Retórica musical e a expressão teológica em um cântico do quarteto Arautos do Rei

July 3, 2017 | Autor: Joêzer Mendonça | Categoria: Semiotics, Musicology, Theomusicology, Musical Rhetoric
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A retórica musical e a expressão teológica em um cântico do quarteto Arautos do Rei

Autor: Joêzer de Souza Mendonça (2011)

Ao se observar os modos como a palavra se coaduna com a música, é possível verificar como o pensamento teológico pode estar presente na escolha de palavras e percursos melódicos de uma canção ou hino protestante. Na análise da canção do quarteto Arautos do Rei, “Eu quero olhar”, do compositor Jader Santos, percebi como os conceitos da retórica musical – formulações de músicos e estudiosos de acordo com uma teologia da música desenvolvida por Martinho Lutero –, ainda estão presentes como um padrão organizacional de composição de música cristã. Embora Lutero não tenha providenciado uma sistematização de sua teologia para a música, é possível extrair algumas proposições de seus escritos: - Equiparação entre música e teologia: “somente uma coisa podemos mencionar (e que a experiência confirma): depois da palavra de Deus, a música merece o mais alto louvor”.1 - Música como dom divino: “a música é uma esplêndida dádiva de Deus e eu gostaria de exaltá-la com todo o meu coração e recomendá-la a todos”.2 - Música como retórica para advertir e edificar a congregação. Nesse caso, a música combinada com um texto sacro teria o mesmo papel. Lutero chamava a música de sermão em sons musicais – “sermon in sound” (Bartel, 1997, p. 3; 7-8). A Musica Poetica seria, assim, a tentativa de conjugar teoria musical medieval e teologia luterana, inspirada pelo pensamento humanista do Renascimento. A Teoria dos Afetos também é importante no emprego de conceitos e na organização da composição musical. Por exemplo, Mattheson (1739) enumera mais de vinte afetos e o modo musical pelo qual devem ser expressos: 1

Prefácio à obra “Symphoniae iucundae”, de Jorge Rhau (1538). In: Luther’s works: American edition. Philadelphia/St. Louis: Fortress and Concordia, 1956, v. 53, p. 321-323. 2 Idem, ibidem.

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“A tristeza deve ser expressada por melodias de movimento lento e lânguido, e quebrada por saltos. O ódio é representado por uma harmonia repulsiva e rude, e por uma melodia semelhante” (Apel, 1975, p. 16). Devedora da teoria do éthos, desenvolvida na Grécia por Platão e Aristóteles, a doutrina ou teoria dos afetos aceita a regra de uma obra ou movimento de uma obra é capaz de expressar uma emoção em particular. Avançando um pouco mais, a doutrina das figuras levava o compositor a articular percursos melódicos que comunicassem padrões específicos de emoções e sentimentos. As figuras de retórica, embora ligadas à oratória e à composição literária, estreitavam a relação entre música e palavra na composição musical. O Oxford Dictionary of Music, no verbete “rhetoric and music”, lista algumas dessas figuras bastante utilizadas no século XVIII: 

Anaphora: repetição da mesma melodia em seções diferentes

(Kircher); repetição do baixo (Turingus) 

Paronomasia: repetição de uma ideia musical, mas com

alterações para surtir ênfase 

Climax/Auxesis: repetição de uma melodia uma segunda acima.

Gradatio: continuação sequencial do Climax 

Pathopoeia: movimento por semitons para expressar tristeza ou



Anabasis: movimento ascendente



Catabasis: movimento descendente



Hypallage: imitação por inversão



Hypotyposis: emprego de word painting (pintura de palavras)

medo

A noção de “pintura de palavras” significa que a música reflete as ideias sugeridas pelo texto em uma composição vocal ou coral. Desse modo, “céu” está representado pelo movimento melódico ascendente e “água”, pelo movimento ondulatório. Podem ser classificados como recursos da pintura de palavras: sons naturais,

gritos

de

animais,

associações

de

palavras

a

sons

(sinos/igreja;

fanfarra/guerra), e sugestão de movimentos físicos (correr, saltar, levantar). Exemplos musicais de “pintura de palavras”: 

Na peça “As Vesta was from Latmos descending”, Thomas

Weelkes utiliza, sucessivamente, duas, três, seis e uma vozes para representar o 2

texto “Primeiro, duas a duas, então três a três, deixando sua deusa inteiramente só”. 

