Retórica, a Ciência da Educação/Rhetoric, Science of Education

June 28, 2017 | Autor: Tarso Mazzotti | Categoria: Epistemology, Philosophy of Science, Science Education, Pedagogy
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FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO Organizadores Tarcísio Jorge Santos Pinto Marcus Vinicius da Cunha

Educação em Foco

Juiz de Fora – MG - Brasil ISSN: 0104-3293

Ed. Foco

Juiz de Fora

V.20

n.1

p.01-26

Março 2015 / Junho 2015

Reitor: Júlio Maria Fonseca Chebli Vice-Reitor: Marcos Vinício Chein Feres Diretor da Editora: Antenor Salzer Rodrigues Diretor da Faculdade de Educação: Prof. Dr. André Silva Martins Endereço para correspondência: Faculdade de Educação / Centro Pedagógico Campus Universitário da UFJF CEP: 36036-330 - Juiz de Fora MG Telefone/Fax: (32) 2102-3656 E-mail: [email protected] Home Page: www.ufjf.edu.br/revista.edufoco Editora UFJF Rua Benjamin Constant, 790 MAMM - Museu de Arte Moderna Murilo Mendes Centro - Juiz de Fora - MG CEP: 36015-400 Telefax: (32) 3229-7646 / 3229-7645 E-mail: [email protected] / [email protected] Home Page: www.editoraufjf.com.br Ficha Técnica Diagramação Henrique de Abreu Oliveira Bedetti Arte e Diagramação da Capa Carolina Cerqueira Henrique de Abreu Oliveira Bedetti

Bolsistas da Revista Larissa Oliveira Mayara Helena Alvim Revisão Geral Thenner Freitas da Cunha

Indexadores http://www.geodados.uem.br http://ibict.br/comut/htm www.inep.gov.br www.bve.cibec.inep.gov.br Web Qualis: www.qualis.capes.gov.br www.latindex.unam.mx Ficha Catalográfica Educação em Foco : revista de educação / Universidade Federal de Juiz de Fora, Faculdade de Educação, Centro Pedagógico – Vol. 20, n.1 (mar./jun. 2015) – Juiz de Fora : EDUFJF, 2015 26 p. Quadrimestral Disponível em: http://www.ufjf.br/revistaedufoco/ ISSN 0104-3293 1.Educação - Periódicos. I. Universidade Federal de Juiz de Fora. Faculdade de Educação. Centro Pedagógico. CDU 37 Ficha catalográfica elaborada por Adriana A. Oliveira – Bibliotecária – CRB6/1537 Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida por qualquer meio, sem a prévia autorização da editora.

EDUCAÇÃO EM FOCO – ISSN 0104-3293 CONSELHO EDITORIAL EXECUTIVO Prof. Dr. Jader Janer (Editor-Chefe) Prof. Dr. Aimberê Guilherme Quintiliano Rocha do Amaral Prof.ª Dr.ª Cristhiane Cunha Flor Prof. Dr. Daniel Cavalcanti Albuquerque Lemos Prof.ª Dr.ª Luciana Pacheco Marques CONSELHO CIENTÍFICO INTERNACIONAL Prof. Dr. Abdeljalil Akkari - Universidade de Genebra - Suíça Prof. Dr. Adrian Ascolani - Universidade Nacional de Rosário - Argentina Prof.ª Dr.ª Ana Cecilia Vergara Del Solar - Universidade Diego Portales - Chile Prof. Dr. Antônio Gomes Ferreira - Universidade de Coimbra - Portugal Prof. Dr. Bernard Fichtner - Universidade de Siegen - Alemanha Prof. Dr. Carlos Bernardo Skliar - Flacso - Argentina Prof. Dr. Fernando Bárcena - Universidade Complutense de Madrid - Espanha Prof. Dr. Fernando Hernandez - Universidade Barcelona - Espanha Prof. Dr. Hubert Vincent - Universidade de Rouen - França Prof. Dr. Jean Hébrard - École des Hautes Études en Sciences Sociales - França Prof. Dr. Manuel Sarmento - Universidade do Minho - Portugal Prof. Dr. Michalis Kontopodis - Universidade de Roehampton - Inglaterra Prof.ª Dr.ª Margarida Louro Felgueiras - Universidade do Porto - Portugal Prof.ª Dr.ª Patricia Eliana Castillo Gallardo - Universidade Diego Portales - Chile CONSELHO CIENTÍFICO NACIONAL Prof.ª Dr.ª Ana Ivenicki (ex - Ana Canen) - UFRJ Prof.ª Dr.ª Ana Chystina Venancio Mignot - UERJ Prof. Dr. Amarilio Ferreira Junior - UFSCAR Prof. Dr. Carlos Henrique de Carvalho - UFU Prof.ª Dr.ª Suzani Cassiani - UFSC Prof.ª Dr.ª Clarice Nunes - UFF Prof. Dr. Cleiton de Oliveira - UNIMEP Prof.ª Dr.ª Daniela Barros da Silva Freire Andrade - UFMT Prof.ª Dr.ª Diana Gonçalves Vidal - USP Prof.ª Dr.ª Edméia Oliveira dos Santos - UERJ Prof.ª Dr.ª Ilka Santos Schapper - UFJF Prof. Dr. Irlen Antônio Gonçalves - CEFET-MG Prof. Dr. José Silvério Baia Horta - UFAM Prof. Dr. Laerthe de Moraes Abreu Junior - UFSJ Prof.ª Dr.ª Lia Ciomar Macedo Faria - UERJ Prof. Dr. Luciano Mendes de Faria Filho - UFMG Prof.ª Dr.ª Magda Becker Soares - UFMG Prof. Dr. Marcelo Soares Pereira da Silva - UFU Prof. Dr. Marcio da Costa - UFRJ Prof.ª Dr.ª Maria de Lourdes de A. Fávero - UFRJ Prof.ª Dr.ª Maria Lidia Bueno Fernandes - UNB Prof.ª Dr.ª Maria Teresa Assunção Freitas - UFJF Prof.ª Dr.ª Maria Teresa Eglér Mantoan - UNICAMP Prof.ª Dr.ª Marisa Bittar - UFSCar Prof. Dr. Ubiratan D’Ambrósio - UNICAMP Prof.ª Dr.ª Neuza Salim - UFJF Prof.ª Dr.ª Nilda Alves - UERJ Prof. Dr. Osmar Fávero - UFF Prof.ª Dr.ª Rosemary Dore Heijmans - UFMG Prof.ª Dr.ª Rosimar de Fátima Oliveira - UFMG Prof. Dr. Rubem Barbosa Filho - UFJF Prof.ª Dr.ª Sandra Zakia - USP Prof.ª Dr.ª Sonia Maria de Castro Nogueira Lopes - UFRJ Prof.ª Dr.ª Terezinha Oliveira - UEM Prof. Dr. Orlando Ednei Ferretti - UFSC Prof.ª Dr.ª Rosangela Duarte - UFRR Prof.ª Dr.ª Vânia Alves Martins Chaigar - FURG Prof. Dr. Wenceslau Gonçalves Neto - UFU

SUMÁRIO Apresentação ....................................................................... 9 EIXO TEMÁTICO Do Estatuto Epistemológico da Filosofia da Educação: o embate entre reflexão e criação de conceitos ...................... 15 Antonio Joaquim Severino

¿Cómo podemos comprender la filosofía de la educación? ..... 39

Marisa Meza

Individualidade e Igualdade como chaves para a democracia criativa .............................................................................. 55 Jim Garrison

Retórica, a Ciência da Educação ........................................ 83

Tarso B. Mazzotti

Anotações sobre as Relações entre Teoria e Prática .......... 113

Alfredo Veiga-Neto

Habitar poeticamente a educação: notas sobre a relação entre potência e temporalidade ................................................. 141 Maximiliano Valerio López

Um exercício que faz escola: notas para pensar a investigação educacional a partir de uma experiência de formação no Rio de Janeiro ............................................ 159 Walter Omar Kohan

OUTRAS CONTRIBUIÇÕES Diferença, emancipação e conservação na educação ambiental ........................................................................ 179 Miriam Leite Jacqueline Lima

Conversações com adolescentes na escola: bullying ou mal estar nas relações? ............................................................ 205 Luciana Coutinho Bruna Osorio

RESENHAS Pensar y Vivir la Educación: Reseña del Libro Experiencia y Alteridad en Educación ................................................... 231 María Milena Quiroz

Autores ............................................................................ 245

SUMMARY Presentation ........................................................................ 9 EIXO TEMÁTICO About the epistemological statute of Philosophy of Education: the combat between reflection and creation of concepts......... 15 Antonio Joaquim Severino

How we can understand the Philosophy of Education?.......... 39

Marisa Meza

Individuality and equality as keys to creative democracy .... 55

Jim Garrison

Rhetoric, the Science of Education .................................... 83

Tarso B. Mazzotti

Notes about the relations between theory and practice ........ 113

Alfredo Veiga-Neto

Dwell poetically the education: notes about the relation between potency and temporality .................................... 141 Maximiliano Valerio López

An exercise that makes school: notes to think a education research from one experience of formation in Rio de Janeiro .............. 159 Walter Omar Kohan

OUTRAS CONTRIBUIÇÕES Difference, emancipation and conservation in environmental education ........................................................................ 179 Miriam Leite Jacqueline Lima

Conversations with teenagers at school: bullying or malaise in relationships?............................................................... 205 Luciana Coutinho Bruna Osorio

RESENHAS Thinking and Living Education ....................................... 231

María Milena Quiroz

Autores ............................................................................ 245

APRESENTAÇÃO FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO É com grande satisfação que concluímos esta edição temática especial, primeira edição de Filosofia da Educação da revista Educação em Foco, que vem se consolidando como uma das principais revistas qualificadas da área no Brasil e que, gradativamente, vem aumentando seu reconhecimento internacional. A publicação desta edição coincide com a ampliação da área da Filosofia da Educação na FACED/UFJF através da nomeação de novos professores nos últimos anos, o que vem permitindo o enriquecimento da docência, da pesquisa e da extensão neste campo, envolvendo mais estudantes e professores em torno do estudo e do debate filosóficos e filosófico-educacionais. Tudo isto tem possibilitado também o fortalecimento de laços acadêmicos com colegas do campo da Filosofia da Educação do Brasil e do exterior, laços estes que ultimamente vêm gerando frutos significativos. Um primeiro exemplo disto se manifesta nesta própria edição temática que concretiza uma parceria entre a Faculdade de Educação da UFJF e o Departamento de Educação, Informação e Comunicação da USP de Ribeirão Preto por intermédio dos dois professores que assinam a sua organização. Outro exemplo pode ser associado à estruturação, há pouco tempo compartilhada, entre professores da FACED/UFJF e da UNESP de Marília, da 5ª edição do Simpósio Internacional em Educação e Filosofia – V SIEF, que reuniu mais de 120 apresentações de trabalhos, contou com a participação de mais de 250 pessoas e recebeu professores e pesquisadores brasileiros e estrangeiros já reconhecidos na área. Acreditamos que esta edição temática vem se acrescentar às iniciativas para o desenvolvimento da Filosofia da Educação, sobretudo por poder divulgar trabalhos que certamente

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poderão servir de referências para os estudos e pesquisas não só aqui no Brasil, mas em todo o mundo. Em síntese, esta edição temática se divide em dois volumes que trazem um conjunto de textos relativos à Filosofia da Educação, área de conhecimento considerada essencial à prática pedagógica. Nos cursos de formação de professores, a Filosofia da Educação integra o rol das disciplinas de fundamentos, o que exprime a noção de alicerce ou base, destinando-se, consequentemente, a conferir solidez à construção da identidade docente. Embora a separação entre saberes fundamentais e práticos seja questionável, é inegável que as qualificações tradicionalmente atribuídas à Filosofia da Educação transportam uma expectativa histórica: que os conteúdos dessa área ofereçam sustentação, consistência e, quiçá, solução para o enfrentamento dos problemas inerentes ao fenômeno educacional. Essa expectativa pode ser bem acolhida se posicionarmos sustentação e consistência no campo dos recursos intelectuais próprios do labor filosófico, e desvincularmos a palavra solução do terreno das fórmulas prontas. Fórmulas que, diga-se de passagem, têm sido frequentemente oferecidas por diversos autores empenhados em dar à Filosofia feições menos complexas, em troca de sua popularização. Nesta edição temática da Educação em Foco, o leitor não encontrará fórmulas, mas terá a oportunidade de conhecer renomados pesquisadores brasileiros e estrangeiros discutindo a educação, sob variadas perspectivas filosóficas, com o intuito de oferecer alternativas para que a Filosofia figure de modo significativo no rol dos fundamentos da Educação.

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Os trabalhos que compõem os volumes desta edição distribuem-se em dois agrupamentos temáticos. O primeiro busca compreender o status da Filosofia da Educação como área ou campo disciplinar. O segundo focaliza contribuições individuais de pensadores que participam na composição da referida área.

Integram o primeiro conjunto os seguintes autores e respectivos textos: Antônio Joaquim Severino (Do estatuto epistemológico da Filosofia da Educação: o embate entre reflexão e criação de conceitos); Marisa Meza Pardo (¿Cómo podemos comprender la Filosofía de la Educación?); Jim Garrison (Individualidade e igualdade como chaves para a democracia criativa); Tarso Mazzotti (Retórica, a ciência da educação); Alfredo Veiga-Neto (Anotações sobre as relações entre teoria e prática); Maximiliano Valerio López (Habitar poeticamente a educação: notas sobre a relação entre potência e temporalidade); Walter Omar Kohan (Um exercício que faz escola: notas para pensar a investigação educacional a partir de uma experiência de formação no Rio de Janeiro). No segundo conjunto, temos os seguintes autores e respectivos textos: Pedro Angelo Pagni (A (trans)formação humana na perspectiva foucaultiana: interpelações à educação escolar e à docência na atualidade); Márcio Danelon (Intersubjetividade e educação: o estatuto do olhar nas relações educativas. Uma reflexão a partir da fenomenologia existencial de Sartre); Samuel Mendonça (Problemas e desafios para a produção do conhecimento em educação: fundamentos filosóficos); Andrea Díaz Genis e Sílvio Gallo (Filosofia da Educação, exercícios espirituais e arte de existência); Gregorio Valera-Villegas (La bildung de Simón Bolívar. Notas preliminares); Márcio Silveira Lemgruber (Montaigne: filosofia e educação para a vida); Hubert Vincent (Gênese da confiança e educação para o “estar junto”); Ralph Ings Bannell (Razão e Educação Política de um fragmento da ideologia liberal); Tarcísio Jorge Santos Pinto (Filosofia e educação em Bergson); Marcus Vinicius da Cunha (Experiência e afeto em Dewey: uma conexão orgânica). Agradecemos mais uma vez a todos os colegas que aceitaram com entusiasmo compor conosco este número temático e a todos aqueles que, direta ou indiretamente, contribuíram para que ele fosse organizado e finalizado, especialmente aos Profs. Drs. Marlos Bessa Mendes da Rocha e

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Jader Janer Moreira Lopes, ex editor-chefe e atual editor-chefe da revista, respectivamente, pelo acolhimento e viabilização da proposta; ao Prof. Dr. Aimberê Quintiliano Rocha do Amaral, editor da revista e responsável pela versão digitalizada da edição; à Profa. Ms. Jane Aparecida Gonçalves de Souza, ex secretária da revista, pelo apoio permanente; ao Prof. Dimitri Diniz da Costa, que nos auxiliou na revisão normativa dos textos. Finalmente, desejamos que esta coletânea possa de fato trazer perspectivas interessantes e importantes para a reflexão da Educação, relacionadas a diferentes dimensões de sua experiência. Tarcísio Jorge Santos Pinto e Marcus Vinicius da Cunha

EIXO TEMÁTICO

DO ESTATUTO EPISTEMOLÓGICO DA FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO: O EMBATE ENTRE REFLEXÃO E CRIAÇÃO DE CONCEITOS

Do Estatuto Epistemológico da Filosofia da Educação: o embate entre reflexão e criação de conceitos

Antonio Joaquim Severino1

Resumo

Buscando clarear o estatuto da Filosofia da Educação, o ensaio aborda a crítica que a concepção da Filosofia de Educação como criação de conceitos endereça àquela que a vê como reflexão sobre os problemas educacionais. Defende a posição de acordo com a qual não ocorre incompatibilidade entre essas duas concepções, entendidas então como complementares, integrando uma perspectiva hermenêutica na busca do sentido da educação. Palavras-chave: Filosofia da Educação; Reflexão; Criação de conceitos; Hermenêutica.

Abstract

The epistemological status of the Philosophy of Education: the clash between reflection and creation of concepts.

Seeking to clarify Philosophy of Education status, this paper approaches the criticism that its conception, regarded as creation of concepts, adresses to which that views it as a reflection about educacional problems. It is taken the position in such way that there is no conflict between these two conceptions considered as complementaries as well as integrated a hermeneutic perspective in search of the meaning of education. Keywords: Philsophy of education; Reflection; Creation of concepts; Hermeneutics. 1

Antonio Joaquim Severino é atualmente professor colaborador da Faculdade de Educação da USP e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Uninove. E-mail: [email protected]

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Do Estatuto Epistemológico da Filosofia da Educação: o embate entre reflexão e criação de conceitos

INTRODUÇÃO

Nas últimas três décadas, a Filosofia da Educação tem avançado no processo de construção de sua identidade, consolidando seu estatuto como área específica de conhecimento e, assim, marcando sua presença no seio da comunidade mais ampla do campo educacional. As conquistas culturais, acadêmicas e institucionais que dão visibilidade a essa presença representam frutos colhidos de um investimento sistemático por parte de seus praticantes, empenhados, nesse período, em dar-lhe essa condição, em nosso contexto histórico. Creio poder afirmar que esse movimento teve sua gênese embrionária no GT-Filosofia da Educação, da Anped, criado em 1994, por ocasião da Reunião Anual dessa entidade. A formalização representada por essa iniciativa se deveu ao crescimento de inscrições de trabalhos de investigação, de perfil filosófico, tematizando aspectos educacionais, que não encontravam espaço nos demais GTs até então existentes. Foi por isso que, após duas reuniões em que tais trabalhos foram incluídos num Grupo especial, de caráter interdisciplinar, foi proposta e aprovada a criação de um GT específico, dedicado ao cultivo da Filosofia da Educação. A crescente presença desses estudos certamente já traduzia um franco aumento de pesquisas e estudos, realizados sob a perspectiva filosóficoeducacional, nos vários Programas de Pós-Graduação em Educação, que se constituíam no país, a partir da década de 1970. É verdade que a Filosofia da Educação já se fazia presente em nosso contexto acadêmico e cultural como componente

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curricular dos cursos de formação docente, quais sejam, o Curso Normal, a Habilitação Magistério do Ensino Médio, o Curso de Pedagogia bem como cursos de Licenciatura de algumas instituições de ensino superior. Como tal, seu desenvolvimento se dava prioritariamente como processo de ensino (ALBUQUERQUE, 1997; 1998; TOMAZETTI, 2003). Sem dúvida, havia também uma produção teórica no seu âmbito, mas que era decorrente de esforços isolados de alguns estudiosos. Por isso, a essa altura, só o GT constituía o lugar do trabalho associativo das pessoas que se envolviam com a Filosofia da Educação, de forma mais sistemática, o que levou a uma maior produção bibliográfica que demandava mais espaços de divulgação e de debate. (ALBUQUERQUE, 2005). Com o advento dos Programas de Pós-Graduação em Educação, no início da década de 1970, a Filosofia da Educação passa a se dedicar também a um trabalho investigativo sobre os diversos aspectos da educação, sob uma perspectiva propriamente filosófica. A prática efetiva dessa abordagem investigativa provocou também questionamentos mais incisivos quanto a seu estatuto epismológico. Daí, sem prejuízo da produção mais sistematizada de estudos e pesquisas sobre temas educacionais, emergiram reflexões e debates sobre a identidade dessa área, buscando legitimá-la como área epistêmica autônoma e consistente.(SEVERINO, 2000) Vejo assim a institucionalização de iniciativas de agregação de estudiosos que se dedicam à Filosofia da Educação, a criação de veículos de divulgação de trabalhos nesse campo, como as revistas especializadas, a publicação de séries editoriais, a realização regular de eventos, a instauração de grupos locais de estudos e pesquisas em Filosofia da Educação, como formas de se abrir espaços não só para a socialização de resultados dos estudos filosófico-educacionais mas também lugares privilegiados para uma discussão mais específica sobre a constituição e consolidação da área como tal. Além da continuidade de sua presença nas grades curriculares

de cursos direcionados à formação inicial e continuada de profissionais da educação, a Filosofia da Educação dava um passo a mais na constituição de seu status de campo de conhecimento específico. Como resultado desse processo já com destacada visibilidade, pode-se dizer que a Filosofia da Educação conta com o reconhecimento acadêmico e cultural no seio da comunidade da área, gozando assim de direito de plena cidadania. Mas esse relevante estágio alcançado, como não poderia deixar de ser, não representou razão de acomodação para esses estudiosos. Ao contrário, o aumento da produção investigativa tem levado a um aguçamento da problematização do trabalho filosófico sobre a educação, refinando os questionamentos, incentivando o debate, clareando as referências e aprofundando as discussões. Esse processo traduz uma exigência de maior clareza e precisão dos procedimentos propriamente filosóficos que estamos pondo em ação nesse trabalho investigativo, ficando claro que não basta delimitar e abordar as temáticas educacionais, é preciso dar legitimidade a essa pretensão filosófica de análise. Neste artigo, meu objetivo é explicitar e acompanhar algumas expressões desse processo, sem pretensão de exaurir todas suas facetas e manifestações concretas. A proposta é antes dar uma pequena amostra do debate que vem sendo desenvolvido,, destacando o desafio que ele representa para todos aqueles que pretendem pensar filosoficamente a educação. E é nisto que a questão fundamental se configura. Parece haver um consenso de que é legitima a pretensão da Filosofia tomar como seu objeto de estudo também a educação. Podese dizer então que a partir desse enfoque caberia à Filosofia da Educação fazer uma abordagem filosófica da temática educacional. Haveria consenso quanto a sua tarefa: uma abordagem filosófica da educação. Mas tão logo se reconhece esse consenso, parece emergir uma questão preliminar, até então não devidamente

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trabalhada, não assumida com a necessária atenção. Mas, afinal, o que quer dizer exatamente pensar filosoficamente a educação? Por isso mesmo, quando se examinam os registros das atividades realizadas sob a égide da Filosofia da Educação, seja nas produções escritas, seja nos programas de ensino, pode-se identificar que essa temática educacional abordada no âmbito da Filosofia da Educação recorta aspectos epistemológicos, axiológicos e ontológicos. Estão em pauta questões do conhecimento do campo educacional, discutindo elementos epistemológicos, lógicos e metodológicos relacionados ao conhecer no âmbito do educacional, questões da esfera da prática educativa e questões relacionadas à própria condição existencial dos sujeitos concernidos pela educação. Mas isso não dá inteira conta da identidade e do estatuto da Filosofia da Educação uma vez que se questiona o próprio estatuto do que vem a ser reflexão, conhecimento, pensamento, filosofar, abordar filosoficamente. A própria noção de filosofia como conhecimento parece ser questionada. Poucos praticantes da Filosofia da Educação se preocupam em explicitar esta questão, deixando-a implícita ou pressuposta. (SEVERINO, 2000) Mas ela passa a ser colocada com mais frequência e incisividade. O questionamento se reporta ao próprio ato de conhecer, de pensar, de refletir. A educação não é a questão primeira, mas o filosofar sobre ela. A ênfase na educação como vontade de transformar o homem, lança um repto à pretensão da Filosofia da Educação. Afinal, como podemos filosofar sobre a educação, onde se apóia e se sustenta esse filosofar com essa sua pretensiosa ambição?

Antonio Joaquim Severino

A FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO COMO CRIAÇÃO DE CONCEITOS.

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Entre nós, talvez seja Silvio Gallo, ao compartilhar as perspectivas filosóficas de Gilles Deleuze e de Felix Guattari, quem vem colocando, de forma explícita e muito incisiva, a questão do como proceder da Filosofia da Educação. Insiste bastante na necessidade de se clarear bem a postura filosófica do

pretendente a pensar a educação. Questiona apoditicamente a definição do ato filosófico como ato de reflexão, e filosofia da educação como reflexão sobre problemas da educação, negandolhe igualmente o posto de instauradora de fundamentos da educação. É o que faz em artigo que publicou em 2009, sob o título de “Filosofia da Educação no Brasil do século XX: da crítica ao conceito” (GALLO, 2007). Nesse texto, Silvio Gallo, após registrar que a Filosofia da Educação passou por uma crise nos anos 90 do século XX, afirma que é chegado o momento de a repensarmos , ou “dizendo de outro modo, para que tornemos, de novo, possível o pensamento sobre essa disciplina no Brasil, posto que a intensa produção anterior parecia, paradoxalmente, paralisar o pensamento, e mesmo impedi-lo” ( p. 262). Para tanto, o autor examina detidamente, sob a perspectiva foucaultiana de análise da formação dos campos de saber, a produção da ultima década do séc. XX e da primeira do sec. XXI, agregada ao campo filosóficoeducacional, tal qual constituído até então, Tomando como seu universo a produção específica dos trabalhos apresentados no GT Filosofia da Educação, da Anped, defende que

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na década de 1990, no esforço de consolidação do campo disciplinar da Filosofia da Educação no Brasil, um dos principais caminhos encontrados foi o de estudos de autor, o que não deixa de ser uma espécie de reflexo da tradição da Filosofia no Brasil, influenciada pelos valores franceses de que fazer Filosofia é produzir história da Filosofia (2007, p. 274).

Buscando provocar um debate, avalia Gallo que: em primeiro lugar, verifica-se que há excessiva dependência de uma certa tradição de Filosofia, que a identifica com estudos de autor; em segundo, nota-se o fechamento do campo disciplinar em torno dessa perspectiva; por fim, e o mais importante, constata-se a perda do potencial criativo do pensamento (2007, p. 275).

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Apoiando-se em Deleuze e Guattari, Silvio vai pleitear que a Filosofia se dê como “uma atividade, uma prática e uma criação” (2007, p. 276), A Filosofia não é algo já dado, pronto, acumulado no acervo da cultura. Ela é uma “produção, um ato essencialmente criativo, e o filósofo, como artesão ou um demiurgo que, da vivência cotidiana, produz seus conceitos como pequenas ou grandes obras de arte”. Com essa perspectiva filosófica, Gallo critica as duas posturas que identifica predominantes em nosso meio: a que concebe a Filosofia da Educação como “reflexão sobre a Educação” e como “fundamentos da educação”. Com Deleuze, insiste que a Filosofia não é “nem contemplação nem diálogo, nem reflexão e, muito menos discussão” (277). Gallo argumenta que, primeiramente, refletir não é exclusividade do filósofo e que limitar a ele a Filosofia, a despotencializa de seu empreendimento criativo. “Compreender a interface, o diálogo da Filosofia com a Educação como uma ‘reflexão sobre’ é despotencializador para ambas as partes; para a Filosofia, que perde seu potencial criativo, e para a Educação, que, por sua vez, perde as boas contribuições que uma Filosofia, como criação de conceitos, poderia dar, além de perder a possibilidade de refletir autonomamente sobre si mesma, sem o apoio de ‘muletas’ como a Filosofia.

Antonio Joaquim Severino

O outro equivoco é entender a Filosofia da Educação como explicitação dos fundamentos da Educação. De modo geral, isto se reduz à retomada de conceitos produzidos ao longo da história da Filosofia para aplica-los aos problemas relativos ao fenômeno educativo, procurando, com isso, construir (para ficar na metáfora arquitetônica) um saber educacional, que teria tais conceitos como base (2007, p. 279).

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Situação que se repete quando se fica retomando aquilo que diferentes filósofos pensaram da educação, ao longo da história, para subsidiar o pensamento na atualidade.Em ambas as situações, Gallo vê despotencialização da Filosofia,

a perda de sua fecundidade criativa. Esperar da Filosofia fundamentação e reflexão é muito pouco e muito pobre. Diante disso, o filosofar deve se dar como criação de conceitos. O conceito é um exercício de paciência, um investimento do pensamento sobre si mesmo, marcado pela materialidade de um plano de imanência. Ele é suscitado por problemas vividos na pele, sentidos com toda a intensidade (2007, p. 281). Sem dúvida, esse trabalho envolve “visitas aos filósofos, aos textos clássicos da história da Filosofia, aos conceitos já criados, não para tomá-los de forma acrítica, mas para recriar ou mesmo criar o novo, se o problema em questão assim o exigir” (2007, p. 281). O filósofo da Educação precisa habitar o território educacional, experimentar e viver seus problemas, a partir do que pode criar conceitos para enfrentá-los. O filósofo da educação precisa imergir na educação. Ademais, o conceito, quando criado nesse trabalho de paciência, ele também deve nos afetar, eles são “como afetos, que nos tocam ou não, como uma música nos afeta ou não”, acrescenta Gallo, de novo com o apoio de Deleuze. Trata-se de um pathos que nos mobiliza. Já anteriormente, em 2000, Gallo tratava em “Notas deleuzianas para uma filosofia da educação” (p. 157-204), dessa total despotencialização da Filosofia da Educação quando tratada como reflexão sobre educação ou busca dos fundamentos da Educação. Sempre sob cerrada inspiração deleuziana. O filósofo da educação deve ser um criador de conceitos. (...) deve ser aquele que cria conceitos e que instaura um plano de imanência que corte o campo de saberes educacionais. Uma filosofia da educação, nesta perspectiva, seria resultado de um dupla instauração, de um duplo corte: o rasgo no caos operado pela filosofia e o rasgo no caos operado pela educação. Ela seria resultante de um cruzamento de planos: plano de imanência da filosofia, plano de composição da educação enquanto arte, múltiplos planos de prospecção e de referência da educação enquanto ciência(s). (2000, p. 182).

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Plano de imanência diz respeito à própria malha dos problemas educacionais em sua total abrangência com todos os problemas das demais dimensões do existir humano, a infinitude do caos em que se tece essa existência. Platô Educação que habitamos. Por isso mesmo, o filósofo da educação

Antonio Joaquim Severino

deve ter intimidade com os problemas educacionais, sentir-se tocado por eles, sentilos na pele. (...) Com efeito, sendo habitante ou um visitante deste platô, conhecendo seu panorama, o filósofo está apto a reagir aos problemas que ele suscita. Trata-se, então de aplcar a eles, problemas educacionais, o instrumental filosófico. Instaurar, inventar, criar.... Um plano de imanência circunscrito pelos e circunscritor dos problemas educacionais; um personagem conceitual comprometido com a educação e que caminhe por suas vielas; conceitos que ressignfiquem tais problemas e os tornem em acontecimentos, que os façam ganhar consistência (2000, p. 182-183).

Gallo conclui expondo, em apelo incisivo, as condições para que a Filosofia da Educação tenha pertinência e valia em nosso contexto:

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É urgente, portanto, que busquemos uma filosofia da educação criativa e criadora, que não seja tão inócua. Ela deve ser perigosa, deve ser o veneno e remédio. É necessário que corramos o risco, que mergulhemos nesse caos povoado de opiniões. Nas margens do Aqueronte, não podemos titubear, com medo de não conseguir voltar do mundo dos mortos. O mundo dos mortos é aqui, quando sucumbimos à opinião generalizada. Precisamos do mergulho no caos, precisamos das águas do Aqueronte para, nelas, reencontrar a criatividade. Só criando conceitos, assumindo uma feição verdadeiramente filosófica é que a filosofia da educação poderá ter um futuro promissor (p. 184).

Fazer Filosofia da Educação é fazer Filosofia, mas a partir da imanência do mundo da educação. Em direção análoga caminha o pensamento de Pedro Pagni, em sua avaliação do que tem sido a experiência do pensar a educação no Brasil, nos últimos tempos, particularmente no período que vai de 1930 a 2000, como campo de ensino, de pesquisa e de pensamento. Igualmente inspirado pela proposta filosófica deleuziana, vê na institucionalização da prática da Filosofia da Educação, que ocorre nas décadas finais do século XX um comprometimento da particularidade dessa experiência, reconhecendo, no entanto, que algumas características dessa particularidade, suscitando

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um estilo de pensar próximo à arte de superfície, contra uma aspiração de modernização pelo alto que legitimava a posição de certa elite intelectual, à fundamentação das teorias pedagógicas em uma antropologia filosófica e à legitimação da ação pedagógica na figura de um intelectual universal (2011a, p. 1).

Para Pagni, trata-se de “perspectivar uma Filosofia da Educação como arte de superfície do pensar na práxis educacional, mas também para que o seu objeto seja os problemas aí emergentes, alguns deles decorrentes da diversidade étnica e da multiplicidade cultural” (2011a., p. 164). Em sua avaliação, o autor considera que no debate teórico que envolveu a constituição do campo da Filosofia da Educação um problema nuclear concentrou parte significativa das discussões: o decorrente das consequências da modernização para a formação humana e o papel assumido pela educação na humanização do homem, sem que esta renuncie ao avanço científico e tecnológico da época. Ora, esse problema emergente nesse período faz com que os sujeitos

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que se apropriam de interpretações mais ou menos ortodoxas do neotomismo ao existencialismo fenomenológico, passando pelo pragmatismo e marxismo, se posicionem em relação ao assunto, advogando, muitas vezes, a necessidade de uma antropologia filosófica para sustentar e normatizar a práxis educativa. Para tanto, essa antropologia deveria ser fundamentada em uma ontologia espiritualista ou naturalista, no instrumentalismo filosófico, na sociologia, no materialismo, dependendo da base teórica adotada mais ou menos ortodoxamente pelos sujeitos que elaboram essa posição. Desse modo, a filosofia da educação é alçada à altura dos saberes pedagógicos, pois, a ela caberia a coordenação dos demais ou, mesmo, definir axiologicamente os destinos das ciências da educação (2011a, p. 8).

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Ainda que reconhecendo e registrando alguma criatividade em alguns teóricos, como Anísio Teixeira, Paulo Freire e Marilena Chaui, o autor conclui que essa vinculação teórica levou a uma excessiva especialização na prática da Filosofia da Educação, marcada mais pelo apego ao “comentário de textos do que à análise e ao prosseguimento de projetos filosóficos, em que a educação pode ou não ser abordada” (2011a, p. 18). Assumindo as categorias metafóricas deleuzianas, entende que os filósofos da educação brasileiros não têm sido artistas da superfície, mas da altura ou da profundidade, insistindo em ascender aos céus das diferentes metafísicas ou descer aos alicerces de uma suposta fundamentação. A saída vital para a Filosofia da Educação é, pois, praticar-se

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como arte de superfície, de modo a pensar filosoficamente os acontecimentos emergentes na práxis e na experimentação de modos de vida que contrariasse ou instigasse a produção de modos de subjetivação constitutivos do ethos do brasileiro, contribuindo para sua (trans)formação. (2011a, p. 19).

A POTÊNCIA DA REFLEXÃO

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Desde a clássica definição da Filosofia da Educação como “reflexão radical, rigorosa e de conjunto sobre os problemas educacionais”, consagrada por Saviani (1986), estudiosos vinculados a variadas vertentes paradigmáticas admitem que fazer filosofia da educação é praticar um exercício reflexivo, cujos conteúdos se relacionam, direta ou indiretamente, com a educação. Talvez por isso mesmo é pouco explicitado o questionamento da reflexão tal como colocado por Gallo, pois entender o filosofar como praticar uma reflexão tornou-se uma posição bastante consensual e generalizada. Vou dar apenas alguns exemplos, começando por Ghiraldelli Jr, que diz que a Filosofia da educação pode ser definida como uma reflexão em favor da educação, cabendo-lhe fazer uma justificação e uma fundamentação da pedagogia ( 2006, passim p. 36-38). Adalberto Dias de Carvalho (2011) considera que cabe à Filosofia da Educação o uso da função utópica enquanto exercício criativo, crítico e contínuo do esforço de descentração relativamente ao real científico e prático, detem um enorme potencial de sustentação e renovação da própria atividade utópica da educação enquanto esta não meramente prescritiva de normas e de valores, mas também enunciativa de ideais que desafiem o conformismo. (...) A filosofia, importa realça-lo, é a atividade que nos permite o distanciamento crítico, não nos deixando enclausurar inclusive dentro da nossa própria cultura. Condição para identificarmos e transformarmos os problemas enunciados – ou outros --emergentes da educação em problemáticas para a educação (2011, p. 56-57).

Também José Pedro Fernandes apela para a função utópica da Filosofia da Educação. Com efeito, para ele, ela deve

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convocar a capacidade imagética e utópica da inteligência e avançar com a modéstia do método ensaístico. Implica isso que o pensar filosófico sobre a educação acautele a projeção dos cenários possíveis, as ficções heurísticas, de modo inteligente e não com base numa ideologia das memórias e numa ontologia dos fundamentos (passe o pleonasmo) e dos arquétipos (passe do duplo pleonasmo). Não sabemos o que acontecerá, mas temos que aplicar os instrumentos inteligentes que são as idéias para nevegar no mar das incertezas e na indeterminação (palavras tão caras ao pragmatismo), para avançar para um caminho que ainda não existe (2011, p. 282).

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Os dois pensadores portugueses atribuem à Filosofia da Educação um perfil processual ensaístico, concebendo-a como uma narrativa aberta, crítica e criativa, um pensar mais abrangente e livre, de cunho reflexivo. Igualmente na linha de conceber a Filosofia da Educação como atividade de cunho de reflexão, caminha o pensamento de Pedro Goergen, para quem ela precisa desfazer as aparências do objetivo, expressar o emudecido, dizer o indizível, manifestar o oculto; trazer à tona o submerso, revelar conflitos e contradições, e, sobretudo, reconhecer o presente como histórico. Rompendo as teias do percurso pré-traçado, fixo e determinado, as contradições podem transformar-se em ponto de partida da experiência formativa. (...) precisa recuperar a experiência do concreto, do outro, e, ao mesmo tempo, dos conceitos (2011b, p. 145).

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É próprio da filosofia e, portanto, também da Filosofia da Educação distanciar-se da realidade para, a partir desse distanciamento crítico, poder refletir com mais propriedade sobre ela. As perguntas que a Filosofia da Educação faz ou

deveria fazer à prática educativa dizem respeito ao que significa esta prática desde o ponto de vista da formação humana, da epistemologia, da ética, da estética, da política, da visão de mundo e da vida. Por isso, a Filosofia da Educação deve falar da realidade e, sobretudo, fazê-la falar (2011, p. 146) Para Pedro Goergen, a Filosofia da Educação precisa fazer uma hermenêutica do real. “Por isso mesmo, a Filosofia da Educação não poder ser uma vendedora nem de sonhos nem de ilusões. A ilusão levaria à paralisia e o sonho à euforia. Ambos negam a dialética, suposto fundamental de uma adequada hermenêutica do real” (2011, p. 148). Como podemos ver por essas breves referências, a discussão sobre a natureza e a pertinência da Filosofia da Educação desenvolve-se trabalhando três aspectos distintos, sem que se dê a eles o devido destaque, de modo que o debate se tornasse mais claro. Um primeiro aspecto diz respeito à destinação prática da Filosofia da Educação, é o seu para que. A que ela veio no contexto do processo social e educacional como um todo. É a perspectiva da utilidade, da pragmaticidade. O que se quer quando se pleitea a necessidade da Filosofia da Educação, quando se defende sua relevância. Parece consenso entre os que pensam a educação que filosofar sobre seus diversos aspectos não é uma atividade diletante, nem mesmo meramente contemplativa, mas ela se legitima por ser um saber útil aos educadores práticos quando, no dizer de Ghiraldelli Jr., “instrumentos pedagógicos capazes de auxiliar os professores no interior das salas de aula” (2000, p. 81). Está então em pauta a destinação social da Filosofia da Educação, vista como uma atividade relevante, apta a contribuir para o aprimoramento da prática educativa. Posição consensual vinculada a sua matriz mais abrangente, a de que todo saber, todo conhecimento, se legitima em função dos benefícios que traz à prática geral dos humanos (SEVERINO, 2001). Sob este aspecto, a atividade filosófica é vista em relação a seus resultados, suas finalidades se colocando sempre fora dela mesma, em se tratando sempre

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de um alcance para além da esfera do epistêmico. Trata-se de uma justificativa extra-filosófica, de uma legitimação políticosocial. É da esfera da relevância social do conhecimento. Mas reconhecer esse telos, seja ele de cunho pessoal ou social, não esgota o problema. É preciso saber quais os mediadores dessa possível eficácia. Aqui se trata dos conteúdos que essa modalidade de saber mobiliza concretamente. Está em pauta a quididade tratada pelo discurso desenvolvido. Por exemplo, quando se afirma que a Filosofia da Educação deve desenvolver uma antropologia filosófica, construindo uma imagem do ser humano, como ente individual ou social, ou que lhe cabe simplesmente desenvolver um discurso linguístico sobre a linguagem, analisando os termos e conceitos postos pelas ciências e pelas práticas educacionais, ou ainda quando lhe é estabelecido que deve buscar os fundamentos da prática educativa, em todos esses casos, está se tentando definir a Filosofia da Educação pelo seu conteúdo. E aqui já se manifestam concepções divergentes, diferenciando diferentes concepções de Filosofia da Educação, opções que se fundamentam nos paradigmas filosóficos que são seguidos. Assim, numa perspectiva de cunho mais técnicocientífico, ela se constituirá de um discurso explicativo e normativo sobre o conhecer e o agir, sobre conceitos e valores, visando configurar uma referência objetiva para a ação. (SEVERINO, 2000; GHIRALDELLI Jr. 2000). Já na perspectiva atual inspirada na Filosofia Analítica, a Filosofia da Educação se vê como encarregada tão somente de clarear os termos e os conceitos, postos em prática pelo discurso teórico sobre a educação. Desse ponto de vista, ela é Filosofia da Linguagem da Educação, discurso sobre o discurso específico do território educacional. Mas ainda há uma terceira dimensão que se envolve na discussão do estatuto da Filosofia da Educação: como se pode fazer Filosofia da Educaçâo? O que vem a ser o ato de pensar filosoficamente a educação. Questão que se generaliza e se expande: é preciso averiguar o que é filosofar

em geral. (MAZZOTTI, 2000; GHIRALDELLI JR., 2000; GUIMARÃES, 2000; CHAVES, 1999). É sob esta perspectiva que se coloca a dimensão propriamente epistemológica da Filosofia e da Filosofia da Educação, seu problema crucial e, certamente, o que tem a mais difícil abordagem. Está em pauta a própria possibilidade do filosofar e onde se enraízam e se diferenciam, especificando-se como atos epistêmicos, as matrizes diferenciadoras das diversas concepções do estatuto íntimo da Filosofia da Educação e, consequentemente, da sua identidade. Assim, quando se afirma que a Filosofia, em geral, e a Filosofia da Educação, em particular, é uma atividade reflexiva ou então uma atividade criadora de conceitos, está-se referindo ao modo do exercício do próprio ato de pensar, de conhecer. Desse modo, quando Silvio Gallo defende que filosofar é criar conceitos, está se referindo ao sentido do filosofar como exercício da subjetividade, ao como se dá o processo em si de filosofar. Mas, até aí, criar conceito não se opõe necessariamente, a refletir. Ao que parece, essas duas atividades não são incompatíveis entre si. São, pois, três questões envolvidas quando está em pauta estabelecer a identidade, o estatuto da Filosofia da Educação. Ocorre que nem sempre esta complexidade é devidamente considerada ao se discutir esta questão. Às vezes, a argumentação se restringe ao para que, à finalidade da Filosofia da Educação, outras vezes, se trata do seu o que, de sua quididade, outras vezes ainda o foco é o seu como, a sua processualidade, a sua possibilidade epistêmica. Daí a confusão, quando se critica a Filosofia da Educação por sua pretensão em buscar fundamentos, está se questionando sua pretensão em atingi-los; já quando se a critica por pretender ser uma reflexão, a referência é feita a sua processualidade. Tais críticas não se colocam num mesmo patamar. Com efeito, como refletir sem criar conceito? Reflexão, como conceito incorporado pela epistemologia, não se exaure em sua significação de fenômeno do comportamento mecânico

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da luz, vai muito além, significando “concentração do espírito sobre si próprio”, se desdobrando em múltiplas formas de expressar exercícios da subjetividade: meditar, pensar, atentar, apreciar, apreender, cogitar, considerar, estabelecer nexos e também criar e recriar conceitos. E se definir a Filosofia como reflexão a despotencializa, defini-la apenas como criação de conceito, despotencializa a reflexão, negando-lhe uma densidade maior que lhe é plenamente legítima, da perspectiva epistemológica.

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CONCLUINDO

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A Filosofia, como de resto todo o conhecimento humano, não se legitimaria se não participasse da tarefa de construir sentido para a existência humana. Se se limitasse a ser um exercício meramente contemplativo, situando-se numa esfera lógica e abstrata, ou se se reduzisse a uma tecnicidade lingüística, ela não adquiriria legitimidade. Tornar-se-ia um diletantismo alienante, sem sensibilidade à problemática do existir histórico dos homens. Aliás, impressiona ver que todos os pensadores, que foram considerados filósofos em nossa tradição cultural, nunca perderam de vista essa destinação de seu pensar, mesmo quando a expressão de seu pensamento não enfocara explicitamente essa temática. Por isso, insisto em reiterar que a Filosofia torna-se sempre Paidéia (SEVERINO, 2001). É esse o modo pelo qual a Filosofia demonstra e realiza sua “utilidade”. Contribui com a vida real das pessoas, explicitando sentidos para sua existência histórica. E, no caso da Filosofia da Educação, faz isso explicitando sentidos norteadores para a prática educativa, em íntima colaboração e parceria com as demais modalidades de conhecimento, com as demais ciências e saberes da educação. E certamente ela desempenha sua tarefa construindo. Pois o que esse campo se propõe a fazer é, em primeiro lugar, tomar a Educação como seu tema, como seu objeto de estudo; em segundo lugar, quer contribuir para a explicitação, no seio da prática educativa,

dos sentidos formadores, em termos de conceitos e valores, que nela estão envolvidos, procurando assim delinear um sentido abrangente para o existir histórico dos homens, sem se transformar numa nova metafísica, e em íntima colaboração com as ciências e as artes, igualmente envolvidas na tarefa educativa. Essa atribuição da Filosofia da Educação desdobra-se em três tarefas mediadoras simultâneas: uma tarefa epistemológica, uma tarefa axiológica e uma tarefa ontológica. Ao desempenhar sua atribuição epistemológica, a Filosofia da Educação discute a constituição do campo epistêmico da educação, compartilhando com os profissionais da área a preocupação com o alcance científico da esfera educacional. Busca evidenciar os processos e o alcance do próprio conhecimento no campo educacional. Na condição de prática intencionada e intencionalizadora, a educação se torna um objeto de mais difícil apreensão do que nas demais Ciências Humanas, ficando um conhecimento sem possibilidades de estabelecer leis e teorias com o perfil desenhado pela ciência tradicional. Mas, ao mesmo tempo, não pode se guiar pelo espontaneismo ou pelo senso comum. Além disso, por lidar substancialmente com ferramentas simbólicas, produto primicial da subjetividade, a educação é terreno fértil para o vicejar da ideologia, o que compromete, no seu núcleo, os objetivos e fins por ela visados. Daí a necessidade de uma constante vigilância crítica para, até onde lhe for possível, escoimar teoria e prática educacionais de seus enviesamentos ideológicos. O terreno da explicitação de valores que deem sentido à prática educativa não é menos fluido do que aquele que se refere aos conceitos. Tanto mais que, na cultura atual, o agir não mais pode ser sustentado em referências transcendentais, de cunho metafísico ou religioso. Mas isso não dispensa o educador de se pautar em valores consistentes que norteiem sua ação interventiva sobre as pessoas que se busca educar, sem ferir sua dignidade. Eis aí uma tarefa delicada e difícil

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nas coordenadas histórico-sociais da atualdade. É aqui que se situam as envolventes relações da educação com a ética, com a estética e com a política (LOMBARDI/GOERGEN, 2005). Busca, assim, desvendar os intrincados meandros da prática, sem se reduzir a uma tecnologia, a uma sabedoria ou a uma pura estética da existência. Também é imprescindível, apesar da grande dificuldade, que a Filosofia da Educação desempenhe atribuição ontológica, buscando desenhar um retrato real da condição humana, no contexto de sua existência história. E isso sem se respaldar em princípios metafísicos abstratos ou em dogmas religiosos transcendentais. Constitui-se então como esforço para desenhar uma imagem do homem, que não seja aquela de uma essência eterna e etérea do mesmo. Espera-se, pois, da reflexão filosófico-educacional que ela explore, para educadores e educandos, o significado da condição humana, colocando-lhes assim a questão antropológica, questão a ser equacionada por intermediação da reflexão filosófica sobre a condição histórico-social da existência dos homens. Não se trata nem de pensar “pelas alturas”, perdendose no transcendental, nem de imergir nas “profundezas”, buscando alicerces ocultos, mas de pensar na imanência, na superfície, onde a realidade histórica dos homens se tece concretamente. Buscar o sentido não descobrir algo que já estava lá, escondido, encoberto, inscrito, mas é construí-lo, doá-lo, desenhá-lo. O sentido não está inscrito em tábuas de leis ditadas por uma entidade divina, nem nas leis determinísticas estabelecidas pela natureza e desvendadas pela ciência, nem naquelas impostas pela força de culturas históricas que se tornaram hegemônicas pela força. Os homens é que devem estabelecer, de acordo com critérios que eles mesmos precisam definir, os sentidos de que vão dotar sua existência histórica, num infindável processo de busca, marcado por um ingente esforço de tornar essa existência mais suportável e humanamente digna.

