Retalhos. Diário de Viagem Oriente Médio à Índia

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Retalhos Mo Maie

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Sinopse Um diário de viagem. De bordo. Um emaranhado de emoções e memórias. Uma “tentativa” de sintetizar uma viagem-delírio, surpreendente, inesperada. Digo “tentativa” porque o registro nunca alcança a plenitude do momento, o sentimento sentido, a idéia pensada, ainda mais em se tratando de um registro poético, que não almeja alcançar o real, muito pelo contrário, aliás ... Um diário de viagens. Idéias costuradas como se fossem trocinhos de panos. Retalhos rotos, porém bonitos, descoloridos e colorados, mofados, mas cheirosos, opacos e brilhantes... E todos juntos, costurados, retalhos que formam uma colcha infinita de lindas e angustiantes contradições. Entre mundos de fora e mundos de dentro. De antes, de agora, de depois... Do aconchego da conhecida cultura ocidental ao complexo mundo do oriente. Pelos caminhos de terra, observar as nuances cromáticas desses mundos que se tocam, se chocam, se roçam, se amam e se destroem. Europa e Ásia. Impérios do agora e do antes. Visitar os mistérios do tempo. O que se conserva e o que se deteriora. O que evolui e o que se estanca. O que se retrai e o que expande. Visitar os mistérios dos gêneros. O feminino e o masculino. O lunar e o solar. Direitos e obrigações. A insurreição e a submissão. O novo e o secular. Visitar os mistérios da fé. O humano e o divino. O provável e o improvável. A terra e os céus. Fanatismo x máquina. O transe e a ciência. Ásia. Um mundo tão denso e paradoxal que muitas vezes pode chegar a ser impenetrável. Abominável. Mas que nunca deixa de exercer fascínio e sedução.

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::: redemoinhos O que haverá de humano em um tijolo? E na eletricidade? Pelo caminho, só o céu não tem cor de barro. E o véu da mulher que puxa o burro. Três chaminés de fábricas de tijolos. Sete pequenos redemoinhos de vento e de pó. O burro, a mulher e as pilhas de tijolos de barro. Um menino deitado preguiçosamente em um carrinho de mão. (Como nasce um furacão?) Mãos que plantam árvores no deserto... Tudo aqui é de uma só cor. Menos o trem que passa. É deserto, mas já não faz tanto calor nessa época do ano... (Antes de qualquer coisa: as ruínas da Babilônia estão soterradas em algum canto do Iraque.) Mais de 60 chaminés e alguns pequenos protótipos de furacões. Qualquer coisa de delírio tem essa imagem. Qualquer coisa de abandono. Versos de barro. Como se cada tijolo fosse uma palavra de uma língua estrangeira. E um cemitério com lápides que são pedaços de pedras metidos na terra. A mão que fez tanto tijolo na vida e que agora descansa anônima e 4

em paz num cemitério de barro. O trem apita sem parar. Balochistão. Paquistão. É a estação de Queta... ::: caminhos Escrevo porque estou aqui e porque faz calor. Tenho os pés cravados na terra, terra quente, infértil - terra arenosa. É aqui que estou e só por isso que escrevo, pra tentar enganar o calor e a saudade. Barcelona. Calle de la Argenteria. Bruxas. Profetas. Andarilhos enlouquecidos. Vagabundos. Um cachorro de três patas. A cidade de fora pra dentro entrando obscena em toda a extensão da espinha dorsal e eu tentando atravessar a rua. Espero abrir o semáforo, que tá vermelho. Sinto o perfume bom da menina que passa por mim. Pelo Passeio do Borne, uma mulher paquistanesa vende cerveja com medo da polícia enquanto seu marido conserva suas banhas estáticas num banco qualquer desse passeio que em outros tempos foi testemunha silenciosa de cavalgadas medievais. Do outro lado da igreja gótica me conta um anjo caído que muitos anarquistas foram assassinados aqui mesmo, nessas escadarias. Por aqui passa o caminho de Santiago, caminho que começa nos morros de Santa Tereza no Rio de Janeiro, atravessa a porta do bar de um espanhol galego (o Seu Santiago) e chega à Espanha. Calle de la Argenteria. Por aqui passou Dom Quixote... Será que foi aqui que ele caiu no ridículo, que foi humilhado? Será que foi aqui que riram da cara dele? 5

Um negro senegalês passa correndo por uma estreita rua perdida no labirinto do bairro, correndo da polícia, que tem ordens para apreender o que vendem ilegalmente os vendedores ambulantes clandestinos. Aqui não tem lugar pra camelô. Calle de la Argenteria. Por aqui passa o caminho de Santiago de Compostela, tá vendo ali no chão aquela concha pintada de amarelo? É o sinal do caminho. Por esse caminho quantos caminhos passaram, passarinhos, passarão? Do lado de lá da rua é onde a cada noite os paquistaneses e africanos estendem seus panos no chão para vender lenços e bolsas de grifes falsificadas. Do lado de cá da rua, estão os artesãos. Vendem bijuterias e são latino americanos, trazem de longe pedras poderosas e cânticos pra Iemanjá, que dizem que nasceu numa montanha da Venezuela. Um pinheiro roubado do jardim labirinto da cidade.Um pedaço de música, um fio de pano, linha, botão, tesoura. Cortar o trigo e costurar o pão. Com quantos paradigmas se faz um sonho, um sonho de pó de café detergente sofá mesa? Onde é que começa esse caminho? Quando é que é esse caminho? Cor ou pó? Convite ao caminhar? Ao fugir? Chamado pra navegar nesse rio sem água? Corda bamba estendida entre o lugar onde a gente estava e o pra onde a gente está indo? Caminho é fluxo? Refluxo? Quando foi que começou o caminho? Será que algum dia desses o caminho vai ter fim? ::: no chão Os pés na estrada. Na beira da estrada. Chão tapete multi-direcional. Dedo no ar pra pedir carona. Posto de gasolina. Pão com queijo. 6

Motoristas de caminhões e suas histórias de estradas pelo mundo afora, suas manias de homens solitários. Motoristas de caminhão, seus mapas, maços de cigarro e a foto de algum filho colada no vidro da frente. Da janela de um hotel barato perdido pelo sul croata, um casal de alemães acaba de se levantar. É cedo. Acordar depois de uma noite num pequeno posto de segurança de uma fábrica na periferia da vila que faz fronteira com a Bósnia. Uma dessas típicas cidadezinhas do sul croata, com um rio verde e casas construídas às margens do rio. Casas construídas montanhas acima. Montanhas de pedras. Gente com mãos de pedra. Trajeto bonito pela costa croata até chegar aqui, na fronteira com a Bósnia. Mar Adriático azul, pedregoso e essa estranha sensação de transição entre as muitas Europas, do Oeste e do Leste. A decoração das pizzarias muda de estilo. Dormir uns dias na casa de um casal de músicos que nos deu carona e nos convidou a passar a noite em sua bonita casa; dormir uns dias pela estrada mesmo. E chegar aqui de carona num Renault antigo conduzido por um bósnio calado, com quem era possível conversar apenas com gestos e olhares. Homem com cara e mãos de montanhas de pedras, com um olhar azul marcado, jeans e uma tatuagem de marinheiro no braço. Zoran que nos levaria a Sarajevo se no mundo não existissem fronteiras. Se eu não fosse brasileira. Se meu passaporte não tivesse sido negado por um guarda muito nervoso na fronteira bósnica. Se, se, se, se...

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Baixo um sol escaldante, palavras gritadas numa língua ininteligível, resultado brusco de tantas guerras, que transformam homens em militares e militares em montanhas de pedras. Parece que por aqui todos têm feridas que ainda não cicatrizaram. E muitas lágrimas secaram e viraram pedras. Raiva, calor, fome. Agora, voltar à Zagreb, quase no norte total do país, para pegar o visto, mal necessário para passar pela maioria dos países balcânicos. Seguir caminho com a boca seca e a mochila pesada. É quando do nada aparece o segurança de uma fábrica que oferece seu cubículo para esticarmos os ossos depois de um longo dia de caronas... Que sorte, pois quando o bom louco nos trouxe um pouco da comida que tinha sobrado da festa de casamento no salão de festas ao lado, lá fora chovia... Pela manhã bem cedo, partir outra vez. Um carro nos deixa em um vilarejo no fim do mundo, onde um casal de alemãs se oferece para levarnos em seu carro branco. Assistentes sociais que nos falam sobre os tempos em que eram jovens e que viajavam de carona pela Europa. E do fim do mundo chegamos a Zagreb, em poucas paradas. Às vezes viajar de carona tem dessas coisas - o menos provável sempre está a ponto de acontecer... e acontece. ::: balcão Zagreb... Sua decadência e seu charme. Bondinhos comunistas; estátuas comunistas; jardins comunistas; (e um McDonald´s na esquina da praça central); vitrines com roupas comunistas de outros tempos; viúvas de maridos comunistas com olhos lacrimosos vestidas de negro 8

vendendo rosas, bananas, bordados de crochê; lojas underground de música subversiva; garotas vestidas de rosa choque andando de patins de quatro rodas. Tudo aqui parece te fazer pensar no tempo e em utopias. Os ideais do ontem e a crua realidade do hoje. As novas aberturas, os novos tratados, o capital e o relógio de alguma praça que simplesmente parou às 3 horas de alguma manhã ou tarde ou noite e nunca mais voltou a funcionar... O prédio suntuoso e sua parede descascada, quase caindo aos pedaços; as marcas das metralhadoras na parede das igrejas - guerras balcânicas; as igrejas e uma sala de encontros secretos do partido vermelho; o menino louro dos olhos azuis e sua cara suja, pedindo uma moeda pelas mesas de bar e fumando guimba de cigarro escondido do outro lado da esquina... Na manhã seguinte, de uma embaixada a outra, nosso ritmo é frenético e ansioso. Os vistos para entrar em todos os países balcânicos demoram vinte dias para chegar a Zagreb... Na embaixada turca, o cônsul me pergunta se no Brasil todas as mulheres são tão lindas quanto a Escrava Isaura da novela. É... Se os países balcânicos estão bloqueados, o jeito é voar diretamente a Istambul e experimentar a tão famosa hospitalidade turca, assim dizem? E é aqui onde estou agora, na casa do Denis e do Inan. Com um mapa nas mãos, tento explicar que venho de Barcelona com Jávi, meu amigo espanhol. Viajamos de carona, muitas vezes com caminhoneiros. Espanha, sul da França, norte da Itália, Eslovênia, Croácia, de onde eu peguei um avião. E enquanto eu tô aqui nessa sala, Jávi deve estar perdido em algum lugar da Bósnia, da Sérvia ou da Bulgária. Aí ele vai chegar a 9

Istambul e nós vamos continuar a viagem até a Síria. Vamos passar pelo Iran, pelo Paquistão, Índia e depois fazer o mesmo trajeto de volta à Europa... Inan e Denis se espantam. Pra que ir ao Paquistão? Pra que ir à Índia? Lá as pessoas são muito pobres… Lá não é bonito, é tão perigoso... É terra de terroristas……. ::: azeitona preta Os muçulmanos sunitas cantam uma bonita oração a seu Deus Allah cinco vezes ao dia. Se o sol nasce, ao meio dia, se é de tarde, se é crepúsculo e se é de noite. É de Istambul que trago a primeira vez que escutei arrepiada esse bonito canto-oração que ecoa unânime pelos alto-falantes das mesquitas da cidade... Nesse pequeno apartamento istambulino onde agora vivo com Denis e Inan, a televisão está sempre ligada. Programas de comédia turca, videoclipes, novelas. Uma foto do elegante Kemal Atatürk na parede, o homem que fundou a república turca e ocidentalizou o país. Chá, pão com azeitona preta, queijo e especiarias. A comida sempre é servida na mesa, em cima do jornal do dia, que depois vai pro lixo com toda a sujeira. Inan e Denis me mostram fotos de seus times de futebol e da base militar onde estiveram fazendo treinamentos obrigatórios nos últimos seis meses, no sul do país.

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Lembro que alguém já falou que o turco é língua de outros céus. Impenetrável. Ligeira. A tevê continua ligada e eles agora confabulam, tentando adivinhar o que escrevo sobre eles. Em vão. Porque pra eles o português é tão distante quanto pra mim é o turco, essa língua intocável. Absolutamente inatingível. Estou nesse pequeno apartamento de subsolo há três dias. Segunda-feira, bêbada com Jávi na praça principal de Zagreb não tinha noção do que me aconteceria quando chegasse a Istambul, não imaginaria nunca que no metrô que liga o aeroporto ao centro da cidade conheceria Inan, que, em resposta à minha pergunta sobre um hotel barato, me convidaria a passar a noite no seu apê. E aqui é onde estou. E a tevê continua ligada. ::: constante polis Agora o tempo é de tomar chás e se espantar com o esplendor esquecido dessa cidade que guarda em seus cantos e pontes delírios caprichosos de antigos imperadores. No ar, tudo são vestígios. De eras de pedra e cobre. De bronze. Guerras de Tróia. Rei Midas. Helenas. Sofias. Alexandres. Terremotos. Pergamundos. Bizantinos. Constantinos. Maremotos. Cruzadas. Otomanos. Enchentes. Incêndios. Furacões. Istambul, Bizâncio, Constantinopla já sobreviveu a todas as catástrofes do mundo. Istambul, Constantinopla, Bizâncio, coração de três dos maiores impérios da História: o romano, o bizantino e o otomano... A grande Polis, o centro do antigo mundo grego, a mais maravilhosa cidade da terra, berço de muitas das nuances da cultura européia. Enquanto Paris era apenas uma favela medieval,

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em Constantinopla os cidadãos falavam de filosofia, comiam com talheres, construíam templos belíssimos para seus deuses e uma muralha tão forte e resistente que defendeu a Polis de inúmeras tentativas de invasão no passado. Todos que passaram por aqui quiseram roubar alguma coisa, mas a matéria fundamental desse lugar ninguém nunca conseguiu levar. É em Istambul onde acontece essa fulminante pororoca continental - confluência de águas ocidentais e orientais. Mármora e Negro. Tudo filtrado pelo estreito de Bósforo. E por uma semana vou com Denis e Inan pelo bairro, pela cidade, mesquitas, fotos, museus, padarias, casas de chás, fotos, praças, pontes, fontes, fotos, hamans, passeios, casa de amigos, lojas, fotos. O dicionário de inglês-turco a tiracolo, Inan me fala de cada tijolo, cada vazio, cada moça bonita, cada vendedor de cada quê... Seu sonho é comprar uma Vespa. Ah!, ele me conta... Há muitos anos atrás uma serpente se apaixonou pela filha de um velho imperador da cidade. Então, pra proteger sua filha da serpente, que queria matá-la com um beijo, o Rei mandou construir um palácio para a princesa em uma ilhota no meio do mar, onde a serpente nunca chegaria. É aquele castelo ali, tá vendo? O mar e as ruas que sobem. Muito morro e muito mar. As sete torres. A Mesquita Azul e seus azulejos e os que se ajoelham para rezar para Allah. Mulheres com cabeças veladas de um lado. Homens com bigodes de outro. E lá fora, esse bonito cemitério de sultões. Santa Hagia Sophia e o ovalado poético de sua estrutura. O túnel de covas secretas embaixo de tudo o que se vê, embaixo do bondinho, da cigana que pede dinheiro, do vendedor de minhocas, dos jogadores de dama, do moleque que vende tapetes no Bazar, daquela torre linda que sobe, sobe, sabe?

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Ai, Istambul e sua rara geografia, seus pescadores anônimos, vendedores de doces, bazares, mesquitas, cegos cantando na ponte, kebabs, novelas, futebol. Será que Istambul é a maior cidade do mundo? E esses véus? O que guardam essas mulheres por debaixo desses véus? Três bocas? Uma serpente? Asa delta? ::: o trem Turquia... País de paisagens contrastantes desde a poltrona do trem. Pequenos povoados. Casas de barro. Cachorros preguiçosos. Cabras monteses. Mulheres muçulmanas tratando da terra. Gente do campo que saúda o trem, acenando de longe. Adeus. Gulê, gulê... Montanhas de uma beleza brutal. Imponentes. Pequenas casinhas de pedra. Resquícios de antigos povoados. Muitas das coisas nesse país são resquícios. E quase todas as pedras são históricas. Turquia rural, muçulmana, em contraste com a européia e desenvolvida Istambul. Turquia verde e arenosa. De gente generosa, que oferece ao forasteiro chás, Cola-Turca, brincos, doces. ::: a estação Um dia inteiro na estação de trem esperando pela madrugada de amanhã para poder partir. Dia de cólica. Sol. As pálpebras pesadas, letargia, sono, sono, calor, fome, sono e calor. Uma volta pelo centro de Adana, uma praça verde, um oásis no meio de uma cidade grande, sem maiores atrativos que seus prédios altos, estátuas de Mustafá Kemal Atatürk e grandes caixas armazenadoras de água no telhado dos prédios e das casas. E o curioso e denso universo da estação. Uma velha que vomita. O condutor barrigudo do trem em que chegamos se espanta ao encontrar-nos ainda vagando pela estação. Todo mundo já conhece a gente. O vendedor de gelo raspado com xarope de groselha. Os motoristas dos trens que chegam e partem

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acenam e riem de nós, imitando com gestos nossa reticente atitude sonolenta. E se estamos dormindo ou lendo em qualquer banco da estação, o segurança que vem, faz uma ceninha de bravo autoritário, xinga alguns palavrões em turco, mexe no bigode e continua sua ronda. Outro dia e outra noite na estação. Sem banho, na espera, quase comendo nada, quase nada de dinheiro turco. Turkish Lyra. Noite mal dormida. Mosquitos. Barulho de trens. Atenção inconsciente na mochila e no saquinho com o dinheiro e passaporte. Com o raiar do dia o trem chega e nos vamos depois de tanta espera. O trem apita pro despertar de mais um dia rural nessas montanhas selvagens. ::: mesopotâmia Mesopotâmia, por onde passou Heródoto e os babilônicos. Mesopotâmia, crescente fértil do oriente, onde se planta o trigo, a cevada selvagem e o abricó. Mesopotâmia, entre rios nesse sertão oriental. Entre o Tigres e o Eufrates. Mesopotâmia fica e o trem se vai... ::: alçafrão E então Damasco e essa fonte de azulejos coloridos. Cidade oásis. Miragem cravada no meio do deserto, banhada pelo rio Báraga. Cidade caleidoscópica, onde a história criou tantas histórias que todas elas não caberiam num livro de oito mil anos. É hora da oração do crepúsculo e a cidade parece uma Babel, com vozes que saem em forma de canto de todos os cantos. Desde que entramos em território sírio, me sinto num emaranhado de emoções e surpresas e choques e... Desde o trem, as primeiras paisagens do país são agrárias. Campos de oliva, extensos, geométricos. Mulheres trabalhando a terra. Crianças trabalhando a terra. Pequenos cemitérios plantados em rincões de povoados, espalhados entre plantações de azeitonas e de trigo. Cor de areia. Gente de areia, árida, árabe. Motos antigas e empoeiradas levam homens com lenços vermelhos na cabeça. Merhaba, Síria.

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Pisar em solo Alepo, Halab. Reza a lenda que foi aqui que Abraão parou para ordenar seu gado no caminho para Israel. Halab quer dizer leite fresco em árabe e em hebraico. Antiga jóia, porta estandarte síria, valioso troféu para quantos foram os conquistadores que já conquistaram e desconquistaram esses cantos do mundo. Gregos. Turcos. Romanos. Bizantinos. Mongóis. Árabes. Terra de antigas riquezas e guerras que deixaram marcas em cada pequena ruela, em cada loja do infinito e caótico bazar, na retina de um velho cego visionário que, sentado em uma pequena cadeira de madeira, coloca um papel de seda na sua mão e o papel se enrola e anda pra frente e pra trás. Aí ele te fala o que vai acontecer amanhã, mesmo se você não quiser acreditar nele. Parece que tudo aqui é barulhento, iluminado e secular. Burburinho de famílias em parques e praças fazendo piqueniques ao luar. Carros e táxis, loucos e alucinados, com buzinas incessantes, decoradíssimos com todo amor e gosto duvidável, com luzes de néon, bichos de pelúcia, penduricalhos, pregados no vidro ou na frente do carro. Enquanto as mulheres estão por todas as partes fazendo compras, os homens estão trabalhando do outro lado do balcão. Alepo parece ser movida a comércio e o limite que separa vida pessoal de profissional é tão tênue que te transmite a sensação de que a cidade não dorme e de que as lojas estão eternamente abertas, há anos e anos e anos. E que os vendedores amam vender o que vendem. E que sempre conseguem vender quando querem. Perder-se pelo labirinto dos labirintos de barro da cidade antiga sem nunca achar o jardim central. Penetrar gradualmente nesse universo inquieto. O zig-zag coletivo de máquinas de costuras; o calmo martelar de tantos e tantos sapateiros. Cheiro de flor de laranjeira e de cola num galpão onde fazem livros. A cor da pimenta, da canela, do gengibre, do alçafrão, o destilado da uva, tâmara. A lábia eloqüente dos vendedores de tapetes. Dos vendedores de sabonetes. Dos vendedores de suco. Dos vendedores de carne.

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Filhinho aprende a trabalhar com papai. Ao lado de cada um desses tantos vendedores bigodudos está uma criança, às vezes entediada e às vezes mais parecendo homem crescido. Essa é a loja do meu pai, que foi do meu avô, do meu bisavô e do meu tataravô, eu acho. Em um país onde mais de 90 % da população é muçulmana, a instituição família pode ser um fardo menos ou mais pesado. E a maneira como as tradições milenares convivem com as atraentes e supra-sensoriais modernidades (que pouco a pouco vão adentrando fronteira adentro, apesar de todo o conservadorismo), podem às vezes causar um colapso no caráter das pessoas e nos rumos de suas relações com o mundo exterior. ::: waddah De um encontro casual como tantos outros nessa viagem, conhecer um sírio bastante peculiar. Cabelo prateado, camiseta alaranjada, barba por fazer, óculos de grau e calças jeans. Waddah. 39 anos. Solteiro. Muçulmano, talvez não-praticante. Vendedor de antiguidades, como seu pai. Com uma excêntrica comoção, nos convida a beber vinhos de Alepo em uma bonita cova, antiga como só podem ser antigas as covas dessa antiga cidade. Sissi. De um encontro casual como tantos outros, já temos para o dia seguinte a agenda organizada. 11 da manhã, encontro com Waddah em uma esquina tal, perto do nosso hotel. 11 e meia, café da manhã com Waddah, em seu apartamento. Das 12 da manhã às 6 da tarde, tempo livre para explorar a cidade. 6 da tarde, momento de beber arak “and relax”, na bonita cova Sisi. 8 da noite, jantar gentilmente oferecido por Waddah, quando desfrutaremos a autêntica comida síria.

