Revisitando a ideologia: Reflexões primeiras sobre as formas de dominação social em Karl Marx e Pierre Bourdieu - Monografia de conclusao de graduacao

May 20, 2017 | Autor: Rodrigo Mello | Categoria: Ideology, Pierre Bourdieu, Karl Marx, Ideologia, Illusio, Dominação Social
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Universidade Federal de Juiz de fora Instituto de Ciências Humanas Departamento de Ciências Sociais

Revisitando a ideologia: Reflexões primeiras sobre as formas de dominação social em Karl Marx e Pierre Bourdieu

Rodrigo chaves de Mello Rodrigues de Carvalho

Juiz de Fora Fevereiro/ 2007

Revisitando a ideologia: Reflexões primeiras sobre as formas de dominação social em Karl Marx e Pierre Bourdieu

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Universidade Federal de Juiz de fora Instituto de Ciências Humanas Departamento de Ciências Sociais

Revisitando a ideologia: Reflexões primeiras sobre as formas de dominação social em Karl Marx e Pierre Bourdieu

Rodrigo chaves de Mello Rodrigues de Carvalho Monografia apresentada ao departamento de Ciências sociais do Instituto de Ciências Humanas da Universidade Federal de Juiz de Fora, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Bacharel em Ciências Sociais (área: Sociologia), sob orientação do Prof. Dr. Jessé de Souza.

Juiz de Fora Fevereiro/ 2007

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CARVALHO, R.C.M.R, Revisitando a ideologia: Reflexões primeira sobre as formas de dominação social em Karl Marx e Pierre Bourdieu. MONOGRAFIA DE CONCLUSÃO DE CURSO, Departamento de Ciências Sociais, ICH/UFJF. Juiz de Fora, Fevereiro de 2007.

Prof. Dr. Jessé de Souza ( Departamento de Ciências Sociais –UFJF)

______________________________________________________________________________ Orientador

Prof. Dr. Raul Francisco Magalhães ( Departamento de Ciências Sociais)

Banca Examinadora

Prof. Dr. Rubem Barboza Filho (Departamento de Ciências Sociais –UFJF)

_______________________________________________________________________ Banca Examinadora

Acadêmico: Data:

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Aos meus pais, que em um país de misérias e injustiças, me ofertaram uma formação privilegiada. Pelo carinho, zelo e companheirismo, dedico.

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Em um ano, o sofrimento de Kia Yui se agravou. A imagem da inacessível senhora Fênix consumia seus dias; os pesadelos e a insônia, as suas noites. Uma tarde, um mendigo taoísta pedia esmolas na rua e proclamava que podia curar as doenças da alma. Kia Yiu mandou chamá-lo. Disse-lhe o mendigo: “ Seu mal não sara com remédios. Tenho aqui algo que o curará se seguir minhas indicações”. Tirou da manga um espelho polido nas duas faces, com a seguinte inscrição: Precioso Espelho de Vento-e-Lua. Acrescentou o mendigo: “ Este espelho vem do palácio da fada do terrível despertar e tem a virtude de curar os males causados pelos ventos impuros. Evite, porém, olhar o verso. Amanhã voltarei para buscar o espelho e para felicita-lo por suas melhoras”. Não quis aceitar as moedas que lhe foram oferecidas. Kia Yui olhou a frente do espelho, e aterrorizado atirou-o longe. O espelho refletia sua caveira. Amaldiçoou o mendigo e quis olhar o verso do espelho. Lá do fundo, a senhora Fênix, esplendidamente vestida, lhe fazia sinais. Kia Yiu sentiu-se arrebatado, atravessou o metal e realizou o ato de amor. A senhora Fênix acompanho-o até a saída. Quando Kia Yiu acordou, o espelho estava ao contrário e novamente lhe mostrava a caveira. Esgotado pelas delícias do lado feliz, Kia Yiu não resistiu a tentação de olhá-lo uma vez mais. A senhora Fênix lhe fazia sinais, e ele cruzou o metal novamente e novamente fizeram amor. Isto ocorreu umas quantas vezes. Na última, dois homens o pretenderam quando saía e o acorrentaram. “ Eu os seguirei”, murmurou, “mais deixe-me levar o espelho”. Foram suas últimas palavras. Encontraram-no morto, sobre o lençol manchado.

O espelho de Vento-e-Lua. Jorge luis Borges

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SUMÁRIO

Resumo............................................................................................................................. 8 Introdução: Sobre a relevância da retomada de um tema controverso..............................9 Capítulo 1: Marx e a teoria da Ideologia ...........................................................................13 1.1)

Marx, o campo e o sistema filosófico hegeliano.......................................14

1.2)

Trabalho: a ontologia humana na dialética natureza e cultura..................18

1.3)

A ideologia ou das estruturas de plausibilidade de uma anti-ontologia....25

Capítulo 2.: Bourdieu e as novas bases à teoria da ideologia ............................................28 2.1)

Bourdieu, uma face do campo e filosofia da praxis...................................30

2.2)

Análise dos conceitos bourdieusianos ........................................................35

2.3)

Novas cores sobre um velho quadro: Discutindo ideologia em Bourdieu...40

Conclusão: Reflexões primeiras sobre a dominação social ................................................44 Apêndice: Divagações sobre os horizontes emancipatórios ............................................48 Bibliografia.......................................................................................................................... 51

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Resumo Este trabalho tem por escopo refletir sobre os mecanismos que conferem forma e legitimidade aos estatutos contemporâneos de dominação social, e que em conseqüência, contribuem para a naturalização das desigualdades sociais. Com tal fito debruço-me sobre as obras de Karl Marx e Pierre Bourdieu, procurando visualizar as interfaces estabelecidas entre estas a partir do tema da ideologia. Sucintamente, aponto que a obra sociológica de Bourdieu, ao revisitar, a partir de outros quadrantes e registros, temas caros a filosofia da praxis, reatualizando-os, afirma-se como via possível para pensarmos as particularidades da dominação social em contexto de modernidade tardia. Com efeito, almejo, a partir deste continnum teórico, lançar a questão: como podemos pensar, a partir de considerações ao mundo da cultura, as construções sociais e políticas da dominação e das desigualdades sociais.

Resumé

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Introdução

SOBRE A RELEVÂNCIA DA RETOMADA DE UM TEMA CONTROVERSO

A verdade é um tipo de erro sem o qual uma certa espécie de vida não pode sobreviver Nietzsche (O nascimento da tragédia)

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Poucos temas foram tão controversos no âmbito da reflexão sociológica do século XX. Entretanto, mesmo marcada por altos e baixos, a discussão sobre a ideologia sempre esteve na pauta de debates deste campo dos saberes. Desde que Marx dela se muniu com fito a interpretar as conexões estabelecidas entre uma realidade concreta e seus princípios de plausibilidade abstratos, este tema já foi alvo de distintas interpretações. Proponho, nesta introdução, recapitular, através de um recorte arbitrário, alguns dos principais momentos deste debate, para então, posteriormente, poder lançar a questão sobre a validade de retornarmos, nos dias de hoje, a esta temática. Contemporâneo a barbárie do nazi-fascismo, Theodor Adorno, um dos mais geniais intelectuais do século XX, visualiza a ideologia enquanto princípio do autoritário processo identificatório entre sujeito e objeto; por sua mediação, a essência cede lugar a aparência e assiste-se a colonização das ontológicas esferas de sentido. Neste desiderato, dialogando com as lições de Nietzsche, escreve Adorno: a pretensão imanente do conceito é sua invariância ordenadora, forma do conceito que, nesse aspecto, é falsa. E defende a não-identidade como horizonte possível à barbárie totalitária: a não identidade só é opaca para a pretensão da identidade de ser total.1 Também testemunha do horror fascista, o pensador italiano Antônio Gramsci dialoga, em seus cadernos do cárcere, com o tema da ideologia, porém, complexificando-o a partir da noção de hegemonia. Por esta categoria Gramsci procurará equacionar a problemática (muito bem plantada por Weber) entre dominação e as suas estruturas de plausibilidade. Assim, em Gramsci, se efetua a transição crucial da ideologia como sistema de idéias para a ideologia como prática social vivida (pré-

ADORNO, Theodor – A dialética negativa – APUD: DREW, Peter – Adorno, pós-estruturalismo e a crítica da identidade. In. ZIZEK,Slavoj – Um mapa da ideologia, Pg. 60-61. 1

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reflexivamente) e costumeira.2 Entrementes, Gramsci introduz nesta discussão os aspectos positivos da ideologia, que, uma vez reformulada pelos intelectuais orgânicos, podem vir a ser canalizadas para a transformação emancipatória da realidade social. Inspirado por Gramsci, já no contexto do pós guerra, o marxista francês Louis Althusser também se debruça sobre a ideologia, visualizando-a enquanto elemento forjado em nível institucional e atuante sobre os sujeitos, de forma inconsciente e pré-reflexiva, fazendo-os agir emconformidade com os ditames emanados pelo mundo da produção.3 Mordaz crítico de Louis Althusser e de seu marxismo estruturalista, o filósofo francês Michel Foucault, principal expoente do pós-estruturalismo, situa-se na esteira iniciada por Adorno, e visualiza a ideologia enquanto sistema de controle e dominação social. Por suas reflexões podemos pensar que a ideologia responde pelo princípio de homogeneização da sociedade, grandeza de maior peso na fórmula do controle social. E visualiza, em uníssono com as correntes pós-modernas, um horizonte libertário na dissolução das grandes identidades sociais em prol de micro-grupos diferenciados entre si, o que obliteraria a eficácia dos sistemas de controle. Em face a este cenário, cabe a questão: O que, nos dias atuais, justificaria uma possível revitalização deste debate? Em outros palavras, qual a contribuição que o retorno a ideologia pode trazer em termos de esclarecimento às problemáticas sociais hodiernas? E mais: por quais vias este retorno pode ser possível? Por definição, a ideologia informa o conjunto de esquemas avaliativos em operação no imaginário social que, organizando coerentemente uma realidade em si incoerente, possibilitam, além de uma ação prática sobre o mundo, uma legitimação das estruturas de dominação que conferem

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EAGLETON,Terry – A ideologiae as vicissitudes no marxismo ocidental-In.Op.Cit.- Pg.197.. teceremos no capítulo II deste texto, alguns comentários sobre a teoria da ideologia de Louis Althusser.