Em que pese o retrato pelo qual hoje o conhecimento científico mostra a precariedade, a contingência, a pura objetividade humana, uma modesta espécie no meio de tantas outras, feita de muita precariedade (CORTELLA, 2000): a pequenez do homem frente ao cosmos, como mostra a Física e a Antropologia; a radical naturalidade, a total dependência frente aos condicionantes biológicos, psíquicos, sociais e culturais, como o demonstraram os estudos germinais de Marx, Freud, Nietzsche, à frente de tantos outros, a condenação persiste. Apesar desse condicionamento radical, somos convidados a doar sentido, pois até o completo absurdo funcionaria como um sentido. Até quando suicida, o homem está demonstrando, em sua máxima crueza, o seu embate com o sentido. Portanto, somos condenados ao sentido e a buscálo, qualquer que seja a forma de cumprir essa exigência. Daí a pertinência da atitude hermenêutica: ela é humilde, despretensiosa, se comparada à petulância ambiciosa das epistemologias iluministas. Por aí, incorpora as contribuições das críticas pós-modernas e suas associadas. Assim, o humanismo não é uma conclusão de modo metafísico de ser do homem, de sua essência, de sua substancialidade. Mas uma tarefa e uma meta. O homem não tem uma razão de ser, ele pouco pode afirmar quanto a ela, mas lhe cabe dar-se uma razão de ser. O conhecimento, no seu sentido abrangente, abarca da filosofia ao senso comum, passando pela ciência. É a única ferramenta disponível para a espécie cumprir essa tarefa. A única fonte é o “amor mundi”, como coloca Hannah Arendt. Tendo a ler, é o único pressuposto do existir, é um requisito a ser admitido aprioristicamente, gratuitamente. É ele ou o impulso vital cego, inebriado.

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REFERÊNCIAS

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Data de recebimento: novembro de 2013 Data de aceite: junho de 2014

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¿CÓMO PODEMOS COMPRENDER LA FILOSOFÍA DE LA EDUCACIÓN?

¿Cómo podemos comprender la filosofía de la educación?

Marisa Meza1

Resumo

Hoje podemos observar um retrocesso, geralmente dramático, da presença da Filosofia da Educação na formação de professores. Este fenômeno possui razões políticas e econômicas que parecem agravar-se por uma sistemática mudança de nome das poucas atividades acadêmicas presentes no currículo de formação de professores que em outros tempos haveríamos chamado de Filosofia da Educação, mas que hoje não tem esse nome, Se trata de uma mudança involuntária ou casual de nomes ou existe uma tentativa de distanciar em relação a certos conceitos existentes com relação ao que a Filosofia da Educação é? Como podemos entender a Filosofia da Educação? Este trabalho pretende ser responsável especialmente da ultima pergunta e, em forma tentativa, da primeira, realizando um diálogo crítico com as compreensões da Filosofia da Educação de alguns clássicos com Richard S. Peters y Terry W. Moore, e outros filósofos e filósofas como Nel Noddings, María García Amilburu y John White. Palavras-chave: Filosofia da Educação; Filosofia; Filosofia Prática; Prudência; Teoria da Educação.

Resumen

Hoy podemos observar un retroceso, en general dramático, de la presencia de la Filosofía de la Educación en la formación de profesores. Este fenómeno posee razones político económicas que parecen acentuarse por un sistemático cambio de nombre de las pocas actividades académicas presentes en el currículum de formación de profesores que en otro tiempo habríamos llamado Filosofía 1

Marisa Meza é professora da Faculdade de Educação da Pontificia Universidad Católica de Chile. E-mail: [email protected]

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de la Educación, pero que hoy no llevan ese nombre. ¿Se trata de un cambio involuntario o casual de nombres o existe un intento de distanciamiento en relación a ciertas concepciones existentes respecto a lo que la Filosofía de la Educación sea? ¿Cómo podemos entender la Filosofía de la Educación hoy? Este trabajo pretende hacerse cargo especialmente de esta última pregunta y, en forma tentativa, de la primera, realizando un diálogo crítico con las comprensiones de la Filosofía de la Educación de algunos clásicos como Richard S. Peters y Terry W. Moore, y otros filósofos y filósofas como Nel Noddings, María García Amilburu y John White.

Marisa Meza

Palabras clave: Filosofía de la Educación; Filosofía; Filosofía Práctica; Prudencia; Teoría de la Educación.

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¿CÓMO PODEMOS COMPRENDER LA FILOSOFÍA DE LA EDUCACIÓN?

¿Cómo podemos comprender la filosofía de la educación?

Un buen profesor es el que está dispuesto a cambiar en el sentido que le dicta la reflexión sobre las evidencias que le muestra la práctica John Dewey INTRODUCCIÓN

Desde hace más o menos una década que podemos observar un persistente retroceso de la presencia de la Filosofía y en general de las humanidades, en la formación universitaria y particularmente en la formación de profesores (NUSSBAUM, 2010; SAVATER, 1997). Por una parte, podemos atribuir este fenómeno a factores contextuales externos a la filosofía misma y generalizados en Latino América y el mundo, como es la expansión del dominio de la economía, en particular del modelo económico neoliberal a todos los ámbitos de la vida en común, también a los de la Educación, lo que determina qué se va a entender por educación de calidad, cómo deben formarse los futuros profesores y profesoras y qué temas o problemas van a ser considerados relevantes en el ámbito educativo. Por otra, podemos observar un cierto retroceso de la Filosofía de la Educación misma cuando al analizar las propuestas de formación docente cuesta identificar los cursos de esta área porque llevan nombres diferentes al de Filosofía de la Educación. Entonces, surge la pregunta, ¿Se trata de un cambio involuntario o casual de nombres o existe un intento de distanciamiento en relación a ciertas concepciones existentes respecto a lo que la Filosofía de la Educación sea? ¿Cómo podemos entender la Filosofía de la Educación hoy? Este trabajo se hace cargo especialmente de esta última pregunta, aunque levanta hipótesis respecto a la primera mediante un diálogo activo con las concepciones de la Filosofía de la Educación de algunos clásicos sobre el tema como Richard S.

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Peters y Terry W. Moore, y otros filósofos y filósofas como Nel Noddings, María García Amilburu y John White. Este trabajo se ocupa: en una primera parte, de la relación entre la Filosofía y la Filosofía de la Educación y, en una segunda, se ocupa del análisis crítico de concepciones de la Filosofía de la Educación, a partir de los filósofos y la filósofa mencionados.

Marisa Meza

LA RELACIÓN ENTRE FILOSOFÍA Y FILOSOFÍA DE LA EDUCACIÓN

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Al parecer no existe un acuerdo claro respecto a, si la Filosofía de la Educación sea o no una rama de la Filosofía. Mientras algunos como Nel Noddings lo dan por hecho, sin tematizar siquiera el asunto (NODDINGS, 2007), a filósofos como John White les parece necesario enfatizar que la Filosofía de la Educación no sería una rama de la Filosofía, pese a su creciente desarrollo, porque en sentido propio, compartiría las mismas preguntas y preocupaciones fundamentales de la Filosofía y se estaría fundiendo con algunas de sus ramas como la Ética y la Filosofía Política (WHITE, 2003). Pero esto, desde la perspectiva más esencial, porque en los hechos, como dice Noddings la Filosofía de la Educación sería el estudio filosófico de la educación y sus problemas (NODDINGS, 2007). Pareciera ser que el argumento de John White se orienta a pensar que los problemas de la educación contestan a las grandes preguntas presentes en el seno de la antropología filosófica como: ¿Quiénes somos? ¿Qué metas debemos perseguir? ¿Cómo vale le pena vivir? Desde este punto de vista, la Filosofía de la Educación no sería una rama de la Filosofía porque existirían ciertas preguntas y preocupaciones fundamentales (digamos contenidos) que serían, en último término, los mismos y cuya única diferencia sería el foco en la educación. Desde este punto de vista la Filosofía de la Educación no tendría un objeto de estudio completamente propio y por ello no constituiría una rama de la Filosofía como tal. Esencialmente, siguiendo este argumento, la Filosofía de

la Educación no sería más que la Filosofía centrada en las preguntas esenciales de la antropología filosófica pensadas desde el punto de vista de su aplicación a la educación. Así visto el asunto, se comprendería que se deje de nombrar como Filosofía de la Educación algunas actividades curriculares presentes en la formación de profesores y se hable simplemente de Filosofía y Educación o de Educación desde la perspectiva filosófica, pues el punto de referencia es la Filosofía como tal. Richard S. Peters, por su parte, concibe la Filosofía de la Educación como una rama de la Filosofía, sin considerarla realmente distinta de la Filosofía, pero a diferencia de White no debido a sus contenidos últimos, si no por sus métodos. Peters (2001, p. 5-6) afirma:

¿Cómo podemos comprender la filosofía de la educación?

Decir que la filosofía de la educación es una rama de la filosofía, no significa que sea un área distinta, es decir que pueda ser independiente de las ramas establecidas de la filosofía, como la epistemología, la ética y la filosofía de la mente. Sería más apropiado concebirla como un área que bebe de las fuentes de la filosofía para aplicarlas de manera adecuada a los aspectos educativos. En este sentido, la filosofía de la educación sería análoga a la filosofía política, ya que ambas, frecuentemente, emplean principios ya existentes en la filosofía. Por ejemplo, al analizar temas tales como los derechos de los padres y los hijos, el castigo en las escuelas y la autoridad del maestro, es posible tomar y desarrollar las teorías de los filósofos acerca de derechos, castigo y autoridad.

Asumiendo esta perspectiva, la labor central de la Filosofía de la Educación sería comprender mejor la práctica a través de las teorías y alimentar (para reconstruir) las teorías a través de las prácticas desde los métodos propios de la Filosofía sin una preocupación por las preguntas esenciales de la Filosofía ni las Filosofías que propondrían contenidos. Desde el punto de vista analítico de Peters entonces, la Filosofía de

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la Educación sería una rama de la Filosofía porque asumiría el mismo método de análisis de conceptos. Esta razón aducida por Peters puede ser una de las razones que a mi juicio, puede provocar más distancias entre algunos filósofos y filósofas de la educación, pues si su quehacer se sitúa en la perspectiva de la interpretación de acciones educativas desde filosofías específicas no podría llamársele a su quehacer Filosofía de la Educación como tal. Podríamos decir que con la perspectiva de Peters se gana tanto en claridad como en exclusión. Pasemos a revisar las concepciones para contrastar esta idea que ahora apenas se ha esbozado.

Marisa Meza

CONCEPCIONES DE FILOSOFÍA DE LA EDUCACIÓN. ANÁLISIS CRÍTICO

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Volvamos al planteamiento de Noddings, si la Filosofía de la Educación es el estudio filosófico de la educación y sus problemas (NODDINGS, 2007) y la educación es una práctica (que incluye la teoría, por supuesto) entonces, los problemas de los que se hace cargo la Filosofía de la Educación son problemas prácticos no teóricos. Como dice Moore, la necesidad de claridad conceptual de los problemas educativos, eminentemente de carácter práctico, llevan al análisis filosófico, al análisis de conceptos y, la necesidad de la justificación de las prácticas, requiere del análisis de las diversas teorías disponibles en educación. Por esta razón, la Filosofía de la Educación se ocuparía de analizar el lenguaje de la teoría y de las prácticas educativas (MOORE, 2001). Tanto Noddings como Moore, que siguen la línea analítica de pensamiento, afirman que la labor de los filósofos y filósofas de la educación sería más bien usar los métodos de la filosofía como el análisis y la clarificación de conceptos, argumentos, teorías y lenguaje, más que crear teorías de la educación. La labor fundamental de filósofos y filósofas consistiría, entonces en el análisis de las teorías y sus argumentos, lo que debiera conducir a revisar o abandonar teorías o líneas de argumentación dentro de esas teorías si fuese necesario (NODDINGS, 2007;

MOORE, 2001). Pareciera entonces, que aunque el objeto de la Filosofía de la Educación es en última instancia el lenguaje de la práctica educativa, es decir, que en último término posee una intencionalidad práctica (revisar o abandonar teorías o líneas de argumentación dentro de las teorías), la Filosofía de la Educación se mantendría, en cierto sentido, dentro de límites teóricos en cuanto no poseería la intención de vincularse directamente con el fenómeno educativo, ni con la interpretación de ese fenómeno y sus problemas. Noddings (2007, p. xiv) reconoce el problema cuando afirma:

¿Cómo podemos comprender la filosofía de la educación?

Despite the dominant analytical view of twentieth-century philosophy, philosophers have sometimes created theories, and today many philosophers engage in constructive work. They introduce new language and suggest powelfull alternatives to the standard uses of language. Some now even draw heavily on literatura and empirical data in the form of teaching-narratives to make points that cannot be made in the tradicional style of argumentation. Whether this work is properly called philosophy is part of an exciting contemporary debate.

Se trata de la incorporación de nuevos lenguajes, formas y accesos no necesariamente argumentativos a la perspectiva filosófica de la práctica educativa cuya pertenencia o no pertenencia al quehacer de la Filosofía de la Educación debe ser discutida. La perspectiva analítica tiene mucho que ver con el modo en que se fue desarrollando la Filosofía anglosajona a lo largo del siglo XX, pero podemos decir, no sólo se trata de la incorporación de nuevos lenguajes o formas que se alejan de la estructura argumentativa, sino que también nos enfrentamos al hecho de que una característica de muchos de los filósofos clásicos de la educación fue justamente la creación de teorías de educación, son el caso de Platón y de Dewey, por ejemplo, esto significa entregar contenidos, indicaciones de acción, metodologías y fines concretos a la educación y no sólo un análisis de ellos.

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Moore intenta colaborar a la discusión que permite delimitar lo que sea la Filosofía de la Educación distinguiendo entre ésta y la Teoría Educativa. Una Teoría Educativa sería un cuerpo de recomendaciones para la práctica mientras que la Filosofía de la Educación sería el examen crítico de esas teorías (Moore, 2001). Esto significa que, no todo lo que puedan escribir los filósofos acerca de la educación sería por ello, Filosofía de la Educación. Esta distinción pone en foco que la clasificación de la actividad que se realiza no depende de quien la realice sino del tipo de actividad que se haga, de sus características. En sentido estricto esto puede significar que un filósofo(a) de la educación puede proponer teorías de la educación y que bastaría con aprender el método de la filosofía analítica y dedicarse al análisis del lenguaje educativo para ser un(a) filósofo(a) de la educación, por lo mismo no todo lo que hagan los(as) filósofos(as) sería filosofía, en sentido estricto. Pese a la enorme utilidad práctica de esta distinción sigue pareciendo problemático, en muchos casos, distinguir entre lo que sea Filosofía de la Educación y lo que queda fuera de ella, pues el límite entre el análisis de las teorías y sus argumentos, la incorporación de perspectivas narrativas distintas a la argumentación (datos, historias) y las propuestas teóricas respecto a fines de la educación no siempre son claros. John White (2003, p 180) realiza una estimulante declaración al respecto cuando afirma:

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Evidentemente, si se supone que la Filosofía se limita al estudio de conexiones entre conceptos, sin entrar en las consecuencias prácticas o recomendaciones éticas relacionadas con los temas tratados, entonces habría que concluir que gran parte de la Filosofía de la Educación no es Filosofía en absoluto. Pero entonces, tampoco podría considerarse propiamente filosófico gran parte del trabajo que se ha llevado a cabo en la Ética Médica o en muchos estudios recientes sobre Filosofía Práctica, Ética y Filosofía Política.

Para algunos este argumento no será lo suficientemente fuerte, pues supone un algo así como o todos los que caben en esta categoría o ninguno, pero hay que reconocer que este argumento deja entrever una cierta irracionalidad en este tipo de discusiones que parecen tener más que ver con costumbres, tradiciones y emociones que con razones, pues muy pocos se atreverían a estar de acuerdo en no considerar como Filosofía Práctica la Ética o la Filosofía Política. Richard Peters, filósofo analítico, a pesar de ser anterior a Noddings y Moore, realiza ya en la Introducción a la Filosofía de la Educación de 1973, un intento de encuentro con aquellos(as) filósofos(as) de la educación que ya se sienten verdaderamente incómodos con algunos de los argumentos de tope de los filósofos(as) analíticos, afirmando que se puede coincidir en que todos(as) los(as) filósofos(as) se dan cuenta de la importancia de distinguir nociones filosóficas sobre la educación y superar así la mescolanza de exposición histórica con indicaciones de procedimientos generales sobre las práctica educativa que habían primado hasta ese momento (PETERS, 1979 (1973)). Para Peters, la Filosofía de la Educación sería una rama de la Filosofía en cuanto se ocupa de asuntos prácticos, no teóricos como tal, que no puede existir con independencia de la Filosofía, pues se alimentaría de las diversas ramas de la Filosofía. En estructura sería similar a la Filosofía Política en cuanto esta rama también se alimenta del saber filosófico y, particularmente, de sus métodos para aplicarlo a un ámbito práctico específico. La Filosofía de la Educación sería en este sentido un tipo de Filosofía Práctica. Dentro de los temas y preguntas propias de la Filosofía de la Educación, Peters plantea, por ejemplo, las siguientes: problemas respecto a derechos filiales y paternos, el castigo en las escuelas, la libertad del niño, la autoridad del maestro y también, ¿qué clase de derecho es el derecho a la educación? ¿Cómo se justifica? Tanto en los temas como en las preguntas se evidencia la dimensión práctica de la reflexión filosófica acerca de la educación.

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Un aporte especialmente interesante para la comprensión de la Filosofía de la Educación y su vinculación con lo ‘práctico’ presente en todas las perspectivas anteriores, es el que realiza María García Amilburu, siguiendo en parte la línea de pensamiento de Peters (2001) cuando afirma que la Filosofía de la Educación es un tipo de Filosofía Práctica. Pero antes un pequeño excurso acerca del significado de ‘Práctico(a)’. En el libro VI, 4 de la Ética a Nicómaco, Aristóteles distingue entre ciencia, técnica y prudencia o, dicho en otros términos entre saber científico, saber técnico y saber prudencial o práctico. En lo fundamental, Aristóteles va a caracterizar el conocimiento científico como aquel que no puede ser de otra manera, se trataría de un conocimiento ligado a la demostración, del que se tiene convicción y familiaridad con los principios que lo rigen (Aristóteles 1139b). Por otro lado, se refiere Aristóteles (VI, 4 1141b) a la prudencia en estos términos:

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La Prudencia, en cambio, atañe a las cosas humanas y a aquellas sobre las que es posible deliberar. Porque la actividad del prudente decimos que es, sobre todo, ésta: deliberar bien. Pero nadie delibera sobre las cosas que no pueden ser de otra manera; ni sobre cuanto carece de una finalidad – y ésta como un bien que se consigue mediante la acción-. Y el buen deliberador, en general, es el que alcanza, siguiendo razonamiento, la mejor de las cosas alcanzables por el hombre mediante la acción.

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Habría que añadir que la deliberación, que es la actividad central del prudente u hombre práctico, es la investigación de algo particular sin perder la perspectiva de alcanzar el bien, requiere de la inteligencia aunque se distinguen, pues mientras “la Prudencia se orienta a dar órdenes y su fin último es lo que se debe hacer o no, mientras que la inteligencia sólo se orienta a juzgar” (ARISTÓTELES, 1143a). Asumir desde la

perspectiva aristotélica que la Filosofía de la Educación sea un tipo de Filosofía Práctica significaría entonces, al menos tres cosas: En primer lugar, que el conocimiento que generan tanto la Educación como la Filosofía de la Educación es un tipo de conocimiento que podría ser de otra manera; en segundo lugar, que se requiere de una deliberación profunda en torno a los fines educativos que se persiguen para que la acción que se recomiende efectivamente tienda a ese fin entendido como un bien deseado y deseable; en tercer lugar, que aunque en la deliberación se requiera de la inteligencia, ésta no basta, pues la inteligencia juzga pero no otorga lineamientos para la acción. Estos son dados sólo por la Prudencia o saber práctico. Que una Filosofía sea Práctica significa en último término que debe traducirse en indicaciones generales para la acción. Indicaciones necesariamente generales porque es imposible generar una indicación para cada acción posible, lo que implica que nunca va a determinar qué debe hacer un sujeto determinado aquí y ahora, tanto porque sólo señala una dirección a tomar sin poder facilitar un mapa preciso y tanto porque tales indicaciones hacen referencia a acciones, las que siempre son particulares y para las cuales las condiciones que las rodean no son sólo fundamentales para su comprensión sino permanentemente cambiantes. García Amilburu comenta en Claves de la Filosofía de la Educación que Wilfred Carr siguiendo la línea aristotélica plantea que dado que los fines de la praxis están indeterminados y que no pueden fijarse con anterioridad a la acción misma, las actividades de orden práctico requieren de un tipo de razonamiento en el que la elección y la capacidad de juicio juegan un papel crucial, lo que en términos de Aristóteles hemos llamado deliberativo. La racionalidad práctica se debe enfrentar a problemas y dilemas por lo que debe descubrir qué se debe hacer, para ello debe guiarse por esta racionalidad práctica deliberativa (comentado en AMILBURU 2003, p. 20-21).

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Tenemos entonces que la Filosofía Práctica genera indicaciones para la acción a partir del uso deliberativo de la razón considerando lo que sea mejor, pero si las indicaciones sólo pueden ser generales pareciera ser necesario que cualquiera que se dedique a la práctica educativa debe ejercitar este saber prudencial independientemente de si algunos(as) profesionales como filósofos(as) de la educación puedan desarrollar esta Filosofía Práctica de modo sistemático. En otras palabras, la naturaleza misma de la Filosofía de la Educación entendida como Filosofía Práctica parece exigir que no sólo sea ejercitada por los(as) expertos(as) sino también por todo aquel(la) que se enfrente a las prácticas educativas, esto es, en primer lugar profesores y profesoras. Resumiendo podríamos decir: que la generación de indicaciones o criterios para la toma de decisiones sería un aspecto central de toda Filosofía que se conciba como práctica y por tanto también de la Filosofía de la Educación; que estos criterios surgen de la necesidad, de la interpelación que la ‘realidad’, en este caso, educativa realiza. En este sentido, la Prudencia delibera acerca de problemas y levanta criterios de acción pensando en la consecución de un bien establecido. En este sentido, pareciera ser que en cuanto Práctica la Filosofía de la Educación se ocupa tanto de mostrar incoherencias, inconsistencias, debilidades en las teorías y prácticas educativas, así como de conducir a revisar o abandonar teorías y líneas de argumentación dentro de esas teorías, en la línea que lo planteaban Noddings (2007) y Moore (2001), pero no sólo desde un punto de vista del lenguaje, pues, continuando con la perspectiva aristotélica, quedan abiertas las indicaciones de acción también a asuntos vinculados a inconsistencias entre teoría y práctica educativa, así como conflictos respecto al mejor modo de encarnar una teoría o el modo en que la práctica misma pone en cuestión la teoría. Esta es la línea argumentativa que sigue María García Amilburu cuando dice que muchas veces se piensa que la Filosofía de la Educación sería la mera aplicación de la

teoría al ámbito de la praxis, lo que significaría algo así como que la verdad práctica consistiría en su adecuación a determinada verdad teórica. Según la filósofa, sin embargo tal razonamiento desconocería completamente que la realidad propia del conocimiento práctico es la constatación de una verdad no dada de antemano, lo que supone desarrollar ciertas estrategias no tradicionales de diálogo entre las teorías y la praxis misma, pues la ‘verdad’ o ‘verdades’ que la Filosofía de la Educación genera sería(n) fruto de la deliberación racional en una situación concreta que se concreta en indicaciones para la acción. Por ello García Amilburu va a entender el conocimiento de la Filosofía de la Educación como un conocimiento fundamentalmente heurístico (AMILBURU, 2003). Con conocimiento heurístico García Amilburu quiere decir que la Filosofía de la Educación no pretende tanto generar conocimientos nuevos como proporcionar una comprensión mejor y más profunda de aquello con lo que ya se está familiarizado. Que la Filosofía de la Educación sea un saber práctico, significa por lo mismo, que se trata de un saber que no sólo se construye partiendo de la acción y para ella, sino que también se construye en la acción y desde ella (AMILBURU, 2003). Dicho en otros términos, sería este diálogo racional deliberativo entre la acción educativa y sus teoría(s) el ámbito propio de la Filosofía de la Educación. La Filosofía de la Educación sería de acuerdo a García Amilburu (2003, p. 22): El tipo de Filosofía Práctica que se ocupa de considerar las cuestiones educativas. Es, por tanto, una de las disciplinas académicas que componen las Ciencias de la Educación. Su objeto de estudio es la elaboración de un cuerpo de doctrina que dé respuesta a unos problemas específicos -aquellos que se derivan del estudio de las cuestiones últimas acerca del proceso educativo, y del ser humano como alguien que debe ser educado-, y se desarrolla de acuerdo con una metodología peculiar- el análisis

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filosófico: fenomenológico, metafísico y hermenéutico- de la realidad educativa y de los procesos de enseñanza – aprendizaje, con el fin de mejorarlos

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Pese a que esta última definición en cierto sentido vuelve a abrir nuevamente el debate en torno a los métodos que se van a considerar como propios de la Filosofía de la Educación, es cierto también que ahora se pueden mirar el tema desde otra perspectiva. Finalmente, María García Amilburu (2003, p. 22-23) insiste en que independientemente de la dirección específica que haya desarrollado esta disciplina existiría una exigencia fundamental y común a todas las posibles direcciones y esta es la aspiración a convertirse en un instrumento apto para contribuir al mejor conocimiento y a la optimización cualitativa de los procesos educativos, debe elaborarse como reflexión radical (filosófica) sobre los supuestos profundos de la educación, que requiere un buen conocimiento de la historia, el ejercicio de un particular lenguaje y dominio de la Antropología Filosófica, sin ceñirse sólo al plano ontológico – metafísico. PALABRAS FINALES

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Pese a las diferencias en relación a los métodos, parece existir acuerdo respecto a un punto: la Filosofía de la Educación es un tipo de Filosofía Práctica, lo que significa que construye su conocimiento de, para, en y desde la acción. En este sentido la Filosofía de la Educación en cuanto Filosofía Práctica es un diálogo permanente entre la teoría y la praxis educativa, en donde una alimenta la otra. Esta perspectiva determina a su vez algunos desafíos a los que se ven enfrentados(as) los filósofos y filósofas de la educación, como por ejemplo: mantener el equilibrio entre el rigor de la argumentación filosófica y la complejidad de

los usos en educación (NODDINGS, 2007) trabajar en la tensión creativa entre las demandas epistemológicas de la tarea –para que adquiera los standars filosóficos requeridos – y la necesidad de que la reflexión sea de utilidad para los profesionales de la educación (WHITE, 2003); detectar qué cuestiones son de interés para los profesionales de la educación y cuáles son más bien superficiales (WHITE, 2003); detectar a tiempo el peligro de polarizar el enfoque de las investigaciones ya sea sobre valorando la importancia práctica y descuidando el aspecto filosófico o, por el contrario, enfatizando demasiado el trabajo filosóficamente meticuloso alejándose de las necesidades prácticas (PETERS, 2001). Que la Filosofía de la Educación se entienda como un tipo de Filosofía Práctica involucra también, siguiendo la línea aristotélica, que la Filosofía de la Educación debe proporcionar indicaciones para la acción y desarrollar de algún modo la virtud del prudente tanto en sí mismo(a) como en los profesores(as) con el fin de reflexionar sobre sus prácticas y teorías. Parece no existir un acuerdo respecto a cuál sea el método de la Filosofía de la Educación y por lo mismo existe una diversidad de modos de comprender lo que sean sus tareas fundamentales. Si el método de referencia es la Filosofía Analítica, entonces las tareas clave se comprenderán como análisis de conceptos; si el método de referencia es la hermenéutica, entonces la tareas central será la interpretación, si el método es fenomenológico, entonces la tarea crucial será la comprensión y descripción del fenómeno educativo, etc. Lo único que tenemos claramente en común es la auto comprensión como Filosofía Práctica.

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REFERÊNCIAS

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Data de recebimento: novembro de 2013 Data de aceite: junho de 2014 54

INDIVIDUALIDADE E IGUALDADE COMO CHAVES PARA A DEMOCRACIA CRIATIVA

Individualidade e Igualdade como chaves para a democracia criativa

Jim Garrison1

Resumo

Inspirado em John Dewey, este trabalho discute a ideia de igualdade democrática como mesmice e padronização, e as consequência dessa ideia. De acordo com Dewey, o autor defende que a pseudodemocracia econômica desenvolvida atualmente consiste na derrota da democracia política e social, bem como da genuína democracia econômica, e que a igualdade moral é incomensurável. Palavras-chave: John Dewey; Democracia; Teoria Moral; Filosofia da Educação.

Abstract

Inspired in John Dewey, this work discusses the idea of democratic equality as meaning sameness and standardization, and the consequences of such idea. According to Dewey, the author defends that the economic pseudo-democracy developed nowadays defeats the social and political democracy as well as genuine economic democracy, and that moral equality is incommensurable. Keywords: John Dewey; Democracy; Moral Theory; Philosophy of Education.

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Jim Garrison – Professor da Virginia Polytechnic Institute/Blacksburg, EUA E-mail: [email protected]

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INDIVIDUALIDADE E IGUALDADE COMO CHAVES PARA A DEMOCRACIA CRIATIVA2

Individualidade e Igualdade como chaves para a democracia criativa

“A mesma lei para o leão e para o boi é opressão” William Blake (1793/1988, 44).

Todo semestre eu ministro um curso típico sobre os aspectos sociais, culturais e econômicos da educação. Geralmente começamos a aula discutindo sobre reprodução. Eu diferencio a reprodução biológica, a transmissão de nossa herança genética, da reprodução social e cultural. Essa última reproduz os costumes sociais, as normas de conduta, as práticas sociais, o uso de ferramentas e a linguagem, assim como as crenças e os valores. Ressalto que a educação é o lugar da reprodução cultural antes de distinguir entre escolarização e educação. A educação é onipresente e inevitável; a escolarização é uma atividade institucionalizada geralmente limitada a horários e locais específicos. A escolarização pública está sujeita à regulamentação e ao controle públicos, supostamente para o bem comum. Eu concluo salientando que a educação verdadeiramente democrática busca a igualdade educacional como uma forma de educar indivíduos capazes de criticar e recriar a sociedade, e não simplesmente de reproduzir o status quo. Surpreendentemente, muitos dos meus alunosprofessores acham intrigante a noção de democracia criativa. Eles presumem que a nossa democracia já foi concluída e que 2

Uma versão anterior e muito mais curta desse artigo será publicada no American Journal of Education. Com quase o dobro de páginas, a versão atual explora muitos temas omitidos no artigo anterior, como “o novo feudalismo”, os testes de inteligência, a liberdade, o desenvolvimento de si mesmo, a criatividade, a singularidade humana e a oposição de Dewey à educação profissional compreendida estreitamente. Também são fornecidos alguns exemplos mais práticos.

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só precisa ser preservada. Meu artigo surge em decorrência de meus esforços para responder à perplexidade deles. Vamos nos concentrar nas ideias de mesmice e de padronização. Há uma profunda sabedoria na epígrafe de William Blake acima. Vamos contar com as percepções de John Dewey para iluminar essa sabedoria no contexto da democracia criativa. Temos de atacar a própria ideia de padrões iguais para todos como um veículo de igualdade educacional em uma sociedade democrática e, especialmente, em sociedades que possuem tal sistema de escola pública. Argumentarei que a igualdade é a antítese da mesmice, pelo menos no sentido da igualdade democrática, ou o que, por vezes, Dewey chama de “igualdade moral”. A igualdade moral democrática celebra a individualidade qualitativa e incomensuravelmente única a um só tempo. Quando interpretamos a igualdade em termos de mesmice quantitativa e de padrões iguais para todos, ela destrói a igualdade moral democrática enquanto corrompe o ideal de igualdade de oportunidade educacional. Os padrões iguais para todos entram na escolarização moderna por meio de sistemas burocráticos e tecnocráticos que assumem sua liderança a partir do mundo dos negócios e da indústria. Esses vários sistemas expressam as necessidades e desejos dos líderes de negócios que os conceberam, e não dos pais, estudantes, professores ou cidadãos. Tais sistemas têm pouco interesse na democracia criativa. Esses modelos também estão assumindo agora o ensino superior por meio de agências de credenciamento que igualmente tendem a satisfazer os desejos dos líderes de negócios e da indústria, e não dos estudantes, professores e público em geral. Mais especificamente, eu focalizo a padronização na escolarização. Os currículos contemporâneos, predeterminados, padronizados, iguais para todos e direcionados para objetivos de aprendizagem padronizados, definem a pista em que todos devem correr. Os testes de desempenho padronizados informam a cada suposto indivíduo quem eles são e onde

eles se encaixam em estruturas sociais predeterminadas, com também com o que eles farão quando chegarem lá. A maravilhosa concepção industrial do século XIX consistiu no refinamento de recursos naturais em peças padronizadas, portanto facilmente intercambiáveis e substituíveis, para atender à produção nacional. A maravilhosa ideia pós-industrial do século XXI é o refinamento de recursos humanos em peças padronizadas, portanto facilmente intercambiáveis e substituíveis, para atender à produção global. As escolas servem como locais para fundição e refino dos recursos humanos. Assim como nós rentabilizamos os recursos metálicos para garantir um sistema monetário padronizado para a fácil circulação de riqueza, também padronizamos os seres humanos para a fácil circulação do trabalho humano. A rentabilização de metais facilita o intercâmbio de produtos. A padronização de recursos humanos faz o mesmo. É claro que podemos tratar o próprio dinheiro como um produto, e é por isso que estabelecemos mercados de produtos que definem os padrões de troca. O mercado de trabalho trata as pessoas da mesma maneira. As pessoas frequentemente procuram aperfeiçoar-se como recursos humanos, obtendo graus educacionais que aumentam o valor do trabalho que é trocado por dinheiro, produtos, e assim por diante. Quando as escolas desempenham a função de aperfeiçoar os recursos humanos adequadamente, aumenta-se o capital humano de uma nação. Para aqueles que valorizam o individualismo democrático socialmente responsável, a padronização exigida pela lógica da teoria do capital humano e dos recursos humanos leva a uma deseducação maliciosa. É uma profunda ameaça a qualquer ideia de democracia vibrante e criativa. Eu pretendo mostrar que a padronização pressupõe noções de mesmice que degradam as ideias democráticas de igualdade, individualidade e liberdade de expressão que elas supostamente apoiam. É uma boa instância de conceitos e estruturas de negócios, reificados, burocráticos e tecnocráticos. Isso leva ao que eu

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chamo de “o novo feudalismo estrutural”. O feudalismo atual funde o pensamento de sistemas burocráticos e o capitalismo contemporâneo a estruturas sociais feudais. A situação real é muito mais complexa, mas essa ideia servirá suficientemente bem aos nossos propósitos. O antigo feudalismo baseava-se no direito à terra e não se ocupava muito com a troca de produtos. É óbvio que o novo feudalismo não compartilha dessas premissas. As coisas poderiam ser melhores se ele compartilhasse, uma vez que o antigo feudalismo pelo menos fornecia bens comuns essenciais, enquanto o novo feudalismo busca cercar e privatizar a esfera pública. O novo feudalismo estrutural pressupõe que podemos refinar e tornar tudo, incluindo as pessoas, adequado para circular como um produto. O feudalismo medieval pressupunha uma ordem militar, econômica, sacerdotal e política predeterminada, fixa, hierárquica e final, que ninguém, de cima a baixo, poderia alterar. O novo feudalismo estrutural estabelece uma ordem social semelhante em que os participantes entendem que a alteração do que foi estabelecido é imoral, uma violação da lei de Deus, da lei natural, ou de ambas.3 Em vez do direito divino dos reis ungidos por Deus, temos o direito divino da elite capitalista ungida pelo mercado. Os atuais gestores do dinheiro interpretam a vontade do mercado para os capitalistas ricos, tanto quanto o sacerdote de outrora interpretava a vontade de Deus para o príncipe.4 Enquanto isso, os militares protegem o mercado, do mesmo modo que o cavaleiro medieval defendia as propriedades dos senhores feudais.

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Um esboço anterior da famosa advertência do presidente Eisenhower sobre o complexo militar-industrial e sua influência na política e no governo também deu nome à academia. Um complexo militar-industrial-acadêmico hierárquico semeado em conjunto por conceitos mundiais de sistemas corresponde muito bem à estrutura medieval de uma ordem militar, econômica e sacerdotal. Hoje, a ordem econômica é capitalista e os sacerdotes são acadêmicos, mas os fundamentos continuam os mesmos. Consulte Harvey Cox (1999) “The Market as God”.

O novo feudalismo estrutural beneficia principalmente a nova aristocracia, os capitalistas ricos. Eu poderia facilmente chamá-la de “dinheirocracia”.5 No novo feudalismo estrutural, as escolas assumem a tarefa de padronizar o capital humano como um produto adequado para a troca imediata e que se encaixa passivamente na ordem sócio-político-econômica existente, em vez de indivíduos democráticos encarregados de desafiar e mudar o status quo. O novo feudalismo estrutural pode ainda derrotar o sonho da democracia expansiva continuamente criativa, deixando todos os ideais ideológicos da democracia no lugar, embora esvaziados de seu significado democrático. Uma maneira para fazer isso é reduzir a noção de igualdade moral à padronização e mesmice, fazendo, desse modo, uma paródia da individualidade genuína como uma autoexpressão criativa. Meu artigo encontra inspiração em três ensaios curtos de John Dewey. Os dois primeiros, “Mediocrity and Individuality” (Mediocridade e individualidade) e “Individuality, Equality, and Superiority” (Individualidade, igualdade e superioridade), surgiram em 1922 em sucessivas edições da revista The New Republic, da qual Dewey foi um colaborador regular durante muitos anos. Dewey acreditava que só tínhamos assegurado as condições para a democracia, razão pela qual ele criticava os fundamentos do liberalismo moderno. Ele rejeitou o conceito de indivíduo atomístico desprovido de influências sociais. Em vez disso, comprometeu-se com a construção sociocultural de mentes e de indivíduos. Ele também rejeitou as noções de 5

É interessante que a palavra “moneyocracy” (dinheirocracia) aparece no Oxford Dictionary of the English Language (OED), mas não aparece no MerriamWebster. Esse termo do século XIX merece revitalização no século XXI. Um dos revisores desta revista sugeriu que eu deveria usar a palavra “cleptocracia” de forma mais precisa, o que o OED define como “um corpo governante ou ordem de ladrões”. Esse revisor também sugeriu que cleptocracia em nossa nação significa que o governo está se apossando das escolas públicas e de outros bens e recursos públicos, a fim de entregá-los ao setor privado. A ideia geral é que o governo não é nem para as pessoas nem mesmo pelas pessoas. Isso me parece bastante provável. Gostaria apenas de acrescentar que a plutocracia e a oligarquia podem se juntar com a “dinheirocracia” e a cleptocracia de variadas maneiras complexas.

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racionalidade inata e de livre arbítrio inato. O terceiro ensaio, “Creative Democracy—The Task Before Us” (Democracia criativa: a tarefa que temos pela frente), foi lido na festa do octogésimo aniversário de Dewey, em Nova York, com a presença de cerca de 1.000 pessoas e na ausência do sempre tímido Dewey. O artigo é uma manifestação concisa do sonho de Dewey com uma sociedade mais democrática. Ele pensava que a democracia deveria constantemente recriar a si mesma, o que exige educar pessoas criativas únicas que constantemente reconstroem a sociedade, em vez de simplesmente se adequarem à ordem social existente. Todos os três artigos argumentam contra a ideia da igualdade democrática como significado de mesmice e padronização, o que, para Dewey, tornava a individualidade genuína uma farsa. O novo feudalismo estrutural é uma corrupção do espírito democrático de liberdade e individualidade. Podemos localizar as sementes dessa degradação em forças presentes já nos conceitos que cercam a noção iluminista de indivíduo atomístico. O ideal era que cada pessoa “normal” nascesse com ambos, razão inata e livre arbítrio inato. Havia uma catástrofe oculta nesses dois pressupostos. A ironia, uma das muitas que encontraremos, é que se todos usassem sua razão inata corretamente e exercitassem a sua vontade de acordo com seus preceitos, então todos tomariam a mesma decisão e agiriam da mesma forma em situações idênticas ou semelhantes. Aqueles que não fizessem assim seriam cognitivamente anormais ou moralmente baixos. O novo feudalismo incorpora os ideais iluministas da democracia liberal, da qual os neoliberais constantemente dependem para derrotar todas as aspirações por uma democracia mais profunda. O pensamento utilitário ajuda a reduzir a racionalidade a uma racionalidade simplesmente instrumental e calculista. Do mesmo modo, a ideia de criatividade tornase invenção econômica e empreendedorismo, dentro de uma ordem econômica fixa estranhamente feudal. Essa pseudodemocracia econômica pode facilmente derrotar

a democracia social e política, bem como a democracia econômica genuína. Muitos educadores contemporâneos pensam que as ideias de Dewey sobre educação democrática são apenas progressismo impróprio, obsoleto para a era pósindustrial, pós-moderna ou talvez transmoderna de hoje. A ironia é que, para ele, ainda temos de alcançá-la. A crítica ao individualismo iluminista e a defesa de noções de individualidade construtivistas socioculturais mais iluministas, tal qual feitas por Dewey, ressoam ao longo de seus escritos, desde a década de 1890 até a sua morte, em 1952. A visão crítica de Dewey é que não nascemos com a racionalidade, o livre arbítrio, com um eu ou uma mente. Devido à falta de espaço para fornecer detalhes, vamos nos contentar com duas declarações simples de sua posição. Dewey observa: “A individualidade é um dado original apenas no sentido físico de corpos físicos em que os sentidos são separados. Em um sentido social e moral, a individualidade é algo a ser construído” (MW 12: 191). Em outra parte, ele afirma: “A liberdade ou individualidade, em suma, não é uma posse ou dom original. É algo a ser alcançado, a ser construído” (LW 2: 62). Alcançar a individualidade é assim tão importante para Dewey porque: “Toda invenção, toda melhoria na arte tecnológica, militar e política tem sua gênese na observação e na ingenuidade de um inovador particular” (LW 1: 164). Dewey coloca “ênfase na individualidade como o fator criativo nas experiências da vida” (LW 15: 315). Ele dedicou livros inteiros para defender essas reivindicações. Seu ataque contra o individualismo atomístico e a noção de que nascemos com nada mais do que instintos vagos biologicamente inatos tem implicações óbvias em seu pensamento sobre a democracia, pela simples razão de que as ideias iluministas fundamentais empregadas na fundação da democracia “americana” são todas falsas. É por isso que ele declara no segundo parágrafo de “Creative Democracy—The Task Before Us” (Democracia criativa: a tarefa que temos pela frente) que essa democracia que temos foi “produto de condições favoráveis que agora

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têm de ser vencidas por um esforço consciente e resoluto” (MW 13: 295). A tarefa que temos pela frente exige recriar a própria ideia de democracia e de indivíduo democrático. Eu acredito que isso também envolve repensar a ideia e o ideal de igualdade democrática. Talvez a maior barreira para reconceber a democracia esteja no fato de que simplesmente assumimos que a democracia deu certo desde o início e que já temos toda a democracia de que precisamos. Dewey declara:

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Se eu enfatizo que a tarefa só pode ser realizada pelo esforço inventivo e pela atividade criativa, em parte é porque a profundidade da crise atual deve-se consideravelmente ao fato de que, por um longo período, agimos como se a nossa democracia fosse algo que se perpetuou automaticamente; como se os nossos antepassados tivessem conseguido criar uma máquina que solucionasse o problema do movimento perpétuo na política. (225)

Para realizar a tarefa que temos pela frente, precisamos de cidadãos democráticos genuinamente criativos, que a padronização nunca possa alcançar. Para compreender de que modo a padronização captura e constrange o pensamento educacional sobre a igualdade, a democracia e o indivíduo democrático, vejamos o No Child Left Behind Act (NCLB) aprovado em 2001 com massivo apoio bipartidário.6 Essa é a legislação federal mais recente que decreta uma reforma escolar baseada em padrões, fundamentada na teoria de que a definição de altos padrões e o estabelecimento de resultados mensuráveis melhorará a escolarização na América. O NCLB obriga os estados a desenvolverem padrões de aprendizagem (SOL) e avaliações Educ. foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 1, p. 55-82, mar. 2015 / jun. 2015

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O No Child Left Behind controla a educação pública nos Estados Unidos, mas, por ser direcionado para a economia global, seus padrões são comuns em todo o mundo desenvolvido e em desenvolvimento.

padronizadas em competências básicas para todos os estudantes, em graus especificados, para que recebam financiamento federal. Essas avaliações dependem quase exclusivamente de testes padronizados de desempenho referenciados pela norma. Os currículos devem estar alinhados com esses testes, cabendo aos professores ministrá-los e aos administradores, forçarem o seu cumprimento. As escolas que ficam abaixo do padrão são punidas. Trata-se de um exemplo quase perfeito do pensamento mundial de sistemas inspirados em negócios.

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Alguém pode se opor aos altos padrões, aos objetivos padronizados claramente definidos e aos resultados medidos por testes padronizados? Alguém acha que não devemos responsabilizar estudantes, professores e escolas por esses padrões? Existe alguém que, sendo comprometido com o tratamento democrático, justo e igual para todas as crianças, poderia se opor? John Dewey, ele é esse alguém. O nome de Dewey raramente surge em minhas aulas. Em vez disso, quando nos voltamos para as questões de igualdade, igualdade de oportunidades e justiça social, eu invoco o poeta William Blake (1793/1988), que escreve: “A mesma lei para o leão e para o boi é opressão” (44). Eu pretendo que meus alunos-professores considerem a possibilidade de que igualdade democrática não significa mesmice e padronização. Eu então peço a eles para nomear algo que fazem muito bem. Alguns se sobressaem em matemática, alguns no atletismo e outros nas artes ou nas ciências. Alguns falam de habilidades sociais e de fazer amigos. Com uma central de estagiários no campus, não é raro alguém mencionar as habilidades e a qualidade de caráter necessárias para a soldagem. A Future Farmers of America foi fundada em minha universidade (Virginia Tech) e temos lá um departamento de educação profissional altamente qualificado; por isso muitas vezes eu recebo como resposta habilidades em pecuária, agricultura, conservação da terra

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e máquinas7. Os estudantes sempre se surpreendem não só com a diversidade, mas também com a intensidade com que uma pessoa pode desgostar profundamente de algo que outra pessoa aprecia com paixão. Nós geralmente concordamos que o mau desempenho em alguma coisa específica, ou uma série de coisas, não quer dizer que alguém é estúpido ou sem dons. Eventualmente, nós começamos a falar sobre como até mesmo indivíduos que são bons na mesma coisa a fazem com estilos diferentes. Os graduandos em música muitas vezes continuam esta conversa. Nós geralmente nos voltamos para a diferença entre áreas temáticas, diferentes estilos de ensino e de aprendizagem e as expectativas de meus alunos-professores em relação à autonomia criativa e à autoexpressão em sala de aula. Eu costumo perguntar quantos deles podem nomear as três máquinas simples que estão nos testes padronizados para passar no terceiro ano em Virgínia. Eventualmente, muitos concordam que não é democrático buscar a igualdade por meio da padronização e da mesmice. A igualdade democrática executada como mesmice é uma paródia do que as nossas nações requerem para abraçar a individualidade forte e os ideais democráticos. A filosofia da educação de Dewey nos mostra por quê. Em “Creative Democracy—The Task Before Us” (Democracia criativa: a tarefa que temos pela frente), Dewey afirma que a busca pela democracia está longe de ser concluída. Hoje, a nossa tarefa é garantir à democracia, com inteligência, apenas a boa sorte que nos foi prometida no começo. Para fazer isso corretamente, devemos recriá-la artisticamente:

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Em todos os casos, é isso o que quero dizer quando digo que agora temos de recriar, pelo esforço deliberado e determinado, o tipo de democracia que, em sua origem há 150 anos, foi em grande parte o produto de uma combinação feliz de homens e circunstâncias. Educ. foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 1, p. 55-82, mar. 2015 / jun. 2015

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Fundada em 1928, a Future Farms of America é uma organização destinada à educação agrícola (Nota do Editor).