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9 e meia da noite, banho árabe, o hamman, no seu apartamento. 10 da noite, dormir na grande cama de Waddah, preparada especialmente para que o casal possa descansar depois de um dia tão atribulado. Quando foi que tudo isso começou? Como foi que nos deixamos levar pela lábia desse vendedor? Queríamos testar-nos? Queríamos testar-lo? Ver até que ponto poderia chegar? Como foi que entramos nesse jogo? Por pura curiosidade ou pesquisa antropológica? Será que esse homem existe mesmo? Ou tudo foi só uma dessas alucinações coletivas, engraçadas, estúpidas? O simples fato de ter cumprido todas as atividades da agenda me espanta. De um compromisso a outro, parecíamos cada vez mais imersos em sua loucura. Carente. Incompreendido por amigos. Caso perdido para a família. Ou nada disso, apenas uma pessoa que não se encaixa nos padrões de comportamento do meio em que vive. Alguém que no ocidente, talvez, fosse apenas o louco do bairro. Um homem que há 24 dos seus 39 anos de idade se desperta e vai a cada dia trabalhar na mesma loja. A mesma loja de antiguidades de sempre. Pedacinhos de vida cotidiana de um tempo que não existe mais. É todo paradoxo, esse homem. O arauto da modernidade tardia de uma Alepo que parece se esquecer de que o tempo passa, vende quinquilharias de outros séculos. O arauto da liberdade tardia de uma Alepo em que homem e mulher não podem se tocar fora de casa é alcoólatra, mas o tipo do alcoólatra muçulmano que só pode beber escondido, em um bar para gringos, no centro da cidade. Como posso dizer que esse homem me incomodava? Que havia uma lacuna entre o que ele dizia e como fazia as coisas? A cada tarefa cumprida, me angustiava mais. Que poderia querer esse homem em troca de tanta amabilidade? Por que nos quer comprar assim, com 500 dinares? Com copos de vinho, de coca-cola, de arack? Colares, punhais antigos, doces palavras em árabe?

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If you are happy, i’m happy. You´re with me, don’t worry, you’re with me. Quê que esse cara quer? Sabe... Nem me sinto agradecida pelos seus presentes. O sentimento que Waddah me desperta é o de nojo, de repugnância, asco e uma curiosidade beirando ao mórbido. E Jávi tem as mesmas impressões, mas continuamos no jogo. Ao final da noite, chegamos à sua casa, para cumprir a tarefa final. O banho árabe. Hammam. Um apartamento pequeno, perto do centro antigo, com cheiro estranho. Antigos objetos de decoração mesclados nas paredes com pinturas de crianças chorando. Ele já estava bastante bêbado e nos tocava e repetia suas grandes frases feitas. Jávi e eu estávamos mais tensos a cada minuto. Sozinhos, como duas putas, com esse louco bêbado, com humor vacilante e brilho doentio nos olhos. Preparou o banho árabe e perguntou se poderia tomar-lo conosco. Senti nojo e alívio, porque agora tudo fazia sentido. Mas depois dos desconcertos e do “preferimos tomar o banho os dois, a sós”, uma ansiedade invadiu meu peito, e uma leve pontinha de medo. Havia um punhal antigo na mesa e um louco bêbado no sofá, ouvindo a toda altura um disco de Laura Pausini... ::: paraíso? O hamman tem qualquer coisa que me impressiona. É uma espécie de mistura entre profano e sagrado, terreno e divino. Paraíso quente assim, como o inferno. Um ritual de purificação. Limpeza do corpo e da alma. A pele velha vai embora pelo ralo. O homem limpa a mulher. A mulher limpa o homem. Lavar por três vezes a cabeça com o sabonete de azeitona. E o corpo também. Com três tipos diferentes de bucha, massagear toda a pele. Alternando água quente e fria, muito quente, menos quente. Fria e morna. Um manjar para os sentidos e uma experiência sublime poderia ter sido nosso hamman, se não

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tivéssemos com a cabeça e o coração cheios pelas histórias do louco Waddah. A verdade é que não víamos a hora de nos livrarmos desse homem e de todo o seu mundo doentio, feito de solitárias ilusões. E assim, meio desfrutando do banho, meio incomodados pela presença e a fresca memória de Waddah, que agora bate na porta e pede que Jávi saia por um momento, apenas Jávi, venha até a sala. Todos os medos pareciam tomar formas agora. Um tarado bêbado punheteiro na sala com uma enorme faca na mesa. Quê que esse homem quer agora? Por que a gente se meteu em toda essa merda? Por que ele só chamou o Jávi? A gente tá sozinho aqui... Qualquer coisa pode acontecer? Enrolados em toalhas, saímos com o coração na boca, dispostos a enfrentar o louco e acabar com tudo agora. Agora. Com um sorriso infantil e patético na cara, nosso vendedor de antiguidades estava esperando perto da porta, com uma cumbuca de prata nas mãos. “É para vocês tomarem o hamman, meus amigos, é um presente pra vocês...” Anos depois, Jávi voltou à Síria e em Alepo buscou Waddah em sua loja de antiguidades. Juntos foram beber vinho na cova Sissi, como no dia em que nos conhecemos. O cara era aquela mesma figura de anos atrás. Me mandou de presente um lenço lindo e um par de brincos e nem tocou nas sórdidas histórias do passado. Por dentro, só Jávi mesmo é que ria de tudo o que tinha acontecido, vai ver Waddah nem se lembrava direito. Na verdade, ele era um solitário carente, um solteirão da meia-idade bonzinho que gostava de curtir a vida. E que nunca ia mudar. ::: inferno? O regime de Damasco. Nacionalismo árabe, xenofobia e militarismo. Quando Hafez Assad (que governou entre 1970 e 2000) morreu de ataque cardíaco, não tinha amigos, apenas servidores e inimigos. Pelas praças do país, murais com fotos e pinturas assustadoras do velho ditador e seus dois filhos – o

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preferido (que morreu num acidente de carro) e o caçula (Bashar, um oftalmologista formado na Inglaterra, que teve que assumir o governo do país depois da morte de seu irmão). Ainda nos tempos de hoje a Síria é um dos países mais fechados e isolados do mundo. Manteve seu Exército de ocupação no norte do Líbano, onde está desde 1976, e não fez um gesto para se acertar com Israel, país para o qual perdeu três guerras desde 1948. A queda de Saddam Hussein só piorou o isolamento e a pobreza do país, já que mais de um quinto da economia síria dependia do contrabando de petróleo iraquiano em troca de alimentos sírios. A Síria é o único país da região que é auto-suficiente em alimentos, ainda que a agricultura, que emprega mais de um quinto da população, seja subsidiada pelo governo. Em 2005 havia apenas 50.000 telefones celulares no país, a internet praticamente não existia e era preciso autorização do governo para comprar um computador. ::: tempestade de deserto As margens sagradas do Rio Eufrates... Meninos com calor nadam quase desnudos, rolam pela água e pela terra. Al Furat. Essa é uma pequena cidadezinha perdida, esquecida e anônima nas bordas desse grande rio, histórico, bonito, encorpado, verde de um verde oliva que se contrasta com a cor de areia das pessoas e das casas do vilarejo.

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Agora fazemos parte de uma grande família, tão pobre quanto grande. E tão rica quanto pobre. Oito crianças, papai e mamãe que vivem em uma casa dividida em dois grandes cômodos, muito limpos, todos os dois. Os móveis são poucos. Na sala de visitas, um pequeno tapete forra o chão. Uma foto do pai e outra do filho mais velho observam todo o movimento da casa, emolduradas e orgulhosas desde uma parede desnuda e sem pintura. O filho mais novo é um bebê que dá seus primeiros passinhos, com a bunda de fora, sempre mamando no colo da mamãe ou correndo atrás de algum pintinho pela casa afora. Não falam outro idioma que não seja o árabe, mas conseguimos nos entender com poucas palavras, ajudados pelos livros de inglês didáticos ilustrados dos filhos mais velhos. Tenho a imagem de cada um deles na minha cabeça agora. A mãe trabalhando de um lado pro outro entre bebês, pepinos, vassouras, plantações de algodão, já que em tudo o que é universo doméstico está a mão e o trabalho da mulher e das filhas mais velhas. O pai, com sua postura nobre e calma, que transforma sua pobreza em dignidade generosa. Mohamed e sua família com grande árvore genealógica. Nossos avós têm nove filhos. Cada um desses filhos tem outros quantos filhos, e assim, para sempre. Famílias grandes, muitas bocas para comer e pouco dinheiro. Nada sobra por aqui, mas a mãe me oferece uma muda de roupa quando percebe que eu tomo banho e visto a mesma roupa de antes. Na primeira noite, um grande jantar com pepino, tomate e frango. Jantar comido diante de olhos de meninos com fome, que esperavam que o pai e os convidados acabassem de comer. Aqui em noites com convidados especiais, as mulheres e as crianças comem depois, comem o que sobra. Na hora de dormir as mulheres da casa trazem para o quintal uma infinidade de almofadas, colchões e travesseiros. Dormiríamos como todos da família, aqui fora, no quintal. É verão e é assim que dorme o árabe sírio e camponês. Ao ar livre.

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Então em alguma tarde, uma grande tempestade de areia, vento e água. Com cores e cadência de tempestade de deserto. Parece que ainda tenho grãos de areia nos olhos... E depois da tempestade, nossa casa agora não tem mais luz e estamos todos sentados sobre os tapetes da sala assim, sem falar muita coisa, comendo sementes de girassol salgadas e fazendo um teatro de sombras fajuto com uma última vela que sobrou. Está também a vó, com sua cara tatuada no queixo e nas bochechas, como é o costume por aqui entre as mulheres. A avó me parece ter outro status social dentro da família. Viúva, trabalhou a vida inteira no campo e em casa. Cuidou do campo, da casa, marido, noras e filhos. Agora pode ser um pouco como os homens. É a mãe patriarca, a mais velha da família. Fala o que quer e é escutada. Emancipou-se com a velhice. Tem filhas, noras e netas que trabalham para ela. (Acho que ela gosta de comer amendoim...) Tem um jeito tão lento essa mulher, jeito de gente de deserto. Todos por aqui são um pouco assim, têm outro ritmo, que a gente desacostumou a entender. Que parece tão herege nesses tempos em que a velocidade dita as ordens. ::: fronteiras Agora vivemos em uma casa enorme, feita de cimento e pintada de branco, no meio de uma cidadezinha de barro. Norte do país, pertinho da fronteira com o Iraque. Quando chegamos nessa vila, um rapaz com um ralo bigode nos levou a uma casa, onde nos recebeu um grupo de homens com aparências e gestos solenes. A comida é abundante. Sentados num tapete lindo dividimos com os homens a mesma comida, servida em uma grande bandeja de prata e comida com as mãos. No meio do almoço, dois policiais entram na propriedade, nos interrogam e anotam os números de nossos passaportes. Tomam uma xícara de chá, friamente se despedem e se vão.

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Pela janela, vejo a sombra de olhos curiosos. Mulheres. Nessa casa abastada, as mãos das mulheres tornam-se invisíveis. Não passam nunca dos limites do quintal. É aqui onde estou agora, presa do ninho feminino. O chefe da família me pede para retirar-me às salas interiores e me surpreende chegar ao quarto onde estão as mochilas e dar de cara com uma bonita jovem explorar tudo com excitação e curiosidade. Outra moça, mais velha e calada, varre o corredor. Perguntas feitas com gestos e alguma palavra em inglês sobre costumes, meu país, tolices hormonais. E se essa é uma casa de homens cerimoniosos, é também uma casa de mulheres inocentes, eloqüentes, quase histéricas, encurraladas por costumes no doce e seguro beco da submissão. Vou tomar banho na casa de um dos filhos do patriarca, ao lado de onde estamos instalados. Aqui, a cozinha vira banheiro. A anfitriã, jovem que tem a minha idade e corpo de mulher árabe que já pariu quatro vezes, me prepara com alegria o hamman. Com gestos e risadas sacanas e infantis me pergunta por meus filhos, se transo com Jávi, se oferece para cortar meus pêlos pubianos, me diz que sou magra, ri, ri, ri... Para ela, eu tenho aparência de criança, e para mim, ela é uma mulher com maridos e filhos, que limpa a casa, cozinha bem e vive assim, a cada dia, mas ainda tem inocência de criança. Ao entardecer, estamos com todos os gordos e corpulentos chefes da família, seus filhos e algumas poucas e tímidas mulheres, sentados em tapetes e cadeiras postas numa sombra em frente à casa. Tomar o chá ou o suco artificial de laranja e ver o tempo passar... Aqui não está Alimah, pobre menina rica. Proibida de sair de casa, ela lava o quintal por ordem do irmão mais velho e me pergunta gritando se no meu país também é assim - se os homens não fazem nada e as mulheres trabalham muito, sem parar. Aqui está Tabuch, pobre menino rico. Com seu negro traje árabe, aos oito anos de idade já foi proibido pelo pai de andar de bicicleta entre as casas de barro da vila, nas ruas mais pobres.

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Aqui está Nasir, pobre rico herdeiro. Filho mais velho que sustenta orgulhoso um raquítico bigode no meio da cara. É ele quem nos apresenta a cidade e serve de tradutor das ordens do pai. À noite, nos leva à casa de um amigo seu. Estamos aí vendo estrelas na laje onde a cada noite a família se junta pra falar, calar e fugir do calor. De longe vemos o trepidar do fogo de uma estação de petróleo. Família grande que exibe orgulhosa cada filho macho como cada estrela desse céu sem nuvens. Na volta para casa, o grande e poderoso soberano nosso anfitrião nos espera com cara de poucos amigos. Na manhã do dia seguinte alguém bate na porta da grande sala onde dormíamos. Então aqui está Nasir, este que nos leva sem muito humor ao ponto de ônibus e nos mete na primeira van que passa em direção a qualquer lugar que não seja essa vila. Acho que fomos expulsos... ai... ::: curdistão A van nos deixa numa outra vila de barro. Apesar de ser bem cedo pela manhã, o calor já é forte. Um anão nos vê e grita alguma coisa a um menino que estava passando. O menino se aproxima de nós e nos convida a ir a sua casa, a tomar o chá e a fugir do sol. Recebe-nos um homem com a pele queimada de sol, com uma voz macia, suave, com o lenço palestino vermelho e branco na cabeça, fazendo as vezes de turbante. Ele nos pergunta em árabe coisas que julgamos ser de onde somos, de onde viemos, para onde vamos, nossos nomes, todas essas que costumam ser as perguntas perguntadas nessas situações. É quando entram na grande sala dois militares vestidos à paisana e o diretor da escola local, que por falar bem o inglês, serve de tradutor ao “inquérito” que se arma. Passaportes e o interrogatório de praxe. Com o dever cumprido, os militares se despedem. Estamos com Hussein, o dono da casa e seu amigo, o diretor da escola da vila. Com seus gestos solenes, Hussein ajuda o filho de uns dez anos a estender o manto no chão e a pôr sobre o manto os pratos de comida – frango ao curry, arroz e vegetais. O professor continua em nossa companhia e fala que a gente

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não tem que se preocupar com a “visita” militar. Fala que, ao tomar o Iraque, os americanos apontaram à Síria como cúmplice do terrorismo. E que agora estão pressionando o governo sírio a tomar medidas para impedir a entrada de terroristas no Iraque, por isso o exército sírio está, pelo menos na fachada, fechando o cerco contra estrangeiros ou suspeitos que passam por essa região onde nos encontramos, o Curdistão, que além de ser uma zona de conflitos ideológicos, religiosos e políticos, está a menos de 100 quilômetros do Iraque. (Pra falar a verdade, nunca tinha ouvido falar nesse tal de Curdistão, até chegar aqui nesses cantos do mundo. Me contaram em segredo que os curdos sempre foram nômades anônimos e muçulmanos sunitas de uma região montanhosa e desértica que passa pela Turquia, Iraque, Síria, Iran, Azerbaijão e Armênia. Em 1639 o seu território foi repartido entre persas e otomanos. Depois entre turcos e iraquianos, que proibiram o uso de sua língua e o florescimento de sua cultura. No século XX até hoje, a história curda se sujou com sangue, perseguições, lutas, sabotagens, ataques com armas químicas, genocídios. Mas eles ainda continuam sua saga, lutando contra tudo e todos em nome de sua libertação. Só que aqui não se pode falar sobre isso em voz alta... ) O almoço segue tranqüilo, vem o suco artificial de laranja com gelo e o professor se põe a contar detalhes de sua vida amorosa. Está casado há 11 anos com sua mulher e tem três filhos. Ele soube através de um amigo que um senhor da vila tinha lindas filhas e decidiu conferir com seus próprios olhos as beldades. Gostou do que viu e decidiu pedir a mão de uma das moças em casamento. Em pouco tempo o professor já tinha uma mulher, com quem se casou sem nunca haver trocado uma palavra. E assim seguia sua vida, com sua mulher e seus filhos até que no último ano letivo ele se apaixonou por uma das professoras da escola. Dessa vez um amor correspondido e mais maduro. Espera, Inshallah, poder conseguir juntar dinheiro para pagar por seu dote e

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se casar outra vez. “Do you love your wife?”, eu lhe pergunto e ele me diz que “some how”... “ela ficará triste se você se casar com outra mulher?” e ele responde com seus grandes olhos azuis que sim, que acha que ela vai ficar triste se ele se casar com outra mulher... Comida a comida, bebido o chá, o diretor se despede e se vai. Decidimos dar uma volta pela vila, mas nosso anfitrião se desespera e nos diz em árabe com gestos que é impossível sair de casa numa hora dessas, em que o sol do deserto é devastador e impiedoso. Sem outras opções, nos deitamos na sala, nas grandes almofadas coloridas colocadas sobre os tapetes, que cobriam quase todo o chão de barro da sala, com exceção da parte em que Hussein jogava ritualmente o último gole do suco ou do chá ou escarrava. Ao final da tarde o calor é menos apavorante. Uma volta pela vila com um dos filhos de Hussein, um jovem elegante que fala um inglês interessante e explica que trabalha em uma empresa petrolífera nas redondezas, mas que agora está de férias. Nos altos de um pequeno morro da vila, nos sentamos todos para ver o sol se pôr. O jovem nos mostra os rastros do rio que secou, rastros que parecem as marcas do tempo na cara de um senhor muito velho; as ovelhas que voltam pra casa depois de um dia de pastar e cagar; nos fala sobre o petróleo, o ouro negro que marca a vida e a morte de muitos dos que vivem nessa região tão próxima ao Iraque. E assim estamos, entre rastros e óleo quando o jovem filho do nosso anfitrião diz que nos ama e nos oferece o amor e a lealdade seus e de toda a sua família, que agora também é nossa. Ai, ai... É tão sentimental essa gente do deserto... Humanos xerófitos, flores que se abrem quando o dia nasce e pouco antes do sol se pôr. Às vezes podem parecer ásperos ou rudes por fora, mas quando se abrem, mostram lindas flores. Gente de deserto é gente de uma generosidade refinada, gente que se afinca ao que há de vida ao seu redor e que dribla todas as adversidades com suas grandes raízes, que são asas que crescem pra dento da terra.

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Pela noite, chegam os filhos mais velhos da esposa falecida de Hussein. Voltam do trabalho no campo e chegam na hora da comida, cansados, muito cansados... O trabalho duro que está condicionado aos desejos solares... Levantar com o sol, dormir em barracas de lonas construídas no campo nos momentos de sol explosivo e avassalador e logo trabalhar até depois de que o sol se põe. Chega também o professor, agora recém saído do banho, com um sorriso na cara e estamos todos sentados em cadeiras, olhando pro céu, sem falar nada. E somos testemunhas de uma noite de eclipse. A lua se esconde em algum lugar, deixando a via totalmente láctea, impressionante nudez celeste. As mulheres da casa arrumam uma cama pra dormirmos ao relento. Bem cedo pela manhã nos desperta a dupla de militares do dia anterior, que querem se certificar de que vamos partir do vilarejo hoje mesmo, na primeira van que passe com destino a qualquer outro lugar, que não seja esse. E assim foi como foi. Se o Iraque está do outro lado da linha, o jeito é conhecer o Curdistão sírio às pressas. E assim foi como foi. ::: talibans Uma carona nos deixa numa outra seca vila de barro. A cruz no alto do morro nos indica que por aqui há cristãos. Chegamos à Igreja e o olhar do Padre parece ser um pouco... intimista? “Terroristas?” “Não, católicos de por vida...” “Ah! Bem-vindos... podem se sentar aqui por um momento, por favor... ” Uma freira nos traz água para beber... Bismillah!

