Retrato da cidade na linha do horizonte: “Cadê as girafas de Brasília?”, Contemporânea#2, 2014.

June 5, 2017 | Autor: Helena Barranha | Categoria: Digital Humanities, Architecture, Digital Media, Urban Studies
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Descrição do Produto

Ana Santos Ângela Ferreira António Júlio Duarte Carlos Correia

Catarina Botelho David Maljković Edgar Martins João Tabarra

José Pedro Cortes Margarida Paiva Paulo Catrica Rui Calçada Bastos

Rui Chafes Susana Mendes Silva

CATARINA BOTELHO PROJECTO LISBOA Entrevista por Celina Brás

JOSÉ PEDRO CORTES 40

Entrevista por Celina Brás

82

EDGAR MARTINS

O Ensaio do Espaço e a Impossibilidade Poética de Conter o Infinito

DAVID MALJKOVIĆ na Fundação Leal Rios

3

13

O 25 DE ABRIL E AS ARTES VISUAIS: REVOLUÇÕES NÃO LINEARES Isabel Nogueira 47 IMAGENS-DOR E UMA IRREPARÁVEL MELANCOLIA

Livro - Japan Drug

PAULO CATRICA

Uma reflexão sobre o trabalho de Margarida Paiva por Carlota Gonçalves.

ANTÓNIO JÚLIO DUARTE

Conservatorium

92

98

55

ANA SANTOS

Prémio Novos Artistas da Fundação EDP 2014

BERLIM: UMA ILHA DE ESPERANÇA 25 ANOS DEPOIS Vítor Belanciano

17

JOÃO SILVÉRIO CONVERSA COM CARLOS CORREIA

21

JOÃO TABARRA E A NARRATIVA DO FIM DO MUNDO Isabel Nogueira

60

SUSANA MENDES SILVA Entrevista por Celina Brás

ÂNGELA FERREIRA 61

Indépendance Cha Cha

103

108

RUI CALÇADA BASTOS Heavy Load - Bearing Body Projecto de Artista

RETRATO DA CIDADE NA LINHA DO HORIZONTE: “CADÊ AS GIRAFAS DE BRASÍLIA?” Helena Barranha

25

MIGRAÇÕES E IDENTIDADE Pedro dos Reis

73

O FULGOR REFLETIDO NA DEVASTAÇÃO 37

Notas sobre três livros de fotografia de José Pedro Cortes por Toni Hildebrandt

77

RUI CHAFES O Peso do Paraíso

115

EXPOSIÇÕES - SELECÇÃO

139

BIOS FICHA TÉCNICA

155 160

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RETRATO DA CIDADE NA LINHA DO HORIZONTE: “CADÊ AS GIRAFAS DE BRASÍLIA?”

HELENA BARRANHA © Daniel Baptista 2014. Cortesia do autor.

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Brasília é construída na linha do horizonte. — Brasília é artificial. Tão artificial como devia ter sido o mundo quando foi criado. Quando o mundo foi criado, foi preciso criar um homem especialmente para aquele mundo. […] Não sabemos como seríamos se tivéssemos sido criados em primeiro lugar, e depois o mundo deformado às nossas necessidades.(1) A história das cidades revela sempre, de forma mais ou menos nítida, uma escala que ultrapassa a construção do território, um desígnio global que se confunde com a origem das civilizações, como se a cidade pudesse conter ou representar todos os projectos e todos os tempos. No poema sobre a sua viagem de Roma à Gália, no século V, Rutílio Namaciano descreve o império romano como uma imensa metrópole – “de nações diversas fizeste uma única pátria; […] do que antes era o mundo fizeste uma cidade”(2) – antecipando o entendimento contemporâneo do espaço urbano como realização simultaneamente material e intangível, um projecto unificador capaz de integrar diferentes geografias e culturas, conferindo-lhes um sentido comum. Nesta perspectiva, a cidade não surge apenas como uma sequência de intervenções sobre uma determinada paisagem, mas também como um modo de vida e um imaginário colectivo, como uma utopia partilhada a diferentes escalas. Mas se, por um lado, a necessidade de relação dos habitantes com o espaço físico e simbólico da cidade pressupõe, como notou André Corboz, “que não há território sem imaginário do território”(3), por outro, os diferentes processos de construção desse imaginário parecem configurar distintas hipóteses de relação entre as esferas individuais e colectivas.

