Retábulos de alvenaria com policromias no Norte Alentejo

June 8, 2017 | Autor: Patricia Monteiro | Categoria: Cultural Heritage Conservation, Lime mortars and plasters, Mural painting
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Retábulos de alvenaria com policromias no Norte Alentejo Patrícia Alexandra Rodrigues Monteiro1

Introdução A região do Alentejo preserva, ainda hoje, um considerável património artístico no qual a cal foi sempre um elemento-chave. Na verdade, a utilização deste material através dos séculos é o melhor testemunho de antigas técnicas decorativas, profundamente enraizadas na Península Ibérica. A grande versatilidade da cal quando combinada com diferentes agregados (areia, pigmentos, pó de mármore) possibilitou o desenvolvimento de diferentes técnicas que chegaram até aos nossos dias, desde a pintura mural, o esgrafito, as caiações e barramentos e, também, os trabalhos ornamentais em massas de cal e areia ou gesso (estuques). Estado da Arte O tema das argamassas (de cal e areia, ou de cal e gesso) tem sido explorado do ponto de vista técnico e material por profissionais ligados à arquitectura e à engenharia sendo importante, também, apresentar a perspectiva do historiador da Arte, até ao momento pouco sensível para um património em risco eminente de desaparecimento. Este tema foi já abordado em antigos tratados de arte tanto nacionais como estrangeiros. Distinguimos o Pintura Simples2, ou a Arte de hacer el estuco jaspeado3. A primeira obra é essencial para a questão das técnicas decorativas, sem esquecer as que envolvem a utilização de argamassas. Já a segunda, um século anterior, ensina qual o modo de construção de um retábulo de alvenaria, antes de ser estucado e pintado. Na actualidade encontramos trabalhos que abordaram exaustivamente os métodos de produção artística através do gesso e da cal 4, embora permaneçam lacunas, em concreto para a questão dos retábulos.

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Doutora em História da Arte pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Actualmente desenvolve um projecto de pós-doutoramento subordinado ao tema A engenhosa arte do engano: argamassas decorativas com policromias no Alentejo, séculos XVI-XVIII, financiado pela FCT (SFRH/BPD/103550/2014). É investigadora do CLEPUL e ARTIS-Instituto de História da Arte da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. 2 Liberato Telles, Pintura Simples. A decoração na construção Civil (t: I, Lisboa: Typografia do Commercio,1898). 3 Ramon Pasqual Diez, Arte de hacer el estuco jaspeado, ó de imitar los jaspes á poca costa, y con la mayor propiedad (Madrid: Imprenta Real, 1785). 4 Ignacio Gárate Rojas, Arte de los yesos. Yeserías y estucos (Madrid: Editorial Munilla –Lería, 1999); Ignacio Gárate Rojas, Artes de la cal (Madrid: Editorial Munilla-Lería, 2002).

