[Resumo] O passado no presente: uma leitura bakhtiniana acerca das representações da Guerra de Troia e de seus heróis na Odisseia

June 29, 2017 | Autor: J. de Oliveira Pinto | Categoria: Homer, Greek Epic, Homeric poetry, Mikhail Bakhtin, Homeric studies
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O passado no presente: uma leitura bakhtiniana acerca das representações da Guerra de Troia e de seus heróis na Odisseia Juarez Carlos de Oliveira Pinto (aluno) Christian Werner (orientador) Universidade de São Paulo/Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas [email protected]

Resumo O presente trabalho tem por objetivo a análise das representações da Guerra de Troia e de seus heróis na Odisseia, em particular no canto XI, sob a perspectiva das características do gênero épico delineadas por Mikhail Bakhtin em seu ensaio “Epos e Romance (Sobre a metodologia do estudo do romance)”. Tal análise centra-se na verificação dos modos de representação do passado e também os de remissão a ele, visando avaliar a convergência entre a teoria bakhtiniana e a construção poética de algumas cenas do gênero épico, a saber, o chamado intermezzo de Odisseia XI e também o diálogo que Odisseu empreende com Aquiles e Agamêmnon. Palavras Chaves: Bakhtin, Odisseia, épica

Abstract The aim of this work is to analyze the representations of the Trojan War and its heroes in the Odyssey, in particular the book XI, from the perspective of the characteristics of the epic genre outlined by Mikhail Bakhtin in his essay “Epos and Romance (Toward a methodology for the study of the novel)”. This analysis focuses on the verification of the modes of representation of the past and also the remission to it in order to evaluate convergence between Bakhtin‟s theory and poetic construction of some scenes from the epic genre, that is, the so-called intermezzo of Odyssey XI and also the dialogue Odysseus undertakes with Achilles and Agamemnon. Key words: Bakhtin, Odyssey, epic

SIICUSP 2014 – 22º Simpósio Internacional de Iniciação Científica e Tecnológica da USP

Introdução Em seu ensaio Epos e Romance, Mikhail Bakhtin (2010:pp.397-428) discute o estudo do romance como gênero. Buscando delinear características típicas do gênero romanesco, o autor recorre à comparação com gêneros considerados por ele como já acabados, constituídos e “com uma ossatura dura e já calcificada” (2010 : p.397): seu modelo principal para essa empreitada é a epopeia. Ao longo do ensaio, diversas diferenças são elencadas entre o romance e esta última. Deteremo-nos, portanto, aos elementos que Bakhtin atribui ao gênero épico como característicos. A epopeia é, para Bakhtin, um gênero criado há muito tempo e profundamente envelhecido. Ela, assim como os outros gêneros constituídos, tem o seu cânone, e seus elementos principais são anteriores à escrita e ao livro, além de conservarem, em maior ou menor grau, seus antigos aspectos orais e declamatórios. Junto aos outros grandes gêneros, a epopeia é recebida pela era moderna da história mundial como um legado, com uma forma pronta que se adapta às condições de existência impostas a ela. Além disso, os gêneros tradicionais, em relação ao romance, são caracterizados por uma relação com a realidade que é marcada pela heroicização enfática, pelo convencionalismo, pelo poetismo restrito e inerte, pela monotonia e abstração, pelo aspecto acabado pela imutabilidade dos seus personagens. Bakhtin define, então, aquilo que, do ponto de vista do problema de definição do romance, é característico ao gênero épico. Seu primeiro passo é elencar três traços constitutivos da epopeia: 1. um passado épico nacional – ou “passado absoluto”, na terminologia de Goethe e Schiller - serve de fonte para a epopeia; 2. a tradição nacional, não a experiência pessoal e o livre pensar que provém dela, serve de fonte à epopeia; 3. uma distância épica absoluta separa o mundo épico da realidade contemporânea, isto é, do tempo no qual o aedo (autor e seus ouvintes) vive. (BAKHTIN, 2011: p.13; tradução minha) O mundo épico é, para Bakhtin, aquele do passado heroico nacional, o passado absoluto, que “é o mundo das „origens‟ e dos „fastígios‟ da história nacional, o mundo dos pais e ancestrais, o mundo dos „primeiros‟ e dos „melhores‟” (BAKHTIN, 2010 : p.405). Esses termos elencados referem-se não apenas a categorias temporais, mas também a categorias axiológicas, isto é, esse passado absoluto caracteriza-se por uma hierarquia de valores específicos situados não em um passado real, mas em um tempo, no distante plano da memória, que é desprovido da relatividade que poderia ligá-lo ao presente; sendo, portanto, “a única fonte e origem de tudo que é bom para os tempos futuros” (BAKHTIN, 2010: p.406). Aponta-se, ainda, que, mesmo que o presente possa ser percebido como heróico ou épico (portanto, distanciado) ou o passado como contemporâneo (mas projetando-se como passado para os tempos vindouros), isso se dá de maneira que nós nos deslocamos do “nosso tempo” e de nosso contato familiar com ele. Nesse sentido, a orientação do autor do discurso épico é sempre a de alguém que remete a um passado inacessível, na posição reverente de um descendente, não sendo possíveis experiências e apreciações pessoais, nem pontos de vista, pois esse passado, o mundo épico, encontra-se concluído e imutavél, situado em um tempo e nível de valores diferentes dos de aedo e ouvintes, que encontram-se apartados dele pela tradição nacional. Bakhtin ressalva que, apesar de acabado e fechado, o passado absoluto onde situa-se o mundo épico não está desprovido de qualquer movimento, pelo contrário, dentro dele, as categorias temporais relativas são “rica e finamente elaboradas (as nuanças de „antes‟, „mais tarde‟, a sucessão dos momentos, da celeridade, da duração, etc.); está presente uma elevada tecnica literária do tratamento do tempo” (BAKHTIN, 2010: p.411).