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E então, dois militares chegam para conversar calmamente com a gente. Passaportes. As mesmas perguntas de sempre. “Ah, ok... Turistas... Podem vir com a gente, por favor...” Sim, entrem no carro que vamos fazer uma pequena viagem a Al Camishli. E assim vamos sem entender muita coisa. Será que vão levar a gente pra prisão? Prisão feminina na Síria? Ou deportar-nos? Quem é que vai saber... Mas se é pra ir, vamos indo... ::: arameu E então Al Camishli. O carro pára. Descem os policiais e um deles volta acompanhado de uma jovem sem véu e com blusa colada no corpo com alguma palavra escrita em inglês com purpurina. É a irmã de um dos policiais, que nos trouxe aqui para passar uns dias com sua família... Meu Deus! Sentados no sofá da sala, todos bebemos suco artificial de framboesa com gelo. Latifah, católica, estudante de direito por correspondência, solteira aos vinte e alguns anos conversa com a fluidez do seu inglês decente. Ai, Latifah e sua imensa vontade de viver lá nas europas, onde estão dois de seus irmãos. Latifah quer ser emancipada e moderna. Viver assim, como se vive aqui na Síria é não acompanhar o compasso da evolução do mundo ocidental. Com orgulho, Latifah fala da sua carreira acadêmica, dos seus sonhos de abrir um escritório onde possa exercer sua advocacia. Com orgulho, conta como vive sua condição de mulher vanguardista que estuda por correspondência e trabalha fora, enquanto as muçulmanas de sua idade estão dentro de casa, limpando a cozinha com uma penca de filhos pendurados na bainha da saia. A matriarca chama a todos para almoçar. Aí está o pepino, o tomate, queijo, pão, ovo. Essa poderia ser a mesa de uma família síria islâmica. Mas não. Aqui nessa cozinha, com todo o respeito, se fala o arameu, língua tradicional de José e de Maria. Latifah agora traduz as palavras de sua mãe, que nos pede, por

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favor, para trocarmos de roupa, que assim mais parecemos terroristas talibãs voltando de Bagdá. Temos que sair da mesa, colocar outra roupa que eles nos dão. Melhor assim, agora, com roupas do ocidente... Sentamos-nos, a mãe faz as orações e a comer. Os dias passam tranqüilos em Al Camishli, passeios pelos parques, comidas, caminhadas pelos bazares... Na hora de partir, Latifah nos dá abraços e beijos e nos pede implorando, ”por favor, não durmam em casa de muçulmanos...” ::: pelos olhos delas Ser mulher forasteira em terras árabes muçulmanas é poder sentar-se na sala com os homens e na cozinha com as mulheres. É escutar murmúrios de lamentos femininos. Contra o machismo. Contra os desafetos. Contra as outras mulheres do marido. Ser mulher forasteira em terras árabes muçulmanas é um doce convite ao trabalho doméstico. Ajudar a ralar o pepino. Carregar no colo a criança bebê. Tirar leite das tetas de uma vaca. Olhar as vitrines das lojas de lingerie. Ser convidada em tom de intimação a dançar a dança do ventre na sala de uma casa de sete mulheres. Ter o cabelo penteado com azeite de oliva e a boca pintada de vermelho carmim. Sussurrar uma canção conterrânea. Ganhar pares de brinco, blusa de manga larga, batom e três anéis pra enfeitar o dedo. Porque mulher aqui tem que gostar de se enfeitar. E estar sempre linda por baixo de seus sete véus. E ter olhos que falam qualquer língua do mundo porque tiveram que aprender a falar com o mundo através dos olhos. E, muitas vezes, a calar os olhos para não abrir a boca. ::: subterrâneo É em Anz que estão guardadas por baixo da terra as sete cidades de pedra do oriente.

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Anz é um desses lugares em que só se chega por uma casualidade ou por uma sorte qualquer. Perdida pelas veredas dos áridos sertões sírios. Protegida por seu anonimato. Em Anz você pode sentar–se em uma de suas pequenas praças e esperar que passe algum morador, que se aproximará, perguntará seu país, seu nome e para onde você está indo. Depois talvez te convide para fazer um passeio pelas ruínas, quando talvez você conheça Rose, que pode estar voltando naquele momento de sua diária peregrinação ao templo de pedras com aparência de improviso, aonde rezam católicos ortodoxos, muçulmanos e drus por seus mortos há muitos séculos e séculos. Amém. Então Rose vai se apresentar em seu fluente francês como libanesa, mulher de 63 anos que já viveu mais da metade de sua vida em Anz. E então Rose talvez te ensine o caminho para chegar à passagem secreta que te transporta às sete submersas cidades subterrâneas. Por onde passaram babilônicos, fenícios, gregos, romanos, árabes... Passaram e deixaram marcas. Veio o vento. Veio a poeira. A erva daninha. E cobriu Anz, que nem no mapa está sinalizada. E mesmo entre os moradores da vila, que vivem quase todos em ignorância sobre o que existe por debaixo do chão que pisam, apenas poucos sabem da entrada para as cidades secretas e tudo isso tem que ser falado em voz baixa. Shiiiiiiii... A porta de pedra. O sinal esculpido em cima da janela. O túmulo do ferreiro e da moça mais bonita da vila. O túnel que liga o templo a essa casa. O muro que protege o templo. O forno dessa cozinha. Então Rose talvez te convide para passar a noite em um dos grandes cômodos de sua casa, onde vive sozinha desde que seu marido morreu. Sozinha mas amparada pelos olhos ortodoxos da imagem da Sagrada Virgem Maria, dependurada na parede ao lado da televisão, onde a cada noite Rose assiste a sua novela preferida antes de ir dormir. Ai, Rose... Cristã ortodoxa, estrela solitária, que a cada dia acorda às cinco da madrugada e cuida sozinha do seu campo de azeitonas negras e amêndoas...

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É também em Anz que mora um motorista de van casado com uma mulher venezuelana de vinte e nove anos, que há treze anos vive na vila. Mulher toda sorriso e generosidade, com uma pele muito clara e longos cabelos, com seu sotaque latino-americano quase esquecido, de tanto não usar. Samira, filha de pais sírios que foram tentar a vida na Venezuela há tempos atrás e que mandaram a filha mais velha para fazer uma ponte entre seus dois mundos. Então ela, Samira, veio a Anz visitar os avós e por aqui ficou. Agora ela é mulher mais árabe que venezuelana. Mulher que se converteu à religião Dru por amor ao marido. Samira, mãe de dois filhos homens e de uma filha cega, menina de nove anos, que enxerga com o tato e com os ouvidos, que faz a gente pensar em como é que deve ser mulher e cega num país muçulmano e árabe. É como se ela fosse uma mancha, talvez. Na hora de apresentar a família, o pai deixa a filha lá na cozinha com a avó. Essa filha que além de ser mulher ainda por cima é cega. Imagina quem vai querer casar com ela? Quem? Fardo mais pesado... Mas deixa a menina, pai... Deixa ela enxergar com as mãos, deixa ela brincar dentro da casa, com a avó, deixa ela... Estamos agora com Samira, que nos prepara um lanche com pão sírio, iogurte, azeitona, tomate, pepino, ovos. Ela fala do amor que sente por sua família, filhos, maridos. Fala que trabalha mais em casa que ele, mas que ele é muito bom para ela. E sempre que está em casa, ajuda nas domesticidades. O castelhano parece estranho na sua língua. Bonito. Conta que quase não fala com sua família na Venezuela e que com as crianças, só fala em árabe. Só agora ensina algumas canções e palavras em espanhol para o filhinho menor. Pergunta por nossa religião, abre uma gaveta da estante da sala e nos mostra uma Bíblia, antigo presente de uma amiga, ainda na Venezuela, ainda nos tempos em que ela era católica.

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Pela tarde do dia seguinte, passeio com o marido e o filho mais velho de Samira em uma cidade turística das vizinhanças. Cidade que, ao contrário de Anz, está assinalada no mapa, conhecida por ser sede de um antigo e enorme anfiteatro romano, realmente lindo e dono de uma acústica impressionante, mas nada comparado ao que Anz guarda no seu anonimato, debaixo de sete camadas de terra e erva daninha. Anz. Desta vila levarei lembranças de um tempo em que casas eram feiras de pedras e continuam sendo. Cabras de diferentes donos que saem todas juntas para pastar e que voltam todas juntas no final da tarde, cada uma pro seu curral. ::: mar mussa Existem duas maneiras de chegar ao mosteiro Deir Mar Mussa: de carro desde a cidade de Mabuk e logo subir uma escadaria quase infinita; ou atravessar caminhando o deserto que separa a cidade do mosteiro. Caminhar pelo deserto. Sol. Sol. Solear. Areia quente. Uma borboleta amarela que vem de não sei onde. Raquíticas plantações de ervas. Dunas em forma de torso de camelo. Areia quente. Céu azul. Ar quente. Céu azul. Quase tudo quente, amarelo ou azul. E então avistar de longe uma das torres de pedra do mosteiro e pressentir o gosto consolador da água descendo pela boca e se espalhando pelo corpo todo. Deir Mar Mussa, esse lugar que tem algo de impressionante e místico. Encontrado ao acaso por um padre italiano que, na década de 70, fazia uma viagem por essas redondezas e ficou encantado pelo lugar. Decidiu reformá-lo e transformar as ruínas de uma velha fortaleza do século VI em um refúgio para almas em busca de um lugar para romper com o mundo que existe pra lá do deserto.

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Romper para transformar. O trabalho desse padre e de seus poucos monges e monjas parece ser construir pontes entre os diferentes deuses e mundos que convivem nesse mesmo mundo. A luta desse árabe-italiano é uma relíquia que envolve espiritualidade, consciência política, tentativa de conciliação entre os credos da região, sobretudo entre católicos e muçulmanos. Um dia chega ao mosteiro um grupo de teólogos americanos que vieram ao deserto para discutir questões teológicas e políticas atuais com o Padre Paolo. Debate interessante entre teólogos americanos e um jesuíta italiano revolucionário e nada convencional, que traz à tona miséria e dor dos árabes iraquianos em época de invasão norte-americana em territórios vizinhos da Síria. O jesuíta italiano fala sobre seu projeto de criar um catecismo que possibilite trocas entre crianças católicas e muçulmanas, para que as religiões se enriqueçam aprendendo com a diferença, apesar da pressão que sofre de vários setores da Igreja cristã local. ::: mil e uma noites De Deir Mar Musa trago duas mulheres. Suad e Hannah. Uma, londrina, filha de somalianos radicados na Inglaterra, uma bonita negra com fala apressada, muçulmana, com quem compartilhei histórias de caminhadas. A outra, uma médica iraquiana católica de 27 anos, recém casada, com quem compartilhei dormitório por uma noite e pude ser testemunha do seu sofrimento, escutando por intensas horas da madrugada seu relato sobre vida e dor em Bagdá. No escuro do dormitório feminino, iluminada por uma pequena lanterna, uma linda mulher loira, de pele clara e olhos azuis me pergunta de onde eu sou e como é viver no meu país. Falo qualquer coisa. Quem precisa mesmo falar é ela. E ela fala que é médica e filha de médico. Seu pai era proprietário de uma clínica em Bagdá, que foi totalmente bombardeada nas épocas mais pesadas da guerra entre os iraquianos e os americanos. Hoje ela trabalha com mulheres em um hospital do governo. Mulheres que escondem lingeries vermelhas por baixo da roupa negra e do véu. Ela ri descontraída. Mas logo volta a ter a cara

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banhada por lágrimas. Fala que, por causa da precariedade financeira da situação hospitalaria, muitas vezes chega a aplicar uma mesma seringa em mais de cinco mulheres. Em meio a suas crises morais, de consciência profissional, já chegou a pensar muitas vezes em injetar-se a si própria com essas seringas e compartilhar possíveis enfermidades com suas pacientes. Então a moça me conta que Bagdá está construída em cima de um mar de petróleo. Muitas vezes uma ou outra pessoa está cavando um simples buraco no jardim de sua casa e do buraco jorra o líquido negro. Com sua pele branca e seus olhos azuis, pára um pouco de falar e, num relance, parece ter uma expressão mais leve no rosto. É quando ela fala que parece engraçado dizer que o seu país é rico por seu petróleo, porque esse é o real motivo de sua desgraça. Bagdá hoje é uma cidade de fantasmas, onde a corrupção, o medo e o estancamento humano devoraram escolas, universidades, hospitais, comércios, trânsito, igrejas e mesquitas. Uma cidade quente, onde o racionamento de energia elétrica e água condicionam as pessoas a se preocuparem com questões básicas de sobrevivência, sem tempo para desenvolver o país no que diz respeito à cultura, à educação, à saúde. E, ironicamente, os moradores e cidadãos dessa grande mina de petróleo e inferno a céu aberto, têm que esperar mais de seis horas em uma fila de posto de gasolina para encher o tanque. E muitas vezes esperam tantas horas em vão – porque a gasolina se acabou. Assim como se acabou a liberdade, já que os iraquianos não podem visitar outros países que não sejam a Síria e a Jordânia e não podem ter noção mais clara do que exatamente está acontecendo no seu país, já que os meios de comunicação manipulam loucamente os acontecimentos. E quem tem mais ou menos consciência da dimensão infernal dos fatos tem que ficar calado ou fugir para o exílio por conta própria. Falou que a maioria dos seus amigos com estudos e boa carreira profissional estão fora do país, tentando sobreviver de alguma maneira. Mas Hannah ainda tem esperança de que em dois anos as coisas melhorem e é isso o que lhe dá forças de continuar a viver em uma cidade em que civis que se aproximam a menos de cem metros de soldados americanos correm o risco de serem metralhados. Disse que quando há

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atentados, muitos pensam que é melhor morrer do que continuar vivendo nesse inferno em terra, e que todos agora só conversam sobre geopolítica e teorias para tentar entender um pouco o que pode estar acontecendo, porque há americanos e japoneses construindo um grande complexo subterrâneo em Bagdá, onde iraquianos são impedidos de entrar. Muçulmanos são jogados contra muçulmanos; presbiterianos americanos tentam comprar com dinheiro ou telefones celulares aos 3% da população que é católica. Entender por que há tantos agentes infiltrados do FBI por todas as partes, por que isso tudo está acontecendo... Depois que apagou a lanterna, se desculpou por haver desabafado todas essas coisas comigo. Disse que era a primeira vez em três anos que deixava a cidade, e que na saída do país, vinha com seu marido e mais dois carros de amigos, quando sofreram um ataque de balas de revólver. E que era estranho estar fora, em um país livre da guerra, enquanto sua irmã e seu pai continuam em Bagdá. “No quê é que você tá pensando agora?”, eu lhe pergunto. “Por mais que eu pense tanto em tudo isso, não entendo o que está acontecendo. É bonito, depois de tanto tempo encerrada no Iraque, saber que fora de Bagdá as pessoas ainda sorriem, caminham tranqüilas pelas ruas, conversam calmamente entre si sobre as coisas mais banais da vida”. ::: pipas E mais ou menos assim foi. E mais ou menos assim é. Saltar da Síria a Turquia. E essa é Van, grande cidade no oriente turco, famosa por seus gatos de olhos bicolores e por ser construída aos bordes de um gigantesco lago de água salgada. Caroneando, caroneado, caronear. Carona com um garoto que pegou no carro branco do pai do amigo pela primeira vez. Que lindo o Curdistão turco e sua música melancólica e seus campos de trigo. Amarelos... Menino, cuidado pra num bater esse carro! Meu Deus! Foi por pouco!

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Carona com um turco que mora na Alemanha, simpático, que veio da Europa com seu carrão e que, quando chega ao destino final, nos dá dinheiro pra gente poder seguir viagem. Já temos assim cara de ciganos? Carona com um senhor simpático de fala mansa e bom inglês. Montanhas verdes. Paradas para desfrutar do chá. Palavras soltas.Tudo com calma. Mansidão. Atravessar Mesopotâmia com certa velocidade, já que aqui tudo é um pouco caro e no ar flutua certa ansiedade por resolver os rumos da viagem, como conseguir o visto para entrar no Paquistão, o que fazer no Iran... Burocracias. Vindo da Síria, a primeira parada em território turco foi em Madin, cidade construída nos altos de uma grande montanha no Curdistão turco, de onde se tem uma vista privilegiada e impressionante de campos de trigo que a vista não alcança. Mesopotâmia. Amarela. Amarela. Amarela. Em Madin um gordo comerciante, sua mulher e suas duas filhas nos abrem a porta de sua casa árabe-curdo-turca, nos oferecem comida e explicam em árabe (como se pudéssemos compreender melhor o árabe que o turco...) sobre seu comércio, família, sua fé. Mostram o cemitério da família que está construído ao lado de sua casa; mostram orgulhosos uma placa fixada na porta da casa, que indica que ali mora um casal de muçulmanos que já peregrinaram à cidade sagrada da Meca. Na hora do crepúsculo, a mulher põe no chão da varanda os tapetes para a oração a Allah, e depois, comemos todos juntos, com o casal e suas duas filhas. Cuscuz salgado com ovo frito e chá preto. Sem lugar pra dormir, um homem com bigodes nos convida a passar a noite na sua casa. Quando Jávi vai tomar banho, o homem sintoniza a televisão num canal pornô. Quando eu vou tomar banho, o homem sintoniza a televisão num canal pornô gay. Na hora de dormir, ele quer deitar entre nós dois nos sacos de dormir.

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Ai, arrumar malas correndo, ai, que raiva... Outro pervertido pelo caminho... Descer as alucinantes ruas noturnas dessa Madin labiríntica, descer ladeira que vem, ladeira que vai, descer ladeira que sobe, ladeira que desce, toda rua daqui é ladeira... ai, que raiva desse cara, que nojo! Caímos outra vez no conto do vigário... Mas então um jovenzinho que está voltando de uma festa nos diz “vem, vem dormir lá em casa” e vamos, já sem força no corpo do cansaço do dia quente de viagem. Na laje de sua casa, o moço nos prepara camas com cobertor e travesseiro. Pela manhã, toda a família nos espera para o café da manhã. Na mesa do café, ovos, azeitona, pão, queijo, suco, creme de chocolate e bonitas histórias de vida. Madin. Cidade de covas e burros alpinistas. Madin. Medina. Madin. Meca. Cuscuz. Pipa nos céus mesopotâmios. Madraças. Labirintos. Montanhas. Allah. Allah. Allah. Véu. Véu. Velada vou. Um salto nas idéias e nos sentimentos. E, sobretudo nas cartas geográficas. ::: rosas e espadas Teerã, Iran. Embaixada brasileira, esperando por uma carta de apresentação para o consulado paquistanês. Não querem me dar a carta, já que minha viagem não tem fins políticos ou econômicos ou acadêmicos. Não querem me dar o visto, já que não tenho a carta. Ai, fazer as coisas assim, aos trancos e barrancos, é estar nas mãos das situações duras, imprevistas, massacrantes. Esse suspense me aflige. Apesar de que no final das contas, depois de aflições e melodramas, aqui está a carta e aqui está o visto. Três noites em Teerã. Calor, véu. Agora sou uma mulher que usa véu. A cabeça tapada. Iran. Nos ônibus, os homens de um lado. As mulheres de outro. Homens que cheiram a graxa. Mulheres que bebem rosas.

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O petróleo. Cem litros de gasolina por vinte reais. O rígido controle militar. A cada viagem de ônibus, mais de uma hora parados esperando que alguns militares revistassem a bagagem de todos os passageiros. Imposição de credos e políticas. Mas sempre uns e outros refugiam seus reais ideais do lado de cá da fachada de submissão aos interesses do governo e da religião. Meu deus, será que política e religião são a mesma coisa? (e muita gente viciada em ópio, Iran...). Em Iran passamos como passa um furacão. Quase tudo foi burocrático na ida. Quase tudo foi rápido na volta. Mas qualquer coisa das rosas e dos véus negros ficou. Pelas ruas da cidade, mulheres indignadas por ver uma forasteira infiel com os pés calçados com obscenas Havaianas. Insultos e qualquer tipo de praga rogada em nome de Allah. Um primeiro persa nos convida a conhecer sua mesquita, sua horta e seu jardim. Logo nos leva a sua casa, onde comemos sopa quente de verduras e tomamos suco gelado de rosas. Sua mãe me abraça muito. Me dá de presente um lenço, um brinco, um anel e uma foto sua e outra de Ali, genro de Mohamed, o Profeta. Ali, grande califa e seu rosto de herói estampado em cartazes espalhados por toda Pérsia. Ali e suas rosas vermelhas. Ali e suas lágrimas de sangue. No Jornal Iran News de 4 de outubro de 2005: “Abaixo a Inglaterra. Death to America, death to Britain, Down with Israel”, as mulheres cantaram na segunda-feira, todas cobertas das cabeças aos pés com seus negros chadors, contra os protestos dos países estrangeiros em relação ao Programa Nuclear Irani.”

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“A mulheres, não importa se vindas do campo, do subúrbio, educadas ou domésticas, ricas ou pobres deveriam ter um papel maior no destino do país (...) a situação da mulher evoluiu muito em relação aos tempos da Revolução Islâmica de 1979, mas a mulher ainda não está no lugar em que merece estar, como o Islã lhes garante.” Rosa. Sangue. Suor. Véu. Iran. Pequenos amontoados de oásis em uma terra deserta. Iran e seus homens e seus bigodes. Suas mulheres e seus véus. Cabalas. Antiga Pérsia. Berço de riqueza. Arte refinada. Astrologia. Astrolábio. Democracia? Direitos? Divisas? Deveres? Feministas? Pérsia? Zoroastras? Refinada? Serviços matrimoniais? Amor? Revolução? Ali? Rosas vermelhas? Revolução? Armas de destruição em massa? Plutônio? Guerra do golfo? Amor? Revolução? Califas? Aiatolás? Allah e seus noventa e nove nomes suspirados numa manhã de terça-feira? O clemente? O misericordioso? O soberano? O criador? O que tudo vê? Tudo ouve? Humilha? Proíbe? ::: escombros É sobre Bam e suas ruínas seculares. Dezembro, 2003. É sobre ruínas seculares que num átimo de segundo esquecem de tudo e viram pó. É sobre Bam e suas crianças, frutas cítricas, palmeiras e camelos. Sobre um terremoto. Máxima de trinta e cinco graus. Mínima menos cinco. É sobre Bam, milenar cidade avó. Muros de barro. Arroz e grãos vermelhos de granada. Romã. No topo da vila um imponente forte. Arg-e-Bam e seu templo Zoroastro. Por aqui passa a rota da seda. Aqui mora o fogo sagrado. Aqui jazz Mirza Naiim, velho místico, velho astrônomo. Terra de peregrinos. Torres. Mesquitas. Caravanas. Mulheres e véus. E num piscar de olhos, o terremoto. Tudo que vai por terra abaixo. Desconstrução das construções. Esse homem que nos leva de carro das ruínas da cidadela ao centro da cidade fala que foi o único que sobreviveu em sua casa. O templo e a fortaleza tremeram. E muita gente anônima, muito persa severino ficou aterrado por debaixo de escombros. Tudo que sobrou foram resquícios de antigos resquícios. Foi sobre Bam e suas ruínas seculares,

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mas

também

sobre

o

mundo

todo

e

seus

tremores

e

catástrofes.

