante, mero complemento ou redundância. Não que o cinema não esteja cheio de redundâncias sonoras, mas suas possibilidades de atuação são muito mais amplas.  

298  

CONFLUÊNCIAS   Capítulo  6  

Logo no início da era do cinema sonoro, e mesmo antes, discutiu-se qual seria a função da música no interior do filme e a redundância, na maioria das vezes, era considerada como efeito de menor importância e valor. Os cineastas russos Vévolod Pudovkin (18931953) e Serguei Eisenstein (1898-1958) defendiam uma aplicação da música que iria bem além de um fim suplementar e pleonástico. O som participa da construção da unidade das imagens pela sua associação mais fortemente temporal que a dimensão puramente visual. Pode também influenciar na percepção do movimento ou mesmo contribuir para a construção de uma percepção espacial ampla, como quando através dos sons ambientes conhecemos as dimensões espaciais do local onde se passa a cena, por exemplo. São tão numerosas as funções e possibilidades que tem o som de participar de um filme que seria exaustivo e vão tentar descrevê-las no quadro de nossas confluências. O fato é que, assim como a ópera, o cinema se situa em uma zona de convergência que é mais tensa que harmoniosa. Sons e imagens têm dinâmicas próprias, obedecem a leis particulares e criam diferentes ilusões quando em contato. Uma música não é a mesma quando submetida à uma imagem. Uma imagem é percebida diferentemente quando existe música. E não se trata de uma simples diferença de ambientação. Chion, em sua grande lista de exemplos, mostra que realmente enxergamos diferente ao som de certa música ou efeitos sonoros e que ouvimos diferentemente quando os olhos cuidam se percorrer espaços sempre novos22. O contrário também verdadeiro. As percepções se influenciam mutuamente, se contaminam e projetam suas propriedades uma na outra. b) Sincronização dos Sentidos A coexistência de diferentes matérias artísticas no interior de uma obra única faz com que se multipliquem tensões sígnicas e se promova diálogos internos interessantes. Uma unidade entre as matérias pacífica e muito harmoniosa tem grandes chances de produzir resultados pouco atraentes. Os sons, como vimos, têm dinâmicas internas muito diferentes das imagens. Um movimento melódico é quase sempre mais fácil de se referenciar na percepção que um movimento espacial. Se ouvimos uma determinada sequência de notas e vemos um certo gesto de mesma duração feito por uma mão, será provavelmente mais fácil identificar a recorrência sonora que a visual. Chion nos mostrou que o ouvido analisa, trabalha e sintetiza                                                                                                                 22

O exemplo que abre L’audio-vision (2005) é bastante emblemático. Trata-se das primeiras cenas de Persona (1966) de Ingmar Bergman. Quando se suprime o som, temos dificuldades de entender o que vemos e o impacto expressivo é reduzido enormemente.

 

CONFLUÊNCIAS   Capítulo  6  

299  

 

mais rapidamente que o olho (2005, p. 13). O olho é mais hábil espacialmente enquanto o ouvido temporalmente. No entanto, o campo auditivo tem a capacidade de englobar a cada momento a totalidade do espaço ambiental, enquanto a visão não consegue cobrir mais de sessenta graus de uma só vez, sendo que apenas trinta de maneira atenta (Martin, 1990, p. 22). Visão e audição se relacionam com tempo e com o espaço de maneira diversa e o cinema, e, de acordo com a perspectiva observada, pode-se enfatizar e potencializar tanto os pontos de divergência quanto os de convergência. Mas para isso, é preciso que haja uma infinidade de acordos internos entre os diferentes elementos fílmicos ou, como sugere Eisenstein, uma “sincronização de sentidos”23. Ainda na segunda metade dos anos vinte, época em que os sons foram se tornando um todo orgânico com as imagens projetadas, os cineastas Vévolod Pudovkin, Grigori Aleksandrov (1903-1983) e Serguei Eisenstein pensaram profundamente as relações possíveis entre som e imagem e levantaram um certo número de ideias e ideais para o novo cinema. Boa parte das questões e dos problemas colocados pelos realizadores russos continuam a fertilizar reflexões e a suscitar indagações sobre as interações das matérias artísticas24. Na época dos primeiros filmes mudos, a música, feita ao vivo, buscava preencher o espaço do cinema, “espantar os fantasmas” da projeção das “sombras de vida”, mas também reforçar conteúdos dramáticos. O pianista ou o grupo orquestral utilizava-se com frequência de fórmulas musicais estereotipadas ou improvisavam livremente, nem sempre estabelecendo um acordo consciente com as imagens ali apresentadas. As partituras musicais escritas especialmente para filmes apareceram no fim da primeira década do século XX. O crítico e historiador do cinema Marcel Martin (1990, p. 119-120) cita como aquelas de maior interesse e em caráter de exceção as trilhas compostas por Camille Saint-Saens (1835-1921) para Assassinat du duc de Guise (1908), por Ildelbrando Pizzetti (19880-1968) para Cabiria (1914), por Henri Rabaud (1873-1949) para Le miracle des loups (1924), por Éric Satie (1866-1925) para Entr’acte (1924) e por Arthur Honegger (1892-1955) para La Roue (1923). Embora compostas especialmente para certo filme e segundo um argumento preciso, devemos lembrar que não se trata de música de filme no sentido exato da palavra e sim música para acompanhamento de filmes, pois o princípio de correspondência rigorosa ainda não era reconhecido esteticamente (Martin, ibid., p. 120).

                                                                                                                23

“Sincronização dos Sentidos” é o título do segundo capítulo do livro O sentido do Filme (2008) de Eisenstein. Martin   afirma no prefácio de seu livro A Linguagem Cinematográfica (1990) que o essencial do cinema foi descoberto até a metade dos anos trinta do século passado.  

24  Marcel  

 

300  

CONFLUÊNCIAS   Capítulo  6  

A sincronização dos sentidos exige, como dissemos, acordos internos e compromissos entre as partes atuantes. A música no filme, por exemplo, quando mal aplicada ou dosada pode debilitar a imagem, interromper desnecessariamente o fluxo, ralentar ou acelerar gratuitamente certo movimento. Ou mesmo fazer o que os cineastas russos citados acima já desaconselhavam, mas que ainda hoje se observa: dar à música e ao som uma mera função pleonástica. A sincronização dos sentidos não será necessariamente uma harmonização dos sentidos ou o ingresso em uma espécie de zona de conforto onde sons e imagens se respondem e se correspondem. Mesmo que se almeje um “todo orgânico”, como desejou Eisenstein em seus filmes ou como talvez toda obra de arte deva ambicionar, é importante que se aceite a heterogeneidade desse todo e sua dimensão polifônica. E essa polifonia é entendida no sentido amplo de coexistência de unidades autônomas no interior de um todo. [...] na realidade, quanto mais as artes se desenvolvem, tanto mais dependem uma das outras para se definirem. Primeiro pediremos um empréstimo à pintura, e chamaremos de forma. Mais tarde, pediremos um empréstimo à música, e chamaremos de ritmo. (E.M.Foster apud Eisenstein, 2008, p. 51).

O princípio de totalidade conduzindo a sincronização de um filme não seria, para Eisenstein (ibid., p. 52), muito distinto daquele que constrói a unidade de uma imagem estática. Quando se pensa em termos de qualidades e proporções, as obras de arte, sejam elas de que natureza forem, encontram bem nas suas bases um princípio unificador que as conduz. Pelo menos é o que pensou Eisenstein quando comentou em seu livro as dimensões dramáticas, visuais e sonoras do texto de Leonardo da Vinci sobre o dilúvio em seu tratado de pintura. Deixando de lado a especificidade das tomadas de posição estéticas de Eisenstein, o cineasta russo está entre os primeiros que compreenderam a importância dos elementos sonoros na montagem de um filme. Como uma partitura musical, é preciso que o processo de montagem não despreze sua estrutura vertical e que, como uma orquestra, as diferentes pautas – no caso de um filme: a pauta das imagens visuais e a pauta musical – se ajustem, se justapondo e se sucedendo (dimensão horizontal) de acordo com suas próprias leis de movimento e as novas leis que brotam do contato das diferentes pautas. O interessante na proposta de Eisenstein é que cada uma dessas pautas é portadora de uma dupla missão: continuar seu movimento natural, de acordo com suas próprias regras, e construir a linha total que dá unidade à obra (ibid., p. 55). Dentro das pautas de toda tomada deve existir algum elemento que contribua na revelação do “todo orgânico”. Além de uma sincronização externa,  

CONFLUÊNCIAS   Capítulo  6  

301  

 

como a dos lábios e da fala ou dos efeitos sonoros e suas fontes visíveis, é importante que se valorize a sincronização interna, oculta, nas quais os elementos plásticos e sonoros se fundem totalmente, assim acreditava Eisenstein (ibid., p. 59). O cinema sempre irá solicitar, com pesos diferentes, a sincronização dos sentidos nas instâncias poéticas e, como consequência, nas instâncias receptivas. Mas para que fiquem caracterizadas as confluências no cinema nesta tese é preciso que algumas forças articuladoras de semelhanças intervenham de alguma maneira. c) O Jogo das Similitudes Posto que as diferenças são muito mais numerosas que as semelhanças, nossa atenção se volta naturalmente para estas últimas, mais raras e mais sutis. No cerne das confluências desta pesquisa se inclui toda obra em que coexistem matérias artísticas variadas. Como vimos, é a convenientia a similitude motriz das confluências. E não será diferente no interior de uma estrutura fílmica. A convenientia se liga à noção de “harmonia”, mas também de “acordo” que implica em ajustes e em comunicação de movimentos internos e externos. Entretanto, as outras três similitudes estudadas – simpatia, emulação e analogia – também participam com pesos distintos no interior de um filme. Muito embora, em um segundo momento, sejam subsumidas à convenientia. A simpatia, assim como a convenientia, atua igualmente na comunicação de movimentos, porém sem que haja contato real. Da forma como foi desenvolvida nas ressonâncias no quarto capítulo, a simpatia só poderia atuar de maneira indireta nas confluências por excluir a possibilidade de coexistência em um mesmo espaço. A simpatia pode e irá atuar, por exemplo, quando um diretor intui em uma música autônoma ressonâncias similares ou complementares àquelas do argumento de seu filme. Ou seja, a simpatia pode atuar em um estágio prévio à inclusão de determinada música em determinada cena. Virtualmente e em uma instância analítica, a simpatia também atua na medida em que, como espectadores-ouvintes ativos, somos capazes de discernir e separar os elementos do filme e nos emocionamos de maneira análoga com cada um desses elementos, em separado. A emulação e a analogia, por outro lado, encontram nas confluências território fértil para se multiplicarem quase infinitamente em todas as instâncias da obra. A emulação, quando revestida por sua noção vizinha mimesis, revela no cinema sua face menos interessante. Seria esta similitude a responsável pelas redundâncias tão comuns nos filmes e criticadas desde o início do cinema sonoro. Mas a emulação, como vimos, vai além da  