O moteto “De pauperum refugium” (Josquin de Prez) interrompe

o contraponto estrito na expressão “via errantium”, quando as linhas parecem perder a direção e volta ao contraponto nas palavras “veritas et vitas” (Apel, op. cit). A composição protestante contemporânea ainda emprega recursos da retórica musical e da pintura de palavras. Talvez isso se deva à cosmovisão protestante de comunicar as doutrinas do evangelho musicalmente. Em que pese a diversidade de adoção de doutrinas e multiplicidade de interpretações de dogmas bíblicos, o compositor protestante, de forma geral, se vale de recursos didáticos e teóricos semelhantes quando se trata de expor e confirmar suas crenças e princípios. Ao se analisar a canção do quarteto Arautos do Rei, “Eu quero olhar”, notei que os conceitos da retórica musical são um padrão organizacional para os cânticos protestantes, embora raramente esses conceitos sejam empregados de modo deliberadamente consciente. Nesses cânticos, prevalecem, muitas vezes, princípios estruturais que vêm sendo utilizados há séculos pelos compositores. A canção “Eu quero olhar” não possui refrão – é quase uma durchkomponiert (estilo de composição em que não há repetição melódica dos versos e estrofes). Além disso, sua variação de sentimentos expressos na letra encontra correlação no percurso melódico e na acentuação de dinâmica. Na busca de compreensão dos mecanismos internos da música, selecionei este cântico tendo em vista que seu grau de refinamento de letra/melodia/harmonia estabelece um patamar distinto para a observação analítica. Esse cântico pode ser examinado a partir do modelo teórico de Luiz Tatit de análise semiótica da canção, uma teoria de análise cancional que privilegia o estudo da compatibilidade entre letra e melodia e permite a identificação dos valores de ordem tensiva que cooperam para o processo de construção do sentido de uma canção. “Eu quero olhar” aborda o tema bíblico referente ao segundo advento de Cristo à Terra. Conforme sua letra, no início, há um sujeito que olha para o céu e identifica os sinais visíveis do retorno de Cristo. Após o reconhecimento, o sujeito passa a descrever a divindade com a nomenclatura bíblica, o que repercute atos e palavras de adoração tal como descriminados em passagens da Bíblia que narram a volta de Cristo. O trecho musical que vai do compasso 4 ao compasso 19 apresenta unidades temáticas com desdobramentos tensivos diferentes. Os compassos 4-8 e 13-16 são 3

idênticos na progressão melódica, mas possuem resoluções desiguais: as vozes superiores (na clave de sol) dos compassos 9-12 possuem uma resolução descendente no final do verso. Já o final da seção dos compassos 17-19 apresenta-se na forma ascendente (Ver partitura de “Eu quero olhar” ao final do texto). O percurso melódico idêntico, com resolução diferente – uma descendente, outra descendente – sugere a utilização, consciente ou não, da figura conhecida como paranomasia, em que um trecho musical repete certa ideia musical, mas apresenta alterações para surtir ênfase. A ideia central é o ato de olhar para o céu, sendo que na primeira vez há desapontamento enquanto na segunda vez há contentamento (desdobramentos tensivos diferentes).

Eu quero olhar pra cima ver, Aquela nuvem aparecer, Um pouco escura, mas não de chuva Só uma mancha a mais no céu (terminação descendente). E se eu olhar com atenção, Verei ainda que há uma luz; Assim brilhante, Que num instante, Vai se tornar bem maior (terminação ascendente). A divergência de resoluções de frases melódicas – primeiro, na direção descendente e, depois, na ascendente – é uma prática bem comum observada nas canções, sejam estas sacras ou seculares, visto que essa estratégia composicional está relacionada à natureza contrastante das seções de uma estrofe musical – os 2 primeiros versos de uma estrofe podem ter uma terminação melódica ascendente com terminação harmônica de 5º grau (dominante/tensão), enquanto os 2 versos seguintes podem

apresentar terminação melódica descendente com terminação harmônica de 1º grau (tônica/resolução). O compositor de “Eu quero olhar” fala da expectativa de que dado objeto surja nas nuvens. Somente na segunda vez, a letra assinala uma expectativa de conjunção, o que é reforçado pela orientação melódica ascendente e pela sugestão de força vocal – os sinais de expressão e dinâmica (< e f) constam nas indicações da partitura. Diante da certeza de conjunção espacial e temporal entre sujeito e objeto expressa nos versos “Sim, é Jesus que triunfante e exultante vem como Rei”, a melodia se move principalmente por um percurso de graus imediatos ou conjuntos (ver 4