ideal do Renascimento ao fausto do urbanismo barroco, do planeamento oitocentista à utopia do Movimento Moderno, a história do urbanismo reflecte a permanente reinvenção do desejo de criar um novo território para um novo tipo de homem. Contudo, o “plano ideal […] exprime as aspirações, mais que as realizações, de uma civilização em particular […]. Assim, a imagem da cidade ideal procura a resposta universal para problemas temporários e, ao fazê-lo, reflecte o seu pano de fundo social, tal como o desafia”(4). Ao dirigir-se a um cidadão idealizado, a utopia da cidade planeada parece implicar a conformação do homem a um projecto que o antecede, subordinando os desígnios pessoais a um propósito global e abstracto. Neste sentido, o triunfo da cidade sobre a paisagem natural ou rural apresenta-se também como a vitória da conceptualização do colectivo sobre a espontaneidade do individual o que, em certa medida, explica que frequentemente a exclusão e o estranhamento se identifiquem com a experiência do espaço urbano. No seu texto sobre um primeiro contacto com Brasília, Clarice Lispector encontra na cidade totalmente desenhada o desconforto da artificialidade e da distância: A alma aqui não faz sombra no chão. — Nos primeiros dois dias fiquei sem fome. Tudo me parecia que ia ser comida de avião. […] Por mais perto que se esteja, tudo aqui é visto de longe. Não encontrei um modo de tocar. Mas pelo menos essa vantagem a meu favor: antes de chegar aqui, eu já sabia como tocar de longe.(5)

Historicamente, a afirmação da cidade é indissociável de uma ambição política que se traduziu, ao longo do tempo, na procura de formas urbanas representativas de sucessivos modelos de sociedade. Da polis grega à metrópole romana, da cidade

O afastamento entre o visitante e a realidade urbana, descrito pela autora, remete novamente para a construção da imagem da cidade. Para além das obras de urbanismo e arquitectura, a dimensão utópica do projecto urbano revela-se através da invenção de novos sistemas de visualização, essenciais para a constituição e difusão de um imaginário colectivo. A diferentes concepções políticas, sociais e culturais corresponderam sempre métodos de representação visual específicos, apropriados no seu próprio tempo como meios de comunicação e validados, mais

1) Clarice Lispector - “Nos primeiros começos de Brasília” in à Descoberta do Mundo. Lisboa: Relógio d’Agua, 2013, p. 415 (texto originalmente publicado no Jornal do Brasil, 20 de Junho de 1970).

3) André Corboz - “Le territoire comme palimpseste” in Le territoire comme palimpseste et autres essais. Besançon: Editions de l’Imprimeur, pp. 214-215. (Ensaio originalmente publicado em Diogène, 121, Jan.-Mar. 1983, trad. livre).

2) No original: “Fecisti patriam diversis gentibus unam; profuit iniustis te dominante capi; dumque offers victis proprii consortia iuris, Urbem fecisti, quod prius orbis erat”. Rutilius Claudius Namatianus - De Reditu Suo, c. 416. A citação apresentada corresponde a uma tradução livre e resumida, baseada nas versões espanhola e francesa do poema, disponíveis em várias bibliotecas digitais.

4) Helen Rosenau - A Cidade ideal: Evolução Arquitectónica na Europa. Lisboa: Editorial Presença, 1988, p. 19 (edição original em inglês, 1983). 5) Clarice Lispector - op. cit., p. 417.