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legitimidade as formas estatutárias da realidade. Com efeito, estou certo que o retorno a ideologia pode contribuir, em larga medida, para pensarmos uma das principais questões postos a desafiar a imaginação sociológica contemporânea: por quais estruturas a desigualdade social se torna legitima nas sociedades contemporâneas? Neste desiderato, aponto que o retorno à ideologia configura-se em um chamado para pensarmos o mundo social ante os desafios postos pelo hoje. Neste contexto a obra sociológica de Pierre Bourdieu se revela de fundamental importância. Munido de uma fértil imaginação sociológica Bourdieu reanima a teoria crítica propondo-se, através de uma sofisticada e complexa argumentação, a desvelar as turvas estruturas que obscurecem os mecanismos de dominação social e que legitimam em última instância, as desigualdades sociais. Em face disto, este texto monográfico tem por objetivo contribuir com a parcela campo sociológico comprometida em refletir sobre os elementos que conformam o estatuto da dominação social contemporânea. Para isto, estruturarei este texto em três partes principais e um apêndice: em primeiro lugar, nos dirigindo as fontes primeiras deste debate, apresentaremos a definição marxiana de ideologia, para então, em seguida, apresentarmos os novos traçados que esta ganha nas linhas de Bourdieu, a partir de conceitos como Illusio, habitus e doxa. Posteriormente, à guisa de conclusão, esboçarei algumas de minhas primeiras reflexões sobre meu objeto de análise. Finalmente, em um apêndice, procurarei refletir, descompromissadamente, sobre uma idéia que acompanha de longa data as discussões sobre a ideologia, i.é, as possibilidades dos horizontes transformadores da realidade contemporânea.

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Capítulo I

MARX E A TEORIA DA IDEOLOGIA

“Perseu precisava de um capacete da invisibilidade para perseguir os monstros. Nós puxamos o capacete mágico a fundo sobre nossos olhos e orelhas, para podermos negar a existência dos monstros...” Marx, (Prefácio à primeira edição alemã de O capital)

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A ideologia configura-se em um tema central na obra de Marx. Será através dela que ele procurará estabelecer as relações existentes entre os degraus de desenvolvimento da consciência humana e a existência material dos homens. Em outros termos, por seu intermédio, Marx procurará estabelecer os nexos necessariamente existentes entre o mundo concreto e suas estruturas de plausibilidade abstratas. Entretanto, antes de nos aprofundarmos nesta discussão – e com fito a melhor fazê-la mais a frente - creio ser prudente lançarmos mão de uma digressão, objetivando refletir sobre dois pontos subjacentes a nossa discussão principal, a saber: 1) qual a posição ocupada por Marx dentro do campo intelectual de sua época, e como este posicionamento interfere, decisivamente, sobre seus postulados; 2) qual a importância da categoria trabalho na obra de Marx e como, através desta, pensando os princípios da ontologia humana, nosso autor equaciona a dialética fundamental, natureza e cultura. Uma vez, concluídas estas digressões, refletiremos, ao final do texto, sobre a teoria da ideologia marxiana.

1.1)

Marx, o campo e o sistema filosófico hegeliano

Inspirado por Bourdieu, creio ser de fundamental importância que o exercício de interpretação de um autor seja feito sem negligenciar o exame do campo no qual este se inseri e que serve de base para o aparecimento, e para a legitimação posterior, de suas idéias. Neste sentido, interpretar um autor

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é, também, decantando-o em sua época e em seu ambiente intelectual, desvelar os princípios de seus pontos de vista. Com efeito, é também, buscar por luz sobre o lugar de onde ele fala4. Escrevendo na Europa de meado do século XIX, o campo intelectual no qual emerge a obra marxiana era, em larga medida, influenciado pelo sistema filosófico hegeliano. Por esta razão, grande parte da obra de Marx se destina ao debate com os princípios filosóficos de Hegel e seus caudatários – Bruno Bauer, Max Stirner, Friedrich Strauss e Ludwig Feuerbach. Examinemos, na seqüência, alguns dos aspectos centrais a este debate, procurando ver como os postulados filosóficos marxianos definiram-se a partir das relações intelectuais de Marx com este campo. Resumidamente, sem pretender fazer jus a complexidade emanada pela discussão, a concepção hegeliana da história apregoa que o desenvolvimento da condição humana e das sociedades em geral, é, em ultima analise, reflexo da peregrinação do Espírito Absoluto em busca de seu reconhecimento. Das manifestações estéticas à moral do direito, da religião ao Estado, a realidade manifesta-se como epifenômeno da marcha do Espírito absoluto. À esta, tudo subsumi. Em conformidade com esta idéia, poder-se-ia, defender que a realidade material dos homens é necessariamente determinada por um a priori da consciência, e que está, na transformação desta, a chave explicativa para a transformação da realidade social.

“... Nessas condições, é importante, em seguida, para a reflexão prática, o que comanda os pontos de vista, o que comanda as intervenções, os lugares de publicação, os temas que escolhemos, os objetos pelos quais nos interessamos etc., é a estrutura das relações objetivas entre os diferentes agentes que são, para empregar ainda a metáfora “einsteriana”, os princípios do campo. É a estrutura das relações objetivas entre os agentes que determina o que eles podem e não podem fazer. Ou, mais precisamente, é a posição que eles ocupam nessa estrutura que determina ou orienta suas tomadas deposição. Isso significa que só compreendemos, verdadeiramente, o que diz ou faz um agente engajado num campo (um economista, escritor, um artista, etc.) se estamos em condições de nos referirmos à posição que ele ocupa nesse campo, se sabemos “ de onde ele fala”, como se dizia de modo um tanto vago por volta de 1968 – o que supõe que pudemos ou soubemos fazer, previamente, o trabalho necessário para construir as relações em questão...”- Os usos sociais da ciência: por uma sociologia do campo científico – Pierre Bourdieu 4

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Na história universal o próprio espírito universal, a consciência de si e da sua essência são um objeto verdadeiro e real, um conteúdo e um fim, ao qual em si e para si todos os outros fenômeno servem; de modo que mediante o juízo com o qual aquele os subsume, e pelo qual o espírito universal lhes é inerente, têm valor próprio, e por fim a sua existência. Que na marcha do espírito (e o espírito é aquilo que não só se libra sobre a história como sobre as águas, mas trabalha nela e é o seu único motor), a liberdade, isto é, o desenvolvimento determinado, mediante o conceito do espírito, seja o elemento determinante, e só aquele conceito seja a meta final, isto é, a verdade, pois o espírito é a consciência; ou, com outras palavras, que a razão exista na história; será , ao menos por uma parte, uma crença plausível, por outra parte, é conhecimento filosófico. [ grifos do autor]5

Interpretando Hegel, Marx considera.

[em Hegel] A humanidade da natureza e da natureza produzida pela história, dos produtos do homem, manifesta-se no fato de serem produtos do espírito abstrato e nessa medida, portanto, fases do espírito, entidades do pensamento.6

E mais adiante, tece as seguintes críticas, a partir das quais deixa transparecer as premissas filosóficas do materialismo histórico.

Tal processo deve ter um portador, um sujeito; mas o sujeito emerge primeiro como resultado. Semelhante resultado, o sujeito, o sujeito que se conhece como a absoluta autoconsciência é portador Deus, o Espírito absoluto, a Idéia que se conhece e se revela. O homem real e a natureza real tornam-se simples predicados, símbolos deste homem irreal e por conseguinte, entre si uma relação de inversão absoluta; um sujeito objeto místico ou uma subjetividade que vai além do objeto, o sujeito absoluto como um processo de auto-alienação e de retorno da alienação a si mesmo, e sujeito que ao mesmo tempo reabsorve em si a alienação e o sujeito como tal processo; o puro e incessante circular em si mesmo.7

HEGEL, G.W.F. – A Fenomenologia do Espirito, § 549 – In. WEFFORT, Francisco- Os clássicos da política, Pg. 139, Ed. Ática, SP, 1989. 6 MARX,Karl- Manuscritos economico-filosóficos, Pg.244. 5

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As críticas de Marx ao sistema filosófico hegeliano devem-se ao fato de que este, ao conceber os déficits ontológicos da historia humana como uma decorrência direta da condição de submissão do homem a um sistema de idéias determinado (consciência)- e determinante - de sua condição, não argüi sobre as relações que se estabelecem entre os ditames desta consciência e a realidade material em que esta fecunda. Ou seja, ao criticar a filosofia idealistas hegeliana, Marx tem por horizonte propor que qualquer exame sobre o que venha a ser a consciência social de uma determinada época deva ser feito a partir dos nexos que se estabelecem entre esta consciência e as circunstâncias materiais na qual esta germina. Assim, afastando-se do idealismo hegeliano e lançando as bases do materialismo histórico, Marx visualiza as relações materiais de produção como o lócus por excelência definidor do imaginário social. É na práxis que se encontra a raiz de toda e qualquer representação ideológica que busque esculpir uma determinada visão de mundo. Seguindo a sugestão de Tom Bottomore, na visão de Marx as inversões hegelianas consistem em uma conversão do subjetivo em objetivo e do objetivo em subjetivo, no sentido de que em Hegel, as idéias se manifestam necessariamente no mundo empírico, condicionando-o e determinando as relações sociais que nele se darão8. Munido desta perspectiva Marx se lançará ao debate crítico com o campo da filosofia alemã mais recente, representado pelo grupo de jovens neo-hegelianos, Bauer, Stirner, Strauss e Feuerbach. À este debate, Marx dedica algumas de suas principais obras, mas, será, em A ideologia alemã que ele atingirá seu ápice.

Até agora, os homens formaram sempre idéias falsas sobre si mesmos, sobre aquilo que são ou deveriam ser. Organizaram as suas relações mútuas em 7 8

Op.Cit.- Pg. 257 BOTTOMORE, Tom- Dicionário do pensamento marxista, Vocábulo: Ideologia.

