Resumo - Do Belo Musical, de Eduard Hanslick

June 23, 2017 | Autor: Tiago Sousa | Categoria: Music, Musicology, Estética, Filosofia Da Música, Estética Musical
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Comunidade de Leitores de Filosofia Universidade do Minho

Do Belo Musical Eduard Hanslick Resumo

Tiago Sousa [email protected] Universidade do Minho

Capítulo I Hanslick começa a sua obra assinalando que “Passou o tempo dos sistemas estéticos que abordavam o belo apenas em relação com as “sensações” por ele suscitadas (p. 13)”. Em conformidade com a crescente valorização da investigação científica que se fazia sentir na época do autor, neste livro Hanslick propõe-se fazer uma abordagem estética da beleza musical de índole naturalista e objetivista. O autor começa por defender que é um erro tentar encontrar leis gerais da beleza comuns a todas as artes: tornou-se necessário desenvolver “estéticas especiais” para cada uma. Nesse sentido, é também um erro procurar explicações acerca do belo musical importando princípios que, apesar de se verificarem úteis na explicação de outros âmbitos artísticos (como a poesia ou a pintura), se mostram ineficazes para entender o fenómeno musical ou, no pior dos casos, contribuem até para a preservação da aceitação generalizada das ideias erróneas e das falácias que, segundo o autor, tem vindo a enfermar a discussão sobre o tema. A perspetiva à qual Hanslick se opõe caracteriza-se, fundamentalmente, pela defesa de duas ideias complementares entre si: 1) a ideia de que o objetivo da música é suscitar sentimentos no ouvinte e 2) a ideia de que o conteúdo da música são os sentimentos. O autor assume uma posição objetivista e defende que o belo não depende dos sentimentos que provoca, mas constitui uma qualidade do objeto suscetível de ser intuída. O belo tem em si mesmo o seu significado, é certamente belo apenas para o deleite de um sujeito da intuição, mas não graças a ele próprio (p. 15) Hanslick avança que o verdadeiro “órgão” do belo não é o sentimento mas a “fantasia”, que caracteriza o ato criativo do compositor e que é comunicada ao ouvinte através da apreciação das formas por ele criadas. Tal apreciação exige uma contemplação atenta e reflexiva e, por conseguinte, não é legítimo compreender ou avaliar uma obra de arte meramente em função dos efeitos emocionais imediatos que provoca: Como se alguém explorasse a essência do vinho quando se embebeda! O conhecimento de um objeto e a sua ação imediata sobre a nossa subjetividade são coisas diametralmente opostas (p. 18). Dado que a música tem, de facto, um poder invulgar sobre a nossa emoção, torna-se ainda mais imperativo destrinçar as duas dimensões: o que é mero efeito emocional do que é fruto da autêntica contemplação da beleza.