Temos vivido por um longo tempo sobre a herança que nos veio da conjunção feliz de homens e eventos em uma época anterior. O estado atual do mundo é mais do que uma lembrança de que temos agora de levar adiante toda a nossa energia para provar que somos dignos de nossa herança. (LW 14: 225)

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A tarefa que temos pela frente requer ainda mais energia do que a que foi exigida na época de Dewey. Grande parte da tarefa nas escolas e no restante da sociedade envolve superar as concepções culturalmente arraigadas das principais ideias democráticas, como “igualdade”, que foram mal formadas desde o início. Nossa herança proporciona oportunidades e obstáculos. Meu artigo é uma tentativa de começar a repensar artisticamente a mesma ideia de igualdade democrática como parte do projeto maior de reconstruir a democracia para os nossos tempos. Dewey passa a enfatizar que “a tarefa só pode ser realizada por meio de esforço inventivo e criatividade” (225). Somente a liberação do potencial criativo individual pode cumprir tais objetivos: A fé democrática na igualdade humana é a crença de que todo ser humano, independentemente da quantidade ou do alcance de seus dons pessoais, tem direito à igualdade de oportunidades, como qualquer outra pessoa, para o desenvolvimento de qualquer dom que ele possua. A crença democrática no princípio da liderança é generosa. É universal. (226-227)

Dewey tem mais fé na individualidade humana do que os políticos e os especialistas de hoje jamais tiveram em seus discursos patrióticos. O que ele afirma não é que cada indivíduo deva ter oportunidade igual de tomar o seu lugar na ordem social existente, muito menos que devamos tratar a todos exatamente segundo os mesmos padrões. Esse é o objetivo do NCLB, que contribui para o novo feudalismo estrutural. Em

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vez disso, ele afirma que cada indivíduo tem o direito de ter seu potencial único concretizado em toda a extensão possível; que cada indivíduo pode dar a sua contribuição única não apenas para preservar, mas também para melhorar a sociedade, trazendo a sua voz única para o diálogo público.8 Dewey quer repensar o discurso dominante sobre a igualdade. Para ele, a igualdade, pelo menos a igualdade moral, não significa mesmice. Também não significa oportunidade igual para se tornar aperfeiçoado como uma parte padronizada, intercambiável e substituível, escolarizada com o intuito de se adequar a um papel predeterminado na função de produção existente. Ele enfatiza a singularidade, a diferença e a impossibilidade de substituição. Devemos louvar a individualidade genuína e a autoexpressão responsável. Dewey nos impulsiona a perceber que:

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a democracia é uma forma pessoal de vida individual; ela significa a posse e o uso contínuo de determinadas atitudes, formando o caráter pessoal e determinando o desejo e o propósito em todas as relações da vida. Em vez de pensar em nossas próprias disposições e hábitos como adaptados a certas instituições, temos de aprender a pensar nas instituições como expressões, projeções e extensões de atitudes pessoais habitualmente dominantes. (226)

Dewey salienta a liberação do potencial criativo humano para preservar, transformar e melhorar a sociedade. Cada um de nós é uma singularidade, com necessidades especiais próprias, desejos, interesses, consciências, propósitos e projetos. Cada um é capaz de realizar o papel de líder, dependendo da ocasião e de seus talentos particulares. Para pensar assim, devemos deixar de acreditar que liderança significa governo por um grupo de elite de especialistas. Em vez disso, devemos buscar Educ. foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 1, p. 55-82, mar. 2015 / jun. 2015

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De maneira significativa, muitos dicionários definem “único” em termos de não haver um semelhante ou igual.

o governo não só para o, mas também pelo povo. Devemos buscar a igualdade moral, e não a física ou mental. A interpretação da igualdade como mesmice destrói a igualdade moral, o desenvolvimento da individualidade e, a um só tempo, a liberação do potencial criativo único para realizar a tarefa de recriar nossa democracia. Isso leva à noção de que a igualdade de oportunidades significa que todos têm o direito de competir por um lugar desejável em uma estrutura social preestabelecida. Reduz o ideal de igualdade de oportunidades educacionais a objetivos curriculares padronizados, a um currículo padronizado e às determinações de testes padronizados, nenhum dos quais pode reconhecer a possibilidade humana única. O problema do NCLB é a sua concepção padronizada de igualdade de oportunidades educacionais.9 Ele passivamente adapta o indivíduo a instituições já existentes, especialmente a instituições econômicas. O resultado é a conformidade social do novo feudalismo estrutural, em vez da democracia criativa. Para perceber o que está errado com a padronização, vamos considerar os dois ensaios da revista The New Republic mencionados anteriormente. Eles deveriam ser reimpressos hoje, uma vez que são mais relevantes do que nunca. O parágrafo de abertura de “Mediocrity and Individuality” (Mediocridade e individualidade) aborda a ambiguidade da palavra “individualismo”. Dewey conclui:

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Individualidade é a palavra mais certa; ela carrega consigo uma conotação de exclusividade de qualidade ou pelo menos de distinção. Ela sugere uma liberdade que não é legal, nem comparativa nem externa, mas que é intrínseca e construtiva. Nossos antepassados, 9

Estou assumindo, talvez caridosamente, que a igualdade de oportunidades educacionais é, de fato, o objetivo do NCLB. Eu concordaria com a igualdade de oportunidades educacionais e com a igualdade como mesmice, se isto significasse que cada indivíduo único tem o mesmo direito (igual) de ter seu potencial único concretizado. No entanto, estou certo de que a padronização do que se designa como “realização” está entre os objetivos do NCLB, por isso eu não acredito que o NCLB (ou o NCATE etc.) possa buscar a igualdade de oportunidades educacionais para alcançar a igualdade moral.

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que permitiram o crescimento de arranjos jurídicos e econômicos, pelo menos supunham, mas erroneamente, que as instituições que eles favoreciam iriam desenvolver a individualidade pessoal e moral. Reservou-se para a nossa própria época combinar, sob o nome de individualismo, o louvor da energia egoísta referente à realização industrial com a insistência sobre a uniformidade e a conformidade, no que se refere à mente. (MW 13: 289)

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Dewey exalta e defende a individualidade como singularidade qualitativa, e não como construções quantitativas jurídicas de negócios, da indústria ou do governo. Ele está preocupado com o indivíduo moral, criativo, expressivo, e não com capital humano. Na passagem citada, nota-se que Dewey acredita, ao mesmo tempo, que eventos subsequentes nos Estados Unidos degradaram a ideia indispensável do individualismo e que nossos antepassados também permitiram, equivocadamente, o crescimento de formas de individualismo que não contribuíram para o individualismo democrático genuíno, embora as suas intenções talvez fossem as melhores. A vida é repleta de tragédias (e comédias) de consequências inesperadas. Em nenhum lugar essa observação é mais verdadeira do que no campo da educação. Dewey mostra estar completamente ciente dos perigos de uma democracia que eventualmente erradica toda distinção e submerge a individualidade na conformidade ideológica irrefletida:

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Agora que chegamos ao ponto de reverência à mediocridade, por submersão da individualidade em ideais e credos em massa, talvez não nos surpreenda que, depois de ostentar por um longo tempo que não tínhamos classes, agora nós nos vangloriamos de ter descoberto um modo científico de dividir nossa população em classes definidas. Assim como Aristóteles racionalizou a escravidão, mostrando que para os que eram naturalmente superiores era natural constituírem os fins

para os outros que eram apenas ferramentas, nós também, enquanto nos maravilhamos talvez com a insensibilidade do filósofo grego, racionalizamos as desigualdades da nossa ordem social, apelando para estratos psicológicos inatos e imutáveis na população. (289)

Individualidade e Igualdade como chaves para a democracia criativa

Devemos evitar a reificação; isto é, naturalizar as relações sociais contingentes como se fossem necessárias e, depois, utilizar os resultados para racionalizar a injustiça. Dewey está plenamente consciente dos perigos apontados pelos críticos conservadores da democracia para as massas. Ele próprio é um defensor da aristocracia, mas não do tipo que esses críticos elogiam. Sua forma de aristocracia não suprime a distinção e a diferença em noções falsas de igualdade, padronização e mesmice. Outro problema dos testes padronizados é que eles não dizem nada sobre os indivíduos particulares que procuramos educar. Por exemplo, eles nos deixam ignorantes acerca da habilidade única ou da realização distintiva. Não admira que não eduquemos para isso. Dewey pergunta: “Mas por que foi tão geralmente assumido entre os nossos líderes cultivados que uma fórmula puramente classificatória forneceria informações sobre a inteligência individual na sua individualidade?” (290-291).10 As necessidades, desejos e interesses específicos, juntamente com o desenvolvimento cognitivo moral e artístico, dão a cada indivíduo uma perspectiva única sobre a existência, e, portanto, a capacidade única de oferecer uma contribuição única. Dewey responde a sua própria pergunta desta forma: 10 Em parte, Dewey está pensando em inteligência no seu sentido etimológico.

Ou seja, “inter” (entre, dentre) e “legere”, escolher. Ele também pode estar pensando em termos da antiga noção de gênio como possessão divina ou um demônio pessoal. Se ele não estava de fato pensando assim, isso não nos impede de fazer isso nós mesmos. Dewey era um naturalista. Podemos pensar em “possessão divina”, como ser possuído por ideais que norteiam a nossa conduta. Encontramos esse ideal no discurso do Reverendo Martin Luther King: “Eu tenho um sonho”.

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Estamos irremediavelmente acostumados a pensar em médias padronizadas. Nosso ambiente econômico e político nos leva a pensar em termos de classes, agregados e membros submersos neles. Apesar de toda a nossa conversa sobre a individualidade e o individualismo, não temos o hábito de pensar em termos de qualidades distintivas, muito menos exclusivamente individualizadas.

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O costume cultural e político profundamente estabelecido de pensar apenas em termos de padrões, combinado com uma falsa sensação do que a estatística pode alcançar, tem efeitos devastadores nas nossas deliberações sobre o indivíduo democrático e a educação democrática. Essa falta de consciência reflexiva está por trás do NCLB e representa muito de sua eficiência vulgar destrutiva. O alvo específico de Dewey em “Mediocrity and Individuality” (Mediocridade e individualidade) é o teste de inteligência, que compreende a primeira onda de uma cascata que varreu qualquer preocupação com a personalidade individual na escolarização. Sobre esses testes, ele salienta: “Um Q.I., como determinado na atualidade, é no máximo uma indicação de certos riscos e probabilidades. Seu valor prático reside no estímulo que dá à investigação mais íntima e intensa de habilidades e incapacidades individualizadas” (293). Eles ainda são determinados dessa maneira. O problema com todos esses testes é que “a qualidade da individualidade lhes escapa” (292). Dewey elabora um exemplo bem construído do que ele quer dizer: “O seguro de vida torna-se impossível, por exemplo, sem extensas investigações estatísticas, estabelecendo normas médias quantitativas. Os indivíduos são classificados de acordo com o seu grau de risco segurável, com base nessas normas. Mas ninguém supõe que o resultado determine o destino de qualquer pessoa específica” (292-293). Infelizmente, os testes de desempenho reificam, de fato, suas construções e selam o destino de milhões de pessoas quando usados como dispositivos de controle de acesso.

Dewey percebe que os testes padronizados são melhores para determinar se um indivíduo possui as aptidões e realizações mais úteis para se adequar a papeis pré-instituídos no novo feudalismo estrutural. Sabemos há tanto tempo que esses testes incorporam os preconceitos das classes dominantes, que universalizam e reificam suas ideologias e interesses de muitas maneiras (gênero, raça, meio cultural etc.), que quase desistimos de falar sobre isso. Esses testes também podem oprimir o desenvolvimento da individualidade genuína, firmando o sucesso social de um conjunto relativamente pequeno de atributos aprovados pelas classes aristocráticas e afastando atributos que, liberando potenciais únicos, podem ameaçar as estruturas de poder existentes. Isso nos proíbe de educar indivíduos genuínos que podem ver a recriação de uma rica democracia cívica e política como a tarefa que eles têm pela frente na vida.

Individualidade e Igualdade como chaves para a democracia criativa

Na edição seguinte da The New Republic, Dewey reitera, aprofunda e desenvolve seu pensamento em “Individuality, Equality and Superiority” (Individualidade, igualdade e superioridade). Dewey dedica seu segundo ensaio a um “reexame das ideias fundamentais da superioridade e da igualdade” (295). O parágrafo de abertura ataca a noção de igualdade como medida padronizada, declarando: os resultados de testes mentais provam até que ponto nos é permitido julgar e tratar os indivíduos não como indivíduos, mas como criaturas de uma classe, uma classe quantitativa que abrange características verdadeiramente individualizadas. . . . “Iguais” são aqueles que pertencem a uma classe formada por chances semelhantes de obter reconhecimento, posição e riqueza na sociedade atual. (MW 13: 295)

Essas classes quantitativas classificam os estudantes em classes sociais predeterminadas, educando para o destino

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provável.11 Em vez de classificar e adaptar as habilidades físicas e mentais, a disposição e os hábitos às instituições econômicas, governamentais e religiosas da sociedade atual, uma educação democrática afirmaria a igualdade moral qualitativa em prol da concretização do potencial humano único de recriar a sociedade. De forma pragmática típica, Dewey comenta que há “tantos modos de superioridade e de inferioridade quanto consequências a serem alcançadas, e trabalhos a serem realizados... Mas a ideia de superioridade abstrata universal é um absurdo” (226). O problema com os nossos objetivos, currículos e testes padronizados é que eles examinam apenas um conjunto muito pequeno de habilidades cognitivas e realizações, ignorando

Jim Garrison

11 Em Democracy and Education (Democracia e educação) (MW 9), Dewey

escreve: “A educação através de ocupações combina consequentemente entre si mais fatores favoráveis à aprendizagem do que qualquer aprendizagem, por qualquer outro método” (MW 9: 319). No entanto, ele rejeita a educação para uma ocupação (educação profissional) em escolas públicas. Isso deve vir mais tarde e à custa dos negócios e da indústria, em vez de à custa dos cidadãos. Em um ensaio intitulado “Education vs. Trade-Training” (Educação x capacitação profissional), que surgiu em 1915, ele respondeu à declaração de Snedden, dizendo: “Oponho-me a considerar como educação profissional qualquer treinamento que não tenha como atenção suprema o desenvolvimento dessa iniciativa inteligente, da ingenuidade e da capacidade executiva, que, tanto quanto possível, podem tornar os trabalhadores donos do seu próprio destino industrial. Eu tenho minhas dúvidas sobre a predestinação teológica, mas absolutamente em todos os eventos em que o dogma atribuiu poder de predestinação a um ser onisciente; e eu sou totalmente contra atribuir o poder de predestinação social, por meio da capacitação profissional restrita, a qualquer grupo de homens falíveis, não importa quão bem intencionados eles sejam”. (MW 8: 411)

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Dewey compreendeu o calvinismo capitalista implícito na ideia de rastreamento. Esse pensamento permanece ativo atualmente no NCLB. Perto do fim de sua resposta a Snedden, Dewey concluiu irônico: “Infelizmente, eu sou forçado a concluir que a diferença entre nós não é tão estritamente educacional quanto é profundamente política e social. O tipo de educação profissional em que estou interessado não é a que ‘adaptará’ os trabalhadores ao regime industrial existente; eu não sou suficientemente apaixonado pelo regime, para isso. Parece-me que a tarefa de todos os que não são servos da rotina educacional é resistir a cada movimento nesta direção e lutar por um tipo de educação profissional que mudará primeiro o sistema industrial existente e, finalmente, o transformará”. (MW 8: 412) Devemos resistir a qualquer movimento na direção indicada pelo NCLB.

muitas habilidades e disposições morais e estéticas valiosas. Enquanto isso, a cultura requer a realização de uma variedade de trabalho infindável e potencialmente em expansão. Isso significa que precisamos de capacidades distintivas não apenas para executar com criatividade funções sociais pré-existentes, mas também para modificá-las, enquanto inventamos novas. Em vez disso, queremos preservar o novo feudalismo estrutural:

Individualidade e Igualdade como chaves para a democracia criativa

Quando as classificações são rígidas, a fase mais ou menos quantitativa da superioridade é inevitavelmente notável. As castas são classificações ou graus de superioridade; dentro de cada casta, a ordem hierárquica maior e menor é repetida... É uma prova da influência ainda exercida sobre nós pelos arranjos feudais. Nosso novo feudalismo da vida industrial, que classifica desde o grande financiador, passa pelo capitão da indústria até o trabalhador não qualificado, revive e reforça a disposição feudal de ignorar a capacidade individual que se manifesta em buscas livres ou individualizadas. (296)

O novo feudalismo estrutural da vida industrial, agora pósindustrial, ainda pode derrotar o velho sonho de relações sociais democráticas. Ele certamente está derrotando o individualismo democrático nas escolas públicas de nossa nação. Desde Nation at Risk (Uma nação em risco), em 1983, a retórica da reforma da escola pública concentra-se na competição econômica global. Líderes empresariais e políticos superam em muito os educadores nas cúpulas nacionais de escolarização mais influentes. Tudo que você tem de fazer é ouvir atentamente o discurso público sobre a escolarização. Nós estamos constantemente falando sobre economia, seja sobre a recessão atual ou sobre os tempos áureos da década de 1990. Na verdade, o vocabulário da eficiência dos negócios, da competitividade, da teoria do capital humano e da padronização permeia todo tipo de conversa pública, mesmo na religião, em que a ética do trabalho protestante ainda prevalece.

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No interior do novo feudalismo estrutural, as pessoas são valorizadas segundo a posição que ocupam em uma hierarquia final predestinada, supostamente fixa, que assume que algumas pessoas não só nasceram cognitiva e fisicamente superiores a outras, mas também, no caso do calvinismo capitalista, moralmente superiores. Dewey deseja repensar a superioridade e a inferioridade em termos de um modelo funcionalista mais orgânico:

Jim Garrison

Algumas vezes, em teoria, nós concebemos toda forma de atividade útil como nivelada com todas as demais, desde que realmente marquem o desempenho do serviço necessário. Nesses momentos, também reconhecemos, pelo menos em tese, que há um número infinito de formas de ação significativa. (MW 13: 296)

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Dewey deseja transmitir uma ideia importante, referente ao funcionamento tanto dos corpos orgânicos quanto do corpo político. Para que o corpo humano funcione bem, toda subfunção também deve funcionar bem. Há a tendência de colocar o cérebro acima de todas as outras funções do corpo. Na verdade, muitas vezes fazemos a separação entre a função executiva do cérebro e o corpo, reproduzindo assim o velho dualismo entre mente e corpo. No entanto, se os intestinos não funcionarem bem, o cérebro também não funcionará bem. O mesmo vale para qualquer outra função orgânica. O darwiniano Dewey sabia muito bem que, se qualquer função é necessária para a sobrevivência e a reprodução biológicas, então ela é necessária e valiosa como qualquer outra função. O mesmo vale para qualquer sociedade que busca não apenas se preservar e se reproduzir, mas também crescer. Um dia, em minha classe, um aluno-professor lembrou-nos que os lixeiros seriam sempre necessários. Eu respondi que, se realmente precisamos desses homens e mulheres para manter uma sociedade saudável, então devemos honrá-los, respeitá-los e pagar-lhes bem.

Quando entendermos que a estrutura orgânica de uma sociedade viva deve transformar-se para adaptar-se a um mundo em mudança, perceberemos o valor da igualdade moral. A passagem a seguir começa com uma requintada reformulação do ideal de igualdade moral, enquanto o restante poderia servir como uma descrição precisa do No Child Left Behind:

Individualidade e Igualdade como chaves para a democracia criativa

Pelo menos alguns supuseram, certa vez, que o propósito da educação, juntamente com o oferecimento de algumas ferramentas indispensáveis aos estudantes, era descobrir e liberar capacidades individualizadas para que eles pudessem trilhar seus próprios caminhos, qualquer que seja a mudança social envolvida em sua operação. Mas agora damos boas-vindas a um procedimento que, sob o título de ciência, afunda o indivíduo em uma classe numérica; julga-o com referência à capacidade de adequarse a um número limitado de vocações classificadas de acordo com os padrões de negócios atuais; destina-o a um nicho predestinado e, desse modo, faz o que a educação pode fazer para perpetuar a ordem atual. (297)

Dewey chega a expressar um sentimento de sarcasmo que é muito raro em seus escritos: O lema das distinções genuinamente individuais é o do batalhão de tanques de guerra. “Treat’em rough”12 – exceto quando eles prometem sucesso nesta ou naquela classificação social estabelecida. Caso contrário, a pessoa pode crescer para ser um opositor consciente, ou um inovador social, ou ser propenso a exigir o reconhecimento social por atuar em uma investigação científica livre, ou em artes, ou em alguma outra vocação luxuosa e ornamental. (297)

12 Treat’em rought, expressão que significa “trate-os de maneira rude”, é o título de

um romance escrito por Dale Wilson e de um filme dirigido por Ray Taylor, ambos tratando das campanhas da I Guerra Mundial em que foi decisivo o uso de tanques de guerra (Nota do Editor).

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Entre outras coisas, Dewey capta a ironia na retórica do chamado “amor rude”, que normalmente é direcionado às minorias e aos pobres, uma vez que o eleito do capitalismo calvinista pode sobreviver na versão mais suave. Em vez de padronização e mesmice, a filosofia de educação de Dewey enfatiza a diferença qualitativa incomensurável. Em “Creative Democracy—The Task Before Us,” (Democracia criativa: a tarefa que temos pela frente), Dewey observa:

Jim Garrison

Cooperar, oferecendo às diferenças uma chance para se mostrarem, porque a crença de que a expressão da diferença não é apenas um direito das outras pessoas, mas também um meio de enriquecer a sua própria experiência de vida, é inerente à forma de vida pessoal democrática. (229)

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Observe que Dewey está refletindo sobre as diferenças além das fronteiras dos direitos e da tolerância. Para ele, é metafísica. Em outra parte, ele comenta: “Em um dado momento, há potencialidades não concretizadas em um indivíduo porque, e na medida em que, existem outras coisas com as quais ele ainda não interagiu” (LW 14: 109). Todo mundo sabe que, para Dewey, o objetivo da educação é o crescimento. Também deve ficar claro que ninguém faz isso sem ajuda. Exigimos que outros, diferentes de nós, cresçam e se desenvolvam. Dewey tem a fé de um democrata pluralista; os defensores conservadores declarados da aristocracia, não. Nós perdemos o significado da palavra democracia, o qual Dewey insiste que reside na “fé na individualidade, nas qualidades exclusivamente distintivas em cada ser humano normal; a fé nos modos de atividade únicos correspondentes que criam novos fins, com a pronta aceitação das modificações na ordem estabelecida, impostas pela liberação das capacidades individualizadas” (LW 13: 297). Você mantém essa fé? Se assim for, espero que concorde que ela se estende além dos limites normalmente circunscritos pela palavra “normal”.

Segundo Dewey, se pudermos reafirmar a fé democrática na individualidade, podemos repensar a aristocracia:

Individualidade e Igualdade como chaves para a democracia criativa

Democracia, neste sentido, denota, podese dizer, a aristocracia levada ao seu limite. É uma afirmação de que todo ser humano como indivíduo pode ser o melhor para algum propósito específico e, portanto, ser o mais adequado para governar, liderar, nessa circunstância específica. O hábito de classificações fixas e limitadas numericamente é inimigo tanto da aristocracia verdadeira quanto da democracia verdadeira. Como os nossos aristocratas declarados rendem-se tão alegremente ao hábito de classificações quantitativas ou comparativas, é fácil detectar o esnobismo de maior ou menor refinamento, sob o seu declarado desejo por um regime de distinção. Pois somente o indivíduo é, em última análise, distintivo; o resto é uma questão de qualidades comuns, diferentes apenas em grau. (297-298)

Dewey prevê uma aristocracia de todos, composta por qualquer um que tenha preenchido seu potencial único, de tal modo que dê uma contribuição criativa única para a comunidade. Aqui está um exemplo desse aristocrata retirado de meus anos de trabalho com uma professora maravilhosa, Eva Stranger (um pseudônimo), em uma oficina de leitura e escrita do quarto ano. Na aula de Eva, durante duas horas por semana os alunos escreviam e compunham histórias. A cada seis semanas, eles “publicavam” uma história em um acervo da classe. Nessa sala de aula de habilidade mista totalmente inclusiva, alunos de todos os níveis escreviam boas histórias e corrigiam cuidadosamente a ortografia e a gramática. Não é difícil compreender por que, já que consideramos que todos nós ansiamos pela autoexpressão e todos queremos aparecer bem em público diante de nossos colegas. Muitas vezes, os alunos também liam histórias sentados na “cadeira dos

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autores”. Eva normalmente ocupava a cadeira de balanço, e todos entendiam que, quando um colega estava lendo uma história, o resto deveria prestar a mesma atenção e respeito que tinham por ela. Além disso, todo mundo queria que os outros os ouvissem quando eles liam. As coisas eram um pouco diferentes com Tom (um pseudônimo), que tinha síndrome de Down. Ele era o autor de suas histórias, e as explicava em detalhes com a ajuda de um professor. Quando chegava a hora de “ler” histórias, Tom sempre oferecia uma narrativa dramática; ele atuava na história, muitas vezes representando o papel de vários personagens. Ele não ficava inibido em suas apresentações, e elas eram fascinantes. Quando era a vez de Tom contar histórias, havia uma atmosfera elétrica de excitação carnavalesca na classe. Gritos risonhos, muitas vezes tomados por forte emoção, acompanhavam cada apresentação. Crianças e adultos sempre aplaudiam as apresentações freneticamente. Meu ponto é que, para os fins específicos da narrativa dramática, Tom foi o aristocrata nesta comunidade, isto é, o mais adequado para governar, para liderar. Quando perguntado se os modelos de educação progressiva de Dewey podem realmente funcionar em sala de aula, eu sempre respondo que sim, porque eu já os vi funcionar. Igualdade moral é a moral da minha história. É o que uma filosofia educacional democrática pode obter de você, se você tiver a imaginação moral para vê-la e a disposição moral para realizá-la. Dewey pensava que qualquer “defensor inteligente da igualdade democrática” poderia ver que:

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a igualdade moral não pode ser concebida com base em arranjos jurídicos, políticos e econômicos. Todos esses são obrigados a ser classificatórios; a se preocuparem com uniformidades e médias estatísticas. A igualdade moral significa incomensurabilidade, a inaplicabilidade de padrões comuns e quantitativos. Isso significa qualidades intrínsecas que exigem oportunidades únicas e manifestação diferenciada; superioridade em encontrar

um trabalho específico para fazer, não no poder para alcançar objetivos comuns a uma classe de concorrentes, o que certamente resultará em colocar um prêmio no domínio sobre os outros. (299)

Individualidade e Igualdade como chaves para a democracia criativa

Os defensores inteligentes da igualdade democrática devem rejeitar padrões quantitativos fixos e inflexíveis e evitar quaisquer currículos ou padrões curriculares destinados a se alinhar com esses padrões, classificações etc. Isso significa que devemos rejeitar o NCLB e atos semelhantes (por exemplo, o NCATE), em favor de modos de educação mais democráticos. Isso não é dizer que alguns padrões são incapazes de fornecer uma orientação fluida e flexível. Podemos nos reproduzir de maneira inteligente por meio da re-criação de nós mesmos, em vez da clonagem. REFERÊNCIAS

BLAKE, William (1793/1988). The Marriage of Heaven and Hell. In The Complete Poetry and Prose of William Blake. New York, N. Y.: Anchor Books. COX, Harvey. “The Market as God.” The Atlantic Monthly. PAX, 1999. DEWEY, John. The Middle Works. Illinois: Southern Illinois University Press, 1991. ____________. The Later Works. Illinois: Southern Illinois University Press, 1984. [As citações das obras de Dewey são da edição crítica publicada pela Southern Illinois University Press. Os números de volume e página seguem as iniciais da série. As abreviaturas utilizadas para os volumes são: MW The Middle Works (1899-1924); LW The Later Works (1925-1953)]

Data de recebimento: novembro de 2013 Data de aceite: junho de 2014 81

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RETÓRICA, A CIÊNCIA DA EDUCAÇÃO

Retórica, a Ciência da Educação

Tarso B. Mazzotti1

Resumo

O autor examina o problema da cientificidade da Pedagogia (Educação), que é o mesmo de qualquer ciência: o da validade da indução, cuja solução é admitir a eficácia das regras do modus tollens. Estas regras não solucionam por inteiro o problema da validação da inferência indutiva, pois as premissas de seu silogismo sustentam-se em modelos, os quais são objetos de disputas resolvidas por negociações de seus significados. Essas negociações ocorrem nas situações sociais retórica e dialética, das quais resultam os conhecimentos organizados para fins de exposição (didascália). Para o autor, as técnicas retóricas, dialéticas e lógicas (analíticas) constituem, em conjunto, as condições necessárias, ainda que insuficientes, para a produção e exposição de conhecimentos científicos. Recorda que há dois tipos de ciências: as construtivas e as reconstrutivas. As construtivas operam com signos auto referentes e têm por objeto as operações sobre conjunto de signos (lógicas e matemáticas). Enquanto as reconstrutivas partem de comparações para constituírem algum modelo, ou metáfora, que permita apreender e explicar o que elas põem como objeto. O autor inclui a Retórica dentre as ciências reconstrutivas e sustenta que esta examina os limites do axioma modal comum às artes retóricas, educativas e as denominadas poéticas: é possível modificar as crenças, valores e atitudes. O qual é o objeto comum daquelas artes, logo a ciência constituída para dele tratar, a Retórica, também é a ciência das práticas educativas. Palavras-chave: Pedagogia; Ciências da Educação; Retórica; Epistemologia das Ciências da Educação. 1

Tarso B. Mazzotti é professor aposentado da UFRJ, trabalhando atualmente como professor do Programa de Pós Graduação em Educação da Universidade Estácio de Sá do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected]

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Abstract

Tarso B. Mazzotti

The author examines the problem of scientifically of Pedagogy (Education), which is the same for any science: the validity of induction, whose solution is to admit the effectiveness of the rules of modus tollens. These rules do not entirely solve the problem of validation of inductive inference, because the premises of its syllogism are supported in models, which are objects of dispute settled by negotiations of their meaning. These negotiations occur in rhetorical and dialectical social situations, from which result the organized knowledge for purpose of exposure (didascalia). For the author, the rhetorical, dialectical and logical (analytical) techniques constitute, together, the necessary conditions, although insufficient, for production and exhibition of scientific knowledge. He recalls that there are two types of science: the constructive and the reconstructive. The constructive sciences operate with selfreferent signs and have as object the operations on set of signs (logical and mathematical). While the reconstructive start out from comparisons to constitute some model, or metaphor, which allows them to apprehend and explain what they set up as object. The author includes the Rhetoric among the reconstructive sciences and sustains that it examines the limits of the modal axiom common to the rhetorical, educational and so called poetical arts: it is possible to modify the beliefs, values and attitudes, that is the common object of those, whose science is the Rhetoric, which is also the science of the educative practices. Keywords: Pedagogy; Science of Education; Rhetoric; Epistemology of the science of education.

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RETÓRICA, A CIÊNCIA DA EDUCAÇÃO Por séculos a educação escolar preocupou um grupo restrito de pessoas: sacerdotes, filósofos, sofistas e moralistas. Com a ruptura entre o Estado e as confissões religiosas, ocorrida no século XIX, particularmente com as revoluções norte-americana e francesa, as escolas mantidas pelo público tornaram-se laicas. A laicidade pôs o problema da educabilidade no âmbito do que se compreende por ciência, uma vez que nesta os argumentos são neutros a respeito de alguma teologia, moralidade, ou ideologia. Por isso Alexander Bain (1879), bem como Eduard Claparède (1908) excluírem da Ciência da Educação as questões relativas às finalidades, sustentando no considerado próprio das ciências: o uso de modelos lógicos e matemáticos que têm validade para qualquer pessoa razoável. Este desejo, como se sabe, frustrouse. A Ciência da Educação foi rapidamente substituída por um grupo delas: as Ciências da Educação. Certamente não se resolve o problema da cientificidade por meio de declarações, mas pelo exame das condições necessárias, ainda que insuficientes, para produzir conhecimentos confiáveis. Esse exame, próprio da epistemologia, tem por objeto a justificação racional da inferência indutiva para qualquer conhecimento e, em particular, os que resultam de práticas, das técnicas ou artes. A arte de educar põe imediatamente o problema das finalidades ao sustentar ser possível conduzir o educando de um estado menos para o mais educado, axioma modal que lhe parece característico e próprio. Este axioma, no entanto, não é particular dessa arte, pois as da política, dramaturgia, literárias, musicais, plásticas também supõe que o autor afete de alguma maneira os seus auditórios. No entanto, quando se trata das técnicas noéticas, as que afetam e procuram modificar os estados cognitivos e afetivos dos outros, geralmente se diz

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que as pesquisas não podem ser sustentadas nos métodos quantitativos, apenas nos qualitativos. Essa dissociação sustenta-se em um engano, como se verá a seguir.

Tarso B. Mazzotti

1.

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QUANTITATIVO VERSUS QUALITATIVO.

Afirma-se que as pesquisas em Educação só podem ser qualitativas, pois o educativo não se apreende pelo método quantitativo. Trata-se de um engano, pois qualquer ciência examina as qualidades do que põe para si como objeto. O objeto de uma ciência é o sujeito de seus enunciados, que o define por meio de um conjunto de qualidades consideradas próprias. Por exemplo, em Geometria, os objetos são as figuras que apresentam qualidades que as definem como geométricas. Em outras ciências o objeto é definido por propriedades que eventualmente podem ser quantificadas, sendo necessário estabelecer consensualmente a intensidade das qualidade, o que implica uma concepção de medida. Mas há casos em que a qualidade não pode ser considerada em si e por si (absoluta), uma vez que é posta em uma relação. Neste caso se pode falar em propriedade relacional. Em qualquer um dos casos, a definição do objeto é um momento do processo de instituição de uma ciência, quando se pergunta: o que é isto? Para responder, começa-se por alinhavar um conjunto de predicados ou categorias, ou atributos, ou qualidades que delimitam o isto. Afirma-se os significados de cada categoria, o que conduz a outras e pode resultar em um círculo infinito. Este é um dos trabalhos árduos dos cientistas, bem como de qualquer pessoa que queira operar com concisão e conclusividade (rigor). O que pode ser mostrado por meio de exemplos históricos, em que modos de estabelecer um isto conduz a alterações significativas nos argumentos dos cientistas, como mostrou, por exemplo, Thomas Kuhn. Para não fugir do âmbito das Ciências do Homem consideremos as posições de Jean Piaget, que estabeleceu o estudo das condições para a constituição de conhecimentos

científicos a partir da investigação dos erros lógicos apresentados pelas crianças. Um silogismo elementar como A = B, B = C, então A = C não é reconhecido por crianças pequenas, um erro que apareceu no âmbito do teste de inteligência de BinetSimon. Todavia crianças mais velhas consideram evidente aquele enunciado. Há, pois, uma distância entre dois momentos do desenvolvimento cognitivo, portanto é factível estabelecer a sua medida, que são os seus estágios de um processo que culmina na constituição de juízos completos do ponto de vista lógico. Mas dizer a diferença não a explica e é isto que interessa ao cientista, pois uma ciência expõe as razões das variações de alguma qualidade. É o que Piaget propõe ao apresentar as melhores explicações para o observado em sua teoria acerca do processo de desenvolvimento cognitivo (e afetivo). Não é o caso, aqui, de expor a teoria proposta por Piaget, uma vez que utilizada para exemplificar a determinação de um objeto e o papel da medida de variação de suas qualidades ou atributos. Aqui é suficiente dizer que os estádios cognitivos são uma medida do processo de desenvolvimento que culmina no lógico-matemático, ponto de equilíbrio de um sistema que tem por operador geral a adaptação (assimilação e acomodação). Provavelmente a afirmação de que os estágios cognitivos propostos por Piaget são uma medida do desenvolvimento do pensamento hipotético-dedutivo seja escandalosa para alguns, pois identificam medida com escala de razão. Por certo, a seriação dos estádios cognitivos propostos por Piaget não é uma escala de razão. A qualidade das condutas lógico-matemáticas que constituem os conceitos como os de conservação de massa, peso, volume etc. variam em um processo mensurável por uma escala ordinal, uma seriação: a etapa I antecede necessariamente a II e esta a III, com variações no interior de cada estágio. É uma quantificação lógica com o operador existe tal o qual qualidade em certo estádio. Em suma, pode-se dizer que qualquer ciência parte de métodos qualitativos para definir, estabelecer as qualidades do que afirmar ser seu objeto. A intensidade das qualidades

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permite medi-las de alguma maneira, o que requer os meios para identificar a intensidade daquelas qualidades, um problema posto como o da teoria das medidas. Isto conduz ao que se tem dito das Matemáticas, a de que são essencialmente quantitativas.

Tarso B. Mazzotti

2.

AS MATEMÁTICAS SÃO QUALITATIVAS.

Não é muito difícil encontrar quem diga, enfaticamente, que as Matemáticas são, essencialmente, quantitativas. Na Enciclopédia Einaudi, no volume dedicado ao tema “Dialética”, o par “identidade/diferença” é examinado logo de início e o seu autor, Enrico Rambaldi, afirma que o conhecimento analítico é o matemático, logo o quantitativo é identificado com o saber analítico: [...] a matemática ilustra bem este aspecto severo do saber analítico: na verdade, ela é decorrente do mundo do qual representa aspectos Objectivos per se, como relações “quantitativas” entre (e de) objectos, verdadeiras mesmo que os homens não existissem; a relação quantitativa entre força e massas no sistema Terra/Lua, por exemplo, não é decerto apenas um modo subjetivo humano de conceber o mundo, mas sim, antes do mais, uma estrutura objectiva sempre idêntica a si própria; e isto vale também para as relações quantitativas inteiramente em abstracto, e não só para suas valências físicas: a relação geométrica entre volume e raio de uma esfera tem uma forma de existência em si, mesmo que os homens não existissem... (v. 10, p. 13-14).

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Dizer que os entes matemáticos são em si porque são quantidades é uma imensa confusão, pois, sendo em si expressam a qualidade absoluta, não relativa, enquanto o autor afirmar serem “relações ‘quantitativas’”. A relação entre figuras geométricas são qualitativas que podem ser expressas por diversas relações, dentre as quais o raio e o volume na

esfera. A métrica da geometria é um momento da exposição da figura e não se pode alcançá-la senão depois da análise das qualidades relativas entre si e estas não são métricas. Afinal, o que é uma esfera? No que difere do cubo; do paralelepípedo? Quais são as suas propriedades, atributos, qualidades? Além disso, o autor mistura as relações da gravitação Terra/Lua, que expressam uma determinada qualidade, a queda dos corpos, no caso da Física newtoniana ou as curvaturas do espaço-tempo, no âmbito da teoria da relatividade restrita de Einstein, com sua expressão numérica. Na verdade, antes de estabelecer o cálculo foi preciso determinar a qualidade do objeto em pauta: a gravitação. Expressar a qualidade como uma relação multiplicativa e sua inversa é expor sua qualidade relacional, relativa, não em si e por si (absoluta), ainda que, no caso da Física newtoniana, o espaço e o tempo sejam considerados absolutos, portanto separados. O autor confunde a determinação da figuras (morfos) geométricas com os procedimentos de medida que servem para definir certas qualidades das figuras. No mesmo volume, René Thom, matemático, contesta indiretamente as posições de Rambaldi, em seu verbete Qualidade/Quantidade (p. 226-241), o qual, em sua conclusão, remete a Enrico Berti quando afirma que o “realce posto na quantidade em detrimento da qualidade procede de uma vontade filosófica unificadora” (p. 240), a ambição das metafísicas e religiões. De fato, o problema não se encontra na adoção das Matemáticas como “paradigmas” de cientificidade, ainda que esta atitude tenha provocado, e ainda provoque, muitos enganos. Como será examinado a seguir na habitual comparação entre as ciências naturais e humanas.

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3. O HOMEM INVISÍVEL E OS ÁTOMOS VISÍVEIS.

Muitos assumem que as ciências naturais são quantitativas; logo, incompatíveis com o conhecimento do humano, que só pode ser qualitativo. A seguinte afirmação exemplar permite sua apresentação sumária. Rubim (1993, p. 427, grifado no original) afirma que ao se tomar por objeto o

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homem vê-se “[...] as manifestações de seu ser mais profundo, mas aquela dimensão do ser que produz tais manifestações não é imediatamente visível”. Parece que o autor desconhece os processos de investigação das ciências naturais. Afinal ninguém vê os elétrons, prótons e nêutrons, mas as suas manifestações em placas fotográficas, os raios X, ou os traçados na “câmara de vapor de Wilson”. Como a “natureza profunda” da matéria só se deixa apreender por suas manifestações, pode-se afirmar que não há diferença entre as duas ordens de fenômenos. Considerar de outra maneira seria dizer que o humano é invisível e os átomos visíveis. O centro do debate contemporâneo acerca do caráter do conhecimento científico e sua difusão foi posto pela invisibilidade dos átomos e não dos homens. Isto porque não é possível afirmar, com certeza dedutiva, quais são as suas qualidades. De fato, o que se diz acerca dos átomos, bem como de qualquer fenômeno, não expressa a “verdadeira” natureza do objeto, mas do que se julga ser o modelo ou metáfora adequado e pertinente ao que se observa de maneira controlada (experimento). Se o que se diz acerca das coisas é um modelo, um artefato, então sua aceitação seria uma questão de moda? Há critérios intersubjetivos (objetivos) para validar as explicações? As novas teorias seriam um prolongamento das antigas? Elas romperiam com as anteriores de tal maneira que são inconciliáveis?

Tarso B. Mazzotti

4. A SUBSTITUIÇÃO DE PARADIGMAS NAS CIÊNCIAS RECONSTRUTIVAS.

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Thomas Kuhn, em 1961, sustentou que a história das ciências mostra que a relação entre teorias concorrentes é o de substituição de paradigmas. A substituição de paradigmas ocorre pela adesão crescente de adeptos, que são os jovens cientistas pouco comprometidos com o paradigma dominante (ciência normal). Os adeptos, com o tempo, passam a controlar os postos universitários, os laboratórios, os recursos financeiros,

bem como o ensino da disciplina, produzindo novos manuais baseados na teoria emergente. Esse processo exclui os participantes da “velha teoria”, assim como os que adotam alguma “teoria alternativa”. Os cientistas que discordam do “novo paradigma” não têm como fazer valer as suas vozes, uma vez que as instituições estão tomadas pelos adeptos do paradigma vencedor, que se torna a “ciência normal”, até que surjam novos propositores, (“ciência revolucionária”) e o ciclo recomeça. Assim sendo, haveria um corte entre a ciência normal e a revolucionária, ou entre o “paradigma vigente em dado momento”, e o emergente, inexistindo continuidade ou acumulação de conhecimentos. Se é fato que há substituição de paradigmas, então se pode sustentar que há rupturas conceituais? Estas rupturas permitiriam sustentar que as teorias científicas são incompatíveis? Caso se afirme que as teorias antigas e as novas são incompatíveis, então não há um processo de acumulação de conhecimentos e o problema passa a ser o da explicação da adesão ao novo. A adesão seria uma questão de gosto? Como um paradigma consegue ser hegemônico? Recorde-se que a noção de paradigma descreve redes sociais: um conjunto de procedimentos, de relações interpessoais, institucionais sustentam uma teoria. Paradigma não é uma teoria, é o nome das relações sociais que sustentam uma teoria. Kuhn afirmou que as decisões acerca do valor de uma teoria científica não necessariamente se sustenta nos procedimentos lógicos, como o modus tollens, mas nas relações interpessoais dos cientistas. Opunha-se ao empirismo lógico de Ernest Mach, que coordenou conceitualmente o grupo conhecido por Círculo de Viena, que pretendia desenvolver a unificação das ciências. O empirismo lógico, ou positivismo lógico, sustenta que o conhecimento científico independe das relações intersubjetivas ou sociais. Isto porque o método de pesquisa é capaz de resolver os problemas conceituais e fornecer as explicações, por isto, é o método discursa, não os cientistas. Se é o método discursa, então os cientistas não podem ser

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considerados retóricos, ou ideólogos, pois expressam a verdade dos argumentos sustentados em alguma lógica, exatamente o que pretendiam os fundadores da Ciência da Educação. Neste registro, o método científico anula o sujeito, exclui a subjetividade e intersubjetividade. O que justificaria a adesão dos cientistas a uma nova teoria, eles são convencidos pela validade dos enunciados lógicos, racionais, e não por aderirem a este ou aquele grupo social. Esta a filosofia das ciências questionada por Kuhn, o que conduziu à proposição de o conhecimento científico ser socialmente construído, o que será examinado a seguir.

Tarso B. Mazzotti

5. A CONSTRUÇÃO CIENTÍFICO.

SOCIAL

DO

CONHECIMENTO

Na linha de desenvolvimento da proposição de o conhecimento científico ser socialmente construído como qualquer outro, institui-se a Sociologia do Conhecimento Científico. Os sociólogos do conhecimento científico mais conhecidos são Barry Barnes, David Bloor, Steven Shapin, Harry Collins, Bruno Latour, Steve Woolgar, Karin Knoor Cetina. Para eles os fatos científicos são inventados pelos cientistas, não são uma exposição acurada da realidade, como desejaria o apriorismo filosófico, ou seja, o empirismo lógico (ver, por exemplo, CALLON, 1989; PICKERING, 1992). Callon (1989, p. 173) mostrou que o Laboratório de Beauregard, dedicado ao estudo das pilhas combustíveis, sustentou-se por muito tempo sem apresentar qualquer resultado valioso. Por isso o sociólogo concluiu:

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A construção dos fatos científicos é inseparável dos atores sociais, simplesmente porque os pesquisadores colocam-se, simultaneamente, a questão da fabricação de enunciados ou de novos dispositivos, bem também de sua difusão e aceitação (CALLON, 1989, p. 209). 92

Não há, pois, algum critério que permita distinguir a adoção e a difusão de uma ideologia e a de uma teoria científica, salvo seus nomes. É inegável que uma teoria científica percorra os caminhos da cooptação de novos membros. Mas esta constatação permite dizer que não há critérios de validação dos conhecimentos científicos? A adesão a um paradigma não seria racional? Muitos respondem afirmativamente apoiando-se em Kuhn para afirmarem um relativismo radical. Neste caso, o mesmo relativismo conduz a dizer que os conhecimentos produzidos por aqueles sociólogos também resultam de negociações, sem que se tenha algum critério para os admitir (PICKERING, 1992, p. 19). Chegase a uma aporia: os enunciados da sociologia do conhecimento científico são invenções dos sociólogos que montaram as múltiplas redes de relações sociais que sustentam suas posições. Como essas disputas apresentam-se no âmbito dos debates acerca da cientificidades da Educação (Pedagogia)?

Retórica, a Ciência da Educação

6. A GUERRA DOS PARADIGMAS EM EDUCAÇÃO.

Os debates em torno dos chamados paradigmas de pesquisas em Educação foram caracterizados como uma “guerra dos paradigmas” (GAGE, 1989), que se desenrola tendo por tema a crítica do “positivismo”. Essas críticas conduziram ao aparecimento de correntes que têm sido denominadas “pós-positivistas”, “teóricos críticos” e “construtivistas” (norte-americanos), além de outras como a dos que se autodenominam de “pós-modernos” ou “pósestruturalistas”. Alves-Mazzotti (1998), em sua revisão do debate entre as diversas correntes metodológicas da pesquisa em Educação indica que as divergências entre os pós-positivistas, os teóricos críticos e os construtivistas ocorrem em torno da compreensão da possibilidade de generalização e acumulação de conhecimentos, bem como em torno da “acomodação entre paradigmas”, o que pode ocorrer quando se tem por objetivo a realização de alguma coisa, o que se pretende fazer. Assim

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a autora relativizou o relativismo ao introduziu um critério pragmático para a acomodação de paradigmas concorrentes: o da finalidade ou objetivo das investigações. A autora concorda com Austin, para quem é possível algum tipo de acomodação entres os paradigmas, que ele compreende como teorias, todavia não considera possível alguma acomodação no nível ontológico e/ou da teoria do conhecimento (ALVESMAZZOTTI, 1998, p. 143). Isto porque as teorias seriam contraditórias e incompatíveis. Há contradição entre teorias? Paradigmas incompatíveis podem ser compatibilizados? Para responder é preciso considerar o que se entende por contradição e incompatibilidade.

Tarso B. Mazzotti

7.

CONTRADIÇÃO OU INCOMPATIBILIDADE?

Não há como estabelecer contradição entre teorias, apenas enunciados podem ser contraditados e as teorias são conjuntos sistematizados de proposições ou enunciados. Há contradição quando o sujeito de um enunciado recebe predicados contrários em uma mesma situação. Por exemplo, não há como sustentar que alguém cometeu e não cometeu um crime na mesma situação de acusação. De outro lado, argumentos que têm validade em uma situação podem ser incompatíveis em outra. A incompatibilidade não se resolve por meio de argumentos que visam estabelecer a verdade, mas por sua pertinência à situação (PERELMAN; OLBRECHTSTYTECA, 2008, § 48, p. 262). Considerando, com Kuhn2, que paradigmas são crenças, atitudes e valores, então as incompatibilidades decorrem do que se pretende fazer em uma situação. Por exemplo, a mecânica estabelecida por Newton mantém sua pertinência e validade na escala próxima

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Convém recordar que Kuhn fala de incompatibilidades, não de contradições entre “paradigmas”, por exemplo: “Each of them necessitated the community’s rejection of one time=honored scientific theory in favor of another incompatible with it” (Kuhn, 1996, p. 6).

e não para outras, ou as teorias válidas em seus espaços de parâmetros deixam de ser em outros. Além disso, decisão acerca da incompatibilidade é do âmbito da retórica, do que as pessoas consideram preferível fazer ou ter (valores), não se refere a enunciados contrários que precisam ser eliminados para se obter um conhecimento confiável, o que é próprio da situação dialética, na qual se põe o problema da indução. 8.

Retórica, a Ciência da Educação

O PROBLEMA DA INDUÇÃO.

O cerne do debate que emergiu da obra de Kuhn está na afirmação relativista radical de que não é possível estabelecer algum critério que permita determinar o valor de verdade ou confiabilidade de uma teoria. Isto porque a adoção de uma teoria não depende de critérios lógicos, metodológicos e epistêmicos, mas dos sujeitos cooptados. Afirma-se, então, que a precariedade da indução impede que se decida o valor de uma teoria. É fato que a partir de uma coleção de particulares a generalização é precária, há limites para a inferência indutiva, porém isto não implica a impossibilidade de prover conhecimentos razoáveis e confiáveis acerca de algo. Estes conhecimentos não são as certezas dos enunciados dedutivos, que se sustentam em signos utilizados no cálculo lógico ou no matemático, próprio das ciências formais, que são diversas das reconstrutivas, as não formais, como as que tratam dos fenômenos naturais. No caso das ciências reconstrutivas, as premissas de seus silogismos são proposições apresentadas na forma de sujeito e predicado. Os predicados estão disponíveis na língua e permitem dizer quais são os limites do sujeito (da frase), individualizando-o. Ao dizer “homem é mortal”, afirma-se: o homem pertence à classe (categoria), dos seres que morrem e supõe que há seres que não morrem. Como homem é uma designação geral, uma classe de todos os seres que apresentam certas qualidades, então é preciso saber quais são elas. As

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qualidades definidoras precisam ser únicas, não pertinentes a outros seres. A qualidade mortal é compartilhada pelos seres vivos, portanto não é específica do homem. Qual, ou quais seriam as qualidades específicas do sujeito da proposição: homem é mortal? A diferença específica de homem é objeto de disputas. A decisão a respeito da sua definição, as suas diferenças específicas, produz debates inconclusivos em torno das premissas primeiras (princípios), que são o tema das metafísicas e religiões, nas quais dificilmente se pode decidir com base no silogismo sob a figura do modus tollens. Este permite encontrar a melhor explicação, dizer as razões ou causas do afirmado na premissa maior. Tome-se um exemplo de argumento retórico baseado em signo: se tem leite (signo), então deu à luz. Caso exista apenas um caso que refute esta conclusão, então esta não pode mais ser admitida. Foi o caso, logo se buscou a melhor explicação para a lactação por meio dos procedimentos do diálogo regulamentado (dialética) que eliminou as hipóteses concorrentes e isolou a que melhor explica a lactação e este é um conhecimento científico, que se encontra exposto nos manuais de fisiologia animal. Ainda que os relativistas radicais desconsiderem o modus tollens, os conhecimentos confiáveis dependem desse procedimento. A questão-chave passa a ser: de onde são retirados os predicados utilizados para a constituição dos silogismos na investigação? As ciências reconstrutivas recorrem a enunciados cujas premissas são postas na forma de silogismo dialético e retórico, enquanto as formais operam por meio de cálculos sobre signos, uma diferença específica que precisa ser exposta.