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Em Portugal os estudos sobre as argamassas tradicionais incidem na sua função e comportamento enquanto revestimento dos edifícios históricos5 e, em menor grau, enquanto matéria per si do objecto artístico, salvo alguns casos de decorações na arquitectura popular algarvia6. O Alentejo foi, também, objecto de estudo de investigadores de distintas áreas que não só refutaram a imagem de uma região dominada pela brancura da cal7, como a distinguiram enquanto repositório de uma longa tradição de técnicas decorativas que valorizam o edificado8. Dentro desta lógica integra-se a pintura mural e o esgrafito, cuja diversidade em fachadas e interiores de edifícios foi analisada do ponto de vista técnico e estilístico9. O primeiro levantamento sistemático sobre argamassas decorativas foi realizado por Mónica Braga e Alexandra Charrua10 que inventariaram todos os ornamentos assinaláveis ao nível das fachadas nos distritos de Évora e de Portalegre. O inventário refere-se a esgrafitos e estuques, faltando clarificar conceitos, dada a especificidade de cada técnica. Os estudos relacionados com trabalhos ornamentais em coberturas ou em retábulos de alvenaria são muito mais escassos. Uma das obras a destacar é o retábulo da capela de Gaspar Fragoso (Portalegre), recuperado em 200811 e que deu origem a um estudo histórico, analítico e descritivo12. A raridade destas obras torna necessária a comparação com casos fora do país, como na Catalunha onde foi identificada a produção de altares em argamassas de estuque para o período medieval13 ou a Inglaterra onde, ainda hoje, esta tradição se preserva14. Em Portugal os estudos centraram-se quase em exclusivo no estuque e na sua evolução, com destaque para a região do Porto15 e, numa perspectiva de âmbito mais cronológico, para o período da segunda metade do século XVIII16. Argamassas decorativas com policromias A tradição de trabalhos ornamentais em argamassas à base de misturas de cal é muito forte no Alentejo. A sua presença é extensível a outras áreas dentro e fora dos edifícios, quer religiosos, como civis, na maioria das vezes associados a conjuntos murais. A vastidão dos trabalhos de argamassas ornamentais permite enquadrá-los em distintas categorias: 5 Maria do Rosário Veiga, “As argamassas na conservação” (actas das 1ªs Jornadas de Engenharia Civil da Universidade de Aveiro. Avaliação e Reabilitação das Construções existentes, Aveiro, 26 de Novembro, 2003. 6 Marta Santos, “Argamassas e Revestimentos”, Materiais, sistemas e técnicas de construção tradicional: Contributo para o estudo da arquitectura vernácula da região oriental da Serra do Caldeirão (CCDRAlg: Edições Afrontamento, 2008). 7 Milene Gil Duarte Casal, “A Conservação e Restauro da pintura mural nas fachadas alentejanas: estudo científico dos materiais e tecnologias antigas da cor” (Dissertação de Doutoramento, FCT, Universidade Nova de Lisboa, 2009). 8 José Manuel Aguiar Portela da Costa, “Estudos Cromáticos nas Intervenções de Conservação em Centros Históricos, Bases para a sua aplicação à realidade portuguesa” (Dissertação de Doutoramento, Universidade de Évora, 1999). 9 Sofia Salema, “O Corpus do Esgrafito no Alentejo e a sua Conservação: uma leitura sobre o ornamento na arquitectura” (Dissertação de Doutoramento, Faculdade de Arquitectura, Universidade de Lisboa, 2012). 10 Mónica Braga e Alexandra Charrua, “Argamassas decorativas nos distritos de Évora e de Portalegre, no Alentejo”, A Cidade de Évora: Boletim de Cultura da Câmara Municipal, 8 (2009): 501-71. 11 Igreja de S. Francisco de Portalegre, Valorização e estabilização do retábulo em massa da Capela Gaspar Fragoso, Relatório de intervenção realizada pela empresa In Situ, Conservação de Bens Culturais (Maio 2011). 12 Patrícia Monteiro “Polychrome coatings on a lime plaster altarpiece (1571): the Gaspar Fragoso chapel in Portalegre” (artigo apresentado nas jornadas do ICOM-CC, Tomar, Maio 2013). 13 Walter W. S. Cook, “A Stucco Altar Frontal from Betesa” Speculum, A Journal of Mediaeval Studies, XXXV, 3, Cambridge, Massachusetts, The Medieval Academy of America (1960), 394-00. 14 Trevor Proudfoot, “Decorative Lime Plaster”, The Building Conservation Directory http://www.buildingconservation.com/articles/limeplast/limeplast.htm, (2001), consultado 28 de Março, 2013. 15 Flórido de Vasconcelos, Os Estuques do Porto (Porto: Câmara Municipal, 1997). 16 Isabel Mayer Godinho Mendonça, Estuques Decorativos. A evolução das formas (séculos XVI a XIX), (Lisboa: Nova Terra, Principia, 2009).