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função das representações de Deus, do homem normal, etc., que aceitavam. Estes produtos do seu cérebro acabaram por os dominar; apesar de criadores, inclinaram-se perante as suas próprias criações. Libertemo-los portanto das quimeras, das idéias, dos dogmas, dos seres imaginários cujo jugo os faz degenerar. Revoltemo-nos contra o império destas idéias. Ensinemos os homens a substituir essas ilusões por pensamentos que correspondam à essência do homem, afirma um; a ter perante elas uma atitude crítica, afirma outro; a tira-las da cabeça, diz um terceiro- e a realidade existente desaparecerá.(...) Estes sonhos inocentes e pueris formam o núcleo da filosofia dos jovens hegelianos.(...). Esta obra propõe-se a desmascar estas ovelhas que se julgam lobos, e que são tomadas como lobos, mostrando que seus balidos apenas repetem, numa linguagem filosófica, as representações dos burgueses alemães.9

E prossegue, no mesmo tom, logo adiante.

já que nestes jovens hegelianos as representações, pensamentos, conceitos, enfim, os produtos da consciência automizada por eles são tidos como os verdadeiros grilhões da humanidade, exatamente como são declarados como vínculos verdadeiros da sociedade humana pelos velhos hegelianos, compreende-se que os jovens hegelianos também só tenham que lutar contra estas ilusões da consciência. Já que de acordo com a imaginação deles as relações dos homens, o seu inteiro agir e fazer, as cadeias e barreiras são produtos da sua consciência, esses jovens hegelianos propõem de modo conseqüente aos homens o postulado moral de trocarem a sua consciência presente pela consciência humana, crítica ou egoísta, e através disso eliminarem as barreiras. (...). Os ideólogos neo-hegelianos, apesar de suas frases pretensamente abaladoras do mundo são os maiores conservadores.10

A esta altura, já tendo examinado o campo intelectual no qual a obra de Marx se definirá, atentando para o exame das premissas filosóficas em disputa no seu interior, creio ser possível concluirmos esta primeira digressão, passando então ao exame da segunda digressão proposta. A análise da categoria trabalho e suas importâncias ontológicas.

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MARX, Karl- A ideologia alemã- crítica da filosofia alemã mais recente – Prefácio, Pg. 7 Op.Cit. – Pg. 17

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1.2)

Trabalho: A ontologia humana na dialética natureza e cultura11

Vimos na discussão acima que a filosofia marxiana ganha plausibilidade, ao tomar a concepção materialista da história enquanto seu paradigma estruturante. Neste sentido Marx elege como problemática central de sua obra a reflexão sobre as condições materiais da produção social e as suas conseqüências, tanto para a definição das relações entre as forças produtivas, quanto para a consolidação de esquemas imaginários que justifiquem estas relações. Em suma, Marx visualiza, nas dinâmicas do mundo da produção o cerne fundamental da realidade social. Eis a razão da importância da análise do trabalho, elemento nuclear do mundo da produção, no âmbito da teoria marxiana. Com efeito, será por meio desta categoria que Marx equacionará, não só a discussão sobre os princípios da produção de mercadorias, como também a reflexão acerca das bases ontológicas postas à realização da condição existencial humana. Tomando o Homo Fabaer como princípio estruturante de sua ontologia, Marx considera que o trabalho é a condição essencial da existência humana, e que é através deste que as mediações entre o homem e a natureza se tornam possíveis. O trabalho é aqui entendido como o processo de transformação da natureza com fins a gerar bens sociais, ou melhor, bens socialmente úteis. Como criador de valores de uso, como trabalho útil, é o trabalho, por isso, uma condição de existência do homem, independente de todas as formas de sociedade, eterna necessidade natural de mediação do metabolismo entre o homem e natureza e, portanto, da vida humana.12 [grifo nosso]

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Através da idéia de ontologia, tenho em mente a busca pelos princípios fundamentais e primeiros do Ser; principalmente, do Ser em manifestação no mundo, do Ser-aí (dasein); O Ser enquanto possibilidade de realização no devir. Neste sentido entendo a ontologia como a reflexão que busca a identidade entre a essência e existência do Ser. 12

MARX, Karl – O capital: crítica da economia política, pg. 50

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Neste processo de transformação da natureza em bens e produtos socialmente úteis, o homem, reconhecendo-se em sua produção, realiza sua ontologia, ou seja, contempla a sua própria natureza, uma natureza estritamente social. Creio ser esta a idéia chave à subsimir toda a discussão de Marx sobre a mercadoria, a qual nosso autor dedica a primeira parte de O capital. Nos dizeres de Marx, a mercadoria é antes de tudo, um objeto externo, uma coisa, a qual pelas suas propriedades satisfaz necessidades humanas de qualquer espécie13. E é com este objetivo que são produzidas, através da mobilização da força vital socialmente produtiva – o trabalho. Voltadas à atender necessidades humanas de diferentes espécies, as mercadorias são qualitativamente diferentes entre si. Entrementes, as mercadorias apenas se manifestam socialmente através de um processo social, a troca. Surge então, com fins à permuta, a necessidade de estabelecer igualdades entre estes produtos originalmente diversos. Esta igualdade é estabelecida a partir da abstração da mercadoria, em um processo onde esta passa a ser vista como um recipiente a encarnar trabalho humano abstrato. Neste momento, as diversas mercadorias encontram na sua condição de mera gelatina de trabalho humano, uma unidade comum de valor, o que as dispõe a troca. Deixemos que Marx que nos clarifique este ponto através de duas passagens.

O trabalho, entretanto, o qual constitui a substância dos valores, é o trabalho humano igual, dispêndio da mesma força de trabalho do homem. A força conjunta de trabalho da sociedade, que se apresenta nos valores do mundo das mercadorias, vale aqui como uma única e a mesma força de trabalho do homem, não obstante ela ser composta de inúmeras forças de trabalho individuais. Cada uma dessas forças de trabalho individuais é a mesma força de trabalho do homem como a outra, à medida que possui o caráter de uma força média de trabalho social, e opera como tal força de trabalho socialmente média, contanto que na produção de uma mercadoria não consuma mais que o trabalho em média necessário ou o tempo de trabalho socialmente necessário. Tempo de trabalho socialmente necessário é aquele requerido para produzir um valor de

13

Op.Cit- Pg.45

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uso qualquer, nas condições dadas de produção socialmente normais, e com o grau social médio de habilidade e de intensidade de trabalho. (...). É, portanto, apenas o quantum de trabalho socialmente necessário ou o tempo de trabalho socialmente necessário para a produção de um valor de uso o que determina a grandeza de seu valor.14

(...) Recordemo-nos, entretanto, que as mercadorias apenas possuem objetividade de valor na medida em que elas sejam expressões da mesma unidade social de trabalho humano, pois sua objetividade de valor é puramente social e, então, é evidente que ela pode aparecer apenas numa relação social de mercadoria para mercadoria.15

Percebemos então que a troca de distintas mercadorias entre si, confere o caráter social da igualdade dos trabalhos de diferentes espécies. Assim, o trabalho preenche um duplo caráter social, a saber, 1) satisfazer, na qualidade de produtor de mercadoria, determinada necessidade social; 2) satisfazer, na qualidade de produtor de mercadoria apta à troca no mercado, as múltiplas necessidades, somente satisfeitas por intermédio de outras mercadorias, de seus próprios produtores. Ao fim e ao cabo deste processo, observa-se o complexo da divisão social do trabalho. Entretanto, a dialética marxiana não permite que a relação entre o trabalho e seu produto, a mercadoria, se esgote neste ponto. E assim, inicia-se na argumentação de Marx, um kafkiano movimento em que o objeto da criação volta-se, ameaçadoramente, contra seu criador. Observemos. Em uma de suas mais ricas assertivas, Marx define o mundo capitalista como uma formação social em que o processo de produção domina os homens, e ainda não o homem o processo de produção.16 Neste cenário, uma vez dispostas à permuta em um mercado regido por leis capitalistas, as

Op.Cit. – Pg.48 Op. Cit – Pg. 54 16 Op.Cit. –Pg. 73 14 15

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mercadorias, como que ganhando vida própria, em uma mágica social, adquirem um caráter sobrenatural e/ou metafísico. Se antes, as mercadorias, meras gelatinas de trabalho humano, somente ganhavam significado social através da relação de troca entre os seus produtores, uma relação social entre os homens, agora, dotadas de vida própria, observa-se uma relação autônoma entre coisas. E os homens não mais se reconhecem em seus produtos. Eis o caráter fetichista da mercadoria, uma conseqüência direta do caráter social da produção em condições capitalistas. É evidente que o homem por meio de sua atividade modifica as formas das matérias naturais de um modo que lhe é útil. A forma da madeira, por exemplo, é modificada quando dela se faz uma mesa. Não obstante a mesa continua sendo madeira, uma coisa ordinariamente física. Mas logo que ela aparece como mercadoria, ela se transforma numa coisa fisicamente metafísica. (...). O mistério da forma mercadoria consiste, portanto, simplesmente no fato de que ele reflete aos homens as características sociais do seu próprio trabalho como características objetivas dos próprios produtos de trabalho, como propriedades naturais sociais dessas coisas e, por isso, também reflete a relação social existente fora deles, entre objetos. Por meio desse qüiproquó os produtos do trabalho se tornam mercadorias, coisas físicas metafísicas ou sociais. Porém, a forma mercadoria e a relação de valor dos produtos de trabalho, na qual ele se representa, não tem que ver absolutamente nada com sua natureza física e com as relações materiais que daí se originam . Não é mais nada que determinada relação social entre os homens que para eles aqui assume a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas. (...) Aqui os produtos do cérebro humano parecem dotados de vida própria, figuras autônomas, que mantém relações entre si e com os homens. Assim, no mundo da mercadoria, acontece com os produtos da mão humana. Isto eu chamo de fetichismo que adere aos produtos de trabalho, tão logo são produzidos como mercadorias, e que por isso, é inseparável da produção17

Observa-se, assim, sob a égide da economia política, uma cisão irreconciliável, entre o produtor e seu produto, a partir do não reconhecimento do criador na própria criação. Aqui - iniciando os procedimentos que nos levarão rumo a questão central a que se presta este texto, a reflexão sobre a teoria da ideologia em Marx – creio ser plausível lançar a questão: por que as mercadorias se

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depreendem do homem a ponto deste não mais se reconhecer em seu produto? Em outros termos, procurando ser condizente com a concepção materialista da história, poderíamos perguntar: Qual fenômeno social alimenta, aqui, o fluxo pendular da dialética marxiana? Vimos acima que, em Marx, o trabalho se configura como a manifestação essencial da natureza humana. Por seu intermédio, essência e existência se identificam em um processo de definição da ontologia humana. Todavia, em condições sociais de produção capitalista, o trabalho transforma-se em mercadoria. Se outrora o trabalho fôra a condição essencial da existência humana, sob condições capitalistas opera-se uma inversão, e o trabalho, agora vendido como mercadoria, torna-se a negação da própria essência do homem. Com efeito, a mercadoria se depreende do homem porque o próprio homem passa, através da transformação do trabalho em mercadoria, a negar-se. Escravizado, o homem age contra seus princípios ontológicos. Trabalho alienado se afirma como a negação do trabalho.

