Retrato de almas em fuga

June 9, 2017 | Autor: Emília Ferreira | Categoria: Pintura, Desenho, Artistas portugueses
Share Embed


Descrição do Produto

Retrato de almas em fuga1 Emília Ferreira 1. A razão pictórica Quando a Holanda seiscentista inventou a pintura de paisagem como género independente, estava longe de pensar que o pretexto pictórico poderia vir a ultrapassar amplamente a realidade referente. Mesmo tendo criado uma imagem exemplar da natureza do seu país, os pintores que operaram essa “revolução” usaram, para a retratar, um estilo naturalista e detalhado, tomado directamente do modelo. É certo que depois o melhoraram, tendo inclusivamente pintado castelos em montes altaneiros — valorosos acidentes topográficos que, como é sabido, os países baixos não detêm. Contudo, esses artistas conseguiram o pretendido: mostrar da natureza uma face agradável, destituída do peso malévolo do campo opressor da força dos braços. Séculos depois, passados os conceitos de belo e de sublime, inventadas novas paisagens, volvidas inúmeras experiências que notaram e anotaram várias faces da paisagem natural e construída, as casas que servem de pretexto a estes trabalhos de Manuel Caeiro, embora parecendo escapar às coordenadas necessárias para um registo pictórico, às condições prévias, hoje já históricas, de um entendimento paisagístico, terminam sendo o pretexto ideal. Afinal — poder-se-ia começar por aí — estas casas de sonho facilmente se tornariam apetecíveis modelos para um exercício de melhoramento. Erigidas na beira-mar de uma localidade antigamente ocupada pela pesca, estas casas nada evocam directamente desse referente “pitoresco”. Para a maioria de nós, elas são destroços, apropriações de terrenos de um registo que, no Direito, se chama domínio público marítimo, ocupam a beira-mar com um rosto de decrepitude, ferro-velho, desfazendo-se com o tempo e a ameaça da demolição. Ou seja, é talvez a nossa consciência da sua imposição e condição fora-da-lei Texto publicado em Manuel Caeiro: Casas da Caparica, Lisboa, OPCA, 2005.

que nos faz vê-las com uma face única e mesquinha. No entanto, para lá do desagrado, essas casas de cores diferentes e linhas de ruína, evidenciam a edificação de alguns frágeis sonhos. Facto: alguém ali as ergueu, contra a lei e a maré, alguém ali assustou o peito com o avanço das águas, respirou de novo com a construção dos pontões e foi sedimentando a vontade de ficar nas sucessivas camadas de tinta, nos remendos dos materiais, nos acrescentos de corpos dilatados como tecidos patológicos, como plantas invasoras das dunas. Apertadas entre o casario legítimo, mas nem por isso menos feio e opressor da paisagem, e o avanço das águas sublimes e esmagadoras, essas casas têm vindo a morrer. Hipótese: nessa realidade pegou um pintor. Que a usou sem ver mais nada. Para além daquilo que mais ninguém vê. Não suspirando nem pelo bafo atlântico, nem pelo abrasador sol de Verão, nem pelo esforço para galgar as ondas e arrastar o peixe, nem sequer pelos projectos turísticos. Mais do que evocações ou representações miméticas de uma linha de água habitada em sucessão de moradas, esse pintor pegou no material de que a pintura e o desenho se compõem e teceu visões sobre o visível. Talvez em linha directa desde a Flandres seiscentista. Com uma consciência de tempo e de história a que não escapam heranças posteriores. Apenas isso. Uma razão como outra qualquer. Eis um retrato de almas em fuga. 2. A casa como vontade Metáfora do centro, moldura para o eixo do mundo (em várias civilizações, a habitação, de planta quadrada, erige-se em torno de um jardim), a casa é também a corporização de um desejo. Próxima da simbólica do templo, essa casa que nos liga ao céu fica, porém, nos antípodas destas. Provavelmente inspiradas nas construções de pescadores das praias de Ílhavo, uma das apontadas origens da colónia piscatória da Costa de Caparica, estas casas transformaram-se sobre as areias da duna, arvorando-se desígnios distantes da sua inicial vocação de abrigo. A alteração desse programa original, a sua