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a) Coberturas, arcos triunfais e alçados Na grande maioria dos casos, os trabalhos de massa ou de estuque encontram-se ao nível das cimalhas, frisos, ou abóbadas com motivos em alto relevo com formas geométricas ou vegetalistas ou ainda descrevendo painéis que albergam depois pinturas murais. Estes trabalhos podem, também, ser pintados ou dourados. b) Ornamentos de exterior (fachadas e jardins) Os elementos decorativos presentes no exterior dos edifícios são parte integrante da própria arquitectura, seja no caso da arquitectura civil, como da religiosa, com programas e soluções decorativas muito diversificadas. Uma das situações em que os trabalhos de massas encontraram maior expressividade artística foi, precisamente, enquanto parte integrante dos equipamentos decorativos dos jardins particulares de solares ou palácios, muitas vezes associados a pinturas murais, embrechados ou azulejaria. c) Retábulos Por último, existe ainda hoje um número considerável de retábulos em argamassa sobre uma estrutura de tijolo ou mista, datáveis desde o século XVI até ao XIX. Estas obras apresentam-se enquanto dupla simulação: as argamassas modeladas reproduzem elementos arquitectónicos ou escultóricos; as policromias finais imitam materiais mais ricos (marmoreados, embutidos, talha dourada). Esta simbiose é particularmente conseguida no caso dos retábulos construídos com uma estrutura de tijolo e depois revestidos com este tipo de materiais e, finalmente, concluídos com camadas de revestimento polícromo. Retábulos com argamassas de cal e areia Para além da pintura mural remanescente em muitos dos seus concelhos, o Norte Alentejo conta também com um património considerável de trabalhos de massa e que devem ser integrados no conjunto mais amplo das designadas “artes da cal”. O gosto por este tipo de composições, de carácter essencialmente ornamental, foi transversal a diferentes épocas, existindo ainda hoje registos datáveis de finais do século XVI até finais do XVIII. A cidade de Portalegre é um excelente caso de estudo para a análise deste tipo de trabalhos, presentes na maioria dos grandes palácios espalhados pela cidade, não só em emolduramentos rocaille, mas em soluções mais modestas ao nível dos cunhais dos edifícios, das janelas ou das cornijas. Levado ao extremo, este trabalho da argamassa pode revelar casos de grande apuramento técnico e inegável efeito estético, de que é exemploo caso paradigmático da Casa do Governador, na pequena localidade de Ouguela, concelho de Campo Maior. Estudos recentes têm vindo a refutar a ideia do Alentejo enquanto região dominada pelo branco absoluto da cal17. O Norte e Nordeste Alentejano não fogem, também, à mesma lógica, considerando a variedade de soluções decorativas (com ou sem policromia) ainda existentes no exterior e no interior dos edifícios.

17 Costa, “Estudos Cromáticos nas Intervenções de Conservação em Centros Históricos, Bases para a sua aplicação à realidade portuguesa”. Para um aprofundamento desta temática na sua vertente material veja-se Casal, “A Conservação e Restauro da pintura mural nas fachadas alentejanas: estudo científico dos materiais e tecnologias antigas da cor”.

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O Norte do Alentejo conta ainda com uma outra categoria de trabalhos em argamassa de cal e areia, desta feita os retábulos com revestimentos polícromos de acabamento frequentemente executados sobre as alvenarias de cal e areia ou estuque. Não dispomos de nenhum documento que esclareça a questão da mão-de-obra envolvida na execução de retábulos de argamassa de cal e areia ou estuque, mas a sua multiplicação desde, pelo menos, o século XVI, dá conta de um gosto muito particular nesta região, porventura mais forte ainda que a pintura mural no sentido mais estrito do termo. Os revestimentos polícromos de alvenarias, na sua vertente de suporte tridimensional, foram, na realidade, uma técnica com grande expressão ao nível da região em causa, factor a ter em conta para a sua especificidade, com testemunhos onde esta técnica chegou a atingir altos níveis de refinamento. Sujeitos a caiações sistemáticas ou a repintes de má qualidade, este património permanece actualmente muito alterado, com perdas graves das suas características formais. Como exemplo, lembramos a igreja matriz de Fronteira, cujos altares laterais da nave, em estuque, se encontram hoje completamente caiados de branco quando, a avaliar por outros casos no mesmo edifício, deveriam ter decorações de marmoreados fingidos. Também a igreja de S. João Baptista, em Monforte, sofreu uma intervenção em período não especificado, durante o qual os seus altares foram caiados e repintados. Apesar de todas as vicissitudes sofridas, muitas destas peças sobreviveram até aos nossos dias, dando provas da grande qualidade e mestria da mão-se-obra presente na região do Norte Alentejo durante os séculos XVI-XVIII, fosse ela local ou não. A história dos retábulos em alvenaria de cal e areia com revestimentos polícromos acompanhou, naturalmente, a própria evolução da retabulística nacional, nas suas modalidades de talha ou mármore, reproduzindo ambas. O primeiro capítulo desta longa fortuna histórica inicia-se, em Portalegre, com o extraordinário retábulo quinhentista, dito de Gaspar Fragoso, e terá a sua conclusão com os retábulos já de inspiração neo-clássica, presentes em vários concelhos como o Crato (igreja do convento de Santo António), Monforte (igreja de S. João Baptista), Arronches (ermida de S. Bartolomeu) e, também, Fronteira (igreja matriz de Nossa Senhora da Atalaia), estes já do século XIX. O retábulo da capela de Gaspar Fragoso Um dos pontos de maior interesse na igreja do convento de S. Francisco de Portalegre é a chamada “capela de Gaspar Fragoso”. A qualidade do retábulo que se encontra nesta capela, bem como a sua raridade em contexto local, tornam-no digno de registo. De acordo com o Tombo do Convento de S. Francisco de Portalegre (1721), existia na igreja do convento uma capela dedicada a Santa Catarina instituída pelo Padre Domingos Fernandes Fragoso, ainda no reinado de D. Dinis18. A capela, assim como outros bens e propriedades, fazia parte do Morgado dos Fragoso, o mais antigo da cidade de Portalegre. Nela viria a ser construído, já na segunda metade do século XVI, o túmulo do cavaleiro fidalgo Gaspar Fragoso, juiz dos órfãos da cidade de Portalegre (1560) 19, associado a um retábulo de argamassa outrora também pintado (Fig. 1). 18