E

o

que

resta

pra

contar

história.

::: mosaicos Abrir olhos, paladar, tato. Em um dos caminhos labirínticos de um dos intermináveis bazares de Isfahan, encontrar uma pequena porta que te transporta a outros tempos. Essa música lânguida que invade o espaço de um misticismo erótico. O chá, o açúcar em torrões e os narguilês. Quadros de mulheres persas vestidas de todas as cores que saíram de um mosaico, como só podem ser os mosaicos iranianos. Em todo esse ambiente milenar, não há um vazio sequer, seja nas paredes, seja nos tetos, seja naquele homem que bebe o chá. É a estética multiplicada por sua máxima potencialidade. Pinturas e bastões de dervixes e lustres e sinos de mil formas e cores. Em Isfahan, estão os corvos negros nos céus e as mulheres de negro nas ruas. Na casa de chás, sentada em uma mesa em frente à nossa, Bahktiar, uma iraniana de 27 anos. Inglês fluente, dentista e professora universitária. Casou-se aos 20 anos e está em vias de se divorciar do marido. Agora, com sensação de maturidade nos diz que só se casará outra vez por amor, agora que se sente senhora

de

si

e

que

tem

Allah

ao

seu

lado.

::: pela linha Atravessar a fronteira que divide Iran e Paquistão é mais ou menos como cruzar uma linha que separa um bairro de zona sul de uma favela em qualquer grande cidade brasileira. O que no lado iraniano era estrada de asfalto aqui é estrada esburacada de chão batido.

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A elegante aduana militar de controle de imigração vira um cômodo, com a porta aberta, uma cama de couro preguiçosamente posta perto da porta e um oficial fumando um cigarro com toda a calma, que te sorri e leva alguns tantos minutos para preencher à mão mesmo, nada de tecnologias, o livro de imigração. Os ônibus Volvo, que nos conduziram com rapidez por todo o Iran e nos brindaram com ar condicionado, merendinhas, televisão com filmes de Bollywood, água gelada, aqui viram ônibus paquistaneses, com todas as nuances que isso implica, falta de espaço entre poltronas, chão imundo, música alta soando pelos ares, sacos com todo tipo de grãos, grandes pacotes com roupas, galinhas e gente para todos os lados, falando alto, fumando em qualquer lugar, cuspindo, dormindo pelos corredores, viajando no teto do ônibus. Subhana Allah, glorificado seja Deus!E então, fez-se o calor. E as horas sentadas em bancos de ônibus se multiplicaram. E das horas surgiram dias. E com o calor, o real sabor da água fria tragada com espanto diante de uma mesquita na primeira hora do dia. Comer com a mão direita. Limpar a bunda com a esquerda. Tenho uma vaga lembrança de qualquer coisa daquela noite sagrada, daquele sagrado nascer do sol. Cores. Vultos. No meio do pó da estrada, o ônibus que parou para que os homens pudessem se ajoelhar no solo de uma mesquita que nasceu no meio do nada. Ajoelhar no chão e dizer que Allah Akbar, que Deus é maior. O suor que goteja em todos os corpos, todos ajoelhados em direção a Meca. Vaga lembrança ficou... ::: no teto do mundo Uma vaca gorda e grande com suas enormes tetas de fora foi o que de mais feminino pude ver pelas ruas desse primeiro povoado do Karakoram paquistanês.

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Assim é. A louca Karakoram High Way sobe como um caracol até a China. São 1200 kilômetros de extensão, quase um kilômetro para cada trabalhador morto durante a sua construção, que durou vinte anos. Foram 810 paquistaneses e 82 chineses que deram sua vida para que essa obra de arte e persistência saísse do plano ideal para a realidade. Alhamdu lil-lah, louvado seja Deus! Louvada seja a Karakoram High Way, a mais alta estrada construída no mundo! Apenas chegamos aqui nessas montanhas que intimidam por seu aspecto duro, por suas nuances cinzas, por essa sensação de quase poder tocar o teto do mundo... Um pouco de mau humor depois de um trajeto de iniciação às curvas da Karakoram High Way, trajeto de vinte e algumas horas sentados nas últimas poltronas do ônibus, em posição de 90º e com a fonte do ar condicionado apontado para nossas caras. O ônibus nos deixou nesse vilarejo de uma rua e se foi. Aqui estamos, entre indecentes vacas desnudas, meninos com olhos curiosos, homens e velhos, que levam as coisas assim, devagareando. O bazar é o centro nervoso da vida da vila. Nesse alinhamento de lojas e escritórios, um costura calmamente uma calça, outro engraxa um sapato, outro fabrica vasilhas de metal, outro faz o pão e outros fumam um cigarrinho e vêem a vida passar. Na verdade, agora sim que posso ver poesia nessa vila. Mas quando estava lá, me pesava nos olhos e nos ossos os cinco últimos dias de estradas, entre atolamentos, cadeiras que não abaixam e burocracias em urdu ou inglês. Mas apesar de todo o cansaço e da pressa para chegar a algum lugar com uma cama para relaxar o corpo, foi só entrando no ritmo do povo que as coisas começaram a fluir. Surgiu uma van rumo a Astor, um formoso vilarejo encravado entre as montanhas da parte da Caxemira paquistanesa. Vila que no mapa da Índia consta como parte do território indiano.

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Caxemira, palco de disputa entre o Paquistão e a Índia. Caxemira faz com que o Karakoram seja zona de conflitos militares e tectônicos. A maioria da sua população é de origem paquistanesa e religião muçulmana. O subcontinente indiano se dividiu em dois em 1947 – a Índia hinduísta e o Paquistão muçulmano. Foi uma separação sangrenta e conflitiva. E desde então que a fronteira que dividiu o subcontinente em dois é uma linha de tensão e inimizades. Em 1947 e em 1965 os países entraram em guerra pela disputa da Caxemira, sem chegar a nenhum entendimento. Em 1974, o governo de Indira Gandhi detonou a primeira bomba hindu. Em 1988 foi a vez do Paquistão. E a corrida armamentista faz das armas nucleares uma possível solução aos problemas que assolam essa linda e problemática região do Oriente. Van que quebra; outra van que chega; avalanche de pedras que bloqueia o caminho. O jeito parece ser mesmo escalar a avalanche com mochila nas costas, eu que nunca fui de muito esporte... Mas a beleza do lugar e a vontade de tomar banho, comer alguma coisa e dormir parece dar forças aos meus pés calçados com havaianas e ânimo à minha alma para conseguir chegar ao outro lado da avalanche, de dois quilômetros de extensão. As montanhas pedregosas e cinzentadas do Karakoram sim, que são montanhas... Sentados numa muretinha de concreto numa das extremidades dessa vila que tem ruas em forma de zig-zag, parece que poderia passar três vidas assim, apenas olhando a conversa das montanhas com as nuvens e com a luz do sol. Tudo o que rodeia essa vila chega a ser de uma beleza agressiva. A natureza aqui fala em um dos idiomas mais puros que eu já ouvi. Montanhas que nascem lá embaixo, há cinco ou seis mil metros de onde estamos, acompanhando um rio cheio de curvas, e que sobem tanto e tanto que alcançariam os céus se quisessem. Mas são paquistanesas essas montanhas e sabem que não é necessário pressa para chegar aos céus... No pátio do “intercolege” somos convidados por um professor a tomar chá com biscoitos e a comer frango com as mãos. Na sala, duas tímidas professoras, as primeiras mulheres que vejo aqui, nos altos das montanhas, mulheres que não se escondem nem tapam a cara com o véu.

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O professor em seu inglês fluente explica que a hierarquia familiar muçulmana aqui, nos altos das montanhas, é muito rígida, por isso nas ruas onde estão os bazares não há mulheres, que estão proibidas de sair de casa pelos pais, maridos ou irmãos. Se por algum motivo uma mulher tiver que sair de casa, que seja acompanhada. Sozinha, nunca. Querem outra xícara de chá? Outra coisa: antes de se casarem, noivo e noiva não podem ter qualquer tipo de contato, apesar de que uns e outros sempre acabam burlando as leis e conversam às escondidas entre si... Eu mesmo às vezes me encontro com minha noiva, mas ninguém sabe disso, viu? Depois que a gente se casar, minha mulher vai cuidar da nossa casa e da minha família, dos meus pais e irmãos mais novos. Poucas vezes ela poderá visitar sua família. Mas não me olhem com essa cara e nem se espantem, não. É a tradição. É assim que deve ser. Sentar-se numa muretinha nas extremidades da vila para ver a vida passar... Um velho muito velho com rasgos de chinês na cara passa com seu neto pendurado pelas costas. Um grupo de mulheres que se tapam um pouco quando nos vêem, mas logo me acenam fazendo sinal para que eu me aproximasse delas. E eu vou e cada uma me beija com olhos sorridentes, se apresentam, perguntam meu nome em inglês, para minha surpresa, e se despedem com pressa e medo, quando pela rua escutam o andar de um homem. Convidados a tomar chá verde pelo dono de uma loja que vende infinidades de pequenas coisas quase inúteis e quase insignificantes, aqui estamos. Um convite para comer quiabo com esse pão que eu gosto tanto, “chapati”. Marian e Sonia. A pequena Sonia queima sua mãozinha com chá quente, na hora de nos servir. Com gestos me conta o que aconteceu e posso imaginar sua dor. Conto ao seu pai, que olha o lugar da queimadura, pega o pulso da menina, dá umas cuspidelas em cima e logo se vira pra continuar o papo com algum dos que estão do outro lado do balcão, curiosos pela visita dos estrangeiros.

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::: placas tectônicas Uma visita à escola de garotas. 240 meninas de seis a quatorze anos, que são educadas por onze professores, dos quais sete são mulheres. Nossa chegada na hora do recreio causa tumulto. Jávi é levado a uma sala onde estão os homens, para tomar o chá e conversar com expressões masculinas sobre política e religião. E eu estou aqui, com cinco das sete professoras e a diretora. Tomamos chá com leite e comemos bolo, em meio a diálogos e risos de timidez e contentamento. Dezenas de meninas se amontoam caoticamente nas janelas da sala. As professoras falam entre risadas que é uma ironia que elas sejam professoras e não saibam falar inglês. Não têm como nem com quem praticar, já que nos meios em que se movem, casa e escola, só falam o chino, um dos vários dialetos dessas regiões montanhosas, e o urdu, a língua oficial do Paquistão. Lindas mulheres, com suas roupas coloridas, brincos no nariz, anéis em tantos dedos e mãos pintadas com desenhos de henna. A diretora, que é quem melhor fala o inglês e serve de intermediária e tradutora, conta que é casada, tem cinco filhos e que trabalha na escola há quinze anos. Todas se mostram felizes por poder trabalhar fora de casa e dizem que além das escolas, há mulheres que trabalham em hospitais, em cargos burocráticos, para o governo ou em algum banco. Lindas professoras da montanha... Esperaria com o coração nas mãos por uma carta de vocês, se não tivesse sabido que uma parte de uma distante terra chamada Caxemira era agora “um mundo destruído por uma série de terremotos.” E quando li o jornal sabia que nessa distante terra há uma pequena vila chamada Astor, e que nessa pequena vila, há uma pequena escola de garotas e que nessa pequena escola, cinco lindas professoras talvez tomavam chá com leite e falavam sobre como solucionar uma equação de matemática em uma quarta-feira de finais de verão quando ouviram os primeiros tremidos da terra...

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::: girassóis Cenas, pedaços de vida desde a poltrona da van. Numa curva no meio do caminho, um homem tem o semblante nervoso e atira pedras com raiva em um grupo de meninos que saem correndo; mulheres com seus véus coloridos conversam agachadas no meio de uma grande plantação de trigo; um jovem pendurado em uma corda amarrada no telhado de madeira de uma varanda dá voltas e voltas pelo ar, feliz por estar quase voando; meninos pastores de cabras e moleques nas horas vagas atiçam o rebanho para o meio da estrada, logo quando passa a van; velhinhos de barba e chapéu pashtu, shaluar, camís e colete de lã levam nas costas todo esse mundo rural de montanhas tão altas – lenha, legumes, o peso da idade e da atmosfera. E depois de algumas tantas horas de caminho, chuva e diarréia, finalmente Guilguit, cidade-chave para a movimentação no Karakoram, de onde partem abastecidas as caravanas de escaladores ou simples viajantes, como nós, e maior centro comercial da região chamada de “northern area”, que é onde estamos e é onde estão as cadeias de montanhas do Karakoram e do Indukush. É aqui que nos instalamos em uma pousada, repleta de estrangeiros e de jardins com girassóis. No final da tarde, depois de caminhadas pelos bazares, prostrar-se em pequenos coretos feitos de madeira e tecido quando baixa o sol, compartindo haxixe e casos com o jardineiro namorador da pousada. É engraçado que esse homem que parece tão esclarecido, que conhece a literatura do mundo e viajantes de todas as partes consegue ainda ser tão preconceituoso em relação aos judeus. Para ele o povo de Israel é a pior raça da face do nosso planeta. A área do bazar é cercada por um muro e as guaritas dos seguranças são sacos de areia empilhados, já que este, senhores, é um país militar e a qualquer momento pode estourar uma guerra ou rebelião.

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Ruas de terra enfeitadas por lojas de toda espécie. Frangos, roupas, tecidos, sandálias de couro, especiarias, acessórios para o carro, para a moto, lan houses, sacolões, cantinas. Lojas que, apesar de tão sortidas, não passam de cubículos retangulares, sem janelas, sem portas laterais ou traseiras, sem banheiros. A única abertura dessas lojas é a porta que dá pra rua, que serve de porto, de vitrine e de tudo. Dentro, muito calor. Talvez seja por isso que muitos comerciantes estejam sempre sentados em frente às suas lojas, nas calçadas, esperando passar o rapazinho dos chás, com suas bandejas, de lá pra cá, de cá pra lá, trocando copos cheios da tradicional bebida por míseras cinco rúpias paquistanesas. Plantações de trigo, milho, batata, árvores de abricó, de maçã verde, de framboesa... Os vales do Karakorun, regados por caudalosos e velozes rios cor de areia no verão, são como oásis verdes em meio a infinitas montanhas de cascalho e barro. ::: abre... Árvores de abricó. Catar o abricó com as mãos. Comer o abricó com calma. Cheirar abricó. Ai ... :::: minapin Na pequena vila de Minapin, olhos que devoram paisagens exuberantes durante caminhadas por estreitos caminhos, entre casas e plantações de batatas, acompanhados por meninos e algumas meninas, aquelas que conseguem ser aceitas nas brincadeiras daqueles. No quintal de uma das casas, um burro se sobressalta com nossa presença. Seguimos o caminho e um bebê se sobressalta com nossa presença e se põe a chorar e a correr para os braços do avô, um velhinho gaiato e banguela, deitado esparramado pelo meio do pátio da casa, que não contém seu riso franco com o susto do bebê.

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Agora estou sentada numa ponte grande. Uns meninos que voltam da escola passam por mim e me fazem perguntas que eu não consigo entender. Eles riem. De mim, pra mim, como saber? Um homem vem pelo caminho. Os meninos se afastam. O homem vai pelo caminho. Os meninos voltam a se aproximar. Você é menina ou menino? Por que você não tem cabelo? Você tem dinheiro? Qual o seu país? E a câmera de fotos? O menino de uniforme xadrez vermelho e branco com a gravatinha remendada com uma linha amarela parece que brigou na escola, ta com a orelha machucada e me pergunta por que é que eu sou tão pequena. Chega Jávi e a gente vai embora. Rudarrafiz... Adeus... Mas os meninos ainda querem porque querem uma foto e quando nós já estamos do outro lado do rio, me gritam, abaixam a cueca e balançam seus pintos de meninos de 11 anos, como quem diz “não vai tirar foto da gente, não? Então toma isso...”. ::: chás e chapatis - E a madame, de que parte das Europas é? - Sou da Europa não, moço. Sou é lá do Brasil. - Brasil... E isso tá perto da Inglaterra? ::: alpinista Uma caminhada que é como subir quantos degraus de escada? Na pousada confortável, dois japoneses também dispostos a pôr os pés na estrada. Somos um burro, um adolescente da vila, dois japoneses, um catalão apressado e uma brasileira subindo a montanha. Quem nos guia é o burro, entre peidos, paradas para comer uma ou outra flor, cagadas e mijadas.

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Subir, subir, subir, não sabia que podia subir tanto assim nessa vida. Pequenos riozinhos que descem, montanhas de pedra, montanhas de grama. Um homem mais velho que o topo do Racapush que passa, carregando um tronco de madeira muito maior que ele. Quem é que carrega quem? E vamos, aos passos desse burro alpinista, subindo, parando, olhando. Uma abelha branca, um tronco de árvore que é como uma mão gigante, Minapin, que agora parece um formigueiro lá embaixo, apesar de estar a três mil e quinhentos metros do nível do mar. Chegar ao acampamento depois de cinco horas de subida é como sentir o prazer da água fria num dos dias quentes em Queta. O acampamento, Racapush Base Camp, é como um gramado plano de campo de futebol onde vacas lânguidas se espreguiçam, ruminam e cagam. Cabras se juntam todas ao nosso redor e não param de lamber nossas peles, suadas com gosto de sal e de óleo. Uma pequena barraca é onde este outro Mohamed Ali, chiíta com cara de chinês, que recebe gente para comer e dormir nos meses em que a pequena planície não está coberta por esse gelo selvagem, que mesmo em tempos de verão cisma em cobrir os altos picos que rodeiam o acampamento. A água desce rala por um esboço de rio, rala e escura. E Ali lava os pratos com toda a sua dedicação no mesmo lugar em que tomam água suas vacas e cabras. Sentados num morro, somos cúmplices das montanhas, que trocam de roupas lentamente e se desnudam e se oferecem ao sol. E suas roupas fazem barulho de avalanche quando caem no chão. E nuvens que quase podemos tocar atravessam o topo branco das montanhas. Branco de um branco imaculado, intocado pelas mãos dos homens. Aqui se vive segundo as leis da mãe Gaya. Na primavera, neve dá lugar ao movimento da vida rural. Vida trabalhada por tantas mãos de mulheres e crianças e homens. No verão, o grande trabalho de recolher o que foi plantado para quando o outono chegar. E quando o outono chegar, secar e ensacar o que foi plantado e recolhido. Para vender ou comer. Para passar o inverno encolhido, para descansar. Descansar como homem talvez seja ir da casa à casa de chás,

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da casa de chás à mesquita, talvez. Descansar como mulher é não trabalhar no campo, mas em casa continuar limpando, cozinhando e cuidando de crianças, de muitas crianças, sempre. É como se eu ainda estivesse naquela barraca no meio do Racapush Base Camp. Tenho a Mohamed Ali na minha frente, falando, cozinhando, fumando. Estamos todos encolhidos na barraca, protegidos do frio glacial, enquanto Ali fuma seu cigarro de haxixe, prepara o jantar e nos entretém com suas histórias, contadas ao ritmo do seu eloqüente e peculiar inglês. Chá verde pra esquentar o frio do ar, posso ainda ver os olhos de Ali iluminados por uma tímida vela que trepida solitária na pequena barraca paquistanesa. “Os japoneses possuem muita tecnologia”, nos diz Ali. “Criaram uma máquina que rastreia riquezas minerais desde o espaço, um satélite. Se o meu país fosse mais rico, poderia comprar uma máquina dessas. Seria muito bom para o meu país. Mas não temos dinheiro e não podemos comprar uma máquina dessas. Eu sou pobre. Não me casei. Aqui na vila é difícil pra homem pobre e mulher feia conseguir arrumar casamento. Nossas mulheres... nossas mulheres são proibidas de subir aqui em cima da montanha, no acampamento. Nossas mulheres pertencem ao campo, ao trabalho do campo. Imagina que alguma delas suba aqui em cima e conheça um desses estrangeiros escaladores... não, elas não podem subir aqui, não...” nos dizia, enquanto caía a noite, embalada pelo frio e pelas opiniões desse homem, até que a vela se acabou e fomos todos, exaustos, dormir. Na manhã seguinte, durante as despedidas e o pagamento pelos chás, comidas e teto de lona, Ali se desculpa pela noite anterior, por haver falado tanto, se desculpa por todas as suas opiniões, por sua sinceridade. Mas disso você não tem que se desculpar nunca, Ali, por favor. E ele sorri e me pergunta o que tenho nas mãos. Uma pedra verde que havia encontrado aos pés da montanha. Fala que essa pedra é muito feia e me pede pra esperar um instante. Caminha rumo à sua pequena moradia de pedras e volta com um lindo cristal para me presentear. Essa sim, é uma pedra bonita, me fala, só falta mesmo é polir...

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::: nos olhos Ai, Minapin, ai, Racapush... Acho que não deveria nunca ter comido da neve dos topos das suas montanhas. Nunca tive uma diarréia tão violenta, de passar uma noite inteira na privada e dias e dias com diarréia, comendo batata, pão, iogurte e chá preto. De Minapin levo pequenas crianças com os olhos pintados com lápis creon e braços cobertos por pulseiras de prata. Levo a época de recolher uma das remessas do trigo, o cheiro do trigo sendo triturado para virar farinha. Levo muros e muros feitos de pedras onde descansam abertos abricós durante dias, até desidratarem-se completamente para ser ensacados e vendidos por 75 rúpias, o saco. ::: por água Tanto tempo com diarréia faz a gente começar a tomar água de garrafa. No primeiro “bazar”, um menino diz que não tem água. No segundo, um velho faz que não com a cabeça. Pela rua empoeirada, um pequeno me convida com um gesto a acompanhar-lo. Leva-nos ao “bazar” do Professor Mohamed Ali, outro Mohamed, mas este sunita, calmo, moreno, com seu falar pausado, seus olhos tranqüilos. Convida-nos a tomar chá verde, com seu inglês corretamente falado de professor das montanhas. Em sua loja de madeira, pela qual paga um aluguel de um dólar por mês, sentado detrás do balcão, o professor passa devagar suas tardes de primavera-verão. Pelas manhãs, trabalha na escola da vila e, entre uma coisa e outra, ainda tem terras, onde planta batatas, trigo e abricó. Estamos aí, entre chás e suas falas lentas, quando entram na loja amigos seus, professores como ele. Estamos todos sentados nos bancos de madeira, escutando Mohamed falar sobre o campo e seus tempos de cultivos, a importância das mulheres no campo, sobre sua família, a vila, o islã, o sunismo, a escola, a vida.