Primeiro argumento – a não relação causal entre a música e os sentimentos Segundo Hanslick não existe uma relação causal necessária entre as qualidades de uma obra musical e os efeitos emocionais por ela provocados. Prova disso é o facto de que a mesma obra pode ser recebida emocionalmente das mais diversas maneiras, em função do contexto, da época, do individuo, da disposição momentânea: […] uma metade sente despertar as mais fortes e elevadas emoções nas Sinfonias de Beethoven, ao passo que a outra apenas aí depara com “enfadonha música intelectualista” e com a “ausência de sentimentos. (p.19)” Mesmo quando existe consenso a respeito do “sentimento” que tal obra suscita, Hanslick defende que esse consenso não reflete uma qualidade intrínseca à obra mas é fruto de uma convenção e de um hábito social generalizado – a associação de um tipo de música a um tipo particular de festividade, por exemplo. O autor conclui que O efeito da música sobre o sentimento não tem, portanto, nem a necessidade, nem a constância nem, por fim, a exclusividade que um fenómeno deveria apresentar para conseguir fundamentar um princípio estético (p. 20). Capítulo II Hanslick faz notar que todas as artes têm como objetivo expressar um dado conteúdo ou ideia, através dos materiais que lhe são próprios. A manifestação sensível da unidade desta ideia e da forma como é expressada constituiria a beleza da obra. Nas artes poéticas e pictóricas a apreensão da ideia representada é uma parte fundamental do juízo de beleza da mesma. Ora, em consonância com esta teoria geral de que todas as artes devem representar, formou-se a crença de que a música teria que representar também alguma coisa. Porém, dada a sua natureza altamente abstrata, caber-lhe-ia representar os sentimentos. Livre dos grilhões da determinação concetual, o etéreo, múltiplo e subtil universo das emoções humanas seria o seu suposto objeto. Segundo argumento – A incapacidade da música para representar sentimentos O autor rejeita a ideia de que os sentimentos são entidades isoladas da alma sem conexão com o resto do nosso sistema cognitivo. Um sentimento define-se não só por uma dada sensação ou moção interior mas também por um conjunto de juízos, representações e crenças. O sentimento de esperança, por exemplo, surge quando se forma a crença de que o amanhã será melhor do que o hoje. Sem esta crença com este conteúdo concetual determinado não poderia ter lugar o sentimento específico de esperança, mas apenas a sensação indefinida e difusa que o acompanha. Ora, dado que a música reconhecidamente não é capaz de representar conteúdos concetuais, não será capaz de representar sentimentos. Contudo, Hanslick aceita que a música pode representar o movimento interior que acompanha os sentimentos: a sua dinâmica. Mas falar da dinâmica dos sentimentos é algo completamente diferente que falar dos próprios sentimentos. A dinâmica é apenas uma característica do sentimento que se encontra longe de ser suficiente para o definir e clarificar. Esta dinâmica é manifestada musicalmente pelo movimento musical: o modo como uma melodia cresce, decresce, acelera, desacelera, o modo como uma progressão harmónica se desenvolve, se espraia ou densifica, a forma como os timbres se configuram, reconfiguram e se transfiguram em múltiplas combinações instrumentais. O autor fala-nos também do modo “simbólico” como associamos dadas tonalidades, acordes, ritmos a dados estados de espírito. Contudo, adverte que o termo “simbólico” aqui usado não

se refere ao conteúdo de nenhum sentimento. Trata-se apenas de um mecanismo psicológico que ativa em nós certas disposições simpatéticas naturais, desprovido de carácter representacional. Partindo da análise de um trecho de uma peça de Beethoven, Hanslick procura mostrar-nos que a única abordagem adequada, que faz justiça ao fenómeno musical enquanto musical, e nos salvaguarda de elucubrações sentimentalistas fantasiosas, é aquela que se limita aos elementos estruturais referentes à melodia, ao ritmo, à harmonia e ao timbre. Argumento 1.2. – Desacordo em relação ao conteúdo representacional e consenso em relação à beleza Como já se disse, em relação a uma dada obra musical, existe um profundo desacordo quanto ao sentimento que supostamente constituiria o conteúdo da música. Hanslick acredita que para que algo seja considerado uma representação genuína, o conteúdo de tal representação (o objeto representado) deve ser clara e consensualmente identificado pela comunidade em que se insere. Se esta identificação não ocorrer de modo distinto e consensual, então não se trata de uma verdadeira representação. Como não há consenso em relação ao sentimento que supostamente constituiria o conteúdo representado numa obra musical, então não podemos falar apropriadamente de uma representação desse sentimento. No entanto, quando falamos de grandes obras musicais - as sinfonias de Beethoven, por exemplo - existe um consenso alargado em relação à sua qualidade estética. Isso indica-nos que a beleza da obra não depende do conteúdo supostamente representado, objeto de discordância, mas de qualidades outras consensualmente apreciadas. Hanslick acrescenta ainda que só a música puramente instrumental pode garantir que a nossa análise estética se refira à música e só à música. Terceiro argumento – diferentes conteúdos textuais para a mesma música Este argumento divide-se em duas partes. Primeiramente, Hanslick lança-nos o seguinte desafio: tomemos um trecho musical de uma peça vocal e retiremos-lhe o texto que lhe vem associado. Hanslick pergunta-nos se seria possível, sem referência a tal texto, vislumbrar o conteúdo do mesmo. Se semelhante vislumbre não nos parecer possível – e Hanslick acredita que não é então fica provado que esse conteúdo é inteiramente determinado pelo texto. A segunda parte do argumento consiste em tomar de novo um trecho vocal e mudar o texto associado de modo a modificar radicalmente o significado da mensagem inicial. Hanslick dá-nos exemplos nos quais a música funciona igualmente bem para ambos os textos, apesar destes últimos poderem veicular mensagens completamente diferentes e até opostas – melodias de ópera aplicadas em serviços litúrgicos, por exemplo. Argumento 3.2.- incompatibilidade entre princípio dramático e princípio musical O filósofo recusa a tese de que a música pode representar sentimentos, mas recusa com maior veemência ainda que tal representação, supondo-se possível, constituiria o seu ideal estético. Para o demonstrar, o autor faz notar que, para uma dada composição, quanto maior o esforço empenhado na adequação do acompanhamento do sentimento textualmente representado, mais comprometida sairá o grau de excelência estética. É-nos dado como exemplo o recitativo. Trata-se da forma musical na qual o texto ganha primazia e ao qual a música com maior cuidado procura adaptar-se. Segundo uma teoria que coloca a representação dos afetos como o ideal estético, tal forma seria a mais perfeita das formas. Ora acontece justamente o contrário: é a