metamorfose em casas de sonho implantadas à beira-mar, não corresponde, contudo, a um poder económico capaz de as construir com materiais nobres. A sua natureza original permanece na precariedade dos materiais, nos acrescentos de lata e contraplacado. Até na erosão que os elementos acentuam, da morte lenta e irreversível de algo que não nasceu para monumento, que desafia todas as leis do património, que invade até o património paisagístico e natural, tudo nestas casas as destitui de um poder encantatório e material. Do ponto de vista da paisagem, elas constituem uma ferida aberta, lixeira de sonhos. Mas, justamente, a paisagem é sempre um ponto de vista. Do ângulo em que se coloca aquele que a vê, que a reconhece como condimento apetecível para uma apropriação do mundo, podemos arriscar que qualquer motivo se torna bem vindo. E, precisamente, é deste pressuposto que nascem os trabalhos de Manuel Caeiro. Pode-se mesmo afirmar que, mais do que um ponto de vista, a paisagem é um pretexto. Aos olhos de um pintor, o mundo organiza-se em linhas e manchas cromáticas, em arrumações de luz e sombra, em contrastes, texturas, ritmos, proporções e, desde o século XIX, assimetrias. Assim, aquilo que para a maioria de nós seria apenas uma linha de costa invadida por construções clandestinas, em materiais pobres, recuperados de destinos anteriores, apodrecendo ao sol e ao sal, numa confusão visual e material que o turismo poderia dispensar, transforma-se, sob o olhar plástico, num saboroso convite de cores e linhas, apetecíveis como porta expressiva. Não é o pitoresco que conduz o olhar e a mão de Manuel Caeiro. Porque a sua integração na paisagem, como tema, resulta apenas de equilibrar na composição estas casas que, de outro modo, quase poderiam desaparecer, ser levadas — não pela maré, mas pelos interiores do próprio labirinto da pintura, adentrando-se no espaço e perdendo-se nessa malha. O que conduz a reconstrução destas casas no biplano do papel ou da tela são as razões que as tornam amargas na paisagem: a sua afirmativa desconstrução, na sua ausência de lógica, ou na sua lógica intrínseca, desafiadora de programas e regras.

3. Habitar através da pintura Observando o percurso de Manuel Caeiro, percebe-se que ele tem traçado os seus caminhos na vizinhança da casa. Os títulos das suas exposições individuais, desde 1999, evocam um universo de proximidades e afectos. “Neighbourhood”, “Cenas Caseiras”, “Dream Houses Inbox”, “Dream Houses”. As casas de sonho que ele constrói e revisita desde 2001, e de que anotando metamorfoses arquitectónicas, sintetizam a cidade e as suas estruturas vitais, e vêm desenvolvendo uma noção de morada como uma pele que se repensa e renova. Constante devir, outro nome para a noção de transitoriedade, tais moradas (cuja variação, de casa para casa, acentua a mesmidade da natureza numa pluralidade de rostos, algo que é muito bem servido pela novecentista noção de série) denotam um claro abraço a uma natureza efémera. Apertada nas malhas do tempo, ritmada, domesticada e compreendida no traçado geométrico que disciplina e esclarece, a sua pintura, já desde o tempo da primeira individual, demonstra um profundo interesse pelas pressões do tempo, tornando-o visível no véu que pousa nos objectos, no hálito que deixa insinuar-se nas paredes do mundo. Em 2001, Manuel Caeiro chamou a esse processo “a presença pictórica do desgaste”, afirmando então estar muito interessado em observar e denotar tais processos na pintura. Esse interesse mantém-se. Pode-se dizer que, apesar das mudanças no plano do visível, o subjacente permanece intacto e, nesse sentido, imutável. Nas obras de 2001, as portas e janelas — operação de síntese entre escultura e pintura,

nas

conjugações

dos

materiais,

construtores

de

realidades

tridimensionais — já exploravam também as metáforas do interior/exterior, da relação entre o visível e o reflexivo. Essa construção de imagens, a partir da edificação de um discurso de unidade, continua intacta. Os materiais podem ter mudado, alterando um eixo plástico, que então convocava vontades e elementos escultóricos, no recurso a materiais típicos de construção, como MDF, vidro, espelho, ferro, ou até papel de parede, ou cortinas de tiras (cuja aparência poli ou monocromática o atraía como recurso pictórico), mas o pretexto é sempre o

