RESUMO: TRANSPARÊNCIA PÚBLICA, OPACIDADE PRIVADA: O Direito como instrumento de limitação do poder na sociedade de controle, de Túlio Vianna (2007)

May 23, 2017 | Autor: Rafael Artuzo | Categoria: Criminologia, Direito Penal, Sociedade De Controle, Biopoder
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RESUMO TRANSPARÊNCIA PÚBLICA, OPACIDADE PRIVADA: O Direito como instrumento de limitação do poder na sociedade de controle

Túlio Vianna

VIANNA, Túlio. Transparência Pública, Opacidade Privada: o direito como instrumento de limitação do poder na sociedade de controle. Rio de Janeiro: Revan, 2007.

1. Prolegômenos Ao longo da história, o exercício do poder e do controle foi apropriado pelo inconsciente coletivo de diversas formas. Em um primeiro momento, a imagem de um Deus onipotente, onisciente e onividente representava e legitimava o poder e o controle social. Nesse contexto, o mito do paraíso perdido simbolizou o primeiro exemplo de resistência contra a ordem imposta, quando Adão e Eva desafiaram a autoridade divina comendo o fruto proibido. Assim também se impôs a figura de Satã, antítese do criador e representação por excelência da resistência, o que resultou na concepção de que o controle é exercido pelo bem, enquanto a resistência é exercida pelo mal. Com o surgimento da tecnologia e a invenção das primeiras ferramentas e armas, o controle divino sobre o homem começou a ser suplantado pelo controle humano sobre o próprio homem, seja no exemplo máximo da escravidão, anteriormente à Revolução Industrial, seja na exploração do trabalho, com o surgimento do capitalismo monopolista. Na fase atual, o capitalismo informacional (ou pós-industrial) exerce o poder a partir do controle da informação e não tanto pela vigilância ou pelo simbolismo da divindade onipotente, de modo que o principal arquétipo da forma como o poder é hoje exercido é o da Matrix.

PARTE I: MONITORAR, REGISTRAR, RECONHECER

2. Monitorar A monitoração eletrônica é uma técnica que amplia os sentidos humanos e os focaliza sobre ambientes, comunicações e pessoas a fim de controlar ou registrar condutas. São tipos comuns de monitoração o Circuito Fechado de Televisão (CFTV), o rastreamento, o sensoriamento remoto (radar) etc. O antecedente da monitoração eletrônica é o panóptico, concebido por Jeremy Bentham, que visava ao controle de populações (especialmente presidiários) por meio de uma disposição arquitetônica que possibilitava o maior número possível de pessoas controladas pelo menor número de controladores. Nas instituições prisionais, a função última do panóptico, além de controlar, era a de moldar comportamentos desejados, estabelecidos previamente por uma norma, por meio do poder disciplinar.

A monitoração eletrônica, todavia, nem sempre possui a função de produzir comportamentos desejados com base em uma norma de conduta, mas, antes, usa o controle como forma de prevenir e reprimir delitos (como nos casos das câmeras em shoppings centers). Para além do modelo do panóptico, Thomas Mathiesen percebeu que o desenvolvimento dos meios de comunicação de massa permitiu à sociedade industrial um tipo de controle em que é possível a um grande número de controladores focalizar um pequeno grupo de controlados, ao qual denominou sinóptico (como nos casos em que a mídia impõe um padrão de comportamento). Entretanto, não se pode afirmar que o sinóptico signifique o exercício de um poder disciplinar, pois, embora produza comportamentos, estes não estão fundados em uma vigilância hierárquica ou em uma sanção normalizadora. A sociedade pós-disciplinar é marcada por um momento em que o exercício do poder se dá pela confluência de dois mecanismos: a vigilância hierárquica (modelo panóptico) e a exibição às massas do comportamento desejado por meio da mídia (modelo sinóptico). Buscase assim, a produção de um comportamento desejado, mas sem se valer de uma sanção normalizadora (que caracteriza o poder disciplinar). Sendo assim, “a sociedade disciplinar, marcada pelo ‘vigiar e punir’ foi substituída por um novo tipo de sociedade marcada pelo ‘monitorar, registrar e reconhecer’”.