302  

CONFLUÊNCIAS   Capítulo  6  

simples cópia e se configura também como sentimento, como admiração e desejo de rivalizar e superar. A emulação pode aparecer, por exemplo, quando no processo criativo o diretor ou o designer de som deseja reforçar algum conteúdo dramático através de sons ou de uma música que possa corresponder exatamente à imagem do filme25. Intervalos musicais descendentes e recorrentes enquanto um personagem em prantos soluça pode ser um bom exemplo de emulação musical nas confluências do cinema. A analogia, como força articuladora de semelhanças, é uma grande responsável pela sincronização das diferentes matérias artísticas dentro de uma só arte. Na instância criadora, são as analogias as figuras responsáveis por construir as pontes entre as diferentes matérias artísticas. Ela é, por um lado, portadora de um rigor herdado das aplicações matemáticas de sua origem e, por outro lado, ela é capaz de se movimentar, criar laços e equilibrar relações entre as coisas mais heterogêneas. São elas que asseguram os ajustes e os “contratos” tão necessários dentro das confluências do cinema. As analogias, como as simpatias e emulações, se multiplicam ad infinitum na subjetividade dos olhares dos espectadores-ouvintes. As confluências no cinema, no entanto, não se resumem a uma mera sistematização dos fluxos de simpatias, emulações e analogias conduzidos por uma grande convenientia. A consciência de que existe um jogo de similitudes por trás das confluências, como vimos nos capítulos quatro (Ressonâncias) e cinco (Reflexos), será mais importante que uma categorização restrita de cada uma dessas similitudes, o que seria uma tarefa tão árdua quanto vã. d) O Encouraçado Potemkin Pelo viés da semelhança ou do jogo das similitudes, observa-se a sincronia das matérias artísticas distintas no seio de uma obra única e unificada. E observar essa sincronia é confrontar-se com as confluências nesta tese. A sincronização dos sentidos, sobre a qual fala Eisenstein, é tarefa ao mesmo tempo do criador e do espectador/ouvinte. O criador implanta em sua obra um certo arranjo de “pautas” significantes que relacionam plasticidade visual, sons e argumentos dramáticos. O espectador, por outro lado, reconstrói tal arranjo à sua maneira, agenciando novos entendimentos e sendo mais sensível a tal ou tal “pauta”. A sincronia, ao contrário do que a palavra pode sugerir em um primeiro momento, não é                                                                                                                 25

Designer de som ou sound designer, segundo uma terminologia empregada no cinema desde Apocalipse Now de Francis Ford Coppola (1979), é o profissional do interior da cadeia produtiva do cinema que é responsável por todos os elementos sonoros de um filme (diálogos, música e efeitos sonoros).

 

CONFLUÊNCIAS   Capítulo  6  

303  

 

necessariamente um estado no qual elementos diferentes coincidem e se refletem. Os elementos podem ou não coincidir, espelhar-se ou não, e de qualquer maneira estar sincronizados. A sincronia é o gesto que ajusta as diferenças e semelhanças. Para ilustrar as confluências no cinema, tomamos como exemplo um filme sem falas e sem efeitos sonoros, mas acompanhado por trechos musicais: o Encouraçado Potemkin (1925) de Serguei Eisenstein, sempre citado entre os mais importantes e inovadores da história do cinema. O aspecto emblemático do Encouraçado reflete a maneira com a qual Eisenstein lidava e entendia a arte que fazia. Vimos que ele atribuía grande peso ao que chamou de “sincronização dos sentidos” e isso se refletia, evidentemente, no processo de montagem de um filme. Música, imagem e argumento dramático podem se corresponder ou não na infinidade de possibilidades de execução desses elementos. O importante é que se controle composicionalmente e não se ignore a “dissonância” que pode resultar das diversas combinações (Eisenstein, 2008, p. 40). O interesse do pensamento de Eisenstein reside justamente na sua concepção sólida de montagem e na capacidade de enxergar o cinema como uma obra virtualmente estática: uma impressão que se fixa em nossa percepção no momento em que pensamos em qualquer obra de arte que conhecemos26. Uma tela não se difere de um filme no que concerne sua montagem única e totalizante, o que se difere é a especificidade dos elementos agenciados. Eisenstein foi inovador na maneira como ele pensava o agenciamento de todos os elementos do filme e o peso que dava à montagem, com suas dimensões horizontais e verticais. Ele acreditava na importância de uma diretriz estrutural que fundamentaria o trânsito interno de similitudes e não-similitudes de todas as naturezas. Julio Plaza (2003, p. 135) nos apresenta o Encouraçado como exemplo de montagem no sentido mais amplo da palavra, comportando a ideia de intertextualidade e de intersemiose. O entendimento de um filme como um quadro visando atingir uma unidade superior em um todo orgânico permeia com grande intensidade toda a obra. Baseado em uma revolta da tripulação de um grande navio de guerra em 1905, o filme tem como argumento central, de acordo com Plaza (ibid., p. 137), revelar a organicidade dessa revolta. Cada elemento envolvido deve conter esse argumento e contribuir na construção totalizada da obra. O filme é construído sobre uma rede de analogias estruturais onde cada parte reflete a estrutura global, e seu princípio-meio-fim se articula como um todo orgânico e ganha novas                                                                                                                 26  Essa  

maneira   de   pensar   a   obra   como   algo   estático   se   situa   somente   no   plano   conceitual   e   não   se   relaciona  diretamente  com  a  dinâmica  das  imagens  no  filme.    

 

304  

CONFLUÊNCIAS   Capítulo  6  

formas, graças às similaridades no nível semântico e sintático (Plaza, ibid., p. 137). Plaza diz ainda que todas as transposições de signos do Encouraçado se baseia em uma estrutura matemática: a Seção Áurea. Sob os preceitos de Luca Pacioli e Da Vinci, de quem Eisenstein era grande admirador e conhecedor, a Seção Áurea é definida como um traçado: Esse traçado, conhecido dos gregos (Pártenon), procura uma correspondência harmônica entre as partes e o todo, base dos conhecimentos da analogia, da similaridade na diferença, do semelhante no diverso e da variedade no mesmo. A Seção Áurea transmite as noções matemáticas de razão, progressão, harmonia, evoca e denota diretamente as noções e ideias de germinação, fecundidade e florescência, que representam um papel primordial na representação simbólica humana. (Plaza, ibid., p. 138).

A Seção Áurea, assim definida, parece em total harmonia com os preceitos de montagem fílmica de Eisenstein. Plaza verifica ainda que em cada uma das cinco partes do filme, o momento forte ou de tensão cai no ponto que a Seção Áurea determina (ibid., p. 140 e 141). No interior dessas estruturas matemáticas análogas, o diretor russo dá preferência a uma montagem que é mais expressiva que narrativa. A montagem expressiva se liga primordialmente a dimensão vertical, ao espaço, enquanto na narrativa predomina a horizontalidade, o tempo. As duas, na linguagem do cinema, estão sempre interagindo. Interessante observar que, embora Eisenstein tenha maior apreço pela montagem expressiva, a quantidade de cenas extremamente agitadas e dinâmica musical acelerada, como de certos trechos da Sinfonia n.10 (1953) de Dimitri Shotakovich (1906-1975) que acompanha o filme em sua versão de 1975, nos lembram a todo momento o vigor do tempo no interior da estrutura fílmica. Certamente essa potencialização da expressão e da narração, da horizontalidade e da verticalidade, contribuem enormemente para a energia e o dinamismo da obra. Do ponto de vista musical, o Encouraçado, em sua primeira versão de 1925 estreada em 1926, teve a trilha composta por Edmund Meisel (1894-1930), como acompanhamento ao vivo. Eisenstein havia previsto que se renovasse a música do filme a cada vinte anos, na intenção de renovar sua força expressiva, dando um impulso novo as ideias de revolução que as imagens comportam 27 . A versão mais apresentada é a acompanhada da música de Shostakovith e Nikolai Kryukov, realizada por ocasião dos 50 anos de lançamento do filme. De qualquer maneira, os princípios do realizador russo no momento do Encouraçado permanecem, como por exemplo, a pouca sincronia direta e pleonástica, pontuais clichês sonoros, tais como a fórmula rítmica de uma marcha fúnebre para a morte do líder da                                                                                                                 27

Em 2004, por exemplo, a Orquestra Sinfônica de Dresden estreou em Londres uma nova trilha composta por Neil Tennant e Chris Lowe (dos Pet shop Boys) para o Encouraçado.