Tarso B. Mazzotti

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CIÊNCIAS CONSTRUTIVAS E RECONSTRUTIVAS.

Nas ciências formais, as Matemáticas e as Lógicas, argumenta-se por meio de cálculos sobre signos definidos pelos cientistas, por isso são construtivas, pois seus conhecimentos são um conjunto auto-sustentável. As demais ciências são reconstrutivas, uma vez que os fenômenos são reconstituídos

por meio de modelos, ou metáforas, considerados adequados e pertinentes, os quais fornecem os predicados dos enunciados de seus silogismos. A tarefa básica nas ciências reconstrutivas é a de verificar se o modelo descreve os fenômenos de maneira pertinente. Caso uma ciência reconstrutiva utilize um modelo retirado de uma Matemática, este só terá valor caso efetivamente descreva e explique os fenômenos. Como as ciências reconstrutivas são constituídas e expostas por meio modelos geométricos, topológicos ou de redes (reticulados e outros grafos), então há a tendência de julgar que o exposto é a coisa representada e esta é matemática. O enunciado da Física na forma f =m.a põe-se como a explicação de força e os cálculos surgem como se fossem a própria coisa. De fato, trata-se de uma definição de força por meio do produto cartesiano de massa e da aceleração. Ela define a força como relação, não algo essencial, em si e por si, mas relativo à massa e à aceleração. Neste caso, não se tem uma relação na forma sujeito e predicado? A definição relacional afirma que o sujeito “força” é o mesmo que a multiplicação de “massa” e “aceleração”, que operam como predicados, em uma ontologia relacional, relativista. O que nos leva a perguntar: o que é massa? O que é aceleração? Estes nomes também são definidos por meio de relações, que operaram como predicados. Não se trata, pois, de “matematização”, mas do uso de algum conceito produzido no âmbito de uma matemática para definir e eventualmente explicar um fenômeno. Este procedimento não difere do uso dos esquemas argumentativos capitulados na Retórica, a diferença específica encontra-se nas exigências de concisão e conclusividade requerida em cada situação, ou seja do rigor argumentativo admitido pelos cientistas, o que estabelece um gênero retórico, o das ciências (PERA, 1994). Kuhn tem razão ao dizer que os paradigmas científicos são substituídos quando as suas anomalias não podem ser resolvidas, mas o problema está na escolha da teoria sustentada pelo paradigma. Os critérios para essa escolha encontram-se na análise das inferências utilizadas e nas ciências reconstrutivas

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não é um problema formal, mas o da escolha da metáfora da qual se retira os predicados utilizados para constituir os termos dos silogismos para dizer as razões, ou causas, de algum evento3. Considere os debates acerca das qualidades fundamentais da matéria, que ocorrem no início do século XX, em que Weinberg sustentou ser composta por partículas elementares que se comportam como se fossem um “enxame de insetos”. Seus opositores ironicamente disseram tratar-se de uma “zoologia”. Essa objeção conduziu os físicos a compararem os movimentos observados com o inanimado (HOLTON, 1995; 1982). A melhor comparação é com o conjunto dos números aleatórios que permite calcular a probabilidade de as “partículas” estarem em uma zona do espaço em observação (espaço de parâmetros). Em suma, no âmbito das ciências reconstrutivas, assim como em outras situações comunicativas, a substituição de seus modelos altera os argumentos, pois suas premissas obtém seus significados de metáforas diferentes das anteriores, o que levou Kuhn a dizer que paradigmas são incomensuráveis. De fato, os modelos podem continuar sendo utilizados em uma situação, não em outras, isto porque o que define a pertinência não é o modelo, mas o que se pretende fazer, o que não é um problema puramente formal, mas de decisões tomadas pelo coletivo dos cientistas em uma situação de diálogo regulamentado. Agora é preciso recordar o conceito de estrutura que se encontra subjacente ao que vem sendo apresentado.

Tarso B. Mazzotti

10. CONCEITO DE ESTRUTURA CONSTRUTIVAS ÀS RECONSTRUTIVAS.

DAS

CIÊNCIAS

As ciências construtivas examinam estruturas conceituais. A estrutura imediatamente compreensível é a da frase, que apresenta forma, ou estrutura, sujeito e verbo, em que este opera as relações linguareiras. Educ. foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 1, p. 83-112, mar. 2015 / jun. 2015

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3

A escolha dos modelos é um tema que tem sido tratado por autores como Black (1972 [1962]), Waddington (1979), Wolfram (2002).

As ciências construtivas têm por objeto as estruturas matemáticas e lógicas sustentada por alguma de base e suas transformações. Denomina-se “estrutura” o máximo de propriedades que um operador apresenta sobre um conjunto de elementos, como os números. É o caso da adição sobre o conjunto dos números racionais. Se a adição for aplicada ao conjunto dos números racionais, então apresentará as seguintes propriedades: associativa, comutativa, elemento neutro (zero) e elemento inverso (-n), tem-se então a estrutura dita grupo comutativo. Caso a adição seja aplicada sobre o conjunto dos número naturais sem o zero, então será um monóide comutativo, pois apenas as duas primeiras propriedades estão presentes. Os conceitos da estrutura algébrica podem ser tomados por modelos para estudar operadores sobre algum conjunto não numérico, por exemplo, a estrutura de parentesco, tal como o fez Lévy-Strauss; bem como as estruturas cognitivas, que se encontram na proposta de epistemologia genética devida a Jean Piaget. Certamente há modificações significativas quando se toma as estruturas algébricas como modelos para descrever e explicar relações distantes do cálculo algébrico, mas os autores aproximam a noção de operador algébrico aos que encontram nas relações que estudam. Tome-se o caso da epistemologia genética, em que as operações cognitivas são apresentadas em um processo que se inicia por esquemas sensório-motores, portanto ainda não são estruturas, culminam com estruturas lógico-matemáticas. Afirma-se que há uma construção, tal como se pode dizer que ocorre nas ciências formais. Esta é uma ilustração da apropriação do conceito de estrutura algébrica por uma ciência reconstrutiva, mas o uso do conceito de estrutura não implica transformações estruturais análogas às algébricas, salvo se houver algum teorema que permita afirmar a equivalência, o que foi rejeitado por Piaget, para continuar no exemplo. De fato, o pesquisador reconstitui um processo utilizando um modelo que permite descrevê-lo e explicá-lo, sem assumir que se trata de uma álgebra ou que seria possível

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prever as passagens antes da investigação. Não é o caso aqui de desenvolver esta afirmação, que foi tema de um debate entre Apostel e Piaget (ver, por exemplo, PIAGET;GARCIA, 1987, p. 168). De outro lado, o desenvolvimento as ciências construtivas e as reconstrutivas percorrem vias próprias. Nas ciências construtivas faz-se por meio de transformações estruturais que permitem generalizações mais amplas que contêm as anteriores. Nas reconstrutivas as mudanças ocorrem pela substituição de modelos segundo as necessidades postas pelas situações. Thomas Kuhn, ao examinar a história de uma ciência reconstrutiva, a Física, mostrou a substituição de paradigmas, mas isso não ocorre nas construtivas. Nestas, os limites da formalização, demonstrados por Gödel, deu origem a outra via para o formalismo: o algoritmo (BERTO, 2009). O algoritmo é uma sequência de instruções não ambíguas e bem definidas que podem ser executadas mecanicamente durante certo tempo e que pode ser realizada por um humano, ou por uma máquina. Os algoritmos permitem descrever e conformar as atividades, bem como antecipar eventos que descreve, o que conduz ao exame das práticas humanas. As práticas humanas apresentam dois aspectos sob os quais são avaliadas: o da efetividade (eficácia e eficiência) e o antecipatório. A antecipação da ação, a inferência, sustentase no que se diz acerca das práticas, portanto no modelo ou metáfora conceitual em uso, da qual são retiradas as premissas de seus silogismos. O que se diz ser as premissas dos silogismos depende do foro de onde são retirados os significados para o tema. As ciências reconstrutivas sustentam suas inferências nos quadros conceituais que consideram pertinentes ao real, tal como se faz em outras situações sociais, mas destas diferem por utilizarem conscientemente o a figura modus tollens do silogismo. Mas há um discurso que se apresenta como estando para além ou aquém dessas disputas: o silogismo categórico.

Tarso B. Mazzotti

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11.

DISCURSO PARA ALÉM OU AQUÉM DO HUMANO.

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Geralmente se considera que a negociação dos significados é a expressão da fragilidade dos argumentos, uma vez que está condicionada pelos grupos sociais. Afirma-se, então, que o próprio da filosofia e da ciência é o discurso que persuade qualquer pessoa por ser a expressão de um vínculo de raciocínio que está para além ou aquém dos grupos sociais e são apresentado na forma silogismos categóricos, e quando não é assim, afirma-se o relativismo radical. A fonte dessa concepção encontra-se nos Analíticos Anteriores e Posteriores, nos quais Aristóteles apresenta os instrumentos técnicos para a exposição que requer certa independência da éndoxa4. É o caso do discurso do ensino (didascália), em que o orador fala e o ouvinte só pode ter a atitude de aprendiz, a de aceitação do que é enunciado5. Uma apresentação rigorosa é uma técnica que requer a sistematização das afirmações encadeando-as de tal modo que cada uma seja necessária à outra para garantir a correção do que se propõe ensinar. Como toda técnica, a de exposição é contingente e, portanto, tem limites, é dependente do auditório, isto porque as regras silogísticas não são espontâneas, precisam ser aprendidas. Do que resulta uma circularidade: para aprender uma ciência é preciso conhecer a ciência, tal como no paradoxo de Mênon. A solução é: aprende-se as técnicas 4

5

Aristóteles, nos Tópicos (100 b 24), define éndoxa como opiniões “geralmente aceitas [...] por todos, ou pela maioria ou pelos filósofos, isto é, por todos, ou pela maioria ou pelos mais notáveis e ilustres dentre eles”. “Toda didascália e toda disciplina dianoética [intelectual, cognitiva] se adquirem de um saber que precede o conhecimento. Isto é evidente seja qual for o saber considerado: a ciência matemática adquire!se desse modo, tal como as outras artes. O mesmo acontece com os raciocínios dialéticos, sejam eles feitos por silogismo ou por indução, porque todos eles ensina através de um conhecimento anterior; no primeiro caso, assumindo que as premissas são admitidas pelo outro, no segundo caso, demonstrando o universal mediante o particular já conhecido. De outro lado, é de análogo modo que os argumentos retóricos persuadem, uma vez que utilizam ou paradigmas, o que é uma espécie de indução, ou entimemas, o que não deixa de constituir um silogismo”, Aristóteles, Analíticos Posteriores, I, 71a.

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argumentativas utilizando-as. Não se as aprende de imediato e em sua totalidade, mas progressivamente pela imitação dos atos técnicos, particularmente resolvendo os problemas conforme são postos pela imitação. O exame das premissas dos argumentos é condicionado pelas instituições que determinam o seu grau de liberdade. Nestas, algumas premissas são consideradas fundadoras e indiscutíveis, outras podem ser questionadas. Por isso, quanto maior a liberdade dos membros de uma instituição, maior é a probabilidade de aparecerem os que questionarão os princípios admitidos, uma vez que não serão censurados, desde que sigam as regras próprias de cada tipo de questão. Como as regras universais dos argumentos são as do silogismo, há os que propõem que este é uma máquina que descarta o orador e se impõe ao auditório.

Tarso B. Mazzotti

12. SILOGISMO, MÁQUINA QUE DESCARTA O ORADOR E SE IMPÕE AO AUDITÓRIO.

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Uma vez que qualquer argumentação apóia-se em algum tipo de silogismo, pode-se dizer que silogismo é próprio do racional. A recuperação da retórica por Perelman tem uma origem: os procedimentos próprios da lógica são cálculos que substituem o homem na produção e desenvolvimento de conhecimento ou, parafraseando Quine (1953), a lógica deve substituir o cientista, deve conduzir o pensamento de modo automático, como uma máquina conceitual, que de fato é. No entanto, no interior da lógica proposicional surgiu um problema insolúvel, o da implicação material ou condicional. Isto porque, nos julgamentos ditos “condicionais”: de um enunciado em que antecedente falso e o consequente é verdadeiro, obtém um enunciado verdadeiro (ver a tabela 1). Por exemplo: em “as vacas voam” (A) e “as vacas são herbívoras” (B) é uma condicional verdadeira, forma A B é válida. Alguns lógicos (Quine, por exemplo) dirão que devemos abandonar a expressão “se...então”, deixar a forma

dominar o pensamento descartando o conteúdo material, mas na pratica científica isso seria um absurdo6.

Retórica, a Ciência da Educação

Tabela 1 Tabela verdade da condicional A

B

V

V

V

V

F

F

F

V

V

F

F

V

A

B

De outro lado, as tentativas para formalizar completamente o Direito, procurando tomar decisões automáticas, enfrentaram problemas ainda mais graves. Ao buscar superar tais dificuldades iniciou-se um movimento que procurou examinar a assim chamada “lógica natural”, na qual as lógicas se sustentariam, e que retomou Aristóteles (BERTI, 1997) chegando à proposição de que as premissas dos silogismos resultam de uma negociação de seus significados, a qual ocorre, de início, na situação retórica (ver, WOLFF, 1995), que também recorre ao contraditório ou às técnicas da dialética, o que será apresentado a seguir. 13. A SITUAÇÃO RETÓRICA: PREDICADOS DAS PREMISSAS.

NEGOCIAÇÃO

DOS

Não é o método que discursa, mas pessoas que questionam as respostas. E o questionamento é uma negociação de significados realiza-se na situação retórica, que inclui a dialética. A negociação inicia-se pelo dizer o que é a partir do exame dos discursos que pretendem instituir seus significados, procurando a ocorrência do erro argumentativo petição de 6

Perante este impasse foram propostas outras lógicas bem formadas que procuram solucionar o problema da implicação, dentre elas a de Anderson e Belnap (1975), bem como a de Da Costa (1980).

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princípio (ver PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2008, § 28). Ao dizer o que é algo, estabelece-se os predicados (categorias) que delimitam o que se negocia, por meio do contraditório. Quem afirma que o sujeito (tema) apresenta tais ou quais qualidades (predicados, atributos, propriedades) o faz por meio da transferência de significados do já sabido ao que ainda não se sabe, o que pode produzir uma metáfora ou um modelo. A metáfora não é uma apenas figura ornamental, mas cognitiva, expressiva e praxiológica. Cognitiva, por aproximar o não similar por meio da transferência de certos predicados de um objeto ao outro. Expressiva, ao expor o desejável ou o indesejável para um grupo social. Praxiológica, por orientar o que deve ser feito. Uma vez admitida uma metáfora, estabelece-se um acordo que determinará o vínculo de raciocínio (CHARBONNEL, 1991 a, 1991 b, 1993, 1999). A identificação das metáforas cognitivas requer a análise retórica, a que expõe o que o orador e o auditório consideram estabelecido, assim como as razões das disputam acerca dos significados. Pode-se, então, sustentar que as técnicas que procuram, de alguma maneira, afetar os homens não são apreendidas pela análise lógica, porque esta se limita a expor os vínculos válidos dos discursos, ainda que relevante, não permite apreender as relações entre o orador, o auditório e o discurso por meio das quais negociam suas diferenças e os processos de influência ou persuasão. Os procedimentos para produzir os conhecimentos confiáveis não são os utilizados para os expor, os quais Aristóteles tratou nos Analíticos Posteriores e que constituem o horizonte do ensino e que põe em cena a Pedagogia. Esta seria uma ciência reconstrutiva da prática educativa?

Tarso B. Mazzotti

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14. PEDAGOGIA, CIÊNCIA RECONSTRUTIVA DA PRÁTICA EDUCATIVA.

Se a Pedagogia, condição reflexiva da prática educativa, for uma ciência reconstrutiva, então seus argumentos serão produzidos a partir de comparações, como em todas elas, e procurará estabelecer os modos eficazes e eficientes para modificar as crenças, valores e atitudes dos educandos. Mas isto não é um território exclusivo da pedagogia, pois a política, a dramaturgia, a poética, a música, a pintura e a escultura são técnicas que visam alterar as crenças, valores e atitudes. Porém há uma grande controvérsia acerca da eficácia e eficiência (efetividade) dessa meta em todas essas técnicas, que tem origem na análise da afirmação modal: é possível modificar crenças, valores e atitude, uma vez não diz como, nem se é necessário, apenas afirma algo presumidamente verificável. Sabe-se que algumas vezes é possível conduzir os outros a certas reflexões, pois já ocorreu com cada um ser afetado por leituras, debates, avaliação de algum trabalho e pela aprendizagem. E esta convicção é questionada sempre que se procura passar do “possível” ao “necessário”. A negação da efetividade dos atos técnicos noéticos assume, então, seu papel. Há, pelo menos, duas atitudes céticas: (1) a que sustenta ser impossível modificar intencionalmente os valores, as atitudes e as crenças dos outros, porque as palavras são interpretadas de maneira diversa; (2) a que sustenta que as pessoas são tomadas por forças que não podem ser totalmente apreendidas, o que impede que algumas ações intencionais produzam as alterações pretendidas. Afirmar que as palavras não são capazes de realizar por inteiro a comunicação, que os outros apreendem-nas segundo seus quadros conceituais, por isso não se pode ter certeza da eficácia dos discursos, foi inicialmente, pelo que se sabe, proposta por Górgias de Leontini. Górgias sustentou o poder de mobilização da retórica, mas também expôs os seus limites, que foram apresentados por Sextus Empiricus em Adversus

Retórica, a Ciência da Educação

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Mathematicos (HANKINSON, 1995, p. 83), onde se lê que “os discursos não são as coisas que subsistem”, logo a palavra não têm o poder de modificar os ouvintes. Há limites para ação do orador: ele é incapaz de modificar o inegociável para o auditório. Por isso, Górgias e outros concluíram que um conhecimento verdadeiro sobre o mundo é impossível e o discurso persuasivo sempre será uma réplica do já sabido. A segunda posição cética sustenta-se na inatingível essência do homem que move o homem. Neste caso efetividade de uma ação educativa explica-se pela coincidência (a incidência conjunta) do orador com o auditório. Os ouvintes não modificam suas crenças, valores e atitudes pela ação do orador, apenas os reforçam, tal como no Paradoxo de Mênon: não se ensina, ajuda-se o outro expor o que se encontra em si. Uma variante contemporânea considera que o inconsciente é inacessível. Nesta perspectiva, o analista reflete (em seu significado de especular) o que o paciente apresenta ajudando-o a tomar consciência das forças ocultas que o movem. O analista não modifica essas forças; ele ajuda o paciente a explicar para si o que está em curso. Em qualquer dos casos afirma-se os limites da ação que pretende modificar as crenças, as atitudes e valores, que se sustenta no axioma modal, o que põe em presença a ciência constituída com base nos limites da técnica de negociação de significados: a Retórica.

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RETÓRICA, CIÊNCIA DOS LIMITES DA COMUNICAÇÃO.

A Retórica é ciência dos limites da arte de persuadir ou influenciar as pessoas. Aristóteles, em seu tratado, apresenta a Retórica afirmando ser a ciência que tem por objetivo encontrar o persuasivo em uma situação a partir do espontaneamente realizado pelos oradores eficazes e eficientes. A Retórica é um conjunto de conhecimentos confiáveis capaz de orientar o trabalho do orador em sua busca do discurso que mova o auditório na direção por ele desejada. E, como em qualquer

outra técnica, é preciso ajustar o idealizado às condições de sua realização, o que é um conhecimento confiável a respeito das técnicas. Ou seja, a incompletude das artes é a condição de sua ciência, a que busca sistematizar os conhecimentos a partir de seus limites. Em suma, a partir da convicção de que é possível modificar as atitudes, crenças e valores, que tem origem na experiência de cada um, não se alcança a certeza categórica, isto porque o axioma modal diz muito e quase nada. A superação dessa limitação é factível pelo reconhecimento de que se está em uma situação retórica, a contrapartida da dialética, própria de qualquer grupo humano. Nesse caso, o conhecimento é validado pela observância das regras argumentativas estabelecidas ao longo da história e mantidas em um dialogo permanente entre os membros dos grupos sociais. Pode-se afirmar que as práticas educativas são um caso particular arte retórica, que a Retórica é a ciência da Educação ou Pedagogia, condição reflexiva daquelas ações. 16.

Retórica, a Ciência da Educação

RETÓRICA, A CIÊNCIA DA EDUCAÇÃO.

O axioma modal da Educação (Pedagogia) é o mesmo da Retórica e explicita seu caráter contingente. A contingência não é exclusiva das técnicas sociais, em todas há limites postos pelas particularidades, o que legitima a afirmação corrente: “na prática, a teoria é outra”. O reconhecimento da contingência expressa a posição pragmática de que sempre se ensaia fazer algo de um modo perfeito e completo, mas nunca se alcança completamente o desejado. Similarmente as explanações também são ensaios, são falíveis. As regras para o sucesso do fazer são necessárias, mas não são um cálculo lógico, são algoritmos. A retomada da Retórica considera que a arte de persuadir implica reconhecer as razões que sustentam as resistências dos auditórios, que são a expressão das boas razões que as pessoas têm para manterem suas crenças, atitudes e valores, como

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mostrou Boudon (1990, 1995). As boas razões não estão para além ou aquém do humano, expressam o que as pessoas julgam razoável acreditar ou fazer, ainda que não possam ser ineditamente apreendidas por quem as observa ou com elas interage, podem ser apreendidas por meio da análise retórica. Mazzotti (2006), Mazzotti e Oliveira (2000), propuseram que a análise retórica das teorias produzidas nas Ciências da Educação permitiria um diálogo que eventualmente produziria uma interdisciplina, o que implica a determinação do objeto comum, bem como dos meios de investigação. Caso se considere que o axioma modal é o objeto comum, cabendo a definição dos limites das ações a cada uma das ciências particulares, então essa interdisciplina já existe, é a Retórica, em que se considera as situações sociais limitadores do desejado pelo orador. Neste registro a educação escolar é um gênero da retórica, em que os condicionamentos institucionais têm sido investigados pela Sociologia, Psicologia Social e Antropologia, bem como pela História. Estas ciências fornecem os meios para compreensão das condições em que os atores sociais desenvolvem suas relações, o ethos escolar, que põem limites para a realização das mudanças de valores, crenças e atitudes. Logo, estabelecem as limitações do auditório e dos oradores em situação. 17.

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CONCLUSÃO

O problema da cientificidade a Pedagogia geralmente se sustenta em uma teoria do conhecimento que tem por modelo o que se realiza nas ciências formais: o estabelecimento de um sistema bem formado de enunciados a partir de axiomas. Por essa via, nenhuma teoria reconstrutiva pode reivindicar o estatuto de ciência, ainda que seus modelos sejam retirados de alguma estrutura formal para descrever e explicar os fenômenos. A pertinência do modelo não decorre de sua verdade formal, mas de uma negociação entre os cientistas

sustentada em procedimentos considerados canônicos e que operam o silogismo modus tollens. Mais ainda, os modelos ou metáforas são substituídos se e quando não atendem as condições de uso, o que se pretende fazer. A Retórica é uma das ciências reconstrutivas constituída a partir do exame das técnicas espontaneamente utilizadas pelos oradores e tem por objeto o axioma modal que afirma a possibilidade de se modificar as crenças, valores e atitudes. Uma vez que a arte retórica e a de ensinar/educar, bem como demais técnicas produtivas intelectuais e afetivas sustentamse no mesmo axioma, então todas têm o mesmo objeto: os limites da ação afirmada pelo axioma modal, cuja ciência é a Retórica. Neste registro, a Pedagogia é um gênero da Retórica, no qual também se recorre aos procedimentos da analítica para organizar o que se ensina. Porém a Pedagogia não é um gênero retórico reconhecido pelos clássicos, particularmente por Aristóteles para quem o ensino é uma exposição encadeada que não considera as particularidades do auditório, provavelmente porque constituído de adultos razoavelmente instruídos. Essa organização do ensino foi caracterizada como “lógica” por seus opositores, os que têm sido reunidos sob os coletivos “escolanovismo” ou “progressivismo”, os quais afirmam a necessidade de um modo de ensinar “psicológico”. Os escolanovistas retomaram uma recomendação da Retórica: a ação do orador deve (imperativo) considerar o auditório. Considerar o auditório escolar implica conhecer as suas condições psicológicas, cognitivas e afetivas. A Psicologia desenvolveu inúmeras pesquisas acerca dessas condições, assim como a Sociologia tratou de aspectos sociais que condicionam as instituições escolares, e a Psicossociologia tem desenvolvido investigações que procuram explicar as relações inter e intra grupais que delimitam o fazer educativo. Não cabe aqui uma exposição dessas pesquisas. Cabe, no entanto, sustentar que as pesquisas no âmbito do gênero retórico educação, têm tido por objeto implícito as negociações

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de significados que envolve a relação entre o professor (orador ou ethos), os estudantes (auditórios, pathos) e as matérias de ensino (logos). Ao explicitar essas negociações também se expõe o seu axioma modal, cujos limites expressam a sua finitude. E ao considerar a educação um gênero da arte retórica explicita-se as suas técnicas e seu uso no trabalho escolar. O que viabiliza a analise dos conhecimentos sistematizados ensinados nas escolas segundo as figuras de pensamento, suas formas lógicas e quase-lógicas, bem como as razões que sustentam as preferências que determinam os programas de ensino, sempre situados. É, pois, um programa de pesquisa que se apóia no reconhecimento da relação de complementaridade entre as técnicas retóricas, nelas incluídas as da dialética, e as da lógica, ou da exposição encadeada de conhecimentos já produzidos. O que parece ser um caminho razoável para superar a dispersão epistemológica em que se encontram as Ciências da Educação.

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REFERÊNCIAS

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Tarso B. Mazzotti

Data de recebimento: novembro de 2013 Data de aceite: junho de 2014

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ANOTAÇÕES SOBRE AS RELAÇÕES ENTRE TEORIA E PRÁTICA

Anotações sobre as Relações entre Teoria e Prática

Alfredo Veiga-Neto1

Resumo

Este artigo discute as relações entre teoria e prática, uma questão muito comum no campo da prática e da pesquisa educacionais. Na imensa maioria das vezes, tais relações são vistas como um problema: enquanto que muitos defendem a primazia da teoria sobre a prática, outros vão no sentido contrário. Neste texto, argumenta-se que esse é um falso problema, se ele não for examinado a partir das bases epistemológicas usuais, mas sim a partir de pressupostos que levem em conta suas raízes etimológicas, históricas e filosóficas. Os Estudos Foucaultianos, colocando em questão aquelas bases epistemológicas usuais, nos fornecem elementos que levam a discussão para muito além do senso comum e das epistemologias tradicionais. Desse modo, as relações entre teoria e prática são ressignificadas, ficando claras a indissociabilidade entre ambas e a ausência de primazia de uma sobre a outra. Palavras-chave: Teoria e Prática; Doutrina dos dois mundos; Michel Foucault; Platonismo; Virada linguística.

Abstract

This paper discusses the relations between theory and practice, a very common problem in the field of educational research and practice. While many advocate the primacy of theory over practice, others go in the opposite direction. The author argue that this is a false problem, if it is not examined from the usual epistemological foundations, but from assumptions that take into account their etymological, historical and philosophical roots. The Foucaultian Studies, 1

Alfredo Veiga-Neto é Professor Titular do Departamento de Ensino e Currículo e Professor Convidado Efetivo do PPG-Educação da Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: [email protected]

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questioning those usual epistemological bases, give us elements that take the discussion far beyond common sense and traditional epistemologies. Thus, the relationship between theory and practice are resignified, leaving clear the inseparability between them and the absence of primacy of one over the other.

Alfredo Veiga-Neto

Keywords: Theory and practice; Doctrine of two worlds; Michel Foucault; Platonism; Linguistic turn.

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ANOTAÇÕES SOBRE AS RELAÇÕES ENTRE TEORIA E PRÁTICA

Anotações sobre as Relações entre Teoria e Prática

Se separarmos o vivido do construído, a prática da teoria, tudo perde sentido, tanto a teoria quanto a prática, tanto a vida cotidiana quanto os sistemas de pensamento. (TOURAINE, 2009, p. 215) UM (FALSO) PROBLEMA

Dentre os assuntos mais recorrentes no campo da Pedagogia e, mais especificamente, no campo da pesquisa educacional, o problema das relações entre teoria e prática ocupa lugar de destaque. Questões tais como a precedência da teoria sobre a prática (ou vice-versa), a possibilidade de hierarquizá-las ou o estatuto de cada uma, nessa ou naquela pesquisa, volta e meia estão na ordem do dia. Quantas vezes já ouvimos manifestações críticas e desconfiadas tais como: “na prática, a teoria é outra”; “essas discussões teóricas nada — ou quase nada — têm a ver com a prática”; “que se ganha, na prática, com tantas teorias?”; “o que interessa mesmo é a prática”; “quero só ver se todo esse blá-blá-blá teórico vai mesmo funcionar na prática”; e, nos casos mais agudos, de um lado “a prática não interessa” e, de outro lado “a teoria não interessa”. De certa maneira, tais manifestações refletem uma concepção bastante tradicional acerca da prática e, ao mesmo tempo, uma falta de confiança nos (assim chamados) “saberes acadêmicos” e suas formulações teóricas. No campo da formação docente, por exemplo, arrisco-me a afirmar que dentre as questões tidas como mais problemáticas está a discussão sobre as relações entre a teoria e a prática. Nesse caso, dois polos são facilmente identificáveis. De um lado, colocam-se os que defendem a necessidade de uma prévia e sólida formação teórica nos assim chamados fundamentos da Educação — como a Psicologia, a História,

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a Filosofia e a Sociologia da Educação. Para esses pedagogos, tal formação prévia criaria as condições para que os futuros professores e professoras pudessem compreender melhor e até modificar as suas respectivas práticas. Para esses, a teoria precede a prática. Chamemo-los de “teoristas”. De outro lado, colocam-se os pedagogos que argumentam a favor de uma cada vez mais precoce imersão nas práticas docentes, pois seria a partir desse mundo das práticas — um mundo que no vocabulário platônico se chama de “sensível” — que o futuros professores e professoras poderiam ou deveriam, depois, compreender melhor os fundamentos da Educação. Para esses, o estudo antecipado da Psicologia, História, Filosofia e Sociologia da Educação não iria além de um estudo livresco, desconectado com aquilo que se costuma chamar de realidade ou, até mesmo, de verdadeira realidade. Muitos deles chegam a afirmar que qualquer teoria só tem valor se é retirada a partir do concreto de nossas práticas imediatas. Para esses, a prática precede a teoria. Talvez valha aqui o neologismo “praticistas”2 Como que para resolver a polarização, tem sido comum intercalar a teoria com a prática. Em termos do currículo, isso significa adotar um desenho curricular em que haja uma alternância entre disciplinas ou atividades teóricas e disciplinas ou atividades práticas. Essa solução parece repousar no pressuposto de que, mais ou menos por si mesmos, os alunos e alunas serão capazes de integrar a teoria com a prática. Uma outra solução, próxima à anterior, tem sido recomendar que, sempre que possível, tragam-se exemplos práticos para ilustrar os conteúdos teóricos, bem como discussões teóricas para questionar o que vai acontecendo na prática. Nesse caso, certos pedagogos recomendam que professores e professoras procurem sair de seu próprio mundo — teórico ou prático — e, conforme o caso, procurem “olhar

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Neste caso, certamente não cabe usar a palavra “práticos”.

para as práticas que estão à sua volta” ou tentem “buscar nos livros as teorias que explicam as práticas que estão à sua volta”. Foi a partir de tais constatações que me ocorreu desenvolver alguns apontamentos sobre a prática, eles mesmos num tom um tanto simples e com objetivos, digamos, utilitários. Assim, este texto constitui-se numa pequena introdução às questões acima descritas, mas sem tomar partido a favor da teoria ou da prática. Escolhi seguir uma via pouco usual: argumento no sentido de que tais questões assentamse em pressupostos epistemológicos que são, no mínimo, problemáticos e que, por isso mesmo, é bem melhor abordálas mais “por baixo”, por suas raízes. Ao proceder desse modo, coloco a discussão num patamar incomum e pouco familiar para alguns pesquisadores envolvidos com a Educação. Isso me leva a dar a este texto um cunho um tanto didático. Seja no campo da Educação ou seja no campo mais geral das Ciências Humanas, meu objetivo não é tanto aprofundar as discussões sobre o estatuto da prática ou o estatuto da teoria, mas, entre outras coisas, mostrar que o decantado “problema teoria X prática” desaparece se mudarmos as bases sobre as quais ele foi construído. Então, ao invés de contribuir para solucionar um problema, aqui meu objetivo é bem outro: desviar a discussão, argumentando que esse é um falso problema. Em outras palavras, acho mais interessante dissolver o problema do que assumi-lo como dado e tentar solucioná-lo. Quando uso a expressão “falso problema” não estou querendo dizer que o problema não existe; ele de fato existe, pois, como já referi, ele até mesmo produz efeitos no campo acadêmico, nos desenhos curriculares e nos cursos de formação de professores. Com a expressão “falso problema” quero chamar a atenção para o fato de que há mesmo um problema, mas ele é falso, isso é, ao invés de buscarmos uma solução para ele, será mais interessante darmos a volta por fora dele, examiná-lo de fora — ver de onde ele vem, como ele foi

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instituído e como ele aparece — e, por fim, afastarmo-nos dele ou convivermos com ele sem, contudo, levá-lo muito a sério. Mudar as bases sobre as quais algo ou alguma coisa é que tomada como verdadeira se instituiu como um problema significa trocar os óculos com os quais vemos dessa ou daquela maneira o mundo. Como reiteradas vezes nos mostrou Thomas Kuhn (1976, 2006), ao vermos de modo diferente o mundo o que se nos apresentava como um problema (muitas vezes) simplesmente desaparece enquanto tal. No nosso caso, isso significa nos desviarmos do foco epistemológico e metodológico que essencializa a prática como um valor em si e entender que essa palavra designa um domínio das ações humanas, segundo uma regularidade e uma racionalidade que organiza tais ações de diferentes maneiras. E, na medida em que estou falando em regularidade e racionalidade, já começamos a nos dar conta de que junto com qualquer prática — ou, para dizer em termos mais técnicos: imanente a qualquer prática — existe sempre uma teorização, por mais obscura e indefinida que ela se apresente para os olhares menos acostumados com essas questões epistemológicas. Como veremos mais adiante, o domínio das ações humanas é aquele em que se dão os acontecimentos e as experiências, ambos compreendidos como conceitos produtivos, isso é, que produzem (sem que aí haja qualquer juízo de valor). Sendo assim, a prática deixa de ser essencializada, ontologizada e não é mais entendida como um tópos, ente ou categoria, mas como uma designação genérica e, enquanto tal, de interesse, ao mesmo tempo, menor e maior. Por enquanto, deixemos no ar essa aparente contradição...

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UM POUCO DE ETIMOLOGIA

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Não analisamos um fenômeno [...] mas um conceito e, portanto, o emprego de uma palavra. (WITTGENSTEIN, 1979, p. 55) 118

Nesta seção, desenvolverei uma rápida discussão de ordem etimológica que considero útil para minha argumentação. Antes, porém, é preciso fazer algumas considerações de ordem metodológica. Na perspectiva em que estou aqui me movimentando, traçar a história de uma palavra ou expressão não significa a busca por um suposto sentido original para essa ou aquela palavra ou expressão; não significa buscar um suposto sentido que teria se perdido ou se deteriorado ao longo da história. Tampouco significa uma tentativa de fixar o melhor ou mais correto conceito, para uma palavra ou expressão. Tais preocupações nada têm a ver com meus interesses ou modos pelos quais eu entendo a linguagem. Aliás, a virada linguística já nos ensinou que os sentidos não repousam nem nas coisas designadas, nem nas palavras que usamos para designá-las, mas flutuam em intrincadas, instáveis e amplas redes discursivas de significações. Essas redes não apenas cercam as coisas e a elas atribuem sentidos, mas, também, são produzidas pelas comunidades falantes, ao mesmo tempo em que contribuem para instituir tais comunidades. A flutuação em tais redes se dá segundo um jogo no qual as regras de produção são contingentes — mas não caóticas — e envolvem relações de poder e de saber. E também não se trata aqui de um simples exercício de erudição, na tentativa de detalhar a história de uma palavra e dos entendimentos que ela denotou ao longo da nossa tradição intelectual e linguística. Tais detalhes são interessantes, mas investigá-los está além da minha competência e até mesmo foge do meu interesse e do âmbito deste texto. Interessa aqui apenas mostrar rapidamente o caminho etimológico percorrido pelas palavras, de modo a desvelar suas aproximações e distanciamentos, afinidades e diferenças, sintonias e dissonâncias, bem como registrar os importantes deslocamentos de sentidos que ocorreram ao longo do tempo. Vamos então ao rápido exercício etimológico, começando pela palavra prática.

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Derivada da forma latina tardia practĭce, é no radical indo-europeu prāk- que vamos encontrar o significado de “fazer alguma ação”, “fazer alguma coisa”. Dele derivaram o verbo grego prassein (no ático, prattein) — fazer, efetivar, produzir (um efeito real) —, o substantivo praxis — prática, uma ação habitual e bem estabelecida (em geral, aprendida), um costume, o ato de agir — e o substantivo praktos > praktikos —aquilo que é feito, praticado.3 É desse praktikos que deriva a forma latina tardia practĭce — no sentido tanto do ato de fazer algo, quanto do efeito desse ato, ou seja, a própria coisa feita. Na língua portuguesa do século XV, aparecem pela primeira vez as palavras practica, platica e prática. Finalmente, no português moderno, a forma que se tornou prevalecente foi prática. É fácil ver que todas essas formas acima designam tanto um conjunto de ações quanto seus respectivos resultados; trata-se de ações em geral ensinadas e aprendidas, bem como realizadas habitualmente, sem que estivesse aí implícita qualquer dependência entre tais ações e aquilo que se podia pensar e dizer sobre elas. Em outras palavras, tais ações não estariam determinadas por considerações estratégicas e táticas que viriam de fora delas. Isso não significa que não se pensasse para agir, que não existissem interesses e intenções no ato de praticar e naquilo que resultava de tais atos. Mesmo que existissem — e certamente se aceitava que existiam —, tais interesses e intenções colocavam-se fora do âmbito daquilo que, em linguagem atual, se poderia chamar de teorização sobre o que era feito. Por prática designava-se, assim, um conjunto de ações, em geral aprendidas, repetitivas, quase automáticas e habituais. Aliás, o caráter de habitualidade esteve longo tempo associado intimamente ao conceito de prática; algo que não fosse feito habitualmente não constituía uma prática; prática

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Para mais detalhes, vide Morris (1970) e Roberts; Pastor (2007).

e hábito ocupam campos semânticos vizinhos4. E ambas as palavras contrastavam com a palavra teoria. Como argumentarei mais adiante, derivou justamente desse contraste entre teoria e prática a destacada importância que essa última assumiu principalmente no campo das Ciências Humanas, bem como o valor que hoje é atribuído às discussões que tratam das relações entre teoria e prática. Do lado da teoria, em termos etimológicos há bem menos a dizer. Essa palavra deriva da forma latina theoria, æ (ou theorĭce, ēs) cujo sentido é “parte especulativa de um conhecimento” ou, também, uma “especulação filosófica”. Theoria, æ vem da forma grega theōría, cujo sentido é observar, examinar ou escrutinar; trata-se de uma palavra derivada de theōros — espectador —, um substantivo formado pelas palavras theā — mirada, visão — e -oros (de horān — o verbo ver).5 De um modo geral, então, a palavra teoria tem uma origem que aponta para uma forma de ver, de enxergar melhor aquilo que se conhece. Não se trata de um ver propriamente físico, com os olhos, mas de um ver com o pensamento, com a razão. Para dizer de outra maneira, a teoria nos leva a ver melhor e, assim, melhora o nosso conhecimento.

Anotações sobre as Relações entre Teoria e Prática

DO MITO À DOUTRINA, DA DOUTRINA À VERDADE (LOGO, DO MITO À VERDADE) O que é a verdade, portanto? Um batalhão móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos, enfim, uma soma de relações humanas, que foram enfatizadas poética e retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que, após longo uso, parecem a um povo sólidas, canônicas e obrigatórias: 4

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É interessante assinalar que hábito — uma palavra derivada do radical indoeuropeu ghabh-, pela forma latina habitus (particípio passado do verbo habēre) — denota um padrão de comportamento recorrente, em geral inconsciente, que é adquirido por repetições frequentes. Para mais detalhes, vide Azevedo (1955), Almeida (2008), Galvão (1909) e Morris (2000).

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as verdades são ilusões, das quais se esqueceu que o são, metáforas que se tornaram gastas e sem força sensível, moedas que perderam sua efígie e agora só entram em consideração como metal, não mais como moedas. (NIETZSCHE, 1996, p.57)

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De modo muito resumido e simplificado, pode-se dizer que uma parte do pensamento grego antigo, no seu empenho pela construção de uma racionalidade cujo objetivo era o conhecimento seguro (epistémé) acerca da natureza e do ser humano, acabou instituindo filosoficamente a noção de que a realidade é dual. Sobre a realidade, haveria duas maneiras de conhecer algo: ou ter uma opinião (doxa) que, por não ser fundamentada, não passaria de uma crença ou ilusão; ou ter um conhecimento seguro (epistémé) que, por ser racionalmente fundamentado, seria uma verdade em si mesma ou, pelo menos, nos levaria até ela. Uma é a realidade onde imperam as opiniões e, por isso, as incertezas, o falso misturado com o verdadeiro, o erro com o acero. A outra é a realidade onde imperam os conhecimentos e, por isso, as certezas que são dadas pela própria verdade. O entendimento grego de que a realidade é dual não se constituía propriamente numa novidade, pois já estava presente desde quando “o homem ‘caiu de joelhos’ diante das forças superiores da natureza e inventou os deuses. Mas não apenas os deuses. O homem inventou um espaço e um tempo sagrados” (BORNHEIM, notas de aula, p. 1). Mas é em Sócrates e em Platão que tal entendimento se encontra formulado na forma mais acabada: o mito alegórico dos dois mundos — exposto principalmente nos diálogos platônicos Timaeus, Teeteto e A República, e mais tarde transformado em doutrina — pode ser entendido como a formulação filosófica de uma realidade dicotômica, isso é, uma realidade dividida em duas partes contraditórias: uma, do inteligível; a outra, do sensível. Ou, se preferirmos: uma, epistêmica; a outra, doxológica.

Nas palavras de Almeida (2005, p. 25), com “Sócrates inaugura-se a época da razão e do homem teórico, quando se estabelece a distinção entre dois mundos, pela oposição entre essencial e aparente, verdadeiro e falso, inteligível e sensível.” Como se sabe, é a partir daí que a “Filosofia se coloca como tarefa ‘julgar a vida’, opondo a ela (vida) valores pretensamente superiores como o ‘Divino’, o ‘Verdadeiro’, o ‘Belo’, o ‘Bem’ [...]” (id.). Pode-se dizer que a Filosofia tornou-se um tribunal quando colocou a si a tarefa de, evitando a doxa, chegar à epistémé. Mais tarde, a assim chamada doutrina dos dois mundos, que Platão havia tomado de empréstimo aos pitagóricos, ajustouse como uma luva à tradição cristã medieval, na medida em que se articulava razoavelmente bem com o próprio dualismo cristão cuja pedra de toque era, justamente, a noção de que a vida aqui vivida, imperfeita e pecaminosa, se constituiria numa preparação para uma outra vida eterna e divina, a ser vivida num outro mundo e que, em princípio, seria perfeito.6 Esse mito acabou norteando os desdobramentos posteriores do pensamento humano, chegando à Modernidade como uma verdade por si mesma, como algo natural — e, por isso mesmo, inquestionável e quase “invisível”. A própria Ciência moderna, nascida e desenvolvida sob o abrigo desse arco platônico, incorporou acriticamente a noção de que vivemos uma realidade “que tem, acima de si, um mundo ideal, habitado por idéias e formas perfeitas, um mundo inteligível, que pode reger o que acontece aqui nesse nosso mundo imperfeito e grosseiro, um mundo sensível” (VEIGANETO, 2006, p. 85). A Modernidade logo incorporou a doutrina dos dois mundos, na forma de uma racionalidade que, pensando dispensar o divino, manteve intacta a ideia de que fora deste nosso mundo haveria um outro mundo, povoado pelas representações mentais e acessível pelo uso cuidadoso 6

É mais do que evidente a correspondência entre, de um lado, mundo sensível— mundo profano e, de outro lado, mundo inteligível—mundo sagrado...

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e metódico do pensamento. Com isso, o dualismo platônico foi contrabandeado para a Ciência moderna, manifesto pela noção de que as teorias estão no mundo das ideias — devendo ser, portanto, perfeitas, rigorosas, abrangentes e definitivas —, enquanto que as práticas estão neste nosso mundo sensível, são coisas deste mundo concreto e imperfeito. Assim, segundo esse entendimento, quando os resultados obtidos na prática não se ajustam perfeitamente à teoria — e nunca acontece de fato um ajuste perfeito —, pensa-se logo que ou o problema está na teoria que seria incorreta ou pouco desenvolvida, ou o problema está no mau ou equivocado uso que estamos fazendo dela. Em qualquer caso, mantém-se tacitamente que existe mesmo um mundo da prática e um mundo das ideias, cabendo à boa Ciência fazer as melhores conexões entre esses dois mundos.

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Recorro mais uma vez a Bornheim (p. 1): aquele é “o mundo superior, divino, sobrenatural e absoluto dos deuses”; esse é “o mundo concreto, temporal, corruptível e inferior”. Ou, se quisermos: aquele é o mundo da luz; esse é o das trevas. E mais: “Note-se que ao mesmo tempo em que a realidade é dividida ela é hierarquizada: há um mundo superior e mais forte e um inferior e mais fraco: um mundo sagrado e um profano.” (BORNHEIM, notas de aula, p. 1).

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Comentando a alegoria da caverna, desenvolvida no Livro VII d’A República, assim me reportei à doutrina dos dois mundos (VEIGA-NETO, 2004, p.76): tudo se passa como se vivêssemos “originária e tragicamente mergulhados na ignorância, como se estivéssemos acorrentados no interior de uma caverna escura,” onde arde uma fogueira e “nas paredes da qual só veríamos sombras projetadas e distorcidas, de modo que a ilusão ali é completa” (id.). Ali, nada é verdadeiro; até “os sons que se escutam não passam de rumores que nos confundem e mentem para nós” (id.). Escutemos diretamente Platão (1999, p. 155):

A caverna-prisão é o mundo das coisas visíveis, a luz do fogo que ali existe é o sol, e não me terás compreendido mal se interpretares a subida para o mundo lá de cima e a contemplação das coisas que ali se encontram com a ascensão da alma para a região inteligível.

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Habitando essa realidade dual, o homem (e não os animais) seria o “único ser capaz de sair deste nosso mundo sensível (a caverna) e chegar à luz do mundo inteligível (o fora-da-caverna) onde está a verdade, num movimento denominado dialética ascendente” (VEIGA-NETO, 2006, p. 85). Para Droz (1997, p. 81), “o que há de aparentemente trágico em nossa condição é compensado por um otimismo racionalista, confiante numa liberação possível do homem pelo conhecimento”. A celebração moderna da racionalidade científica é a manifestação mais palpável desse otimismo racionalista. E é justamente aí que vão se ajustar e ganhar peso as noções modernas de teoria, de método, de hipótese e de lei científicas; em tal registro, a teoria — colocando-se no mundo inteligível (para os positivistas otimistas...) ou chegando cada vez mais perto do mundo inteligível (para os sisudos críticos...) — é capaz de dizer e de explicar as verdades verdadeiramente verdadeiras7. A teoria, bem como todos os elementos que compõem o edifício teórico — axiomas, hipótese, leis, métodos, representações, práticas de verificação, confirmação e refutação, heurísticas, algoritmos etc. —, pretende justamente funcionar como uma via de ascensão que nos leva do dentro para a porta da caverna, do mundo sensível das práticas para o mundo suprassensível e inteligível das ideias, da dúvida para a certeza. Pela teoria, seríamos levados de um mundo profano para um mundo sagrado. 7

Parece-me inteiramente apropriado esse reforço estilístico que ouvi várias vezes, ainda na década de 1980, nas aulas do Prof. Carlos Cirne Lima (IFCH/ UFRGS).