forma com menor interesse artístico. A música, relegada para segundo plano e destituída da sua autonomia, desperdiça o seu interesse e a sua beleza. Hanslick conclui que o “o princípio da exatidão dramática” e o “princípio da beleza musical” se excluem mutuamente. Capítulo III Hanslick lembra-nos que até aqui foi apenas enunciada a sua tese negativa, a saber, a beleza musical não consiste nem na evocação nem na representação de sentimentos. O filósofo propõe-se agora avançar uma definição positiva do belo musical: Entendemos por ele uma beleza que, independente e não necessitada de um conteúdo trazido de fora, radica unicamente nos sons e sua combinação artística (p.41). O autor avança com o que entende serem os fundamentos sobre os quais se ergue a criação musical: O elemento originário da música é o som agradável, a sua essência, o ritmo (p.41). A partir destes elementos basilares, o filósofo entende que os meios de coesão e organização do material sonoro, pelos quais o compositor expressa a sua fantasia, são a melodia, a harmonia, o ritmo e o timbre. (É interessante notar que o ritmo aparece simultaneamente como elemento base e elemento construtivo). Hanslick remata esta linha de pensamento com uma máxima que se tornou célebre: O único exclusivo conteúdo e objeto da música são formas sonoras em movimento (p.42). Hanslick propõe-nos, como ilustração do seu ponto de vista, os exemplos do arabesco e do caleidoscópio. O que nos cativa nestes exemplos encontra-se exclusivamente nas múltiplas configurações das linhas, das cores, das formas, que continuamente se transmutam, se interligam e se reinventam. A diferença é que a música procura este tipo de movimentação puramente formal no domínio sonoro. A genialidade do criador mede-se pela sua capacidade em elevar este dinamismo aos limites da imaginação e do intelecto humanos. A música faz parte de um “mundo outro”, que não pode ser acedido senão pela própria música. O que em qualquer outra arte é descrição, na música, é já metáfora. A música pretende ser apreendida como música, e só pode compreender-se a partir dela própria, fruir-se a si mesma (p.43). O facto de a música se mostrar irredutível a uma análise concetual não implica que seja desprovida de racionalidade. A música apresenta uma racionalidade intrínseca, que pode ser, por assim dizer, “entendida” durante uma audição musical atenta e consciente. Mas se não podemos recorrer à lógica nem à concetualização para entender as bases do sentido da beleza musical, onde, afinal, se encontra ele? O autor acredita que a música se funda em leis naturais que ditam os modos possíveis de organização sonoros suscetíveis de incorporarem sentido musical. Podemos pensar na “série dos harmónicos” como um elemento base da investigação dessas leis, mas, para o autor, as conexões que determinam a beleza musical, bem como o caracter de certas passagens, acordes ou mesmo estilos de composição permanecem misteriosas.