3. Registrar O registro é uma técnica de ampliação da memória por meio da coleta e armazenamento de informações em bancos de dados. É corolário da monitoração: monitora-se para registrar. Podem ser públicos ou privados, pessoais ou patrimoniais. O processo de registro teve um salto significativo com a invenção das máquinas Hollerith (futura IBM), que, no início do século XX, possibilitavam o entrecruzamento de grandes informações pessoais, de forma que os censos, que até então se limitavam a saber o número de pessoas, agora podiam armazenar informações sobre a etnia, a raça, a religião e a idade de uma população. A apropriação de todas essas informações pela Alemanha nazista facilitou o extermínio dos judeus, gerando o questionamento dos limites do registro pelo estado. O direito de não ser registrado, ou seja, a proteção do cidadão contra a obrigatoriedade dos registros que extrapolem o necessário para a administração pública, pode ser depreendido historicamente do direito à privacidade. Na verdade, a privacidade é composta por uma tríade, formada pelo direito de não ser monitorado, o direito de não registrado e o direito de não ser reconhecido.

Invoca-se também, atualmente, sua relação com os direitos à liberdade de manifestação e à igualdade, fazendo com que o direito de não ser registrado deixe de ser entendido apenas como tutela de um direito individual para ser também garantia de um interesse público.

4. Reconhecimento O reconhecimento é uma técnica de comparação, cuja finalidade é a detecção de uma possível congruência entre uma monitoração atual e uma monitoração passada memorizada em um registro. A invenção da fotografia, no final do século XIX, possibilitou um grande avanço no reconhecimento de criminosos, que, anteriormente, eram reconhecidos apenas pelo olhar do policial e sua memória. Nessa mesma época, o positivismo criminológico de Cesare Lombroso contribuía “cientificamente” para a identificação antropométrica do “homem delinquente”, sem perceber que, na verdade, ajudava a concretizar os preconceitos e a seletividade inerentes ao processo de criminalização. O labelling approach, já no século XX, partindo da matriz teórica do interacionismo simbólico, abandona a perspectiva etiológica do positivismo criminológico para questionar não as causas da criminalidade, mas os mecanismos do processo de criminalização, concluindo, então, que a criminalização rotula o indivíduo como criminoso, e que este, tendo adquirido este novo status, estaria mais propenso a cometer crimes. A criminologia crítica, porém, percebe resquícios de etiologia no labbeling approach e passa a encarar o delito não como um “comportamento”, mas como um “bem negativo”, desigualmente distribuído na sociedade, do mesmo modo como os bens positivos (riqueza, patrimônio etc.). A partir daí, abandona o conceito ontológico de crime, volta-se completamente para o processo de criminalização e passa a relacioná-lo com os efeitos da contradição capital/trabalho na sociedade capitalista. Por sua perspectiva, a criminalização é um instrumento de controle político das massas. A nova tecnologia para o reconhecimento é a biometria (impressão digital, íris etc.), que pode ser utilizada como autenticação – para confirmar se uma pessoa realmente é quem ela se diz ser –, e como filtragem – para detectar indivíduos em um grupo a partir de uma lista de procurados armazenada em um banco de dados. A biometria exemplifica como pode agir o poder na sociedade pós-industrial, não a partir da exclusão de certos indivíduos (modelo da lepra) ou da imposição de disciplinas (modelo da peste), mas a partir da filtragem de populações inteiras (sociedade de controle).

PARTE II: A SOCIEDADE DE CONTROLE

5. A sociedade de controle como restrição ao direito Atualmente, assim como as empresas estão substituindo as fábricas (Deleuze), as sociedades de controle estão substituindo as sociedades disciplinares. Estas remetem-se ao poder disciplinar do vigiar e punir, que atuava sobre o corpo, individualizando e tornando-o dócil a partir de uma sanção normalizadora. Já aquelas remetem-se ao biopoder, que atua sobre aspectos da vida, sobre a espécie, sobre os efeitos de massa próprios de uma população. Nestas, a norma é produzida pela coleta apurada das informações e pelo seu tratamento estatístico, que possibilita a filtragem de populações, baseadas no monitorar, registrar e reconhecer. Diferentemente da sociedade regida pelo poder do soberano, na qual este tinha o direito de fazer morrer e deixar viver os seus súditos, na sociedade de controle o biopoder é o poder de fazer viver e deixar morrer. Por meio de sua filtragem, aos mais “aptos” (partindo-se de uma metáfora evolucionista) são garantidas todas as suas necessidades, enquanto aos demais deixase morrer. Tal filtragem, portanto, é diferente da “exclusão”. As “células defeituosas” vão ser encaradas como inimigos que precisam ser neutralizados, pela perspectiva do direito penal do inimigo (Günther Jakobs), ou como homines sacri, segundo Giorgio Agamben, bem como o estado de direito passa a ser ameaçado pelo estado de exceção. Nessa conjuntura, a sociedade de controle passa a representar uma restrição ao direito, e este torna-se um empecilho para o exercício do biopoder. Dessa forma, o direito, que muitas vezes foi usado como ferramenta para legitimar o poder e manter a dominação de classe, vem se convertendo, paulatinamente, em um instrumento de limitação do biopoder e de resistência à hegemonia.