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No dia seguinte, voltamos ao bazar e atrás do balcão dessa vez está sentado o pai de Ali, que diz que seu filho não está e nos convida para tomar chá. Pede desculpas por saber falar tão mal o inglês. Entra na loja um menino com um ovo nas mãos. O menino dá o ovo ao velho e o velho dá um doce e uma pequena moeda ao menino, que sai contente pela rua afora, com seu doce tesouro nas mãos. Com seu tímido inglês, pergunta a Jávi se “Tem carne na Espanha?” Tem. “E quanto custa a carne?” e depois da resposta de Jávi, o velhinho balança a cabeça e fala com seu vagaroso inglês “Tsc, tsc, tsc, Spain bad, Paquistan good...” Mas e campos de trigo? Tem campos de trigo na Espanha? E milho? Tem milho? E quanto é que custa um ovo? E depois de cada resposta do espanhol, o velho paquistanês pronuncia o seu “Tsc, tsc, tsc, Spain bad, Paquistan good...” E foi assim, até que entra no bazar um velho amigo do calmo vendedor. Entra devagar e devagar se senta. Trocam poucas palavras e assim estamos, trabalhando todos na loja. Logo chega Mohamed. Seu velho pai veste um casaco de lã colorida, põe seu chapéu pashtu na cabeça, se despede e sai da loja, acompanhado por sua bengala e seu velho amigo. Vão agora sentar-se em frente à mesquita e seguir o trabalho do bazar – ver passar a vida da vila. Acomodado Mohamed, entram na loja seus amigos professores do outro dia. Uma mulher pede por dois metros e meio de nylon do lado de fora. Uma menina compra um quilo de grãos de milho. Somos transportados pelas palavras de Mohamed e estamos em rigorosos tempos de inverno, sem nada pra fazer. Somos chiítas e rezamos três vezes por dia a Allah e a Mohamed, o último profeta. Cremos na importância de Hussein, de seu pai Alli e dos demais imãs, califas hereditários, que carregaram consigo a sabedoria e a santidade do profeta, ainda que muitos capítulos dessa história tenham sido escritos com sangue. Mas preferimos não entrar em detalhes nem questionar incoerências ligadas aos dogmas da nossa religião. Nosso sonho é poder um dia visitar os túmulos de alguns dos santos califas, que estão em terras distantes, no Iraque

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ou no Iran... Agora, no verão, nos levantamos às 5 da manhã. Vida de escola, de bazar e de campo começa cedo e termina quando o sol se põe. Agora, pra casa, que o bazar vai fechar. ::: catedral É num caminhão carregado de sacos de cimento que partimos de Minapin. Seguimos o caminho nessa louca Karakorun High Way, que sobe e desce como sobem e descem suas montanhas. Sobe, louca high way, infinita, sobe ligeira até a China. Somos quatro e vamos apertados. Pouco ânimo, muitos dias com diarréia. O olhar é surpreendido ao ver uma ou outra mulher passar com a cabeça desnuda. As vilas agora são ismaelitas, de gente seguidora de Ismael, o sétimo dos imãs, segunda rama do chiísmo. Gente que vai por terra guiada por Aga Khan, líder religioso modernizado, homem de idéias aclaradas, que desde Paris envia a seu rebanho idéias de paz, fraternidade, tolerância. As montanhas vão pouco a pouco tomando aspectos pontiagudos. Depois de uma alargada convivência de oito horas para fazer um trajeto de menos de 100 quilômetros, o caminhão pára em Passu, pequena vila pela qual passa a Karakorun High Way, localizada a menos de 200 quilômetros da fronteira com a China. Aqui, muitos dos habitantes têm traços chineses, descendentes dos obreiros construtores da extensa High Way, que vieram do país vizinho e acabaram casando e criando a família do lado de cá da fronteira... Nessa vila, a sensação que se tem é de que o relógio não serve para nada. De que o tempo existe de outra maneira. A pensão está nas proximidades da vila, entre montanhas com cumes altos, que vão afinando e afinando. O endereço impresso no cartão da pousada, (indicada por um australiano de uns quase 50 anos, que passa a metade do ano recolhendo amoras em seu país e a outra metade viajando pelo mundo com

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sua mulher, há mais de 25 anos...) apenas diz que a pensão está logo em frente à montanha “Catedral”, que parece mesmo uma catedral gótica, com torres pontiagudas... Sentados escutando as montanhas e olhando o barulho do rio, aqui estamos. O dono do hotel é um militar ismaelita reformado, que em 1971 estava lutando em Bangladesh, na época em que este país se separava do Paquistão. Uma voz rouca ainda sai gritada da garganta do capitão, esse homem brusco, mas honestamente sincero em sua brusquidão. Sua mulher é o lado mais bonito da face desse velho militar. Pele escura, cabelo liso e preto, penteado em duas longas tranças, que é como as mulheres da vila costumam pentear-se. Estamos todos sentados e agora o capitão nos fala, entre cuspes, de suas experiências na guerra, dos conflitos entre Paquistão e Índia, da disputa pela região de Caxemira, nos fala da pobreza de seu país, do conforto que lhe dá sua religião e nos seus deveres para com Allah. Pergunta se são ricos ou pobres nossos países. Nunca sei bem o que falar sobre o Brasil. Somos pobres ricos ou ricos pobres? Na manhã seguinte, estou menstruada e pelas ruas da vila, o comércio está todo fechado. Vou andando com um improviso entre as pernas, feito de papel e algodão. Uma escola Aga Khan surge no caminho de portas abertas. Entramos, chamamos e não encontramos ninguém. Mas há sombra e um vento bom. Uma mulher aparece e nos cumprimenta, a Jávi com uma pequena inflexão do corpo e a mim, com um abraço e um aperto de mãos, que se estende por mais de um minuto de relógio. Seu nome é Bibi, uma das mais antigas professoras da Escola. Ela se senta junto a nós, e começamos a conversar em inglês fluente. Nos fala um pouco sobre o colégio, sobre Aga Khan e algumas sutilezas da doutrina ismaelita. Estou bem à vontade com a mulher, que veste um esvoaçante shaluar-camís verde e branco e leva a cabeça sem o véu. Lembro então que estou menstruada e pergunto aonde posso encontrar absorventes para comprar. Ela olha pra frente e talvez busque as palavras em inglês para me explicar que na vila, “não usamos absorventes. Usamos trapos de pano, que

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lavamos e usamos outra vez.” E depois de uma longa pausa, nos diz para lhe acompanhar. Seguindo por um pequeno labirinto de casas de pedras e plantações de batatas, chegamos à sua casa. Duas bonitas jovens de longas cabeleiras preparam o chá preto com leite e chapatis (pães feitos sem fermento) fritos numa cozinha ampla, arejada por uma grande janela de teto. Mais tarde, um jovem nos explicaria a complexa simbologia do que para nós era apenas uma bonita e confortável cozinha, com chão coberto por tapetes e almofadas, onde a filha de Bibi e sua amiga preparavam o pão ou limpava as vasilhas, sentada ou agachada, em total contato com o solo, com a terra. A cozinha é construída sobre cinco pilastras, simbolizando os sustentáculos da casa e da família. Na entrada, há uma espécie de pequeno corredor, que se chama “kong” e é o espaço reservado para os sapatos de quem entra na cozinha, seguido pelo “yorch”, um vão no meio do ambiente, onde ninguém se senta, um lugar de passagem e onde se movimenta a cozinheira. O lugar chamado “raj” que está perto do “kong”, é onde qualquer convidado ou familiar pode sentar-se ou dormir, enquanto o “raj” que está na outra extremidade da cozinha é reservado aos que nasceram recentemente. O “past” é onde se deitam ou se sentam os mais idosos da casa e, por fim, no “dil dong” é onde está o forno, e onde se sentam e comem os convidados, apesar de que na praticidade do dia-a-dia, e com a evolução dos tempos (por mais que seja uma evolução muito peculiar dos tempos as que vivem as pessoas nesses tetos do mundo...) esses nomes e denominações espaciais parecem não ser muito respeitadas e praticadas. A outra jovem, que fala um inglês bastante fluente e ansioso, nos conta um pouco de sua vida acadêmica e de seus planos profissionais, ano que vem vai “business” em Lahore. Sorri, toda tímida. Yogurte, chá e chapati à vontade para as visitas. Mas percebi um certo clima de desconforto por parte de Bibi, que me deu os trapos de roupa que me serviriam de absorvente e se sentou quase de costas para nós. Claro, éramos quatro mulheres e um homem estrangeiro

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e infiel na cozinha... e seu marido poderia chegar a qualquer momento, e como explicar a presença intrusa? Contra minha vontade de estender nossa estadia na casa, olho para Jávi e nos levantamos para ir embora. Bibi abre seu sorriso outra vez. Agradecemos pela hospitalidade e saímos da casa, com gosto de quero-mais na boca... :::: ? Que se tornou a história? Recortes do jornal de ontem? E quanto à fé? Alguma vez algum homem no mundo acreditou verdadeiramente em Deus, em troca de nada? E a beleza? Existe beleza? Existe o prazer? A saúde? A estética? No teto, o ventilador que gira e me faz girar. Mas dentro do quarto, o calor continua igual. Perdi o fio da meada? Há quanto tempo atrás? A porta da rua tá aberta? Posso andar livre e sozinha pelas ruas? São frívolas e inúteis minhas idéias? Cheias de sentimentalismo barato? O tempo e o espaço ainda existem? Conseguirei algum dia colocar pra fora tudo que sinto por dentro? ::: sectários De carona com um trator chegar outra vez a Guilguit. Sol massacrante. Muito calor. À tarde, de bazar em bazar, um comerciante avisa assustado que temos que ir para a pousada, porque um homem havia sido assassinado a tiros ou a facada em uma vila próxima. O bazar fecha todas as suas portas de um minuto para o outro. Muitos vão pra casa. Outros se prostram em frente a uma loja de verduras que continua com as portas abertas. Jávi vai à loja de um paquistanês que conheceu na pousada, que nos loucos anos 70, vivia como hippie em Barcelona, e arriscava até algumas palavras em catalão. Hoje mora em Guilguit e tem uma pequena loja de antiguidades onde na porta paira um cartaz vermelho e amarelo com os dizeres “hablase español”.

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Eu estou caminhando pelas ruas do bazar, com uma câmara de fotos a tiracolo. Coisa que quase nunca costumo fazer nessa viagem. Andar com câmara de fotos. Carros da polícia e do exército passam agitados de um lado para outro. Um grande Jipe pára ao meu lado e um homem de ar tranqüilo e autoritário me pergunta por que estou sozinha pelas ruas em um momento como esses. “Estou tirando fotos”. Pergunta por meu país, pelo meu hotel. Ok. Acena e dá ordens para que o motorista dê partida no jipe. Chega Jávi, que não encontrou seu amigo na loja. O grande Jipe pára outra vez ao nosso lado e o homem de ar tranqüilo nos convida para tomar algo para refrescar o calor. ”Some cold drink”. Um hotel local, erguido em cima de um dos restaurantes populares da vila. Subimos as escadas atrás da comitiva militar e somos convidados a entrar em um quarto com duas camas, onde nos sentamos. “Vocês preferem chá ou refrigerante?”. Respondemos e o homem dá ordens a seus subordinados, que estão fazendo guarda na porta do quarto. “Antes de qualquer coisa, muito prazer, meu nome é Rashid Ahmed. Tenho 34 anos e sou Major do exército paquistanês, ao seu dispor... entrei no exército como soldado, mas já sou major e ainda vou chegar a cargos mais altos, ainda vou ser comandante... inshallah... Vocês têm filhos? Ah... ainda não, mas peçam pra Allah, que vocês vão ter filhos bonitos e saudáveis. Eu tenho dois filhos, um menino e uma menina. Quando chego a casa, adoro brincar com meu filho, ele já tem quatro anos. A menina ainda é pequenininha, mas é muito linda. Eu amo muito meus filhos. Vocês são muçulmanos?” e depois de nossa resposta negativa, nos diz que “no problem, no problem... Por que você está calçada com esses chinelos?” me pergunta o major, olhando com desprezo para meu par de Havaianas... “Esse tipo de calçado é para ser usado em casa, na cozinha. Se você procura por sapatos melhores, tem muitas lojas no bazar que vendem sandálias bonitas e confortáveis... Vocês ficaram sabendo do assassinato que houve numa cidadezinha aqui do lado? Essa situação do assassinato já está completamente solucionada, são esses sectários, brigas entre chiítas e sunitas, essa gente briga por nada,

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matam sem razão...” e está aí, absorto em suas palavras, quando pelo walkie-talkie lhe chamam em algum lugar. Desculpa-se e educadamente se despede com um sorriso aberto, nos diz que a conta está paga e sai do quarto, com seus tênis e calças “Cooper”, todo imaculado. À noite, a moça do noticiário fala que mais de duzentos paquistaneses foram detidos no Paquistão, por serem suspeitos de envolvimento no atentado a bombas em Londres, no último dia 7 de julho de 2005. 8:58 da manhã: três bombas explodem no metrô de Londres. 9:47 da manhã: uma quarta bomba explode em um ônibus. Cinqüenta e duas vítimas, no total. Os acusados dos atentados suicidas, todos de origem paquistanesa. Mas o que a moça da BBC esquece de falar é que as bombas que explodem em Londres também explodem no coração do Paquistão. Essa guerra de camicases suicidas lutando em nome de Allah... Esse medo que invade as entranhas do ocidente, medo de um fantasma chamado terrorismo. O oriente contra o ocidente. Um muro que separa homens pela fé. Por isso aqui nesse país paquistanês, palco de calamidades contraditórias, muitas vezes quando você conhece alguém, esse alguém te mostra os cinco dedos da mão e fala: “Está vendo? Allah fez o homem com cinco dedos diferentes numa mesma mão. Assim são os homens muçulmanos, filhos de Allah - fazem parte da mesma mão, mas são todos diferentes e nem todos são terroristas.” ::: bombalá Bombabombabombabombombabo,mababombabombbombobpmbombabombabrobombabsonbombabrnoaionvipbombabromabopombbomb bomb bombabomba bombabombas bombas

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::: sol Para esperar, esperamos. Aqui, no capô de um ônibus talvez pouco estável, entre colchões forrados com chita colorida, caixas de papelão fechadas com cordas velhas, retalhos de pano, barbante e plástico. O que tem dentro de tantas caixas de papelão é que eu acho que nunca vou saber... Se é para esperar, esperar. Parados no meio de uma estrada que passa por um povoado qualquer, aqui estamos. Em cima do ônibus, embaixo do sol, enquanto o pessoal do ônibus usa um canudinho pra transportar gasolina de um latão grande parado em frente a uma loja que vende tudo e nada ao mesmo tempo até o tanque do nosso ônibus. ::: babel Entre Phander e Chitral. A língua oficial daqui é o chitrali. Ah, quantas vezes quis entender o que dizem os que falam o árabe, o japonês, o persa, o urdu. Quanto se deixa de entender de um país se não se fala a sua língua... Na pensão, um inglês chamado Christian me diz que, por ser anglo-saxão, ele se acomodou, já que o mundo todo se esforça em falar sua língua. Estudante de políticas internacionais, ele expõe suas opiniões sobre o mercado do futebol europeu e depois vem com o papo de que os brasileiros estão cabreados com os ingleses porque na semana passada a polícia inglesa confundiu um tupiniquim com um paquistanês muçulmano, suspeito pelo atentado das bombas no metrô de Londres. Confundiu e matou o rapaz, mas tudo com boa justificativa e dentro dos padrões e normas da luta global contra o terrorismo. E já que estamos falando sobre Londres, Christian decide explicar o problema dessa Babel: muito imigrante pra poucas libras. Com os asiáticos não temos problemas em econômicas, já que esses quando vêem, vêem para estudar ou trabalhar e isso eles fazem muito bem. Mas os africanos e os centro-americanos chegam e estão por aí, sem fazer nada, sem ir à escola, sem dar lucros. Esses não se enquadram economicamente, mas

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socioculturalmente não têm problema. Com alguns asiáticos, sobretudo com os muçulmanos, é o contrário – trabalham muito mas rezam para outros deuses. E o único problema no final das contas é que nessa brincadeira, entre negros, amarelos e vermelhos, quase não se fala mais o inglês em Londres. ::: elas No jornal Dawn Magazine de 31 de Julho de 2005: “Queimadas por nada. A anistia internacional conta o caso de que em 1999 um menino amarra sua irmã no tronco de uma árvore em sua casa, joga querosene sobre seu corpo e lhe queima viva. O Paquistão não é único país aonde acontece esse tipo de coisa. Todas as sociedades tribais induzem seus indivíduos a esse tipo de práticas. (...) será que o Novo Código Penal traz alguma segurança real às mulheres paquistanesas?” ::: conspirações Então, em Mastuj, zona chitralí paquistanesa, aqui está o gerente desta “Guest House”. Cabelo e roupas impecáveis, sorriso generoso, dentes brancos e em ordem. Aqui está o jardim, as árvores de maçã. Lá atrás, o pé de abricó. Com seus bigodes engomados, aqui está ele agora, sentado num dos bancos do jardim. Além dos trabalhos de gerência, também é professor em uma escola que está a 40 minutos de boa caminhada desde aqui. A tarde inspira conspiração e tudo o que eu quero saber são as opiniões desse homem de grandes dentes brancos sobre esse mundo estranho e excitante em que ele vive - esse planeta órfão chamado Paquistão, então seja sincero, seu gerente, “o que é que você pensa do seu país?” Com sua mirada esquisita, que quase não olha pra mim, ele parece estar por um segundo suspenso no ar. Depois abre um sorriso branco e me responde olhando no fundo dos olhos

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do Jávi que “Do Paquistão eu não gosto, o povo daqui não é educado. Por todo o país há corruptos. Na mesquita, na política, te tratam feito merda em qualquer escritório do governo. Os ricos do país estão por aí, com suas enormes barrigas e carros, apenas maiores que as barrigas, de tão grandes... Eu não gosto dos paquistaneses, não.” E se eu lhe perguntei sobre as mulheres, foi porque ele me respondeu, ainda sem me olhar na cara, que “As mulheres têm uma boa condição dentro dos costumes da região. Estão seguras, apesar de que não podem sair de casa nem fazer nada desacompanhadas. E que até pra casar têm que fazer o que querem os pais, ou melhor, o pai. Mas os tempos estão mudando. E agora muita mulher e homem apaixonados se encontram às escondidas, pelos matos e quebradas da vila, sem que a família saiba, mas como é que eu sei disso, é um mistério. E já que estou embalado no assunto, não posso deixar de falar que em Peshawar tem muita mulher prostituta pelas ruas, mulheres que vendem o corpo por dinheiro, apesar do rigor das leis religiosas, apesar de ser este um país islâmico, uma república islâmica... Mas até por aqui na vila é comum que alguns pais de famílias pobres e numerosas mandem suas filhas se deitarem com uns e outros em troca de algumas rúpias. E não é só filha mulher, não. Muito pai coloca filho menino, de dez, onze, doze, treze anos no meio dessa roda.” “Eu não gosto do meu país, não. O povo daqui é muito barulhento.” ::: embaixadinhas No caminho entre Mastuj e Chitral, paramos em uma pequena cidadezinha para trocar de meio de transporte e seguir o caminho. Sozinha, saí em busca de um lugar onde poderia comprar limão. Foi assim que conheci um vendedor de porcelanas, que vivia durante o verão nas montanhas e durante o inverno em Peshawar, sua cidade natal. Louco pela oportunidade de exercitar seu inglês e excitado por encontrar uma mulher infiel e estrangeira andando sozinha pelo

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bazar da pequena vila, se oferece para me ajudar a buscar limão e no caminho da sua loja (que ele deixa sozinha sem problemas) ao restaurante mais próximo, me pede sinceramente para converter-me ao islã, depois de me pedir ajuda para ir à Espanha. Mas moço, se minha situação na Espanha é de estrangeirismo, não posso te ajudar. Ele me diz para eu lhe ajudar a ir ao Brasil, que ele sabe que está lá embaixo, nas Américas, que ele sabe que também é um país pobre, mas que ao menos tem um bom time de futebol. Encontramos o limão e lhe digo que tenho que ir, que o transporte já vai partir. E depois de me abençoar, e de pedir a Deus que um dia voltemos a nos encontrar, inshallah... me grita que em todas as copas do mundo, nunca perde uma partida do Brasil. Com um sorriso na cara, vou pensando nesses jogadores de futebol, que eu nem sei mais quem eles são, mas que, com certeza, continuam sendo os embaixadores mais populares do país pelo mundo afora... ::: praxe Hello, minha irmã, hello meu irmão! Como vai você? De onde veio? Pra onde vai? Qual o seu nome? De onde você é? Qual a sua qualificação acadêmica? Seu país é rico ou pobre? Você tem filhos? Por que não tem filhos? Qual a sua religião? Quanto tempo você vai ficar aqui? Você gosta do Paquistão? Eu posso ir agora? Ok, thank you very much. ::: please Como se o que fôssemos não importasse Como se escutar um pedaço de música pudesse levar a outro espaço e tempo Como se nenhum cheiro fosse dolorido Como se nenhum gesto chegasse à boca do estômago Como se todos os ônibus fossem pontuais Todas as putas gozassem a cada transa Menino ou menina pudessem cagar onde quisessem E gasolina não custasse mais que o pão E seu ouvido não estivesse tão longe da minha boca Como se todos esses