O trabalho alienado inverte a relação. Contudo, visto que, segundo Smith, uma sociedade em que a maioria sofre não é feliz, e já que a mais próspera situação da sociedade origina o sofrimento da maioria, enquanto o sistema econômico (em geral, uma sociedade de interesses privados) conduza esta situação muito próspera, segue-se que a miséria social constitui o objetivo da economia. (...).Afirma-nos ele que originalmente e em principio todo o produto do trabalho pertence ao trabalhador. Mas imediatamente acrescenta que, na realidade, o trabalhador recebe apenas a parte mínima e absolutamente indispensável do produto; precisamente tanto quanto necessita para existir como trabalhador, não como homem, e para gerar a classe escravizada dos trabalhadores, não a humanidade.18

17 18

Op. Cit. –Pg.71 MARX, Karl – Manuscritos econômico-filosóficos, Pg. 107.

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Não estou seguro, mas parece-me que neste ponto, da dialética fundamental natureza e cultural, deriva, enquanto epifenômeno, a dialética capital e trabalho, em um movimento em que a natureza (trabalho), aprisionada pela cultura (capital), volta-se contra si própria. Lanço esta idéia como chave analítica à observação da inversão, ocorrida sob condições capitalistas, que está como pano de fundo da dialética marxiana.

O capital é assim o poder de domínio sobre o trabalho e sobre os seus produtos. O capitalismo possui este poder, não em virtude das suas qualidade pessoais ou humanas, mas como proprietário do capital. O seu poder é o poder de compra do capital, a que nada se pode opor.

E, antes de concluir esta discussão, cito ainda esta passagem

O animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital. Não se distingue dela. É a sua própria atividade. Mas o homem faz da atividade vital o objeto da vontade e da consciência. Possui uma atividade vital consciente. Ela não é uma determinação com a qual ele imediatamente coincide. A atividade vital consciente distingue o homem da atividade vital dos animais. Só por esta razão é que ele é um ser genérico. Unicamente por isso é que a sua atividade surge como atividade livre. O trabalho alienado inverte a relação, uma vez que o homem, enquanto ser consciente, transforma a sua atividade vital, o seu ser, em simples meio da sua existência. (...). É precisamente na ação sobre o mundo objetivo que o homem se manifesta como verdadeiro ser genérico. Tal produção é a sua vida genérica ativa. Através dela, a natureza surge como a sua obra e a sua realidade. Por conseguinte, o objeto do trabalho é a objetivação da vida genérica do homem: ao não reproduzir-se apenas intelectualmente, como na consciência, mas ativamente, ele duplica-se de modo real e intui o seu próprio reflexo num mundo por ele criado. Pelo que, na medida em que o trabalho alienado subtrai ao homem o objeto da sua produção, furta-lhe igualmente a sua vida genérica, a sua objetividade real como ser genérico, e transforma em desvantagem a sua vantagem sobre o animal, porquanto lhe é arrebatada a natureza, o seu corpo inorgânico.19

Concluo estas digressões, certo que conseguimos, através delas, galgar terrenos mais sólidos para levarmos a bom termo a discussão originalmente proposta neste texto. Recapitulando, até o

24

presente momento, analisamos como Marx, a partir de um posicionamento específico, debate criticamente com campo intelectual alemão, definindo as bases da concepção materialista da história em sentido diametralmente oposto ao idealismo de inspiração hegeliana. Acompanhamos também, em termos teóricos, como o trabalho, no âmbito da ontologia proposta por Marx, se constitui como princípio da realização humana, e, como, sob condições capitalistas, degenera a ponto de tornar-se a própria negação do homem, em seus termos existências. Cabe, então, como gancho à discussão que levaremos a seguir, questionar: A partir de quais estruturas, o processo de negação da existência do homem em conformidade com sua essência, é legitimado? Ou, em termos ontológicos, como o Ser do homem, uma vez negada as suas premissas existenciais, passa a ser definido pelo seu Não-Ser? A estas questões, dedico a parte conclusiva deste texto.

1.3)

A ideologia ou das estruturas de plausibilidade de uma anti-ontologia

É usual e corriqueira, em grande medida pela força de nosso senso comum sociológico, a definição de ideologia em Marx, a partir da seguinte frase: A ideologia é uma falsa consciência. Mesmo não estando errada, esta frase não é auto-explicativa. Cabe então a reflexão sobre o processo social ao qual esta idéia aludi. Entretanto, pode o atento leitor aqui perguntar sobre o que estou entendendo por ideologia. Penso, sucintamente, a ideologia, enquanto um conjunto de esquemas avaliativos acerca da realidade – e originados nesta realidade – voltados a organizá-la no imaginário, conferindo-lhe, assim,

19

Op. Cit. – Pg. 165-166

25

um sentido, propiciando, então, uma ação prática sobre o mundo. Por esta definição, podemos entender a ideologia enquanto estrutura de plausibilidade à realidade social, uma vez que orienta à ação pratica sobre esta. E mais, podemos perceber que a ideologia é um processo intrinsecamente necessário a toda e qualquer realidade social. E que, não necessariamente, precisa ser pensada em termos de falsa consciência. Isto posto, voltemos a nossa discussão. Vimos que em Marx o trabalho se constitui no princípio da realização humana, mas que sob condições capitalistas, transforma-se em mercadoria e degenera à condição de trabalho alienado, fonte de eterna negação da natureza humana. No entanto, ainda não vimos como, na argumentação de Marx, do trabalho alienado deriva a propriedade privada - fator por excelência definidor do modo de produção capitalista. Segundo Marx, a essência subjetiva da propriedade privada é o trabalho alienado. Em seus dizeres,

A relação do trabalhador ao trabalho gera a relação do capitalista (ou seja qual o nome que o senhor do trabalho se quiser dar) também ao trabalho. A propriedade privada constitui, portanto, o produto, o resultado, a conseqüência necessária do trabalho alienado, da relação externa do trabalhador à natureza e a si mesmo. A propriedade privada deriva assim da análise do conceito de trabalho alienado, ou seja, do homem alienado, do trabalho alienado, da vida alienada, do homem estranho a si próprio.20

Donde deriva A propriedade privada constitui apenas a expressão sensível do fato de o homem ser para si algo de objetivo e se tornar para si um objeto estranho e não-humano, do fato de sua manifestação da vida ser a sua alienação da vida, de a sua realização ser a sua desrealização, a emergência de uma realidade estranha.21

20

Op.Cit. – Pg 169.

26

Mais uma vez encontramos o trabalho no centro da argumentação marxiana. A anti-ontologia do trabalho alienado, estabelecendo o estranhamento do produtor a seu produto faz do homem enquanto não-Ser, um Ser, impelindo-o ao eterno conflito entre essência e existência, entre liberdade e necessidade, entre espécie e indivíduo. É este, a meu ver, o fenômeno social que esta aludido pela idéia da falsa consciência, a capitanear a teoria marxiana da ideologia. Se, por definição, a ideologia é uma estrutura imaginária orientadora da ação prática sobre o mundo, em Marx, ela é vista como a impulsionadora da ação do homem contra sua própria natureza. É o elemento legitimador e naturalizador da anti-ontologia posta em curso pela mercantilização do trabalho em um contexto regido por relações de produção capitalista. Com efeito, enquanto os homens, por força de seu limitado modo material de atividade, são incapazes de resolver estas contradições na prática, tendem a projetá-las nas formas ideológicas de consciência, isto é, em soluções puramente espirituais ou discursivas que ocultam efetivamente, ou disfarçam, a existência e o caráter dessas contradições. Ocultando-as, a distorção ideológica contribui para a sua reprodução e, portanto serve aos interesses da classe dominante. (...). As distorções ideológicas não podem ser superadas pela crítica. Só podem desaparecer quando as contradições que lhes deram origem forem resolvidas na prática.

Equacionando a conexão de uma existencia concreta somente justificada em seus princípios abstratos, a teoria marxiana da ideologia, expressa o estabelecimento dos nexos necessário entre a existência material dos homens em seu processo produtivo e as formas invertidas de consciência. Ou seja, originando-se nas contradições sociais (que contradizem os princípios da natureza humana), a ideologia as oculta, reconstruindo no imaginário uma solução coerente, compensando, assim, as incoerências do mundo real. Concluindo, a ideologia representa aos homens, em forma naturalização, uma natureza já aprisionada pela cultura e a ela submetida.

21

Op.Cit. – Pg 196.