Objetivos Com tal caracterização em vista, o presente trabalho se propõe a analisar os modos (se um único ou mais de um) como o passado épico é representado em Odisseia XI, e se eles convergem, divergem ou, ao menos, dialogam com a visão bakhtianiana acerca do gênero épico.

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Materiais e Métodos Para a análise do canto lançaremos mão da metodologia narratológica, isto é, o estudo balizado pela maneira como a narrativa é construída, levando-se em conta os planos, tempos e espaços de narração e narrados, bem como quem são os narradores que constroem a narrativa. No caso em questão, isto é, em Odisseia XI, temos dois narradores, sendo um o narrador homérico e, o outro, Odisseu; dois planos de narração assim como dois narrados, que são a terra dos Feácios, narrada pelo narrador homérico, e o Hades, narrado por Odisseu; e dois também os tempos, um sendo o tempo presente da narrativa e o outro uma analepse externa, a saber, a descida de Odisseu ao Hades. Apesar de composto por diversas partes, focaremos nossa atenção em apenas duas delas que compõem o canto XI: 1. a quebra da narrativa de Odisseu, chamada de intermezzo; e 2. apresentação e diálogo com heróis aqueus (Agamêmnon e Aquiles).

Resultados O intermezzo (Od. XI – vv. 328-384) se caracteriza por uma interrupção da narrativa, e até mesmo da ilusão dramática, que teve seu início no canto IX; essa interrupção nos relembra que a narrativa que por ora se encerrou teve início cantos atrás, não na voz do narrador homérico, mas por meio de uma analepse actorial, a de Odisseu. Detendo especial atenção a quem, então, vinha narrando aquilo com que temos contato no início do canto XI, isto é, Odisseu, duas questões se apresentam, tendo em vista que, no canto IX (vv.19-20), o herói havia se apresentado como sendo “(...) Ulisses, filho de Laertes, conhecido de todos os homens / pelos meus dolos. A minha fama já chegou ao céu”: 1. qual a função dessa apresentação que Odisseu faz de si mesmo?; 2. qual a função da interrupção que o herói faz em sua narrativa? A análise atenta do intermezzo nos leva a postular algumas hipóteses, dentre as quais a mais notória é a de que o narrador homérico, ao projetar a voz de Odisseu, assemelha o herói ao aedo, fazendo uma introdução poética aos seus feitos e projetando-os para um passado que corroboraria para a afirmação e ampliação de seu kléos. Passando agora da questão da apresentação para a da interrupção narrativa, é difícil definir ao certo o objetivo que o narrador homérico projetaria em relação às intenções Odisseu. Algumas hipóteses levantadas, não se sustentam. Egbert Bakker (2013:p.10), porém, vê a inclusão das narrativas de Odisseu no interior da narrativa homérica como uma disputa entre épos (enunciação feita pelos personagens) e aoidé (feita pelo narrador homérico). Assim, haveria entre as narrativas um espelhamento: assim como Odisseu se faz agradável aos seus ouvintes, assim deve ser a poesia épica para os ouvintes reais. Também uma função poética se depreende dessa passagem: nela, assim como em outras passagens onde há analepses, isto é, onde fatos anteriores ao presente da ação são narradas, quem as narra é um personagem. Assim como, por exemplo, na Ilíada, quando Glauco e Diomedes se encontram em campo de batalha e aquele remonta os laços de hospitalidade existentes entre ambos e relata as histórias acerca de suas famílias – aqui é também um personagem que molda a digressão, fazendo com que tenhase a impressão de que o poeta não se responsabiliza pelo que se dá antes da unidade narrativa com a qual ele trabalha (a ira de Aquiles; o retorno de Odisseu a partir da ilha de Calipso). O diálogo que se dá entre Odisseu e Aquiles é marcado, centralmente, por um possível questionamento dos valores heróicos tradicionais: a timé e o kléos, honra e glória; já que, ao ser exaltado por sua morte heróica e por sua excelência, Aquiles retruca Odisseu dizendo preferir ter continuado vivo, mesmo que sendo escravo, a estar entre os mortos. Esse questionamento, contudo, logo se desconstrói, pois, na sequência, Aquiles pede notícias dos feitos de guerra de seu filho e, ao saber da excelência do filho, encerra o diálogo com o herói itacense repleto de alegria. O que tal passagem mostra é que, ao contrário do que poderíamos postular acerca de uma inversão de valores presente na Odisseia, antes temos uma reafirmação de tais valores. Outra coisa que se vê novamente, como já mencionado acima, é a digressão feita, mais uma vez, não pelo narrador principal do poema, mas por um personagem Já o diálogo entre Odisseu e Agamênon é marcado pelo paradigma de retorno que deu errado, isto é, o de Agamênon: o rei de Micenas serve de antípoda para Odisseu, representando aquilo que o herói itacense não deve ser e nem fazer, em especial no que diz respeito ao seu retorno. Esse tipo de construção, contrastiva e opositiva, também é típica à épica e chama-se exemplum, o que significa que