A.D.P., Convento de S. Francisco, Tombo das Capelas do Convento (1721-1820), Cx.02, CVSFPTG/Lv.01., fl. 99. Patrícia Monteiro, “A pintura mural no Norte Alentejo (séculos XVI-XVIII). Núcleos temáticos da Serra de S. Mamede” (Dissertação de Doutoramento apresentado à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2008) 57-58. 19

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Fig. 1 – Retábulo da capela de Gaspar Fragoso, convento de S. Francisco de Portalegre, 1571. (Fotografia da autora)

Fragoso encontra-se retratado através do seu jacente, sobre a arca tumular em mármore branco, trajando uma armadura, com a espada colocada do seu lado esquerdo, as mãos em posição orante e tendo, aos pés, um leão. A pose do sepultado, associada à sua indumentária, deve ser considerada como um arcaísmo, uma associação à tumulária medieval, uma vez que Gaspar Fragoso morreu já em 1571 e não se conhecem outros túmulos semelhantes existentes na região. Luís Keil chamou a atenção para o interesse desta capela, lamentando o péssimo estado de conservação em que a encontrou, ainda nos anos 40 do século XX. Parte do seu interesse devia-se ao facto de ser possível encontrar neste mesmo local alguns elementos pertencentes ainda à fundação primitiva do convento, como o arco quebrado da entrada e os dois arcossólios geminados da parede do lado direito. O outro motivo foi a presença do retábulo da parede fundeira e que Keil confundiu com um retábulo construído em pedra calcária, de inspiração directa em exemplares do Renascimento coimbrão20.

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Luís Keil, Inventário Artístico do Distrito de Portalegre (Lisboa: Academia de Belas Artes, 1943), 130.