 

CONFLUÊNCIAS   Capítulo  6  

305  

 

revolução, o marinheiro Vakulinchuk, rufar dos tambores anunciando o massacre de Odessa, trompetes de guerra, etc. Na versão de 1975, a agitação na cena das escadas é acompanhada por um adágio e, por consequência, nos incita um olhar distanciado do morticínio da tela. Sob o aspecto musical, o Encouraçado Potemkin ainda não atinge a sincronia que Eisenstein conseguiria mais tarde com Alexander Nevsky (1938) e Ivan, o Terrível (1942-1946), com trilha composta por Serguei Prokofiev. Nestes últimos, Eisenstein diz ter montado, por vezes, os planos das imagens em função da trilha musical e, outras vezes, encontrou soluções plásticas a partir da escuta de seções da partitura. É preciso saber como apreender o movimento de uma determinada peça musical para fixar seu caminho e inscrevê-la como base da composição plástica, entende Eisenstein (2008, p. 113). Quando um compositor, por outro lado, toma uma sequência previamente gravada, ele deve saber ler o movimento visual para então compor sua imagem musical, ainda segundo o diretor russo (ibid., p. 113). É verdade que a música tem um peso relativo no caso do Encouraçado de Potemkin. O simples fato do autor ter autorizado que se executasse outras músicas como acompanhamento do filme já é prova disso. No entanto, o filme se ajusta perfeitamente como exemplo emblemático das confluências pelo fato do diretor buscar o que Julio Plaza chamou de “amálgama sígnico” (Plaza, 2003, p. 143), transformando o filme em local de fecundo trânsito de similitudes ou, dito de outra maneira, núcleo de traduções intersemióticas. Eisenstein ilustra ainda nossas confluências através do seu rico entendimento de montagem expressiva, vertical, narrativa e horizontal. Seu entendimento do cinema sonoro como a arte do contraponto audiovisual também é de grande interesse e poderia permanecer válido como princípio no cinema atual. A ideia de uma “sincronização dos sentidos” comportando dissonâncias e conflitos também se ajusta convenientemente as nossas confluências, herdeiras diretas da similitude convenientia. 4. Outras Confluências Nada seria mais redutor que considerar somente o cinema e a ópera como terreno fértil para o estudo das confluências. Embalada por diversas e distintas similitudes lideradas pela convenientia – a força de articulação das semelhanças que pressupõe algum tipo de acordo ou convenção interna das partes em um todo – as confluências abarcam toda arte que se impõe explicitamente como amálgama sígnico. Juntam, em uma obra única, matérias artísticas aparentemente tão distintas quanto som, cor e gesto. Além de várias manifestações mais

 

306  

CONFLUÊNCIAS   Capítulo  6  

atuais, como performances e instalações, as quais mencionaremos mais à frente, a família das confluências inclui outros gêneros artísticos tradicionais, como o balé, o teatro ou o circo. Graças especialmente às interações ou diálogos artísticos mais recentes, a tentativa de uma taxonomia das confluências pode parecer muito artificial, como muitas vezes se verifica, a propósito, quando nos voltamos aos limites entre performances, instalações, happenings, multimídias ou intermídias, por exemplo. Por isso, vamos somente citar e comentar brevemente alguns exemplos que podem sugerir o estudo das confluências, nos moldes desta pesquisa, sem uma preocupação classificatória muito forte. Em um plano filosófico, a investigação dos limites e interações entre as artes remonta à Grécia antiga, no que concerne à cultura ocidental. No plano da prática artística, a caracterização das confluências vai variar justamente em função do que define cada arte, ou seja, do que tange o próprio estatuto de arte. Associações daquilo que comumente consideramos matéria artística diversa, como os sons, as cores, as formas e os gestos, já eram feitas nos tempos mais remotos. Sérgio Bittencourt Sampaio (2001, p. 142) nos mostra, por exemplo, que na China antiga idealizouse sistematicamente correlações entre cores, sons, sabores, estações do ano e pontos cardeais. Na etnomusicologia são fartos os exemplos de sociedades onde existe uma visão totalizante de práticas artísticas que, no ocidente, são entendidas como campos distintos, como música e dança. Isso sem falar nos também amplos entendimentos que associam confortavelmente arte, ciência e algum tipo de espiritualidade, como foi o caso da música das esferas28. Entretanto, quando nos reportamos à cultura ocidental a partir do nossa compreensão moderna do que vem a ser arte, forjada no século XVIII com a afirmação da Estética, as confluências poderiam se limitar ao que Nédoncelle chamou de “arte de síntese”, ou seja, balé, teatro, ópera, cinema, e certas expressões artísticas mais recentes29. Excetuando-se as artes de síntese, outros pontos de confluência podem surgir quando nos voltamos à bibliografia que aborda o histórico do diálogo entre música e artes visuais (Bosseur, Caznok, Sabatier, Denizeau, etc). Pensamos, por exemplo, nos instrumentos concebidos com a finalidade de estabelecer elos entre sons e cores. Embora esse processo, digamos, tradutório possa nos remeter aos reflexos do capítulo anterior, o resultado final não                                                                                                                 28

Pitágoras foi o pensador que primeiro descreveu os harmônicos de uma nota musical, mostrando que eles obedeciam a uma relação matemática simples. Concluiu, mais tarde, que essas relações matemáticas entre números inteiros podiam se encontram por toda parte, inclusive no que concerne o movimento dos astros celestes. A noção de harmonia musical é transposta como expressão da natureza. Som, forma e número são unificados no conceito de harmonia. Cerca de dois mil anos depois, o astrônomo alemão Johannes Kepler (15721630) transpôs proporcionalmente medidas de órbitas celestes para frequências e encontrou estreitas relações com intervalos e escalas musicais. 29 Cf. p. 50.

 

CONFLUÊNCIAS   Capítulo  6  

307  

 

deixa de ser a expressão simultânea de cores e sons e, em sua dimensão receptiva, poderia, assim, integrar essas confluências. O instrumento que produzia sons e luzes em correspondência mais antigo e mais citado é o clavecin oculaire (teclado ocular) do padre Luis-Bertrand Castel (1688-1757). Matemático, físico, jornalista e teórico francês, Castel trabalhou durante trinta anos na concepção desse instrumento que, baseado em ideias cartesianas e nas pesquisas de Newton expostas em Optiks (1704), estabelecia relações entre o espectro das cores e os sons da série harmônica (Caznok, 2008, p. 35)30. O “projeto de confluência” de Castel, figura excêntrica do meio intelectual francês, era considerado controverso, mas foi, assim mesmo, levado à sério por personagens de peso, tais como o compositor Georg Philipp Telemann (1681-1767) (Lévi-Strauss,1993, p. 99). Caznok (ibid., p. 35) cita ainda outros inventos com propostas similares que viriam a surgir somente bem mais tarde, na segunda metade do século XIX, graças, possivelmente, a afirmação dos ideais românticos de sinestesia como ideal perceptivo e às possibilidades que surgiam com o uso da tecnologia. O estadunidense Bainvridge Bishop (1837-1905) uniu um instrumento de projeção de cores a um órgão para difundir sons e cores com sincronicidade. O inglês A. Wallace Rimington (1854-1918) construiu um órgão silencioso que projetava cores e que deveria ser acompanhado por uma orquestra ou piano. Outros exemplos de instrumentos inventados com a pretensão de se estabelecer correspondências diretas e “fundir” sons e cores surgem até o final do século dos românticos, mas é no século XX que se concentra o maior número de experiências nesse sentido. Um exemplo célebre do que se pode considerar como confluência deve vir do poema sinfônico de Alexander Scriabin (1872-1915), Prometeu (1910). O compositor acrescenta entre os instrumentos da orquestra, o luce, aparelho que deveria projetar cores em correspondência e como complemento da parte propriamente musical. Por trás da obra de Scriabin existe todo um pensamento místico-filosófico que caracterizava a doutrina teosófica na qual o compositor se inscrevia. Cores, notas musicais e estados de espíritos eram organizados segundo um rigoroso quadro de equivalências que o compositor inscreve na própria partitura de Prometeu. O procedimento de Scriabin nesta obra é frequentemente citado nos primórdios das artes intermídias que se propagariam algumas décadas à frente31. Apesar da experiência de Scriabin ser a mais conhecida e citada, nas primeiras décadas do século passado pululam outros exemplos bem interessantes de convenientia de matérias                                                                                                                 30

Isaac Newton, diferentemente de Castel, baseava a correspondência entre sons e cores no modo dórico: ré como vermelho, mi como laranja, fá amarelo, sol verde, lá azul, si índico e dó violeta (Caznok, 2008, p. 35). 31 Prometeu só foi executado em sua integralidade em 1915, após a morte do compositor.

 

308  

CONFLUÊNCIAS   Capítulo  6  

artísticas em obras únicas que vão ao encontro do que se pode ser considerado como intermídia do século XX32. Em 1912, pouco depois da conceptualização do luce por Scriabin, o médico Fournier d’Albe (1868-1933) nomeia genericamente optofone (optophone) todo instrumento criado para traduzir efeitos óticos em acústicos. Dessa forma, abre caminho para que na década seguinte László Moholy-Nagy proponha uma nova escrita sonora, baseada em um disco com uma faixa ótica, e, mais tarde, o artista plástico Raoul Hausmann (1886-1971) formule uma teoria “optofonética” que pretendia, através da utilização dos meios tecnológicos mais avançados, chegar a uma nova arte total (Lista, 2003, p. 64). Na mesma década de 20, o compositor húngaro Alexander László (1895-1970), embalado pelos estudos da teoria de Newton das correspondências entre espectro sonoro e as cores, inventa algo semelhante a um grande equalizador dos tempos atuais, porém tratava-se de um aparelho (Farblichtmusik) para produzir a “música cromática” que resulta da união entre duas artes: a pintura e a música. O princípio de base sobre o qual ela [a música cromática] se funda é que cada cor corresponde a vários sons e que as relações entre cores não são congeladas e imóveis definitivamente, mas definidas subjetivamente, caso por caso. (László apud Duplaix, 2004, p. 178)33.