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Em suma, pode-se dizer então que, sob o abrigo do arco platônico, tudo o que concerne aos fatos e feitos no mundo sensível diria respeito às práticas, enquanto que tudo o que concerne ao que se pensa verdadeiramente e se diz verdadeiramente (sobre tais práticas) diria respeito à teoria — ou, talvez melhor: seria resultado da boa e correta aplicação da teoria. Eis aí a correspondência entre a doutrina dual e o binário teoria-e-prática8; se quisermos, podemos formular essa relação da seguinte maneira: sensível/prática = inteligível/ teoria. Em outras palavras, sob o abrigo do arco platônico as próprias práticas se dão no mundo sensível, enquanto que as teorias fazem o caminho ascendente desse mundo sensível rumo ao mundo inteligível — ou, para alguns, elas até mesmo já se colocam no mundo inteligível. É justamente a partir desse ponto que teoria e prática passaram a ser pensadas em separado, ainda que ligadas entre si. Funcionando como um fundo epistemológico, como um mantra, a doutrina dos dois mundos e o correspondente binômio teoria-prática são, em nossa tradição, assumidos como uma manifestação da própria natureza do mundo. Assim naturalizados, doutrina e binômio não parecem constituir um problema maior por si mesmos. Uma alentada bibliografia técnica dedica-se atualmente a discutir os conceitos de prática e teoria, bem como suas interrelações, tudo tomado justamente nesse sentido platônico — ou talvez, para sermos mais rigorosos, neoplatônicos. Inúmeros manuais de metodologia científica, compêndios de epistemologia e textos avulsos sobre pesquisa em Educação, que hoje circulam entre nós, assumem o binômio teoriaprática como um datum, como algo dado e cuja dissociação e interdependência são evidentes por si mesmas. Na sua grande maioria, tais publicações não questionam “de fora” a existência da relação, mas a tomam como natural e se lançam a procurar as melhores maneiras de transitarem entre a teoria

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Certamente não é difícil mostrar a influência da doutrina dual “sobre” boa parte do pensamento binário e dicotômico moderno e, por extensão, ao destaque que a dialética assume, por exemplo, no Idealismo Alemão...

e a prática, ou seja, as melhores maneiras de fazerem com que as suas pesquisas articulem o mundo sensível com o mundo inteligível e vice-versa. O grande problema que sempre se coloca é conseguir desenvolver e “aplicar” os melhores caminhos — ou métodos9 — para a representação descendente e para a dialética ascendente (VEIGA-NETO, 2006). Aliás, vale lembrar que a centralidade do método, uma centralidade que hoje predomina em boa parte das pesquisas científicas e, especialmente as educacionais, deriva desse entendimento neoplatônico.10 Este não é um texto destinado a analisar os discursos que circulam nesse campo. Mesmo assim, vale referir dois exemplos ilustrativos. Vamos a eles. O primeiro exemplo foi retirado da Wikipedia — Enciclopédia Livre, um portal da Internet bastante utilizado, referenciado e reverenciado nos campos da pesquisa educacional e da formação docente. Ali, prática é conceituada como “a realização de uma teoria corretamente”; lê-se mais: “uma teoria só é considerada como tal se for provada pela prática, ou seja, não existe teoria sem prática” (Wikipédia, p. 1). O segundo exemplo vem de num artigo que trata da formação do profissional em Educação Física (KOLYNIAK FILHO, 1996, p. 111): “define-se prática como a ação concreta sobre o meio, teoria como sistematização de representações sobre a realidade e reflexão como o processo de confronto das representações da realidade concreta com sistemas conceituais organizados (teorias)”. Logo a seguir, a autora explica: “Toda atividade humana implica em teoria e prática, em algum grau. Contudo, a relação entre teoria, prática e reflexão varia segundo a predominância de uma atividade teórica ou prática

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Não esqueçamos que método deriva das palavras gregas metá — através, para além — e hodós — caminho. É o método que nos promete levar de um lugar para o outro... 10 Pergunto se, no campo da Educação, não se pode dizer o mesmo acerca da profusão — tantas vezes de modo superficial, aligeirado e barateado — da palavra dialética, seja como substantivo seja como adjetivo.

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e segundo a abrangência das representações sobre a realidade”. São tais entendimentos que nos colocam a um passo do conceito de “professor reflexivo”, essa invenção recente que hoje inunda a bibliografia educacional. De fato, no final do artigo assim escreve a autora: “a utilização de estratégias como as exemplificadas constitui-se em possibilidade para a busca de uma formação em que se alia fundamentação teórica significativa e abrangente com domínio de instrumental técnico e metodológico adequado, na perspectiva da criação de um profissional reflexivo” (id., p. 114).

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OUTRAS ÁGUAS... A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua política geral de verdade. Foucault (1992, p.12)

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Para usarmos uma expressão corriqueira, neste texto estou nadando em outras águas. São águas que não se abrigam sob o arco platônico. Ao contrário, elas correm, mais soltas, nos sulcos abertos por autores que deram as costas para Sócrates e Platão. Por isso, muitas vezes eles são malvistos; outras vezes, infames; e quase sempre foram e continuam sendo outsiders. Alguns desses sulcos foram abertos há muito tempo e são mais antigos do que Sócrates e Platão; outros, datam da segunda metade do século XIX; outros, ainda, foram abertos só muito recentemente; por fim — e felizmente para nós — vários deles estão sendo cavoucados ainda hoje... As águas em que estou nadando não são nem melhores, nem mais límpidas, nem mais puras do que as águas por onde, sob o arco platônico, navega o mainstream acadêmico. Apenas uma coisa é certa: as águas em que nado não são mais calmas, senão bem turbulentas... E por que nossas águas são tão turbulentas? A resposta vamos encontrar na

prática da hipercrítica, essa “atitude filosófica e cotidiana que precisa de ‘permanente reativação’” (KIZILTAN; BAIN; CAÑIZARES, 1993, p. 219), cuja “radicalidade radicalmente radical não se firma em nenhum a priori — chamemo-lo de Deus, Espírito, Razão ou Natureza —, senão no próprio acontecimento” (VEIGA-NETO, 2006a, p. 15). Na medida em que a hipercrítica “faz da crítica uma prática permanente e intransigente até consigo mesma, de modo a estranhar e desfamiliarizar o que parecia tranquilo e acordado entre todos” (VEIGA-NETO, 2006a, p. 15), e na medida em que “vai buscar no mundo concreto — das práticas discursivas e não-discursivas — as origens dessas mesmas práticas e analisar as transformações que elas sofrem, sem apelar para um suposto tribunal epistemológico, teórico e metodológico que estaria acima de si mesma”, ela (a hipercrítica) “está sempre desconfiada, insatisfeita e em movimento”. Para ela, todos os portos são portos de passagem11; mesmo que ela ancore aqui ou ali, fixe-se lá ou acolá, já se sabe que pode ser por pouco tempo. Se quisermos, poderemos inverter a metáfora da âncora e, seguindo Rorty (1988), dizer que não há nenhum “gancho no céu”, de modo que tudo aquilo que temos e com o que podemos contar está neste mundo “de carne e osso”. E, mais do que isso, não há nem mesmo um céu onde, eventualmente, se possa enganchar alguma suposta verdade. É esse éthos que faz da vida uma constante e nada tranquila aventura. Dizer que não há ganchos no céu e nem mesmo um céu onde se possa pendurar um gancho — ou, se preferirmos, não há um fundo firme e último onde possamos ancorar e fundamentar — o nosso pensamento e a nossa linguagem equivale a dizer que não há um “lugar nenhum”, não há um ponto arquimediano a partir do qual se possa pensar o mundo, conhecê-lo e falar sobre ele. (VEIGA-NETO; LOPES, 2007). Alguns costumam dizer que “não há nada lá fora”. Para Stein 11 Com essa expressão, pago pequeníssima parte do tributo intelectual que devo

a João Wanderlei Geraldi (GERALDI, 1992).

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(1981, p. 47), a verdade é “filha do tempo e obra do Homem” e, para Deleuze (1991, p. 72), “A verdade é inseparável do processo que a estabelece”. Michel Foucault (2001a, p. 112) resumiu a questão na frase que escolhi como parte da epígrafe desta seção: “a verdade é deste mundo”. Assim, reconhecendo e levando a sério as importantes lições da virada linguística, assumo a contingência radical não apenas da linguagem — e dos conceitos que ela encerra — como, também, do acontecimento e da experiência. Para todos efeitos, assumo “o caráter não-representacional da linguagem e a inextricável relação entre linguagem e mundo” (VEIGANETO; LOPES, 2007, p. 19). Nadando nas mesmas águas em que nadaram Friedrich Nietzsche, o Segundo Wittgenstein, Richard Rorty, Willard Quine e Donald Davidson, entendo que

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os fatos são aquilo que pensamos e dizemos que eles são. Perguntar se existe, antes e para além do pensado ou do dito, uma realidade inacessível ao pensamento é, a rigor, uma questão metafísica pouco interessante ou, para usar a conhecida formulação do Segundo Wittgenstein, uma questão que, ao fim e ao cabo, só gera mal-entendidos. Na melhor das hipóteses, o que se pode dizer é: “mesmo que exista uma realidade para além do nosso entendimento, ela só poderá ser pensada quando estiver sendo (minimamente) entendida e, nesse caso, já não estará mais para além do nosso entendimento” (id.).

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Isso não significa negar uma materialidade anterior e exterior a nós, uma materialidade que já estava aí. Significa, sim, que tal materialidade só entra no jogo quando a “transformamos” em realidade, ou seja, quando, ao pensarmos nela e dizermos algo sobre ela — e, assim, atribuirmos sentidos para ela — a colocamos no mundo como uma verdade e a inserimos na ordem da vida e na ordem do discurso.

O que me parece mais importante é referir que, apesar das muitas diferenças entre as várias vertentes epistemológicas atuais, todas elas são unânimes em afirmar que não há como dar qualquer sentido ao que se passa no mundo sem uma ou mais teorias que nos faça(m) compreender o que estamos observando, vendo, medindo, registrando. Em outras palavras: sem um esquema ou arcabouço teórico, isso que chamamos mundo das práticas — ou, simplesmente, práticas — não faz nenhum sentido e, assim, nem é mesmo observado ou visto e nem, muito menos medido ou registrado. Inversamente, se dá o mesmo: sem alguma experiência, algum acontecimento nisso que chamamos mundo das práticas, não há como pensar, formular ou desenvolver uma ou mais teorias. Mas é preciso nunca esquecer que tudo isso acontece sempre no torvelinho de complicadas relações de poder. Questões tais como quem fala, como se fala, onde se fala e de onde se fala são cruciais para instituir uma realidade que acaba sendo tomada como se fosse natural, externa a nós e independente das relações de poder e dos discursos pronunciados sobre ela; enfim, uma realidade cuja verdade teríamos simplesmente de desvelar e acessar por obra do nosso engenho. Mas, como argumentou Foucault (1992, p. 12), no estabelecimento da verdade de uma realidade é preciso considerar também “os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sancionam uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro”. Aqui, o que se coloca em discussão nada tem a ver com o tradicional conceito de ideologia como falsa consciência. E tem muito pouco a ver com a “velha e surrada polêmica entre o idealismo e o realismo [...]; o que se coloca, agora, é um debate entre o realismo e o antirrealismo” (VEIGA-NETO; LOPES, 2007, p. 19). Conforme explicou Rorty (1997), a pergunta agora é outra: não se trata tanto de perguntar se “a realidade material é dependente da mente?”, mas “que tipos

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de asserções verdadeiras, se alguma houver, encontram-se em relações representacionais para com itens não-linguísticos?”. Entendo que a resposta à segunda pergunta é simplesmente “nenhuma”. Desse modo, ao aceitarmos tal antirrealismo, simetricamente rejeitamos tanto a existência de alguma realidade independente de nós mesmos quanto a “possibilidade de que o pensado e o dito contenham representações de uma suposta realidade antes e por fora de quem pensa e diz” (VEIGA-NETO; LOPES, 2007, p. 23). Por aí, fica clara a impossibilidade de uma prática sem uma correspondente teoria que lhe dê sentido como prática. É em decorrência de todos esses entendimentos que o meu interesse pela assim chamada “prática em si mesma”12 e pelas assim chamadas relações entre teoria e prática é, ao mesmo tempo, menor e maior do que o interesse daqueles que se abrigam sob a tradição platônica. Meu interesse pela prática é menor não porque a experiência e o acontecimento não tenham importância. Ao contrário, ambos são até mesmo centrais em nossas discussões. Meu interesse pela prática é menor porque ela — em si e em suas (assim chamadas) relações com a teoria — não é um problema exterior ao próprio discurso que a nomina, descreve, analisa e problematiza. Não faz sentido — e nem mesmo é possível — pensar a prática sem uma teoria que a abrigue enquanto prática. Além do mais, se a própria teoria já é uma prática — e, como já vimos, a prática só é prática sob o abrigo de uma teorização que lhe dê (pelo menos, um mínimo de) sentido —, tentar pensar a prática a partir de uma teoria ou, no sentido inverso, tentar formular uma teoria a partir da prática, são como que furos na água líquida... Resumindo, na medida em que não reconhecemos, para ambas — teoria e prática —, o estatuto ontológico que a elas conferem aqueles que se abrigam sob o arco platônico e na medida em que as entendemos como que fundidas uma na

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12 Seja lá o que isso queira dizer.

outra, não faz sentido falar em “prática em si mesma”, nem em “pura teoria” e nem em “relações entre teoria e prática”. Por outro lado, meu interesse pela prática é maior. De fato, meu interesse por ela é até bem grande; talvez maior do que parece ser para muitos daqueles que navegam nas águas seguras do (neo)platonismo. Vejamos por quê. Considerando as contribuições do neopragmatismo e dos Estudos Foucaultianos, podemos pensar a prática como o domínio tanto daquilo a ser descrito, analisado e problematizado quanto, ao mesmo tempo, o domínio das próprias descrições, análises e problematizações que são colocadas em movimento. Isso é assim tanto nos trabalhos que se valem diretamente do ferramental foucaultiano quanto naqueles outros que tomam o pensamento do filósofo como uma atmosfera capaz de oxigenar nossas indagações e nossas indignações. Em outras palavras, a prática — entendida no modo como discuti acima — nos interessa, quer estejamos operando com as ferramentas desenvolvidas e afiadas pelo filósofo, quer estejamos apenas mergulhados no éthos foucaultiano13. Ainda que Foucault pareça não ter desenvolvido uma discussão específica sobre a prática, esse é um conceito presente em boa parte de suas obras. Em muitas delas, o filósofo fala em práticas asilares (História da Loucura), médico-clínicas (Nascimento da Clínica), punitivas (Vigiar e punir e História da sexualidade). Em outras obras, ele fala em práticas discursivas (que envolvem os saberes) e em práticas não-discursivas (que envolvem as relações de poder). E, na medida em que as relações de poder têm, na formação e na circulação dos saberes, suas condições de possibilidade, as práticas discursivas e as não-discursivas são indissociáveis14.

Anotações sobre as Relações entre Teoria e Prática

13 Para uma discussão acerca do éthos e do ferramental foucaultiano, vide Veiga-

Neto (2006).

14 Como lembra Castro (2004), é só com o conceito de episteme que se pode

pensar em práticas discursivas não articuladas com as práticas não-discursivas. Penso que essa é uma das limitações do projeto arqueológico de Foucault. Por isso, tenho argumentado que é com o conceito de dispositivo — e a

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Com a primeira expressão — práticas discursivas —, Foucault (1997, p. 136) designa “um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que definiram/definem, em uma dada época e para uma determinada área social, econômica, geográfica ou linguística, as condições de exercício da função enunciativa”. Observe-se aí o cuidado que tem o filósofo para não escrever “as condições da prática enunciativa”, mas sim “as condições de exercício da função”. Assim, uma prática discursiva não é simplesmente uma “operação expressiva pela qual um indivíduo formula uma ideia, um desejo, uma imagem; nem uma atividade racional que pode ser acionada em um sistema de inferência; nem uma ‘competência’ de um sujeito falante, quando constrói frases gramaticais” (id.). Talvez se possa dizer que as teorias são caixas de ferramentas que se nos apresentam como práticas discursivas. De novo, vale recorrer a Foucault, quando ele nos diz que

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pensar a teoria como uma caixa de ferramentas significa que: a) se trata de se construir não um sistema, mas um instrumento: uma lógica própria às relações de poder e às lutas que se estabelecem em torno delas; b) a pesquisa não pode ser feita senão pouco a pouco, a partir de uma reflexão (necessariamente histórica em algumas de suas dimensões) acerca de determinadas situações (FOUCAULT, 2001a, p. 427).

É o caráter de instrumento, e não de sistema, que retira as teorias do mundo das ideias, coloca-as como coisas deste único mundo que existe e faz delas um instrumento prático. Nesta fusão entre teoria e prática, podemos continuar com Foucault (2001, p. 1398): não se deve procurar o pensamento apenas nas formulações teóricas, como as da filosofia Educ. foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 1, p. 113-140, mar. 2015 / jun. 2015

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correspondente inclusão das relações de poder no projeto foucaultiano — que o filósofo cresce de importância e utilidade para nossas pesquisas sobre educação, escola e currículo.

e da ciência; ele pode e deve ser analisado em todas as maneiras de dizer, de fazer, de se conduzir, em que o indivíduo se manifesta e age como sujeito de conhecimento, como sujeito ético ou jurídico, como sujeito consciente de si mesmo e dos outros.

Anotações sobre as Relações entre Teoria e Prática

É por isso que o filósofo entende que “o pensamento é considerado como uma forma própria da ação, como ação na medida em que essa implica o jogo do verdadeiro e do falso, a aceitação ou a recusa da regra, da relação consigo mesmo e com os outros” (id., p. 1399). A partir daí, Foucault argumenta que “o estudo das formas de experiência poderá, desse modo, se fazer a partir de uma análise das ‘práticas’ discursivas ou não, se se designam como tal os diferentes sistemas de ação, considerando que eles são habitados pelo pensamento assim entendido” (id.). Aqui, vale a pena salientar que o filósofo não apenas grifa a palavra práticas — de modo a sinalizar o deslocamento que pretende imprimir ao sentido tradicional atribuído a palavra —, como, também, nos fala em estudar as “formas de experiência” e não propriamente as “práticas”, como se essas pudessem ser tomadas por si mesmas. Frente à alegação de que, nesta última passagem, Foucault refere-se à análise das “práticas discursivas”, insisto que é preciso compreender tal expressão no sentido antes referido: como um conjunto de regras que definem as condições segundo a qual se dá o exercício de uma função enunciativa. Assim, analisar o discurso implica analisar uma prática, mas não propriamente no sentido de proceder à análise teórica — seja a partir de uma teoria já dada, seja para construir uma nova teoria — de uma ação ou ato executado por indivíduos que se comunicam, mas, sim, no sentido de proceder à análise das regras que colocam o discurso sob determinadas ordens.

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PARA ENCERRAR

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Para encerrar este texto — mas jamais pensando em encerrar a discussão —, uma última referência à separação que a pesquisa educacional e a Pedagogia costumam fazer entre teoria e prática. Estamos muito frequentemente interessados em estudar e problematizar os dispositivos envolvidos na educação escolar. Isso deriva do fato de que os dispositivos são, em termos gerais, práticas (tanto discursivas quanto não-discursivas) onde se articulam os saberes e as relações de poder e, afinal, é justamente na escola onde se dão, por excelência, tais articulações (HOSKIN, 1990). Assim, nossas pesquisas envolvem-se com a descrição, análise e problematização das práticas discursivas, tendo claro que isso não se reduz a investigar o que, como, quando, por que e por quem é dito isso ou aquilo. Nem mesmo se reduz a colocar, de um lado, uma ou mais teorias e, de outro lado, os ditos e as relações de poder a eles associados. Afinal, se detectamos que isso ou aquilo foi dito é porque já estamos armados de teoria(s) para tanto... Pensar que “na prática, a teoria é outra” e, com isso, achar que teoria e prática estão em mundos diferentes revela, não somente, um mau entendimento sobre ambas como, também, a adesão ao senso comum que em nada contribui para as ações educativas. Quem acredita nos slogans “a prática não interessa” ou “a teoria não interessa” não vai além do vazio desses lugares-comuns. Se, frente a uma prática P uma teoria T parece não funcionar ou nos diz muito pouco sobre P, então é porque essa teoria T deve ser mudada ou ajustada para T1, ou T2 ou T3 etc. Simplesmente negar tout court a teorização e apostar tudo na prática indica, na melhor das hipóteses, um espontaneísmo epistemológico míope e grosseiro. Por outro lado, colocar todas as fichas na teoria não passa de pedantismo e encastelamento acadêmico. Uma opção por um desses extremos só leva à imobilidade e à impossibilidade de qualquer ação educativa digna desse nome.

REFERÊNCIAS

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Data de recebimento: novembro de 2013 Data de aceite: junho de 2014

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HABITAR POETICAMENTE A EDUCAÇÃO: NOTAS SOBRE A RELAÇÃO ENTRE POTÊNCIA E TEMPORALIDADE

Habitar poeticamente a educação: notas sobre a relação entre potência e temporalidade

Maximiliano Valerio López1

Resumo

A educação se encontra intimamente ligada à idéia de possibilidade, não necessariamente à idéia de futuro. O futuro é apenas a forma em que nossa sociedade (moderna) tem dado direção e sentido ao problema do possível. Hoje, urge libertar a educação de sua inexorável referência ao futuro para poder abrir nela efetivos espaços de possibilidade. Cabe a nós, contemporâneos, pensar o “possível” de maneira mais radical, desatrelando-o de sua unívoca referência ao futuro. Cabe a nós liberar as crianças, os conteúdos, os procedimentos, as normas, os rituais e, em geral, todos os conceitos, emoções e gestos pedagógicos de sua monótona e implacável remissão ao futuro. Cabe a nós derramar um pingo de perenidade nisso que chamamos educação. Palavras-chave: Filosofia; Educação; Poética.

Abstract

Education is closely linked to the idea of possibilities, not necessarily to the idea of the future. The future is just the way our society (modern) has given direction and meaning to the problem of the possible. Today, it is urgent to free education for their inexorable reference to the future in order to open it effective spaces of possibilities. It behooves us, contemporaries think the “possible” more radically, trying to separate the problem of unambiguous reference to his future. It behooves us to liberate children, contents, procedures, rules, rituals, and in general, all concepts, emotions and gestures of his teaching monotonous and relentless reference to the future. It falls to us shed a shred of continuity in this that we call education. Keywords: Philosophy; Education; Poetics. 1

Maximiliano Valerio López é Professor Adjunto do Departamento de Educação e do Programa de Pós-graduação em Educação da Faculdade de Educação da UFJF. E-mail: [email protected]

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HABITAR POETICAMENTE A EDUCAÇÃO: NOTAS SOBRE A RELAÇÃO ENTRE POTÊNCIA E TEMPORALIDADE

Habitar poeticamente a educação: notas sobre a relação entre potência e temporalidade

1. HABITAR POETICAMENTE A EDUCAÇÃO: POTÊNCIA E FUTURO

Cada vez resulta mais difícil habitar os espaços educacionais. Cada vez resulta mais árduo estar presente nas relações com os alunos, os colegas e com o próprio conhecimento. Não me refiro à dificuldade de estar fisicamente presente nas aulas, mas ao fato de ser cada vez mais complicado estar realmente presente, isto é, se fazer presente de certa maneira: demorada, atenta, íntegra. Eis que, todo na educação parece hoje precipitar-se numa fuga vertiginosa em direção ao futuro, uma fuga que impossibilita qualquer relação de presença. Podemos perceber essa irrefreável vocação do futuro em cada um dos conceitos, sentimentos ou rotinas que conformam o fazer pedagógico: programas, projetos, objetivos, avaliação, todo parece forçarnos a colocar a atenção no futuro. É verdade que isso não é algo novo. Nossa escola é filha do mundo moderno, e a Modernidade foi um grande pro-jeto, uma maneira de entender e dar sentido ao mundo a través do futuro. Suas palavras de ordem são: progresso, evolução, revolução, ruptura, desenvolvimento, mudança. Como disse Octavio Paz, o que caracteriza a modernidade não é tanto seu amor pela novidade, quanto o fato de se fundar na crítica e a negação do passado, na ruptura. A modernidade se apresenta a si própria como ruptura, negação e superação do passado. Critica de todos os pressupostos da tradição. Ser moderno equivale a submeter todo à crítica. Diferentemente

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de outras rupturas históricas, que destituíram um sistema de crenças para substituí-los por outros, a modernidade derrubou os valores tradicionais para colocar em seu lugar um único principio: a mudança permanente. Ser moderno equivale a “ser sempre de outra maneira”. A modernidade sustenta-se sobre um impulso revolucionário que só pode se conceber coerentemente como revolução permanente. Dado que a crítica, elevada ao lugar de principio regulador, não pode ser indiferente a si mesma. Em sua radicalidade, a crítica não pode deixar de ser critica de si mesma. Nesse sentido, a modernidade sempre levou inscrita sua própria autonegação. Uma autonegação criadora que foi, desde o começo, seu bálsamo e seu veneno. Aquilo que na metade do século XX foi chamado (um pouco desacertadamente) de pós-modernidade, não é senão a consumação do seu próprio princípio. Edificada sobre a negação e a mudança, sobre um instante fugitivo, sem duração nem densidade, a sociedade moderna tornou-se uma sociedade sem presente. Tudo passa, essa é a convicção suprema sobre a qual se ergueu o mundo moderno. O passar é a essência do tempo. Mas o passar do tempo é sempre inapreensível. Mas foi a captura mercantil da mudança e sua aceleração a que acabará tornando o tempo moderno definitivamente inabitável. Sempre ouve uma relação estreita entre as formas de conceber o tempo e o espaço e os dispositivos político/ econômicas de uma sociedade. As noções de civilização e barbárie (forjadas durante os séculos XVIII e XIX), que organizaram as relações coloniais, se articulavam intimamente com uma singular maneira de conceber o tempo e o espaço. No sistema colonial, ir da periferia ao centro equivalia a ir do passado ao futuro. Estas noções logo deram lugar a noção de progresso e toda a produção, distribuição e consumo das mercadorias, no emergente sistema capitalista, obedeceram à mesma distribuição espaço-temporal: o futuro estava onde as mercadorias eram produzidas (nas metrópoles) e o passado nos locais onde as mercadorias eram vendidas (nas colônias).

De tal modo que, o progresso sempre foi, simultaneamente, uma operação de organização política, econômica, espacial e temporal. Se para o mundo moderno a mudança foi um principio regulador, na modernidade tardia, esse princípio foi incorporado ao sistema de produção. A consequência foi uma aceleração das mudanças. Sabemos que a circulação da mercadoria e o que produze o lucro, por isso, quanto mais rapidamente circulam as mercadorias, mais é a utilidade que produzem. Assim, as mercadorias se tornaram cada vez menos duráveis, pois esta caducidade garantiu sua rápida circulação. Na modernidade o tempo se acelera porque a aceleração é lucrativa. O modo mais sofisticado dessa incorporação econômica da mudança constante se torna evidente na moda, onde a obsolescência das mercadorias e sua necessidade de substituição obedecem a critérios puramente simbólicos. É nesse sofisticado dispositivo social (ao mesmo tempo político, econômico e temporal) que nossa sociedade produz a captura utilitária do desejo, por meio do qual as pessoas são levadas a desejar a mudança implícita no consumo de novas mercadorias. Nas instituições educacionais essa aceleração das mudanças, e a artificiosa criação de novidade, se evidencia na crescente exigência de produtividade que começa a sufocar o trabalho acadêmico. Publica-se hoje muito mais do que se lê. Escreve-se, ainda que não se tenha nada a dizer, só para manter a produtividade. A isso se soma a exigência de ter que participar de congressos, bancas, comissões de avaliação, comitês editoriais, etc. Exigências análogas conquistam, paulatinamente, o âmbito estudantil. Os alunos iniciam seus cursos de graduação com a pretensão de acabá-los rapidamente, e durante o tempo que permanecem na universidade não deixam de pensar na construção de um currículo que lhes garanta, no futuro, uma carreira promissória. Isto é, os alunos passam pela universidade sem demorar nem um minuto nela. A vida acadêmica tem se tornado uma corrida. Aliás, a ideia de “corrida” ganhou nas instituições contemporâneas a força de

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uma metáfora exemplar, que descreve perfeitamente o modo em que habitamos o mundo acadêmico. Poder-se-ia dizer que sem a ideia de futuro a educação perde todo seu sentido, porém, é importante assinalar que a educação se encontra intimamente ligada à noção de possibilidade e não necessariamente à noção de futuro. É verdade que não há educação que possa prescindir de algum tipo de relação com o tempo; em todo processo educacional ha sempre envolvida uma relação com o passado ou com o futuro: nela, algo se conserva ou se perde a través do tempo, algo se lembra ou se esquece, algo se transmite, e algo se espera. As técnicas, os costumes, os modos de pensar e de sentir morreriam com cada individuo se não fossem salvos pela transmissão, que tende uma ponte sobre o abismo que abre a morte de cada mestre. Mas não toda potencialidade precisa ser pensada na forma do futuro. O futuro é apenas a forma em que nossa sociedade (moderna) tem dado direção e sentido ao problema do possível. Hoje, urge libertar a educação de sua implacável referência ao futuro para poder abrir nela efetivos espaços de possibilidade. Cabe a nós, contemporâneos, pensar o “possível” de maneira mais radical, desatrelando-o de sua monótona referência ao depois. Cabe a nós liberar as crianças, os conteúdos, os procedimentos, as normas, os rituais e, em geral, todos os conceitos, emoções e gestos pedagógicos de sua inexorável remissão ao futuro. Cabe a nós derramar um pingo de perenidade nisso que chamamos educação.

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POTÊNCIA E VIRTUALIDADE

A temporalidade é sem dúvida um dos âmbitos privilegiados nos quais se coloca o problema do possível: aquilo que “aconteceu”, e acostumamos relegar ao passado, na verdade, nunca tem deixado de existir, ele continua a existir na forma de virtualidade. O passado pesa sobre o presente. Numa antiga amizade, por exemplo, conserva-se de modo atuante cada um dos momentos compartilhados no passado; assim,

a memória (o virtual) se enreda e confunde com o momento atual, conformando a trama da amizade vivida. Impossível olhar para esse rosto, escutar esse tom de voz, essa risada, sem fazê-lo ecoar sobre todos aqueles outros momentos compartilhados anteriormente. O real da amizade, nesse caso, e um composto indivisível de virtualidade e atualidade, de passado e presente. Outro tanto acontece com o porvir. Resulta igualmente difícil dissociar a amizade, ao mesmo tempo atual e antiga, de certa expectativa futura, de aquilo que imaginamos seja possível ou impossível esperar dessa amizade, isto é, de aquilo que acostumamos chamar de “confiança”. Toda relação com o tempo é, na verdade, uma relação com uma imaterialidade atuante. A memória e a imaginação são formas a través das quais entramos em contato com aquilo que só pode existir na forma de uma ausência. Elas permitem manter uma relação viva, não com aquilo que não existe, mas com aquilo que existe na forma específica do virtual. Nesse sentido, nos enganamos ao pensar que nossa realidade está feita de coisas reais e imaginarias (acreditando que essas últimas não são reais), haveria que dizer, pelo contrario, que, entre as coisas reais, umas são atuais e outras virtuais ou possíveis. Assim o diz a seu modo Aristóteles quando declara que o ser existe de duas maneiras: em potência e em ato. Nós diremos aqui, utilizando um vocabulário mais bergsoniano, que o real existe como virtualidade e como atualidade. Muito do que acontece na dimensão do “humano” gravita em torno de objetos, cujo estatuto não pode ser definido nem como presencia, nem como mera ausência, mas como possibilidade ou virtualidades. Tal é o caso das utopias políticas, morais, econômicas; o que são elas senão um espaço de virtualidade? O que é a esperança, o desejo, a memória, a imaginação, senão formas de dar conta daquilo que, sem estar plenamente presente, atua vivamente sobre nosso modo de pensar, sentir e agir? Por isso, a potência é um assunto de primeira ordem na esfera humana.

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Mas como dizemos no inicio, seria um erro reduzir, como fez a sociedade moderna, o problema da potência à questão do futuro, pois o possível não reside única nem necessariamente no futuro. Costuma-se dizer que a educar implica o desenvolvimento de uma série de capacidades, levandoas a sua consumação. O termo latino educare guarda o sentido de “produzir” especialmente aplicado à terra em expressões como quod terra educat [o que a terra produz]. Habitualmente se supõe também que esse vocábulo provém de educere, composto de ex- e duco, que significa “fazer sair” ou “pôr no mundo”, note-se que ambas as expressões estão em consonância com o uso de educare referido a produção da terra (CASTELLO; MÁRSICO: 2007, p. 35). Se tomarmos então o termo no seu sentido mais geral e arcaico podemos dizer que, em todo processo educativo se encontra uma forma de produção ou atualização de uma potência. Pois, segundo uma antiga e bela definição, educar é infundir no corpo e na alga toda a plenitude e beleza de que são capazes. O termo grego para “produção” na antiguidade e o de poiesis, assim o refere Platão, no seu diálogo O Banquete, onde faz dizer a uma mulher estrangeira chamada Diotima que “poesia [poiesis] é, em seu sentido mais geral, toda causa que faz passar uma coisa do ‘não-ser’ ao ‘ser’” (PLATÃO, Banquete, 205c). Daí que todo ato educativo possa ser pensado também, num sentido geral, como um ato poietico, isto é uma forma de fazer passar algo do não-ser ao ser, uma forma de trazer algo ao mundo. Mas, cabe se perguntar qual é a forma específica que reverte esse “trazer algo ao mundo” quando o que se tenta trazer é a própria humanidade do ser humano. Isto é, quando não se trata apenas de desenvolver uma determinada capacidade, mas de atualizar a própria condição humana.

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3. O INCONDICIONADO

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A questão da potência foi um assunto central na tradição humanista, aquela que tem definido o ser humano, justamente, em virtude de sua capacidade de criação e de auto-criação. Tal é o caso de uma das obras fundamentais do humanismo moderno: a Oratio de Hominis Dignitate (Discurso sobre a dignidade do homem) do célebre humanista florentino Giovanni Pico Della Mirandola, redigido em 1486, um pouco antes da descoberta de América. No tratado de Pico Della Mirandola o homem aparece justamente como aquele que, tendo sido esgotados todos os moldes, é criado sem um rosto próprio, tendo por isso a faculdade de se inventar a si mesmo. Sua característica fundamental reside, precisamente, na ausência de características e, portanto, na potência de se criar a si mesmo segundo sua própria inventiva, podendo nessa aventura se assemelhar as bestas ou à divindade. O humano é definido pelo que não é, mas, sobretudo, pela sua possibilidade de ser, pela possibilidade de inventar seu próprio rosto, sua própria mascara, sua própria pessoa2. Daí que, pensar a formação humana esteja diretamente relacionado com pensar essa potência auto-poiética que define o homem em quanto tal. A potência humana é o reino do incondicionado, pois quando décimos que tempos a possibilidade de fazer algo, afirmamos, por uma parte, que podemos fazê-lo, que temos a força e a capacidade para fazê-lo, mas ao mesmo tempo, afirmamos que poderíamos não fazê-lo, ou seja, que a passagem do “não-ser” ao “ser” não se nos apresenta como uma fatalidade, mas como uma possibilidade. Por isso, poder fazer é, ao mesmo tempo, poder não fazer. Por isso o reino da criação tem se definido também na tradição humanista como reino da liberdade. Ter uma potência de criação e de auto-criação significa também ter a possibilidade de se furtar 2

Do lat. persōna, máscara de ator, personagem teatral, este do etrusco phersu, e este do gr. πρόσωπον.

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ao determinismo causal. De modo tal que, o humano, é concebido como tendo uma condição excepcional em relação às leis da natureza ou à ordem do sagrado. Num mundo regido por leis o homem se apresenta como portador de uma potência que o torna uma exceção em relação à determinação divina ou natural. A potência é o lugar do excepcional e implica uma constante ambivalência: pois, ter a potência significa, ao mesmo tempo, poder fazer e poder não fazer, do contrario a possibilidade se tornaria necessidade e seria devorada pelo destino ou a natureza. O filósofo italiano Giorgio Agamben faz notar num livro, de 2002, intitulado O aberto que na tradição ocidental o ser humano nunca tem sido definido de forma positiva, mas apreendido a través de uma divisão e uma articulação, no interior do próprio indivíduo, entre uma parte natural e outra sobrenatural. (AGAMBEN, 2002, p. 31-36). Como se fosse necessário primeiro delimitar uma região interior denominada natural ou animal para logo se distanciar dela, fazendo coincidir o humano, precisamente com essa distância. Em outras palavras: humano seria aquilo que, em nós, se furta à natureza e a suas leis de necessidade.

Maximiliano Valerio López

Em nossa cultura, o homem tem sido pensado como a articulação e a conjunção de um corpo e uma alma, de um vivente e um lógos, de um elemento natural (ou animal) e outro sobrenatural, social ou divino. Temos que aprender, pelo contrario, a pensar o homem como o que resulta da desconexão desses dois elementos e não pesquisar o mistério metafísico da conjunção, mas o mistério prático e político da separação. (AGAMBEN, 2007, p. 35).

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Como foi dito, na tradição humanista, o mais próprio do humano, se define em relação a essa interrupção da necessidade, a essa excepcionalidade, a essa distância em relação ao destino ou à natureza; distância sem a qual o humano não poderia ser concebido como tal. É precisamente essa condição

excepcional a que abre, segundo Agamben, no ser humano, a dimensão da linguagem, da política e da história.

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4. A POTÊNCIA HUMANA: IN-FÂNCIA E POÉTICA

Desde a antiguidade clássica tem se definido o ser humano em virtude de sua capacidade de falar e, por meio dessa fala construir uma sociedade política e não apenas gregária. Pois segundo Aristóteles é a palavra humana (o lógos) o que permite dizer o que é justo e injusto, conveniente e inconveniente, e é disso que se faz a polis (ARISTÓTELES, Política, 1253a 7-18). No âmbito da linguagem, vemos que a produção da palavra humana decorre, precisamente, de uma interrupção da necessidade natural. Os animais falam uma língua que lhes é ditada imediatamente pela natureza; neles a fala coincide com a necessidade natural. Os cachorros latem, os burros rebusnam, as ovelhas balam, mas, nos humanos, não há nada equivalente a uma língua natural. Daí que o mito babélico da pluralidade das línguas tenha constituído um mito (relato) exemplar nos estudos lingüísticos e filosóficos: pois, ao narrar a perda de uma linguagem natural, o mito narra a descontinuidade (a artificialidade) originaria do falar humano. Pois este falar se define, propriamente, por sua ausência de natureza, ou melhor, por apresentar uma descontinuidade em relação a ela. Agamben chamou a atenção para este fato no seu livro Infância e história, publicado em 1978, onde, para colocar de manifesto esta descontinuidade da língua humana em relação à natureza escolheu utilizar o conceito de “infância”. Agamben toma esta palavra remetendo-se a sua etimologia, marcada por um prefixo negativo in- (que dá a ideias de negação ou privação) ao qual se acrescenta a palavra latina fari (falar). A infância fica então definida como a “impossibilidade de falar” ou a ausência de fala. Mas não se trata para ele de uma impossibilidade absoluta, mas, antes, da impossibilidade de falar a partir de uma língua natural.

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Nesse sentido, aquilo do que no experimentum linguae se tem experiência não é simplesmente uma impossibilidade de dizer: trata-se, antes, de uma impossibilidade de falar a partir de uma língua, isto é, de uma experiência – através da morada infantil na diferença entre língua e discurso – da própria faculdade ou potência de falar (AGAMBEN, 2005, p. 14-15).

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A experiência humana da fala, a experiência da sua possibilidade de falar (e, portanto, a mais humana das experiências), coincide então com a experiência de essa descontinuidade em relação ao destino e a natureza. A escolha do termo infância resulta compreensível, pois, como já foi dito, o próprio da potência criadora humana é que ele se furta as determinações naturais ou divinas e, portanto, ela envolve simultaneamente uma potência negativa, a possibilidade de não criar, da não-fala, da in-fântia. Nada mais adequado então que exprimir a potência da linguagem humana a través de um conceito que enfatiza, simultaneamente, à possibilidade e a impossibilidade de falar. Assim, a diferença entre a linguagem animal e a humana, consiste para Agamben no fato de que, para falar, o ser humano deve habitar esse espaço vazio que separa, no próprio ser humano, seu “querer dizer” e seu “dizer” efetivo, sua potência de seu ato, sua virtualidade de sua atualidade. Infância é o conceito que utiliza Agamben para nomear a experiência da descontinuidade entre a natureza e a cultura, entre o corpo e a linguagem, mas também entre a virtualidade e a atualidade, com o qual se abre, no humano, a possibilidade de falar. Se a experiência do humano coincide com a experiência de essa potência, então a formação humana deveria endereçarse à salvaguarda dessa condição excepcional na qual se interrompe, no ser humano, a corrente da necessidade natural e os desígnios da ordem divina, abrindo a possibilidade de sua auto-criação. Formar humanamente um indivíduo significaria então, manter-lo aberto a sua própria potência. Mas, essa

potência é, como vimos, ambivalente, pois implica uma oscilação permanente entre o poder fazer e o poder não fazer. Habitar humanamente significaria então fazer a experiência de habitar a distância ou de essa descontinuidade em relação à natureza e ao destino. Se isto é verdade, se educar humanamente é manterse em relação à própria potência, então a educação não descansaria prioritariamente no método eficaz a través do qual se pode garantir a passagem de todas as potências humanas a seu ato, mas, sobretudo, na possibilidade de fazer experiência da própria potência, com toda a ambigüidade que ela implica, isto é, manter-se exposto a própria indeterminação. No entanto, essa indeterminação resulta, por momentos, intolerável, daí que as sociedades necessitem de diferentes dispositivos que permitam suportá-la, dando-lhe forma e sentido. No âmbito da linguagem, habitar humanamente significa habitar a distância entre a voz e a palavra, entre a língua natural dos animais e a produção humana da fala. Produção que só se torna possível fazendo a experiência da fragilidade humana. É fazendo a experiência de ter que dizer o que não se sabe dizer e de pensar o que não se sabe pensar que o ser humano se torna tal. É fazendo a experiência de esse não ter palavras para dizer o que se necessita dizer, que se pode falar humanamente. Por isso Heidegger tem dito, nas palavras de Holderlin, que é poeticamente como o ser humano habita o mundo (HEIDEGGER, 2000, p. 31). Pois a experiência poética não é outra coisa que a experiência de esse abismo interior da própria linguagem a que Agamben chama de infância. Mas trata-se também de uma experiência que pode resultar, por momentos, insuportável. Os animais são um com seu mundo, mas os humanos estando no mundo não estão, porém, totalmente integrados nele, por isso podem, por exemplo, experimentar o tédio. O tédio é um dos sentimentos que mais nos aproximam à condição excepcional do ser humano, nele o mundo se nos revela como, simultaneamente,

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próprio e alheio. O tédio é uma maneira de se afogar na ambigüidade da própria potência, em sua oscilação perpetua entre o poder fazer e o poder não fazer.

Maximiliano Valerio López

5. A CAPTURA DA ENTRETENIMENTO

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POTÊNCIA:

PRODUTIVIDADE

E

Nossa sociedade contemporânea conhece duas formas predominantes de evasão dessa condição ambivalente da potência: a ocupação laboral e o entretenimento. O trabalho humano é concebido como uma ação eficaz tendente a consecução de objetivos predeterminados: a produção de bens e serviços. Sua figura contraria, e complementar, foi durante muito tempo o descanso. Trabalhamos para ganhar a vida e descansamos para recuperar forças, nos alimentar, dormir, e voltar ao trabalho. Durante os primeiros anos da revolução industrial foi necessária uma grande operação educacional e filantrópica para quebrar as formas cíclicas e ritualizadas de trabalho agrícola e preparar as populações para o trabalho industrial e sua nova temporalidade: uma longa jornada de trabalho e uma pequena porção de tempo para o descanso. Ouve que construir novos dispositivos técnicos e instituições capazes de administrar as populações para esse novo mundo de produção e consumo. O sistema educacional moderno foi uma ferramenta importante nesse processo. Daí que o trabalho industrial e os conceitos, procedimentos e atitudes que o acompanham tenham estado no âmago da criação e a expansão de nosso sistema educacional. A escola teve a missão de preparar as grandes massas campesinas para o trabalho industrializado e para o mundo do comercio, quer dizer, para a modernidade, para a civilização. O desenvolvimento dos grandes sistemas de ensino está marcado pela tensão entre o campo e a cidade, entre classes populares e elites. A escola educa para o trabalho e, especificamente para o trabalho industrial, para a produção. Esta tarefa está acompanhada de uma perspectiva moral que condena a preguiça e faz do trabalho uma virtude. A escola exalta a disciplina, a higiene, o amor ao trabalho, e ensina as

técnicas para realizá-lo corretamente. A ideia reguladora que sobrevoo toda esta concepção industriosa (ao mesmo tempo técnica e moral) foi a noção de progresso. Com o advento da chamada sociedade pós-industrial a escola perde seu lugar tradicional e seu sentido no processo modernizador: por uma parte, porque perde o monopólio da formação, pois se torna cada vez mais fácil aprender por outros meios que concorrem com a escolaridade formal, por outra parte, porque a escola deve lidar com um elemento novo “a gestão do prazer”. Desde princípios do século XX o prazer faz seu ingresso no cenário escolar: agora há que aprender de forma inteligente e divertida, juntando o útil ao agradável. Com o movimento dos pioneiros da Escola Nova, irrompe a crítica à educação tradicional e a necessidade de aprender de forma ativa e prazerosa. Na segunda metade do século XX o professor vá se tornando cada vez mais um animador e a escola vá incorporando os paradigmas do mundo do entretenimento. Se no século XIX se descansa para poder voltar a trabalhar, conforme avança o século XX pode se dizer que se trabalha para poder sustentar o entretenimento (a TV a cabo, as férias, o conforto, etc.). O entretenimento se mistura com o consumo e este último se apresenta como um elemento tão importante quanto a produção no sistema industrial. Mais consumo significa mais circulação e mais acumulação de capital. Uma economia saudável é aquela onde as pessoas trocam o carro todos os anos e, ante as crises econômicas a mensagem governamental é sempre “não parem de consumir”. Ao primeiro período da industrialização correspondia uma escola disciplinar ancorada na noção de trabalho e uma moral que tinha como referência a noção de esforço; à sociedade contemporânea parece corresponder uma escola que misture eficácia e consumo, e onde a moral se orienta pela noção de felicidade, e esta se entende como gestão inteligente do prazer. Entretenimento e trabalho constituem duas maneiras complementárias a través das quais a sociedade contemporânea dá forma e sentido a esse sentimento ambivalente decorrente

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da condição indeterminada da potência humana. Ambas constituem formas de suturar a ferida que suspende no humano a determinação animal. Ambas constituem duas maneiras de se furtar a esse sentimento indeterminado e angustiante que às vezes se manifesta na forma do tédio. A sociedade industrial pretendeu tender uma ponte sobre o vazio, uma ponte técnica, que orienta a potência para a produção. A escola foi então o lugar onde realizar: onde a potência devia se transformar em ato, em ato produtivo. A sociedade contemporânea transforma a potência em desejo e o desejo em consumo e, assim, orienta o aberto em direção a uma carência que jamais se preenche, uma falta produtiva. Se o modelo da escola moderna foi a fábrica, o modelo da escola atual parece ser os set televisivo. Mas poderíamos nos perguntar se é possível conceber a escola como um lugar privilegiado onde manter aberta a relação com a potência criadora do humano. Perguntar se é possível uma experiência radical do aberto na escola. Não estou me referindo ao desenvolvimento da criatividade, colocada hoje ao serviço da produção e do consumo. Nem estou querendo pensar a escola como lugar de efetuação de uma serie de capacidades operativas úteis. Pelo contrario, gostaria que nos interrogássemos acerca da possibilidade de pensar a escola como um locus privilegiado para fazer uma experiência radical da potência humana, em toda sua indeterminação e ambigüidade. Renunciando, tanto ao divertimento, quanto a produtividade.

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6.

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O FESTIVO: FILOSOFIA E IN-OPEROSIDADE

Para pensar essa experiência radical da potência humana Giorgio Agamben tem apelado ao conceito de “festivo”. Todas as culturas conhecem algum tipo de ritual, onde a comunidade se vincula com o ancestral a través de cantos, danças, banquetes, sacrifícios, etc. Estes rituais abrem, a través de formas festivas, a dimensão originaria do humano, isto é, do político, do histórico e do poético. O festivo é,

nesse sentido, a interrupção do mundo da necessidade. Nos dias festivos se come, mas não se come para se alimentar; caminha-se, mas não se quer chegar a nenhum lugar, apenas se passeia; fala-se, mas não para dar o pedir informação ou decidir sobre assuntos importantes, apenas se conversa; se trocam objetos, mas não para comerciar, se dão presentes. O banquete, o passeio, a conversa, o presente, são muito mais do que atividades prazerosas ou divertidas, elas são formas de in-operosidade festiva. Todo o que se faz nos dias festivos tem esse caráter que Agamben denominaria “in-operoso”. A sociedade industrial tem despojado essas atividade de seu caráter in-operoso. Nela, o passeio tende a se transformar em esporte, o banquete em “evento social”, a conversa em diálogo construtivo. Multiplicam-se os expertos que nos assessoras acerca de como aproveitar o tempo livre, como ficarmos saudáveis, como organizar um jantar com amigos, sobre como fazer mais eficaces e produtivos nossos gestos cotidianos mínimos. Mas o festivo se caracteriza, justamente, pela sua ausência de produtividade, ou melhor, pela possibilidade de produzir uma experiência radical do fazer humano, que se furta a necessidade, à utilidade e a diversão. Será possível fazer lugar na escola para essa experiência radical da potência? Será possível pensar um lugar para o festivo dentro do espaço escolar? Trata-se de pensar um espaço e um tempo escolar que não seja nem divertido nem produtivo, sem que por isso deixe de ser valioso. Talvez o problema da potência possa ajudar a esclarecer o lugar da filosofia na escola. A filosofia, não a disciplina filosofia, mas o ato de pensar filosoficamente, pode ser concebido como uma forma do festivo no pensamento. Pois a filosofia não é “útil” no sentido em que são úteis os conhecimentos práticos, nem divertida, no sentido em que é divertida uma brincadeira. Ela é, antes, una maneira de se manter aberto a potência do pensamento, em toda sua ambigüidade e indeterminação.

Habitar poeticamente a educação: notas sobre a relação entre potência e temporalidade

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REFERÊNCIAS

Maximiliano Valerio López

AGAMBEN, Giorgio. Infância e história: destruição da experiência e origem da história. Belo Horizonte: UFMG, 2005. ______. O aberto: o homem e o animal. Buenos Aires: Adriana Hidalgo, 2007. ARISTÓTELES. A Política. Trad. Julian Marias; Maria Araujo. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1983. CASTELLO, Luis e MÁRSICO, Claudia. Oculto nas palavras. Belo Horizonte: Autêntica, 2007 HEIDEGGER, Martin. Holderlin y la Esencia de la poesía. Barcelona: Antropos, 2000. PAZ, Octavio. La casa de la presencia: poesía e historia. Obras completas. v. 1. México: FCE, 1995. PICO DELLA MIRANDOLA, Giovani. A dignidade do homem. São Paulo: Escala, 1985 PLATÃO. O Banquete. Coleção Os pensadores, vol. III. São Paulo: Abril. S.A., 1972.

