Resumo: Diálogo de um Filósofo com a Marechala de...*

June 23, 2017 | Autor: Ana Lucia Sorrentino | Categoria: Religion, Filosofía, DIDEROT, Ateísmo
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Resumo: Diálogo de um Filósofo com a Marechala de...*

Thomas Crudeli, poeta, escritor e ateu convicto, conhecido por sua "maneira muito livre de pensar", é, provavelmente, o personagem sob o qual se esconde o verdadeiro ator do diálogo em questão, Denis Diderot. Em visita ao Marechal de...* (supostamente, na vida real, Victor François, Duque de Broglie e Marechal de França), Crudeli não o encontra em seu palácio, e acaba sendo recebido por sua esposa, a quem Diderot se referirá como "Marechala", uma cristã que, a um primeiro olhar, se revela ingênua e curiosa.
A descrição que Crudeli faz da doce e devota Marechala denota seu encantamento e interesse. Interesse que se exacerba pela maneira informal com que ela o recebe, "à toilette", e, de pronto, crivando-o de perguntas. É por conta da curiosidade da "Marechala" sobre esse cuja fama de ateu já lhe chegara aos ouvidos, e de sua crença em que aqueles que negam a Santíssima Trindade são criminosos que acabarão enforcados, que se desenvolve o diálogo, provavelmente escrito em 1774.
Depois de se certificar que Crudeli é aquele que "não crê em nada", a Marechala afirma saber que a moral que ele pratica é a de um crente. Por atrelar a moralidade à crença em Deus, e por crer que é só por conta do temor ao castigo que os homens reprimem suas naturais tendências para o mal, ela imagina que o ateu deve, necessariamente, ser um mau caráter, alguém sem moral. Espanta-se ao perceber que Crudeli parece praticar a moral cristã, embora seja ateu. E lhe pergunta o que ganha não crendo. Ao que Crudeli lhe responde com outra pergunta: "Acaso a gente crê porque há algo a ganhar?"
Para a Marechala, a vida moralmente correta se daria em uma relação comercial com Deus. Os homens devem obedecer a Deus para garantir vantagens quando partirem deste para o outro mundo. Confessa que se não temesse o "castigo de Deus" não se privaria de algumas delícias. Mas, como se priva, espera ser recompensada. O bom comportamento de hoje compraria, com pagamento antecipado, as chaves das portas do céu. Nessa lógica metafísica comercial da Marechala, essa negociação parece ser vantajosa, uma vez que os sacrifícios que se faz em vida representam muito pouco se comparados à infinita riqueza que é ingressar no paraíso. E ela considera que, mesmo que não se tenha destreza para o bom comportamento, esforçar-se para superar tendências nefastas sempre valerá a pena.
Quando Crudeli declara nada esperar dos céus e ocupar-se apenas das coisas terrenas, a Marechala o julga ou muito malvado, ou muito louco, pois, em sua estreita visão, apenas a fé em Deus leva um homem a ser bom. Ser descrente e ainda assim bom, parece-lhe sintoma de loucura.
- Que motivo pode ter um incréu para ser bom, se não é louco? – ela pergunta.
Para Crudeli, há três motivos que podem levar o homem a concluir que vale mais ser bom do que mau. Ele pode nascer tão afortunadamente que sentirá grande prazer em praticar o bem. Uma excelente educação pode reforçar sua tendência natural para a beneficência. Ou ainda, com o passar dos anos, pode concluir, pela experiência, que é muito mais fácil ser feliz nesse mundo sendo honesto do que sendo um patife. Uma moral que dependa de uma crença em um Deus que pune maus comportamentos é, para Crudeli, uma moral frágil.
Para a Marechala, a tendência natural dos homens para o mal e para as paixões dificulta a prática da honestidade. Ela e Crudeli concordam que há uma contradição na vida prática: os que creem muitas vezes se comportam como se não cressem e os que não creem, muitas vezes se comportam como se cressem.
Crudeli não vê na fé ou em sua falta os motivos para a prática do bem ou do mal. Para ele, a moral está descolada da religião. Para a Marechala, ao contrário, a religião vem justamente domar a natureza corrompida dos homens. Só o temor a Deus pode coibir as naturais tendências para o mal.
Quando Crudele pede à Marechala que defina "mal" e "bem", ela lhe diz que "bem" seria aquilo que oferece mais vantagens e "mal" o que oferece mais inconvenientes. Sendo assim, a religião seria, sob seu ponto de vista, um bem.