Citamos ainda os projetores de cor acoplados a um órgão de Adrian Bernand Klein, criado em 1932, o console de luz de Frederick Bentham em 1935, que tinha como objetivo auxiliar na apreensão da forma musical (Caznok, 2008, p40), as conexões elaboradas por Zdeněk Pešánek para um piano de luzes (piano à lumières) e seu projeto de um espectrofone em 1925 (Duplaix, 2004, p. 174). Sustentados por aparatos tecnológicos que permitiam algum tipo de sincronia entre som e imagem – que, aliás, também está na base do cinema sonoro – artistas plásticos e compositores da primeira metade do século XX pensaram uma confluência das artes que ora traduzia ou expressava música em imagens (Oskar Fischinger e seu filme Studie n.8 de 1932, Norman Maclaren e seu Spook Sport de 1940, Wall Disney e a Fantasia de 1940, entre muitos outros), ora imagens em música, como a maior parte das trilhas originais para filmes de animação. Com maior ou menor rigor, maior ou menor poesia, o projeto de coexistência artística que nós apresentamos sob nome de confluência continuou a solicitar o auxílio da tecnologia                                                                                                                 32

A paternidade do termo intermídia é atribuído a László Moholy-Nagy (1895-1946) e pressupõe uma relação de som e imagem conduzida por uma lógica de reversibilidade e não simplesmente um som acompanhado de uma imagem e vice-versa (Lista, 2004, p. 64). 33 Le principe de base sur lequel se fonde est que chaque couleur correspond à plusieurs sons et que les rapports entre les couleurs ne sont pas figés et arrêtés une fois pour toutes, mais définis subjectivement, cas par cas.

 

CONFLUÊNCIAS   Capítulo  6  

309  

 

que se configurou principalmente no uso de programas que convertem, segundo os critérios mais variados, cores e sons. Bosseur (1998, p. 235) cita, entre muitos outros exemplos, a U.P. I.C (Unité polyagogique d’information et de composition), uma máquina inventada em 1976 por Xenakis que permitia associar grafismo e resultado acústico. Nessa mesma linha geral, de um aparato tecnológico que traduz ou sincroniza sons e imagens, podemos citar um concerto recente da série Art total (2010) da Cité de la Musique de Paris em que o jovem compositor russo Dmitri Kourliandki (1976) estreou com o Ensemble Intercontemporain sob a direção de Bruno Mantovani a obra Objets impossibles. Os sons de cada instrumento são captados por microfones e são “transformados” em imagens abstratas geometrizas e em movimento, inspiradas pelos chamados “objetos impossíveis” de M. C. Escher (1898-1972). Ou a versão de Quadros de uma Exposição de Moussorgsky realizada com uma projeção em tempo real feita pelo artista sul-africano Robin Rhode ao som da obra executada pelo pianista Leif Ove Andsnes em 2009. Ou ainda o projeto de Clara Sverner e Muti Randolph, em que todo um recital de piano com repertório variado (Chopin, Villa-Lobos, Ernesto Nazareth, entre outros) é acompanhado de imagens digitais criadas e projetadas em sincronia com as peças. Também no contexto das confluências menos tradicionais, pensamos nas chamadas “esculturas sonoras”, objetos que concentram qualidades visuais e acústicas e que se comportam como instrumentos musicais inventados. Bosseur apresenta Harry Partch (19011974) como o fundador do movimento das esculturas sonoras e cita artistas como Jean Tinguely, Pol Burry, Robert Morris e Anish Kapoor (Bosseur, 1998, p. 266-271). Ainda como confluência menos tradicional podem se situar as partituras musicais que se tornam objetos de apreciação visual, como Chess pieces (1944) de John Cage. Em casos como este, entretanto, a noção de confluência possa ser somente entendida de maneira relativa, já que uma notação musical é música apenas em sua dimensão virtual. Voltando às manifestações artísticas tradicionais das primeiras décadas do século passado, é preciso ao menos citar algumas colaborações ou coexistências artísticas que ocorreram no universo da dança. Serguei Diaghilev, por exemplo, diretor dos Balés Russos, se encarnou como um dos principais “animadores culturais” europeus, promovendo concertos de música moderna, exposições de pintura e levando ao palco uma concepção artística ampla, integrando, ou fazendo confluir dança, música, pintura e figurinos, com igualdade de importância. Alexandre Benois (1870-1960), Natalia Goncharova (1881-1962), Pablo Picasso e Igor Stravinsky, estão entre colaboradores ilustres dos Balés Russos. Lembramos ainda das cooperações entre Darius Milhaud e Fernand Léger no balé A Criação do Mundo (1923), dos  

310  

CONFLUÊNCIAS   Capítulo  6  

originais cenários e figurinos de Oskar Schlemmer e a música de Paul Hindemith para o Ballet triadique (1927), os cenários de Picasso e Francis Picabia para os balés Parade (1917) e Rêlache (1924) respectivamente, ambos com música de Erik Satie. Se nos reportamos às companhias de dança mais atuais, onde o trânsito de similitudes é particularmente interessante, pensamos, por exemplo, em Anne Teresa de Keersmaeker e a companhia Rosas no espetáculo En Attendant (2011), onde os dançarinos participam da música como se fossem novas vozes na polifonia medieval, ou no espetáculo Soapéra (2010) de Mathilde Monnier e Dominique Figarella, em que a plasticidade do cenário e sua relação com o som tem tanta importância quanto os gestos dos dançarinos. No que concerne às artes tradicionais, mais precisamente àquelas que se apresentam como terreno fértil para o estudo das confluências, cabe igualmente uma breve incursão pelo teatro. Dois vieses nos parecem pertinentes de serem citados neste quadro. O primeiro diz respeito às preocupações do grupo de artistas que integravam o corpo docente da escola de arquitetura e design Baulhaus. Pensamos no fundador da escola, Walter Gropius (1883-1969) que, embalado pelos ideais de totalidade entre vida e arte, concebeu o Teatro Total (1927) nos moldes de Erwin Piscator (1993-1966) que também integrava, além de grandiosos cenários, projeções cinematográficas. Moholy-Nagy participa igualmente da criação do Teatro Total e concebe cenários para Os Contos de Hoffman de Jacques Offenbach em 1929. Mas a contribuição mais importante ao teatro, do ponto de vista das confluências e no quadro da Baulhaus, talvez tenha sido as peças ou dramas musicais de Kandinsky como Sonoridade Amarela (1909), Sonoridade Verde (1909), Preto e Branco (1909) e Sonoridade Violeta (1913). Música, balé, drama e pintura estão presentes nestas obras de Kandinsky para o palco. O outro viés para se abordar a confluência pode residir no entendimento que despontou nos meados do século XX segundo o qual toda manifestação artística híbrida, onde se integram visão e audição na recepção, é teatro. Entretanto, embora o teatro pareça ser uma espécie de baixo-contínuo da coexistência artística, esta pode ser uma maneira muito redutora de entender as obras híbridas e, pela sua extrema vastidão, acaba por não contribuir significativamente na construção de um quadro teórico. Como objeto de estudo das confluências no contexto do cinema, citamos ainda o Ballet Mécanique (1924) dirigido por Fernand Léger (1881-1955) e com trilha original de George Antheil (1900-1959). O impacto da música e o trabalho da periodicidade das imagens e sons, com seus inúmeros loops, entre outros fatores, podem dar à essa obra um aspecto emblemático no quadro da observação das similitudes. O curta-metragem Entr’acte (1924)

 

311  

CONFLUÊNCIAS   Capítulo  6  

 

dirigido por René Chair (1898-1981), também poderia facilmente integrar a família das confluências. As interações ou correspondências no interior de obras que manipulam matérias artísticas distintas vão se multiplicando de maneira a invalidar toda proposta taxonômica. De qualquer modo, é preciso estar consciente de que nos meados do século XX, ao mesmo tempo que se multiplicam e se diversificam as interferências entre as artes, o ideal romântico de arte total vai ficando cada vez mais distante. Se por um lado algumas propostas artísticas vêm colocar em questão as disciplinas artísticas e seus cortes arbitrários – pensamos no movimento futurista e no grupo Fluxus –, por outro lado se propaga a liberdade de tecer elos como bem se desejar, sem necessariamente realizar algum tipo de correspondência sistemática. “Contudo, não é mais uma arte total sintética que é visada, mas uma coexistência de fenômenos, eventualmente vividos como díspares, heterogêneos, sem que seja necessário mostrar elos lógicos entre eles.” (Bosseur, 1998, p. 223)34. Luigi Nono trata dessa nova maneira de se endereçar ao trânsito das artes quando situa o teatro musical como lugar de um encontro ideal: Um encontro [...] onde música, pintura, poesia e dinamismo cênico contribuem, nas suas dimensões atuais, não para uma síntese das artes que, caracterizada por uma simples soma, estabeleceria correspondências simples entre som, cor e movimento, mas para uma nova liberdade da fantasia criativa [...]. Não mais existe, por consequência, dependência no centro da colaboração [...], mas uma participação direta e simultânea. (Nono apud Lacché, 2004, p. 91)35.

Duas noções parecem alternar-se ou coexistirem no posto de denominador comum de boa parte das manifestações artísticas de vanguarda no ocidente das primeiras décadas aos meados do século XX: o movimento e a teatralidade. O conhecimento de algumas poucas obras de artistas futuristas já é o bastante para entender a importância que a noção de movimento exerce na arte nas primeiras décadas do século passado. Sem se constituir como confluência, a escultura Formas Únicas na Continuidade do Espaço (1913) de Umberto Boccioni (1882-1916), que compõe o acervo do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, é emblemática no que diz                                                                                                                 34

Ce n’est toutefois plus un art total, synthétique qui est visé, mais plutôt une coexistence de phénomènes, éventuellement vécus comme disparates, hétérogènes, sans qu’il soit nécessaire de montrer de liens logiques entre eux. 35 Une rencontre […] où musique, peinture, poésie et dynamisme scénique contribuent, dans leurs dimensions actuelles, non à une synthèse des arts qui, caractérisé par une simple somme, établirait des correspondances simples entre sons, couleur et mouvement, mais à une nouvelle liberté de fantaisie créatrice […]. Il n’y a plus, par conséquent, de dépendance au sein de la collaboration […], mais une participation directe et simultanée.