mesmo. O que resulta do visível é ainda e sempre uma construção formal e cromática, matéria pictórica por excelência. Manuel Caeiro só se interessa verdadeiramente pelo mundo, pela paisagem, pela sua razão intrínseca, se ela for concebida enquanto razão pictórica. Em Court Traité du Paysage2, Alain Roger afirmou que vemos a paisagem através dos olhos dos pintores. Deve-se acrescentar que os pintores vêem o mundo através de um esquema (visual) que o descodifica aos seus olhos de um modo diverso do das outras pessoas. Um modo que dispensa palavras e apreende linhas, cores, texturas, contrastes. Da mesma maneira que um poeta pensa através do verbo, um pintor fá-lo por meio de coordenadas com que depois restabelece o visível (aquilo que pensamos ser igual para todos mas que, na verdade, depende também de conjunturas individuais para ser percebido). Por isso mesmo, enquanto um poeta pode chegar ao mundo através de uma palavra que lhe sirva de gatilho — ou de rastilho “potenciador” de um fogo de artifício interno, criador —, um pintor tomará da pintura as suas razões. O mundo é apenas um ponto de partida que ele toma e recria dentro de uma lógica da tradição cultural da sua própria linguagem. E assim Caeiro chega à realidade pelas referências plásticas. É através do óculo da arte (desenho, pintura, arquitectura) que ele percebe a existência do real. É também através do exercício plástico que ele devolve o existente ao mundo, já sintetizado, personalizado. Recriado. 4. A estrutura de desenho Tomando em linha de conta o lugar que o desenho ocupa na produção deste pintor e considerando ainda a proximidade dos temas de habitação, dir-se-ia que a arquitectura, enquanto corporização do desenho no espaço, exercício e prática da geometria, vem sintetizando a sua visão do mundo, a sua reflexão sobre a presença humana na paisagem. Com efeito, afirmando-se pela ausência da figuração, esta presença transparece apenas nas suas reminiscências. Ou seja, 2

Roger, Alain, Court Traité du Paysage. Paris: Gallimard, 1997.

a inscrição do humano na sua moldura paisagística é tão-simplesmente a humanização da natureza, a presença das acções, intervenções, construções ou feridas na superfície do mundo. A presença do tempo. Partindo sempre de uma base geométrica, o lado corpóreo surge depois, complemento, equilíbrio. Ao passar revista pelas obras construídas desde 1999, constata-se nestas últimas um progressivo avanço da cor, um fôlego pictórico que irrompe da grelha disciplinada e organizada do desenho. A tentação cromática parece enfim ter chegado a um ponto de equilíbrio com a evidente racionalidade das estruturas que edificam os espaços plásticos de Manuel Caeiro, nestas novas casas de sonho. A fragmentação deste universo, agora mais evidente na materialização e na anima da cor, tem nesse diálogo geométrico de ocupação do espaço, de delimitação e compartimentação da superfície do quadro, um papel notório, afirmando-se pela primeira vez como perturbador pela cor, e não pela intensa e intrínseca disciplina linear. Pode-se dizer que o desenho é — tem sido — o mais fiel espelho da natureza deste artista, encontrando-se claras provas de que nele encontra amplo ancoradouro. Analítico e contido, expressivo q.b., oferece um espaço dominado por verticais fortíssimas, horizontais que as cruzam para uma mais clara apropriação da composição (na compartimentação do espaço funcionando quase como escala de arqueólogo transposta para um plano ou esqueleto de edifício, planta, alçado, fachada), a única dissonante que a estrutura normalmente comporta é afirmada pela introdução de diagonais, ainda assim disciplinadas no seu entendimento com o todo. Sublinhando a verticalidade (o eixo) do desenho, essas linhas tradicionalmente perturbadoras libertam-se assim da inquietação e instauram mais um grau de contenção na obra. O equilíbrio que, durante séculos, se apresentou como nascido do simétrico, aparentado ao belo, está muito longe destas composições sediadas plástica e historicamente em lições que, não recusando princípios clássicos, as sabem modernamente desconstruir, na intimidade de lições que enformaram o século XX. A harmonia da composição é assim desde logo garantida pelas grelhas (simétricas