27

Capítulo II

BOURDIEU E AS NOVA BASES À TEORIA DA IDEOLOGIA

Símbolos. Tudo símbolos Se calhar, tudo são símbolos Serias tu um símbolo também? Álvaro de Campos (Psiquetipia)

28

Desde os clássicos maiores, até aos ditos autores menores, ressalvando-se as diferentes abordagens, a análise acerca das formas ideológicas da dominação social sempre esteve na pauta da reflexão sociológica. Porém, creio ser inegável a importância da contribuição da teoria de Pierre Bourdieu a este tema. Injetando novo fôlego à filosofia da práxis, que desde Marx, com destacadas exceções22, não encontrava aparato conceitual tão sólido para se estruturar, Bourdieu pode se destacar entre os sociólogos contemporâneos por trazer à baila, no núcleo de suas reflexões, as seguintes questões: Como a cultura legitima e naturaliza a dominação social (e, por conseguinte a desigualdade) através da intermediação de estruturas simbólicas? De que forma a luta de classes – e entre as frações de classe –, deslocando-se, teoricamente, de seus princípios econômicos, se engendra no mundo da cultura, naturalizando, ao fim e ao cabo, as origens da desigualdade social e as maneiras pela qual esta se produz e se reproduz? Em face disto, este capítulo destina-se a refletir sobre alguns conceitos bourdieusianos como, illusio, doxa e habitus, procurando vê-los como desdobramentos possíveis da teoria da ideologia marxiana. Com efeito, nosso objetivo maior será, respeitando as diferenças (de princípios e objetivos ) e distâncias (cronológicas), visualizar a obra de Pierre Bourdieu como uma via profícua a revisitar temas originários da reflexão marxiana. Entretanto, repetindo a formula posta no capítulo anterior, procurarei, antes de alcançar o objetivo principal, e com fito a melhor trabalha-lo posteriormente, apresentar, de forma sucinta, alguns aspectos relevantes da obra de Pierre Bourdieu, tais como: 1) apesar de critica a algumas perspectivas

22

Não é forçoso aqui recordar a figura de Antônio Gramsci, indubitável referência de Bourdieu, como um dos primeiros a propor, através do conceito de hegemonia, o plano da cultura como um dos lócus à luta de classes. Deixo, desde já manifesto, minha vontade de, futuramente, tentar equacionar as relações teóricas entre Bourdieu e Gramsci, visualizando a obtenção da hegemonia, como um dos fins das dinâmicas de interação no âmbito dos campos.

29

do marxismo, por quais caminhos visualizamos a reflexão de bourdieusiana como caudatária da filosofia da praxis? 2) Quais são os conceitos centrais da perspectiva bourdieusiana e como eles se relacionam?. Creio que a passagem por estes dois tópicos atenderá nossos propósitos, contribuindo para a reflexão dos aspectos da teoria bourdieusiana caudatários da teoria da ideologia marxiana.

2.1) Bourdieu, uma face do campo e a filosofia da praxis

Inserida no campo intelectual francês dos anos 60, 70 e 80, a reflexão bourdieusiana emerge em um ambiente em larga medida impactado pelo que podemos chamar de marxismo estruturalista de inspiração althusseriana23. Desta forma, dedicaremos as linhas abaixo para apresentar, an passant, a teoria althusseriana da ideologia, o posicionamento de Bourdieu em face desta, e para esclarecer como, mesmo na condição de crítico do marxismo a ela contemporânea, a teoria de bourdieusiana pode ser vista na esteira da filosofia da praxis. Segundo Althusser, o objetivo último de uma determinada formação social (e só há formação social quando os agentes sociais estabelecem entre si relações de produção) é reproduzir as condições necessárias à produção. Em seus dizeres, a condição última da produção é a reprodução das condições da produção24. Põe-se então à este objetivo a necessária reprodução das forças produtivas e das relações sociais de produção existentes. Para este fim, concorrem, decisivamente, as estrutura ideológicas.

23

Apesar de todas as divergências, visualizo que a contribuição de Louis Althusser à teoria sociologica não é negligenciada por Bourdieu. Ao contrário, creio que Althusser inspire Bourdieu decisivamente, ao menos em dois pontos: na visualização do homem enquanto animal estético, isto é, enquanto ser que se relaciona com o mundo a partir de uma realidade simbólica; e na visualização da ação social estruturada pré-reflexivamente e desenvolvida em uma realidade baseada em representações. 24 ALTHUSSER, Louis- A ideologia e os aparelhos ideológicos do Estado, pg. 9

30

Enunciando este fato numa linguagem mais científica, diremos que a reprodução da força de trabalho exige não só uma reprodução da qualificação desta, mas, ao mesmo tempo, uma reprodução da submissão desta às regras da ordem, é, uma reprodução da submissão desta à ideologia dominante para os operários e uma reprodução da capacidade para manejar bem a ideologia dominante para os agentes da exploração e da repressão, a fim de que possam assegurar também, pela palavra, a dominação da classe dominante. (...) A reprodução da força de trabalho tem pois como condição sine qua nom, não só a reprodução da qualificação desta força de trabalho à ideologia dominante ou da pratica desta ideologia, com tal precisão que não basta dizer: não só, mas também, pois conclui-se que é nas formas e sob as formas da sujeição ideológica que é assegurada a reprodução da qualificação da força de trabalho25[grifos do

autor]

Percebe-se nas linhas de Althusser, que a ideologia, veiculada pelos aparelhos ideológicos do Estado (AIEs), tem por função assegurar a manutenção da realidade social, fazendo com que o trabalhador possa apresentar-se amanhã- e a cada amanhã que Deus dá- ao portão da fábrica26. Visualizando esta realidade, Althusser fixa-se no registro que pensa a ideologia enquanto falsa consciência, enquanto uma ilusão que, entretanto, estabelece alusão com a realidade. E propõe, de forma original, em oposição à ideologia dominante, a ciência ( leia-se, o marxismo) enquanto flanco à verdadeira consciência.

De esta manera, el concepto de ciencia –teoría- se halla asociado a la superación de la verdad acerca de algo, que es concebida como error, por la idea de Verdad científica. Así, y frente al idealismo hegeliano que establecía contradicciones simples, no considerando, además, los principios de sobredeterminación estructural de las superestructuras ideológicas sobre las contradicciones entre capital y trabajo, el carácter teorético del marxismo revisitado por Althusser establece, no obstante, otro espesor en la división epistemológica de su problemática: reinstala el concepto de totalidad inmanente condicionada

25 26

Op. Cit.- Pg. 21-22 Op. Cit. Pg. 18.

31

descriptivamente por la vacuidad para referirse a la organicidad de las representaciones de la realidad. Por ello, “(…)la realidad se entenderá como un ‘sistema’ autosuficiente que se piensa a sí mismo, sin necesidad de recurrir a sujeto alguno que lo piense”. Este conceptualismo estructuralista se presenta como una alternativa más rigurosa frente al historicismo dialéctico o frente al existencialismo subjetivista, y constituye la clave del marxismo epistemológico y antihumanista de Louis Althusser27

Isto posto, examinemos o posicionamento de Bourdieu em relação a Althusser. Em um ótimo debate com Terry Eagleton, Bourdieu considera que a perspectiva althusseriana da ideologia, além de aristocrática, por defender a existência de segmentos demiurgos capazes de visualizarem a verdadeira consciência social, é insuficiente para explicar a ( produção e a reprodução ) da realidade social – e política- em termos de práticas sociais que estão distantes da cativa presença diária dos trabalhadores nos postos de trabalho.

Terry Eagleton - ... Na verdade, tenho dúvidas sobre se isso tudo é suficiente para jogar no lixo o conceito de ideologia. Admito que há uma certa validade nessas várias afirmações, mas suponho que uma das razões porque quero conservar o conceito de ideologia é que realmente penso existir algo que corresponde à noção de falsa consciência. ... Pierre Bourdieu - ... concordo e poderia estender-me sobre suas objeções. Em particular, creio que um dos muitos usos do conceito de ideologia consistiu em promover uma vigorosa clivagem entre o cientista e os outros. Por exemplo, Althusser e os que foram influenciados por ele fizeram um uso simbólico muito violento desse conceito. Usaram-no como uma espécie de noção religiosa, pela qual se deveria ascender gradativamente à verdade, sem nunca ter certeza de haver alcançado a verdadeira teoria marxista. O teórico estava habilitado a dizer: “você é um ideólogo”. Por exemplo, Althusser referia-se depreciativamente às “chamadas ciências sociais”. Era um modo de tornar visível uma espécie de separação invisível entre o verdadeiro conhecimento - o detentor da ciência - e a falsa consciência. Isso, penso eu, é muito aristocrático; na verdade, uma das razões de eu não gostar da palavra “ideologia” é o pensamento aristocrático de Althusser. (...).Penso que o marxismo, na verdade, continua a ser uma espécie de filosofia cartesiana em que se tem um agente consciente, que é o douto, a pessoa culta, e os outros, que não tem acesso à consciência. Falou-se demais em 27

LAMBERT, Wallace- Concepto In.www.filosofia.uchile.cl/cursolit.

de

ideología

en

Gramsci,

Althusser,

Williams-

32

consciência, demais em termos de representação. O mundo social não funciona em termos de consciência; ele funciona em termos de práticas, mecanismos e assim por diante. Ao usarmos a doxa [enquanto conceito], aceitamos muitas coisas sem conhecê-las, e é a isso que se chama ideologia.28

Percebemos então (em um exercício de usar Bourdieu – e a sua teoria dos campos- sobre Bourdieu), que a reflexão bourdieusiana se define ,em larga medida, pelo posicionamento adotado pelo autor no âmbito do campo intelectual francês, através do debate com o marxismo estruturalista de matriz althusseriana. Entretanto, mesmo não se enquadrando as fileiras do marxismo (ao menos as suas vertentes ortodoxas), a teoria bourdieusiana não escapa dos marcos da filosofia da praxis. Examinemos esta vinculação. Em um de seus principais textos, Esboço de uma teoria da prática, Bourdieu, em exame aos paradigmas epistemológicos que alicerçam a análise da realidade social, afirma que o mundo social pode ser alvo de três formas do conhecimento teórico. O conhecimento fenomenológico, o objetivista e praxiológico. Analisa os dois primeiros, os refuta, e ao cabo, vincula-se ao último. Examinemos esta longa, e decisiva, passagem.