6. O direito como restrição à sociedade de controle A partir do desenvolvimento do discurso dos direitos fundamentais, surgem dois modelos de Direito Penal que se propõem a enxergá-lo como instrumento de limitação do poder: o garantismo, de Ferrajoli, e o inspirado na sociologia conflitivista, de Zaffaroni. Partindo da cisão entre ser e dever ser feita por Hume, e desenvolvida na filosofia do direito por Kelsen, Ferrajoli apresenta o seu garantismo juspositivista, segundo o qual os fins programáticos da pena não devem ser debatidos com base em constatações empíricas,

concluindo que essa possui uma função de proteção do mais fraco, seja ele a vítima, no momento do delito, ou o réu, no momento em que contra ele recai o poder punitivo. Trata-se, portanto, de uma teoria positiva da pena, fundada na ideia de prevenção geral negativa (a pena tem a função de prevenir delitos e a vingança). Zaffaroni, entretanto, atenta para o fato de que Ferrajoli não faz distinção entre poder punitivo e direito penal, o que é particularmente problemático, na medida em que, se o direito penal é um instrumento de limitação do poder estatal e, por conseguinte, uma garantia do réu, e possui como função a prevenção geral negativa, o que garantiria a vítima seria o poder punitivo do estado e não o direito penal, que é mero instrumento de limitação desse poder. Zaffaroni, por sua vez, baseia-se nas teorias conflitivistas do poder (Foucault), que se distanciam das teorias consensualistas (Rousseau, Locke), para propor que o direito penal deve levar em consideração uma concepção realista do poder, uma vez que o direito (dever ser) é fruto das lutas sociais (ser), logrando juntar novamente, dessa maneira, ser e dever ser a partir da sociologia do conflito (garantismo holístico).

Transparência e opacidade O uso das novas tecnologias de monitoração, registro e reconhecimento devem se dar de maneira equilibrada entre o estado e os cidadãos. A vigilância deve ser forte o suficiente para evitar ações indesejadas (crime, terrorismo etc.), mas não ao ponto de tornar totalitário o regime vigente. Partindo desse pressuposto, David Brin idealiza uma sociedade transparente, na qual a mesma tecnologia usada pelo estado para monitorar as pessoas deve também ser usada por estas para monitorar o estado. Do mesmo modo, nessa esteira, se o executivo da empresa lê os emails de seus funcionários, estes também podem ler os e-mails daquele. Todavia, Brin não percebe que os mecanismos de controle estão concentrados nas mãos dos poderosos, que hoje são os detentores da informação, de sorte que a transparência ainda é um ideal a ser alcançado. Atualmente, pelo contrário, os instrumentos de monitoração, registro e reconhecimento ainda estão a serviço do biopoder. Nessas circunstâncias, é preciso criar mecanismos que dificultem a filtragem biopolítica, ou seja, mecanismos que tornem opaca a transparência, como por exemplo com a expansão do uso da criptografia assimétrica, inclusive, pelo poder público. Por esta técnica, os dados de monitoração públicos seriam criptografados por uma chave pública e somente ao juiz seria dada a chave privada para descriptografá-los, procedimento que seria autorizado somente com base em decisão judicial fundamentada.

7. Princípios norteadores do direito à privacidade 7.1. Princípio do interesse público do direito à privacidade O direito à privacidade não é só um interesse individual, mas um fundamento do estado democrático de direito. Está associado à garantia à liberdade, na medida em que restringe o poder disciplinar, e à igualdade, na medida em que ameniza a filtragem realizada pelo biopoder. No Brasil, é mister a criação de uma autarquia, vinculada ao Ministério da Justiça, com a finalidade de proteger e fiscalizar o tratamento dispensado aos dados pessoais.

7.2. Princípio da ponderação da translucidez Por esse princípio, torna-se imprescindível que, para se cogitar a monitoração eletrônica em um espaço público, haja a relevante probabilidade de um dano a um bem jurídico de igual ou maior valor que a privacidade, como a vida e a integridade corporal. Em ambientes públicos, deve ser assegurado ao máximo o direito à livre manifestação de pensamento, que certamente se sobrepõe à proteção do patrimônio individual, justificativa esta sempre adotada para a implantação de monitoração eletrônica, ainda que se trate de proteger, geralmente, bens de baixo valor. Em ambientes particulares de acesso público, entretanto, como os shopping centers, a monitoração pode ser menos restritiva, já que não se exige que esses ambientes sejam palcos e abracem manifestações públicas. Em ambientes particulares institucionais (empresas, escolas etc.) a monitoração encerra uma verdadeira atividade do poder disciplinar e deve guardar máxima opacidade, com o uso da criptografia. No âmbito das residências, a monitoração deve ser livre, desde que não se exceda até os espaços públicos, para onde deverá ser requisitada uma autorização especial. Em todos os casos, será dever da autarquia zelar pelas autorizações e imposição de regras na monitoração e controle dos dados.