Data de recebimento: novembro de 2013 Data de aceite: junho de 2014

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UM EXERCÍCIO QUE FAZ ESCOLA: NOTAS PARA PENSAR A INVESTIGAÇÃO EDUCACIONAL A PARTIR DE UMA EXPERIÊNCIA DE FORMAÇÃO NO RIO DE JANEIRO

Um exercício que faz escola: notas para pensar a investigação educacional a partir de uma experiência de formação no Rio de Janeiro

Walter Omar Kohan1

Resumo

O presente trabalho apresenta uma experiência prática de formação no campo da filosofia da educação realizada junto com Jan Masschelein (Universidade Católica de Louvain); Wim Cuyvers, Jorge Larrosa (Universidade de Barcelona) e Maximiliano López (Universidade Federal de Juiz de Fora), além de setenta estudantes, entre belgas e brasileiros. Situo a experiência, descrevo seu marco teórico e metodológico e analiso alguns dos trabalhos resultantes dela. O eixo central do exercício é o conceito escola, ressignificado a partir de sua etimologia, como a materialização do tempo livre (skholé). Nesse sentido, a escola compreende quatro dimensões: separação (do tempo afirmado nos campos social, econômico e político); profanação (dos sentidos socialmente consagrados ou naturalizados); atenção (que torna o mundo interessante) e amor público (pelas coisas do mundo e o mundo como tal). Depois de tecer algumas considerações sobre o valor do exercício, apresento – apenas a título de primeira elaboração sobre o tema – o conceito de escola nômade. Palavras-chave: Escola; Pesquisa educacional; Experiência.

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Walter Omar Kohan é Professor Titular de Filosofia da Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e do Programa de PósGraduação em Educação (PROPED) da UERJ. E-mail: [email protected]

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Abstract

Walter Omar Kohan

This paper presents a practical experience of formation in the field of philosophy of education held together with Jan Masschelein (Catholic University of Louvain); Wym Cuyvers, Jorge Larrosa (University of Barcelona) and Maximiliano López (Universidade Federal de Juiz de Fora), and seventy Belgian and Brazilian students. I place the experience, describe its theoretical framework and methodology and analyze some outcomes from it. The central concept of the exercise is school reconstructed from its etymology, as the embodiment of free time (skholé). In this sense, school includes four dimensions: separation (of time as it is affirmed in the social, economic and political framework); profanation (of the senses socially consecrated or naturalized); attention (that makes the world interesting) and public love (to the things of the world and the world as such). After some considerations about the value of exercise, I present - only as a first elaboration on the theme - the concept of nomadic school. Keywords: School; Educational research; Experience.

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UM EXERCÍCIO QUE FAZ ESCOLA: NOTAS PARA PENSAR A INVESTIGAÇÃO EDUCACIONAL A PARTIR DE UMA EXPERIÊNCIA DE FORMAÇÃO NO RIO DE JANEIRO

Um exercício que faz escola: notas para pensar a investigação educacional a partir de uma experiência de formação no Rio de Janeiro

O emancipado é um homem que anda sem parar, circula e conversa, faz circular os sentidos e comunica o movimento da emancipação J. Rancière

O campo da filosofia da educação abrange trabalhos em duas áreas conexas mas distintas. Por um lado, a filosofia como reflexão teórica sobre o fenômeno educacional em suas diversas dimensões. Por outro lado, o que poderíamos mais propriamente chamar de ensino de filosofia, isto é, uma filosofia na educação, a filosofia como disciplina, ou exercício ou experiência, inserida na prática educacional em seus distintos níveis. Embora claramente relacionadas – tanto que poderia se afirmar que a segunda é uma forma da primeira –, ambas podem também ser exercidas separadamente. Justamente isso é o que acontece no Brasil, onde essa separação tem espaços institucionais diferentes. A primeira possibilidade aparece mais claramente um grupo de trabalho na Associação Nacional de Pós-Graduação em Educação (ANPEd) e a segunda na Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (ANPOF), sob o título de “Filosofar e ensinar a filosofar”. Longe de afirmar que não existam conexões e inter-relações entre ambos os espaços, a distinção traçada permite pensar as especificidades entre esses dois campos, que compartilham uma franca expansão e crescimento no país. Aquela primeira possibilidade, a filosofia da educação, é um campo predominantemente teórico, geralmente ligado

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ao estudo de um autor do campo filosófico a partir do qual a reflexão educacional ganha força e sentido. Ao contrário, o campo do ensino de filosofia costuma estar mais associado à “prática” e os embates que ela gera, nos seus distintos níveis, à inclusão da filosofia nos diversos níveis educacionais. Certamente, trata-se de uma distinção forçada e reducionista e o próprio trabalho que estou apresentando é uma prova disso na medida em que relata uma experiência prática de formação em filosofia da educação recentemente realizada na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) junto com a Universidade Federal Fluminense (UFF). Eis, então, o que introduziremos a seguir; um exercício “teórico-prático” de filosofia da educação. Pelos efeitos de recentes reformas no seu sistema educacional, alguns filósofos da educação europeus andam por caminhos semelhantes aos traçados por seus pares latinoamericanos, como resultado das reformas neoliberais que afetaram a nossa região nos anos noventa. Assim, alguns deles têm insistido muito nos últimos anos numa crítica do que eles chamam do predomínio do paradigma da aprendizagem no discurso educacional de nosso tempo. Um exemplo é Gert Biesta. Dentre outros trabalhos, em Beyond Learning. Democratic Education for a Human Future (New York: Paradigm, 2006), Biesta senta as bases do que considera uma teoria da educação a partir de uma crítica da maneira em que a linguagem da educação, ou seja, a forma em que se fala das questões ou problemas educacionais, tem sido encurtada a uma linguagem da aprendizagem. Desse modo, se reduziria o discurso educacional a um discurso sobre a aprendizagem. Expressões como “era da aprendizagem”, “aprender a aprender”, “aprendizagem continuada” e outras semelhantes, seriam mostras dessa tendência. Biesta faz uma crítica dessa passagem e propõe um retorno a uma linguagem educacional per se, que dê conta da questão principal a ser tratada, a da educabilidade do ser humano, em uma era pós-humanista. Nisso concentra sua obra mais recente.

Outro destacado filósofo da educação que compartilha uma preocupação semelhante é o belga Jan Masschelein. Em trabalhos recentes, como “Experimentum scholae” e “School - a matter of form”, associa essa ênfase na aprendizagem a fatores contemporâneos como a pressão consumista e produtivista do mercado, a tendência a fazer dos sujeitos seres empreendedores, que precisam estar dotados das competências, habilidades e ferramentas para tal. O aprender seria uma das forças produtivas mais valiosas pelo seu efeito multiplicador, na medida em que ele constantemente agrega valor ao sujeito e assim alimenta a acumulação do capital humano. Dessa forma, os discursos pedagógicos sobre o aprender careceriam de qualquer força emancipadora ou libertadora. Ao contrário, funcionariam em acordo ao sistema. Assim como Gert Biesta prefere pensar em termos de educação e não de ensinar e aprender, Jan Masschelein tem concentrado seus esforços teóricos numa resgate do termo escola. Pelo interesse que têm gerado suas ideias entre nós, oferecerei algumas delas a seguir, apresentando uma experiência prática de formação realizada no Rio de Janeiro. Dividirei a apresentação em alguns momentos. São eles: 1) “Um per-curso de-formação”, onde descreverei brevemente a experiência em questão e introduzirei o seu marco teórico e metodológico; 2) “O cinema de Pedro Costa e a pesquisa educacional”, no qual exporei a intervenção de outro filósofo da educação europeia, Jorge Larrosa, nessa experiência; 3) “A máquina antropológica”: será a vez da parte correspondente a Maximiliano López; 4) “O lugar da escola”, onde narrarei a dimensão teórica da experiência no que ela diz respeito a repensar a escola; 5) “Notas para pensar uma experiência”; nele relatarei algumas produções do exercício; e finalmente em 6) “Uma escola nômade” proporei algumas considerações pessoais sobre a experiência.

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UM PER-CURSO DE-FORMAÇÃO

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Farei a apresentação da forma em que esse resgate do termo escola se mostrou entre nós, a partir de uma experiência de formação que organizamos, junto com Maximiliano López na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e na Universidade Federal Fluminense (UFF), e que teve a participação, além de Jan Masschelein, de Wim Cuyvers e Jorge Larrosa. Masschelein trabalha na Universidade Católica de Louvain, onde coordena o Laboratório para Educação e Sociedade, na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação. Wim Cuyvers é um arquiteto que abandonou suas credenciais e trabalha em projeto educativo de um Refúgio nas montanhas do nordeste da França. Jorge Larrosa, bem conhecido entre nós, é professor na Universidade de Barcelona. Foram dez dias intensos de trabalho entre 29 de outubro e 9 de novembro, junto a 33 estudantes belgas, 36 brasileiros do Rio de Janeiro, São Paulo, Espírito Santo, Minas Gerais, Distrito Federal e Piauí. O curso foi organizado ao mesmo tempo pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da UERJ e a Pró-Reitoria de Extensão da UFF. No primeiro dia do curso foram oferecidas as bases teóricas. Uma leitura cuidadosa do seu título oferece algumas pegadas interessantes: “Sobre a escola (pública) e o ato educativo ou sobre a experiência da pesquisa como verificação da igualdade. Encontrar uma escola pública em/para o Rio: andar e falar como práticas de pesquisa educativa”. Tratavase, no centro, de pensar a escola pública e de fazer uma pesquisa comprometida com ela. A cidade do Rio faria parte do projeto: seria uma pesquisa situada nesse contexto urbano. A igualdade estaria no início, como orientadora da busca. A escola pública, ao contrário, no final, como possibilidade de encontro. Andar e falar seriam atividades centrais da prática de pesquisa. A pesquisa poderia se tornar uma experiência. A escola e a igualdade estão colocadas invertidas de seu modo mais habitual, em que aquela se situa no início e esta no final:

parte-se usualmente da escola e busca-se, nela, promover a igualdade. O título do curso parece sugerir um movimento contrário: parte-se da igualdade para, a partir dela, encontrar uma escola. O marco teórico e metodológico partilhado no primeiro dia confirmou, em certa forma, esta leitura. Por um lado, J. Masschelein entende a pesquisa em educação diferenciada da pesquisa científica. São três as suas marcas principais: a) o pesquisador envolve-se na pesquisa de uma forma que ele próprio se transforma; nesse sentido, a pesquisa em educação se caracteriza por um trabalho sobre si do pesquisador: nesse primeiro sentido, uma pesquisa é educacional por que coloca em questão, em primeiro lugar, o próprio pesquisador; b) a educação é de alguma forma o tema ou problema que está sendo pesquisado; nesse segundo sentido, uma pesquisa é educacional por que trata de educação, por que permite elucidar ou problematizar uma questão educacional, por que confere sentido a uma prática educacional; c) finalmente, na pesquisa educacional trata-se de tornar algo público, de tornar-se atento ao mundo em sua verdade e disponibilizar ela para qualquer um. Nesse terceiro sentido, uma pesquisa educacional disponibiliza uma percepção sobre o mundo que não era perceptível. Eis seu valor ou sentido educacional. Valeria a pena se questionar o que seria preciso acrescentar à pesquisa educacional assim definida por Masschelein para que ele se torne filosófico-educacional. A partir desse marco, a proposta foi que o grupo iria andar pela cidade do Rio de Janeiro. Dividiu-se o grupo em trinta e três duplas (cada uma formada por um estudante belga e um brasileiro) e depois distribuiu-se cada dupla em um setor da cidade, de modo a poder cobri-la inteiramente. Dentro dos setores, traçaram-se grandes linhas que deveriam ser percorridas e ofereceram-se ao grupo uma relação de dezesseis parâmetros indicadores de espaço público que deveriam ser marcados nessas linhas. Eles incluíam coisas tão dessemelhantes quanto bancos para se sentar, lugares de

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encontro sexual, pontos de consumo ou tráfico de drogas, caixas eletrônicos, prédios abandonados, postos de polícia fixos ou móveis, telas de uma e duas dimensões, graffitis, cenas que representem o mal ou atos de amor público (ou seja, expressões de amor não pessoal pelo mundo). Alem desses parâmetros, solicitou-se que cada participante levasse um caderno de anotações de livre preenchimento e que registrasse também os movimentos realizados fora do trajeto planejado. Os grupos andaram, andaram e andaram, ao todo foram percorridos mais de 1200 km e mapas de cada um dos parâmetros foram traçados sobre um papel vegetal que permitiu a correlação e o contraste entre eles. A partir de esse andar pela cidade, os participantes iriam perceber marcas de espaços públicos e oferecer, individualmente, uma frase e um desenho que outorgasse forma a um primeiro esboço de projeto de uma educação para todos. Durante o curso, outros encontros foram organizados para respaldar as observações e oferecer diferentes elementos que permitissem ampliar os sentidos da pesquisa. Jorge Larrosa trabalhou a partir de alguns filmes de Pedro Costa para ilustrar a experiência de um modo de fazer cinema inspirador para a pesquisa educacional. Wim Cuyvers elaborou um mapa das relações entre arquitetura e educação, de maneira a pensar o espaço escolar a partir de seu caráter público. Maximiliano López traçou as linhas de funcionamento da “máquina antropológica” e de como ela se incorpora a certo ideário cultural, pedagógico e político na América Latina. Volveremos a eles no desenvolvimento do texto. Eu mesmo me concentrei em pensar a relação entre os que ocupam os lugares de ensinar e aprender na relação pedagógica, a partir dos casos de Sócrates (Platão) e J. Jacotot (J. Rancière). Numa mesa redonda na UFF foi abordada a problemática de uma “educação sem condições”. Nela, Jan Masschelein voltou a apresentar as linhas principais de seu modo de pensar a pesquisa em educação, desde sua inspiração em autores como H. Arendt e J. Rancière. Fez também referência a sua inspiração em Fernand Deligny, em

especial seu filme Ce Gamin, là. Wym Cuyvers mostrou os traços principais de seu projeto político-pedagógico “Refúgio” e as marcas que o sustentam. Jorge Larrosa, a partir de uma inspiração arendtiana, apresentou a figura de Herodes com textos de Peter Hanke e a do Ogro a partir de citações do romancista francês Michel Tournier. Com o fundo do quadro “a revista das escolas”, do belga Jan Verhas em 1880, buscou problematizar a escola à qual entregamos nossos filhos, ao Ogro que as habita, por exemplo, nas formas de Mickey Mouse ou a Escola do Futuro. No meu caso, tentei pensar, a partir dos elementos oferecidos na própria mesa, o significado e o sentido do que poderia significar para nós “fazer escola sem condições”. Em diversos momentos os professores do curso – que mostraram uma dedicação e disponibilidade completa ao mesmo - atenderam diversas consultas dos estudantes sobre as suas observações. Numa última reunião foram exibidos e comentados os trabalhos que, no caso dos estudantes belgas, seriam apenas o início de um posterior desenvolvimento até a apresentação de um projeto final de “educação para todos” situado no Rio de Janeiro, a ser feito na Universidade de Lovain até o final do ano acadêmico em curso. Uma tarde de avaliação conjunta encerrou o exercício, quando uma mistura de cansaço e saudade já parecia ter se apoderado do grupo.

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O CINEMA DE PEDRO COSTA E A PESQUISA EDUCACIONAL

Jorge Larrosa trabalhou com imagens de dois filmes do diretor português: O quarto de Vanda e Juventude em marcha. Por um lado, tentou mostrar em que medida nesses filmes aparecem temáticas próprias do curso. Mas, por outro lado, o aspecto que mais interessou Jorge é a forma em que Pedro Costa reflete sobre a experiência de fazer cinema, pois ali aparecem pontos de encontro importantes com a experiência de pesquisa educacional que estávamos realizando: ambas exigem uma pesquisa sobre o mundo e com o mundo, o que por sua vez chama a uma forma específica de atenção e presença

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no mundo e, em última instância, a se colocar em jogo do pesquisador, do educador, do cineasta. Eis alguns dos motivos dessa força comum ao educador e ao cineasta: fazer um filme que não seja um filme (com menos gestos que os exigidos pelo cinema culto, de moda), que não seja “como deve ser um filme”; um filme sem dinheiro em demasia, sem excessos, sem distrair-se de si mesmo; um filme com tempo, sem urgências; um filme fruto de um convite e de uma aceitação: aceitação não só do convite realizado para que ele fosse feito, mas também aceitação do mundo tal como existe, tal como ele é, das coisas tais como elas são; de uma suspensão do julgamento e da crítica; um filme produto de um trabalho como qualquer outro; consistente em dar certa ordem ao que vemos com atenção, perseverança e delicadeza no mundo; um filme que pense, a certa distância, o espaço e sua ocupação pelos seres humanos, por um ser humano; um filme que esteja menos preocupado em levar uma nova luz ao mundo e que possa, ao contrário, se iluminar da luz que já existe no lugar do mundo em que ele penetra; com uma câmara o mais imóvel possível, para captar, desde essa imobilidade, o movimento do real; um filme que resista as próprias intenções, que não se faça desde um saber demasiadamente sábio, certo, seguro de si; finalmente, um filme que se encarne numa atitude própria de quem está pedindo esmola e simplesmente não sabe o que vai receber. O convite feito por Larrosa diz respeito a experimentar pensar cada uma dessas inscrições para a pesquisa educacional. O que daria a pensar se cada vez que aparece nas linhas anteriores a palavra “filme” lêssemos a expressão “pesquisa educacional”?

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A “MÁQUINA ANTROPOLÓGICA”

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Maximiliano López partiu do primeiro monumento do Estado moderno brasileiro, construído em homenagem a dom Pedro I, na cidade do Rio de Janeiro, na antiga Praça da Constituição (atual Praça Tiradentes). O monumento é um documento exemplar, uma metáfora da “máquina antropológica”, ou seja, um mecanismo de invenção ou

produção do humano. No monumento, superpõem-se duas oposições fundamentais para a modernidade: humano / animal e civilizado / selvagem. Ele se apresenta como uma estrutura orgânica e hierárquica que mostra de forma paradigmática o itinerário espiritual de Ocidente, sua cosmogonia e seu modus operandi. A partir de ideias de G. Agamben, M. López mostra como, nessa metáfora da Modernidade, “o humano” é constantemente incentivado e produzido por um mecanismo de divisão e diferenciação em relação a um elemento que, no próprio interior do humano, considera-se não humano: animal, instintivo, natural. Assim, a humanidade não tem um conteúdo próprio ou específico a não ser a sua diferenciação e superação do que a nega. É isso que o monumento a Dom Pedro I ao mesmo tempo expressa e promove: um desejo contínuo e infinito de humanização. Desde uma perspectiva geopolítica, esse movimento de humanização supõe a separação entre o centro e a periferia, entre o desenvolvido e o atrasado, entre a civilização e a barbárie. Com a conquista da América, a máquina antropológica se lança à humanização dos primitivos, os naturais, os que, paradoxalmente, são também os donos da terra e serão, por isso, perseguidos e combatidos. Ela ocupa todos os tempos: puxa do passado para o futuro, do atraso para o progresso; e também ocupa todos os espaços: das colônias para as metrópoles, do campo para as cidades. A máquina antropológica tem também uma dimensão gramatical: a letra escrita, que articula a superação da natureza pela cultura, a orienta em sua passagem do sensível ao inteligível, como uma promessa ao mesmo tempo orientadora e impossível de ser cumprida. A máquina mostra assim sua cara política explorada particularmente no campo das instituições pedagógicas que a realizam e a tornam um projeto civilizatório para os “novos povos”. Eis uma forma de “articular” temporalidade (progresso), alteridade (assimilação do outro) e linguagem (gramatizalização), bem conhecida (padecida) por nós na América Latina.

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O LUGAR DA ESCOLA

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Estamos habituados a pensar que a escola (pública) está ali e entramos nela com nossas melhores intenções. A escola está no início e a penetramos para intervir, para melhorá-la, para transformá-la. Diferentemente, J. Masschelein pensa a escola a partir de sua etimologia grega, skholé, como tempo livre. Originada no mundo grego, a escola que Masschelein reconstrói não reproduz a ordem social, ao contrário, ela afirma um espaço e tempo diferenciados que, de alguma maneira, coloca em questão os espaços e tempos sociais. Como tempo livre, a escola tem quatro características principais. A primeira é a suspensão. Por ela, a escola comporta una interrupção do tempo que predomina no campo social, econômico e político. De alguma forma, esse tempo não rege na escola que iguala os estudantes enquanto estudantes e lhes oferece a possibilidade de deixar a particularidade de sua história familiar e se tornar junto aos outros, simples e singularmente, um estudante. Nesse sentido, a escola é um espaço tempo igual para todos. Em segundo lugar, a escola é espaço-tempo de profanação na medida em que oferece aos estudantes uma experiência do tempo liberada daquela considerada sagrada pela sociedade. Na escola, as palavras, as verdades, os saberes são de alguma forma liberados de seu uso dominante e dispostos para uma nova re-apropriação e criação comum. Nessa dimensão, são profanados os sentidos essenciais de uma sociedade e, também por isso, desde seu início a escola foi considerada perigosa e teve seus detratores. Em terceiro lugar, a escola gera atenção, ela torna algo do mundo interessante e faz com que os estudantes se atentem para o que não consideravam. Assim, a escola é um espaço e tempo livres onde algo é oferecido, sem estabelecer de antemão o sentido dessa apropriação. Ao contrário, ela não é um lugar ou tempo de passagem (do passado para o futuro), nem de preparação (para a vida, para o futuro), nem de projeto ou iniciação (da família para a sociedade). É um tempo e espaço de olhar para o mundo suspendendo e profanando o modo social de olhar e atentando para ele

de forma a experienciá-lo como quem o experimenta pela primeira vez através do estudo e do exercício escolares. No curso, Jan Masschelein acrescentou uma quarta característica: o amor público, ou seja, a escola é o espaço-tempo onde se experimenta, de forma comum, compartilhada, um amor pelo mundo tal como ele é, pelas coisas do mundo, práticas onde se ama em comum certa dimensão do estar no mundo. Um olhar a essas quatro características (suspensão, profanação, atenção, amor público) mostra que de fato o tempo vivido nas instituições escolares parece bastante distante dessa experiência. O tempo que predomina nas escolas está ditado pelo mercado (laboral), pelos parâmetros curriculares, pelos programas, pelos exames nacionais, pelos ingressos às universidades... ou seja, é bastante evidente que nas escolas não há condições para uma experiência escolar do tempo, no seu sentido originário. Nesse aspecto, embora pareça contraditório, não parece haver escola nas escolas, elas não parecem dispor das condições para um estudo e um exercício propriamente escolares, essa exigência de suspensão, profanação, atenção e amor público que caracteriza a escola, como tempo livre, desde seus inícios. Será isso mesmo? Podemos então concluir que não há escola nas escolas? Ou, então que a escola está hoje mais fora do que dentro das escolas? Ou haverá que deixar lugar para uma experiência do tempo escolar, mesmo que esporádica, episódica e inconstante, nas próprias instituições escolares? Com essas prerrogativas e esses quem sabe com alguns desses e outros interrogantes, à busca de espaços públicos que permitissem vislumbrar uma vivência escolar do tempo, os participantes do curso, não sem hesitações, temores e questionamentos empreenderam as ruas da maravilhosa, frenética e confusa Rio de Janeiro. À busca das condições para se fazer escola. Isso lembrou J. Larrosa a partir de uma citação de Constantin Brancusi: “O difícil não é fazer coisas. O que é difícil é colocar-se no estado de fazê-las”. Colocar-se no difícil estado de fazer escola, eis talvez um dos sentidos principais do presente curso.

Um exercício que faz escola: notas para pensar a investigação educacional a partir de uma experiência de formação no Rio de Janeiro

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NOTAS PARA PENSAR UMA EXPERIÊNCIA DE FORMAÇÃO

Walter Omar Kohan

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Não foi fácil para muitos dos participantes aceitar o convite proposto. As razões são múltiplas: desde as diferenças nas culturas do trabalho acadêmico do Brasil e da Bélgica, passando pela dificuldade para dispor do tempo requerido pelo exercício, até certa resistência a adotar critérios sentidos como rígidos e renhidos com a própria experiência. Algumas tensões eram notórias: entre as diversas exigências, práticas e expectativas dos estudantes brasileiros e belgas; entre a aposta pelo tempo livre e a extenuante ocupação do tempo para poder andar as distâncias exigidas pela cidade à busca dos parâmetros pré-estabelecidos; entre o sentido de pensar a escola (pública) a partir de mapas indicadores de espaços públicos que mostravam o público como o “disponível para qualquer um”, sem uma desejada problematização dos diferentes sentidos do público no campo educacional; entre a longa e trabalhosa tarefa de traçar os mapas e a fulminante produção de um trabalho final a partir deles sem as condições e o tempo necessários para elaborar conceitualmente essa transposição. Contudo foi também notória a riqueza da experiência de formação a partir da leitura de alguns dos trabalhos expostos e das escritas promovidas a partir do próprio curso. Mesmo que, a inspiração esteja mais dirigida ao processo que ao produto, ao andar do que ao ponto de chegada, algumas sentenças apresentadas pelos estudantes no último dia do curso ilustram essas três dimensões da pesquisa educacional elencadas neste mesmo trabalho: se colocar a si mesmo em questão; trabalhar uma questão educacional; tornar algo público. Tomamos três delas. A primeira: “A ruin is not a ruin” (“Uma ruína não é uma ruína”). Parece uma contradição e, ao mesmo tempo (mas não no mesmo sentido!) uma evidência: uma ruína não é apenas ou primeiramente uma ruína: ela é um começo, um habitat, um espaço público. O olhar atento transforma as coisas do mundo e nossa relação com elas. A segunda: “Pensando com os pés; tornando-se público

na procura de um refúgio”. Aqui o próprio corpo parece problematizado: os pés pensam; a cabeça talvez anda; não há funções ou sentidos fixáveis separadamente de um corpo em movimento. E o corpo, o eu, torna-se ele mesmo público se refugiando do que ameaça esse caráter. Os educadores não somos públicos, mas nos tornamos públicos na procura de um refúgio educacional, de um espaço-tempo livremente educador. Para terminar, um último exemplo: “Passar-ela: it´s a pleasure not to be but to be in between” (“Passar-ela: é um prazer não estar, mas estar entre”). Estar entre, uma paixão, um prazer, uma devoção no curso: andar a caminho, entre, nas pontes, nas entrevias, nos caminhos, andar, andar e andar, estar a caminho, estar entre, andar entre, caminhar entre, educar entre, entre-educar.

Um exercício que faz escola: notas para pensar a investigação educacional a partir de uma experiência de formação no Rio de Janeiro

UMA ESCOLA NÔMADE?

A princípio, a ideia de uma escola nômade parece um contrassenso, pela própria junção dos dois termos: como poderia uma escola se deslocar no espaço, sair do lugar, andar a caminho? Como poderia o nômade se fixar num espaço físico? Contudo, uma problematização dos dois termos em jogo permita talvez uma aproximação. Já vimos como, segundo J. Masschelein, a escola pode ser não apenas – ou não especificamente - a instituição escolar mas a materialização do tempo livre, entendido como tempo da suspensão, profanação, atenção e amor público. Da mesma forma, o nomadismo não precisa ser pensado única, e tampouco especialmente, em termos de deslocamento no espaço; ele pode ter mais a ver com uma intensidade do que com uma extensão, sua forma pode se encontrar muito mais na qualidade do espaço que na sua quantidade, na sua espessura muito mais do que na sua largura, na sua densidade muito mais do que na sua dilatação, na sua velocidade muito mais do que no seu movimento de translação; nômade é aquele para quem as coisas não têm estado fixo, que olha, atento, para a continuidade do que está sendo, aos desvios e fugas; ele não está preocupado consigo,

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mas com o fora, está aberto aos signos revolucionários no que existe, ao que demanda atenção, por isso ser nômade é uma forma de sensibilidade, de atenção em relação ao fora e seus habitantes; o nômade não olha o mundo desde uma posição de saber, mas se faz sensível aos saberes do mundo; afirma uma vida nômade, um modo nômade de viver. O nômade se joga no seu nomadismo: coloca seu corpo no encontro com outros corpos, de forma densa, intensa, persistente, perdurável, está atento às rupturas nos modos de pensar e viver “acomodados” ao sistema. É hospitaleiro a encontrar sempre novos rumos, outros inícios perante o estado de coisas, começando quase sempre de novo, como se cada ponto, linha, estação, cidade, país, mundo significasse retroceder ao início. Talvez isso tenha significado, para muitos de nós, a experiência aqui relatada: uma forma de se colocar novamente a caminho, de iniciar um novo percurso para pensar... a escola, a nós mesmos, a tantas palavras que ornamentam nossa forma de estar nas práticas e instituições educacionais que são as nossas.

Walter Omar Kohan

REFERÊNCIAS

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Além das notas tomadas no curso e na sessão de avaliação do curso no Núcleo de Estudos Filosóficos da Infância (NEFI/UERJ) em 22 de novembro de 2012, destaco: COSTA, Pedro. Uma porta fechada que nos deixa a imaginar. In: AA. VV. O cinema de Pedro Costa. Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil, 2010, p. 147-176. LARROSA, J. Una lengua para la conversación. In: Masschelein, J. y Simons, M. (Eds.) Mensajes e-ducativos desde tierra de nadie. Barcelona: Laertes, 2008, p. 45-56. MASSCHELEIN, J. Pongámonos en marcha. In: Masschelein, J.; Simons, M. (Eds.) Mensajes e-ducativos desde tierra de nadie. Barcelona: Laertes, 2008, p. 21-30. MASSCHELEIN, J. Experimentum Scholae: The World Once More … But Not (Yet) Finished. Stud Philos Educ, n.30, 2011, p. 529–535.

RANCIÈRE, J. O mestre ignorante. Belo Horizonte: Autêntica, 2002. SIMONS, M., MASSCHELEIN, J. Sobre el precio de la investigación pedagógica. In: Masschelein, J.; Simons, M. (Eds.) Mensajes e-ducativos desde tierra de nadie. Barcelona: Laertes, 2008, p. 129146. SIMONS, M., MASSCHELEIN, J. Hatred of Democracy ... and of the Public Role of Education? Introduction to the Special Issue on Jacques Rancière. Educational Philosophy and Theory, v. 42, n. 5-6, 2010, p. 509-522. SIMONS, M., MASSCHELEIN, J. The Hatred of Public Schooling: The school as the mark of democracy. Educational Philosophy and Theory, v. 42, n. 5-6, 2010, p. 666-682. SIMONS, M., MASSCHELEIN, J. School - A matter of form. In: Gielen P., De Bruyne P. (Eds.), Teaching art in the neoliberal realm. Realism versus cynicism. Amsterdam: Valiz, 2012, p. 69-83. SIMONS, M., MASSCHELEIN, J., LARROSA, J., (Eds). Jacques Rancière. La educación pública y la domesticación de la democracia. Buenos Aires/Madrid: Miño y Dávila, 2011.

Um exercício que faz escola: notas para pensar a investigação educacional a partir de uma experiência de formação no Rio de Janeiro

Data de recebimento: novembro de 2013 Data de aceite: junho de 2014

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OUTRAS CONTRIBUIÇÕES

DIFERENÇA, EMANCIPAÇÃO E CONSERVAÇÃO NA EDUCAÇÃO AMBIENTAL

Diferença, emancipação e conservação na educação ambiental

Miriam Leite1 Jacqueline Lima2

Resumo

Em tempos de certezas deslizantes e identidades instáveis, chama a atenção a persistência da dicotomização das abordagens mais frequentes da educação ambiental, que tendem a se apresentar divididas entre tendências críticas/ emancipatórias e conservadoras/comportamentalistas. Tal demarcação se constitui em relação às diferentes filiações políticas e epistemológicas desse campo, que abriga uma ampla multiplicidade de entendimentos sobre sociedade, ambiente e natureza. No entanto, a pesquisa sobre a EA escolar vem apontando o caráter reducionista dessa classificação, na medida em que expõe o hibridismo que, com frequência, marca os discursos docentes. Neste artigo, que se constrói na interseção de duas pesquisas sobre a educação escolar, exploramos possibilidades de desestabilização de tal binarismo, por proposições do pensamento da diferença, com destaque para a perspectiva pós-marxista da teoria do discurso, conforme desenvolvida pelos cientistas políticos Ernesto Laclau e Chantal Mouffe. Interessam particularmente suas discussões acerca das noções de diferença, articulação e emancipação, pelas questões que trazem ao paradigma epistemológico fundacionalista que sustenta as abordagens que pretendemos problematizar. Palavras-chave: ambiental.

Diferença;

Emancipação;

Educação

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Miriam Leite é graduada em História e doutora em Educação.

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E-mail: [email protected] Jacqueline Lima é graduada em Ciências Biológicas e doutora em Educação. E-mail: [email protected]

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Abstract

Miriam Leite Jacqueline Lima

In times of shifting certainties and unstable identities, the persistence of dichotomization in the most frequently adopted approaches to environmental education is striking. These approaches tend to be split between critical/emancipatory and conservative/behavioral lines of thought. This demarcation reflects the various political and epistemological views on society, the environment and nature which are present in this field. Research into environmental education has demonstrated the reductionist character of this classification, exposing the hybridism frequently present in the related discourses. In this article, which is based on the intersection of two lines of research, we explore the possibilities of destabilizing this binarism, focusing on the Post-Marxist Discourse Theory developed by the political scientists Ernesto Laclau and Chantal Mouffe. We place particular emphasis on their treatises on difference, emancipation and articulation and the issues they raise in relation to the foundationalist epistemological paradigm which is the basis for the approaches to environmental education we problematize. Keywords: Difference; Emancipating; Environmental education.

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DIFERENÇA, EMANCIPAÇÃO E CONSERVAÇÃO NA EDUCAÇÃO AMBIENTAL

Diferença, emancipação e conservação na educação ambiental

Não queremos mais a igualdade, parece. Ou a queremos menos. Motiva-nos muito mais, em nossas demandas, em nossa conduta, em nossas expectativas de futuro e projetos de vida compartilhada, o direito de sermos pessoal e coletivamente diferentes uns dos outros. (PIERUCCI, 1999, p. 7)

A citação do cientista político Antonio Pierucci abre esta discussão por nos lembrar da força e das dificuldades que marcam as questões da diferença nas sociedades da atualidade – demanda cada vez mais recorrente que convive com a resistência dos que a supõem em antagonismo aos consolidados ideais da igualdade. Por entendermos que essa oposição não somente é desnecessária, como é mesmo perniciosa para ambas as lutas, ao propormos trazer contribuições da perspectiva da diferença para abordar questões da Educação Ambiental/EA, iniciamos por situá-la fora dessa dicotomia. Seja em função dos horrores da intolerância na Segunda Grande Guerra, da experiência histórica de desrespeito aos direitos individuais por parte de regimes autoritários socialistas ou pela disseminação dos movimentos das chamadas minorias, o discurso da diferença aparece nos mais diversos contextos e sob distintas colorações políticas: o diverso tende a adquirir sentido forte de riqueza e a homogeneização tende a ser cada vez mais negativizada. Entretanto, no lugar de significar ruptura com os valores da igualdade, entendemos que ocorre um deslizamento semântico/político em que se ampliam os sentidos predominantemente atribuídos a tais valores. Não por acaso a valorização das diferenças é com frequência justificada

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por ideais tipicamente igualitaristas, como democracia e cidadania. Também no campo teórico-acadêmico das ciências humanas e sociais se fazem presentes as questões da diferença e as polarizações que podem implicar. Pensa-se a diferença em relação a problemas da identidade, de linguística e da constituição do social. Não se trata, contudo, de pensamento homogêneo, inclusive no que se refere a aspectos mais explicitamente políticos. A expressão perspectiva da diferença aqui nomeia, de modo um tanto fluido e genérico, conjuntos distintos de reflexão filosófica que apresentam em comum a ênfase no que se costuma identificar como questões da diferença para pensar problemáticas da contemporaneidade, bem como temas tradicionais daquilo que se configurou historicamente como a filosofia ocidental. Opera com uma concepção da diferença que se constituiu no contexto do pós-estruturalismo, em crítica à perspectiva estruturalista. Entre os muitos aspectos que se poderiam destacar, marca esta concepção a abordagem discursiva, que permite desnaturalizar tanto a diferença quanto as desigualdades socioculturais que dela podem advir, além do reconhecimento da instabilidade e da contingência como suas características constitutivas (PETERS, 2000; CULLER, 1997). Os caminhos e conclusões por que se passam e a que se chegam a partir de tais princípios são, no entanto, bastante plurais. Ao criticar um desses caminhos e conclusões, o filósofo esloveno Slavoj Zizek (1998, p. 176) apresenta o debate que interessa a esta reflexão:

Miriam Leite Jacqueline Lima

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Es como si dado que el horizonte de la imaginación social ya no nos permite considerar la idea de una eventual caída del capitalismo [...], la energia crítica hubiera encontrado una válvula de escape en la pelea por diferencias culturales que dejan intacta la homogeneidade básica del sistema capitalista mundial. Entonces, nuestras batallas electrónicas giran sobre los derechos de las minorias étnicas, los gays y lesbianas, los diferentes estilos de vida y otras cuestiones

de esse tipo, mientras el capitalismo continua su marcha triunfal.

Diferença, emancipação e conservação na educação ambiental

Novas formas de luta pela igualdade ou secundarização dessa bandeira? Os cientistas políticos Laclau e Mouffe (2004, p. 11) apontam uma resposta possível ao questionamento de Zizek quando explicitam distância “de certas formas do pósmodernismo”3: os autores reconhecem que a perspectiva da diferença comporta versões efetivamente apartadas de perspectivas igualitaristas que se ocupam de questões de ordem mais usualmente identificada como macrossocial, mas propõem, como se verá mais adiante, um modelo teórico de análise e atuação política, que articula igualdade e diferença em termos de discurso, e busca ressignificar o sentido e a possibilidade de agência no social contemporâneo. Também na pesquisa em Educação, a presença das teorias pós-estruturalistas e do perspectiva da diferença em geral é polêmica e se localiza de modo bastante desigual nos seus subcampos. Por exemplo, tomando-se como evento significativo a produção dos grupos de trabalho da ANPEd4, verifica-se que campos epistemologicamente próximos como Currículo e Didática incorporam de modo desigual as proposições da perspectiva da diferença: enquanto estudiosos do Currículo recorrem com bastante frequência a tal interlocução, autores identificados com a perspectiva da diferença são muitas vezes vistos com desconfiança em publicações do grupo de trabalho/ gt Didática da ANPEd (MARCONDES, LEITE e LEITE, 2011). Na Educação Ambiental, referências da perspectiva da diferença estão presentes em algumas publicações, com destaque para os trabalhos do grupo de pesquisa Cultura, 3 4

Todos os textos de Laclau e Mouffe estão em espanhol nos originais consultados. Os trechos de menor extensão foram por nós traduzidos, para facilitar a leitura. Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Educação.

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Ambiente e Educação, formado por pesquisadores do Programa de Pós-graduação em Educação da PUCRS e do Programa de Pós-graduação em Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Contudo, o levantamento do Estado da Arte realizada por Carvalho e Farias (2011), a partir dos trabalhos apresentados nos EPEA5, ANPEd e ANPPAS6, indica que esse referencial é pouco influente nas pesquisas do campo. Trata-se, portanto, de interlocução que não se coloca inédita para o campo da Educação Ambiental, porém se encontra pouco desenvolvida. Mas por que deveria avançar? Por que apostaríamos nessas teorizações? Este artigo pretende expor motivos para tal aposta. Resulta do diálogo iniciado na prática da docência no ensino fundamental, quando as autoras já discutiam dilemas e alternativas para a Educação Ambiental nos contextos escolares, e aqui retomado na convergência teórico-metodológica das suas pesquisas acadêmicas atuais.

Miriam Leite Jacqueline Lima

A EDUCAÇÃO AMBIENTAL ENTRE A CONSERVAÇÃO E A EMANCIPAÇÃO

Estudos como os de Carvalho e Farias (2011), Lima (2005) e Patto, Sá e Catalão (2009) sugerem que a Educação Ambiental pode ser considerada um campo de produção de conhecimento jovem e em busca de identidade, o que se pode perceber pelo grande esforço de pesquisas interessadas em compreender significados, características e especificidades desse campo. É ainda marcadamente múltiplo em suas concepções sobre crise socioambiental e relações sociedade-natureza, bem como pelas propostas político-pedagógicas defendidas. Tal pluralidade também se expressa nos diferentes espaços de produção e vivência de EA – universidades, secretarias de educação, escolas, empresas, organizações não governamentais, unidades de conservação, museus etc. (LOUREIRO, 2006) Educ. foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 1, p. 179-204, mar. 2015 / jun. 2015

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Encontros de Pesquisa em Educação Ambiental. Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ambiente e Sociedade.

– bem como pela multiplicidade político-epistemológica que fundamenta essa produção. Nessa mesma direção, Loureiro (2005, p. 1475) afirma que, já nos anos de 1970, quando foram identificadas as primeiras experiências denominadas como Educação Ambiental, “dois grandes blocos político-pedagógicos começaram a se definir e disputar hegemonia no campo das formulações teóricas [...] com vertentes internas e interfaces complexas e diferenciadas”. O autor destaca que a produção do campo não pode ser resumida nesses dois blocos, mas os apresenta como “os macroeixos norteadores que historicamente alcançaram maior destaque no cenário da Educação Ambiental” (LOUREIRO, 2005, p. 1475). Loureiro classifica os dois blocos em suas ênfases, chamando o primeiro de conservador ou comportamentalista e o segundo de transformador, crítico ou emancipatório:

Diferença, emancipação e conservação na educação ambiental

Em termos gerais, o primeiro bloco mencionado está fortemente influenciado pela Teoria dos Sistemas Vivos, pela Teoria Geral dos Sistemas, pela visão holística, pela Cibernética e pelo pragmatismo ambientalista da proposta de ‘alfabetização ambiental’ norte-americana. E o segundo, mais inserido nos debates clássicos do campo da educação propriamente dita, pela dialética em suas diferentes formulações de orientação marxista ou em diálogo direto com esta. (LOUREIRO, 2005, p. 1476)

Ao abordar a diversidade de tendências no campo da EA, Lima (2005) afirma que a identificação de duas orientações principais (EA convencional, voltada para a manutenção da ordem social, e EA crítica, voltada para a transformação social) ocorre “quando a análise da relação entre o processo educativo e as mudanças de comportamentos que se dão no plano individual são substituídas pelas mudanças que a educação produz na vida social” (LAYRARGUES, 2003 apud LIMA, 2005, p. 126). Assim como Loureiro, Lima ressalta ainda

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que “os dois modelos antagônicos funcionam como modelos típico-ideais que polarizam uma multiplicidade de variações intermediárias entre as duas polaridades extremas” (LIMA, 2005, p. 126). No entanto, no processo de institucionalização do campo, Lima (2005, p. 12) identificou uma tendência a se abordar a EA “como se estivessem todos se referindo a um único objeto”, a despeito do amplo espectro de concepções em negociação e disputa. Junta e Santana (2011, p. 49) também contestaram as visões unitaristas e/ou dicotômicas da EA, em estudo que visou “tentar tornar menos monolítico o aparente bloco coeso que a EA representa”. Indicam tendências vinculadas ao que denominam como ecossocialismo, ecocapitalismo, ecoanarquismo, ecologia profunda, ecologia superficial, conservacionismo e preservacionismo. Os autores ressaltam, no entanto, que nenhuma concepção de Educação Ambiental encontra-se em estado puro, reconhecendo tais classificações como recurso heurístico dos mapeamentos que buscam dar legibilidade às práticas pedagógicas e de pesquisa do campo. As conclusões de Junta e Santana (2011) se referem às concepções de Educação Ambiental encontradas nos Anais do I, II e III EPEA, que, juntamente com a análise de Lima (2011) sobre o mapeamento das temáticas privilegiadas nos encontros realizados nos anos de 2001, 2003, 2005 e 2007 (RINK e NETO, 2009), indicam, nos trabalhos referentes à EA nos contextos escolares, a predominância de atividades que, por não articularem as discussões sobre o meio ambiente com relações sociais mais amplas, constituem práticas usualmente identificadas como vinculadas à perspectiva comportamentalista/conservadora da EA. Lima (2011) também analisou os trabalhos sobre os contextos escolares presentes nos Anais do V EPEA e observou que a maioria pode ser classificada como comportamentalista, ainda que, comparado aos encontros anteriores, perceba sinais de maior incorporação da perspectiva crítica com viés marxista nas pesquisas abordadas.

Os limites deste artigo não nos permitem tecer conclusões definitivas a respeito das tendências do campo da EA, mas podemos destacar três pontos importantes para a discussão aqui travada: 1) muitos autores do campo tendem a descrevêlo como homogêneo, a despeito da grande diversidade teórica em seu interior; 2) atores identificados com a perspectiva crítica reconhecem tal pluralidade, porém tendem a dividir o campo entre uma perspectiva crítica de viés marxista versus a perspectiva conservacionista, identificando a predominância desta última; 3) a despeito das múltiplas propostas e diferentes fundamentações teórico-políticas para a EA, o que se verifica de fato presente nas práticas escolares é, com maior frequência, o que se costuma nomear como perspectiva da conservação. Sem discordar da pertinência da ênfase na discussão da desigualdade social que atravessa as questões do meio ambiente – ou, mais ampla e precisamente, sem romper com a proposta de se construir, de alguma forma, uma linha antagônica relativamente ao sistema capitalista em termos gerais – propomos discutir a própria perspectiva da emancipação, na expectativa de problematizar o quadro acima sintetizado, em particular no que diz respeito à frequente não opção pelas abordagens críticoemancipatórias nas práticas da Educação Ambiental escolar.

Diferença, emancipação e conservação na educação ambiental

POR QUE REPENSAR A EMANCIPAÇÃO? Si queremos intervenir en la historia de nuestro tempo y no hacerlo ciegamente, debemos esclarecer en la medida de lo posible el sentido de las luchas en las que participamos y de los cambios que están teniendo lugar ante nuestros ojos. Es necessário, por consiguiente, templar nuevamente las ‘armas de la crítica’. La realidad histórica a partir de la cual el proyecto socialista es hoy reformulado es muy diferente de aquella de hace tan sólo unas pocas décadas, y sólo cumpliremos con nuestras obligaciones de socialistas y de intelectuales si somos plenamente

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conscientes de esos cambios y persistimos en el esfuerzo de extraer todas sus consecuencias al nível de la teoria. (LACLAU e MOUFFE, 2000, p. 111)

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Na citação, Laclau e Mouffe nos lembram da especificidade da contingência histórica que vivemos, marcada pela profundidade das transformações testemunhadas na contemporaneidade, diante das quais as teorias marxistas não poderiam permanecer intocadas. Ao fazê-lo, os autores evidenciam como seríamos incoerentes se ignorássemos as condições materiais em que nos encontramos quando teorizamos sobre as organizações sociais da atualidade. O compromisso com a justiça social tem, nos dias de hoje, de lidar com mudanças no sistema capitalista que enfraquecem os grupos sociais tradicionalmente identificados como classe operária em grande parte dos países industrializados; com novos movimentos sociais e novas demandas que desestabilizam antigos esquemas teleológicos de transformação das sociedades; com a ampla penetração das relações mercantis em cada vez mais setores da sociedade; com a constatação da persistência das desigualdades, injustiças e degradação ambiental nas sociedades que vivenciaram regimes socialistas; com o esfacelamento do horizonte de implementação de tais regimes; com o advento das novas tecnologias de informação e comunicação que, ao mesmo tempo em que possibilitam formato e dimensão inéditos na história da interação humana, trazem novo impulso ao consumo, com todas as consequências que sabemos implicar para o meio ambiente e ética social. Mas o compromisso com a justiça social conta com desenvolvimentos teóricos também poderosos para o enfrentamento de tantos novos desafios: conta com a linguística estrutural, que lhe permite entender a significação como diferencial; com a perspectiva pós-estruturalista em Derrida, que duvida da estrutura que fixaria essa diferenciação; com a psicanálise, que revela ainda a ambiguidade de tais processos de identificação/diferenciação – em síntese, nas palavras de

Laclau e Mouffe (2000, p.127), conta com “a transformação do pensamento – de Nietzsche a Heidegger, do pragmatismo a Wittgenstein – [que] enterrou decisivamente o essencialismo filosófico”. Com base na interlocução acima sumarizada, Laclau e Mouffe (2004) publicam, em 1985, o livro Hegemony and socialist strategy, onde propõem um quadro de interpretação pós-marxista da organização social que nomeiam como teoria do discurso – teorização que, entre as diversas formulações vinculadas ao que aqui se denomina como perspectiva da diferença, entendemos que pode nos trazer elementos para melhor pensar as questões que propomos abordar na Educação Ambiental. Operando na lógica do suplemento7, os autores problematizam o lugar da necessidade e da contingência no pensamento marxista, retomando sua história desde a Segunda Internacional, quando já se colocava evidente que a previsão de simplificação das configurações sociais, por meio da polarização da sociedade entre possuidores e não possuidores dos meios de produção, não estava se realizando nos países industrializados da Europa. Defendem então a radicalização da noção gramsciana de hegemonia, que toma lugar central na teoria do discurso, porém destituída do viés essencialista que ainda manteve nas formulações de Gramsci – qual seja, a determinação, ainda que em última instância, pelo econômico.

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No contexto da discussão de questões da significação e da interpretação na crítica literária, ao desconstruir o texto Confessions, de autoria do filósofo francês Jean-Jacques Rousseau, Derrida (2001; CULLER, 1997) propõe um sentido para o termo suplemento que, concordando com Burity (1997), define de modo bastante preciso como interpretamos a relação das tradições marxistas com o pós-marxismo, conforme proposto por Laclau e Mouffe: o suplemento completa aquilo que já é/já foi completo. Não se trata de preencher lacunas resultantes de falhas de uma formulação original; antes, está implicado pela própria iterabilidade das palavras que, ao serem repetidas, jamais se repetem em plenitude – posto que a contingência da sua enunciação tampouco se repetirá – e assim modificam o que havia sido fixado como referência e criam condições para outros desenvolvimentos de sentido.