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O retábulo desenvolve-se a toda a altura da parede fundeira da capela, exceptuando cerca de 160cm de altura a partir do chão, espaço ocupado pela bancada de altar, fruto de um acrescento posterior. Durante as intervenções de conservação e restauro levadas a cabo pela empresa In Situ (2008) realizaram-se diversas medições quer ao retábulo, quer à arca tumular, concluindo-se ser bastante provável que, originalmente, esta se encontrasse sob o retábulo, onde hoje está a bancada de altar. Essa disposição estaria, aliás, mais conforme com outros túmulos com jacentes associados a retábulos, de entre os quais o exemplo mais próximo (e também o mais celebrado pela sua qualidade artística) é o do bispo D. Jorge de Melo, situado no convento de S. Bernardo da cidade e atribuído ao famoso mestre escultor e imaginário de origem francesa, Nicolau de Chanterene, que permaneceu em Portugal entre 1517-155121. O jacente de Gaspar Fragoso está, no entanto, muito distante do léxico ornamental de Chanterene e do túmulo de D. Jorge de Melo, quer pelas claras diferenças ao nível do trabalho escultórico, quer pelo enquadramento mental associado ao mesmo e que reflecte divergentes níveis de erudição. A existir algum paralelo entre as duas obras será, exclusivamente, de natureza evocativa da memória do sepultado, uma vez que, no caso da capela de S. Francisco, não se lhe conhece outra função para além do uso funerário, restrito aos Fragoso. Os trabalhos de conservação permitiram, também, concluir que a edícula que alberga hoje a arca tumular está apenas encostada às paredes esquerda e fundeira da capela, cobrindo uma das pilastras do retábulo. O próprio túmulo foi parcialmente truncado nas extremidades para melhor se poder adaptar ao espaço onde hoje se encontra. Desconhece-se em que altura terá sido realizada esta deslocação da arca tumular, mas é possível que tenha ocorrido após uma alteração de natureza litúrgica dentro da capela. Seguindo a tipologia dos retábulos em talha do primeiro Maneirismo, esta peça apresenta uma grande linearidade, desenvolvendo-se em três registos de painéis rectangulares, intercalados por pilastras e frisos salientes decorados com motivos de grotesco e querubins. O retábulo foi construído numa argamassa de cal e areia, com um acabamento mais fino, ao qual foi aplicado um polimento final que uniformizou toda superfície. Não foram encontradas marcas de moldes ao longo da peça, pelo que ainda não é claro qual o método utilizado para a sua construcção. Por outro lado, é possível que algumas áreas (nomeadamente as figuras de maiores dimensões e em alto-relevo) possam ter sido modeladas directamente na parede, sobre uma estrutura mista. No decurso dos trabalhos de conservação e restauro foi descoberta uma data – “1571” – gravada numa das pilastras e coincidente com a morte do encomendante. Em vários pontos desta peça são ainda hoje observáveis vestígios de, pelo menos, dois revestimentos polícromos os quais, de acordo com o relatório da intervenção aqui realizada, serão posteriores à execução do retábulo22. Um dos indícios que confirma esta tese é o facto da pintura se encontrar sobre a data incisa, cobrindo-a totalmente. Caiações sucessivas e intervenções ulteriores, realizadas em época indeterminada, contribuíram para desvirtuar as formas primitivas deste retábulo, cujas imagens foram perdendo a definição. Ao mesmo tempo, os revestimentos polícromos foram-se perdendo, restando hoje 21

Luís Keil refere que o túmulo do D. Jorge de Melo (morto em 1548) podia ser de Nicolau Chanterene, um avez que esteve em Évora entre 1535 e 1540, executando os túmulos de D. Francisco de Melo (1536), D. Álvaro da Costa e D. Afonso de Portugal (1540). 22 Cf. Igreja de S. Francisco de Portalegre, Valorização e estabilização do retábulo em massa da Capela Gaspar Fragoso, Relatório Final apresentado pela empresa In Situ, Conservação de Bens Culturais, Lda, Maio de 2011.

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em dia apenas vestígios que não nos permitem uma leitura definitiva do aspecto original desta peça. Sabemos que mesmo as composições construídas com pedra de ançã e mármore também foram alvo de intervenções de policromia e de douramentos, muitas delas removidas durante campanhas de restauro já no século XX. Ainda permanecem, no entanto, exemplares quinhentistas em pedra de ançã que permitem compreender qual o aspecto destas peças quando integralmente policromadas e douradas. As peças remanescentes situam-se, sobretudo, na região de Coimbra (onde esta tradição foi mais forte), mas também em Travanca (retábulo da capela do Espírito Santo atribuído ao escultor João de Ruão), Leiria (retábulo da capela dos Santos Brancos, na igreja de Nossa Senhora da Luz de cerca 157023), Tentúgal (retábulo da igreja da Misericórdia, do mestre coimbrão Tomé Velho, realizado entre 1595 e 159624), ou ainda Abrantes (igrejas de S. João Baptista ou S. Vicente25). Ao simular o trabalho da pedra de ançã, o retábulo da capela de Gaspar Fragoso seguiu, também, o mesmo gosto pelos revestimentos polícromos que lhe estiveram, tantas vezes, associados. O facto de este retábulo ter sido confundido com esculturas em pedra calcária, comprova o potencial ilusório do trabalho em massa continuando a cumprir com a sua função passados séculos. Em termos formais temos um retábulo dividido em três registos, definidos por pilastras, com grandes painéis de figuras em alto-relevo, com algumas subtilezas de cariz mais realista na modelação dos volumes que não se perderam totalmente, apesar do excesso de caiações. Começando de baixo para cima, vemos, do lado esquerdo um santo bispo, muito provavelmente Santo Agostinho e, do lado direito, S. Jerónimo, penitente no deserto, acompanhado por um leão. As duas imagens ladeiam um nicho central onde se destaca uma carranca envolta em ferroneries, evocação do formulário decorativo dos grottesche. O segundo registo é marcado, ao centro, por uma Pietá. A composição é em tudo semelhante a uma outra, em mármore pintado e dourado, que se encontra hoje na igreja do convento de S. Bernardo de Portalegre, mas que pertenceu originalmente à capela colateral do lado do Evangelho, da igreja de S. Francisco, outrora dedicada a Nossa Senhora da Piedade, renovada em 1567, por André de Sousa Tavares, seu filho 26. A escultura em mármore datará, muito provavelmente, das campanhas de renovação da capela sendo, portanto, contemporânea do retábulo da capela de Gaspar Fragoso, e servindo-lhe, ao mesmo tempo, de modelo de inspiração. A Pietá está integrada entre o painel com a Virgem Maria (à esquerda) e o Anjo Gabriel (à direita) que compõe a cena da Anunciação. No segundo registo estão, assim, representados, o primeiro e o último momento da vida terrena de Cristo.