7.3. Princípio da opacidade privada Nas hipóteses em que a ponderação da translucidez permitir a monitoração, o responsável por esta só poderá ter acesso a seu conteúdo com base em decisão judicial fundamentada, o que é ora possível por meio da tecnologia da criptografia assimétrica.

Assim, o poder judiciário de determinada jurisdição terá acesso a uma chave privada que descriptografa quaisquer das imagens gravadas e criptografadas por chave pública, e possibilitará o acesso nos casos em que julgar necessário, em decisão fundamentada.

7.4. Princípio da confiabilidade dos registros criptografados As monitorações eletrônicas e os bancos de dados devem ter sua autenticidade e integridade resguardados, condições que se deve assegurar, também, com o uso da criptografia assimétrica. Com efeito, as gravações clandestinas são facilmente manipuláveis por meio de programas específicos, de sorte que o uso da criptografia por chave pública em dados obtidos por equipamentos devidamente habilitados na autarquia competente evita esse problema, pois, a partir do momento em que esses são criptografados, só podem ser descriptografados pela chave privada do judiciário. Por conseguinte, as provas obtidas por monitorações clandestinas deverão ser consideradas ilícitas, salvo quando se comprove seu caráter não intencional (por exemplo quando alguém, com um celular, está filmando um evento qualquer e presencia um delito), para que não se burle a necessidade de autorização.

7.5. Princípio da transparência pública O princípio da transparência pública veda qualquer monitoração eletrônica ou captura e armazenamento de dados pessoais de caráter secreto. Os ambientes monitorados devem estar devidamente sinalizados, indicando o ato administrativo que o autorizou. Do mesmo modo, os bancos de dados devem ser públicos (obviamente não o conteúdo dos dados), preferencialmente com página específica na internet, informando seus responsáveis legais, o tipo de informação armazenada, a finalidade do cadastro etc. (direito à informação), e as pessoas interessadas, mediante autenticação, devem ter acesso a seus dados que estiverem cadastrados (direito ao acesso), inclusive por meio de habeas data.

7.6. Princípio do amplo consentimento do registrado A monitoração eletrônica deve supor o consentimento do monitorado, ainda que tácito. É tácito, por exemplo, o consentimento do monitorado de ser filmado em um restaurante privado, desde que devidamente advertido. De maneira diversa, o registro de informações pessoais só pode ser realizado com o consentimento expresso do registrado, seja por meio de formulário assinado ou por meio do

sistema de duplo consentimento (quando, por exemplo, se autoriza uma determinada ação e, em seguida, se a autoriza novamente em outro ambiente, geralmente por e-mail).

7.7. Princípio da impessoalidade A monitoração deve ser impessoal, de tal forma que as câmeras de vigilância devem se focar em um espaço amplo e não em determinada pessoa. O uso do foco pelos agentes que operam tais aparelhos constitui rastreamento, e só deve ser permitido por decisão judicial fundamentada.

8. Conclusão A principal função da monitoração eletrônica na sociedade de controle é registrar informações para serem utilizadas posteriormente em um processo de reconhecimento e filtragem. Assim se exerce o biopoder: pela tríade monitorar-registrar-reconhecer. Para limitálo, então, é preciso recorrer ao direito à privacidade, fundado na tríade de direitos de não ser monitorado, não ser registrado e não ser reconhecido. Para o amplo exercício do direito à privacidade, é fundamental que aquele que monitora e registra não seja o mesmo que reconheça. Para tanto, é imprescindível o uso da tecnologia da criptografia assimétrica, a fim de se garantir a opacidade. Por outro lado, é preciso estimular o controle dos atos da administração pública pelos cidadãos por meio da publicação de toda e qualquer informação relevante na internet, com acesso irrestrito a qualquer interessado, com o fito de garantir a transparência. Sendo assim, “o Direito como instrumento de limitação do poder na sociedade de controle deve fundar-se em duas premissas fundamentais: a transparência pública, entendida como a máxima publicidade dos atos de interesse público, e a opacidade privada, entendida como a máxima confidenciabilidade dos atos da esfera privada”.

Belo Horizonte, 2017 Rafael Maciel Artuzo [email protected]

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