O mundo social pode ser objeto de três modos de conhecimento teórico que implicam, em cada caso, um conjunto de teses antropológicas mais freqüentemente tácitas e que, mesmo não sendo exclusivos, ao menos em direito, só têm em comum o fato de se oporem ao modo de conhecimento prático. O conhecimento que chamaremos fenomenológico (ou se quisermos usar termos de escolas atuais, conhecimento interacionista ou etnometodológico) explicita a verdade da experiência primeira do mundo social, isto é, a relação de familiaridade com o meio familiar, a apreensão do mundo social como mundo natural e evidente sobre o qual, por definição, não se pensa e que exclui a questão de suas condições de possibilidade. O conhecimento que podemos chamar de objetivista (sendo a hermenêutica estruturalista um caso particular dele) constrói relações objetivas (econômicas ou lingüísticas) que estruturam as BOURDIEU, Pierre e EAGLETON, Terry – A doxa e a vida cotidiana: uma entrevista –In. ZIZEK, Slavoj – Um mapa da ideologia- PG,267-268. 28

33

práticas e suas representações (o conhecimento primeiro, prático e tático, do mundo familiar), ao preço de uma ruptura com esse conhecimento primeiro e, portanto, com os pressupostos tacitamente assumidos que conferem ao mundo social o caráter de evidência e naturalidade. Somente se nos colocarmos a questão –que a experiência dóxica do mundo social exclui por definição – das condições (particulares) que tornam possível essa experiência é que o conhecimento objetivista pode estabelecer as estruturas objetivas do mundo social e a verdade objetiva da experiência primeira enquanto privada do conhecimento explícito dessas estruturas. Enfim, o conhecimento praxiológico tem como objeto não somente o sistema das relações objetivas que o modo de conhecimento objetivista constrói, mas também as relações dialéticas entre essas estruturas e as disposições estruturadas nas quais elas se atualizam e que tendem a reproduzi-las, isto é, o processo de interiorização da exterioridade e da exteriorização da interioridade. Esse conhecimento supõe uma ruptura com o modo objetivista, ou seja, um questionamento das condições de possibilidade e, por isso, dos limites do ponto de vista objetivo e objetivante que apreende de fora as práticas como fato acabado, em vez de construir seu princípio gerador situando-se no interior do movimento de sua efetivação.29

Digo que esta passagem é decisiva, pois através dela Bourdieu equaciona um ponto central de sua teoria, ou seja, as conexões entre estrutura e agente, visualizando, em um movimento que, na falta de expressão melhor, podemos chamar de dupla hermenêutica, a pratica social enquanto informada e conformada pela estrutura e a estrutura enquanto elemento constantemente reatualizado pela prática. Percebendo que a realidade social se estrutura em torno da dialética da interiorização da exterioridade e da exteriorização da interioridade, a teoria bourdieusiana nos convida à analise do modus operandi desta realidade. Creio, a esta altura, ter esclarecido a vinculação de Bourdieu a filosofia da praxis, mostrando as vias pelas quais esta se faz possível. Isto posto, passemos a análise dos conceitos centrais da teoria bourdieusiana, para então, futuramente, sobre bases mais sólidas, refletirmos sobre as novas cores adquiridas pela teoria da ideologia.

29

BOURDIEU, Pierre –Esboço de uma teoria da prática- IN. ORTIZ, Renato- A sociologia de Pierre Bourdieu-

34

2.2)

Análise dos conceitos bourdieusiano

A partir das leituras que, por ora, balizam a confecção deste trabalho, creio ser possível dizer, assumindo os riscos do exagero, quiçá do erro, que, mais que uma teoria social, o que a obra de Bourdieu nos apresenta é uma teoria do método sociológico adequada a pensar o mundo social em constante processo de produção e reprodução de suas estruturas de dominação. Penso que seja esta a motivação por traz de conceitos como habitus, campo, estrutura, doxa, illusio e etc.. Dedicarei este subcapítulo ao examine dos conceitos centrais da obra bourdieusiana. Diferentemente de Marx que tem como axioma ontológico o homo faber, defendendo que o Ser do homem se realiza na produção e no trabalho, Bourdieu, sem desconsiderar esta dimensão, lança, como axioma ontológico a idéia do homo aesteticus, pensando o homem enquanto um Ser que constrói sua realidade a partir de suas relações com universos simbólicos e, ao fazê-lo, vê-se aprisionado a estas relações. A clareza deste deslocamento axiomático é um elemento fundamental para que possamos refletir com maior êxito a idéia bourdieusiana de realidade enquanto representação. Segundo Bourdieu, o espaço social onde os agentes sociais se movem é uma representação abstrata produzida a partir da definição – e da aceitação de todos os participantes - de uma lógica simbólica. Neste sentido, fala-se em estruturas simbólicas que norteiam e balizam as relações sociais, estabelecendo os princípios de distanciamento e aproximação entre os agentes. No âmbito da sociedade moderna, a qual referencia-se a perspectiva de Bourdieu, estas representações da realidade organizadas a partir de arranjos simbólicos – tem suas origens na luta entre as classes e as frações de classes.

Pg.39-40.

35

Basta com tener presentes que los bienes se convierten en signos distintivos – que pueden ser unos signos de distinción, pero también de vulgaridad, desde el momento em que son percebidos relacionalmente – para ver que la representacion que los individuos y los grupos ponen invevitablemente de manifesto mediante sus prácticas y sus propriedades forma parte integrante de su realidad social. Una clase se define por su ser percebido tanto como por su ser; por su consumo – que no tiene necesidad de ser ostentoso para ser simbólico – tanto como por su posición en las relaciones de produccíon (incluso si fuera cierto que está rige a aquel). La visión berkeleyana – esto es, pequeño burguesa que reduce el ser social al ser percebido, al parecer, y que, olvidando que no es necesario dar unas representaciones (teatrales) para ser objeto de representaciones (mentales), reduce el mundo social a la agregación de las representaciones (mentales) que los diferentes grupos se hacen de las representaciones (teatrales) ofrecidas por los otros grupos, tiene el mérito de recordar la autonomia relativa de la lógica de las representaciones simbólicas com respecto a los determinantes materiales de la condición: las luchas de los enclasamientos, individuales o colectivos, que apuentam a transformar las categorías de percepcíon y apreciación del mundo social, y com ello, el mundo social constituyen una dimensión olvidada de la lucha de clases. Pero basta com tener presente que los esquemas clasificadores que se encuentran en la bases de la relación práctica que mantienen los agentes com su condición, y de la representación que pueden tener de ellas, son a su vez producto de esa condición, para ver los límites de esa autonomía: la posicíon en la lucha de enclasamientos depende de la posicíon en la estructura de las clases.30

Ao pensar a realidade social em termos de representação simbólica, Bourdieu defende uma conexão entre as estruturas sociais e as estruturas mentais dos agentes, um processo de incorporação mediante o qual a realidade se faz corpo. Ou seja, os agentes sociais, a partir de suas posições na estrutura econômica e social, representam simbolicamente esta realidade, e através desta representação, enxergam-se no mundo e sobre ele agem. Aponto aqui que, bebendo em fontes marxianas, Bourdieu recupera, a partir de outros quadrantes, à teoria social, a noção de luta classes enquanto princípio dinâmico da realidade social. Em um diálogo produtivo com Marx, Bourdieu propõe a seguinte definição para pensar classe social

36

La clase social no se define por una propriedad (aunque se trate de la más determinante como el volume y la estrutura del capital) ni por una suma de propriedades (propriedades de sexo, de edad, de origen social o étnico – proporción de blancos y negros, por ejemplo, de indígenas y emigrados, etc.-, de ingressos, de nivel de instruccíon, etc.) ni mucho menos por una cadena de propriedades ordenadas a partir de una propriedad fundamental (la posición en las relaciones de producción) en una relación de causa a efecto, de condicionante a condicionado, sino por la estructura de las relaciones entre todas las propriedades pertinentes, que confiere su prórpio valor a cada una de ellas y a los efectos que ejerce sobre las prácticas.31

Complexificando a definição original, a noção de classe social em Bourdieu, passa a ser pensada como um conjunto de agentes que se encontram situados em condições de existência homogêneas que impõe alguns condicionantes homogêneos e produzem alguns sistemas de disposições homogêneas, apropriadas para engendrar algumas práticas semelhantes, e que possuem um conjunto de propriedades comuns objetivadas ou incorporadas. Neste desiderato, relacionando posição, condição e disposição de classe, Bourdieu chega ao conceito de habitus, pensando através dele os princípios que orquestram, praxiologicamente, as ações sociais.

Estructura estructurante, que organiza las prácticas y la percepción de las prácticas, el habitus es también estructura estructurada: el princípio de división en clases lógicas que organiza la percepción del mundo social es a su vez producto de la incorporación de la división de clases sociales. Cada condición está definida de modo inseparable, por sus propriedades intrínsecas y por las propriedades relacionales que debe a su posición en el sistema de condiciones, que es tambiém um sistema de diferencias, de posiciones diferenciales, es decir, por todo lo que la distingue de todo lo que no es y en particular de todo aquello a que se opone: la identidad social se define y se afirma en la diferencia. Esto es lo mismo que decir que inevitablemente se encuentra inscrita en las disposiciones del habitus toda la estructura del sistema de condiciones tal como se realiza en la experiência de una condición que ocupa una posición determinada en esta estructura: las más fundamentales oposiciones de la estructura de las condiciones ( alto/bajo, rico/pobre, etc.) tienden a imponerse como los principios 30 31

BOURDIEU,Pierre – La distinction: criterios y bases sociales del gusto – Pg. 494. Op.Cit.- Pg. 104

37

fundamentales de estructuración de las práticas y de la percepción de las práticas. Sistema de esquemas generadores de práticas que expressa de forma sistemática la necessidad y las libertades inherentes a la condición de clases y la diferencia constitutiva de la posición, el habitus aprehende las diferencias de condición, que retiene bajo la forma de diferencias entre unas prácticas enclasadas y enclasantes (como producto del habitus), según unos principios de diferenciación que, al ser a su vez producto de estas diferencias, son objetivamente atribuidos a éstas y tienden por conseguinte a percebilas como naturales.32

Com efeito, o habitus, enquanto estrutura estruturada com predisposição à estrutura estruturante, elemento organizador das práticas sociais e das percepções destas, introjeta nos indivíduos os pressupostos da ordem social, subjetivando nestes, de forma pré-reflexiva e não consciente, as estruturas sociais objetivas. Neste sentido, o habitus responde pelo continnum que se estabelece, em relação de dupla hermenêutica, entre a ordem social e as práticas dos sujeitos. Opera naturalizando o que não é natural. O habitus pode então ser pensado como o impensado que nos pensa. .