23 Saul António Gomes, “Oficinas artísticas no Bispado de Leiria nos séculos XV a XVIII” (Actas do VI Simpósio LusoEspanhol de História da Arte, 1996) 269. 24 Pedro Dias, “A Oficina de Tomé Velho, construtor e escultor do Maneirismo Coimbrão” (Actas do VI Simpósio LusoEspanhol de História da Arte, 1996), 27. 25 Ana Cristina Paredes Cardoso, “Contributos para o estudo do retábulo de Abrantes, Constância e Sardoal, séculos XVI e XVIII” (Tese de Mestrado em História da Arte, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade do Algarve, 2008) 50-61. 26 Luís Keil, Inventário Artístico do Distrito de Portalegre, 130. Domingos Bucho, “Domingos, Igreja do Convento de São Francisco/Fábrica Robinson”, Monumentos, Instituto de Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU), Inventário do Património Arquitectónico (IPA), n.º IPA PT041214090011, consultado a 11 de Maio de 2009, http://www.monumentos.pt/Site/APP_PagesUser/SIPA.aspx?id=6564.

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No frontão do retábulo vemos, ao centro, um painel que integra a única fenestração da capela, em arco quebrado, ladeada por volutas onde se apoiam atalantes tocando trombetas. Por cima, inserido num painel semicircular, está Deus Pai, presidindo a toda a composição, enquanto é ladeado, também, por dois anjos músicos. A relevância histórica e artística deste retábulo em argamassa tem passado quase desapercebida e apenas em 2011 conseguiu alguma revalorização, após a recuperação da igreja de S. Francisco promovida pela Fundação Robinson. Retábulos barrocos e neo-clássicos Enquanto o retábulo da capela de Gaspar Fragoso permanece como caso absolutamente ímpar em toda a região do Norte Alentejo, multiplicam-se os exemplares do século XVIII, não só com acabamentos polícromos, mas também com douramentos. O número de exemplares dispersos por igrejas e capelas constitui uma categoria de difícil caracterização do ponto de vista autoral. Ao longo da documentação consultada não foi encontrado, até ao momento, qualquer dado que nos elucide quanto a autorias, datações ou modos de construção dos retábulos que chegaram até aos nossos dias. As características técnicas que estas peças apresentam, e respectivos acabamentos, sugerem um trabalho realizado num meio colectivo, em primeiro lugar por alvanéis (classe profissional muito heterogénea), escultores e, posteriormente, por pintores-douradores, tal como sucedia para os retábulos em talha. Recordamos aqui um exemplo de uma parceria para um retábulo de talha dourada entre o pintor António Soeiro da Silva e o escultor André Ferreira no retábulo-mor da igreja de S. João Baptista, em Castelo de Vide, a 2 de Setembro de 168127. Nesta obra foi pedido ao pintor que dourasse o retábulo e pintasse os painéis com os temas que lhe ordenassem “(…) e somente os pedrestais da altura do altar da dita capella serão pintados de pedraria falsa (…)”. Aos pintores-douradores estava, assim, atribuída a tarefa dos fingimentos de pedra que executavam consoante a sua habilidade, tal como o faziam para a pintura de tectos. No contrato assinado em 1748 entre o dourador portalegrense José da Silva e os irmãos da igreja da Ordem Terceira de Monforte a especificidade do fingimento a executar é ainda mais evidente. A escritura estabelece que o retábulo da igreja deveria ser dourado e “(…) fingido de Pedra com a cor de Madre perola (…)”28 o que sugere um tratamento preferencial dado a determinados materiais na valorização global da obra a executar. Um dos exemplares mais impressionantes, não só pelas suas dimensões, mas também pela qualidade dos revestimentos pictóricos é o retábulo-mor da igreja do convento da Conceição, em Olivença. O retábulo datará ainda das primeiras décadas do século XVIII, em pleno período do barroco joanino, de sentido italianizante, obra mais arquitectónica que escultórica. As colunas torsas que ladeiam a boca da tribuna assentam em grandes mísulas envolutadas e as policromias simulam, ainda hoje, com grande eficácia, trabalhos em mármore negro (nas colunas, simalhas, frontão e molduras dos alçados), branco (no arco do retábulo e