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Sem a pretensão de fazer uma apresentação da teoria do discurso, expomos a seguir uma síntese das suas proposições em torno da emancipação, abordada em termos de articulação hegemônica, equivalência e diferença, nos aspectos que justificam nossa proposta de incorporá-las às discussões da Educação Ambiental.

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ARTICULAÇÃO HEGEMÔNICA, DIFERENÇA E EQUIVALÊNCIA

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A centralidade da noção de discurso para a teorização proposta por Laclau e Mouffe tem gerado o que consideramos equívocos de interpretação que, pela sua gravidade, impõem que iniciemos a exposição da teoria por meio de esclarecimentos. Quando Laclau e Mouffe incorporam a proposição derridiana de não haver nada fora do discurso, não negam a existência de uma materialidade extralinguística, mas buscam destacar que os sentidos que nela identificamos são construções que se fazem por meio da linguagem e não constatações ou descobertas de significados já constituídos. Pretendem, desse modo, ressaltar o caráter historial e contingente do que entendemos como realidade, ou seja, a inexistência de características necessárias para sua configuração, ou ainda, dito de modo mais coerente com essa teorização, para o que identificamos/nomeamos como sua configuração. Como suplemento que pretende ser, não rompe propriamente com as perspectivas marxistas clássicas, antes constitui um tipo de aprofundamento do que Laclau e Mouffe denominam como “radical relacionalismo” no pensamento marxista: “Não é a consciência do homem que determina seu ser, pelo contrário, é o ser social o que determina sua consciência” (MARX apud LACLAU e MOUFFE, 2000, p. 126). Entendem que Marx limita o reconhecimento da contingência na ordenação do social quando, apesar da notória defesa que faz do materialismo na filosofia, supõe possível a previsão de uma classe social destinada a conduzir a transformação da sociedade rumo a uma organização sem desigualdades ou injustiças – mais: quando supõe que a identificação dos atores sociais possa se

reduzir ao que denomina como classe social ou, ainda, que a própria noção de desigualdade ou de injustiça tem conteúdo positivo, definido aprioristicamente em relação à contingência da sua enunciação. De fato, não há, na teoria do discurso, distinção entre práticas discursivas e práticas não-discursivas. Mas isso não significa que se entenda que a palavra controle mágica ou intencionalmente a concretude material: não faremos uma pedra cair do céu quando enunciarmos tal queda, mas todo o sentido que o evento tomará em nossas vidas – se manifestação dos deuses ou de desequilíbrio ecológico, por exemplo – dependerá de disputas sociais pela hegemonização deste ou daquele sentido. Por sua vez, os significados se configuram diferencialmente, por meio de articulações hegemônicas, o que “tampouco pode consistir em meros fenômenos linguísticos, mas, sim, deve atravessar toda a espessura material de instituições, rituais, práticas de diversas ordens, por meio das quais uma formação discursiva se estrutura” (LACLAU e MOUFFE, 2004, p. 148). A base dessa proposição está na crítica desconstrutora de Derrida à linguística saussureana, embora também se refiram a Wittgenstein nesse sentido: os autores concordam que não há conteúdo positivo na significação dos termos das linguagens, apenas relações diferenciais quanto a outros conteúdos desses sistemas; entretanto, discordam de Saussure quanto à configuração de tais sistemas e dos conteúdos em relação diferencial – pode-se considerar a existência de estruturas, porém são descentradas, sem definição apriorística de organização ou de posicionamento dos seus elementos/ sujeitos, sem qualquer forma de determinação em última instância. Nessa perspectiva, portanto, o jogo das diferenças linguísticas não se estabelece entre significados estáveis e monolíticos, nem tampouco dentro de fronteiras fixas. Laclau e Mouffe propõem que, do mesmo modo, o jogo das identificações sociais não se define entre identidades fixas e homogêneas. Já no prefácio da edição em espanhol do livro

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Hegemony and socialist strategy, os autores sublinham que o foco na linguagem ganha cada vez mais espaço nas ciências sociais, esclarecendo, contudo, que não se trata de conferir ao social uma explicação meramente linguística, mas, sim, de reconhecer que as lógicas propostas nas análises daquele campo têm também validade para se pensar as dinâmicas de constituição social. Mas se não há estruturas positivas que determinem significados e identidades, como estes se definiriam? Laclau e Mouffe lembram que, já em Gramsci, entendia-se que os processos hegemônicos de constituição do social tomam parte na formação da subjetividade dos agentes históricos. De acordo com os novos sentidos que propõem para a noção de hegemonia, essa subjetivação se daria em termos de articulação hegemônica: assim como os significados linguísticos se definem pela diferença em sistemas descentrados e cambiantes, a identificação dos atores sociais também tem caráter diferencial. Constituem, nesse sentido, particularidades em permanente definição das diferenças que lhes permitem afirmar-se como tal. Entretanto, antagonismos sociais criam fronteiras no interior do social que não correspondem apenas a identificações individuais: “Com respeito às forças de opressão, por exemplo, um conjunto de particularidades estabelece entre si relações de equivalência” (LACLAU e MOUFFE, 2004, p. 13). A sociedade se constitui, portanto, pela operação simultânea do que os autores nomeiam como lógica da diferença e lógica da equivalência. Embora nos identifiquemos e sejamos identificados por um jogo permanente de diferenciações, também podemos abdicar parcial e contigencialmente, de aspectos das nossas identificações, se motivados, por exemplo, por uma ameaça que postulamos ser comum a outros atores sociais. Não se trata, contudo, de relações entre identidades já estabelecidas – ou seja, não é o mesmo que “aliança de classes” em Lenin: a articulação hegemônica, isto é, a formação de cadeias equivalenciais pela hegemonização de sentidos se

caracteriza pela transformação das identificações em relação, “resulta de uma construção discursiva contingente e não de uma convergência imposta a priori” (LACLAU, 2005, p. 117). Desse modo, a teoria não nega a possibilidade de constituição de cadeias de equivalência em torno da identificação como proprietário ou não dos meios de produção - como, em outros termos, se propõe nas teorizações marxistas clássicas mas pondera que não há determinação estrutural que garanta a ocorrência de tal articulação. Conforme Laclau argumenta, em La razón populista (LACLAU, 2005, p. 189), o atual momento do capitalismo proporciona diversos pontos de antagonismo social – “crisis ecológicas, desequilibrios entre diferentes sectores de la economia, desempleo massivo etcétera” – e nossa experiência histórica demonstra a impossibilidade de previsão das articulações hegemônicas que poderão se estabelecer. Entretanto, conforme se assinalou, a articulação hegemônica não ocorre entre identidades completas que descobrem possuir demandas em comum: não apenas as identificações - expressão que julgamos mais adequada do que “identidades” - se constroem também por meio das múltiplas articulações de que participam, como suas demandas se constituem nas próprias articulações em que se engajam. A questão ambiental pode então vir a ser importante ponto de equivalência, sem que se garanta o conteúdo com que se hegemonizará. Ecologia torna-se, assim, um significante flutuante, em torno do qual diferentes cadeias de equivalência disputam seu preenchimento, assim como a Educação Ambiental também pode ser considerada um significante flutuante, cujo sentido está sendo disputado por diferentes grupos político-acadêmicos. Nessa disputa, atores sociais têm de negociar suas propostas de educação e/ou intervenção ambiental e, ao fazê-lo, já não são mais os mesmos atores que iniciaram as articulações, nem tampouco podem manter suas demandas imunes a tais negociações. A leitura das dinâmicas de mobilização social, nessa perspectiva, leva à problematização dos traços mais gerais das

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propostas de emancipação, no campo educacional como um todo e na Educação Ambiental em particular, para o quê também podemos contar com argumentos desenvolvidos no âmbito da teoria do discurso. Embora seja óbvio que Laclau não focalizou questões da escola ou da EA, entendemos que a reflexão que propõe acerca da noção de emancipação pode ser estendida às propostas educacionais identificadas como emancipatórias. Coerentemente com a perspectiva da diferença que vimos delineando, o autor aponta – e explicita sua discordância – que as concepções mais tradicionais de emancipação supõem a pré-existência das identidades envolvidas, reservando para determinados grupos sociais o papel da agência nesses processos. Apostando na racionalidade das dinâmicas históricosociais, o proletariado expressaria “a pura essência humana que abandonou qualquer filiação particularista” (LACLAU, 1994, p. 38). Entretanto, se entendemos que tal identificação é parcial e instável e contestamos também a noção de “essência humana”, perde sentido tanto a suposição de grupos sociais como agentes necessários da emancipação, quanto o próprio conteúdo desses processos. Não se trata de conceber uma sociedade absolutamente particularista, sem a possibilidade de articulações mais amplas, dado que, conforme já argumentado, nossas identificações passam pela diferenciação tanto quanto pela equivalência - trata-se de reconhecer que momento, forma e conteúdo de lutas sociais não estão determinados estruturalmente, ou, mais rigorosamente falando, trata-se de conceber que participam de estruturas descentradas, que não podem definir aprioristicamente suas configurações contingentes. No entanto, concordando com Laclau (1994, p. 43), entendemos que isso é boa notícia.

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Neste sentido, o abandono da aspiração a um conhecimento ‘absoluto’ tem efeitos estimulantes: por um lado, os seres humanos podem se reconhecer como verdadeiros criadores e não mais como recipientes passivos de uma estrutura predeterminada; por outro lado, como todos os agentes sociais

têm que reconhecer sua finitude concreta, ninguém pode aspirar a ser a verdadeira consciência do mundo. Isto abre caminho para uma interação sem fim entre várias perspectivas e torna ainda mais distante a possibilidade de qualquer sonho totalitário. EDUCAÇÃO AMBIENTAL E ARTICULAÇÕES POSSÍVEIS

TEORIA

DO

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DISCURSO:

A pergunta que obviamente se segue à exposição do item anterior é: mas em que avança o debate sobre a EA quando abandonamos perspectivas essencialistas e a abordamos como significante flutuante ou em termos de articulação hegemônica? Como a “boa notícia” que finalizou a última seção pode afetar a Educação Ambiental? Destacaremos a seguir aspectos de possível interesse para esse debate, restritos pela natureza deste texto, porém não pelo esgotamento de tais possibilidades. Podemos começar ressaltando que a teoria do discurso proporciona um quadro teórico de interesse para a discussão da própria questão ambiental, que, por sua vez, vai informar os diferentes encaminhamentos propostos para a EA. Diversos estudos apontam para a crescente penetração, nas escolas, de projetos de empresas que, buscando reconhecimento institucional e social, a partir da segunda metade da década de 1990, tiveram na EA escolar uma das suas estratégias de atuação política (BAGNOLO, 2009, 2010; LAMOSA, 2010) - ou, nos termos da abordagem discursiva: tiveram na EA uma das suas estratégias de articulação hegemônica em torno da significação da questão ambiental, que é proposta em termos de “responsabilidade social”, “sustentabilidade”, “consumo consciente”. Um limite desta prática, como apontado por Lamosa (2010), seria a incipiente participação de educadores e educandos na elaboração, reelaboração e efetivação dos projetos propostos, nos quais o professor fica limitado ao papel de transmissor de informações aos alunos, que são estimulados

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a reproduzir os princípios mais característicos da organização empresarial. Com base na teoria do discurso, esse sentido para as demandas dos movimentos ecológicos é problematizado por Burity (2006), que o apresenta como parte da construção contemporânea de uma noção particular de inclusão social. O autor argumenta que o enfraquecimento da perspectiva de luta de classes abriu espaço para a difusão do discurso da inclusão no enfrentamento das situações de desigualdade social. Embora assumida por grupos sociais de diferentes perfis políticos, prevalece sua versão despolitizada, o que é flagrante no recorte da questão ambiental. Não se questiona o sistema de produção que gera o quadro de crise socioambiental, antes se cria novo nicho de mercado, os “ecologicamente sustentáveis, socialmente responsáveis, comercialmente justos” (BURITY, 2006, p. 51). Mantém-se intacta a lógica consumista que informa as respostas do mercado a tais demandas, que são neutralizadas politicamente quando reduzidas a estratégias de marketing. Isso pode ser observado recentemente em relação às disputas em torno do documento final da conferência Rio + 20, que mostraram que a lógica do mercado, nomeada como “Economia Verde”, tem predomínio nos discursos das políticas ambientais. Ganham força, desse modo, as articulações das demandas desse movimento que não implicam cadeias de equivalência mais abrangentes, isolando-se assim as lutas pelo meio-ambiente daquelas com que poderiam se articular em equivalência, como os movimentos sociais que se ocupam de questões de viés étnico-racial, gênero, idade, sexualidade, por direitos econômicos etc. Porém, além do perigo do conservadorismo, existe também o risco de “reinscrever o discurso dos movimentos sociais na narrativa clássica da opressão de classe” (BURITY, 2006, p. 46). Se a questão ambiental se torna a nova metanarrativa a que se submete toda a vida social, tampouco haverá espaço para a construção de equivalências mais ampliadas que estabeleçam demandas com potência para

implicar transformações sociais mais profundas. A articulação pressupõe a incompletude das identificações e demandas em jogo: sem diminuir a urgência do enfrentamento das forças sociais que articulam sentidos conservadores para as lutas ambientais e para a Educação Ambiental, duvida-se aqui da simplificação das posições dos seus praticantes entre críticoemancipatórios e conservacionistas. Defendemos que uma proposta de Educação Ambiental que se configure na perspectiva da diferença não chega às escolas com as etiquetas conservação/emancipação prontas de antemão, porque entende que tais conteúdos se constroem em negociação cotidiana. Professores e professoras podem se posicionar diante de projetos de EA propostos por empresas, ou delas receber financiamento para seus próprios projetos, sem estabelecer cadeias de equivalência que se coloquem além da resposta imediata à falta material com que têm que lidar no dia a dia do seu fazer pedagógico; podem subverter, em processo e conclusão, os sentidos projetados em tais iniciativas de forças de conservação do social; podem participar da reinvenção da emancipação, motivados/as pelos limites da negociação com o discurso da conservação; e/ou fazê-lo motivadas/os também pela abertura democrática radical dos discursos da emancipação, que já se saberiam incompletos e não mais se arrogariam a pretensão da vanguarda – e este não é ganho menor. Pensaram que estavam na vanguarda da sociedade; que eram a voz dos que não tinham voz. Acharam que podiam representar os que viviam oprimidos pela pobreza e pela ignorância, sem saber quais eram seus verdadeiros interesses ou caminhos para alcançá-los. Pensaram que as ideias podiam descer até aqueles que, operários, camponeses, marginais, submersos num mundo cego, eram vítimas de sua experiência. Sentiram-se portadores de uma promessa: obter os direitos dos que não tinham direito algum. Pensaram que

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sabiam mais do que as pessoas comuns e que esse saber lhes outorgava um só privilégio: comunicá-lo e, se preciso fosse, impô-lo a maiorias cuja condição social as impedia de ver com clareza e, consequentemente, trabalhar no sentido de seus interesses. (SARLO, 2004, p. 159)

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Apesar de um tanto extensa, trouxemos a citação de Beatriz Sarlo por julgarmos que retrata, com precisão e síntese, a postura e o perigo das vanguardas, que, entre outros fatores, justificam nossa recusa dessa perspectiva para a Educação Ambiental. Para compreender, quiçá intervir, no quadro da EA da atualidade, temos vislumbrado como caminho possível alternativas à visão vanguardista: a abertura para a negociação com o hibridismo, a instabilidade e o imprevisível que entendemos marcar as identificações e atuações públicas dos seus praticantes. Algumas pesquisas no campo parecem promissoras nesse sentido. Ao analisar ações de Educação Ambiental nas disciplinas Ciências e Biologia, Oliveira e Ferreira (2007) concluiram que, nesse espaço, havia a produção de conhecimento escolar original. Já Gabriel (2008) assume, na discussão do conhecimento escolar em geral, a noção de epistemologia escolar, para explicitar a dimensão criativa do trabalho pedagógico nos contextos escolares. Em sua pesquisa sobre a inclusão da disciplina Educação Ambiental em Búzios-RJ, Lima (2011) identificou uma ampla diversidade de práticas e abordagens, que ora poderiam ser identificadas como próximas da perspectiva crítica, ora da conservadora. A autora buscava investigar, em registros diversos da rede pública de ensino daquela cidade, os significados atribuídos ao meio ambiente e à Educação Ambiental, concluindo que: Educ. foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 1, p. 179-204, mar. 2015 / jun. 2015

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Se de um lado defendo a explicitação das perspectivas de EA que informam pesquisas acadêmicas, de outro considero improdutiva a tentativa de identificar, nos

textos e discursos das políticas, esta ou aquela visão de Educação Ambiental em ‘estado puro’. Ainda que as políticas possam se vincular a uma ou outra tendência, estão sujeitas a deslizamentos em função de fatores como mudanças na política local, diálogos estabelecidos entre as comunidades epistêmica e escolar, inserção dos professores em espaços formativos de EA e outros. (LIMA, 2011, p. 176)

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A perspectiva de Carvalho (2004, p. 16) pode ainda contribuir para a discussão que trazemos: a autora opta por pensar as diferentes nuances da Educação Ambiental – educação ambiental popular, crítica, politica, comunitária, formal, não formal, para o desenvolvimento sustentável, conservacionista, socioambiental, ao ar livre, para solução de problemas, entre outras – como “modos de endereçamentos da educação e da educação ambiental [...] onde o destinatário também constitui o artefato que a ele é endereçado”. Corrobora, portanto, nosso argumento pela não passividade dos atores que praticam a EA escolar, mas destaca também o que entendemos constituir grande dificuldade para a abertura à negociação implicada pela perspectiva pós-marxista: a questão da alteridade, do não fechamento à visão do outro. O entendimento da possibilidade de construção de amplas cadeias de equivalência em torno da questão ambiental não a torna um ponto de antagonismo social a priori: tudo dependerá das negociações que terão lugar em tais articulações. Nessas negociações, identificações e demandas dos participantes são modificadas e a dicotomia conservação/ emancipação na EA perde força, enquanto novos sentidos para conservação e emancipação são construídos. Abre, desse modo, caminho para a negociação com o potencial criativo dos atores sociais envolvidos nos processos de educação escolar. PARA FINALIZAR, VOLTEMOS AO COMEÇO

E no começo estava a questão da igualdade.

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Que garantias temos da efetivação das possibilidades acima? Nenhuma. Há mesmo sérios perigos: rondam nossas propostas o particularismo, o presentismo, o imobilismo e mesmo o niilismo – não sem razão iniciamos nossa reflexão em torno da polêmica igualdade-diferença. Existe de fato a possibilidade de leituras bastante conservadoras dos argumentos que apresentamos. Mouffe (1996, p. 29) reconhece esse risco quando registra sua crítica a

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um certo tipo de pós-modernismo apocalíptico que gostaria que acreditássemos que nos encontramos no limiar de uma época radicalmente nova, caracterizada pela flutuação, pela disseminação e pelo incontrolável jogo das significações. Uma tal concepção continua presa de uma problemática racionalista, que tenta criticar.

Ao reconhecer o descentramento das estruturas que nos estruturam e/ou desestruturam e são por nós estruturadas e/ou desestruturadas, abrimos mão do suposto conforto do “carro alegre da História”8, antes de tudo, porque sua improbabilidade já havia minado os possíveis efeitos de tal suposição. Perdemos esse conforto, porém ganhamos novas possibilidades de agência, já que se torna possível vislumbrar outros deslocamentos potenciais das estruturas que nos desagradam. Buscamos então, desde o início do artigo, demarcar nossa leitura do pós-marxismo, explicitando discordar da antagonização entre as lutas pela igualdade e as reivindicações pelo reconhecimento dos direitos da diferença, ao mesmo tempo em que defendemos a potencialidade dessa interlocução teórica para pensar questões da Educação Ambiental e da Educação em geral, na contemporaneidade. Estratégias têm conteúdo, caminhos marcam destinos e caminhantes. Reconhecer a multiplicidade na EA, porém Educ. foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 1, p. 179-204, mar. 2015 / jun. 2015

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Referência à música de Chico Buarque e Pablo Milanes, que, na voz do primeiro juntamente com Milton Nascimento, acalentou esperanças revolucionárias locais na década de 1980.

insistir em tratá-la em simplificação binária é mais do que estratégia heurística, posto que há implicações políticas de relevo. Entendemos que se trata de redução que afasta os professores das perspectivas críticas e invisibiliza as especificidades da EA escolar, na medida em que secundariza as razões contingentes que informam suas decisões e fixa em identidade o que pode ser lido como identificação circunstante, aberta à negociação e à mudança. Concordamos, por fim, com a avaliação de Laclau e Mouffe (2000, p. 112) a respeito da década de 1990, pertinente ainda, não apenas a importantes aspectos da atualidade no país e no mundo, como também às questões da Educação Ambiental que abordamos nesta reflexão:

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Estamos vivendo [...] uno de los momentos más excitantes del siglo XX: el momento en que nuevas generaciones, sin los prejuicios del passado, sin teorias que se presentan a sí mismas como ‘verdades absolutas’ de la historia, están construyendo nuevos discursos emancipatórios, más humanos, diversificados y democráticos.

Talvez possamos pensar também para a Educação Ambiental do século XXI novos discursos emancipatórios, mais humanos, diversificados e democráticos.

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REFERÊNCIAS

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Miriam Leite Jacqueline Lima

Data de recebimento: agosto de 2012 Data de aceite: fevereiro de 2014

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CONVERSAÇÕES COM ADOLESCENTES NA ESCOLA: BULLYING OU MAL ESTAR NAS RELAÇÕES?

Conversações com adolescentes na escola: bullying ou mal estar nas relações?

Luciana Coutinho1 Bruna Osorio2

Resumo

O presente artigo é fruto de uma pesquisa sobre a adolescência e o laço social, mais especificamente, sobre os adolescentes e o laço educativo nos contextos contemporâneos. Nosso trabalho de campo foi orientado pelo método da pesquisaintervenção, no qual realizamos grupos de conversação com alunos e professores de uma escola da rede pública situada no município de Niterói. Neste artigo, centramos nossa análise no material proveniente dos grupos de conversação com adolescentes do 8º e 9º ano, refletindo sobre os laços sociais estabelecidos no universo escolar, levando em conta questões pertinentes ao contexto sociocultural mais amplo. A presença da violência e da intimidação constante nas relações entre os alunos, bem como entre alunos e professores, nos leva a questionar o conceito de “bullying”, tal como vem sendo eminentemente propagado no campo acadêmico e midiático. Em contraposição, trazemos para essa discussão, sustentada no âmbito de um diálogo das ciências sociais com a psicanálise, o enfraquecimento da palavra e dos pactos nas relações sociais contemporâneas, o que se reflete em relações sociais sempre tensas e em diversas manifestações de violência nas escolas. Palavras-chave: Adolescentes; Escola; Bullying.

1

Luciana Gageiro Coutinho é doutora em Psicologia (Psicologia Clínica).

2

E-mail: [email protected] Bruna Osorio de Oliveira é graduada em psicologia na Universidade Federal Fluminense, bolsista de iniciação científica 2010/2012. E-mail: [email protected]

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Abstract

Luciana Coutinho Bruna Osorio

This article is the result of a research about adolescence and social bond, more specifically about teens and bond educative in contemporary contexts. Our field work was guided by the method of research-intervention, in which we conducted conversation groups with students and teachers at a public school located in Niterói. In this article, we focus our analysis on material from conversation groups with adolescents in the 8th and 9th grade, reflecting on the social bonds established in the school environment, taking into account issues pertinent to the broader sociocultural context. The presence of constant violence and intimidation in relationships among students and between students and teachers, leads us to question the concept of "bullying", as it has been eminently propagated in academic field and in the media. In contrast, we bring to this discussion, sustained in the dialogue between social sciences and psychoanalysis, the weakening of the word and pacts in contemporary social relations, as reflected in always strained social relations and various forms of violence in schools Keywords: Adolescents; School; Bullying.

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CONVERSAÇÕES COM ADOLESCENTES NA ESCOLA: BULLYING OU MAL ESTAR NAS RELAÇÕES?

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INTRODUÇÃO

O presente trabalho é fruto de uma pesquisa sobre a adolescência e o laço social que sustenta o ato educativo nos contextos contemporâneos. O projeto pesquisa Adolescência, educação e inclusão social3 teve como objetivo contribuir para a reflexão e a ação no enfrentamento das dificuldades vividas por educadores e jovens no que diz respeito à instituição escolar e às relações que nela se instauram. Vinculou-se ao projeto de extensão Fala Sério: interações e conversações com jovens na escola4, por meio do qual as questões teóricas da pesquisa são levadas para o campo. Nos últimos anos, temos nos dedicado a investigar a relação do jovem com a escola no contemporâneo. Temos constatado que as condições sociais que sustentam a prática educativa têm sofrido grandes transformações nas últimas décadas, trazendo questões tanto para os que ocupam o lugar de educadores quanto para aqueles que são educados. Segundo Abramo e Branco (2005) e Amaral (2006) muitas interrogações e investigações têm sido feitas acerca desse assunto, nas quais ressaltamos primeiramente o desinteresse e a falta de perspectivas dos jovens brasileiros, assim como também os ataques feitos por eles próprios à instituição educativa. 3 4

Projeto desenvolvido na Universidade Federal Fluminense entre os anos de 2009 e 2012, coordenado pela Professora Luciana Gageiro Coutinho. Projeto realizado na Universidade Federal Fluminense entre 2010 e 2012, coordenado pelas Professoras Luciana Gageiro Coutinho e Marília Etienne Arreguy.

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Paralelamente, entendemos que o encontro do adolescente com a escola - e com a cultura de modo geral - tem uma participação importante no trabalho psíquico da adolescência, oferecendo material simbólico para as novas construções subjetivas que então devem se dar, segundo Alberti (2004), Coutinho (2009) e Mello (2004). Vemos também que o encontro do adolescente com a Educação e com a escola envolve bem mais do que a aquisição do conhecimento, possibilitando o estabelecimento de laços sociais e afetivos, e também a ampliação de horizontes culturais e humanos que o constituem enquanto sujeito. Quanto a isso, o depoimento do próprio Freud a respeito de sua experiência como jovem na escola, no artigo “Algumas reflexões sobre a psicologia do escolar” ([1914]1974), revela o valor inestimável das relações com os professores e com os outros alunos, segundo ele, em grande parte responsáveis por quem se tornou no futuro. De fato, partimos do pressuposto que o laço do adolescente à escola assim com as diversas experiências vividas na escola tomam parte no trabalho psíquico da adolescência, tal como é concebido em psicanálise. Assim, supomos que tanto o saber quanto as experiências na escola têm valor de oferta de significantes, de referências simbólicas, para que os sujeitos adolescentes possam se apropriar na construção de um discurso próprio e de um modo de fazer laço social. Vale lembrar aqui que na psicanálise o sujeito se constitui a partir de um investimento e de um discurso, prévios ao seu nascimento, que são depositados pelo Outro sobre ele. O sujeito nasce ao produzir uma resposta a isso. A ideia de transmissão em educação caminha na mesma direção desse processo inaugural do nascimento do sujeito, do qual participa sempre o Outro educador, com sua fantasia inconsciente e seu modo singular de desejar, que pode, inclusive, ignorar ou favorecer a presença do desejo também no aluno. Como nos lembra Kupfer (1995), a psicanálise aposta que a transmissão e a apropriação de um saber são sempre marcadas pela presença de um sujeito desejante, tanto daquele que transmite, quanto

daquele que recebe e transforma o que recebeu. É nesse sentido que Freud interpreta a frase de Goethe: “aquilo que herdaste de teus pais, conquista-o para fazê-lo teu” (KUPFER, 1995:17). A educação comporta assim um movimento duplo: o encontro do sujeito com a cultura que lhe antecede e o processo de apropriar-se dela para encontrar nela um lugar para si. Dito isso, o presente artigo visa discutir, a partir da análise do trabalho de campo realizado com adolescentes na escola, a incidência da escola na subjetivação adolescente, levando em conta as questões pertinentes ao contexto sociocultural em que ambos estão inseridos. Em nossa pesquisa de campo, inspirada no método da pesquisa-intervenção (CASTRO; BESSETt, 2008), buscamos instaurar espaços de fala com alunos e professores para observar as relações dos jovens com/na escola. A partir dos resultados preliminares do campo, somos levados a focar nossa discussão na questão dos limites da palavra nas relações sociais hoje, com incidência específica nas relações entre os adolescentes na escola. Portanto, entendendo que a educação e a subjetivação humanas se dão numa dimensão de linguagem, sustentando-nos na perspectiva da psicanálise, neste trabalho gostaríamos de interrogar sobre o estatuto da palavra nas práticas educativas atuais, com consequências importantes para o trabalho do laço social na adolescência. Essa discussão também nos leva a pensar sobre os efeitos da fragilização da dimensão simbólica no laço educativo, que parece se apresentar sob a forma de mal-estar na escolarização e diversas manifestações de violência envolvendo adolescentes nas escolas.

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MÉTODO E AMOSTRA

O método utilizado foi o da pesquisa-intervenção aliada à conversação tal como concebida pela psicanálise. Partimos do suposto básico de que os sujeitos sobre os quais nos debruçamos (crianças, adolescentes, pais, professores) não podem estar excluídos do processo de produção de um saber sobre eles mesmos. Como observa Castro (2008), a

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pesquisa-intervenção parte da premissa básica de que os sujeitos se constituem no âmbito das práticas de significação, sempre numa situação partilhada com outros, sejam adultos ou outras crianças. Nesse sentido, a palavra ou qualquer ação do pesquisador vai se realizar na interlocução continuada com os sujeitos através da construção de sentidos para as situações vividas. Assim, o sujeito é efetivamente constituído ao longo do processo de pesquisa por meio da interlocução com outros que também se incluem na forma como essa experiência se produz. Dessa forma, a pesquisa-intervenção revela um modo de fazer pesquisa fecundo na sua articulação entre o que se investiga e como se investiga. No caso das pesquisas no âmbito da infância e adolescência, passamos de uma posição de pesquisar as crianças e os adolescentes para a posição de fazer pesquisa com eles, colocando em questão a própria relação (assimétrica) entre o pesquisador e os seus objetos de investigação. Por isso mesmo, este método tem sido bastante valorizado no que diz respeito às pesquisas com esses sujeitos crianças e jovens (CASTRO; 2008). Paralelamente, partimos dos pressupostos da psicanálise, campo em que pesquisa e clínica caminham sempre juntas, de modo que destacamos a fala como instrumento indispensável à abertura de um espaço para o sujeito dentro da escola. Sendo assim, a “conversação” é o recurso proposto para a realização da pesquisa-intervenção a ser apresentada aqui, que tem em sua referência teórica uma proposta de interlocução entre psicanálise e educação. A “conversação” é um dispositivo introduzido por Miller (2003) visando promover espaços de conversa e debate em torno de situações de impasse vividas pelos que dela participam. Segundo Miller (2003) a associação livre pode ser coletivizada na medida em que não somos donos dos significantes, o que importa é que um significante chame outro significante. Assim, vários sujeitos podem participar, produzindo o que ele chama uma “associação livre coletivizada”, da qual se espera um efeito. A proposta da conversação é permitir que cada sujeito envolvido na situação

possa tomar a palavra e agir, inspirado pelos significantes dos outros, saindo de uma posição passiva, repetitiva e paralisante.  De acordo com Lacadée (2000), Gatti (2005), Gavarini (2009) e Santiago (2008) a experiência da “conversação” em escolas tem revelado que a oferta de “um espaço onde se pode falar” produz a circulação da palavra e, com isto, a possibilidade de desnaturalização de preconceitos, flexibilização de identificações permitindo uma transformação do mal estar paralisante em saídas produtivas (LAURENT, 2004). O trabalho de Gavarini (2009), particularmente, apresenta uma proposta semelhante a nossa realizada no contexto escolar da periferia parisiense. Utiliza a conversação com grupos de adolescentes com a intenção de fazer circular a palavra entre eles e com outros profissionais da escola, na perspectiva de tentar resgatar a dimensão do simbólico e dos pactos sociais. Sua proposta é pautada na ideia de se criar um espaço de palavra coletivo, onde os alunos podem (se) falar sem se preocupar em serem julgados tanto pelos adultos como pela instituição. Assim, segundo a autora, o laço social pode ser favorecido, sustentando a palavra de cada um. Entretanto, o trabalho foi permeado por grandes impasses e dificuldades que, em alguma medida, se aproximam dos encontrados na nossa realidade brasileira. Em nossa proposta de pesquisa-intervenção, utilizamos fotos de situações escolares, frases/palavras emitidas por seus pares colhidas na escola ou fragmentos de músicas/cenas construídas por eles e pedíamos que eles falassem sobre como é estar na escola, o que pensam, o que sentem, tentando promover o diálogo entre eles e conosco de forma mais informal possível. Assim, nós não estávamos lá como professores, nem com a intenção de julgá-los, esperávamos acima de tudo, que eles falassem livremente, podendo sustentar suas palavras e responsabilizar-se por elas. Os grupos de conversação foram realizados com adolescentes do 8º e 9º ano do ensino fundamental de uma escola da rede pública situada no município de Niterói, Rio

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de Janeiro. Foram realizados quatro grupos, com encontros semanais de uma hora e meia de duração, durante quatro semanas. Cada grupo era composto por em média 15 alunos, meninos e meninas, com idade entre 13 e 15 anos aproximadamente, sendo coordenado pela pesquisadora responsável pelo projeto e dois bolsistas de iniciação científica. A proposta de trabalho apresentada aos adolescentes foi a de termos alguns encontros para conversar e refletir sobre a relação deles com a escola que pudesse ser proveitoso tanto para a nossa pesquisa quanto para eles próprios e para aqueles que atuam junto a eles. Isso poderia ser feito através de conversas, brincadeiras, dinâmicas e atividades com fotos ou músicas, a partir do andamento dos encontros. Cada novo encontro era planejado a partir do desenrolar do trabalho no encontro anterior. Todas as atividades realizadas no campo foram registrados através de gravações e/ou relatórios de campo. Para a análise qualitativa desse material, utilizamos a criação de categorias a partir das narrativas produzidas pelos alunos em nossos encontros (BARDIN, 1988). O tratamento dos dados para a divulgação dos resultados da pesquisa neste artigo terá caráter qualitativo, estabelecendo um diálogo com a literatura que interessa às questões emergentes do campo.

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DESCRIÇÃO DO CAMPO

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Iniciamos nosso trabalho de campo realizando observações participantes com as turmas de 8º e 9º ano, em um horário semanal de atividades extra curriculares que a assistente social da escola fazia com aquelas turmas. Desde que iniciamos as observações, que duraram cerca de quatro semanas, eles nos pediam para que iniciássemos logo nosso trabalho com eles para que não tivessem mais aquela “aula chata”. Trabalhamos ao longo de quatro semanas com as turmas do 8º e 9º ano, nas quais ficávamos com metade de cada turma (mais ou menos 15 alunos) a cada vez. No total trabalhamos com quatro grupos (grupos 1 e 2 do 8º ano e

grupos 3 e 4 do 9º ano) e tivemos dois encontros com cada um. Em comum acordo com a assistente social, realizando nossas atividades no mesmo horário e espaço utilizado por ela. Começamos nos apresentando e apresentando a proposta da pesquisa, ou seja, conversarmos sobre como é a relação deles na escola, com os professores, com os colegas. No primeiro encontro com cada um dos grupos, colocamos para eles algumas palavras, que recolhemos da fala deles próprios nas observações anteriores: adolescência, briga, diferente, ditadura, cabeção, sexo, aula, funk, professor, sozinha. Inicialmente tivemos a intenção de suscitar associações e promover a fala deles sobre cada uma das palavras. Pedimos então, em seguida, que eles montassem uma estória com essas palavras. Para que todos participassem, sugerimos fazer uma estória conjunta, na qual um aluno começaria escolhendo sua palavra e seguiria assim por diante. No grupo 1, os alunos se apresentaram a nós dizendo que a relação entre eles era muito boa, mas logo apontaram, de uma maneira bem hostil, uma menina como sendo “a chata” da sala. Usavam o termo bullying muitas vezes, e quase sempre em tom de brincadeira: “Olha o bullying!”. Neste grupo, alguns alunos inicialmente não quiseram participar da dinâmica proposta por nós, e assim se posicionaram quando chegava sua vez de falar. Mas todos acabaram falando um pouco, às vezes, sendo ajudados pelos outros colegas. No final, a estória era mais ou menos assim: “Uma menina, que estava na adolescência, tinha um namorado cabeção. Ela gostava muito de dançar funk, mas o namorado não gostava, então eles tiveram uma briga e ela ficou se sentindo muito sozinha...” No grupo 2, também foi proposta a mesma atividade, com as mesmas palavras. A primeira reação deles foi de dizer que elas não tinham nada a ver com eles. Diziam que, que ao invés dessas palavras, deveríamos ter colocado alguns xingamentos e outras palavras que, para eles, teriam mais a ver com a turma. Novamente apareceu a questão da menina

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que é agredida por todos e que, segundo eles, agride a todos nesta turma (8º ano). Além disso, eles falaram um pouco de como não gostam da escola. Demonstraram uma enorme dificuldade em ouvir o outro falar, falando todos juntos. Uma aluna sugeriu que fizéssemos a brincadeira do telefone sem fio, assim alguém começaria dizendo uma palavra no ouvido de outra pessoa e a pessoa seguinte deveria repetir essa palavra e acrescentar mais uma; então a última pessoa falaria todas as palavras, formando uma frase. Fizemos umas quatro rodadas da brincadeira, sendo que em algumas utilizamos as palavras do quadro. Reparamos que na maioria das vezes as frases montadas envolviam sexo e eles sempre riam enquanto as palavras iam sendo passadas em segredo; alguns alunos demonstraram vergonha de dizer algumas das palavras que surgiam. Pareceu-nos também que aproveitavam o espaço para falar de coisas “proibidas”. Entretanto, nessa atividade, todos participaram com entusiasmo, até mesmo a menina que sempre era excluída pela turma. O grupo 3 mostrou-se mais resistente a nos escutar e a escutar o que cada colega dizia, alguns alunos gritavam muito e outros ficavam conversando com o colega do lado. Quando perguntamos como era a relação entre eles na turma disseram que a turma se dava bem, que todos eram amigos, mas que sempre tem briga. Lembraram de algumas brigas históricas da escola e dizem que é bom ter briga por que assim eles têm do que falar. Comentaram também sobre uma menina da turma (9º ano) de quem todos tinham uma reclamação a fazer, dizendo que ela é muito irritante por sentar na frente e querer fazer tudo certinho para agradar aos professores. Levamos para eles as mesmas palavras citadas acima e, apesar do barulho, eles falaram bastante. Então pedimos a eles para montarem uma estória. Só dois meninos contribuíram para a estória que ficou mais ou menos assim: “João Marcelo estava na adolescência, assistia a uma aula que falava sobre a ditadura e não gostava; então mudou o tema da aula. Depois foi ver um jogo de futebol com seu amigo e eles acabaram tendo uma briga...”

Após concluírem a estória, não havendo muitos comentários a desenvolverem sobre ela, sugerimos que fizessem uma dramatização da mesma. Fizeram uma encenação em que não havia nenhum diálogo entre os personagens, apenas o contato físico da briga. Na cena, o professor tenta acabar com a briga e os dois começam a bater nele. Enfim o professor consegue chamar a inspetora, que é a única que fala alguma coisa na encenação, dizendo que eles deveriam parar de brigar senão iriam para a sala da diretora. No grupo 4 começamos propondo que falassem um pouco da relação entre eles. Disseram que se irritam uns com os outros porque passam muito tempo juntos. Falaram também sobre como meninos e meninas se relacionam de maneiras diferentes. Um menino falou sobre como os meninos se relacionam entre si, quando encontram um amigo utilizam xingamentos; já as meninas se beijam, abraçam, se tratam carinhosamente. Uma das meninas explicou: “Os meninos quando se encontram batem nas costas do outro, se xingam, mas quando estão longe falam que o amigo é um parceirão. As meninas fazem o contrário, se encontram e se mostram muito amigas, falam que estão com saudades, elogiam, se beijam, mas quando estão longe chamam a menina de feia, ridícula”. Quando apresentamos as palavras, eles não quiseram falar muito delas, disseram apenas que não pensam nem falam sobre sexo. Em seguida, aderiram à tarefa proposta por nós. Cada um escolhia uma palavra e acrescentava uma frase, de modo que construíram a seguinte estória: “Era uma vez um menino que tinha uma namorada que curtia funk. Aí eles estavam no baile funk e viram um menino cabeçudo. Os dois meninos começaram a brigar e o menino cabeçudo caiu, bateu a cabeça, teve uma hemorragia interna e morreu. Segunda feira, a menina estava numa aula chata e a professora perguntou como tinha sido o final de semana. Ela respondeu que não tinha sido muito bom. Começou outra aula que falava sobre a ditadura e ela estava se sentindo muito sozinha. Chegou alguém e matou todo mundo”. Durante todo o trabalho, notamos também

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nesse grupo uma grande dificuldade dos alunos em ouviremse uns aos outros. Falavam todos ao mesmo tempo, muitas vezes sem se importarem se estariam sendo ouvidos ou não. Além disso, observamos que eles ficavam sempre muito juntos fisicamente. Juntavam as cadeiras, acariciavam-se, apoiavam os pés em cima de colegas, meninas sentavam no colo uma da outra, sempre havendo muito contato físico entre eles. No segundo encontro com cada grupo, levamos algumas fotos que tinham relação com a escola e com algumas coisas que os alunos falaram sobre ela nos encontros anteriores. Nossa intenção era primeiramente que eles falassem um pouco sobre as fotos e depois, divididos em subgrupos, criassem uma cena com diálogos ou uma música em cima de uma foto escolhida por cada grupinho. As fotos consistiam em: 1)um professor brigando com um aluno na frente da turma toda, 2)um professor brigando com um aluno numa sala sozinho, 3)um dedo apontando para uma turma, 4)duas meninas na sala com os dedos levantados pedindo a palavra, 5)uma charge em que um professor/diretor coloca os alunos numa máquina que os transformava em carne moída - extraída do álbum “The Wall” de Pink Floyd 6)uma escola intitulada “feliz” com alunos felizes entrando nela, 7)alunos felizes na sala gritando “viva”, 8)alunos em uma aula na sala de informática e um deles se preparando para jogar uma bolinha de papel na professora que está de costas para a turma. No grupo 1, colocamos as fotos no chão, no meio da roda, mas, como eles não falaram muito espontaneamente sobre elas, pedimos logo para que criassem cenas a partir delas. Formaram-se subgrupos e cada um escolheu uma foto para trabalhar. Uma das cenas construídas foi o diálogo entre um professor e um aluno que não fez o dever pedido pelo professor. A partir da estória, falaram que isso acontece com frequência e fica uma situação muito chata na aula, porque ninguém fez o dever e algumas pessoas inventam desculpas. Uma aluna comentou: ”Mas tem vezes que é verdade, então como o professor vai fazer para saber se é uma desculpa ou

algo que realmente aconteceu? Porque às vezes é verdade e o professor não acredita. É difícil saber, mas se o professor não fizer nada ele vai perder a moral”. Outra cena elaborada no grupo 1 tratava de dois alunos que estavam ouvindo música durante a aula e a professora pede para que eles desliguem o mp3. Comentaram que os alunos ouviam música porque a aula era chata e a professora também, já que não sabia dar aula. Um aluno disse: “Essa atitude de pegar o telefone é normal, não é legal, mas sempre acontece. Se não tivesse celular ou mp3 a escola seria pior do que já é...”. Discutimos então sobre os limites e acordos que são feitos na escola. Uma das regras lá é a proibição do uso de celulares em sala. Uma menina falou que, quando tem alguém ouvindo música, o professor, ao invés de pegar o celular e levar para a diretora, deveria conversar com o aluno e pedir que este desligasse a música. Outra aluna disse que achava difícil que eles desligassem o aparelho, já que muitas vezes os professores pedem e nem assim os alunos obedecem. Eles acharam interessante essa possibilidade de fazer acordos com os professores, mas uma menina falou “nunca fiz acordo nenhum aqui porque ninguém respeita e não ouve o que eu falo”. Nos comentários às estórias, esse grupo enfatizou que a bronca do professor nunca adianta nada e que o comportamento do professor é que deve mudar. No grupo 2, a partir das estórias, acabamos tendo uma conversa muito interessante sobre respeito, sobre como ele está ou não presente na sala de aula e sobre o que seria um professor legal ou um professor chato. Um menino que nunca fala nada, disse, comentando a charge do Pink Floyd, que o diretor tira o direito dos alunos de serem diferentes e não os respeita, pois eles têm que usar uniforme, comer a mesma comida e às vezes são rebaixados. Um menino diz que todo mundo tem que ser igual e às vezes isso é meio chato. Perguntamos o que é um professor legal e eles dizem que é um professor calmo, diferente dos da foto: um professor que os deixe fazer perguntas e que responda a elas, que substitui uma avaliação por outra considerando a maior nota para eles não

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repetirem, ou ainda, que sabe explicar a matéria. Um aluno gritou e disse que os alunos não dão valor ao professor porque sabem que as ameaças não vão ter consequências. Acha que, às vezes, o professor tem que ter atitude, tirar ponto, mandar para a diretora, aí sim o professor consegue ser valorizado e impor respeito. Esse grupo disse também que o professor tem direito de brigar sim, mas não de colocar o dedo na cara do aluno, senão seria igual antigamente quando tinha palmatória; e que nem o aluno pode fazer isso com o professor. No segundo encontro com o grupo 3, aproveitando as observações anteriores em que constatamos um interesse grande do grupo sobre música, levamos as mesmas fotos e propusemos a eles que escolhessem uma ou duas fotos para fazer uma música. Escolheram a foto dos alunos felizes gritando “viva” e a charge do Pink Floyd. Ficaram um bom tempo ouvindo diferentes músicas através do celular para escolher qual seria o ritmo, acabaram escolhendo um funk e foram produzindo uma letra. Durante a produção um menino disse “Podemos falar que a escola não presta”. Depois de pronta, um dos alunos cantou a letra toda para a turma ouvir.

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FUNK DA TURMA (n º da turma)

Vou lançar pra tu E preste bem atenção É o bonde do XXXXX(nome da escola) Que chegou pra confusão A escola não presta A escola não presta A escola não presta Nem nunca vai prestar Pois estes professores Ninguém nunca vai aturar Educ. foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 1, p. 205-228, mar. 2015 / jun. 2015

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No grupo 4 começamos nossa atividade colocando as mesmas fotos no chão e eles logo repararam que todas as fotos

eram relacionadas à escola. Pedimos para que eles escolhessem umas duas fotos para fazer uma música, assim como a outra metade da turma (9º ano) tinha feito. Eles escolheram a que mostra uma escola feliz, a charge e a que tem o professor brigando com o aluno na frente da turma. Em seguida eles produziram uma música, também com ritmo de funk. A letra questiona se um dos que cantam quer estudar e a resposta é que não, porque um vício ( que disseram ser a internet) não deixa. FUNK DO MLP (Morena, Loira e Preta) “Posso falar? Vamos estudar! Você você você você você você você quer estudar? Vou não, quero não, posso não, meu vício não deixa não. Eu vou pra casa Eu vou pra casa Eu vou pra casa estudar no meu livrão Qui qui qui qui química!”

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DISCUSSÃO DE RESULTADOS

A partir da análise dos relatórios referentes ao trabalho de campo, elegemos alguns núcleos de sentido, ou categorias, extraídos do discurso produzido pelos adolescentes durante nossas conversações e constituídos a partir do método proposto por Bardin (1988). São eles: a dificuldade em ouvir/falar; o tema do respeito/desrespeito na relação com os professores e a escola; as tensões e o assunto “briga” nas relações entre os adolescentes na e com a escola. Seguindo esses três eixos de análise, o que aparece de imediato na nossa experiência de campo são o próprio limite e a dificuldade de realizar a proposta da pesquisa através da conversação. Para além da palavra, a experiência da conversação com os adolescentes nos confronta com a presença do corpo, dos gritos e da dificuldade de falar e de ouvir o que está sendo dito. A palavra aparece principalmente como forma de

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intimidar, calar o outro, assim todos falam ao mesmo tempo, anulando o que eles próprios estão dizendo e sem ouvir o que o outro está dizendo. Pudemos observar que o conteúdo do que era dito não é o mais importante. O que predomina é uma fala solta, sem autoria nem endereçamento, assim vão todos se atropelando pela fala. E, quando marcávamos isso, eles não se importam. No meio do barulho e das falas sobrepostas, quando algo importante era dito e nós conseguíamos ouvir, o tema não era explorado. Se alguém da nossa equipe pedisse para algum aluno repetir o que disse para os outros ouvirem, na maioria das vezes escapava, alegando que não tinha dito nada de importante. E, se alguém chegava a retomar sua fala, o assunto logo se perdia nas brincadeiras e na “falação”. Nesse sentido, durante o tempo em que tivemos contato com esses adolescentes, um dos pontos que nos chama a atenção é a dificuldade que eles têm de sustentar a própria palavra. O segundo eixo destacado por nós diz respeito ao tema do respeito/desrespeito ao professor. O que fica marcante na fala dos alunos é que muitas vezes não se sentem respeitados enquanto sujeitos capazes de pensar e falar por si próprios. O bom professor é descrito por eles não como aquele que é permissivo com eles, mas como aquele que, até pela sua seriedade com o trabalho, demonstra respeito em relação a eles. É esse professor o que tem autoridade sobre eles e que é respeitado por eles. Pensamos que esse segundo eixo tem ligação com os dois outros e iremos explorar esse fato mais adiante. Paralelamente, um terceiro eixo de destaque que nos chama a atenção são as agressões permanentes entre eles, tanto físicas quanto verbais. Parece-nos que uma relação tensa entre eles está sempre tão presente que já a encaram com naturalidade, como algo indispensável a suas vivências. Observamos assim um modo de abordagem violento e muito marcado pelo contato corporal nas relações entre eles, seja de modo erótico ou agressivo. Isso fica muito evidente também nas estórias criadas por eles, já que todas elas tinham ou

uma briga, uma discussão, e uma delas acabava com todos os personagens mortos no final. Essa tentativa de falar mais alto, de querer se sobrepor à fala do outro parece apontar para uma necessidade de afirmação de si pela anulação do outro, do diferente, que talvez represente uma ameaça. Como pensar teoricamente sobre essas questões? Uma discussão sobre o “bullying” termo que aparece inclusive nas falas deles, sempre em um tom meio irônico, torna-se importante para nós.