Inscrito na hexis corporal, o habitus manifesta-se nos gestos e nos atos, nas formas do andar e do

falar, do comer e do vestir, em suma, em uma certa disposição à formas de socialização específicas com o mundo social. Originados nos diferentes campos a partir da transmissão - quantitativa e qualitativa de um determinado aporte de capitais simbólicos, os diferentes habitus ao serem mobilizados pelos sujeitos definem, por sua vez, o seu lugar no mundo dos saberes e das práticas e em conseqüência disto, conferem legitimidade a posição na estrutura social. Será através dele que se conformarão os critérios valorativos que legitimarão as distâncias e as fronteiras sociais. O casamento entre habitus e estrutura de classes é central à argumentação de Bourdieu. Certo que as estruturas sociais se manifestam nas atitudes – pré-reflexivas - dos agentes, e por intermédio destas, se reatualizam enquanto estruturas, legitimando a ordem social, Bourdieu, ao apontar que os distintos habitus são fruto de distintas condições objetivas – materiais e imateriais – de existência, lança

32

Op. Cit. – Pg. 170-171

38

a questão, não tematizada pelo pensamento econômico:

quais são as condições econômicas da

produção das disposições postuladas pela economia?33 Legitimando as estruturas sociais por meio das práticas, o habitus, elemento encadeador das ações, reificando a ordem social, transforma a história em natureza.

A prática é, ao mesmo tempo, necessária e relativamente autônoma em relação à situação considerada em sua imediatidade pontual, porque ela é o produto da relação dialética entre uma situação e um habitus – entendido como um sistema de disposições duráveis e transponíveis que, integrando todas as experiências passadas, funciona a cada momento como uma matriz de percepções, de apreciações e de ações – e torna possível a realização de tarefas infinitamente diferenciadas graças às transferencias analógicas de esquemas, que permitem resolver os problemas da mesma forma, e às correções incessantes dos resultados obtidos, dialeticamente produzidas por esses resultados. Princípio gerador duravelmente armado de improvisações regradas, o habitus produz práticas que – na medida em tendem a reproduzir as regularidades imanentes às condições objetivas da produção de seu princípio gerador, mais ajustam-se às exigências inscritas a titulo de potencialidades objetivas na situação diretamente afrontada – não se deixam deduzir diretamente nem das condições objetivas, pontualmente definidas como soma de estímulos que podem aparecer como tendo-as desencadeado diretamente, podemos, portanto, explicar essas práticas se as relacionarmos com a estrutura objetiva que define as condições sociais de produção do habitus (que engendrou essas práticas), com as condições do exercício desse habitus, isto é, com a conjuntura que salvo transformação radical, representa um estado particular dessa estrutura. Se o habitus pode funcionar como operador que efetua praticamente a ação de relacionar esses dois sistemas de relação na e pela produção da pratica, é porque ele é história feita natureza, isto é, negada como tal porque realizada numa Segunda natureza . Com efeito, o inconsciente não é mais que o esquecimento da história que a própria história produz ao incorporar as estruturas objetivas que ela gera nessa quase-natureza que são os habitus.34

A esta altura, creio que já tenhamos bases suficientes para examinarmos os conceitos de Illusio e doxa, fundamentais ao nosso objetivo, que é, analisar como Bourdieu revisita, a partir de outros quadrantes, o tema da ideologia.

33

Esta é a fórmula através com a qual nosso autor enfraquece as possibilidades de transformação da ordem social – o que não quer dizer que esta possibilidade sejam negadas em sua obra.

39

2.3)

Novas cores sobre um velho quadro: retomando a ideologia a partir de Bourdieu

Mesmo não sendo um conceito central de sua obra, haja visto as raríssimas referências - ao menos explicitas - a ideologia, creio que existam elementos conceituais suficientes para que possamos refletir, a partir dos textos de Bourdieu, sobre uma retomada desta discussão. Apontarei, neste desiderato, que conceitos como illusio e doxa, podem nos indicar um reposicionamento teórico desta temática. Dedicarei as linhas abaixo ao esclarecimento desta afirmação. Anti-kantiana, a sociologia dos sistemas simbólicos de Bourdieu visualiza a cultura enquanto um instrumento de poder, isto é, de legitimação da ordem dominante. Com efeito, recusa-se a pensar que o debruçar da razão sobre si mesma possa nos indicar o a priori de uma moral universal. Em seu entender, uma vez que a realidade é disputa, o que existe são perspectivas subjetivas revestidas de uma moralidade universal. Visualiza, assim, toda a realidade, por mais bem fundamentada, como uma arbitrariedade. No cerne desta discussão, reside sua noção de cultura.

A cultura classifica e classifica os clasificados.(...). Estabelece uma oposição entre as coisas consideradas como objetos dignos de serem pensados (...) e aqueles considerados como indignos da conversação e do pensamento, o impensado ou indigno de ser mencionado.35

Pensa então que a cultura opera sobre a realidade como um jogo de luz e sombras, clarificando algumas de suas facetas, condenando outras ao eterno breu. Aqui, a reflexão sobre a construção social

BOURDIEU,Pierre – Esboço de uma teoria da prática, Pg.58 BOURDIEU, Pierre – The thinkable and unthinkable – APUD: BOURDIEU, Pierre- A economia das trocas simbólicas. 34 35

40

da realidade abre espaço para a reflexão sobre a construção política desta. Sobre este aspecto, comentanos Sérgio Miceli.

[Em Bourdieu] a cultura só existe efetivamente sob a forma de símbolos, de um conjunto de significantes/significados, de onde provém sua eficácia própria, a percepção dessa realidade segunda, propriamente simbólica que a cultura produz e inculca, parece indissociável de sua função política.36

Em face destas proposições, creio ser possível retomarmos as questões que lançamos acima: Como a cultura legitima e naturaliza a dominação social (e, por conseguinte a desigualdade) através da intermediação de estruturas simbólicas? De que forma a luta de classes – e entre as frações de classe – deslocando-se, teoricamente, de seus princípios econômicos, se engendra no mundo da cultura, naturalizando, ao fim e ao cabo, as origens da desigualdade social e as maneiras pela qual esta é produzida e reproduzida? Vimos que em Bourdieu a realidade, enquanto realidade simbólica, se cria e se recria mediante as ações práticas dos agentes, ações estas que retiram, a parir do habitus, suas condições de possibilidade na coincidência entre as estruturas objetivas e as estruturas incorporadas. No princípio destas disposições à ação, está a crença –elemento reificador de uma ordem arbitrária – generalizada de que as ações valem a pena. Em outros termos, para que as ações possam ser desenvolvidas faz necessário a aceitação por parte de todos os agentes de toda a ordem vigente. As divisões sociais de classe, origem dos sistemas sociais de dominação a qual atem-se a perspectiva bourdieusiana, ganham sua legitimidade a partir das estruturas que sustentam a crença nesta legitimidade. Desta forma, Bourdieu estabelece a existência de uma estrutura social de dominação que, ao organizar as práticas e percepções sociais, opera em todas as dimensões, interpelando os diversos

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Miceli, Sérgio, In. A economia das trocas simbólicas – Prefácio, Pg. XIII.

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agentes e definindo-os um em relação aos outros. Assim, as ações sociais mobilizadas pelo habitus só podem se travar a partir da existência simultânea de um consenso tácito, porém generalizado, acerca das regras que definem o jogo social e que estabelecem que este jogo mereça ser jogado. A este consenso Bourdieu denomina Illusio

Se você tiver um espírito estruturado de acordo com as estruturas do mundo no qual você está jogando, tudo lhe parecerá evidente e a própria questão de saber se o jogo vale a pena não é nem colocada. Dito de outro modo, os jogos sociais são jogos que se fazem esquecer como jogos e a illusio é esta relação encantada com um jogo que é produto de uma relação de cumplicidade ontológica entre as estruturas mentais e as estruturas objetivas do espaço social. 37

Ou ainda

El sentido prático orienta unas elecciones que no son menos sistemáticas por no ser deliberadas, y que, sin estar ordenadas y organizadas en relación a un fin, no deja por ello de poseer una especie de finalidade retrospectiva. Forma particularmente ejemplar de un campo, lo que el lenguaje desportivo llama el sentido del juego da una idea suficientemente exacta del encuentro cuasimilagroso entre el habitus y un campo, entre la historia incorporada y la historia objetivada, que hace posible la antecipación cuasi-perfecta del porvenir inscrito en todas las configuraciones concretas de un espacio de juego. Producto de la experiencia del juego, de las estructuras objetivas del espacio de juego por tanto, el sentido del juego es lo que hace que el juego tenga, un sentido subjetivo, es decir, una significación y una razón de ser, pero también una dirección, una orientación, un porvenir para aquellos que participan en él y que reconecen ahí de esse modo sus asuntos en juego (es la illusio en el sentido de inversión/inmersión en el juego, de adhesión a los presupuestos – doxa –del juego). (...). Cuando se trata de juego, el campo (es decir, el espacio de juego, las reglas del juego, los assuntos en juego, etc.) se da claramente como lo que es, una construcción social arbitraria y artificial, un artefacto que se repite como tal en todo aquello que define su autonomía, reglas explicitas y específicas, espacio y tiempo estrictamente delimitados y extraordinarios; y la entrada en el juego toma la forma de un casi-contrato que es, a veces, explicitamente evocado ou expressamente recordado a quienes se dejan llevar por el juego hasta el punto de olvidar que se trata de un juego. Por el contrário, en el caso de los campos sociales que, producto de un largo y lento processo de autonomización, son, si 37

BOURDIEU, Pierre – Razões Práticas – Campinas, Ed. Papirus. Pg. 139-140

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así puede decerse, juego en sí y no para sí, no se entra en el juego mediante un acto consciente, se nace en el juego, com el juego, y la relación de creencia, de illusio, de inversión/inmersión es tanto más total, más incondicional cuando que se ignora como tal. La frase de Claudel, connaître, c’est naître avec, es totalmente pertiniente en esto contexto 38

A Illusio seria assim o elemento que explica o convívio e a interação entre as diversas classes sociais e entre as frações de classe, amalgamando-as e fazendo-as compartilhar de uma mesma estrutura de sentido, estrutura esta que confere possibilidade à ação social. Destarte, a vida em sociedade, com seus conflitos e injustiças patentes, obtém sua estrutura de plausibilidade através da mediação da illusio, na medida em que esta obscurece – quiçá justifica e legitima - as origens da produção e da reprodução destes mesmos conflitos e injustiças, pondo-os em estado de latência. Não como a falsa consciência em Marx, passível de ser superada na medida em que se superem as contradições sociais que originam o processo de inversão da realidade, mas como uma consciência possível, haja visto que as estruturas simbólicas são indeléveis, a Illusio vela os meandros da dominação social, assumindo, assim, no contexto da sociedade moderna, a posição de fiadora da luta de classes. Concluo, aqui, este capítulo.