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que levam pistolas tirassem o dia de folga Hoje Amanhã E logo entrassem em greve Então poderíamos estar aqui para sempre, quase Lendo jornal em inglês e bebendo água mineral de garrafa 35 rupees, please... ::: veias Calor, calor, calor. Se o ar não é condicionado, o calor entra por todos os poros do corpo, devagar cai derretendo o corpo, evapora tudo, às vezes evapora as idéias e o ânimo. Para andar um metro, para andar de ônibus, para sentar para ver uma partida de críquete, qualquer coisa é custosa, se o ar não é condicionado. E Islamabad, essa louca cidade quente. Dividida em cinco zonas, geometricamente construída entre montanhas, com suas ruas planejadas e arborizadas; seu bairro comercial, batizado elegantemente por um nome em inglês, “the blue area”; seus bazares de calmos vendedores; de mulheres que compram e compram e caminham pelas ruas com as cabeças descobertas e compram; suas universidades onde paquistaneses com pinta de intelectuais e shaluar camís impecavelmente limpos caminham pelos jardins, talvez discutindo filosofia, política ou religião; seus carros elegantes que entram em contraste com tudo o que conhecíamos do país viajando pelas montanhas do norte. Enfim, uma cidade sem grandes atrações, meio que um cartão postal feito às pressas para reuniões internacionais, que tenta enganar o olhar do gringo com sua limpeza e geometria militar, e deixa que todo o seu caos e desordem potenciais contaminem as ruas de sua irmã gêmea, Ravalpindi, essa sim, sem vergonhas e pretensões estéticas, que sorri com seus dentes podres sem pudores e que traz em suas veias a vitalidade de uma cidade grande e paquistanesa qualquer. Apesar do seu frescor jovial e de suas ruas limpas e arborizadas, o que nos trouxe a Islamabad foram compromissos burocráticos. Trâmites de vistos e passaportes. E chegar à área diplomática da cidade me mata de espanto e de raiva. O que eu pensei que seria uma simples operação, mostra-se complexa e

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com pretensões de ser eficiente contra qualquer possível ataque terrorista. Para entrar no complexo diplomático é necessário ir a um posto militar, apresentar o passaporte, comprar uma entrada por dois dólares, entrar em uma fila, passar por um detector de metais, ser revistado por um ou uma militar, entrar em um ônibus e descer exatamente em frente à embaixada de interesse. Logo, para sair da área, ter que esperar o ônibus outra vez. E a gente assim, entre burocracias, calor calor calor, frescuras diplomáticas, greves do transporte público, revoluções das massas populares nas ruas e ventiladores nos tetos. Pra quê serve mesmo o ventilador? Depois de duas noites sem dormir no camping do jardim público da cidade, talvez por culpa dos mosquitos, talvez por culpa do calor, então decidimos ir a um hotel azul barato, apesar de que um pouco mais caro que o camping, com televisão a cabo ligada quantas fossem as horas do dia. Ai, que camping mais bizarro. Um japonês samurai e andarilho, com seus cabelos longos, brincos e histórias de viagens fantásticas... A cada noite estávamos aí no mato com os mosquitos ouvindo as suas histórias, vendo ele comer atum numa latinha esquentada numa fogueira feita de gravetinhos. Também um alemão mal-humorado, instalado há nove semanas no camping com sua namorada, seu cachorro, seu hamster e sua enorme van Volksvagen, parada a esperar por uma peça que vinha da Alemanha. Na verdade, a peça já havia chegado há alguns dias no aeroporto da cidade, mas os funcionários do correio não conseguiram identificá-la, já que o sistema não era informatizado e tudo era feito à base de números e a peça era apenas uma embalagem a mais em um local com milhares de embalagens e milhares de números. E assim estava o tema, eles estavam sem carro, com o cachorro, com o hamster, sem poder se mover, já que não era permitido deixar a van sozinha no camping, e, principal detalhe: há tanto tempo em uma cidade sem absolutamente nenhum grande atrativo. O sujeito estava tão desgraçado e sem inspiração que quando eu lhe disse que esperava que o assunto se resolvesse, e no final o clássico e muçulmano “inshallá”, (assim queira Deus), ele começa a gritar comigo, dizendo que deus não existe, que foda-se deus, que todos diziam

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inshallah, inshallah, mas que os paquistaneses não passavam de um bando de preguiçosos e lentos, que por isso o país estava desse jeito, tudo estava tão feito uma merda, nada ia pra frente e saía do lugar e que foda-se tudo! Antes de irmos do camping, encontramos um bilhete perto de nossas mochilas. “oi amigos, eu fui a Lahore. Se vão à India, podem colocar essa postal pra mim no correio? Ah... tem outra coisa: tem um cara super estranho aqui nesse camping. Ele me fala que vocês é de Israel com um passaporte falso. Ele é 100% seguro, porque vosso sotaque que ele entendeu na Embaixada da Índia. Eu ri demais dele... mas ele está seguríssimo! Esse Chico está super loco, attention...!” abrachos, Felix. Perdon por El español muy falso...” ::: putas Ravalpindi. Um grande espetáculo que se abre aos nossos olhos. Pelas ruas do Pindi, pás e enxadas encostadas umas nas outras. Esse ou aquele cara com uma pá ou uma enxada ou uma marreta nas mãos. Podia até não parecer, podia até não ser, mas será, mas seria e é. Estavam esses homens aí, debaixo desse sol, feito putas oferecendo-se na Avenida Afonso Pena. Esperando alguém que alugasse o uso da enxada talvez por menos de dez rúpias por hora. Se dignidade é algo que parte de dentro da gente, nada mais digno que prostrar-se imóvel embaixo desse calor que derrete o asfalto para vender habilidades com instrumentos de construção ou de campo, e estar disposto a receber 10 rúpias por hora de trabalho. Indigno é pagar menos rúpias por mais trabalho. ::: allah akbar Na estação de trem, um local reservado para homens com passagens de primeira classe. Eu aqui, clandestina mulher. Na minha frente agora há um homem rezando em cima de uma tábua de madeira. Ajoelha-se. Beija o chão. Uma, duas, três vezes. Está agora de joelhos. Olha para frente. Outra vez é para o chão que joga o corpo. Em pé. Allah akbar. Deus é grande. As mãos em forma de conchas nos dois ouvidos. Em pé, ao chão. Uma, duas, três reverências. De pé.

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No chão. Uma vez mais longa. Outra. Pára para rezar algo. Levanta. Outra vez ajoelha-se. Uma. Duas vezes. Novamente em pé. De pé, faz reverência. De novo ao chão. Uma e duas vezes ao chão. Com joelhos na terra. Agora ainda assim está. Levanta-se. Está dentro de si, ou fora, não poderia saber... Alguém se irritou por eu estar na sala reservada aos homens. Acabo de ser expulsa. Aqui fora está mais quente, mas é mais colorido. Uma menina com as mãos pintadas com flores de henna se aproxima e me apresenta sua família. Vamos conversando assim, com mãos fazendo gestos, mostrando coisas, expressões, me oferecem água, me ensinam os nomes das coisas em urdu, chega o trem e eles vão embora, com tantas malas e caixas... As mulheres vão com bonitas de três peças. Shaluar, que é uma calça larga na cintura (presa por um barbante ou por um elástico) e que vai afinando até chegar ao calcanhar; Camís, que é uma bata larga que cobre a bunda... E o lenço, o véu, o velo, que cobre tantas cabeças muçulmanas... ::: Pa fumar Alguns falam que o país vai bem, apesar de algumas coisas que insistem em pairar sobre o ar... Olha aí essas brigas de sunitas contra chiítas, mortes a facadas, que coisa, rapaz... Olha aí esses radicais que insistem em persuadir o mundo com atos de violência... Olha aí o que nos está custando isso dos atentados à bomba em Londres. Alguns associam a briga por divergências religiosas de Guilguit ao Al-Qaeda, já que estes estiveram por essas bandas e ainda vive por aqui ou por ali um ou outro jovem envolvido com o grupo. E enquanto uns deixam essa situação de disputa de credos chegar à ponta da pistola, outros estão calmamente sentados em alguma casa de chá, fumando do haxixe cheiroso que vem do Afeganistão. Como essa gente fuma haxixe por aqui...

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Bebida alcoólica, só em ocasião de alguma boda, apesar de que nas grandes cidades as leis religiosas perdem um pouco o peso da moral, mesmo se tratando de um país tão moralista como Paquistão. E um ou outro sempre acabam bêbados perdidos por alguma esquina... No campo e nas montanhas, beber vinho, só mesmo em ocasião de alguma boda. Fumar sim que se pode e que se fuma. E comprar é tão fácil quanto comprar pão – o haxixe está no balcão da loja no outro lado da rua. ::: ares Caminhar por caminhos que não existem. Caminhar com chinelo. Com calor. Deixar que o calor entre em todos os poros do corpo. Deixar que o corpo seja só calor. Sentir cada gota do suar. Suar suor meu, suor das irmãs gordas sentadas ao meu lado no ônibus. Suar suor de peregrino. Suor de paraplégicos com mãos que se estendem ansiosas, com sede de rúpias. E acordar com o corpo molhado de suor. Ventilador no teto. Confusão de corpos suados de viajantes estendidos sobre 11 camas em um dos quartos do grande templo sikh. Sem janela. Acordar em um dia assim. Uma formiga que entra no ouvido. E logo sai. Ar que cheira a insenso. Música sikh pelos ares, num ritmo que não cala desde que o templo existe. O Punjab agora é indiano. Peshawar e Afeganistão são agora palavras com cheiro de lembrança fresca, como andar em chão de terra depois da chuva. Não chove mais, mas o chão ainda tá molhado, ainda cheira a chuva...

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::: rota da seda Ai, Peshawar, com seus bazares alucinantes, esgotos a céu aberto, vespas adaptadas como táxis. A rua dos vendedores de jóias; a rua dos vendedores de tecidos; a rua dos vendedores de especiarias; a rua dos vendedores de doces exóticos; a rua dos vendedores de chás. Aqui não há um minuto sem barulho de buzina nos ouvidos. Ruas antigas, praças em memórias de ilustres mortos, música sufista que cheira a colar de rosas, colar de jasmins, chá verde, chá de limão, chá com leite, haxixe, quanto haxixe se fuma por essas místicas ruas... Por aqui passaram gregos, persas, afegãos, mongóis, sikhs e ingleses. Em uma casa de chás, cruzar com um jovem jornalista eloqüente que se apresenta como homem de sangue azul, príncipe e descendente de uma antiga dinastia real dos Kalash, que, apesar das discrepâncias de opiniões, são oficialmente conhecidos como um povo descendente dos antigos gregos que chegaram com Alexandre, o Grande às montanhas do norte do Paquistão (numa área conhecida como “Kalash Vale”) e em algumas partes do Afeganistão, por volta de 340 anos antes de Cristo e que ainda conservam sua antiga cultura, não se renderam à islamização, e vivem como uma tribo, têm seus líderes políticos, suas próprias maneiras de vestir, de crer, de levar a vida. Com o Príncipe, embalados por seu ritmo voraz, da casa de chás fomos conhecer o escritório onde trabalha com um irmão mais velho, também de sangue azul, mas muitíssimo mais eloqüente e excêntrico... Vamos todos passear pelo bazar, onde paramos para degustar exoticidades locais. Daí a um centro de música sufista, uma casa caótica como uma caixa de cores fortes e contrastantes, onde cada cômodo emana diferente vibração musical sufista. Cada sala como uma fotografia em movimento - quente, calorosa, embolada. Homens amontoados todos sobre instrumentos, sentados em tapetes. Homens morenos

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cantando cânticos sagrados para Ali, Allah, Mohamed, poesia inspirada pela fé, passada de geração a geração, o pai com o filho no colo, que desde tão pequeno já parece saber solfejar a nota certa do canto-oração. Mas os irmãos eloqüentes o que querem é fazer mais uma foto posando ao lado de uns turistas a mais que chegam para conhecer as maravilhas exóticas desse canto do Paquistão. Querem nos levar para fazer passeios de jipe à fronteira com o Afeganistão, querem nos levar a uma cidadezinha onde produzem o haxixe, querem que compremos tapetes maravilhosos feitos com toda a arte do povo das montanhas, querem isso e aquilo. Ledo engano, meus queridos... somos apenas pobres viajantes, sem dinheiro para gorjetas, com a grana contada para pagar 150 rúpias por um quarto cheio de pulgas em uma pensão decadente do bairro antigo, perto do hospital, onde vivem muitos refugiados afegãos que têm problemas de saúde. E assim nos deixam, nos vamos, eles se vão. Peshawar, batizada pelos persas de “a grande fortaleza”... É estranho pensar que no século 10 aqui foi um dos maiores centros de ensino das tradições budistas, a antiga capital do reino indiano-grego, um dos grandes centros comerciais da antiga Rota da Seda.Talvez todo o brilho do seu passado caminha nas jóias de ouro que as mulheres paquistanesas levam quando vão comprar no bazar. O resto virou decadência... Mas é uma decadência suntuosa. Quem foi rei nunca perde a majestade. Ai, ai... Peshawar, com sua pensão alucinante. Teatro de bárbaras doçuras. Lamentos roucos de clientes pobres e enfermos. E é aqui que estamos. Numa das noites de insônia em que o calor é tanto que sou só calor, escuto vozes gritando pelos corredores, pedindo passaportes no andar onde estavam instalados vários afegãos. Uma correria de um lado a outro, até que, de repente, tudo se aquieta. E estou outra vez sozinha com minha insônia.

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No dia seguinte, pergunto ao dono da pensão sobre o episódio da última noite. Ele, que nada fala em inglês, pede a um enfermeiro que aqui vive para fazer às vezes de intérprete e de tradutor. E depois de saber do que se trata, fala que não aconteceu nada na noite anterior. Nada, nada, nada, no problem, no problem, no tension. E sigo com minhas frívolas impressões, porque pra chegar a entender esse povo, esse país, meu deus, teria que ter nascido aqui, e talvez nem assim chegasse algum dia a entender alguma coisa. Parece que quem gerencia essa pensão é uma pequena menina, que deve ter por volta dos seus 10, 11 anos, e que está sempre na mesa da entrada, e que sabe mais das coisas da administração do lugar do que seu pai, ela, com seus grandes e sábios olhos atentos. Vejo a sua cara agora na minha frente, ela, que tanto se fechou pra mim durante nossa estadia na pensão. E que tanto se abriu ao ter se fechado tanto... Ela, que não me deixa pintar sua mão com flores de henna, mesmo com tanta vontade que tem de se pôr bonita. Ela, que chega um dia em que estou vestida com uma camiseta e sem o véu em frente ao meu quarto e me pede ordenando em urdu e com gestos, para me vestir melhor, que isso aqui é uma casa de família. Apesar de toda a sua aparente maturidade, um pássaro passarinhava no seu peito, só que talvez, sem perceber, ela teve que calar o pássaro, para poder viver no universo masculino e austero da pensão. Tem um irmão, a menina, que também sempre está pelos pátios e corredores, e que tem também olhos de quem já viu muitas coisas, que talvez um dia possa vir a entender. No dia de partir, lhe dou um beijo no rosto e ele não sabe onde pôr a cara avermelhada pela vergonha... acho que eram órfãos, meus meninos de Peshawar, e deixaram de ser meninos há muito tempo, ou nunca chegaram a ser .... Sinfonia de choro de crianças, de escarros e tosses, de orações que são cinco por dia. Sinfonia de buzinas, de vendedores de caldo de cana, de suco de limão, de doces, relógios, kebabs, de móveis, de roupas, de sorvetes, de tapetes, quantas coisas se podem vender, meu Deus...

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E no meio da noite o calor é tanto que temos que abrir a janela e a privacidade para qualquer um que esteja passando em frente ao quarto e queira dar uma espiadinha, menos por curiosidade que por costume. Nessa pensão, todos sabem de todos, tudo se conhece a fundo. O calor mata a privacidade. Todas as portas e janelas têm que estar abertas. Questão de sobrevivência. Nossos vizinhos de quarto são um alemão que se arrisca a falar algumas palavras em urdu; um americano com barba de 20 meses de viagem que se arrisca a pedir visto para entrar no Iran; e um vietnamita que aos poucos mais de 10 anos fugiu do seu país com um irmão e conseguiu chegar à Austrália como refugiado e hoje é australiano seu passaporte e o inglês a sua língua. Os três mosqueteiros, com quem estamos a cada noite compartilhando histórias e calor e iogurte, que um ou outro sempre temos a diarréia. Em Peshawar está Afeganistão. Uns se refugiam por alguns anos e outros pela vida inteira. E é aqui que se come o pão com soluço preso na garganta. Soluço de refugiado. No trem rumo a Lahore, o último suspiro de Kabul. Está aí o pai olhando para a janela, com sua cara longa e chupada, tantas linhas numa cara que parece que muito já sofreu. Um pequeno ao seu lado, com um desses lenços palestinos marrons, envolvendo pescoço e ombros, já com cara de sono. O filho grande acaba de chegar do banheiro da estação, bem na hora do trem partir. Tem a cara ainda molhada e cheiro bom de sabonete, que invade o triste e sujo vagão do trem. Calça justa no corpo e camiseta assim também. Chinelo nos pés e soltura de quem parece que está em casa. Diz algo à família e logo é todo perguntas em inglês de quem vive em Karachi, the internacional city of Pakistan, my friend. Conta que “Vivemos há dez anos em Karachi, que é pra onde estamos indo agora. Estamos chegando do Afeganistão, nossa terra, terra do meu pai, que já tá velho, já, e queria ver sua Kabul pela última vez. São de Kabul todas as suas histórias, toda a sua juventude. Todos os seus sonhos ficaram por lá. Olha a cara que ele tem agora, com seu olhar alheio à noite, ao

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trem, à vocês, estrangeiros. Olhar de quem só espera pela morte. Meu irmão pequeno também nasceu em Kabul, como eu. Mas tivemos que sair fugindo, com pressa, há dez anos atrás, quando ele tinha apenas 6 semanas de nascido. Fugindo da guerra, que tomou conta de tudo. Eu me sinto mesmo é de Karachi. Kabul pra mim é triste, ou me deixa triste, não sei ...” Um militar entra no vagão e faz uma brusca vistoria geral na bagagem da família que volta do Afeganistão. Nunca se sabe o que trazem de lá. Clima pesado. Revista tudo, não encontra nada e se vai do vagão, provavelmente em busca de outros afegãos... “Eu não entendo o que vocês, estrangeiros, vêem fazer aqui, por que vocês vêem pra cá, com tanto lugar bonito e pacífico no mundo. Deve ser pra ver o diferente, pela experiência. Mas pra gente que é daqui, isso não vale merda nenhuma. Não vale nada.” E se calou. Falou alguma coisa com o pai, outra coisa com o irmão. E se calou. Calamos todos. Na garganta, um aperto, um soluço abortado, que talvez não fosse hora de soluçar. O trem agora é o único que fala. E eu olho pro velho e seus olhos me parecem ser só saudades de Kabul... ::: decomposição Na cara da mulher indiana vejo estampada a boca, o olho, o nariz, a volta da orelha, a curva do fio do cabelo de todas as mulheres paquistanesas que estão afogadas por detrás da burca, do véu, do velo. Aqui, um círculo vermelho distingue mulher casada de mulher por casar. Estão por todas as partes as mulheres, com suas cores fortes em contraste com essa pele escura. Movimentar braços e pernas é tocar música. Tantas pulseiras enfeitam e dão melodia a esses braços velhos, jovens, mais jovens ainda, recém nascidos. Silenciosas estão nas mãos as pinturas de henna, vermelha, laranja, preta. E assim as mulheres vão vestidas de deusas pelas terras sagradas da Índia.

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E esse cheiro de merda e lixo se decompondo numa transa louca com cheiro de insenso selvagem. Parece dizer pra gente não acreditar no que estamos vendo. Que a merda é natural, é vida. Que das cinzas da merda o cheiro real que sai é bom, é cheiro de insenso. Cheiro que sobe aos céus pra lembrar aos deuses de que estamos aqui e que somos feitos de merda e de perfume. De compo e decomposição. ::: facilidades E, sobretudo estão as libélulas nas montanhas himalaias. E as maçãs, o milho e os pinheiros. E as mulas. É engraçado olhar Tissa e a estrada daqui de cima. Daqui dá pra escutar e ver o motorista que buzina antes de cada estreita curva da estrada e eu aqui dizendo pra ele “pode ir tranqüilo, moço, que não vem carro na outra direção...”. Montanhas são assim, enganam a gente. Perto é longe. Escondido é visível. Depende apenas de onde estamos, como olhamos e escutamos. Depende das curvas. Uma questão de curvas. E os motoristas seguem sua rota, com um altar bonito dentro do caminhão. Uma mulher com moedas de ouro nas mãos. Um homem azul com uma serpente enrolada no pescoço. Um elefante com olhos de mulher e barriga de homem. Um macaco com ares sublimes. Uma vaca vestida de dourado. Aqui em Báraga as pessoas te oferecem maçãs e te dizem para estar atento com as serpentes. There is no facilities here. Me falou um policial quando eu buscava lugar para fazer as necessidades. Cagar ou mijar pra quem vive em casa sem banheiro é entre arbustos e matos. ::: ímã Então Himalaia. Himalaia verde. Essas estradas feitas pedra sobre pedra. Obra de arte construída com a velocidade de pedreiros nepalinos e indianos. Verdadeiros mosaicos essas estradas.

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Desde Báraga, bonita estrada que vai até o topo da montanha. Aí em cima do carro, vamos fazendo a estrada. Vento na cara, sonhos e pó de estrada. O topo do caminho alcança 4 mil e quinhentos metros de altura. Minha vó me contou uma vez que quando era pequena uma das suas irmãs lhe falou que se ela subisse no alto da montanha que estava perto da fazenda onde elas moravam que ela poderia tocar o céu. Desde aqui dos altos himalaias, tocamos e andamos entre nuvens. Nós e os construtores da estrada, que por estar incompleta, tivemos que fazer um bom trecho caminhando, com frio polar, de gelos glaciais. Esses pedreiros anônimos com caras chinahindus são os guardiões dessa mística passagem, o Sage Pass. Com suas caras de samurais indianos cheias de pó, entre chás com leite e macarrão miojo feito pra um batalhão. Estão aí, quebrando pedras, às vezes com dinamites, outras com o martelo, mesmo. ::: ervilhas E aqui estamos nessa estrada, onde tudo foi colocado quase ao acaso, onde trinta quilômetros se tornam duzentos, num jogo louco entre caminho-espaçotempo. E a natureza é tão bruta que parece uma vaca pastando debaixo da chuva. A baba de vaca ruminando grama. É lama na vaca, no dorso desnudo da vaca. Fitas de sucessos musicais de Bollywood guardadas a cadeado no porta-luvas do carro. Bens preciosos, escutadas com devoção e insenso em todo o trajeto Killa-Manali. O templo a Buda e suas lâmpadas fosforescentes no painel do carro guiavam o motorista e seu co-piloto, homens muito vaidosos, daqueles que estão sempre munidos com um pente que trazem embaixo da poltrona.