A questão da expressão e da intenção Hanslick adverte que é sempre ilegítimo inferir o carácter ou o teor sentimental da música a partir daquilo que o compositor poderia estar a sentir no momento da composição. Para o filósofo, só o que está na própria música importa analisar. Explicar o efeito musical a partir do autor é passar por cima do principal: a obra. O autor ironiza com o suposto valor das intenções: O artista decerto, bem gostaria mas não sabe. A arte, porém, nasce do saber, quem nada sabe… tem “intenções” (p. 50). Neste sentido os sentimentos e pensamentos que estiveram na base na composição, bem como a análise social e histórica a ela correlata, são estritamente irrelevantes para a avaliação e apreciação estética: [O historiador] Descobrirá, pois, nas sinfonias de Beethoven, mesmo sem conhecer o nome e a biografia do autor, o tempestuoso, a luta, a anelo insatisfeito, a obstinação consciente da sua força, mas nunca deduzirá das obras nem empregará para a sua apreciação a circunstância de que o compositor terá sido de convicção republicana, solteiro e surdo (p. 52). A questão da “ordem” como categoria estética Poder-se-ia pensar que a posição formalista de Hanslick, pela sua valorização da configuração arquitetural da música, seria simpática à ideia de que as categorias de “ordem” e de “simetria” fossem úteis para explicar a essência do belo. Pelo contrário, o filósofo lembra que tais conceitos raramente são bem aplicados e raramente explicam alguma coisa. Há obras perfeitamente regulares, simétricas, “circulares”, esteticamente execráveis. A matemática tão-pouco desempenha um papel positivo no ato criador: não se cria arte calculando. Música e linguagem Hanslick reconhece que o compositor que procure escrever uma peça vocal expressiva de certos estados de espírito, terá que recorrer a trejeitos e inflexões melódico-rítmicas afins à linguagem para obter sucesso nessa expressão. No entanto, Hanslick considera que tais recursos imitativos pouco ou nada nos dizem de especialmente relevante para entender a arte dos sons. O autor asserta que, para todas as artes, aquilo que as separa é mais importante do que aquilo que as assemelha. Qual é, então, a diferença fundamental entre música e linguagem? A diferença fundamental essencial consiste em que, na linguagem, o som é apenas um meio para o fim de algo a expressar e que é de todo alheio a este meio, ao passo que o som, na música, surge como fim em si (p. 55). Capítulo IV O filósofo reitera que a obra musical acabada não pode ser apreciada em termos de sentimentos expressos ou suscitados, mas que só a fantasia pode esclarecer o belo musical. No entanto, concede que tanto no momento da criação como no da receção esta fantasia relaciona-se, de algum modo, com o sentir do criador e do ouvinte. Este sentir deve ser explicado. O ato de composição é o primeiro a ser abordado. Um sentimento de exaltação interior, que se traduzirá numa vontade ou necessidade de criação, terá certamente lugar no momento inicial da composição. No entanto, esta motivação sentimental é tão importante quanto a serenidade e compenetração racional. O labor composicional é de uma complexidade tal que um compositor que se deixe imbuir pela excitação emocional nada de valioso será capaz de produzir. O