Conversações com adolescentes na escola: bullying ou mal estar nas relações?

PENSANDO SOBRE OS LAÇOS SOCIAIS ENTRE OS ADOLESCENTES NA ESCOLA: BULLYING OU MAL-ESTAR NAS RELAÇÕES ?

A violência nas escolas é um tema muito discutido hoje em dia, tanto na mídia quanto no em discussões acadêmicas ou dentro da própria escola. Uma das formas de explicar certos episódios de violência na escola surgiu com o termo bullying, que vem da língua inglesa, derivado de bully, que tem muitos significados, como valentão, brigão, fanfarrão e tirano. O bullying, por definição, compreende todos os atos de violência física ou psicológica, atitudes agressivas, intencionais e repetidas, adotadas por um ou mais indivíduos contra outro indivíduo, normalmente mais fraco e incapaz de se defender, causando neste dor e angústia. Esse fenômeno tem sido observado tanto em escolas públicas quanto privadas, em crianças e adolescentes de todas as idades, além de estar sendo objeto de preocupação nas áreas da saúde e da educação como um problema a ser identificado e combatido. Segundo Callegari e Pontes (2011) as crianças possuem maneiras de brincar que podem ser agressivas, mas quando a diversão não existe mais e a agressão é intencional e repetida, quando a criança começa a apresentar vontade de faltar na escola, todo dia chega angustiada em casa, a situação passou da brincadeira normal para um tipo de agressão mais específica. De forma semelhante, Neto (2005) apresenta a ideia de que o bullying pode ser classificado de duas maneiras: como direto,

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no caso de apelidos, agressões físicas e roubos; ou como indireto, no caso de atitudes de indiferença, de isolamento e difamação. Esses autores observam que o primeiro tipo é mais comum entre os meninos, já o segundo pode ser observado com mais frequência entre as meninas. Segundo os autores citados, existe também outra forma de bullying chamada cyberbullying, que vem crescendo a cada dia e é caracterizada pelo uso de internet ou telefones celulares para enviar textos ou imagens com a intenção de difamar uma pessoa. Para Neto (2005), Callegari e Pontes (2011), os bullies (agressores) normalmente podem ser considerados populares, aqueles que lideram grupos que os acompanham, que são admirados, mais fortes que as suas vítimas, hiperativos, tem dificuldade de atenção, são impulsivos e podem mostrar-se agressivos até mesmo com adultos. Já as vítimas de bullying são geralmente tímidas, fracas e frágeis, são pouco sociáveis, passivas, sofrem de ansiedade, possuem alguma diferença que costuma ser o motivo da agressão e são incapazes de se defender, não revelando o que acontece com elas, pois têm vergonha e medo de que nada seja feito e seu problema só piore. Há também as testemunhas, que não estão envolvidas diretamente nos atos de bullying, mas que costumam permanecer caladas e não entregam os bullies. Diante de tantas definições, um enquadramento é criado e assim pais e professores começam a procurar maneiras de acabar com o bullying, de identificá-lo, tentando adaptar as pessoas para a manutenção de uma ordem. Para Antunes e Zuin (2008), que fazem uma análise mais crítica do fenômeno do bullying, o que acontece é uma espécie de ilusão por parte das pessoas de que seria possível exercer uma forma de controle sobre a violência ao nomeá-la. Porém, eles apontam que, ao classificarmos os fenômenos, eles tornamse naturais e assim a raiz da sua existência fica de lado e os fatos não são questionados. O que ocorre é a prescrição do bom comportamento e de uma boa conduta moral. Fala-se em educação para a paz, mostrando como se deve agir em

determinadas situações e como se deve lidar com aquele que é diferente. Assim, as influências familiares, dos colegas, da escola, enfim, os problemas pessoais e sociais vividos por cada criança parecem não ser considerados. Segundo Antunes e Zuin (2008), a barbárie é a condição de existência da sociedade capitalista e a educação seria um caminho para a superação dessa barbárie. Para amainar essas práticas é necessário refletir a respeito da violência contida no processo civilizatório, e problematizá-la. O bullying então não seria uma simples manifestação da violência, ele se aproxima da questão do preconceito, principalmente quando se reflete sobre o que esta por trás da escolha dos grupos-alvo e quando pensamos em qual função psíquica a agressão tem para os agressores. Marcam ainda que, quando falamos em bullying ao invés de preconceito, esvazia-se toda a questão social, pois passa a ser somente um sintoma individualizado ou no mínimo isolado. Pensando a partir dessa crítica ao bullying, parece-nos que a violência nas relações dentro da escola deve ser vista como expressão de conflitos sociais maiores. Para alguns autores como Tavares dos Santos (2001) a violência é um fenômeno social, que faz parte da construção da cidadania de cada indivíduo. Como sabemos, as relações sociais que são estabelecidas no espaço escolar são muito complexas, pois envolvem pessoas de diferentes raças, crenças e ideias. Porém, como apresenta o autor, os conflitos podem ser potencialmente criadores de laços sociais. Nesse enfoque, a escola seria um espaço para construção de cidadania a partir do reconhecimento das particularidades e necessidades dos jovens, contemplando o multiculturalismo da nossa sociedade. Entretanto, segundo ele, esse processo tem sido dificultado exatamente pela falência social de mecanismos reguladores dos conflitos e das diferenças, o que se faz presente também nas relações dentro escola marcadas pelo silêncio e pelo “enclausuramento do gesto e da palavra” (TAVARES DOS SANTOS, 2001). De modo semelhante, para a psicanálise, o mal-estar na civilização nunca se extingue, apenas pode se transformar

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e encontrar destinos diversos, já que a constituição do laço social é um processo dinâmico, que impõe perdas e renúncias em nome de um projeto ou ideal comum. Alguns autores, como Lebrun (2004), trabalham com o conceito de uma violência estrutural, fundamental, que está ligada a linguagem e nos define como humanos. É uma violência que nos arranca da ordem da necessidade e nos coloca no simbólico, impondo assim um limite à satisfação plena da pulsão que só é parcialmente acessível por aquilo que se faz nomear enquanto desejo. O simbólico ao mesmo tempo nos define e nos limita, a linguagem nos encaminha para uma direção ao apontar que nem tudo é possível. Em psicanálise, a palavra tem então valor de um operador fundamental na regulação da vida pulsional, bem como na possibilidade do viver coletivo, que implica no consentimento em renunciar a determinados prazeres em nome de um ideal social compartilhado encarnado em um projeto ou em alguém em carne e osso, que faz função de referência simbólica. A partir dessa premissa, Lebrun (2004) retoma a noção freudiana de autoridade enquanto um poder que é concedido a alguém por meio de uma transferência amorosa (Freud, [1921]1976), fazendo uma diferenciação entre autoridade e autoritarismo. A autoridade é sustentada por um pacto, pelo simbólico, que reconhece as diferenças dos lugares, de modo que a palavra daquele que tem autoridade é reconhecida em seu valor a partir do lugar que ele ocupa. Já o autoritarismo se baseia em um poder imposto, não concedido. Entretanto, Lebrun (2004) observa que a autoridade legitimada na palavra está perdendo sua força e dando lugar a outra, que é legitimada pelos fatos enaltecidos pelo discurso hegemônico da racionalidade instrumental. Assim, professores e pais, sem legitimidade para sustentar sua autoridade, estão condenados à confrontação direta, sem serem protegidos pelo simbólico que asseguraria o reconhecimento da diferença dos lugares, sem o abuso do poder de um sobre o outro. É nesse contexto que podemos também pensar porque a educação das crianças

e adolescentes vem sendo deixada cada vez mais para a escola e para os especialistas. Os pais parecem cada vez mais querer evitar o conflito com seus filhos e a violência atual, embora não porte um endereçamento nem uma mensagem a priori parece ser uma resposta a nossa cultura, onde a violência estruturante não encontra lugar para se inscrever (COSTAMOURA, 2003). Portanto, tal como os adolescentes de nossa pesquisa revelam em suas falas, a autoridade dos professores vem claramente perdendo sua força, ao mesmo tempo em que a palavra e os pactos sociais se enfraquecem. Assim, são as relações sociais presentes no espaço da escola que nos ajudam a compreender a incidência da violência nesse cenário. A escola continua a ser reconhecida em seu potencial socializante, mas diante dos impasses nos mecanismos de regulação dos laços, ou seja, do declínio da palavra enquanto mediador para diálogos e pactos possíveis, a violência torna-se o recurso mais imediato. Enfim, nossa experiência de campo nos faz pensar, à luz das contribuições teóricas das ciências sociais e da psicanálise, que o bullying pode ser tomado como um sintoma social que expressa o mal-estar atual nas relações sociais e, particularmente, no modo como o enfraquecimento nos mecanismos de regulação social se manifesta dentro da escola. Trata-se então de muito mais de um sintoma social que se encarna nas crianças e adolescentes do que algo que possa ser localizado especificamente em um indivíduo, que assume o lugar daquele que ameaça a sociedade. Ou como algo que irrompe como uma peste, do nada, nas nossas escolas do mundo inteiro, como vem sendo tratado pela mídia e pelo discurso médico/científico. Lemos nos manuais, como combater o bullying, mas vamos entrar também dentro desta lógica do combate ao outro? Do outro que nos ameaça constantemente em nossa integridade narcísica? Nesse sentido, talvez a psicanálise possa nos ajudar a oferecer um contraponto a esse discurso, que vemos, por

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exemplo, no best-seller Mentes Perigosas (SILVA, 2008) e em outros que visam oferecer parâmetros para os pais e educadores identificarem as possíveis vítimas do bullying. Não se trata de negar a importância de proteger as crianças e jovens, porém, arriscamos supor que, como num círculo vicioso, quanto mais os pais e educadores tratarem as situações de conflito dentro e fora da escola de forma patologizante e individualizante, recorrendo aos manuais e as receitas de uma educação bem sucedida, mais irão se ausentar da dimensão socializante da tarefa de educar e, assim, mais contribuirão para perpetuar a lógica individualista e competitiva hegemônica, bem como para o esvaziamento da palavra e dos pactos que sustentam a vida em sociedade.

Luciana Coutinho Bruna Osorio

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Luciana Coutinho Bruna Osorio

Data de recebimento: agosto de 2012 Data de aceite: fevereiro de 2014

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RESENHAS

Pensar y Vivir la Educación

PENSAR Y VIVIR LA EDUCACIÓN María Milena Quiroz1

SKLIAR Carlos e LARROSA Jorge (Org.). Experiencia y Alteridad en educación. Rosário. Argentina: Homo Sapiens Ediciones, 2009.

Y sobre educación nadie puede tener la última palabra, ni siquiera la penúltima. Desde la experiencia y la alteridad no puede haber, para la educación, ni imperativos ni recomendaciones. Desde la experiencia y desde la alteridad el pensamiento de la educación no puede tener final, ni finalidad, ni reposo. (LARROSA, 2009, p. 189). El libro Experiencia y Alteridad en Educación fue publicado por primera vez en Argentina en el año 2009. Si bien, a partir de éste, hay diferentes artículos publicados en portugués, italiano y otros idiomas el libro completo, con todos los artículos que lo conponen, sólo se encuentra en español. La obra fue organizada por Jorge Larrosa y Carlos Skliar y participaron varios profesores de la Flacso, Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales, Argentina y de la Universidad de Barcelona, España. El libro gira y se fundamenta en torno de las ideas de experiencia y de alteridad en educación como claves para pensar la construcción de diferentes espacios educativos, las posibilidades del hombre, lo cotidiano y los acontecimientos, el lenguaje y las narrativas y la crítica a la metafísica antigua como delimitación ontológica sobre el estudio y el reconocimiento del otro como alteridad. La reflexión central del libro se orienta en: La experiencia como acontecimiento cotidiano educativo de irrupción, la alteridad como tarea de mirar y hablar con otros diferentes al modelo propuesto por el 1

Maria Milena Quiroz é Mestranda en Educación. PPGE- UFJF. Becada de la OEA-CGUB. E-mail: [email protected].

E-mail: [email protected]

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antropocentrismo y la educación como posibilidad y apertura de estos conceptos a través de la suspensión del tiempo, por así decir. De este modo, el libro se propone recorrer desde la filosofía, la antropología y la poética en educación diferentes ideas, posiciones, espacios e ideologías que han definido la experiencia educativa lejos de los estudios de reconocimiento del otro. Carlos Skliar en una entrevista durante la presentación del libro expresaba que el siguiente está destinado a todas las personas que deseen pensar la educación a partir de la irrupción con la realidad. Es decir, a desdoblar los espacios escolares a fin de volver a habitarlos de una forma diferente. El libro invita a una lectura lenta, detenida y calma que tienda a la suspensión del pensamiento y a ampliar las diversas formas con que se colocan las nociones y las piezas sobre los problemas y la experiencia educativa. No es un libro de formación docente, dice Skliar, por el contrario de inquietud y análisis educativo. Es un libro que requiere de tiempo para ser pensado y cuestionarse. Vale la pena señalar que Carlos Skliar es doctor en fonología con especialidad en problemas de la comunicación humana. Es pós-doctor en educación por la Universidad de Rio Grande do Sul, Brasil y por la Universidad de Barcelona, España. Fue profesor en ambas universidades, también en la Universidad de Siegen de Alemania, Universidad Metropolitana de Chile, Universidad Pedagógica de Bogotá, entre otras. Actualmente es profesor de la Fracso e investigador del Conicet, Argentina. Jorge Larrosa es doctor en Pedagógica y pos-doctor en la misma área del Instituto de Educación de la Universidad de Londres y del Centre Michel Foucault de París. Actualmente es profesor en la Universidad de Barcelona, España y es invitado por varias universidades del mundo. Ambos pensadores tienen múltiples obras publicadas en el área de filosofía, poética y educación. Son importantes

estudiosos del lenguaje en educación. Actualmente, son conocidos por ser grandes influyentes del pensamiento y los estudios en el campo en Filosofía de la Educación. En su comienzo, el libro coloca en cuestión la difícil tarea de escribir sobre experiencia y alteridad en educación. El prólogo del mismo, escrito por José Contreras Domingo, parte de la pregunta: ¿Cómo y por dónde se puede comenzar a hablar de experiencia y de alteridad? A fin de abordar esta pregunta Contreras Domingo trae una imagen, como metáfora, de una mano que intenta agarrar el agua. El autor dice que el agua pasa por las manos de una forma fugaz y no hay forma de contenerla o sostenerla, ella simplemente cae y los que nos queda es la sensación de su pasaje. La memoria del pasaje del agua por las manos visibiliza la posibilidad que tuvo la mano de haber contenido el agua. Contreras Domingo dice: Sólo con la sensación y la percepción del paso del agua por la mano la experiencia tiene sentido, nada será en vano si se conserva la sensación y se tiene conciencia de la imposibilidad de poseerla. Con esta metáfora, el autor intenta explicar todo el camino que el libro busca recorrer a través de las dos ideas centrales. Por ello, en el devenir del libro experiencia y alteridad serán conceptos indagados desde la propia experiencia de pensarlos, sentirlos y no poderlos definir. La compleja realidad histórica, educativa, política y humanística que envuelve los conceptos no permite definirlos ni buscar verdades en ellos sino profundizarlos a fin de “devolverle oscuridad a lo que parece claro”, sostiene Jorge Larrosa en el propio libro. Por ello, esta obra es un impulso por transitar la oscuridad de los problemas educativos actuales desde diferentes tradiciones, aristas y perspectivas. El libro se divide en ocho capítulos más el epilogo. El primer capítulo, denominado como el título, es escrito por Jorge Larrosa y desarrolla la idea de experiencia como “eso que me pasa”. La experiencia es pasar por algo nuevo y no conocido. En ese sentido es algo que no soy yo y no depende

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de mí, sostiene. A este principio él lo llamo de “exterioridad” o “alteridad” como algo fuera de mí que acontece conmigo y tiene que ver con cómo habitar el mundo. Ex-per-ien-tia significa para el autor “salir hacia afuera y pasar a través”, este movimiento es un saber ya que esa experiencia, externa que acontece, sin ser esperada me interpela y se convierte en algo significativamente irreductible, único y singular, y así trasforma la condición de estar presente.

María Milena Quiroz

El autor piensa el concepto como poética y como pasión también. Él dice, la experiencia modifica lo que somos y moviliza nuestras posibilidades de saber en el mundo. Así, la experiencia es vida (de cierto modo) es un resonar sobre la finitud de ella y es una indeterminación de la existencia. En este sentido es una experiencia poética de crear la vida y es de pasión al posibilitar que pase en mí: “Eso que me pasa”. El último capítulo del libro (nº ocho) también está escrito por Jorge Larrosa y se denomina: Palabras para una educación otra. En este caso, él invita a pensar unas sugerencias para escribir sobre y para educación. Entre las sugerencias que ofrece resalta especialmente el escribir y leer como experiencia de vida necesaria para pensar otra educación:

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Hay que leer para que las palabras de otros nos ayuden a encontrar nuestras propias palabras, las que aún no tenemos o las que, por tenerlas demasiado, nos suenan demasiado falsas, demasiado confortables, demasiado ajenas. Hay que leer para que las ideas de los otros nos ayuden a encontrar nuestras propias ideas, para que nos ayuden a separarnos de lo que ya pensamos, para que nos ayuden a pensar lo que aún no somos capaces de pensar… (…) Se trata también, y sobre todo, de leer a aquellos que pueden ayudarnos a elaborar mejor el sentido de los que nos pasa y que pueden ayudarnos a ser más sensibles y más receptivos a esa alteridad cuya presencia nos desafía, nos

incomoda y, a veces, nos exige una respuesta.(Larrosa, 2009, p. 192)2. En este aparatado Larrosa expone y aborda una inquietud actual de las Ciencias Humanas y Sociales; el encontrar ideas que ayuden a pensar nuestros propios problemas desde nuevos caminos. Hay que desafiar las propias ideas, dice. Muchos estudiosos de Larrosa señalan que el autor posibilita pensar cuestiones levantadas por Derrida, Deleuze, Foucault, entre otros de forma amena y atrapante. Como seguidora del autor, considero que él invita a entrar en autores complejos de una forma sutil y simple, por ello, también invita a entrar en problemas filosóficos complejos de una forma poética, por así decir. Larrosa es considerado, más allá de buen escritor, un buen lector de todo el pensamiento dentro de las Humanidades, a esto se debe la popularidad de éste en el campo. El segundo capítulo es escrito por la autora española Núria Pérez de Lara y se denomina: Escuchar al otro adentro de sí. El siguiente profundiza sobre la idea de experiencia pedagógica como lugar donde nace el saber. Un saber sin pretensiones de universalidad pero que guarda la unidad de las cosas de la vida. La construcción de saberes sobre los otros es el especial interés para la autora. La experiencia con y a partir de los otros irrumpe los espacios institucionalizados y los desarma para ser de otro modo. La autora visibiliza cómo los otros aparecen ante nosotros. Éstos comparten los mismos espacios que habitamos pero de forma invisible, como olvidados o relegados. De aquí, la necesidad de reconocer al otro. Reconocer esa necesidad del Otro (las otras, los otros) a la vez que la distancia que le separa de mí, es un aprendizaje que no puede producirse desde la rígida seguridad que no coloca en la certeza de que los diferentes, los diversos no solo son otros u otras sino que además están en otra parte, fuera de nosotros, y, que cuando aparecen junto a nosotros, solo es 2

LARROSA, J. Op. Cit.

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porque nos necesitan, ellos y ellas, a nosotros.(Pérez de Lara, 2009, p. 49)3. Para ampliar el tema de la experiencia pedagógica la autora rescata el primer aprendizaje de los niños junto a sus madres y reflexiona sobre cómo este primer saber-aprendizaje, cargado de sentimiento y sensaciones, surge desde un “dejarse tocar”. Esta positiva experiencia primera de los niños y las madres se basa en la confianza y la escucha del otro. La autora reconoce las limitaciones de la educación frente a la confianza y a la escucha del otro. Así, manifiesta la necesidad de buscar nuevos caminos en la educación actual basados en la valoración del otro diferente a mí como lo realiza una madre con su hijo al aceptarlo como otro diferente a ella. El tercer capítulo, escrito por el español Joan-Carles Mèlich se denomina: Antropología de la situación y aborda la presencia y ausencia como ideas que nos configuran en lo que somos. Las personas como corporeidad en el tiempo y en las situaciones se configuran por presencias y ausencias, por estar presente y ausente, por aquello que tienen y aquello que no. La presencia, no es estar instalado del todo en el mundo y en tiempo, por el contrario es herencia. El estar presente implica un “no ser del todo” ya que siempre habrá una tensión entre lo que se es, lo que aún no se es y lo que se es legado o heredado. Así, el autor piensa la alteridad sobre cómo habitamos el mundo con restos del pasado, con fantasmas, con ausentes y con cosas que aún no son. Por ello, nunca nuestras vidas nos pertenecen del todo y siempre estamos habitamos por otros. “Vivimos en un perpetuo éxodo, nunca una situación es realmente definitiva, ni siquiera la situación-limite, porque de no ser así estaríamos en el infierno, el lugar en el que abandonamos toda esperanza” (Mélich, 2009, p.92)4.

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PEREZ DE LARA, N. Escuchar al otro dentro de sí. In: SKLIAR Carlos e LARROSA Jorge (Org.). Experiencia y Alteridad en educación. 1ª edición. Rosario. Argentina: Homo Sapiens Ediciones. 2009. MÈLICH, C. Antropología de la situación. In: SKLIAR Carlos e LARROSA Jorge (Org.). Experiencia y Alteridad en educación. 1ª edição. Rosário.

Este capítulo de profunda reflexión ontológica e epistemológica propone una antropología de la situación para pensar la vida de las personas en el mundo (como siendo y estando) y la construcción de la identidad a partir de las situaciones diarias de la vida. Los capítulos cuatro y cinco son desarrollados por el argentino Ricardo Forster. En el capítulo cuatro, Los rostros de la alteridad, el autor rescata el libro de Derrida llamado Adios a Manuel Levinas. Forster rescata del libro el problema sobre el abandono de la hospitalidad que se fundamenta en la falta de acogida del extranjero. Derrida, al abordar este problema, coloca como central el estudio sobre el otro y sobre lo mismo, sobre la alteridad y la diferencia, sobre la hospitalidad y la amistad mirando los rastros del pasado del siglo XIX. Forster piensa la recepción de estos estudios en América Latina, sobre todo con Enrique Dussel que toma el otro como central de sus estudios pos-coloniales. En América Latina el estudio del otro implicó una crítica a la filosofía griega y a la metafísica antigua a fin de, como dice Derrida, acoger al extranjero. En este caso, el extranjero es el otro diferente al modelo de la colonización. El capítulo cinco, Los tejidos de la experiencia, trabaja el concepto de experiencia desde dos pensadores; Walter Benjamín y Giorgio Agamben. Para abordar el concepto de experiencia, estos realizan profundas críticas a la ciencia moderna y la responsabilizan, de cierto modo, por la expropiación de la experiencia cotidiana. Es decir, la desvalorización de lo cotidiano como acontecimiento y fuente de saber. El apartado invita a indagar este problema que tiene su raíz en el lenguaje y en la historia de la ciencia moderna. Es decir, en la compleja separación de la experiencia como experimento y la sensibilidad como aquello que se vive y nunca podrá irrumpir los espacios. Pero “el sujeto es un campo de batalla en el que el giro hacia atrás en términos de Argentina: Homo Sapiens Ediciones. 2009.

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recuperación de lo perdido sólo puede darse como radical experiencia del presente” (Foster, 2009, p. 127)5, de este modo, ambos pensadores recuperan tal problema para pensar los hechos posteriores en las sociedades vinculados a perder el rastro sobre la experiencias de los pueblos y los anónimos en la historia moderna. Para ello, proponen el concepto de infancia como lugar donde se encuentra la pérdida del pasado o lugar que aún tiene un mensaje para nosotros. En la reflexión alrededor de la experiencia de la infancia podemos, quizás, diría Benjamín, encontrar el modo de percibir el sentido de una época, podemos hurgar por las esenciales mutaciones que se han ido operando en la travesía del sujeto moderno, podemos comprender, tal vez mejor, lo que significa la pérdida de este otro de uno mismo, esa presencia que se vuelve ausencia de la alteridad del mundo, allí donde la infancia queda vacía de sí misma y en la que los últimos restos de una experiencia genuina se debaten para no transformarse en formas cosificadas de la subjetividad. (Foster, 2009, p.133)6. El capítulo seis es un apartado diferente. Carlos Skliar, autor, construye este apartado con diferentes ideas, frases, citas, pensamientos y fragmentos que giran en torno de las ideas de experiencia y de alteridad. Skliar rescató todos aquellos fragmentos de libros o frases de pensadores o simples pensamientos de él que lo habían hecho pensar estas ideas y considera disparador para reflexionar sobre y a partir de ellas. Por ejemplo: -¿Pensar el otro es hacernos, siempre, preguntas del otro, ante la ausencia del otro?, lo que para nosotros tanto le “falta” al otro, ¿le hace tanta “falta” al otro?, Inclusión del latín in + claussere = enclausurar, poner en clausura”-. El capítulo siete, de la pensadora argentina Carina Rattero, se llama: La pedagogía por inventar. Este capítulo

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FORSTER, R. Los tejidos de la experiencia. In: SKLIAR Carlos e LARROSA Jorge (Org.). Experiencia y Alteridad en educación. 1ª edición. Rosario. Argentina: Homo Sapiens Ediciones. 2009. FORSTER, R. Op. Cit.

habla de las políticas públicas de inclusión de estos últimos años en la región y cómo tales, contrario a lo que se piensa, han sido de imposición y de exclusión. El fuerte deseo de que todos pertenezcan ha impulsado la homogeneización sociocultural. Ella propone pensar o inventar una pedagogía con otra relación con la infancia como plural y crear otros espacios de participación desde lo que cada uno tiene para compartir sin eso ser en-clausurado. Lo cierto es que no hay una pedagogía de lo inesperado, de la contingencia, no puede haberle en el sentido técnico. Más bien podríamos pensar en una pedagogía de la imaginación narrativa. Una pedagogía abierta a leer lo que acontece, una pedagogía de la situación, de la decisión… ( ) Esa escuela que incluía en la pretensión universalízate también producía efectos terribles: tachando las diferencias, acallando particularidades, excluyendo polifonías, normalizando y descalificando todo aquello que, no encuadrado en sus parámetros, al afirmar su diferencia, pudiese interpretarse como peligroso. (Rattero, 2009, p.167)7. En último lugar, se encuentra el epílogo, denominado: En busca del murmullo perdido, escrito por Laura Duschatsky. El epilogo viene a ser el discurso final que intenta resumir o sintetizar todos los argumentos e ideas fundamentales del libro. Por medio del rescate de relatos en la escuela es que la autora aborda tal resumen. Los relatos cotidianos de la escuela, dice la autora, son aquellos que visibilizan las ideas desde donde se originan las prácticas y las premisas sobre la realidad educativa. Los relatos como fuentes de sentidos representan pistas para analizar las propias prácticas y el devenir de la escuela. Por eso, la autora propone escuchar el murmullo del acontecer diario en la escuela en tanto éste guarda el secreto del pensamiento. El 7

RATTERO, C. La pedagogía por inventar. In: SKLIAR Carlos e LARROSA Jorge (Org.). Experiencia y Alteridad en educación. 1ª edición. Rosario. Argentina: Homo Sapiens Ediciones. 2009.

Pensar y Vivir la Educación

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escuchar este murmullo posibilitaría una disposición a la demora con respecto al pensar y al hablar sobre lo que se escucha, se piensa, se percibe y se siente. A modo de conclusión, “la educación es el lugar de la relación y el encuentro con el otro”, bajo esta noción el libro y todos los pensadores se juntan para debatir y reflexionar sobre: ¿Por qué pensar sobre el desafío de la educación hoy? ¿Por qué pensar sobre la alteridad y la experiencia en educación hoy?. La profunda preocupación de cada autor sobre estos temas simboliza la responsabilidad actual de pensar la escuela, la realidad educativa, el desarrollo del humanismo poscolonial y moderno y las políticas sociales de la región en este último tiempo. El sentido, tal vez, de volver a preguntarse por aquello que parece resuelto impulsaría el volver a mirar lo que en apariencia funciona bien, es volver a habitar los espacios olvidados. Todos los autores, de profunda formación filosófica, poética, política y educativa, tienen como hilo común en sus artículos: la vida y sobre todo, cómo vivir la educación. Para abordar ésto, ellos revisan la tradición humanista en la ciencia y la historia, y visibilizan la herencia simbólica que llevó a que pensemos de un modo instaurado o autómata. Por eso, como dice Larrosa, devolverle oscuridad a lo que parece claro es la propuesta del libro. Considero que es un libro muy interesante que invita a aprender y a pensar la vida, nuestra vida. Invita también a otras lecturas y atrae a conocer diferentes tradiciones de pensamiento. No es un libro afirmativo que tiene resuelto lo que aborda, por el contrario inquieta, levanta y abre preguntas. Esto motiva, juntos a los autores, a pensar los contornos de tales preguntas desarmadas en el libro a fin de volverlas a hacer. Por ello, denominaré esta reseña como Pensar y vivir la educación. El título se debe a la propia urgencia del libro por pensar- vivir la educación desde la propia experiencia y alteridad como palabras para el encuentro.

REFERENCIAS

Pensar y Vivir la Educación

LARROSA, J. Palabras para una educación otra. In: SKLIAR Carlos e LARROSA Jorge (Org.). Experiencia y Alteridad en educación. 1ª edición. Rosario. Argentina: Homo Sapiens Ediciones. 2009.

Data de recebimento: novembro de 2014 Data de aceite: março de 2015

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AUTORES

ANTÔNIO JOAQUIM SEVERINO Professor aposentado de Filosofia da Educação na Faculdade de Educação da USP, na categoria de Professor Titular, MS-6. Licenciou-se em Filosofia na Universidade Católica de Louvain, Bélgica, em 1964. Na PUCSP, apresentou seu doutorado, defendendo tese sobre o personalismo de Emmamuel Mounier, em 1972. Prestou concurso de Livre Docência em Filosofia da Educação, na Universidade de São Paulo, em 2000. Em 2003, prestou concurso de titularidade. Dentre suas publicações, destacam-se Metodologia do trabalho científico (Cortez, 1975; 23. ed. 2007); Educação, ideologia e contraideologia. (EPU, 1986); Filosofia (Cortez, 1992; 3ed 2009); Filosofia da Educação (FTD, 1995; 2. ed. 1998); A filosofia contemporânea no Brasil: conhecimento, política e educação (Vozes, 1999); Educação, sujeito e história (Olho d´Água, 2002); Como ler textos filosóficos (Paulus, 2008); Filosofia na formação universitária (Arte Livros, 2010); Ensinar e aprender com pesquisa no ensino médio (Cortez, 2011) e vários artigos sobre temas de filosofia da educação. Seus estudos e pesquisas atuais situam-se no âmbito da filosofia e da filosofia da educação, com destaque para as questões relacionadas com a epistemologia da educação e para as temáticas concernentes à educação brasileira e ao pensamento filosófico e sua expressão na cultura latino-americana e brasileira. E-mail: [email protected]

MARISA MEZA Mestra em Ciências da Educação pela Universidade de Tubingen, Alemanha; Doutora em Filosofía com ênfase em Ética pela Universidade do Chile. Professora da Faculdade de Educação da Pontificia Universidad Católica do Chile nas áreas de Filosofía da Educação, Ética Profissional para educadores e Didática de Filosofía. Tem se interessado especialmente na docência e na formación de futuros professores e professoras, desenvolvendo pesquisas associadas a temas como a concepção

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de autoridade pedagógica no contexto democrático e da melhora da competência moral democrática em futuros professores mediante a discussão de dilemas morais. E-mail: [email protected]

JIM GARRISON Doutor em Filosofia (The Florida State University, 1981) e professor na Virginia Polytechnic Institute/Blacksburg, EUA, desde 1992, onde orienta trabalhos e ministra disciplinas ligadas aos seguintes temas: fundamentos sociais da educação, filosofia da educação, a filosofia de John Dewey e pragmatismo e educação. Integra importantes associações de filosofia da educação nos Estados Unidos e tem ministrado conferências em instituições de ensino em vários países. Dentre seus trabalhos, destacam-se o livro Dewey and Eros: Wisdom and Desire in the Art of Teaching (Teachers College Press, 1997), e as coletâneas Reconstructing Democracy, Recontextualizing Dewey: Pragmatism and Interactive Constructivism in the Twenty-First Century (State University Press of New York, 2008) e Reverence in Teaching: Reviving an Ancient Virtue for Today’s Schools (Palgrave Macmillan, 2012, em coautoria com A. G. Rud). E-mail: [email protected]

TARSO B. MAZZOTTI

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Graduado em Pedagogia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (1972), mestrado em Educação pela Universidade Federal de São Carlos (1978) e doutorado em Educação pela Universidade de São Paulo (1987). Professor Titular de Filosofia da Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atualmente é pesquisador associado da Fundação Carlos Chagas e professor adjunto da Universidade Estácio de Sá. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Filosofia da Educação, atuando principalmente

nos seguintes temas: representações sociais, retórica, filosofia da educação, epistemologia e educação ambiental. Publicou vários livros, capítulos de livros e artigos relacionados a esses temas de pesquisa. E-mail: [email protected]

ALFREDO VEIGA-NETO Graduado em História Natural e em Música. Mestre em Genética e Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professor Titular do Departamento de Ensino e Currículo e Professor Convidado Permanente do PPG-Educação da UFRGS. Coordena o Grupo de Estudo e Pesquisa em Currículo e Pós-Modernidade (GEPCPós/UFRGS) e integra o Grupo de Estudo e Pesquisa em Inclusão (GEPI/ UNISINOS/CNPq). Tem experiência na área de Educação, atuando principalmente nos seguintes temas: Estudos de Currículo, Estudos Foucaultianos, Crítica Pós-estruturalista/ Pós-metafísica, Interdisciplinaridade. Além de ter publicado os livros Foucault & a Educação e Estudos Culturais da Ciência & Educação, organizou várias obras, sendo as mais recentes: Fundamentalismo & Educação, Figuras de Foucault, Cartografias de Foucault, Foucault: Filosofia & Política, Para uma vida não-fascista, Imagens de Foucault & Deleuze: ressonâncias nietzschianas, Crítica pós-estruturalista e Educação. Dirige as seguintes coleções, para a Editora Autêntica: Pensadores & a Educação, Temas & Educação e Estudos Foucaultianos. E-mail: [email protected] 247

MAXIMILIANO VALERIO LÓPEZ Possui Doutorado em Educação, com ênfase em filosofia da educação, pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro; Mestrado em Educação, também pela Universidade do Estado de Rio de Janeiro; Especialização em Ensino da Filosofia pela Universidade de Brasília; e Graduação em Ciencias de la Educación pela Universidad Nacional de Cuyo - Argentina. Áreas de interesse: Filosofia da Educação, Ensino da Filosofia e Filosofia com Crianças, atuando principalmente nas interfaces entre filosofia, poética e educação. Principais temas abordados: Biopolítica e Colonialidade; Filosofia e Infância; Poética da educação; Educação e Prática Filosófica. E-mail: [email protected]

WALTER OMAR KOHAN Doutor em Filosofia pela Universidade Ibero-americana do México, fez pós-doutorado na Universidade de Paris VIII. É Bolsista do Programa Pró-Ciência (FAPERJ/UERJ) e pesquisador do CNPq. Orienta trabalhos de mestrado e doutorado nas áreas de filosofia da educação e ensino de filosofia. Dentre seus livros em português: Filosofia na Escola Pública (Petrópolis, RJ: Vozes, 2000), Infância. Entre Educação e Filosofia (Belo Horizonte: Autêntica, 2003), Filosofia. O paradoxo de aprender e ensinar (Belo Horizonte: Autêntica, 2010) e Sócrates & a educação (Belo Horizonte: Autêntica, 2011). E-mail: [email protected]

LUCIANA GAGEIRO COUTINHO

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Possui graduação em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1992), mestrado em Psicologia (Psicologia Clínica) pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1997) e doutorado em Psicologia (Psicologia Clínica) pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2002) com bolsa-sanduíche (CNPQ) em

Paris VII. Atualmente é Professora Adjunta da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense, onde integra o grupo de pesquisa Subjetividade, Educação e Cultura (NUPES). É também pesquisadora associada ao Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa e Intercâmbio para a Infância e Adolescência Contemporâneas (NIPIAC) da UFRJ. É psicanalista, membro do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro. Sua área de pesquisa e atuação concentra-se em Psicanálise e Educação, na interface com outras áreas das ciências humanas e sociais, com ênfase na questão da adolescência no contemporâneo, tanto do ponto de vista teórico quanto institucional e clínico. Dedica-se principalmente aos seguintes temas: adolescência, educação, psicanálise e novas formas de intervenção. E-mail: [email protected]

BRUNA OSORIO DE OLIVEIRA Graduada em psicologia na Universidade Federal Fluminense, bolsista de iniciação científica 2010/2012. E-mail: [email protected]

MIRIAM LEITE Graduada em História pela Universidade Federal Fluminense (1992), mestre em Educação, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2004), e doutora em Educação, também pela PUC-Rio (2008). Foi professora de História no ensino fundamental da rede pública e privada da cidade do Rio de Janeiro e atualmente é professora adjunta do Departamento de Estudos Aplicados ao Ensino e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação/ProPEd da UERJ, lecionando e pesquisando sobre os seguintes temas: diferença, desigualdade, adolescência e juventude na escola, currículo e didática geral. Coordena, no ProPEd, a pesquisa Performatividade, diferença e desigualdade na educação escolar do jovem adolescente, com financiamento CNPq e FAPERJ. E-mail: [email protected]

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JACQUELINE LIMA Graduada em Ciências Biológicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1986), especialista em Ensino de Ciências pela Universidade Federal Fluminense (2000), mestre em Educação pela UFF (2002) e doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2011). Foi professora de Ciências Biológicas no ensino fundamental da rede pública e fundamental e médio da rede privada da cidade do Rio de Janeiro. Atualmente é professora adjunta do Departamento de Didática da Faculdade de Educação da UFRJ, onde desenvolve atividades de ensino, pesquisa e extensão relacionadas ao ensino de Ciências, educação ambiental na escola e currículo. É membro do Laboratório de Investigações em Educação, Ambiente e Sociedade e coordena a linha de pesquisa Educação Ambiental nos contextos formais e não formais: políticas e formação. E-mail: [email protected]

MARIA MILENA QUIROZ

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Possui graduação em Ciência da Educação pela Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade Nacional de Cuyo, Mendoza, Argentina. Tem experiência na área de Filosofía da Educação com ênfase em educação popular, educação não formal e experiências comunitárias. Iniciouse como bolsista de pesquisa, categoria aluna avançada, pela Secretaria de Ciência e Técnica da Universidade Nacional de Cuyo durante o ano 2010/2011. Depois obteve a bolsa de pesquisa, categoria graduada, pela Secretaria de Ciência, Técnica e Pós-Graduação da Universidade Nacional de Cuyo no ano 2011/2012 . Participou do programa acadêmico de intercâmbio - PAME-UDUAL- na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia em Vitória da Conquista, Bahía, Brasil durante o ano de 2012. Trabalhou como pesquisadora adscripta no Centro de Pesquisa Interdisciplinar de Filosofia e Escola (CIIFE) do Instituto de Filosofia Latino-americana da

UNCuyo e como professora auxiliar da disciplina: Seminário de monografia do Bacharelado em Ciências da Educação. FFyL. UNCuyo. Atualmente é bolsita de pesquisa da OEA (OAS-GCUB) no Mestrado em Educação e integrante do Núcleo de Estudos sobre Filosofía, Poética e Educação na Universidade Federal de Juiz de Fora. Minas Gerais. Brasil. E-mail: [email protected]

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PERMUTAS 1. Universidade Estadual Paulista (UNESP) Campus Bauru - Ciência e Educação 2. UNIMEP (Universidade Metodista de Piracicaba) Comunicações – Caderno do programa de P.G. 3. Ministério da Educação (MEC) Secretaria de Educação Especial - Integração MEC – Sec. Educação Especial 4. CEUC (Centro Universitário de Corumbá) UFMS – Seção Biblioteca. 5. UFG (Universidade Federal de Goiânia)- Cadernos de Educação. 6. UNIC (Universidade de Cuiabá) - Cadernos De Educação. 7. USJT (Universidade São Judas Tadeu) - Integração – Ensino pesquisa. 8. FAESA (Faculdades Integradas Espírito-Santenses) Revista de Educação da FAESA. 9. UFMT (Universidade Federal de Mato Grosso) - Revista Educação Pública UFMT. 10. UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) - Núcleo de Estudos Sobre Trabalho e Educação. 11. UFV (Universidade Federal de Viçosa) – DEBATE. 12. FAEEBA (Faculdade de Educação do Estado da Bahia) Revista da FAEEBA. 13. Universidade do Oeste Paulista (UNOESTE) - Biblioteca Conselheira Nair Fortes Abu-Merhy. 14. Editora UaPÊ Espaço Cultural Barra - Espaço Cultural Barra. 15. Cibec (Centro de Informação e Biblioteca em Educação). 16. Ibero-Amerikanisches Institut (IAI) Preußischer Kulturbesitz.

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17. Unitins (Fundação Universidade do Tocantins). 18. UPE (Universidade de Pernambuco). 19. USP (Universidade de São Paulo) - Serviço de Biblioteca e Documentação. 20. Uneb (Universidade do Estado da Bahia). 21. Unemat (Universidade do Estado de Mato Grosso). 22. UEMG (Universidade do Estado de Minas Gerais). 23. Udesc (Universidade do Estado de Santa Catarina). 24. UEA (Universidade do Estado do Amazonas). 25. UEPA (Universidade do Estado do Pará). 26. UEPB (Universidade Estadual da Paraíba). 27. UNEAL (Universidade Estadual de Alagoas). 28. Unicamp (Universidade de Campinas) - Faculdade de Educação. 29. UNICAMP (Universidade Estadual de Campinas) Educação e Sociedade – CEDES. 30. UEFS (Universidade Estadual de Feira de Santana). 31. UEM (Universidade Federal de Maringá). 32. UEG (Universidade Estadual de Goiás). 33. UEL (Universidade Estadual de Londrina). 34. Unimontes (Universidade Estadual de Montes Claros). 35. UEMS (Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul). 36. UEPG (Universidade Estadual de Ponta Grossa). 37. UERR (Universidade Estadual de Roraima) - Multiteca. 38. UESC (Universidade Estadual de Santa Cruz). 39. UEAP (Universidade do Estado do Amapá). 40. UECE (Universidade Estadual do Ceará). 254

41. Unicentro Paraná (Universidade Federal do CentroOeste).

42. UEMA (Universidade Estadual do Maranhão). 43. UENP (Universidade Estadual do Norte do Paraná). 44. UENF (Universidade Estadual do Norte Fluminense) Biblioteca. 45. Unioeste (Universidade Estadual do Oeste do Paraná). 46. Fecilcam (Faculdade Estadual de Ciências e Letras de Campo Mourão). 47. UESPI (Universidade Estadual do Piauí). 48. UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro). 49. UESB (Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia). 50. UERGS (Universidade Estadual do Rio Grande do Sul). 51. UERN (Universidade do Estado do Rio Grande do Norte). 52. URCA (Universidade Regional do Cariri). 53. Uvanet (Universidade Estadual Vale do Acaraú). 54. PUC Paraná (Pontifícia Universidade Católica do Paraná) - Revista Diálogo Educacional PUC-PR. 55. PUC Campinas (Pontifícia Universidade Católica de Campinas). 56. PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) Campus Perdizes. 57. PUC-SP Campus de Consolação. 58. PUC-SP Campus de Santana. 59. PUC-SP Campus de Sorocaba. 60. PUC-SP Campus de Barueri. 61. PUC-SP. 62. PUC Rio (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro). 63. UENF (Universidade Estadual do Norte Fluminense. 64. UNESP / Botucatu.

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65. FAPA (Faculdade Porto Alegrense) -Revista Ciências & Letras. 66. UNESP Bauru. 67. UCDB (Universidade Católica Dom Bosco) - Série de estudo periódicos do mestrado em Educação da UCDB. 68. PUC-RS (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul) - Revista Diálogo Educacional PUC-PR. 69. PUC-RS / Revista FAMECOS. 70. UNIMEP (Universidade Metodista de Piracicaba). 71. UFBA (Universidade Federal da Bahia – Campus Ondina) / Gestão em Ação. 72. UFBA (Universidade Federal da Bahia) - Revista do Núcleo política e Gestão da Educação. 73. UNISINOS - Universidade do Vale do Rio dos Sinos Revista Entrelinhas. 74. UNESP (Universidade Estadual Paulista) Campus de Presidente Prudente - Nuances. 75. PUC Minas Gerais (Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais) - Cadernos de Educação. 76. UFU (Universidade Federal de Uberlândia) - Revista Educação Popular. 77. UNESP Marília - Educação em Revista. 78. UFPR (Universidade Federal do Paraná) - Revista de Textos e debates. 79. UFPA (Universidade Federal do Pará) - Revista ver educação. 80. UFMA (Universidade Federal do Maranhão) - Revistas de Políticas Públicas. 81. UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte) Revista educação em questão. 256

82. USP (Universidade de São Paulo) - Revista Educação e Pesquisa.

83. UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) Revista Horizontes Antropológicos. 84. UFSM (Universidade Estadual de Santa Maria) Revista Educação. 85. UFSM (Universidade Federal de Santa Maria) - Revista Educação Especial. 86. UEL (Universidade Estadual de Londrina) - Boletim – Centro de Letras e ciências Humanas. 87. UCS (Universidade de Caxias do Sul) - Revista Métis. 88. UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul) Revista Rascunhos Culturais. 89. UFV (Universidade Federal de Viçosa) - Revista Ciências Humanas. 90. UFV - Revista Educação em Perspectiva. 91. UCB (Universidade Católica de Brasília) - Revista Diálogos. 92. UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) Educação em Revista.

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NORMAS PARA PUBLICAÇÃO O envio dos artigos para a Revista Educação em Foco deverá ser feito obedecendo as seguintes orientações:

1. O texto deverá ser original, comprometendo-se o articulista em termo que estabelece a sua responsabilidade na garantia da originalidade, bem como do compromisso de não enviá-lo a outro meio de publicação enquanto estiver se processando o aceite. 2. Os procedimentos do aceite são o parecer favorável dedois membros do conselho cientifico nacional ou internacional,ou dois pareceristas ad hoc, indicando ou nãoreformas possíveis no texto. O texto modificado ou contra-argumentado sobre as retificações sugeridas, caso as tenha, será re-enviado aos pareceristas para o aceite final. 3. Quanto à formatação:

A-Página de rosto: a) Título do artigo; b) Resumo do artigo em Português (05 linhas) ou Espanhol,conforme a língua original do artigo; c) Resumo do artigo em inglês; d) Nome e titulação do(s) autor(es); e) Endereço e telefone de contato do autor responsável pelo encaminhamento do artigo. E-mail do autor, instituição que trabalha.

B- Corpo do trabalho: a) Título: Em maiúscula e em negrito, separado do texto por um espaço; b) Digitação: Programa Word para Windows;

C-Formatação: a) Papel tamanho A4; b) Margem superior com 3,0 cm; 258

c) Margem inferior com 2,5 cm;

d) Margem esquerda com 3,0 cm; e) Margem direita com 2,0 cm; f ) Fonte Times New Romam; g) Tamanho da letra 12 pontos; h) Espaçamento justificado; i) Espaçamento entrelinhas 1,5; j) Páginas numeradas; k) Referências Bibliográficas: ao final do texto, de acordocom as normas da ABNT em vigor. l) Citações e notas: devem ser observadas as normas daABNT em vigor. m) Quantidade de páginas:

- Mínimo de 12 páginas; - Máximo de 20 páginas. 4. Resenhas: A revista Educação em Foco também publica resenhas, que devem atender às seguintes orientações: a) devem referir-se à obra relacionada Educação; b) devem ser redigidas em língua portuguesa ou espanhola. No caso de serem redigidas em língua inglesa ou francesa, devem ser acompanhadas da respectiva tradução; c) devem ser inéditas, conter a identificação completa da obra e ter extensão de até 18.000 caracteres (com espaços), incluindo, se houver, citações e referências bibliográficas; d) devem se estruturar a partir de uma descrição do conteúdo da obra, com fidelidade a idéias principais, fundamentos, metodologia, bem como análise crítica, ou seja, um diálogo do autor da resenha com a obra; e) devem apresentar qualidade textual em termos de estilo e linguagem acadêmica. As etapas para avaliação das resenhas são as mesmas usadas para artigos.

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5. Encaminhamento: - Pelo cadastro no site da revista no endereço eletrônico: http://educacaoemfoco.ufjf.emnuvens. com.br/edufoco - Dúvidas: [email protected]

Universidade Federal de Juiz de Fora Faculdade de Educação/ Centro Pedagógico Revista Educação em Foco Campus Universitário/ Cidade Universitária Juiz de Fora – Minas Gerais | CEP: 36036-330

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Site da Revista: http://educacaoemfoco.ufjf.emnuvens.com.br/edufoco

Informações Gráficas Formato: 16 x 23 cm. Mancha: 12,8 x 18,4 cm. Tipologia: Adobe Garamond Pro – Garamond – Alberta extralight – Miniom Pro. Papel: Offset 90 g/m² (miolo) – Cartão Supremo 250 g/m² (capa) com laminação fosca. Tiragem: 300 exemplares.

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