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Fomos assim, braço contra braço, sacos de ervilhas, chacoalhando as cadeiras do corpo e as colunas vertebrais do carro. De carona em um carro de fazendeiros que levavam ervilhas cultivadas nos campos de Killa para ser vendidas em Manali. Vinte quilômetros por hora, às vezes cinco. Dependendo da chuva, da neblina, do engarrafamento de caminhões ou do riacho que se metia sem pedir licença no meio da estrada. De momos (pequenos salgadinhos nepaleses) e de escarros foi a viagem. Como escarrava o motorista... Mas, sobretudo de ervilhas. Pra gente aprender definitivamente a ser ervilha em saco de ervilhas. Às vezes é absurdamente fundamental aprender a ser ervilha para seguir viagem. ::: Israel Pois é, o dito e o redito por não dito. Para alcançar céu, sossego, viagem tem que ser muito por dentro, ainda que fora por algumas vezes. Tem coisa que dói e aduba mais do que sentimento de solidão? Dias sem ter nada que sai muito de dentro para poder contar. Manali... Grande parque de diversões, onde indianos de classe média e judeus israelenses estão aos montes, sempre em bandos com suas motos Enfield’s, fumando Shilluns (espécie de cachimbo em formato de cone) ou comendo pitta (pão israelense) com húmus, com cardápios traduzidos para hebreu. Está aí sentado um cara comendo chapati (o pão indiano sem fermento) e yogurte com açúcar. “Você é israelense”, lhe pergunto, e ele me responde que “Sou, o que posso fazer?”

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::: mãos Combater combate de fé. Cruzadas tecnológicas. Um último chá serve talvez de consolo pra esse sentimento de incompreensão diante de uma manta de cashimir falsificada. Mãos que se unem para a hora da oração. Mãos sujas de farinha para fazer o pão. Mãos em forma de conchas para beber a água. ::: pin e spit Mulheres ninjas. Tibetanas indianas que colhem milho e ervilha nos desérticos vales de Pin e Spit... Vales de cores desérticas, vales secos, de areia, contrastantes com as verdes montanhas himalaias. Vales de uma força elétrica incrível, meu Deus, de chegar ao ponto de causar choques entre toques de mãos com mãos, entre toques de corpo com coberta. Na penumbra da noite que lindo é ver os pontos brilhantes dos elétrons brincando saltando na levada do toque dos dedos com a manta de lã... Foi em um desses dias elétricos de céu azul que compartilhei na pele e nos ossos o trabalho do campo com uma família de mulheres ninjas “tibetanindianas”. Arrancar ervilhas das moitas plantadas em fileiras em um campo extenso. Encher sacos e sacos com as ervilhas e depois equilibrar sacos e sacos no lombo de um burro lânguido e tranqüilo. Trabalho feito ao som das frases cantadas da mãe e da irmã aos dois bebês gêmeos que ainda que eu não pudesse entender o que diziam, intuía que faziam perguntas o tempo todo. Perguntas que mereciam respostas rimadas. Aliás, isso é um segredo, mas nessa parte do mundo muita gente fala rimando... e isso... nunca provei ervilhas tão gostosas. Poderia estar até hoje lá naquele campo com a mamãe e os três irmãos, aprendendo a responder perguntas com rimas e comendo ervilhas doces verdes. Mulheres ninjas. Tibetanas indianas que colhem milho e ervilha nos desérticos vales de Pin e Spit...

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Ai, mulher... Corpo dolorido. Mão que por costume não deixa nunca de seguir o balanço do gesto de ninar o filho, de cortar o trigo, de embalar o molho de grama pra alimentar o burro, de amassar a massa, de preparar o chá, de fazer chapati. Um, dois, três, quantos forem os chapatis para quantas forem as bocas para comer. Aqui estamos todos esperando pela comida. Arroz e lentilha. Arroz e feijão. Chapati e chá com manteiga, já que é assim que se bebe o chá no Hindutibet que é essa parte das montanhas himalaias, que eram tibetanas antes do governo desse país trocar essa parte do território por armas com a Índia... Aqui estamos avó, avô, papai, titia, mamãe e as duas filhas. A menininha que é tão pequena e sempre úmida de xixi, agora mama agarrada ao peito da mãe, que tem cara de cansaço e de dor. Levantar do chão é difícil. As pernas doem. Trabalhar a terra dói. Sol forte, vento às vezes frio de glacial. A mais velha corre e sorri muito com seus olhos puxados. Está agora dormida no colo da vó, depois de pular e cantar cantigas tibetanas. Dorme tranqüila e tem na cabeça um bonito penteado feito pela vó, ai, esse chamego, esse dengo todo que minha vó tem comigo... A casa é grande e limpa, como quase todas as casas dessas vilas budistas dos vales vizinhos. Casas brancas e suas janelas com marcos feitos de cimento e pintados de negro, suas bandeiras coloridas nas quais orações que bailam nas lajes das casas. Gente de pouca palavra. Gente do campo, com olhos puxados, que entalham no pano da bandeira e na dureza da pedra suas orações. A comida ficou pronta. A pequena despertou-se do seu ensonhar. Tem fome, também.

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::: ganga Em um canto do caminho, tomando chá com leite e chapati com guisado de batatas. Em Gangotri passa a estrada peregrina com a força e a pureza do glacial de onde nasce o rio Ganga, o Ganges, rio bendito entre os rios, fluxo sagrado contínuo inexorável, membrana cervical da religião hindu. Em Gangotri passa o rio que nasce embalado pela força de todos os mantras, que quando pronunciados dão oito voltas pela Terra. Ah, rio sagrado... Água de beber água, de benzer, água de banhar. Água que sai da cabeça de Shiva e vai descendo pelas terras santas da índia, sangrando vida até desembocar no mar. Diante do rio, o que se vê é um espetáculo de cores, de corpos e de fé. Homens e mulheres, crianças, jovens, velhos, vacas. Desnudar-se diante do rio, para todos os deuses dessa terra. Desnudar-se para ofertar-se. Primeiro tocar o rio discretamente e com medo da sua água fria. Logo, mergulhar as mãos, quase sem medo já... E depois passá-la pelos braços, caras, pernas, com a mesma devoção com que se passa creme hidratante no corpo depois de um dia de muito sol. E o frio do ar e da água já não é mais tão frio. Água no corpo inteiro agora, pra limpar e ofertar corpo e coração a todos esses deuses coloridos, com sete braços ou cara de elefante.

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Somos cinco irmãs, barrigas de mulheres que já parimos algumas e tantas vezes. Cabelos já prateados, penteados em longas tranças. Tornozeleiras nos dois pés e pulseiras nos braços. Aqui está, Lord Shiva. Em uma pequena vasilha feita de folhas, te ofertamos flores amarelas, brancas, vermelhas. Essas flores deixamos aqui para que o rio leve até chegar ao mar... No chão, ficam cinco velas feitas de algodão e curadas no óleo. Uma vela para cada irmã. E levantar do gesto da oferenda. E caminhar conforme a vontade de nossos corpos, velhos, cansados, gastados, mas com fé. Envolver-nos cuidadosamente nos nossos saris, já puras para voltar à vida real. ::: por baixo Debaixo do cabelo do baba que vai debaixo de tanto cabelo e óculos; debaixo do sari dessa moça, que talvez não leve nada debaixo do sari... Debaixo desse prato de arroz, a comida nossa de cada dia. Debaixo de 40 kilos de capim, que leva o avô, a menina e a mãe, nas costas, pela vila e pela vida afora... Debaixo dessa montanha, esse rio que passa por debaixo da janela do templo, da igreja, da loja. Debaixo da barriga dessa vaca e desse homem e desse cão, o cão que mais dorme no mundo. Debaixo do sonho desse cão talvez more uma pulga. ::: ... Poderia escrever sobre o insenso de boca que os homens daqui usam, para deixar o hálito cheiroso. Ou sobre a sombra que faz o pinto murcho de tantos velhos daqui, que sobressai quando usam saia branca feita de algodão transparente. Sobre os olhos do baba que nos acolhe quando conversa com a gente por sinais e por sons, porque fez votos de silêncio. Sobre o silêncio suportável do dono da cantina que está aqui perto do nosso Ashran (templo hindu), que sempre nos traz o chapati antes do chá, para que comamos, antes de qualquer outra coisa.

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Sobre cidades do norte do vale de Chamba, onde você está caminhando pelas poucas ruas e chega alguém e te oferece uma maçã. Ou sobre o prazer de abrir a casca da ervilha e comer suas sementes, uma, duas, três mil vezes. Sobre o baba que me fazia massagem nas pernas, nos pés, nos braços, cabeça, cabelo, quando íamos os dois com as cargas de um carro de transportes numa noite de chuvas. E que depois de beijar a sola dos meus pés, tenta beijar a sola da minha boca, mas eu não deixo sentindo uma mescla de espanto e graça. Ou sobre as tetas caídas de uma mãe macaca. Sobre o barulho bom que faz o rio quando passa, as motos Enfield’s quando passam, ou um burro muy sentimental, quando passa. Sobre como é gostoso riscar um palito de fósforo de cera ou comer marmelada de abricó ou conversar com algum banguela ou parar pra descansar no meio de uma grande caminhada. Poderia escrever sobre muitas pequenas grandes coisas. Mas não vou escrever nada. P.s. Nos caminhões sempre estão desenhados os dizeres: “Por favor, buzine!” ::: hindu) E toda essa gente que fala de amor... Guardiões fiéis do rio Ganga, lá vão os sadus, que acompanham o rio desde seu nascer glacial até seu desembocar marinho... Um pedaço de trapo colorido no corpo, bastão e um saco com alguma migalha de pão e um shilum, que é pra fumar charas. Em sânscrito, uma mesma palavra quer dizer ontem e amanhã... Vinte e seis anos com um dos braços levantado. Cinqüenta e dois anos sem sentar ou deitar. Toda uma vida sem pronunciar uma palavra. Faquirismo. Ascetismo. Sadu que fala sem mover os lábios. Poderes sobrenaturais. Desafios sobrenaturais. Sentado em sua

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presença, se pode sentir seu poder. Fumando o dia inteiro para conectar-se com o invisível. Quase sem comer nada. Sem sentir dor ou fome. De cada cem que se dizem sadus, apenas um é verdadeiro. Hara Hara Shiva Bam Bam Bole ... Jai Mehadeva Jai Bholanatha ... Jai Jai Amaritha Bole! ::: lição E agora que o trem vai partir e que o rio ainda criança, corre devagar, por aqui tudo ainda estará preservado. A vaca que come o papel e lambe a madeira; a mulher que carrega todas as cores do mundo numa palavra tatuada no tornozelo esquerdo; o homem que acelera o carro, buzina e sorri com um palito de madeira entre os dentes. Ai, esse caminhar que acompanha ao mesmo tempo todos os ritmos da rua onde moram todos os vendedores de música... Aprender a linguagem da esmola. O gesto de pedir chá, para poder beber. O gesto de pedir chapati, para poder comer. O gesto de pedir charas, para poder fumar. Quando a mão que pede é santa e a água do rio é benta e cada montanha e estrada é sagrada. Lambe o saco, cachorro, lambe o papelão, vaca, porque hoje todo mundo vai comer com a mão. ::: outra estação Estamos todos sentados ou prostrados pelo chão da estação de trem. No grande pátio de entrada, algumas vacas parecem estar também compartilhando do sentimento de espera, de partidas e chegadas. Cachorros, motos, babas. Grandes famílias sentadas ao redor de tantas malas, mochilas, caixas, sacos. Mulheres com sua áurea de deusas vão enroladas em

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elegantes saris. Palavras saem voadoras de todos os cantos. Homens com ares de tudo saber. Crianças que inventam qualquer tipo de jogo para passar o tempo. Babas com dorsos desnudos, bastões de peregrinos e marmiteiros de alumínio. Jovens amigos vestidos como estrelas de Bolywood, que andam de mãos dadas por todos os lados e direções. O moço do carrinho que vende chás. Um rapazinho que toca uma doce flauta. Um trem que chega. Um velho de pele escura vestido com shaluar vermelho, que atravessa andando os trilhos do trem. Jávi que lê “The times of India”, sempre em busca dos resultados do futebol do campeonato europeu. Dois amigos que conversam em frente a uma balança enfeitada com luzes pisca-pisca. Uma mulher vestida de laranja que passa e deixa um rastro bom de perfume no ar. Outro trem que acaba de chegar. Falazada e correria. Muita gente se embola em frente às portas do trem que chega. Um paraplégico passa correndo com as mãos no chão, somente Shiva saberá como não é pisoteado por tantas pernas que correm com medo de perder o trem... de onde foi que saiu toda essa gente? Parece que nunca pára de entrar gente no trem. Uma velha passa com um balde azul novo nas mãos. O menino vendedor quase nos atropela com seu carrinho de doces, com quatro grandes rodas de bicicleta. Um jovem casal munido com muitas malas. Casamento arranjado ou por amor? Em frente ao trem, calmaria agora. Todos esperam sentados em cadeiras ou no chão, ou espalhados pelos corredores a fora... Uma mulher me olha curiosa, de braços cruzados, com um círculo vermelho na testa, um grande brinco dourado no nariz e seu shaluar camís verdeclaro. Faz muito calor. Uma gringa nos pede para cuidar da sua mochila. Um cheiro bom de mato invade os ares. De onde vem esse cheiro? Um homem com bigodes e camisa xadrez brinca com o jogo dos quadrados coloridos que não sabemos o nome e que Jávi me acaba de dizer que nunca

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conseguiu vencer. O trem parte devagar. Parte para Varanasi, outra cidade sagrada. Pela janela, vejo toda essa gente tumultuada e colorida. Os atrasados ainda conseguem entrar correndo pelas portas, em saltos. O trem pára outra vez. Estão todos muito loucos. E tudo parece sempre um grande improviso nesse país. No relógio grande, passaram-se cinco minutos. Agora sim, o trem vai embora. O ar agora parece brisa suave. Boa viagem, gente, cuidado pra não cair da porta. E a estação volta à sua intranqüila e inquieta tranqüilidade. Se acabaram todas as nossas rúpias. A garrafa de água já ta quase no fim. Um bebê chora. Ai, Índia, índia, índia, não pensava que seria tão difícil te dizer adeus... Dois babas que conversam em rimas. Um velho com tosse de quem já fumou muitos beedes (cigarrinhos artesanais envoltos em folha de uva) e shiluns. Um menino que passa descalço, olhando para os pés.

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::: verde e quente E entrar no trem e perceber que a passagem foi comprada para o próximo mês. E sentir raiva e sentir calor e sentir fome, mas não descer do trem. Amontoados com nossas mochilas, eu no leito de cima, Jávi, no leito de baixo, aproveitando minutos de cochilo antes que os donos dos lugares cheguem. E chegam. E temos que sair. Até que um jovenzinho indiano nos oferece seu leito num outro vagão, depois de olhar apaixonado para o seu amigo, com quem dividirá o leito durante o percurso até Amritsar e que nos dá seu olhar de aprovação. Índia tem dessas coisas, quase que revolucionárias. E é assim que viajamos mais uma vez. Dois dormindo em lugar para um. E pela manhã, abrir os olhos e já estar de volta ao calor verde do Punjab. Verde. Verde. Família de porcos que correm e se lambuzam no lixo. Lama na pele de búfalo. Leite de búfalo. Casa de tijolo vermelho sem reboque. Um menino que limpa búfalos. Leite de búfalo é mais suave que leite de vaca, que leite de cabra. Ouvir o caminhar de uma manada de búfalos. Punjab é verde e quente. ::: recortes

1947 imperialismo britânico independência separação artificial subcontinente indiano opressão povos região burguesia indiana gerando novos agravando antigos antagonismos nacionais população muçulmana Caxemira submetida domínio Índia intensa repressão policial "legitimada" eleições (fraudadas) governos fiéis Nova Déli. terreno explosivo expressão insatisfação população caxemir grupos guerrilheiros separatistas rechaça fundamentalismo islâmico hostil tradição caxemir reivindica independência estado acredita união Paquistão signifique troca opressão outra Islamabad patrocinava JKLF aspirações independentistas grupo governos paquistaneses alimentar outros setores oposição caxemir

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simpáticos anexação região seu território, particularmente guerrilhas fundamentalistas mujahedins (guerreiros da liberdade) passado patrocinadas EUA contra URSS Índia. ::: nascer... E quem nunca esteve em Lahore, não nasceu ainda. É esse o dito. E então e enfim, nascer... Talvez tenha sido porque havia uma árvore e dessa árvore brotou uma casa, outra casa e uma mesquita, depois um prédio com a pintura desbotada, uma praça e outra casa. Em Lahore, a sensação que tenho é de que a cidade joga tudo na minha cara, descaradamente. E com tudo estou numa transa louca. Metida no meio desse jogo muçulmano-hindu do pique - esconde. Escondo e mostro. Arreganho e dissimulo. E dois são um. Escondidos ou expostos. Essas ruas, galerias de toda a anti-arte que o mundo pôde criar, por onde passam o menino e o camelo. Por onde passa um rio de merda e de lixo, o rio-esgoto que acompanha vida e velocidade dessa rua, que nem começa e nem acaba nunca. O único que vai devagar é um velho com seu shaluar-camís branco e quase transparente de algodão e seus óculos de grosso aro negro. Ai, esses homens de pele escura, de suor e cimento pelo corpo, indo e vindo no meio de muito pó. Ai, essas mulheres com o corpo marcado pelo suor na transparência e na leveza da roupa colorida, com a ponta da língua marcada na piscada do olhar. O homem que mete na boca a folha de alguma planta, lambuzada em uma pasta doce, depois de fumar o cigarro sem filtro. O velho e o corpo nu do velho, que treme no passeio quente de uma dessas avenidas grandes.

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Estômagos de cabras flutuando em grandes bacias de madeira. O cego e os ruídos. O paraplégico e suas mãos. E todos os vesgos estrábicos em geral O organismo que decompõe. Corpo que envelhece. Desse jeito de lamber de suar e de apenar sei-lá-o-quê sai um cheiro quase bruto, quase suave de erotismo. Suar, sexuar, na ponta do dedo. ::: tijolos (Alguém falou que 80% do dinheiro público do país vai para o exército. Será esse um dos tijolos do muro que separa o Paquistão do resto do mundo?) ::: As long as i live As long as I live (Alli Hyder) I don’t want any fight and war I want to sit in the best car. - No fight, equal rights! I don’t want any hunger and strike

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I want back my four legs bike - No fight, equal rights! I don’t want any weapon as toy. I wan’t back my animal and monkey boy. - no fight, equal rights! ::: alli ryder Sobre Alli Ryder posso dizer que pelas ruas de Lahore caminha Alli Ryder. Espécie de paquistanês quixotesco, desses que guerreia contra moinhos de vento e batalhões de formigas. Peculiar personagem do cinema contemporâneo paquistanês, peça chave e fundamental da sua futura e elegante revo-evolução. No fight, equal rights! Ai, Alli Ryder, com sua risada estranhíssima; seu cabelo impecável; seus olhos esbugalhados assim, bem vivos; sua voz pausada e decidida; suas botas de vaqueiro; camisas sempre abertas, deixando sobressair sem pudores alguns pêlos selvagens... Assim caminha Alli pelas ruas de Lahore com um amigo e guarda-costas a tira-colo, um agente da inteligência secreta paquistanesa, com sua arma reluzente e secreta guardada na cintura por debaixo do shaluarcamís, homem capaz de solucionar qualquer problema de infra-estrutura ou deslocamento físico-espacial... Assim Alli pode se preocupar do ideal utópico enquanto seu agente secreto se preocupa do real e palpável. No fight, equal rights! Alli cruzou por nossa rota na estação de trem de Ravalpindi, quando íamos para Peshawar. Nesse dia ele caminhava tranquilamente com um amigo anão, um simpático ator de Lollywood, que era abordado a todo instante por curiosos e aficionados que lhe pediam para posar para fotos. Nos conhecemos e

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compartimos poesias, chá e um belo pôr-do-sol num vagão com ar condicionado. Trocamos telefones, mails e promessas de um futuro encontro em Lahore. E assim, foi. Em Lahore está Lollywood, The Never Dreams Studios, grande fábrica do cinema paquistanês, assim como é Hollywood para os americanos e Bollywood para os indianos. Lollywood é o palco por onde se move Alli Ryder e é para lá que ele nos leva em um ritch frenético, por caminhos feitos de solavancos, curvas e buracos. Na entrada do tal Never Dreams Estúdios estão rodando uma cena com os mais importantes atores do país, vigiados por uma platéia de curiosos que se amontoam nos muros do estúdio e assistem compenetrados e silenciosos à rodagem. Passamos pela gravação e entramos no que é o estúdio propriamente dito, com toda a sua precariedade à flor da pele, seus jardins mal cuidados, salas de gravação e mixagem e sua grande mesquita, que parece ser o que há de mais voluptuoso por aqui. E é no alto da mesquita que Alli nos revela em seu inglês extravagante suas idéias para o roteiro que irá revolucionar o cinema do seu país, onde reinam os musicais inocentes e românticos. Alli quer produzir um filme em inglês sobre as oito maravilhas do mundo, apresentando ao exterior a Karakoram High Way como a oitava das maravilhas através dos olhos de duas crianças excepcionalmente inteligentes que levarão os espectadores a uma viagem a bordo de um tapete mágico. Assim de grande sonha Alli, menino pacífico filho de um homem bruto das forças armadas paquistanesas.

