Review do Livro AvóDezanove e o Segredo do Sovietico de Ondjaki

May 23, 2017 | Autor: Sérgio Dundão | Categoria: Political Sociology, Literature, Colonialism
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A obra de Ondjaki intitulada Avó Dezanove e o Segredo dos Soviéticos é um verdadeiro culto à memória de infância do autor. No entanto, o autor não utiliza a sua memória de infância para ajustar contas com o seu passado ou curar feridas do mesmo. Por outras palavras, o autor não faz uma catarse do passado, mas utiliza essa memória para perfumar a sua narrativa preenchida de criatividade, talvez fruto das apreciáveis chávenas de chá de caxinde servidas pela sua AvóDezanove – essa é a personagem que dá origem ao título da obra.
AvóDezanove e o Segredo dos Soviéticos desenrola-se a partir da inquietação de três personagens de tenra idade – Charlita, Pinduca, que ficou conhecido no decurso da estória como Pi, mais tarde, decifrado por outro personagem como 3.14 (2014:14), e o último personagem assume a condição de narrador da estória e é o neto da AvóDezanove (carinhosamente tratada por AvóNette), sendo que o seu nome não surge no decurso da narrativa. É presumível que seja o escritor ou a consciência de toda a estória, acabando por ser o sujeito que desvenda, em conjunto com os seus amigos, o segredo do soviético, sendo que este poderia colocar em causa a existência da PraiadoBispo, onde decorre a estória.
A obra cruza dois grandes episódios centrais, um dos quais o dedo extraído da AvóDezanove e outro o segredo do soviético. No entanto, a extracção do dedo da AvóDezanove acaba por gerar uma situação hilariante, visto que a operação médica não criou uma situação traumática na personagem, mas proporcionou uma situação de festejo. Depois do festejo houve uma ida da AvóDezanove ao cemitério na companhia do seu neto (um dos personagens fulcrais da estória). Esta ida ao cemitério culminou numa situação de luto por parte da personagem, antes da sua operação no hospital militar, onde trabalhava a sua filha na condição de médica. É de dizer ainda que esta estória, inserida na obra, não teve um alcance maior no desenlace final, tratando-se da inserção de um acontecimento pessoal do autor na narrativa principal.
Contudo, para um leitor que desconhece o contexto histórico angolano, torna-se necessário ter em atenção especial o facto de o médico ser cubano e optar por uma situação de mutilação de um dedo da AvóDezanove. A presença de um cubano na obra permite-nos situar a história na pós-luta de libertação nacional angolana, onde o regime angolano sob o auspício, nomeadamente, do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), contou com o auxílio de Cuba. Foi no âmbito dessa cooperação que os médicos permaneceram em solo angolano, prestando auxílio ao regime e ao seu projecto revolucionário baseado no socialismo popular. Sob a presença cubana surgiram vários mitos urbanos em Angola, principalmente em Luanda. Estes afectaram também a memória de infância do escritor, por isso este introduziu um dos mitos, ainda que de forma subtil, precisamente quando descreve o desfecho dado ao problema de gangrena da AvóDezanove. Muitos desses mitos estavam associados aos procedimentos médicos adoptados pelos cubanos, que tinham métodos médicos draconianos, isto é, os médicos cubanos optavam, muitas vezes, pela mutilação de muitos angolanos.
Este enquadramento da estória pode, facilmente, passar despercebido a um leitor que desconhece o contexto angolano. Ainda assim, não se torna de carácter obrigatório para o leitor de Ondjaki, exterior ao contexto angolano, conhecer a fundo a história de Angola. A obra centra-se numa realidade concreta, precisamente em Luanda, mas ganha a sua magia na fluência criativa e imaginativa do escritor. Esta capacidade criativa nota-se, por exemplo, no processo expressivo de alguns personagens, em que a língua ganha espaço de maior liberdade imaginativa, sem exposições exteriores aos personagem e ao criador que não opta pelo português adoptado pelas autoridades angolanas nas escolas. É por isso que as personagens usam recorrentemente termos como "desploder" e não explodir. Por conseguinte, as jovens personagens apresentam um carácter mais fluído na criação de novas palavras. Contudo, esta escolha estilística do escritor, impressa na obra, pode criar uma maior dificuldade a um leitor que não tem conhecimento da língua portuguesa falada em Luanda. Algumas palavras que enriquecem a obra não têm reconhecimento académico, surgindo normalmente no campo informal. Este campo é dominado principalmente pela oralidade e, com isto, a sonoridade das palavras ganha maior fluência do que o rigor necessário de uma língua.
A afirmação estilística de Ondjaki não é um caso ímpar na literatura angolana. Desde a altura da luta de libertação nacional angolana tem havido uma afirmação de uma língua portuguesa de base angolana, isto é, uma língua portuguesa que sofre uma forte influência das línguas africanas, principalmente da língua Kimbundu – pertencente aos povos da região norte de Angola, nomeadamente Luanda, Bengo, Kwanza-Norte, Malange e Kwanza-Sul (alguma parte desse mesmo território). O primeiro escritor angolano a desenvolver este estilo foi, precisamente, Luandino Vieira. Podemos observar tal estilo, por exemplo, na sua obra Luuanda, desenvolvido graças à descoberta dos escritos do brasileiro João Guimarães Rosa - um autor que tinha criado um universo linguístico ímpar no universo literário brasileiro, típico das personagens dos sertões brasileiros.