 

312  

CONFLUÊNCIAS   Capítulo  6  

respeito a imposição do movimento no seio de uma obra completamente estática36. Também sem revelar confluências diretas, pensamos igualmente no famoso Nu Descendo a Escada (1911) de Marcel Duchamp (1887-1968). A obra, que desavisadamente poderíamos incluir em uma estética cubista, se diferencia deste movimento pela maneira através da qual se impõe uma temporalidade quase autoritária. “Queremos exaltar o movimento agressivo, a insónia febril, a velocidade, o salto mortal, a bofetada e o murro. [...] Afirmamos que a magnificência do mundo se enriqueceu de uma beleza nova: a beleza da velocidade”, dita o manifesto futurista de Marinetti, escrito em 1909 (apud Andrade, 2006, p. 46). O movimento expresso pelo dinamismo das formas – sejam elas literárias, pictóricas ou sonoras, sejam elas híbridas ou “puras” – era um mote da arte futurista. Se na plasticidade das telas e esculturas os artistas se esforçavam para impor uma velocidade, em uma arte onde o movimento brota mais naturalmente, como a música, esse dinamismo procedia da inclusão, concretizada ou conceitual, de novos instrumentos que vinham, muitas vezes, reproduzir os sons das cidades, com toda sua agitação. A Arte dos Ruídos (L'arte dei Rumori), manifesto escrito por Luigi Russolo (1885-1947) em 1913 produziu consequências, por exemplo, na relação com a música e os sons no movimento dadaísta e nas obras musicais e teóricas de nomes como Edgard Varèse (1883-1965) e Pierre Schaeffer (1910-1995). A noção de movimento foi também um mote de um dos principais grupos artísticos do século XX, o Fluxus. A própria etimologia da palavra fluxus não deixa dúvidas quanto a importância do dinamismo no cerne do movimento. A teatralidade também entra como denominador comum de importantes momentos artísticos do século passado, mesmo que de maneira um pouco mais controversa. Peter Vergo (2010, p. 255) coloca a teatralidade dos futuristas como elemento central desta corrente artística e associa com o projeto wagneriano, no qual o teatro é como um fórum onde a obra de arte do futuro pode ser realizada. Há quem diga até mesmo que tudo aquilo que se situa entre as formas de arte é teatro (Fried apud Lauxerois, p. 19). O conceito wagneriano da Gesamtkunstwerk, além do peso central atribuído ao drama, encontra ainda outros prolongamentos no século XX, como no pensamento dos futuristas de reunificação das artes em prol de um objetivo comum. E mais, a teoria wagneriana de unidade entre vida e arte que, como vimos, tem suas bases no início do século XIX, encontra estreita correspondência com os ideais do futurismo (Vergo, ibid., p. 255).                                                                                                                 36

O livro de referência Arte Moderna de Giulio Argan (2008) reproduz em página inteira tal escultura. A obra parece captar um corredor em movimento e todo seu corpo é deformado pelo gesto de seu deslocamento. Existem mais três outros exemplares. Dois em Nova York, um no MoMA e outro no Metropolitam Museum of Art, e o terceiro se encontra na Tate Galery de Londres.

 

CONFLUÊNCIAS   Capítulo  6  

313  

 

As confluências vão se tornando tão numerosas e variadas quanto são as maneiras de se endereçar ao encontro de diversas matérias artísticas. As confluências devem se encontrar em toda e qualquer obra única que lida com matérias de naturezas variadas. Até mesmo um ready-made pode ser objeto de estudo das confluências, como por exemplo o enigmático Objeto para ser destruído feito por Man Ray (1890-1976) em 1923 e destruído em 1957, em que a haste de um metrônomo sustenta um recorte fotográfico de um olho37. Muitas das mais importantes manifestações de vanguarda no século XX tem um caráter hibrido, por assim dizer. Se pensarmos nos happenings, nas esculturas sonoras, nas performances, por exemplo, é fácil perceber a variedade de abordagens possíveis e também o alto nível de complexidade das relações tecidas no interior de um objeto desse grupo. Analogias, emulações e simpatias preenchem, das maneiras mais variadas e inusitadas, o núcleo das confluências. Embora a fusão entre vida e arte tenha sido um importante preceito das artes de vanguarda, a maneira através das quais os artistas se dirigem às combinações possíveis entre as matérias artísticas vai gradativamente se liberando do peso de se pensar a arte imbuída de um ideal totalizador, com ares de utopia romântica. No que pode concernir as confluências da segunda metade do século XX, um grupo, que não se configura exatamente em um movimento, talvez seja o mais fértil campo de estudo da coexistência das artes. Trata-se do Fluxus, mencionado algumas vezes mais acima. Variados entrecruzamentos de linguagens para as artes e a afirmação do happening, por exemplo, estão entre suas heranças38. O Fluxus foi, provavelmente, a última organização coletiva a unir artistas em torno de ideais de transformação da cultura e da sociedade (Hendricks, 2002, p. 11). O Fluxus está repleto de pontos de visualização de confluências e as coexistências artísticas são muitas vezes das mais interessantes e criativas, a ponto de ser muito difícil falar de música ou pintura no Fluxus, tão grandes são as interpenetrações entre os campos artísticos. O grupo se caracterizou pelos eventos realizados em vários pontos do mundo entre meados dos anos 60 e o final dos anos 70, encerrando suas atividades com o falecimento de seu criador, George Maciunas (1931-1978). “Mais que um paralelismo de elementos saídos de vários campos artísticos, será preciso falar de uma interpenetração

                                                                                                                37

Ready-made é o termo criado por Duchamp para designar objetos tirados da vida cotidiana e inseridos no contexto de museus e exposições. O exemplo mais célebre de ready-made deve ser A Fonte (1917), constituída por um urinol. 38 O happening se define basicamente como uma manifestação artística sempre única, que não é regida por uma intenção nítida e se inscreve em um lugar que não seja reservado à arte (Bosseur, 1998, p. 248).

 

314  

CONFLUÊNCIAS   Capítulo  6  

efetiva, que concede a cada domínio concernido uma relativa autonomia”39, assim se refere Bosseur ao espírito fluxus (1998, p. 247). E esse espírito, embora não tenha se caracterizado em um grupo, já vinha se esboçando nos anos 50 e encontrou nas figuras de John Cage, Robert Rauschenberg e Nam June Paik importantes colaboradores, entre outros nomes. Como forma de confluência nesta mesma época, com base nos movimentos de vanguarda da primeira metade do século XX, surge o que se convencionou chamar de performance, atividade artística interdisciplinar que se situa na zona de convergência de diversos modos de comunicação. Diferencia-se do happening por geralmente seguir algum tipo de roteiro. Nas performances, o artista é a ferramenta da arte e a própria arte (ibid., p. 275). É importante mencionar ainda uma outra manifestação muito bem afirmada no cenário artístico: a instalação. Ela se afirma genericamente como uma combinação de elementos ou mídias que visam modificar a experiência de um espaço ou de alguma circunstância. O apelo à tecnologia é frequente e, por vezes, como notou Bosseur (ibid., p. 275), os meios técnicos se confundem com as finalidades estéticas. Para que as instalações se caracterizem como confluências neste trabalho será necessário, evidentemente, que haja coexistência de mídias, logo, elimina-se do grupo as instalações “puramente” visuais40. O artista plástico brasileiro Hélio Oiticica (1937-1980) tem uma obra extremamente fértil de contatos entre disciplinas artísticas e com os principais ingredientes do que parece percorrer a estética de seu tempo. A conexão entre a vida e a arte, as dimensões lúdicas, imersivas, as interações, tudo é facilmente encontrado na obra de Oiticica. Temos uma ideia de sua importância se pensarmos, por exemplo, em seus Parangolés que se pretendiam pinturas vivas na década de 60 ou no seu famoso penetrável Tropicália (1968), instalado nos jardins do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, obra sensorial que não somente deu o nome, como também ajudou a consolidar a estética do movimento tropicalista da música brasileira do final dos anos 60 e dos anos 70. Em 1973, concebeu o projeto CC6 Coke Head’s soup, onde os participantes se sentam ou se deitam sem sapatos e apreciam a projeção de 26 slides acompanhados de uma rigorosa construção musical a partir de uma canção de Marianne Faithfull (Sister Morphine), gravada em 1971 pelos Rolling Stones, em sincronia com sons de

                                                                                                                39

Plutôt qu’une mise en parallèle d’éléments issus de plusieurs champs artistiques, il faudra parler d’une interpénétration effective, qui accorde à chaque domaine concerné une relative autonomie. 40 Stanley Gibb sugere uma distinção entre multimídia, mixed-mídia e intermídia. A primeira respeita a autonomia dos elementos confrontados, a segunda tende a igualar os elementos e a última persegue o ideal de uma interdependência rigorosa (Bosseur, 1998, p. 275).

 

315  

CONFLUÊNCIAS   Capítulo  6  

 

assovio, máquina de escrever, discagem telefônica, manipulação de objetos e deslocamentos na sala. No quadro das instalações pode-se pensar nas recentes e monumentais obras da série Monumenta no Grand Palais de Paris. Christian Boltanski (nascido em 1944) ocupou em 2010 quase dez mil metros quadrados com uma obra visual e sonora intitulada Personnes em que o visitante não se encontrava frente à obra e sim dentro da própria obra. Os espectadores/ouvintes percorriam caminhos entre retângulos bem demarcados com roupas de diversas cores aparentemente usadas. Em um dos extremos da sala, um enorme guindaste construía uma “montanha” de roupas. O som que integrava a obra era um amálgama do barulho produzido pelo guindaste e de uma composição eletroacústica ligeiramente estática que construía uma espécie de ruído de fundo, ao mesmo tempo discreto e incômodo. O som parecia contribuir de maneira decisiva na construção da atmosfera desoladora que pretendia se referir à inelutabilidade da morte, de acordo com o site do evento41. No mesmo contexto da Monumenta, outro artista preencheu o enorme vazio do Grand Palais com uma instalação tão impactante e grandiosa quanto à citada acima. O artista indiano Anish Kapoor (nascido em 1956) estreou em 2011 a obra Leviathan que acrescentava às dimensões sonoras e visuais, o sentido táctil. A impressão de participar da obra é ainda maior que em Personnes de Boltansky, pois o público está cercado por todos os lados por uma membrana grossa e esférica, como uma espécie de útero gigante. O som, menos complexo que a obra do Monumenta anterior, é constante e se soma às inúmeras reverberações das vozes dos visitantes. Como último exemplo de uma lista que poderia se estender à exaustão, citamos a instalação A=P=P=A=R=I=T=I=O=N (2008) do artista galês Cerith Wyn Evans (nascido em 1958), associado ao grupo de música experimental e bruitiste Throbbing Gristle (criado em 1975, em Londres). Como uma espécie de coleção de mobiles, a estrutura de cada peça comporta dois espelhos circulares que são, na verdade, autofalantes. O observador/ouvinte caminha entre os mobiles, que parecem uma atualização dos esculturas de Alexander Calder, ligeiramente simplificadas na forma, mas de maior complexidade. O título foi tirado de um poema de Stéphane Mallarmé (1842-1898), no qual a sinestesia é evocada através da menção às cores, perfumes e sons. O título é escrito separadamente e em maiúsculas, talvez em relação

com

os

espaçamentos

                                                                                                                41

www.monumenta.com

 

que

existem

entre

os

numerosos

mobiles.