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::: pés para viajar Quinta-feira. Dia verde. Dia sagrado para o sufismo, corrente mística poética filosófica, a via interior do islã, que aproxima o individual ao universal, o ser à realidade última. Por muito tempo abominado como bruxaria barata, heresia, satanismo, ainda hoje o sufismo é mal-visto por grande parte dos muçulmanos ortodoxos... Em cada país o sufismo adquire nuances e cores particulares e locais. Nas montanhas do Paquistão e do Afeganistão o sufismo é respeitado e ancestral. Nos tempos antigos, aprendizes de todo o oriente iam em caravanas visitar aos sábios sufis da região. Faça uma pergunta e comece e girar, te dizem os sufistas. Na Turquia a cidade de Konya é famosa pela dança dos seus dervixes vestidos de branco rodando ao redor do próprio corpo e por ser a cidade natal de um dos mais famosos sufis de toda a história, o grande sábio e poeta Rumi. “Vem, te direi em segredo aonde leva esta dança. Vê como as partículas do ar e os grãos do deserto giram desnorteados. Cada átomo feliz ou miserável, gira apaixonado em torno do sol”, te diz Rumi. “Faltam-te pés para viajar? Viaja dentro de ti mesmo, e reflete, como a mina de rubis, os raios de sol para fora de ti. A viagem conduzirá a teu ser, transmutará teu pó em ouro puro.” No Marrocos estão os gnawa, sufistas africanos. Antiga etnia de senegaleses que chegaram ao país há muitos séculos atrás. Celebram seu amor ao seu Deus Allah através de complexos rituais de cura que te fazem lembrar da umbanda e do candomblé afro-brasileiro. Através da música ressonante de um baixo ancestral, o sentir, feito com couro e cordas de tripa de cabras, de cantos e danças de transe, os gnawies invocam os poderes de cura das cores em cerimônias ritualísticas e musicais que duram uma noite inteira. A Lila, a única noite. Puro transe. As mulheres se vestem a cada canção com uma túnica de

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uma cor diferente e entram em transe com a batida da música e da força do que dizem os cantos e caem e se debatem no chão, inconscientes; um rapaz passa a faca por todo o corpo sem se cortar; um homem anda nas brasas sem queimar os pés. Quinta-feira. Dia em que soam os mágicos tambores sufistas pela noite lahoriana. Costume secular. É quando uma multidão de fiéis se reúne na tumba do santo sufi Baba Shah Jamal. Fiéis ao santo, ao transe, ao haxixe. Labirinto de corpos suados, amontoados todos ao redor de antigas catacumbas de muçulmanos mortos. No ar paira o som de um hipnotizante toque de dhols (tambores tocados com varetas de bambu) e a fumaça que sai potente dos muitos baseados que passam de mãos em mãos de homens. Viva Alli, gritam todos alucinados, homens que fumam quatro baseados ao mesmo tempo. Alli! Alli! E assim segue a noite. Na roda musical, agora é a vez de um homem bem moreno, de rasgos indianos rodar e rodar, tal dervixe absorto pela magia do amor à religião e à música. Roda sem parar e leva todos os que estão presentes ao delírio. Calor. Fumaça de cachimbos. Pele suada. Fricções. Fé. Delírio. Sempre

delírio.

Quem

nunca

foi

a

Lahore

não

nasceu

ainda,

Lahore

é

Lahore,

assim

é

o

dito.

E

assim

é.

::: cidade dos camelos

Numa cidade como Lahore qualquer coisa pode acontecer. Tudo é possível, apesar de todas as leis, todas as paranóias, discursos e morais. Onde vivem homens humanos e onde existe pobreza e desigualdades, chega sempre um ponto em que tudo é permitido, por mais incrível que possa parecer. Allah Wakbar! Numa

manhã

de

mau

humor,

Lahore

pode

ser

palco

de

grandes

desencontros

e

frustrações.

E se eu quero me perder de Jávi, eu posso me perder de Jávi. Ele se mete numa cabine para telefonar para Barcelona e eu me meto numa mesquita para ver

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se

consigo

acalmar

meu

coração

e

fugir

um

pouco

desse

calor

que

me

atravessa

a

alma.

E se eu quero me perder de Jávi, já estamos perdidos um do outro. De lá pra cá, tento ver sua silhueta atravessando a rua, ou sentada tomando um chá e lendo

algum

jornal

em

uma

cantina.

Mas não. Encontro-me mesmo é com um casal de belgas, que tínhamos conhecido em Isfahan e que estão, como eu, quase derretendo baixo esse sol escaldante. Tomamos um chá juntos, falamos sobre nossas viagens, eles me emprestam algumas rúpias, ao menos para voltar pra casa, e nos despedimos. E

volto

a

estar

perdida,

perdida,

perdida

e

sozinha,

sozinha,

sozinha.

Peço informações a um jovenzinho, que, empolgado, decide me levar por um tour pela cidade em um ritch. E percebo que cada vez mais nos afastamos do centro. Passa um rio, passa outro. Confusão de carro, de gente, de vacas, de tudo o que pode ser caótico e paquistanês. Pára o ritch e o jovem me convida a descer para conhecer sua irmã. Ai, que raiva, garoto. Que merda. Quero ir embora, estou perdida numa cidade louca que eu não conheço direito, num país louco, mais louco que eu... mas ele, quase chorando, balançando seu cabelo liso e negro de um lado para o outro, insiste para que eu desça do veículo e que, por favor, conheça sua irmã... Tá bom, eu desço. Entramos em uma loja de roupas, subimos uma escada e no segundo andar estão máquinas de costura, e no terceiro, é uma simpática mulher com um belo sorriso no rosto que me abre a porta, e mostra-se muito à vontade com uma invasão estrangeira em sua casa. Sentamos todos nos tapetes espalhados pelo chão e ela me dá um copo de coca-cola, doces melados de cor de abóbora e põe sua filha no meu colo. Conversamos o que podemos conversar, digo minhas grandes frases feitas em urdu e percebemos que o melhor mesmo é prestar atenção nos clipes de músicas bolywoodianas que passam na tevê. O tempo passa e aponto para o relógio e digo que tenho que ir. Nos despedimos e volto a estar sozinha com o jovenzinho dos cabelos lisos e negros. Esse louco jovenzinho, que me põe louca, a cada minuto a mais ao seu lado. Não conseguimos

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nos comunicar. Ele não fala nada em inglês. Ele, que é tão generoso, que tudo quer me presentear, que talvez nunca tenha conhecido uma branca infiel na sua vida, e quer me apresentar a todos os amigos do bairro, a toda a sua família. Ele, que tudo o que quer é fazer com que eu me sinta à vontade em sua cidade e em seu país. Só que tudo o que consegue provocar em mim é uma vontade louca de lhe dar um murro na cara, de xingar alguns palavrões no português mais barato que eu conheço. Conseguimos sair do bairro e agora a complicação é voltar para o meu bairro. Achar o transporte certo. Tudo de uma hora pra outra tornou-se difícil e impenetrável. Mas por fim, não sei ainda como, conseguimos chegar à Waddah Colony, esse bairro estranho, esse acolhedor oásis de operários, universitários e funcionários públicos, afastado do centro, com suas praças quase verdes, melancólicas e preguiçosas. Shucriá, pequeno menino louco dos cabelos negros, no fim, até me deu saudades depois que ele se foi, ele e sua loucura, num desses richies desenfreiados, de volta ao seu bairro, do outro lado do rio... Shucriá... ::: triviais Waddah Colony, esse estranho bairro tranqüilo de casas baixas onde vivem famílias de classe média. Aqui a lei que vigora é a de que o filho mais velho se case e não saia de casa. Que o filho mais velho seja o guardião das tradições, dos irmãos mais novos e dos pais que envelhecem. Que o filho mais velho construa sua nova família por cima do alicerce antigo. Palimpsesto paradoxal. Waddah Colony, nosso bairro. Onde vive essa turma de amigos, jovens paquistaneses cheios de moral e fé, com quem passamos as tardes noites fumando haxixe e discutindo teorias da conspiração, relacionamentos afetivos, religião, questões de gênero, trivialidades, política, religião, mulheres, Paquistão, religião, família e Alcorão.

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Juras de amigos, assobios interrompidos, convites para almoços em dia de chuvas mansônicas. E foram passando assim, como páginas de um livro bom esses dias de Waddah Colony, oásis de água fresca dentro do caos lahoriano. ::: é assim É assim: em Lahore, a cada noite, passa alguém por essa rua. Assobia e bate um bastão no chão, assobia e bate um bastão no chão. É assim: dentro das casas está sempre a tevê ligada em algum canal de videoclipes. É assim: manga batida com leite, açúcar e gelo pra beber. É assim: o outdoor paradoxal anuncia a modernidade em inglês - “I live in the present and I move on” É assim: anteontem houve um atentado com bombas no centro da cidade que matou duas pessoas e feriu não sei quantas. É assim: o Alcorão é o único livro sagrado. E Deus é grande. E viver é caro. E ter filhos é obrigatório. E Deus é grande. (E muita gente aqui sonha em viver em Londres.) Os militares da fronteira que duvidam da minha real identidade e quase não me deixam entrar no país por não acreditar nos 24 anos de idade que constam

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no meu passaporte. Entrar em um centro comercial e ser barrada por um militar. Ato justificado como uma medida de prevenção contra o terrorismo mundial. Uma foto da Meca na parede de um apartamento pequeno no centro da cidade. Levar um forte tapa na nuca, dado por um cara montado em uma bicicleta, que logo saiu em disparada, velado pela noite e por suas costas de homem covarde. Será que foi porque eu estava sem o véu na cabeça? Inferno de mel, souvenir de rodoviária. A mulher caída numa rua perdida do centro antigo da cidade, com a cara cheia de feridas e cicatrizes, muitos mosquitos em volta da cabeça, e olhos que pareciam viver numa espécie de tormento seco. Sutilezas insignificantes que se embalam em uma cadeia de pensamentos velozes. E um tanto de imagem embolada celebram todas as lacunas que separam devoção de realidade. Mas realidade, para quem? Para mim? Pois esquece de tudo o que eu falei. Sou apenas uma forasteira que passava e já se vai. E já me fui. ::: pássaros e soldados O homem mais velho do mundo. O cego mais cego do mundo. O búfalo, o boi e todas as casas de barro. E todos esses homens com bigodes, que levam dentro do peito um pássaro verde que sabe assobiar e um soldado guerreiro, iniciado na arte da fé, das

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guerras e das bombas. E todas essas mulheres que colecionam filhos, bijuterias e roupas coloridas com estampas de flor. ::: outro trem Na estação de Lahore, um velho senta-se ao meu lado e, com toda a naturalidade do mundo, chega sua cara perto da minha para beijar minha boca. Os que estão ao redor se chocam e xingam o velho, mas eu apenas afasto sua cara de perto da minha. Está louco, o velho, já está velho, o louco. Não pode ter mais culpa de nada. Já está livre de todas e de tantas morais e amarras do seu mundo paquistanês e islâmico. E o trem, outra vez. E o calor. E a noite. Dia cheio de poeira. Corre veloz, o trem. Entre plantações de arroz, de milhos, canaviais. Rebanhos de cabras e rebanhos de mangueiras, que mangueiras são também espécies de cabras ancestrais, com clorofila nas veias. Vilas, acampamentos. Pastorear é viver como nômade. E viva a família, o islã e o exército! Toda a sorte de dogmas intocados na gaveta proibida do armário da sala. Para onde vamos assim, é que não se sabe. Só o trem sabe para onde ir. Caminha certeiro entre esses trilhos quentes... ::: o persa É sobre um vago certo estado das coisas... O que fica de cada lugar estado, de cada cidade pisada? Quanta gente tocou nessa nota de dez rúpias? Quem tocou nessa nota? O que fica no final de tudo? O sentimento raro de compartir um pôr-do-sol com um anão. Ou o olhar trocado com uma mulher que volta

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do trabalho do campo a casa. Olhar olhado. Depois o sorriso e o riso, que a gente se entende apesar de não haver conversado nunca. Que uma é cúmplice do que a vida fez com a outra. Eu sei como é a textura das suas mãos de enxada e semente. Ela conhece todas as minhas debilidades e espaços vazios. O que fica no final de tudo? De cada tijolo elétrico, de cada sorriso por trás de cada véu, de cada cigarro fumado por um motorista de caminhão turco, de cada azeitona e copo de chá? Parece mesmo que de tudo isso, só fica alguns versos de um persa, Omar Kayan, que diz que “o vasto mundo, um grão de areia no espaço. A ciência dos homens: palavras. Os povos, animais, as flores dos sete climas: sombras. O profundo resultado da tua meditação: nada de nada.”. ::: o que foi? E depois de um dia muito intenso em Istambul e de uma noite dormindo no chão do aeroporto, chegar a Europa no banco de carona de um caminhoneiro turco e em um restaurante grego ver o garçom embrulhar as sobras de um prato de batatas e queijo junto com filtros de cigarros e jogar tudo no lixo. ... Então, quanto tempo se passou desde que cheguei a Barcelona a bordo do caminhão do valenciano Ramon, el Carbonero, voltando das ásias? Dois anos? Treze dias? Quatorze décadas? Às vezes parece que tudo aconteceu ontem. Ou que nunca aconteceu. Às vezes penso que todas essas histórias são apenas parte de um imenso delírio, que tudo só teve vida numa esquina da minha cabeça. Metáforas de trechos de caminhos. Trechos de memórias de troços de veredas. Marca de rios que secaram. Pela Calle de la Argenteria passou esse caminho. O sinal da concha amarela de Santiago, o sinal das patas do cavalo de dom Quixote.

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12 de outubro de 2005. A estrada bonita, o asfalto novo, bem sinalizado. Já estamos em território espanhol. Num enorme caminhão Volvo, histórias do caminhoneiro Ramon, que numa das paradas compra pão, embutidos e um jornal. A manchete do dia grita com histéricas letras garrafais sobre os terremotos que haviam dizimado milhares de pessoas que viviam nas montanhas do Karakoram, grande cadeia de montanhas do norte do Paquistão. Era estranho voltar à Barcelona depois de todo esse caminhar asiático. E triste ver a cara de dor da menina paquistanesa impressa na folha do jornal. “Corre, papai, há um terremoto!” Talvez eu tenha visto essa menina, tomado um chá na casa dos seus pais, brincado com um dos seus irmãos mais novos em um dos rincões dessas montanhas fulminantes, raras, tectônicas. Um emaranhado de sensações memórias cheiros idéias caras devaneios receios apreensões descobertas. Esse caminhar pisando em ovos numa imensa colcha colorida de retalhos asiática, minada por bombas camicases. Minada por bombas virtuais. Minada por credos seculares. É hora de tomar chá. Aqui estamos. E talvez tudo seja possível. Subcushi milega.

Sumário Agradecimentos .................................................................................................. 6 Prefácio (em espanhol) ..................................................................................... 7

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(em português) .................................................................................... 7 Sinopse ......................................................................................................... 8 Capítulos Redemoinhos ..................................................................................................... 9 Caminhos ........................................................................................................... 10 No chão .............................................................................................................. 11 Balcão ................................................................................................................ 13 Azeitona preta ................................................................................................... 14 Constante Polis .................................................................................................. 16 O trem ................................................................................................................ 17 A estação ........................................................................................................... 18 Mesopotâmia .................................................................................................... 18 Alçafrão ............................................................................................................. 19 Waddah ............................................................................................................. 20 Paraíso? ............................................................................................................. 23 98

Inferno? ............................................................................................................. 24 Tempestade de deserto .................................................................................... 25 Fronteiras .......................................................................................................... 26 Curdistão ........................................................................................................... 28 Talibans ............................................................................................................. 31 Arameu .............................................................................................................. 32 Pelos olhos delas ............................................................................................... 33 Subterrâneo ....................................................................................................... 34 Mar Mussa ......................................................................................................... 36 Mil e uma noites ................................................................................................ 37 Pipas ................................................................................................................... 39 Rosas e espadas ................................................................................................. 41 Escombros .......................................................................................................... 43 Mosaicos ............................................................................................................ 43 Pela linha ............................................................................................................ 44 99

No teto do mundo .............................................................................................. 45 Placas tectônicas ................................................................................................. 48 Girassóis .............................................................................................................. 49 Abre... .................................................................................................................. 50 Minapin ............................................................................................................... 50 Chás e chapatis ................................................................................................... 51 Alpinistas ............................................................................................................ 51 Nos olhos ............................................................................................................ 54 Por água .............................................................................................................. 54 Catedral ............................................................................................................... 56 ? ........................................................................................................................... 59 Sectários ............................................................................................................. 59 Bombalá ............................................................................................................. 61 Sol ....................................................................................................................... 62 Babel ................................................................................................................... 62 100

Elas ...................................................................................................................... 63 Conspirações ...................................................................................................... 63 Embaixadinhas ................................................................................................... 64 Praxe ................................................................................................................... 65 Please ................................................................................................................. 65 Veias .................................................................................................................. 66 Putas .................................................................................................................. 68 Allah Akbar ........................................................................................................ 69 Pa fumar ............................................................................................................ 69 Ares .................................................................................................................... 70 Rota da seda ...................................................................................................... 71 Decomposição ................................................................................................... 75 Facilidades ......................................................................................................... 76 Ímã ..................................................................................................................... 77 Ervilhas .............................................................................................................. 77 101

Israel .................................................................................................................. 78 Mãos .................................................................................................................. 79 Pin e Spit ........................................................................................................... 79 Ganga ................................................................................................................ 81 Por baixo ........................................................................................................... 82 ... ....................................................................................................................... 82 Hindu ................................................................................................................ 83 Lição .................................................................................................................. 84 Outra estação ................................................................................................... 84 Verde e quente ................................................................................................. 86 Recortes ............................................................................................................ 87 Nascer ................................................................................................................ 87 Tijolos ................................................................................................................ 88 As long as I live ................................................................................................. 89 Alli Ryder .......................................................................................................... 89 102

Pés para viajar .................................................................................................. 91 Cidade dos camelos .......................................................................................... 92 Triviais ............................................................................................................... 94 É assim ............................................................................................................... 95 Pássaros e Soldados .......................................................................................... 96 Outro trem ......................................................................................................... 96 O persa ............................................................................................................... 97 O que foi? ........................................................................................................... 98

Ficha com os dados e a biografia da autora...................................................... 100

... Sobretudo ao caminho, por sempre se abrir 103

diante dos pés e dos sonhos ...

Prefácio (em castellano) En este diario unos ojos sorprendidos escriben sobre mundos lejanos y cercanos a la vez. De Barcelona al norte de la India, saliendo desde una gasolinera el día menos pensado y haciendo la ruta de vuelta cuando se acaba el dinero. Los protagonistas de este diario son los lugareños de las montañas del Pakistán, de los desiertos sirios, de los valles del Himalaya, de la eterna damasco o la bella Peshawar; también de Estambul, Teherán, Ispahan, y de las planicies de Turquía Oriental. El diario abre las puertas de los hogares y enseña postales cotidianas tan lejanas como reconocibles. Rincones, tertulias, desayunos y cenas; carreteras, mujeres y camiones; mundos particulares y comunes. (Javier Mestre, o companheiro de viagem)

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Prefácio (em português) Nesse diário, olhos surpreendidos escrevem sobre mundos tão distantes quanto próximos. De Barcelona ao norte da Índia, saindo de um posto de gasolina sem ter nada pensado e voltando quando o dinheiro se acaba. Os protagonistas dessa história são pessoas comuns das montanhas do Paquistão, dos desertos sírios, dos vales do Himalaya, da eterna Damasco ou da bela Peshawar; também de Istambul, Teerã, Esfahan e das planícies da Turquia Oriental. O diário abre as portas dos lares e mostra cartões postais cotidianos tão estranhos quanto reconhecíveis. Cantos, tertúlias, cafés-da-manhã e jantares; estradas, mulheres e caminhões; mundos particulares e comuns. (Javier Mestre, o companheiro de viagem)

Mô Maiê Biografia simplificada: Nascida em Mariana (MG), em 31 de outubro de 1980, Mô graduou-se em Comunicação Social, em Belo Horizonte (MG) e trabalhou como designer gráfica até 2003, quando foi morar em Barcelona (Espanha), para estudar vídeo e fotografia. Foi lá que decidiu deixar o design e dedicar-se às artes plásticas, à literatura, à dança e à música. Em 2005 faz uma longa viagem da Espanha à Índia por terra, estudando os costumes culturais, religiosos e artísticos dos países por onde passa. De volta à Espanha, se envolve no meio circense e musical e não pára de viajar pela Europa e pelo norte da África pesquisando sobretudo a música e a dança dos países visitados. Em 2008 dá início ao projeto “Contos dos Orixás”, nos quais leva uma narradora e músicos para um estúdio e grava ao vivo os arranjos improvisados que os músicos fazem em cima de seus textos poéticos que contam a história das divindades yorubás mescladas com poesia surreal. Em Barcelona chega a gravar dois contos, o de Exu e de Yemanjá. Ao final desse mesmo ano, decide voltar ao Brasil para dedicar-se ao estudo da música brasileira na sua terra natal, sobretudo o chorinho, o samba e ritmos afrobrasileiros.

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Com uma amiga italiana realiza o documentário “Comé que eu faço pra aprender a música da sua terra”, que é lançado no Festival de Inverno de Ouro Preto e Mariana de 2009, e é um apanhado geral sobre a atividade musical da região de Mariana e Ouro Preto em todas as suas nuances: desde a música popular até a mais requintada e erudita. Paralelo ao projeto do vídeo documentário, junto com outros músicos e artistas da região, colabora na fundação do Coletivo Baobá, um coletivo de artes que tem como carro-chefe um grupo de percussão enraizado em diferentes vertentes da música popular e folclórica brasileira, tendo em vista sua pesquisa, ensino e difusão na sociedade. Grava o terceiro conto do projeto “Conto dos orixás”, a história de Oxóssi, a primeira escrita em português. E no segundo semestre de 2009, passa a integrar o grupo Vira Saia, como cantora, percussionista e flautista.

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