Retratos de uma anunciação: a Síria antes do conflito

June 29, 2017 | Autor: Ana Gebrim | Categoria: Crônica, Siria, Relatos de Viagem
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Retratos de uma anunciação: a Síria antes do conflito Ana Gebrim, maio de 2015 Por que me custa tanto escrever sobre a Síria? Escrevo, reescrevo, apago, tento esquecer, mas volta, sempre volta. Cada notícia que daqui de longe me chega, bate fundo. Dói. Dói diferente. Mais do que qualquer outra guerra ou catástrofe? Sim e não. Sim: porque é um pedaço meu que vai junto, um pedaço de olhar que deixei por lá, e é esse que volta, a cada vez. E não porque: não estou lá. Estou aqui. E, também, se a solidariedade depender apenas dos semelhantes, estamos todos perdidos. Já estamos, é bem verdade, mas de algum horizonte há de se seguir vislumbrando. E que, por favor, não seja esse só pelo igual. As vezes me pego pensando em alguém que encontrei, que conheci, que troquei algo por lá. Estará vivo? O que será que te aconteceu nesses quatro anos? Para onde será que você foi? Onde você estava no bombardeio que incendiou aquele bairro, ou no dia em que todo o mercado desertou, ou quando nada mais daquilo que sempre existiu deixou de ser? Tua loja ainda existe? E teu açougue? Os gatos ainda vem te reivindicar o pedaço de sebo a cada fim de expediente? E as crianças que te ajudavam a afiar as ferramentas da oficina? Cresceram? E teus sonhos? Teu taxi ainda tem aquele cheiro? E tua casa? O que sobrou daquela tua loja? Em uma noite em Bab Touma, um bairro cristão de Damasco, no talvez único restaurante que vendia bebidas alcoólicas na cidade, não consigo me lembrar de nada mais senão de um rosto. Não sei o que comi, o que bebi, muito menos do que foi dito, e nem de como era o restaurante em volta, só me lembro de ficar absolutamente capturada por um grupo de amigos sírios que dividia a mesa ao lado. Eram dois casais. Tinham todos por volta de uns 40 anos, supus que eram cristãos, bebiam, tinha dinheiro, ou pareciam ter, exalavam os esmeros de não serem como os outros, todos, de não pertencer àquela massa que vivia sob a sombra do regime, faziam o que quase nenhum outro sírio fazia: se encontravam em uma terça-feira a noite, homens e mulheres, para trocar, rir, celebrar, beber. Podiam fazer aquilo, gozavam da pretensa liberdade que o dinheiro insinua dar. Naquela noite, não pude fazer nada mais senão observá-los com todos os detalhes possíveis, e, particularmente o rosto de uma das mulheres da mesa é a única imagem mais concreta que retive. Tinha a sensação de ter

 

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visto poucas vezes tanta beleza como aquela. Sabia que nunca mais os veria, tentava decifrar pelas entonações, pelas intervenções e interjeições algum assunto daquele árabe que ainda me era totalmente incompreensível - por mais familiar – e um pouco do que diziam. Queria poder não esquecer. Hoje, quatro anos depois, penso que de todos que cruzei esses talvez tenham sido, ou sejam, de fato, os que mais rápido puderam escapar do horror. Foi forte o que senti na primeira noite em que cheguei a Damasco. Onde estava? O que era tudo aquilo? Tudo tão estranho, tão conhecido, mas tão estranho. Sentia medo, medo de alguma coisa que não tinha nenhuma idéia do que pudesse ser. Desse estranho? Não sei, talvez do que não se dizia, e só se sentia. E eu, como estrangeira, talvez pudesse ter algum olhar privilegiado de tudo isso. Do silêncio espremido na garganta de cada sírio, das palavras engolidas em cada olhar. Cada gesto, cada tradução, cada troca: um universo – do novo, do sofrido, e de um não dito sufocado. Algo não ia nada bem. Hoje, depois de tudo, depois da guerra instalada, é fácil olhar para trás e dizer: estava tudo ali, era óbvio que iria explodir. O gás estava inflamado, em cada rincão se sentia, bastava o fósforo. Mas desse só soubemos depois, já no Brasil. Na virada do ano novo, uma multidão na rua aglomerada, como se a espera da eclosão, ou pela necessidade de estarem próximas, de contato - físico? - em meio a um regime que pela presença ostensiva marcava sua falência. Em cada retrato de Bashar Al Assad: a anunciação da queda. Do recepcionista do hotel e taxista, ao militar reservista em um ônibus urbano, o discurso era unânime – a regra: subversão do regime. Mas disso tudo só entendemos depois. Daquela tensão toda sentida no corpo em cada gesto, nos olhares e nas trocas - marcada por uma tradução manca que transmitia, no entanto, o essencial. A Síria estava a ponto de explodir. E explodiu, dois meses depois. Hoje, em meio a tantas imagens, carnificina, interesses midiáticos, humanitários, políticos e econômicos que não fazem mais senão perpetuar a exploração, quero fazer valer a vida que pulsava em cada esquina. Na Síria milenar, essa mesma vida tem sido tomada a cada instante. E se a memória de tudo isso puder ter alguma função, que seja a de resistência.

 

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