316  

CONFLUÊNCIAS   Capítulo  6  

A=P=P=A=R=I=T=I=O=N é ao mesmo tempo uma escultura móvel e sonora que é certamente terreno fértil para o estudo das confluências. Se nas ressonâncias e nos reflexos as fronteiras entre as artes aparecem nítidas e só podem ser colocadas em questão de maneira virtual, nas confluências as marcas da instabilidade dos limites artísticos constituem sua própria essência. Isso porque as elas são regidas pela única das forças articuladoras das semelhanças tratadas nesta pesquisa em que os elementos de natureza distinta se tocam efetivamente no tempo e no espaço. Na medida em que as confluências vão avançando na história, novas combinações vão surgindo e colocando em xeque toda tentativa de classificação. As confluências vão ao âmago do estatuto de obra de arte e deixam muito mais interrogações que certezas.

 

 

317  

CONCLUSÃO

A pluralidade das artes é tão essencialmente irredutível quanto a unidade da arte é absoluta. (Nancy,1994, p. 24)1

a) Diferenças Apesar de, em tese, podermos nos dirigir ora às semelhanças ora às diferenças, as duas são inseparáveis. As semelhanças só são perceptíveis em meio às diferenças e vice-versa. Ambas existem sempre no plural, assim como foram apresentadas as musas, metáforas das artes no primeiro capítulo desta tese. O uno ou o singular generalizado das artes parecem residir em uma instância inacessível e utópica. Cada uma das musas afirma em sua arte particularidades intransferíveis e únicas e asseguram suas diferenças através da pluralidade das matérias e das técnicas, importantes instrumentos da distinção das artes. A dimensão singular primordial entra no que podemos chamar de sublime. A arte surge nesta articulação entre matéria, técnica e a dimensão sublime. Na tentativa de se estabelecer limites claros entre as artes, diversos sistemas de classificação surgiram ao longo da história. Cada um deles, como os apresentados no primeiro capítulo desta tese, traz alguma contribuição para a compreensão dos limites entre as artes, e são legítimos na medida em que seus pressupostos são bem definidos e claramente apresentados. Mas é bom observar que a diferença pura, expressa pelas fronteiras entre as artes, é tão impossível quanto uma autêntica semelhança e se estabelecem primordialmente como relacionais e não essenciais. Olhando com certo distanciamento para os sistemas das artes apresentados não é difícil de constatar que, por trás da demarcação de limites, existe sempre algum tipo de força que, de certa forma, abranda esse próprio limite. Aristóteles distingue as artes na figuração, na mímica e na expressão, mas as une na premissa comum da mimeses. O “Ut pictura poesis” de Horácio sugere, poeticamente, interseções entre pintura e poesia. Lessing nos convida a ouvir o grito de dor da escultura do Laocoonte e assim estabelece um elo do visual e do sonoro, mesmo que seja como sugestão poética (Lessing, 1989, p. 15). No idealismo alemão, de modo

                                                                                                                1

“La pluralité des arts est aussi essentiellement irréductible que l’unité de l’art est absolue.”

 

318    

mais sistemático e elaborado, as propriedades particulares das artes sempre encontram ressonâncias comuns, como vimos no quadro de Schelling ou no sistema hegeliano2. As classificações do século XX, curiosamente, tendem a enrijecer suas fronteiras ou até mesmo desqualificar interferências mútuas. Justamente no Modernismo – quando a música se tornava modelo de abstração para diversos artistas plásticos, esculturas abandonam a inércia, o timbre e o espaço começam a receber tratamentos diferenciados na música, entre outras importantes transformações – certos sistemas se apresentavam com algum grau de hermetismo. Porém, Étienne Souriau, embora não situe seu quadro das artes em relação à produção artística do seu tempo, se abre para as interseções possíveis entre elas, sobretudo na instância estética, no núcleo da chamada Estética Comparada. Do interior das diferenças e de todos os limites possíveis e imagináveis entre as artes, a arbitrariedade nos acena incessantemente e esses mesmos limites esvaem-se em suas numerosas lacunas. b) Semelhanças As semelhanças desta tese não são aquelas que se instalam na unidade ontológica da arte, no seio de Mnemósine, mãe das musas. Nem tampouco no estabelecimento de elos que se sustentam pela retórica ou discurso poético. São conflituosas e se instalam no terreno desconfortável da Estética Comparada, impulsionada pelas práticas comparatistas. As semelhanças desta tese fazem apologia a um certo “choque de formas”, nos termos de George Bataille. Se afirmam justamente no interior das diferenças, sem nunca negá-las. Devem ser vistas a partir de uma aproximação dupla e simultânea que, por um lado, aceita pragmaticamente certos limites e diferenças e, por outro, reconhece elos profundos nas mais diversas instâncias de uma obra de arte. Existe um pano de fundo ou um “todo subjacente”, nas palavras de Dewey, que se constitui substância comum das artes. Embora não seja completamente apreendido intelectualmente, é intuído com intensidade. E sobre esse fundo comum, as matérias das artes se encontram, ao menos no que concerne seu caráter predominantemente qualitativo, imensurável como fenômeno. No que diz respeito aos sentidos, acontece algo similar ao que se passa com as artes. Eles têm suas individualidades e uma autonomia, mas se encontram na integralidade da                                                                                                                 2

Cf. p. 40.

 

 

319  

percepção. Os arroubos poéticos ou supostas especulações românticas sobre os elos dos sentidos e das artes, longe de se configurarem apenas como “vagas metáforas”, nos termos de Souriau, são reflexos ou sinais de uma integração maior. O reconhecimento de uma sinestesia generalizada, como regra, por parte da fenomenologia, além dos indícios científicos recentes comentados por Oliver Sacks nesta tese, confirmam que a autonomia dos sentidos é somente relativa. Determinar limites claros dos sentidos parece tão complicado quanto nas artes. Os sentidos, assim como as artes, devem ser multiplamente únicos e unicamente múltiplos. Mas para que todas as reflexões se concretizem e avancem no campo das artes comparadas, é necessário que se instalem em algum solo. A Estética, em sua contínua articulação entre belo, sensível e arte, propõe alguns caminhos, mas é especialmente em um dos seus ramos, a Estética Comparada, que reflexões mais concretas e aplicadas sobre os paralelos entre as artes deve fazer maior sentido. Indagações abstratas e ontológicas devem vir acompanhadas de experiências concretas para que a disciplina se efetue. A Estética Comparada resgata os atributos da Estética em sua instauração, uma disciplina que já comporta a vocação para o uno e para o múltiplo. Mas a Estética Comparada explicita essa vocação na medida em que afirma claramente seu objetivo de colocar em valor o que as diferentes artes podem ter em comum, o que pode ser transposto, bem como suas influências mútuas. Para isso, ela deverá se sustentar em uma solidez metodológica fundada em um certo número de instrumentos de comparação. E esses instrumentos, ou fios condutores metodológicos, não se constituem como regras empíricas reproduzíveis, e sim baseadas em uma individualidade metodológica. O Comparatismo, como disciplina, deve se afirmar em um centro dinâmico de pensamento onde se multiplicam e se renovam os olhares sobre as coisas aproximadas. Nos convida, assim, a deixar verdades em suspenso na medida em que ultrapassa perpetuamente as fronteiras entre os objetos e as disciplinas. Ele surge da proposição de um confronto onde se coloca um problema e se exige um solução, que será, porém, sempre temporária. Dessa maneira, o sujeito que compara torna-se um bricoleur que se aventura na comparação de incomparáveis. Sabendo que a unidade ou a semelhança das coisas é sempre virtual, ele se afasta das certezas empíricas e penetra livremente em uma zona de tensão onde elementos estranhos devem se integrar sem que se comprometa suas identidades. Para que se reconheça semelhanças é necessário que existam marcas ou certos traços comuns. Esses traços foram apresentados nesta tese como as “assinaturas” das coisas e dos seres. Na Renascença elas tinham valor de verdade a partir da qual o mundo poderia ser organizado. Mas, desde o fins do século XVI, a semelhança vem sendo colocada em questão e  