compositor terá que ganhar distanciamento para elaborar sobre o material sonoro ideias especificamente musicais com valor autónomo. A impressão da tonalidade interior só poderá incluir-se nos limites e sob o jugo da modulação especificamente musical. Hanslick volta-se, então, para o intérprete. A interpretação, contrariamente à composição, é o momento em que a exteriorização da subjetividade do executante tem lugar. É durante o “instante pleno” da interpretação que, apesar do respeito que deve à partitura, o intérprete manifesta o seu próprio espírito. A sua subjetividade imprime uma renovada vitalidade às notas fixadas no papel. E em relação ao ouvinte? Hanslick começa por reconhecer que o efeito emocional da música é absolutamente inegável. Contudo, perante a exaltação suscitada pela arte dos sons, o autor considera que duas questões devem ser respondidas: 1) “Em que reside o carácter específico desta exaltação anímica mediante a música, diversamente de outras excitações do sentimento?” e 2) “Quanto deste efeito é estético (p. 64)?” O filósofo começa por notar que o efeito emocional da música é tanto maior quanto mais perturbado se encontrar o nosso sistema nervoso. Para além do poder emocional psíquico, a música atua de uma forma intensa a nível fisiológico. Assim se explicaria que, ao som de uma batida, o corpo se sinta automaticamente impelido a dançar. Mas, uma vez mais, trata-se de uma tarefa importante destacar estes automatismos daquilo que é uma apreciação atenta e consciente das propriedades estéticas da obra musical. Hanslick acaba por nos fornecer a resposta às duas perguntas que tinha lançado, acerca da relação entre o efeito emocional e a qualidade estética da música: Vê-se que as nossas duas questões – a saber, que momento específico caracteriza a impressão da música sobre o sentimento, e se este momento é de natureza essencialmente estética – ficam resolvidos pelo reconhecimento de um só e mesmo fator: a influência intensiva no sistema nervoso. Nela se baseia a força peculiar e a imediatidade com que a música, em comparação com qualquer arte que não atua mediante sons, consegue despertar afetos. Mas quanto mais forte um efeito fisicamente avassalador, portanto, patológico, de uma arte tanto menor a sua participação estética (p. 13). Conclui-se esta parte salientado que o modo apropriado de apreciação da obra musical é a pura contemplação. Capitulo V Aquele que experiencia a música com base no sentimento está enredado no que ela tem de mais primário. Tal ouvinte é, no fundo, uma vítima do poder emocional da arte que justamente intenta fruir. O efeito emocional apodera-se da alma de modo automático, como resposta mecânica do sistema nervoso ao movimento sonoro. A contemplação estética, pelo contrário, exige clareza, consciência e atenção. Hanslick responde aos críticos que o acusam de defender uma visão demasiado fria e intelectualizada da música: Passa-se então por ser manifestamente “frio”, “insensível”, “de natureza intelectual”. Seja. É nobre e importante seguir o espírito criador, ver como ele abre diante de nós milagrosamente um novo mundo de elementos, como atrai estes elementos a todas as relações recíprocas imagináveis e continua assim a edificar, a derrubar, a produzir e a aniquilar toda a riqueza de um domínio que enobrece o ouvido, transformando-o no mais refinado e desenvolvido instrumento sensorial. […] Este deleitar-se com o espírito

desperto é a maneira mais digna, mais afortunada, e não a mais fácil, de ouvir a música (p. 81-82). O autor conclui que existe uma “arte de ouvir” que é necessário cultivar. Capítulo VI Segundo Hanslick a arte e a natureza podem relacionar-se de dois modos: 1) segundo o material que serve de base e meio da criação e 2) segundo o conteúdo da beleza da própria arte. O material natural disponível em primeira mão para a criação musical reduz-se ao necessário para a feitura dos instrumentos musicais. O autor defende que dois elementos fulcrais da música, a melodia e a harmonia, são já criação humana. O ritmo é o único elemento base da música que se pode encontrar diretamente na natureza. Contudo, dado que o ritmo aparece isoladamente, sem uma melodia ou harmonia associada, não se trata ainda de música. De facto, não encontramos melodias nem acordes na natureza. Os intervalos harmónicos foram sendo conquistados um a um, ao longo de séculos de exploração sonora e musical. O povo de maior cultura artística da Antiguidade e os compositores mais sábios do início da Idade Média não sabiam o que sabem as nossas pastoras na montanha alpina mais remota: cantar em terceiras (p.88). Devemos no entanto ressalvar que apesar de a tonalidade constituir um sistema artificial, não é uma mera convenção arbitrária, porque se baseia em condições acústicas naturais simples (como a série dos harmónicos), como aliás já tínhamos visto no Capítulo III: O fenómeno da harmonia natural, que é de todos os modos o único e incomovível fundamento natural em que se apoiam as condições fulcrais da nossa música, deve também reduzir-se ao seu verdadeiro significado. A progressão harmónica produz-se espontaneamente na harpa eólica de cordas iguais, funda-se, pois, numa lei natural, mas nunca se ouve esse fenómeno diretamente na natureza (p.91). Hanslick passa então a averiguar o segundo modo de relação entre música e natureza: o conteúdo da beleza. O autor considera que a pintura, a escultura, a poesia podem recolher do mundo natural e humano os ingredientes das suas criações. O poeta e o pintor têm a seu dispor as belezas naturais e os múltiplos destinos da aventura humana. Ora, na música tal não é possível: Não há nenhum belo natural para a música. […] [O compositor] Tem de esperar a hora propícia em que nele algo começa a cantar e a ressoar; mergulhará então em si e criará a partir de si algo que não tem par na natureza e que por isso, e diferentemente das outras artes, não é deste mundo (p.94). Capítulo VII Tem a música conteúdo? O conceito de “conteúdo” é primeiramente definido como “o que a coisa contém.” Nesse sentido, os “sons” seriam o conteúdo da música. Noutra aceção oposta, no entanto, “conteúdo” significa o “objeto”, o “tema” ou a “ideia” que tais sons veiculam. Ora: A música consta de séries de sons, de formas sonoras que não têm nenhum outro conteúdo além de si mesmas (p. 98). A música não expressa por meio de sons. A música expressa apenas sons. Argumentou-se já que a associação livre de ideias que nos leva a justapor à música que ouvimos as mais variadas