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mitos e histórias são usados e expostos como modo de exortar e incentivar alguém a determinada ação ou modo de agir.

Conclusões Como modos formais de representação do passado, vimos que, em Odisseia XI, é recorrente o uso de analepses. Estas, construídas por meio da narração que os próprios personagens fazem – aqui no caso, apenas Odisseu – em vez da realizada pelo narrador homérico O mundo épico, em relação ao dos ouvintes e do aedo, se mostra fonte de modelos positivos, convergindo com a ideia de que ele é a fonte de tudo que é bom para as gerações futuras; contudo, esses modelos não se constroem sempre pelo exemplo positivo, mas por meio de um constrate entre aquilo que pode ser extremamente nocivo e aquilo que deve ser adotado. A distância imposta pela tradição nacional se instaura aqui não por uma imposição de verdade, mas por um modelo espelhado na própria poesia épica, o que significa que, ao menos em Odisseia XI, as remissões a acontecimentos passados, as analepses, têm por objetivo orientar a recepção poética dos ouvintes: assim como Odisseu ouve, por exemplo, o relato sobre o passado de Agamêmnon para saber como não agir ao chegar a Ítaca, assim também o ouvinte deve receber os valores expostos pela narrativa épica. Tal modelo relaciona-se também com a questão do passado absoluto, pois – como se pretendeu mostrar, e como Bakhtin mesmo notou – há na poesia épica um delicado tratamento com as noções temporais. Em Odisseia XI, há remissões a um passado anterior, mas ele se integra aos acontecimentos presentes da narrativa de forma orgânica e fluida, assim como podia-se esperar que os poemas épicos se integrassem a vida cotidiana de seus ouvintes. Por um outro lado, contudo, essa integração não se dá por meio de questionamentos e apreciações: Aquiles (Il.IX) não questiona o desenvolver da história de Meleagro, se ele poderia ter feito coisas diferentes das que fez; assim como Odisseu não emite juízo sobre o modo como Agamêmnon chegou a Micenas: ambos os casos mostram que o passado se põe como paradigma, a ser aceito e repetido ou negado, fazendo-se algo diferente do que ele propõe, mas nunca de modo a ser objeto de crítica ou repreensão. Portanto, a relação de passado épico e presente de performance, onde situam-se ouvintes e aedos, converge com aquela concebida por Bakhtin.

Referências Bibliográficas BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética (A teoria do romance). 6ª ed. São Paulo: Hucitec, 2010 ______. The dialogic imagination: four essays. Austin: University of Texas Press, 2011 BAKKER, E.J. The meaning of meat and the structure of the Odyssey. New York: Cambridge University Press, 2013 DE JONG, I.J.F.; NÜNLIST, R.; BOWIE, A. Narrators, narratees, and narratives in ancient greek literature. Leiden: Brill, 2004 DE JONG, I.J.F.; NÜNLIST, R. Time in ancient greek literature. Leiden: Brill, 2007 DE JONG, I.J.F. Space in ancient greek literature. Leiden: Brill, 2012 ______. A narratological commentary on the Odyssey. New York: Cambridge University Press, 2004 GRAZIOSI, B.; HAUBOLD, J. Homer: the resonance of epic. London: Duckworth, 2005 GRETHLEIN, J. Homer and heroic history. In: MARINCOLA, J. et al. (org.) Greek notions of the past in the archaic and classical eras: history without historians. Edinburgh: Edinburgh University Press, 2012, pp.14– 36 ______. Introduction. In: GRETHLEIN, J. The greeks and their past: poetry, oratory, and history in the fifth century BCE. Cambridge: Cambridge University Press, 2010 NAGY, G. Reading Bakhtin reading classics: an epic fate for conveyors of the heroic past. In: BRANHAM, R.B.(org.) Bakhtin and the classics. Evanston: Illinois Northwestern University Press, 2002

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