320    

vem perdendo seu lugar central nos novos solos epistemológicos. Reconhece-se que a dessemelhança está no cerne da semelhança, tal como a teologia medieval já havia afirmado. A semelhança se converte em conflito de formas, incômodo e perturbador. A semelhança entra nesta pesquisa, não mais com pretensão de ser verdadeira ou ordenadora, mas como instrumento de observação de encontros, virtuais ou reais, entre obras artísticas. A partir dela, novas perspectivas de entendimento devem emergir. Mesmo não se afirmando com verdadeiras, as semelhanças podem sim ser válidas, uma vez que haja coerência nos raciocínios que sustentam seus termos e suas premissas. Semelhanças informes ou mesmo transgressoras, como as de George Bataille apresentada no segundo capítulo, podem surgir no contato tenso entre obras de arte distintas. c) Similitudes Um vez restituído um valor à semelhança, é preciso procurar em seu interior algumas significações e forças principais que a articulam. As similitudes serão essas forças ou traços que permitem que as coisas se aproximem e se afastem. Em meio a toda uma trama possível de similitudes elegemos quatro, que são justamente as quatro que Michel Foucault considerou como as mais importantes na época em que as semelhanças reinavam como as principais articulações do saber, ou seja, na Renascença. Simpatia, emulação, analogia e convenientia foram as quatro similitudes resgatadas de seu contexto original e inseridas em uma situação totalmente nova. Para que esta pesquisa atinja seu objetivo, de criar novas condições de observação dos encontros entre música e artes visuais, é fundamental ter consciência de que essas quatro similitudes serão apropriadas livremente como instrumentos para um exercício fértil de estética comparada. Quando lançamos um olhar panorâmico nas significações dessas quatro similitudes, percebemos que elas nunca estão sozinhas. A simpatia, por exemplo, remete à ideia de harmonia e adequação e, dessa forma, se aproxima da noção de convenientia. Emulação e analogia comportam mutuamente significações de uma e de outra. A emulação carrega ainda a conotação de desejo e inclinação que, por sua vez, pode se associar à simpatia. Na convenientia a alusão à simpatia é inevitável e, na interseção ou fusão que ele pressupõe, analogia e emulações podem ser solicitadas. No entanto, mesmo que suas autonomias sejam perturbadas pelas possíveis interseções conceituais, cada uma das similitudes tem suas “personalidades” bem definidas e serão  

 

321  

reafirmadas no decorrer da segunda parte da tese. De qualquer forma, é preciso que se reconheça que não existe semelhança pura e absoluta, ela será utilizada sobretudo para incitar uma certa disposição de espírito, mais que uma significação precisa com pretensão de verdade. Cada uma das similitudes se afirmará principalmente como um espectro de significações e somente suas linhas de força e tendências poderá ser claramente anunciadas. Esta pesquisa situa a semelhança na articulação entre os objetos artísticos e nossos olhares. As semelhanças se instalarão em um centro dinâmico de pensamento que é conduzido pelo nosso desejo de transgredir as fronteiras das coisas, instaurando assim uma prática comparatista. Pois os objetos, sobretudo os artísticos, não carregam sozinhos os traços que os identificam, que chamamos mais acima de assinaturas. A subjetividade dos olhares e discursos participam ativamente da descobertas ou construção desses mesmos traços. Embora esta tese se situe em um terreno instável, sem muitas certezas empíricas, o jogo ou percurso das semelhança comporta em si um deleite: um prazer em vislumbrar uma unidade virtual, deixar verdades em suspenso e renovar olhares. d) Ressonâncias Inspirada pela similitude simpatia, que atua à distância, nossas ressonâncias trazem fortes marcas da subjetividade de um observador que discorre sobre os paralelos das artes. Uma vez que se reconhece uma semelhança ou se tem uma emoção análoga frente a objetos artísticos distintos, pode-se pensar em ressonância nos moldes desta pesquisa. Mas para que essa ressonância se concretize é preciso explorar o interior das obras aproximadas e investigar as origens dos elos percebidos. Ilustramos em um primeiro momento nossas ressonâncias com obras bastante emblemáticas no século XX: A Sagração da Primavera de Stravinsky e Les Demoiselles d’Avignon de Picasso. Do estudo paralelo dessas obras e seus autores emergiram uma série de similaridades que certamente superam as coincidência de ordem histórica. Coexistem no cerne das obras um desejo dos autores de suprimir os aspectos anedóticos e a narratividade linear tradicional, de buscar por dimensões primordiais da representação do homem, pela imagem e pelo ritmo, assim como um aspecto hierático e ritualístico devem provir das duas obras. Esses aspectos comuns, entre outros que foram citados no quarto capítulo, contribuem decisivamente para a inclusão dessas obras em nossas ressonâncias. O segundo exemplo foi menos evidente, mas não menos ilustrativo. Trata-se de uma aproximação entre as obras Atmosphères de Ligeti e Black Painting n. 1 de Rothko. As  

322    

ressonâncias entre as duas obras se fundaram inicialmente em uma ambígua impressão de estatismo e mobilidade que pareciam emanar da música e da tela. A partir dessa impressão similar investigamos suas origens e verificamos uma série de coincidências nas maneiras com as quais os dois artistas se relacionavam com suas artes em suas especificidades e nos aspectos mais gerais. Vimos, por exemplo, que ambos desejavam incluir o receptor da maneira mais imediata possível, que em suas obras a tradição se impunha paradoxalmente através de um apego por estruturas formais renascentistas e que a busca por uma arte multissensorial fazia parte do pensamento dos dois artistas. As ressonâncias desta tese se concretizam, portanto, na conjunção entre experiência e teoria e, dessa forma, como a primeira diretriz metodológica proposta para se abordar o encontro das artes. Um encontro em que o receptor é aquele que geri o conjunto de forças que faz com que os objetos se assemelhem e se diferenciem. e) Reflexos Reflexos foi o nome que demos para esse grupo em que as similitudes de emulação e analogia atuaram intensamente. Quando um autor aplica em sua própria obra elementos provindos de uma arte que não é sua, lá existirão os reflexos. As obras não se tocam fisicamente, são autônomas e diversas, mas guardam uma espiritualidade comum, graças a uma correspondência temática ou estrutural buscada por um autor em seu modelo. Entre os muito numerosos exemplos possíveis dos reflexos nesta tese, escolhemos um por parte de um músico e outro, de um pintor. Henri Dutilleux compôs seu Timbres, espace et mouvement ou Nuit Étoilée inspirado pela pintura Nuit Étoilée de Vincent Van Gogh, uma das mais icônicas e celebradas do século XX. Dutilleux, por diversos caminhos e estratégias composicionais, buscou aplicar em sua obra musical vários aspectos que o tocavam particularmente na obra de Van Gogh. O jogo de contrastes timbrísticos se refletiram nos contrastes instrumentais, sobretudo pela intensificação do contingente de cordas graves e da importância dada aos instrumentos de percussão e os agudos dos sopros. A configuração espacial da orquestra busca equivalência com o espaço pictórico e o movimento de espirais da tela de Van Gogh se vê refletida em uma massa de trinados. Isso somente para citar alguns aspectos mais afirmados e evidentes, pois concepções similares sobre arte, religião e certa maneira de ver o mundo também deixam traços dos mais importantes.

 

 

323  

Do lado do pintor, que permite que uma arte vizinha se reflita em sua própria arte, está Paul Klee. Tendo como mote a tela Im Bach’schen Styl (No Estilo de Bach), mostramos inúmeras maneiras através das quais a música, no caso a música de Bach, pode deixar marcas importantes no interior de uma obra puramente pictórica. Em No estilo de Bach, Klee propõe uma leitura predominantemente horizontal de sua tela, buscando imprimir uma temporalidade similar à escuta musical ou à leitura de uma partitura. Figuras de diversos aspectos, muitas delas provindas da música, se imitam, se respondem, propõe simetrias, que podem ser associadas a uma partitura de Bach em que coincidem efeitos acústicos e óticos, como foi sugerido por Boulez. Nos reflexos as emulações surgem como o desejo de imitar, ao seu modo, aquilo que se admira na arte vizinha e as analogias se responsabilizam por criar as pontes e fazer os ajustes necessários que permitam o estabelecimento dos elos. Mas a obra refletida permanece original e sua apreciação, em princípio, independe do reconhecimento da obra que serviu de modelo ou ponto de partida. f) Confluências Entre as três diretrizes metodológicas apresentadas, o grupo das confluências deve ser aquele que comporta o maior número de obras. Pois não se trata mais de aproximar obras de arte autônomas, e sim observar o interior de obras únicas em que matérias artísticas distintas, sonoras e visuais, ocupam o mesmo espaço. Basta pensar no cinema, na ópera, no balé, no teatro e em várias manifestações artísticas mais recentes, como instalações, arte multimídia ou happening, para constatar a extensão grupo. Em nossa pesquisa privilegiamos o sonoro e o visual e excluímos quase completamente a dimensão literária para evitar as muitas outras implicações que isso acarretaria e que poderiam nos afastar de nossa proposta inicial. O grupo das confluências é regido pela única similitude estudada que permite uma fusão efetiva entre os elementos diversos: a convenientia. Para ilustrar esse grupo tecemos considerações mais gerais sobre ópera e cinema e apontamos para algumas especificidade nos casos de Lulu do compositor Alban Berg e O Encouraçado Potemkin do diretor Serguei Eisenstein. No caso da ópera, nos concentramos em questões relativas à unidade, passando pelo viés da arte total wagneriana, e à coexistência de elementos sonoros e visuais. Em um segundo momento nos endereçamos a Lulu, como obra emblemática na qual é possível

 

324    

visualizar na figura da personagem principal um ponto de convergência de similitudes e substituições. Em cinema, vimos que o som intervém de maneira decisiva em um complexo jogo de similitudes e diferenças. Para representar as confluências no cinema mencionamos o conceito de “sincronização dos sentidos” de Eisenstein que reflete a consciência e o exercício racional na manipulação (montagem) das imagens e dos sons. Um olhar mais atento foi dirigido ao Encouraçado de Potemkin, obra em que cada pequeno elemento deve refletir o argumento central que rege a obra. As confluências se constituem em um espaço para se observar e analisar o percurso das similitudes no interior de uma mesma obra.