situações, temas, sentimentos, personagens, não são conexões necessárias que caracterizam a configuração sonora percecionada, logo não podem ser o seu conteúdo. Hanslick considera que na arte sonora forma e conteúdo confundem-se de maneira indestrinçável. Que é que se pretende, então, denominar como conteúdo? Os próprios sons? Decerto, mas eles estão já formados. Que é a forma? Mais uma vez, os próprios sons – mas eles são já a forma repleta (p.101). Um tema transposto para outra tonalidade muda a sua forma e mantém o seu conteúdo? Se assim for, o conteúdo constituiria uma série abstrata de alturas, sem nenhuma altura nem timbre definido. Isto é, um conteúdo musical desprovido de música. Mais ainda, seria possível pensar essa configuração abstrata – um contorno melódico- rítmico - sem apelo à noção de forma ou de configuração? Feita esta crucial ressalva, Hanslick parece dar especial destaque à importância do “tema” no desenvolvimento composicional de uma obra musical: O compositor coloca o tema como o protagonista de um romance […] tudo o mais, por contrastado que seja, só em relação a tal é pensado e configurado. […] O tema de uma peça musical é, por conseguinte, o seu conteúdo essencial (p.103). O filósofo procura fazer a distinção entre conteúdo e teor espiritual. Apesar de a música ser desprovida de conteúdo, possuí um “teor espiritual” de infinita grandeza. Se por “teor” se entender, como Goethe, “algo místico para além e acima do objeto e do conteúdo” de uma coisa ou mais conforme ao entendimento geral do que o fundamento substancialmente valioso, o substrato espiritual em geral, sempre será concedido à arte sonora e deverá admirar-se nas suas supremas criações como poderosa revelação. A música é um jogo, mas não uma brincadeira (p.103). As palavras finais de Hanslick podem parecer intrigantes para quem acompanhou a linha argumentativa anti-represetacionalista que perpassa todo este livro: [O] teor espiritual [da música] conecta também, no ânimo do ouvinte, o belo da arte sonora com todas as outras grandes e belas ideias. A música não o produz apenas e absolutamente mediante a sua beleza mais peculiar, mas ao mesmo tempo como cópia ressoante dos grandes movimentos do universo. Por meio de profundas e recônditas relações naturais, intensifica-se o significado dos sons muito além delas próprias e permite-nos sentir sempre ao mesmo tempo o infinito na obra do talento humano. Visto que os elementos da música – ressonância, som, ritmo, força, fraqueza, se encontram em todo o universo, o homem encontra assim, por seu turno, todo o universo na música (p.105). Pergunta-se: esta associação de Hanslick entre as relações universais e as relações sonoras não se incluirá naquilo a que o próprio autor designaria como associações livres da nossa imaginação, que nada têm que ver com as conexões necessárias que objetivamente determinam o belo musical? Referências Hanslick, E. (2002/(1854)). Do Belo Musical. (A. Morão, Trad.) Lisboa: Edições 70.

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