ou

assimétricas,

mas

sempre

num

tenso

equilíbrio),

cujo

preenchimento cromático aligeira a dureza geométrica mas não logra libertação completa. Eis o que parece, portanto, começar a alterar-se nestas últimas “Dream Houses”. Se o desenho permanece como caminho inicial, modelando o espaço, se ele mantém uma vontade pela assimetria, conservando apenas do eixo a localização, o crescimento (a construção) das casas, ele tornou-se já claramente bidimensional. Os jogos de planos interiores e exteriores quase desapareceram, sendo reduzidos à base dos edifícios ou à presença de alpendres, únicas situações em que também se colocam os contrastes entre cheios e vazios da composição. Tudo o mais se aplana, sendo agora mais do que antes a cor a operar sobreposição de planos. Tudo o mais se afina, até o traço, claro ainda, definido e estruturado sempre, mas já tendencialmente vestigial. Não nos iludamos. O desenho não se perde. Mantém sempre uma presença unificadora. A composição é sabedora dessas linhas. Que melhor prova do que esses planos goemétricos bailando no suporte? Evoluindo em sucessivos pontos de vista? O olhar agudiza-se no processo, na construção, no planeamento do conjunto, trabalha as distâncias através da escala das casas, aumentando-as no espaço ao diminui-las no papel. Ao convocar o fundo como melhor actor secundário, faz brilhar as protagonistas. Ao dar lugar de honra à cor, o desenho descansa no seu lugar de honra. 5. A matéria da cor Dissecação de um perfil, de um enquadramento geométrico que a cor corporiza e reorganiza espacialmente, instaurando-se como princípio perceptivo, o desenho surge aqui, finalmente, equacionando com ela a sua importância. Por isso, e saltando para o primeiro plano, nesta ressedimentação do espaço, a objectivação do fundo, como lhe chamou Gillo Dorfles3, é crucial (melhor actor, portanto, ao lado de melhor actriz). Jogando-se a par das casas que vogam no suporte sem a ajuda de uma linha de horizonte, neles se integrando 3

Cf. Dorfles, Gillo, O Devir das Artes. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1999, p. 102.

simultaneamente como parte e evidência de alteridade, eles tornam-se personagem pela corporeidade da cor. Por vezes as casas reduzem-se a manchas cromáticas, tonais, dentro das linhas que as ditam, limitam, circunscrevem. E são os fundos que as revelam, destacando padrões, texturas, presenças e ausências. Ou seja, embora permitam uma mais clara visão das casas, eles integram o todo, não se apagam, participam na composição em igualdade com o tema central, com o eixo da razão da pictórica. O seu dinamismo é mais do que um cenário, uma envolvência. É agente também. Para isso contribui em muito o irrealismo das cores com que se tece a paisagem. Céus rosa, lilases, verdes. Terrenos laranja, vermelhos vivos, azuis celestes, verdes abertos, rosa, também. A paleta vibrante, mais aberta (e quente) do que até aqui, opera, nas camadas sedimentares com que cada cor é erigida, jogos tácteis. Laranjas escondem-se sob verdes, azuis apoiam-se no manto de um rosa. Estas soluções acrescentam não apenas transparência, mas novas percepções tonais. De tão estratificadas as cores na sua temporal composição, até os cinzas são coloridos, feitos de plurais sobreposições cromáticas. Os media usados servem com dedicação os efeitos pretendidos. Os lápis de cera de óleo, em marcas diferentes, que possibilitam vários graus de maleabilidade do material, conferem a desejada textura e permitem, além disso, manter na cor o vestígio do traço, o gesto que risca e cruza a mancha como quem fia um tecido, misturando fibras, escolhendo-as a dedo. A cera de óleo permite a maciez que dá a opacidade e até o brilho, mas retém ainda a marca inequívoca da mão. Pode fundir ou evidenciar a separação. Pode diluir-se, recriar-se, apagar-se. Assentar como um terreno. E, para os mais efeitos de velatura, de sobreposição e inconfidência da luz, acresce ainda a improvável mistura com a aguarela, cuja secagem difícil sobre tão incómoda base cria rejeições que resultam em delicadas marcas, em vestígios de uma passagem de água manchada de cor, aceitação do acaso, como uma chuva apanhada em paredes recém-pintadas.

Espalhada, esboroada, misturada, como um sentimento claramente festivo, a cor deixa a sua marca nas ondulações tonais resultantes das misturas, onde a luz brinca modelando e modulando o espaço. Nestas obras, é ela a grande operadora da composição, fazendo-a fremir, estabelecendo os contrastes, criando ritmos, guiando a leitura perspéctica, brincando com ela. É o jogo lumínico que dá e furta os objectos à visão, revelando ou apagando-os, contribuindo para a mais clara ou mais obscura percepção espacial, permitindose todas as liberdades — exemplo: mesmo quando aérea, poucas vezes escolhe o azul e, ainda assim, não um azul “ortodoxo”. O acaso, ou essa outra forma de dizer o tempo, entra aqui em cena, também. Das tiras das cortinas, ao dripping que mimava ainda esse desejo geométrico, passou-se agora para esta quase forma de acidente. É claro que o pintor conhece perfeitamente a impossibilidade de mistura pacífica dos dois media usados. Quase se poderia afirmar que a desobediência, no trabalho de Manuel Caeiro, é sempre cumprida em consciência. No conhecimento das regras. No gosto de uma certa transgressão. Mas ainda assim no gosto dessa possibilidade. Assim, também as sombras — esses seres viventes, que sublinham e recordam a vida, e que conferem a estas casas a simultaneidade da sua testemunha vivencial (espécie de prova ontológica) e a sua memória, erigida em monumento, no jogo simbólico que lhes é reconhecido — operam a insubordinação à lei. Com efeito, elas seguem quase sempre uma orgânica singular. Corpo próprio, cada uma delas opta por não obedecer à direcção da incidência da luz nem às formas do edifício que, deitada, supostamente duplica. Fugindo da lógica, as sombras desdobram-se onde melhor lhes convém, onde melhor se ajustam à corporeidade da cor que servem, metamorfoseando-se também em múltiplas acrobacias cromáticas, desviando o nosso olhar do fio condutor