27 A.D.P., Cartórios Notariais de Castelo de Vide, Escritura de contrato de douramento do altar-mor da Igreja de São João Baptista de Castelo de Vide com o pintor António Soeiro da Silva e o escultor André Ferreira, CNCVD01/001, Cx. 19, Liv. 70, 2 de Setembro de 1681, fls. 40-41v. 28 A.D.P., Cartórios Notariais de Monforte, Escritura de contrato entre os irmãos da Igreja da Ordem Terceira da Penitência, de Monforte, e o dourador José da Silva, morador em Portalegre, CNMFT02/001/Cx 9, Liv. 13, 29 de Outubro de 1748, fls. 96v.98. (Inédito)

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em elementos decorativos do frontão) e rosa (mísulas e capitéis). O frontão contracurvado exibe, ao centro, o brasão de armas de Portugal, também com policromia (Fig. 2). O caso oliventino contrasta com outros retábulos que, estando construídos com os mesmos materiais, apresentam já uma linguagem estética marcadamente mais popular. O conjunto de retábulos da igreja de S. João Baptista, em Monforte, e a ermida de S. Mamede (Fig. 3), em Portalegre, são bons exemplos do que acabamos de referir, muito embora os repintes a que foram sujeitos não contribuam em nada para a sua valorização. Em ambos edifícios, a arquitectura retabular data já da segunda metade do século XVIII, possivelmente do reinado de D. José I (1750-1777). Para além dos retábulos propriamente ditos, nota-se, também, um crescendo na decoração de flores e ramagens em estuques pintados. A pintura associada a este tipo de retábulos e alçados onde estão integrados também é distinta. Os marmoreados são agora representados recorrendo técnicas mais expeditas, como os “esponjados”, frequentemente acompanhados por “estampilhados” com motivos florais. A paleta cromática torna-se mais variada mas, ao mesmo tempo, menos realista.

Fig. 2 (esq.) e 3 (dir.) – Retábulo do convento de N.ª Sr.ª da Conceição (pormenor), Olivença, 1.ª metade do século XVIII; Retábulo da ermida de S. Mamede, Reguengo, Portalegre, 2.ª metade do século XVIII. (Fotografias da autora)

Ainda em Monforte, o exemplo mais perfeito da simulação de elementos pétreos através da pintura mural encontra-se na igreja de Nossa Senhora da Conceição, nos dois retábulos colaterais, em ângulo, ladeando o arco triunfal. Os retábulos executados na década de 17601770 reproduzem fielmente o retábulo do altar-mor, este sim, em mármore branco e negro, e a simulação seria perfeita, não fossem algumas lacunas e fissuras a denunciar a sua estrutura mais pobre.

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Conclusão O grande número de retábulos dos séculos XVII e XVIII dispersos pelo Norte Alentejo constitui um vasto património digno de registo, embora bastante heterogéneo, não só do ponto de vista artístico, mas também pelo facto de a sua mão-de-obra se manter anónima. Apesar disso é inegável o extraordinário potencial ilusório das pastas moldáveis usadas para simular outros materiais (como a pedra calcária, o mármore, ou a talha). Neste contexto, o retábulo de Gaspar Fragoso destaca-se como exemplar único, com relevância histórica e artística em todo o Norte Alentejo. Este poderá bem ser o primeiro capítulo de um longo historial de obras semelhantes e que terminaria já no século XIX. No entanto, mesmo com distintos níveis de erudição todos estes retábulos partilhavam o mesmo propósito: dignificar a memória dos seus encomendantes por toda a eternidade. Muito embora a nossa perspectiva seja, acima de tudo, a da História da Arte, devemos sublinhar que o avanço do conhecimento sobre os retábulos de argamassa só será possível através da colaboração de outras áreas do conhecimento científico, no sentido de alcançar conclusões sólidas sobre este património e os seus materiais constituintes.

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