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tarde, como suportes de memória e de reconhecimento. Tal como a perspectiva renascentista permitiu representar um espaço urbano ideal – racional, erudito e desenhado à escala humana - a fotografia, o cinema e, mais recentemente, a Internet, fomentaram uma nova iconografia urbana - global, ubíqua e difusa, como a própria vida contemporânea. Nas últimas décadas do século XX, a rápida evolução das tecnologias de comunicação revolucionou os modos de apreender a cidade através de imagens. O factor de reconhecimento, que antes tendia a limitar-se a enquadramentos estáticos de monumentos e lugares icónicos, ampliou-se enormemente com o recurso quotidiano a imagens em movimento ou em permanente actualização e a noção de escala diluiu-se, mediante o acesso generalizado a fotografias de satélite e mapas interactivos, que possibilitam a passagem instantânea da perspectiva aérea geral para o detalhe da escala local. Ao mesmo tempo, cada habitante passou a dispor de meios que lhe permitem registar e divulgar, online, não apenas a sua percepção da cidade, mas também as suas realizações e expectativas, construindo assim uma iconografia urbana particular e comunicante. Este confronto inédito entre um imaginário colectivo virtual, à escala planetária, e o ideário íntimo da escala individual afigura-se, justamente, como o principal catalisador das redes sociais, como se estas pudessem mapear todos os projectos e utopias que coexistem nas cidades. Talvez por isso, os principais movimentos de contestação social e política deste novo século tenham começado nas redes sociais, para depois ocuparem lugares simbólicos das cidades. A par das grandes acções mediáticas e mediatizadas por imagens, o espaço público da cidade contemporânea fragmenta-se, dispersa-se e reinventa-se. “Uma nova rede – cambiante, mutável, ocasional – de espaços utilizados colectivamente estende-se pela cidade como uma filigrana. São espaços residuais que se activam a partir da presença de um ou vários grupos humanos que os ocupam e projectam

6) Giovanni La Varra - “Post-it City. El último espacio público de la ciudad contemporánea” in PERAN, Martí (dir.) - Post-it City. Ciudades ocasionales Barcelona: Sociedad Estatal para la Acción Cultural Exterior / Centre de Cultura Contemporània de Barcelona, 2009, p. 14 (trad. livre). 7) Ignasi de Solà-Morales – “Mediaciones en la arquitectura y en el paisaje urbano” in MARTÍN RAMOS, Ángel (ed.) – Lo urbano en 20 autores contemporâneos. Barcelona: Universitat Politècnica de Catalunya, 2004, p. 208 (trad. livre). 8) Clarice Lispector - op. cit., p. 417.

neles um sentido colectivo, parcial, ténue.”(6) Verifica-se assim que, ao contrário do plano ideal, o novo imaginário urbano assenta na procura de respostas transitórias para questões universais, assumindo a condição de projecto aberto e mutante, individual e colectivo. Com os novos sistemas de visualização da cidade, omnipresentes e personalizáveis, alterou-se radicalmente a relação entre realidade e utopia, uma vez que esta nova cartografia mostra um mundo “deformado” segundo as perspectivas e aspirações individuais. Neste contexto, a cidade tornou-se a justaposição entre a realidade e a sua imagem ou, apenas, o espaço ambíguo que as separa. Tanto pela experiência directa de fruição e de intervenção no espaço urbano, como através de processos de mediação associados à produção e à partilha de imagens, a cidade contemporânea confirma, como observou Ignasi de Solà-Morales, que a criação de ficções é parte integrante da arquitectura e da paisagem urbana(7). O observador/habitante está sempre fora e dentro da cidade, longe e próximo, em todas as escalas. O novo mapa da cidade desenha-se, assim, numa imensa rede de figurações, abstracções e utopias, com infinitas sobreposições de imagens, desde o zoom-out do Google Earth até ao zoom-in da última selfie. Em limite, a imagem da cidade é construída como o auto-retrato de alguém que se encontra na linha do horizonte, presente e ausente, abstracto e reconhecível. Entre o real e o virtual, entre a arquitectura e o sonho, o indivíduo pode agora percorrer todas as cidades sem fazer sombra no chão, lúcido e distante, ao mesmo tempo. Nunca vi nada igual no mundo. Mas reconheço esta cidade no mais fundo de meu sonho. O mais fundo de meu sonho é uma lucidez. […] Se tirasse meu retrato em pé em Brasília, quando revelassem a fotografia só sairia a paisagem. - Cadê as girafas de Brasília?(8)

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