Se, de facto, Luandino Vieira bebeu dos escritos de João Guimarães Rosa, como este reconhece numa entrevista concedida a Michel Laba, onde afirma que "não tinha percebido ainda, e foi isso que João Guimarães Rosa me ensinou, é que um escritor tem a liberdade de criar uma linguagem que não seja a que seus personagens utilizam: um homólogo dessas personagens, dessa linguagem deles" , também acabou por servir de fonte inspiradora para vários escritores, como o moçambicano Mia Couto e Ondjaki. No entanto, não podemos afirmar que Ondjaki é um seguidor fiel de Luandino Vieira, visto que as preocupações dos dois escritores destoam bastante. Por exemplo, Ondjaki escreve sem a pressão de afirmar uma língua no Pós-Independência, algo que acontece com Luandino Vieira, dado que este era militante do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA). Este estava comprometido com a revolução e o nacionalismo emergente no país recém-independente.
Por seu lado, Ondjaki não mostra esta preocupação na sua escrita e nem sequer na sua obra Avó Dezanove e o Segredo dos Soviéticos, não deixando, no entanto, de se interessar pela história do seu país natal, tal como é possível observar em Avó Dezanove e o Segredo dos Soviéticos,. Por exemplo, o segredo dos soviéticos abordado consistia na construção do Mausoléu de Agostinho Neto, iniciada em 1981. Outra preocupação com a história do país é revelada quando este usa o termo camarada, por exemplo, para se referir ao presidente. Podemos observar que este termo caiu em desuso quando Angola deixou de estar sob a influência da política socialista.
Ondjaki, tal como Luandino Vieira, acaba por ser precursor da linguagem nova no seio da sociedade angolana. Nos seus escritos, na obra AvóDezanove e o Segredo dos Soviéticos, como, por exemplo, Quantas Madrugadas Tem a Noite (2004), ou, mais recentemente, Os Transparentes (2012), as personagens usam palavras comuns ou usuais na periferia ou guetos de Luanda, que não são conhecidas em toda a extensão territorial do país. Podemos, portanto, estar perante uma situação de um dialecto, ou como acontece no Brasil, onde existe uma linguagem típica do habitante da cidade do Rio de Janeiro, designada de carioca.
Esta situação linguística angolana começou a ser forjada na era colonial, mas não foi possível ser difundida pelos escritores em solo angolano. A hegemonia cultural do regime colonial português impunha a língua portuguesa como a língua de Angola, pelo que os textos literários tinham que estar de acordo com os cânones linguísticos europeus – em português de Portugal. Posteriormente, a censura e a propaganda do Estado criaram uma ideia de Angola como uma extensão de Portugal. Como tal, os habitantes de Angola tinham, necessariamente, de falar o português de Portugal. Só dessa forma é que os habitantes negros obtinham o estatuto de assimilados. Todavia, por exemplo, o estudo da UNESCO em 1958 mostra que a taxa de analfabetismo entre os negros africanos era de 97%. Assim, somente, cerca de 2% da população negra frequentava a escola (2010:199).
Assim, quando Luandino Vieira começou a escrever sobre os musseques de Luanda mostrou que nessa realidade social não havia um conhecimento da língua portuguesa, mas sim um conhecimento básico da língua, pelo que as personagens das suas obras falam um português misturado com as línguas africanas, principalmente o Kimbundu. Salienta-se ainda o facto de a obra de Ondjaki navegar num mar de memórias infantis, por exemplo, quando surgem referências aos filmes de cowboys e de guerra. Este tipo de filmes teve uma grande popularidade em Luanda nas décadas de oitenta e noventa. No entanto, o aspecto mais notável na obra, a meu ver, está no transporte de uma personagem criada pelo magnífico escritor americano Ernest Hemingway, o velho da obra O velho e o Mar, para a obra de Ondjaki. No entanto, na obra de Ondjaki a personagem surge descaracterizada como o velho-pescador. Isto mostra como a leitura pode servir para cruzar dois mundos distintos, porque esta é uma sugestão de um mundo imaginário, permitindo imaginar e estender o mundo para outros horizontes. Neste aspecto, o escritor angolano tem-se tornado exímio.
De referir, em forma de conclusão, que a obra não é densa, adoptando antes uma linguagem minimalista e, por isso, é de acessível leitura para todos os amantes da leitura. No entanto, não se deve entender que Ondjaki é um escritor minimalista. Pelo contrário, as suas obras mostram um olhar crítico sobre o seu país, por exemplo, na obra Os Transparentes (2012). Ondjaki é um escritor sem um universo de leitores definido pelo mercado literário porque a extensão do seu trabalho artístico abarca um denso universo de apreciadores, visto que este é poeta, dramaturgo, romancista, artista plástico e cineasta.









Para um maior conhecimento sobre este assunto consultar o trabalho da historiadora americana Linda Heywood, nomeadamente o seu artigo "Portuguese into African: The Eighteenth-Century Central African Background to Atlantic Creole Cultures" (2002).
http://www.buala.org/pt/a-ler/guimaraes-rosa-lido-por-africanos-impactos-da-ficcao-rosiana-nas-literaturas-de-angola-e-mocam

Sobre a forma como a unidade linguística influenciou o processo de unificação nacional em Angola, confirme-se o nosso estudo intitulado "Conflito Armado e Construção do Estado: Uma Comparação entre Angola, Moçambique e Guiné-Bissau"
(https://run.unl.pt/bitstream/10362/12220/1/Produto%20Final%20%28vers%c3%a3o%20em%20Cd%29.pdf).
Pélissier, René & Wheeler, Douglas, História de Angola, 1.ª ed. Lisboa, Edições Tinha-da-China, 2009.
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