do

desenho,

dessa

estrutura

original,

primeira,

ordenadora.

Regressando ao caos, elas são o riso e o silêncio das casas, são — como seria de esperar — a sua alma, o seu segredo. O seu duplo. O seu outro corpo.

Por vezes, elas instalam-se no horizonte/fundo, evocando céus plúmbeos ou nocturnas abóbadas. Mas hesitam sempre em se dar como um contraponto de história verosímil, escolhendo antes a felicidade de contar as mil voltas que a cor corporiza quando brinca com o espaço. Não será, sem dúvida, por acaso, que as raras linhas curvas destas composições sejam realizadas pelas manchas de sombra. De resto, tudo nelas vive da tensão geométrica dos corpos pousados na paisagem, dos corpos cuja matéria nasce dos fundos, como se, na sua imagem de ordem, desejassem ser organização, frágil mas poderoso tecido sobre um magma em transição, em movimento, metamorfose. Conta-se que Robert Delaunay, para confirmar a complementaridade das cores, olhava directamente para o sol, ficando depois, nessa “cegueira” momentânea, a observar no interior dos seus olhos, espectros que lhe “ditavam” o que pintar nos exercícios de contrastes simultâneos. Na profusão e vibração de cores destas pinturas de Manuel Caeiro, sente-se na retina um exercício que quase cita as perigosas experiências do pintor francês. É como se tendo olhado para as casas, ou para a sua representação fotográfica, tomada de diversos ângulos, as tivesse depois sintetizado, recuperando impressões de cores e sombras, organizadas em manchas de tons fortes ou de transparências aquosas. Recurso expressivo, ela afirma um contraponto não-dramático mas anímico, ao poder analítico da construção geométrica tão cara ao universo de Manuel Caeiro, contador de estórias onde a razão leva sempre, plasticamente, a emoção num segundo plano. Curiosamente, a única imagem perturbadora desta série, composição atravessada por diagonais frementes, nervosas, esboços de corpos deitados como despojos sobre um fundo quente (amarelo-laranjavermelho), como linhas (negras, verdes) sobre a areia, sugere a inquietação pela alteração do desenho, não pela força da cor. Neste mundo de coordenadas claras, até mesmo de referentes reconhecíveis, os motivos do fazer, os processos criativos, não gerem bucolismos passados mas revelam novas faces da paisagem. Como disse Alain Roger, no ensaio já citado, se já nos habituámos a ver o mundo, com novas paisagens e visões plásticas a cada novo decénio, está talvez na hora de tentarmos olhar para

aquilo que hoje nos fere, com um olhar mais benévolo. À pergunta: dispomos nós de modelos que nos permitam apreciar o que temos sob os olhos?, responde o autor que, provavelmente, estamos perante as nossas cidades e o nosso campo no mesmo desagradado plano perceptivo, estético, em que se encontravam, face ao mar e à montanha, os nossos antepassados do século XVII. Tal como eles inscreveram na história do nosso encantamento os montes (não as montanhas, que teriam de esperar pelo setecentista conceito de sublime) da plana Flandres, e tal como tantos outros, depois, nos mostraram os seus recantos de eleição até aprendermos a lê-los no mundo (quem verá hoje, pergunta também Roger, a montanha de Sainte-Victoire, sem ser pelos olhos de Cézanne?), também Manuel Caeiro nos vem mostrar um outro modo de ver as velhas e decrépitas casas da Caparica. Mesmo que ele aí tenha apenas reconhecido valores plásticos irrecusáveis para um pintor, o trabalho está feito. A paisagem dada a ver. Mais do que os sonhos de outrém, as feridas que temos de encarar. Os nossos fragmentos de ser. As nossas fugas. O bastante para saber que o nosso olhar sobre essa depauperada linha costeira nunca mais será o mesmo.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.