Crudeli discorda, pois vê muito mais inconvenientes do que vantagens na religião. É à religião que se deve a grande inimizade entre muçulmanos e cristãos; é ela que promove antipatia entre as nações, intolerância, segregação, ódio e divisões cujo final sempre se dá com derramamento de sangue. Crudeli cita as palavras de Cristo, que disse ter vindo "para separar o marido da mulher, as mães de seus filhos, o irmão da irmã, o amigo do amigo", e diz que seu intento foi cumprido. A Marechala considera que tais abusos não são a religião em si. Mas Crudeli tenta fazê-la enxergar que eles são inseparáveis da religião, uma vez que a própria crença em um ser incompreensível e a quem se dá maior valor do que à vida já é motivo de discórdia entre os homens.
A Marechala concorda com Crudeli, mas continua achando que é preciso temer o castigo para agir bem e se pergunta o que poderia, afinal, substituir esse efeito intimidatório da religião. Crudeli argumenta que a religião prejulga e afirma que ela nunca serviu de base aos costumes nacionais. Diz que os deuses que eram adorados pelos honestos gregos e romanos eram uma canalha. Para ele, não é a religião que determina o valor de um homem.
Crudeli coloca em dúvida, então a verdadeira existência de cristãos. Conta à Marechala uma conversa que teve com uma pretensa cristã, em que, citando-lhe trechos do "Sermão da Montanha", questionou se ela praticava o que ali estava escrito. Nada era por ela praticado e, como a "cristã" abusasse do decote, Crudeli lhe perguntou que castigo julgava ela merecer uma mulher que incitava todos os homens, solteiros ou casados, que se aproximavam dela a lhe desejar, uma vez que, segundo o evangelho, um homem casado que apenas sentisse isso já cometia o pecado do adultério e merecia castigo. Segundo Crudeli, a "cristã" embaraçou-se e arrumou uma série de desculpas que pareciam colocar a vontade de Deus abaixo das puerilidades humanas. Conta Crudeli à Marechala que, mesmo depois de tal conversa, a suposta cristã continuou a usar seus decotes avantajados. O que o fez concluir que, realmente, pouco poder de influenciar os costumes tem a religião.
Seguindo em sua argumentação, o ateu afirma crer que se os parisienses seguissem à risca os preceitos do "Sermão da Montanha" não haveria hospícios suficientes para interná-los. Diz que os livros inspirados contêm uma moral geral e comum a todos os cultos e nações, que é apenas parcialmente obedecida, e regras morais particulares a cada nação e a cada culto, que não são obedecidas de forma alguma por ninguém. O motivo dessa desobediência generalizada está em serem essas regras tão contra a natureza humana, que se tornam impossíveis de serem praticadas por muito tempo, por serem imposições artificiais que servem apenas aos homens melancólicos cujo caráter com elas se identifica.
Em "A Religiosa", romance de Diderot publicado postumamente e que, pelas evidentes características ainda deístas do autor, provavelmente foi escrito em data anterior à deste diálogo, quando já se encontra nele um assumido ateísmo, Diderot já defende essa mesma tese defendida aqui. Para o autor, uma natureza frustrada pode se transformar em loucura.
Crudeli quer que a própria virtude já traga sua recompensa e a perversidade seu castigo, sem que seja necessária a intervenção da religião nessa relação. Ele vê na religião um sistema de opiniões extravagantes que acaba encorajando o crime, uma vez que o simples arrependimento e um pedido de perdão a Deus já livram o pecador da culpa. Julga absurdo pedir-se perdão a Deus por crimes praticados contra os homens. E diz que os deveres quiméricos que a religião impõe aviltam a ordem dos deveres naturais e morais.
Diante da declaração da interessada Marechala de que ele ainda não conseguira persuadi-la, Crudeli responde jamais ter tido essa intenção, uma vez que acredita que cada um deve viver de acordo com suas crenças, se elas o fazem melhor. À Marechala agrada seu tom não proselitista. Ela, então, pergunta se não lhe repugna a ideia de não ser mais nada após a morte. Ao que ele lhe responde que acredita ser o próprio desejo dos homens que os faz crer no que é impossível de se crer: que vivamos quando já não vivemos.