38

BOURDIEU, Pierre – El sentido práctico, Pg. 113-114.

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Conclusão

REFLEXÕES PRIMEIRAS SOBRE A DOMINAÇÃO SOCIAL

Todo fenômeno social tem na verdade um atributo essencial: seja ele um símbolo, uma palavra, um instrumento, uma instituição; seja mesmo a língua, e até a ciência mais bem feita; seja ele o instrumento mais bem adaptado aos melhores e mais numerosos fins, seja ele o mais racional possível, o mais humano, ele é ainda arbitrário Marcel Mauss (Ensaios de sociologia)

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Ao longo dos capítulos acima procurei por luz sobre os princípios que sustentam a teoria da ideologia, tanto em sua vertente original, a marxiana, quanto em sua releitura contemporânea estabelecida nas linhas de Bourdieu. Neste trajeto, orientei-me pela crença na relevância de, ao recuperar uma discussão já tida em cores crepusculares, indicar um caminho possível as releituras do marxismo. Chegado então o momento de concluir este texto, proponho fazê-lo a partir de algumas reflexões, que confesso serem ainda iniciais, pouco estruturadas e no limite, claudicantes e imaturas. Procurarei, então, nas linhas abaixo, pensar as conseqüências das reatualizações de Bourdieu sobre as premissas marxianas. Peço, desde já, desculpas aos doutos leitores por minhas tibiezas conclusivas. ***

As transformações que se operam no seio da sociedade, redesenhando suas relações e seus contornos, não tardam a reverberar no mundo dos paradigmas analíticos desta realidade. Como em um passe de mágicas, teorias seculares são deslocadas para o hall idílico das falácias, passando a serem vistas como fantasiosas, quando não fantasmagóricas. O que antes se tinha como certo agora se tem como certo que pode ser duvidoso. Tal mágica parece ter sido aplicada sobre o marxismo, a partir da segunda metade do século XX. Abalado pelas contingências que rearranjaram o panorama político e que rearquitetaram as relações de poder na sociedade global, esta vertente do pensamento passou a ser atacada em seus pilares centrais. Negando-se a existência da luta de classes nas sociedades contemporâneas – quando não, negando-se a própria existência das classes em si - e apregoando-se o fim das ideologias, o marxismo viu-se atado a uma neutralizante camisa de força. E a sociedade como um todo, viu

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esmorecer, pouco a pouco, como em um capítulo final da história, a verve do pensamento crítico que denunciava as mazelas e as injustiças produzidas pelas estruturas de dominação social.39 Eis a primeira relevância que enxergo na obra de Bourdieu. A partir de outros registros e perspectivas, a reflexão bourdieusiana recoloca na pauta das questões sociológicas, a noção de que a força motriz da realidade social está nas interações entre as distintas classes sociais. Mesmo pensando uma estrutura de classes pluralizada e diversa da vista e tematizada por Marx, Bourdieu não descarta que esta estrutura é perpassadas por relações de dominação, isto é, por relações legitimas – e legitimadoras - de exploração social. Ao expor os princípios de naturalização das desigualdades sociais, Bourdieu revitaliza, em novas cores, a luta de classes. Mas, além do tempo que os separa, e dos contextos sociais que os circundam, o que diferencia Bourdieu de Marx ? Creio que a resposta resida nos princípios orquestradores da ação social. Diferentemente de Marx, que enxergava na consciência de classes os princípios da ação sobre o mundo – seja ela alienada (consciência de classe em si) ou revolucionária ( consciência de classe para si) -, Bourdieu, filho dileto da moderna tradição intelectual francesa, opera a confecção de sua teoria sobre o registro da inconsciência de classes. Neste sentido, a dominação social – mediada por estruturas simbólicas - passa a ser pensada em termos de ações sociais pré-reflexivas, e como tal, reificadoras da ordem social vigente. A noção de dominação simbólica abre espaço para pensarmos a realidade enquanto arbitrariedade e principalmente, para pensarmos as dificuldades de transformação radical desta (em um

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Foram vistos como testemunha da derrocada do marxismo a redução do peso político do operariado industrial e o surgimento das classes médias urbanas, elemento a colorir a então bicolor estratificação entre proletários e burgueses; a emergencia de movimentos de contestação social não catapultados pelos setores

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mundo reificado pela experiência doxica, as possibilidades da heterodoxias são, via de regra, neutralizadas pela ortodoxia dominante). Ao deslocar para o mundo da cultura as balizas da dominação social - pré-reflexiva, não consciente e naturalizada – Bourdieu passa a enxergar as classes sociais não mais como agentes coletivos e mobilizados conscientemente para a transformação social, mas sim, como conjunto de agentes sociais homogêneos, dotados de disposições também homogêneas, que ao agir, mediados por habitus, reificam a própria posição na estrutura das classes sociais. Nos dizeres de Bourdieu, o profundo realismo dos dominados funciona como uma espécie de instinto de conservação socialmente constituído. Por ser imperceptível, a violência simbólica retira de sua invisibilidade- tão ou mais cruel que a violência física – a força de sua eficácia.

proletários – revoltas estudantis de 68, movimentos hippie, antinucleares ,feministas, ecológicos,....; e principalmente, a queda do sistema socialista soviético.

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Apêndice

Divagações sobre os horizontes emancipatórios

Um toque do teu dedo no tambor dispara Todos os sons e começa a nova harmonia. Um passo teu é a sublevação Dos novos homens e da sua arrancada. Viras a cabeça: o novo amor! Voltas a cabeça: o novo amor! Troca os nossos lotes, livra-nos das pragas A começar pela praga do tempo, Cantam-te estas crianças. Ergue, não importa onde, a substanciados nossos destinos E do nosso arbítrio, imploram-te. Chegada a todas as horas, partida para todos os lados. Jean-Arthur de Rimbaud (Há uma razão)

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Saturado40 pelos limites de sua existência, um homem procura a beira do mar para, ao contemplar o horizonte, abrigar-se de suas angústias. Sufocado pelos fardos do mundo que pesam inelutavelmente sobre seus ombros, pensa, ao olhar para o ponto mais distante que seus olhos conseguem captar, o quanto sua existência poderia ser diferente se pudesse, caminhando sobre as águas, transpor as forças das ondas e lá, no horizonte, se refugiar. Entretanto, bem sabe que aquela linha a sua frente nada mais é que uma ilusão de ótica. Por um instante, revolta com a idéia de que, no limite, todos somos míopes. Mas no segundo seguinte, a revolta cede lugar à ponderação, e pensa que mesmo sendo ilusão, aquela linha, projetada pela tibieza de suas retinas, sobre ele exerce influência. E sua mente é então assaltada pela lembrança de um poema de Garcia Lorca: Perdi-me dentro do mar/ E ignorante das águas/ busco um facho de luz que me consuma. E convence-se, placidamente, que no projetar-se sobre a ilusão possa residir o princípio da verdade. De autoria desconhecida, este conto traduz bem a idéia que aqui procurarei defender. A ontologia do homo aesteticus do qual parte Bourdieu, visualiza na natureza simbologizantes do homem, as origens de processo de dominação simbólica. Em sua idéia, a condição de possibilidade para a humanidade é a sua submissão a algum sistema simbólico. No limite, eqüivaleria dizer, que sempre seremos cativos de alguma estrutura simbólica. E que esta realidade é inelutável. Tal como

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A idéia de escrever este apêndice surgiu após a banca de seleção para o programa de mestrado em ciências sociais – UFJF/2007, em consequência das arguições a mim feitas pelo professor Rubem Barboza. Suas questões, basicamente, orbitaram em torno do ocaso dos horizontes de emancipação na obra de Bourdieu. Citando Gramsci, questionava-me, mais especificamente, sobre o plano da cultura enquanto via para a

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Marcel Mauss, Bourdieu também acredita que a sociedade sempre paga a si mesma com a falsa moeda de seu sonho. Entretanto, este princípio da submissão ontológica não aponta em momento algum, para um estágio de opressão marcado pela exploração ou pela injustiça. E aqui reside a principal lição que aprendi em Bourdieu: a força do sentido da dominação simbólica (princípio) não nos impossibilita de escolher (meio) o sentido em que esta força atuará (fim). Ao pensar o homem como um trem que constrói os próprios trilhos - e cativo dos trilhos, são os trilhos a primordial condição de existência dos trens – Bourdieu deixa em aberto a direção em que estes trilhos, ao serem construídos, nos levarão. Creio que este seja um profícuo cenário para, retornando à aporia plantada por Gramsci, entre o pessimismo da inteligência e o otimismo da vontade, podermos refletir sobre os destinos do labor intelectual. Mais uma vez, agradeço profundamente ao professor Rubem por me sensibilizar a estas problemáticas. Agradeço também aos demais professores que compõe esta banca pela leitura deste texto.

emancipação e lócus para a transformação da realidade social. Instigado por seus questionamentos decidi escrever este apêndice onde tentarei desenvolver um pouco estas reflexões. Agradeço-o pela inspiração.

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