 

g) A Dinâmica das Semelhanças Múltiplas são as passagens e os encontros possíveis entre o visual e o sonoro. Segundo a ótica desta tese, eles se definem como proposições de diferentes sujeitos: do receptor/analista (ressonâncias), do artista (reflexos) ou é a própria obra que já carrega em si matérias distintas em contato (confluências). No interior de cada uma dessas diretrizes conceituais, obras visuais e sonoras nos mostram que os limites das modalidades artísticas são muitas vezes seus próprios pontos de contato. Alguns grandes artistas, com as mais variadas matérias e técnicas, nos fizeram perceber que sua arte pode ir além de sua arte. As semelhanças e as diferenças se afirmam e se explicam juntas na aproximação de objetos, matérias e técnicas artísticas. A unidade e a pluralidade das artes se firmam como uma contradição produtiva, pois mesmo os traços mais específicos sempre tocam no que a arte possui em sua generalidade. Superfície e profundidade são regiões diferentes, mas não se repulsam nem se ofuscam mutuamente, se complementam dialeticamente. Apesar de somente nas ressonâncias o receptor e analista ser aquele que propõe, desde o início, o encontro entre obras de arte, tanto nos reflexos quanto nas confluências é ele quem enfatiza essa ou aquela similitude e confirma o fato das semelhanças serem primordialmente resultado da relação entre as obras e o receptor. Este é livre para reconhecer correspondências e elos ou tecer analogias entre as mais distintas obras de arte, sem que haja nenhum tipo de autorização do artista. A observação de um parentesco entre as artes ou de um trânsito de similitudes entre matérias artísticas no interior de uma só obra nem sempre se firma como uma relação simétrica com o desejo do artista. Pois o reconhecimento de semelhanças e as ressonâncias afetivas não são determinadas por códigos ou regras fixas. Mesmo quando um  

 

325  

artista propõe em sua poética qualquer tipo de tradução ou aplicação de elementos de uma outra arte na sua própria prática artística, ainda assim não se pode prever a força com a qual esse jogo de similitudes e diferenças pode atingir o receptor. Por mais que nos esforcemos em observar a fundo a estrutura e o funcionamento de um par de obras ou uma obra única em que coexistam matérias distintas e, em um segundo momento, sublinhemos seus pontos de contato, as semelhanças dentro de um discurso se mostram predominantemente relacionais. Mas seus atributos essenciais sempre perseveram como pano de fundo. Por não poderem ser expressos com a precisão de uma teoria musical ou na descrição de formas sobre uma superfície, não quer dizer que esses atributos generalizados e impalpáveis não existam ou devam ser deixados de lado. É importante que se tenha consciência daquilo que John Dewey chama de “contexto indefinido” sobre o qual todas as coisas se inscrevem. A arte, como experiência, tem a capacidade de avivar a ambiguidade entre o específico e o geral e, por que não dizer, entre o finito e o infinito. Por trás de todo nosso estudo e de nossa diretriz metodológica, é inegável que optamos por privilegiar certas similitudes em detrimento de outras e que certos contatos específicos entre as artes foram mais enfatizados que outros. Embora existam atributos particulares que nos levam a fazer uma série de opções no interior da pesquisa, existe certamente um contexto indefinido e inexplicável determinando o arbitrário de nossas escolhas. Esta tese foi se movendo na tensão entre uma superfície, mais visível e palpável, e uma profundidade, que pode somente ser intuída. Os órgãos do sentido para os quais as artes se dirigem primordialmente se incluem nesta superfície, como instrumentos de excitação corporal. Mas a percepção ela mesma se situa na dimensão mais profunda da experiência. Olhos e ouvidos são como “tentáculos” através dos quais tocamos certo objeto artístico, como a fenomenologia nos mostra. A escolha e o estudo das quatro similitudes – simpatia, emulação, analogia e convenientia – acabaram por forjar uma maneira de nos posicionar frente a uma grande gama de possibilidades de encontros entre artes e matérias artísticas. Mas ao mesmo tempo em que criou um quadro se libertou dele, pois apesar de serem solicitadas pontualmente nas análises das obras, nosso estudo das semelhanças não as configuram em um sistema fechado e com pretensões de serem sempre verdadeiras. Não buscamos similitudes absolutas, mas que sejam válidas de acordo com nossos critérios e fins propostos. Quando olhamos à distância, sobretudo a segunda parte desta tese, percebemos que os estudos das obras, inclusive aquelas que dividiam um mesmo capítulo, foram orientados segundo uma metodologia individualizada propondo diferentes tipos de diálogo entre obras e  

326    

matérias. Optamos por descrever os fenômenos musicais e visuais de maneira a evitar léxicos específicos que, em uma proposta interdisciplinar, poderiam impedir um trânsito mais fluido de ideias. Durante toda a pesquisa procuramos não nos esquecer das duas faculdades que, segundo Michèle Barbe (2001, p. 121), são indispensáveis tanto para o receptor quanto para o criador: a sensibilidade e a imaginação. Embora a pesquisa tenha evoluído e ganhado vida própria, persiste em nós a curiosidade e a fascinação primordiais. Foram elas que nos moveram na escrita de cada linha desta tese. Por trás do estudo das diferenças, semelhanças, similitudes e a aplicação dessas noções na aproximação de artes e matérias artísticas, permanece o desejo de prosseguir por essas vias na tentativa de compreender um pouco mais sobre os encontros das artes.

 

 

327  

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ADORNO. Theodor W. Alban Berg: le maitre de la transition infime. Paris: Gallimard, 1989. 215 p. _________. L’Art et les arts. In: LAXEROIS, Jean ; SZENDY, Peter. De la différence des arts. Paris: L’Harmattan, 1997. p. 23-52. _________. Théorie esthétique. Tradução do alemão para o francês por Marc Jimenez e Éliane Kaufholz. Paris: Klincksieck, 1989. 464 p. (Coleção De Esthétique) AGOSTINHO, Santo. Confissões. Petrópolis: Vozes, 1990. 367 p. ALAIN. Le systhème des beaux-arts. Paris: Gallimard, 1926. 374 p. ANDRADE, Daniel Pereira. Paixões, sentimentos morais e emoções. Uma história do poder emocional sobre o homem econômico. 2011. 407 f. Tese (Doutorado em Sociologia) Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011. ANDRADE, Mário. Baile das quatro artes. São Paulo: Martins Fontes, 1964. 198 p. ANDRADE, Oswald. Memórias sentimentais de João Miramar. Rio de Janeiro: Editora Globo, 2006. 186 p. ARASSE, Daniel. Anachroniques. Paris: Gallimard, 2006. 183 p. ARGAN, Guilo. Arte moderna: do iluminismo aos movimentos contemporâneos. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. 709 p. ARISTÓTELES. Poética. São Paulo: Nova Cultural, 1996. 320 p. ARTAUD, Antonin. Œuvres. Paris: Gallimard, 2004. 1786 p. ________. O suicida da sociedade. Tradução de Ferreira Gular. Rio de Janeiro: José Olympio, 2003. 101 p. ASHWORTH, Jennifer. Les théories de l’analogie du XII au XVI siècle. Paris: Librairie philosophique J. Vrin, 2008. 124 p. AULETE, Caldas. Dicionário contemporâneo da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Delta, 1948. 5 v. AUROUX, Sylvain (Dir.). Encyclopédie philosophique universelle: les notions philosophiques. Paris: Presses universitaires de France, 1990. 2 v. AUZOLLE, Cécile (Dir.). Avant-propos. In: LE COMPARATISME: enjeux et méthodes : Rencontre inteartistique, 2006, Paris. Actes... Paris: Université de Paris Sorbonne, Observatoire musical français, 2006. p. 7-10. BACON, Francis. Entretiens avec Michel Archimbaud. Paris: Gallimard, 1996. 156 p.  

328    

BACQUET, Emmanuelle. Synchronie des trajectoires artistiques de Pablo Picasso et Igor Stravinsky. 1994. 284 f. Mémoire de Maîtrise (Musicologie) - Université de Paris-Sorbonne, Paris, 1994. BARBE, Michèle. Quelques aspects des relations entre les arts. In: RAVET, Hyacinthe (dir.), L’Observation des pratiques musicales : méthodes et enjeux. Paris, Observatoire musical français, série « Conférences et séminaire » n°11, 2001, p. 121. BARTOLLI, Jean-Pierre. Vertus du comparatisme : entre métaphore et catachrèse. In: LE COMPARATISME: enjeux et méthodes : Rencontre inteartistique, 2006, Paris. Direction de Cécile Auzolle. Actes... Paris: Université de Paris Sorbonne, Observatoire musical français, 2006. p.11-13. BARROS, Lilian Ried Miller. A cor no processo criativo: um estudo sobre a Bauhaus e a teoria de Goethe. São Paulo: Senac, 2006. 336 p. BATAILLE, George. Documents. Paris: Mercure de France, 1929. 247 p. BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Tradução do francês por Guilherme de Almeida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. 653 p. BAYARD, Marc. Introduction : les enjeux du comparatisme en histoire de l’art. In: ________. L’Histoire de l’art et le comparatisme: les horizons du détour. Roma: Académie de France à Rome, 2007. p. 9-23. BAYER, Francis. De Schoenberg à Cage: essai sur la notion d’espace sonore dans la musique contemporaine. Paris: Klincksieck, 1987. 216p. BELON, Pierre. L'histoire de la nature des oyseaux, avec leurs descriptions et naïfs portraicts retirez du naturel. Disponível em: .  Acesso  em:  15  out.  2010.  

340    

Referências das Figuras ABC Gallery. Disponível em: Acesso em: 8 out. 2011. ARTCHIVE. Disponível em: Acesso em: 4 mar. 2011. CENTRE George Pompidou. Disponível em: Acesso em: 27 fev. 2012. KUNSTMUSEUM Basel. Disponível em: Acesso em: 14 nov. 2009 PINACOTECA do Estado de São Paulo. Disponível em: Acesso em: 22 nov. 2010. THE MUSEUM of Modern Art. Dispoível em: Acesso em: 25 nov. 2011 THE METROPOLITAN Museum of Art: collections. Disponível em: . Acesso em: 28 out. 2011. ZENTRUM Paul Klee: collections. Disponível em: Acesso em: 15 set. 2010. WEB Gallery of Art. Disponível em: Acesso em: 25 set. 2010.

     

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.