A Marechala, sem nenhuma pressa em trazer à conversa o Marechal, segue em seus questionamentos, demonstrando julgar relevantes os raciocínios ateus de Crudeli. Pergunta-lhe, então, quem fez o mundo. Crudeli lhe devolve a pergunta e a resposta dela é direta: foi Deus. Inquirida sobre o que seria Deus, ela responde ser ele um espírito. Segue-se uma conversação em que Crudeli faz o papel de provocador, arrancando dela respostas, numa espécie de maiêutica socratiana. Pergunta-lhe se, sendo Deus um espírito e tendo ele criado a matéria, seria possível a matéria ser capaz de criar um espírito. Crê ser mais razoável a segunda opção, uma vez que o ser humano faz isso o tempo todo. Provavelmente Crudeli se refere à procriação. Pergunta-lhe se crê que os animais tenham alma, ao que a Marechala responde prontamente que sim. Mas quando aborda a tese de Bouguer, da ressuscitação e renascimento dos animais depois da morte, a doce interlocutora duvida que isso seja possível. Crudeli quer mostrar à Marechala que os homens são seres orgânicos, assim como todos os outros animais.
Ao questionar Crudeli sobre sua tranquilidade em relação à própria incredulidade, este se mostra totalmente seguro, segurança que a Marechala ainda tenta abalar, em vão, dizendo-lhe que se estiver enganado corre o risco de cair em danação e que arder por toda a eternidade é muito longo.
A segurança de Crudeli a faz lembrar de La Fontaine, que, tendo a mesma segurança em vida, às portas da morte a perdeu. Mas Crudeli imagina que seria preciso de mais coragem ainda se acreditasse que depois da morte teria que enfrentar um juiz conhecedor de todos os seus mais íntimos pensamentos que o julgaria segundo as leis divinas, que, de tão rigorosas, muito provavelmente o declarariam culpado de graves pecados. Crudeli crê que, se há eleitos, eles devem ser muito poucos.
Para a Marechala, que não é jansenista e, portanto, não leva o rigor a extremos, basta crer na consolação que o sangue de Jesus Cristo traz, e descrer em qualquer possibilidade de vitória do diabo. Ela insinua que Crudeli não quer enxergar a verdade, mas ele não se abala e, para demonstrar-lhe que não haveria lógica razoável em um Deus castigar um ateu, sendo o ateu sua criação, ele lhe conta a história de um mexicano
que, tendo em vida duvidado da existência de Deus, ao encontrá-lo, depois da morte, não recebe castigo algum, pois Deus considera que, se não conseguira crer, ao menos fora honesto consigo mesmo, assumindo a própria descrença. Crudeli compara Deus a um pai que deve perdoar seus filhos por conhecê-los muito bem e por compreender que o castigo não teria qualquer utilidade. E, quando a Marechala aventa a hipótese da justiça divina ser diferente da dos homens, assim como a de um homem é diferente da do outro, Crudeli rejeita por completo essa ideia, pois se assim fosse, os homens não teriam parâmetros para agir, pois nunca saberiam o que agradaria ou não a Deus.
Crudeli, embora ateu, conversa com a Marechala baseando-se em uma ideia de um Deus altruísta e coerente, provavelmente por pensar que um Deus fora desses padrões seria algo mais absurdo ainda e não mereceria nem ao menos qualquer elucubração séria de sua parte.
Entre gentilezas e amabilidades, ambos concluem, juntos, o mesmo que Pascal já concluíra no século anterior: que o melhor é se comportar como se Deus existisse, mesmo não crendo, e não contar com sua bondade, por ser isso mais seguro. E quando a Marechala lhe questiona se seria sincero como fora com ela se acaso fosse inquirido por magistrados, Crudeli confessa, honestamente, que mentiria. E também confessa que, se moribundo, assim quisessem, ele se submeteria às cerimônias da igreja. Crudeli, como seu criador, Diderot, bem sabia das implicações de se assumir publicamente ateu no contexto em que viviam, uma vez que já fora preso por isso.
O diálogo termina com a indignação da Marechala que, diante das últimas declarações de Crudeli, o considera covarde, e o xinga de "infame hipócrita".



DIDEROT, Denis. Diálogo de um filósofo com a Marechala de...*. Tradução e notas de J. Guinsburg.
* Escrito provavelmente em 1774, este diálogo circulou de início em cópias manuscritas onde Diderot parece ter-se nomeado como interlocutor da Marechala. O colóquio surgiu impresso dois anos depois, como Pensamentos filosóficos em francês e em italiano de um certo Thomas Crudeli "conhecido por suas poesias e suas outras obras"... e por sua "maneira muito livre de pensar". A Marechala seria, ao que tudoindica, a esposa de Victor François, Duque de Broglie e Marechal de França (1718-1804). As entrevistas com o Marechal ocorreram em 1771 em Paris.


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