compassos 21 a 37, clave de sol). O objeto “Jesus” aparece confirmado três vezes com o dizer inicial “Sim, é Jesus” (compassos 21, 25 e 29), como que para não deixar margem de dúvida quanto ao reconhecimento do objeto pelo sujeito. O objeto também comparece com algumas características distintivas da divindade bíblica (“triunfante, Pai amante, o humilhado” – compassos 25, 26 e 30, respectivamente). A partir da confirmação do aparecimento do objeto – “sim, é Jesus” –, ocorre uma atenuação da altura da tessitura melódica, isto é, a melodia agora desce para a região média da voz. Essa atenuação é esboçada, primeiramente, no uníssono inicial das quatro vozes (compassos 21-24) e, a partir da divisão vocal subsequente, na reiteração dos graus imediatos nas notas das vozes superiores (compassos 25-37). As vozes passam, em seguida, a fazer um percurso de movimento ascendente, mas sem saltos de intervalos e sem surpresas, pois se trata de um instante de conjunção plena. O movimento melódico por graus imediatos denota encontro, conjunção, ausência de tensão. Ao contrário, da melodia desenvolvida por saltos intervalares, que denotaria afastamento, distância, tensionamento. Vemos, assim, que a análise teórica da semiótica da canção repercute modos de articulação de idéias e expressões dos conceitos da retórica musical e da doutrina das figuras, como anabasis, catabasis, hypotyposis. Ao analisarmos os compassos 48-55, podemos dizer que o percurso melódico denota compatibilidade e simultaneidade em relação a uma concretização do encontro entre sujeito e objeto presente no trecho:

Enfim chegou Quem nós aguardávamos Quem nossa alma almejou Quem nossos olhos sonharam ver. O contexto apresenta um sujeito em estado de conjunção, estado esse que provém de sua sensorialidade – visão, audição – e que contempla o que sua alma anelava. O sujeito passa a exaltar o objeto reconhecendo-O, mais uma vez, com nomes que costumam categorizar a divindade bíblico-cristã Jesus (“Filho de Maria”, “Leão de Judá”, “Estrela da Manhã”). A tonalização, ou acentuação, do momento de conjunção na narrativa é acompanhada de movimento melódico ascendente, como observado nos compassos 56-60.

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Novamente segundo Tatit, a presença de saltos intervalares abruptos, ou perda do movimento gradativo, “compromete a capacidade de previsão e abre espaço para a surpresa e o inesperado” (2002, p. 116). Portanto, após o compasso 60, as vozes continuam seu percurso de movimento ascendente, sem saltos e sem surpresas, pois se trata de um instante de conjunção plena. Entretanto, o percurso melódico descendente que é observado nos compassos 61-66 parece ser somente um afastamento que serve para valorizar o retorno à direção ascendente, pois há uma projeção de existência plena a partir da realização do encontro entre sujeito e objeto. As vozes dos compassos 68-72 tomam uma direção ascendente denotando força entoativa e reforçando um aumento de emoção. Por meio da expansão do modelo analítico de Tatit, e buscando conexões com as teorias de retórica musical originadas a partir do pensamento teológico luterano, podemos investigar também o pensamento que subjaz ao nível profundo da narrativa de uma canção cristã. As músicas religiosas podem, por um lado, revelar a simples orientação moral-religiosa no nível mais superficial, mas também, de outro lado, são capazes de expressar a orientação teológica e a elaboração de maior complexidade no nível mais profundo.

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Referências bibliográficas

ARAUTOS DO REI. Aqui é seu lugar. CD 3116. Novo Tempo, 2006. APEL, W. The Harvard Dictionary of Music. 9 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1975. BARTEL, Dietrich. Musica Poetica: Musical-Rhetorical Figures in German Baroque Music. University of Nebraska Press, USA: 1997. OXFORD dictionary of music, The. 2. ed. Oxford University Press, USA: 1995. TATIT, Luiz. Análise semiótica através das letras. 2. ed. São Paulo: Ateliê, 2002. Partitura de Eu Quero Olhar em www.4tons.com

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