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May 28, 2017 | Autor: Danielli Morelli | Categoria: Pedro Almodóvar, Mitologia, Lilith, Lilith and Adam
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Revisitando Lilith em A Pele que Habito

Assistir ao filme A Pele que Habito, de Pedro Almodóvar, é entrar em
contato com o Mito da forma mais perturbadora possível, ou seja,
reatualizado. Toda a obra é construída através de referências e construções
míticas.
O tempo é mítico porque é circular, passado e presente se substituindo
num emaranhado de fatos que aos poucos ganha significado e significados os
mais surpreendentes, significados que mudam tudo, dando ao enredo novos
equilíbrios, um novo entendimento, portanto, significados míticos. E mesmo
a tentativa da personagem Vera de demarcar o tempo, escrevendo os dias na
parede, iniciando de trás para frente, se perde num infinito de riscos
mediados por desenhos míticos, míticos porque desenhos que buscam explicar
o homem.
O espaço é mítico. A escolha de Toledo como cidade central da trama
não poderia ter sido mais acertada. A cidade espanhola, declarada 'World
Heritage Site' pela UNESCO em 1986 por sua característica de coexistência
pacífica das culturas cristã, judaica e islâmica ("The City of Three
Cultures") é um lugar onde mundos se encontram e se confluem - na lógica
mítica, ponto de onde os mundos também se originam.
Talvez afinal, a presença de elementos do Brasil no filme não se deva
apenas ao gosto pela cirurgia plástica, como justifica o diretor, fazendo
muito mais sentido assim a ponte do quadro de Tarsyla Amaral, exposto na
parede do quarto, na cena em que Gal carbonizada caminha para a janela.
Brasil - um lugar onde as culturas também se encontram, se confluem e,
portanto, de onde também se originam.
Chama a atenção o nome da mansão do médico, "El Cigarral", ou lugar
das cigarras, alusão clara ao fato que se tem ali um lugar onde
metamorfoses acontecem, uma casa de campo que é palco de encontros e
tragédias, onde coisas vivas são criadas e re-criadas sob o desejo de um
demiurgo autoritário, onde o sagrado se faz presente através da
representação de deuses pendurados nas paredes (Vênus, Dionísio e Ariadne)
e onde conversas ao redor de grandes piras incendiadas explicam as origens
e os segredos da vida. Temos até um jardim de mansão para orgias
dionisíacas.
Os personagens são míticos: temos um Adão /Lilith /Galatéia
enclausurado (Vicente-Vera), temos um Prometeu pós-moderno/ Frankenstein
espanhol/ Pigmaleão/ Dionísio (Robert), temos também um Zeus lascivo e
infantilizado (Zeca) metamorfoseado em tigre amordaçando a própria mãe e
violentando uma mortal - homens agindo como deuses, segundo seus desejos e
intentos, acima do bem e do mal, oprimindo os mortais, geralmente mulheres
(ou homens que transformam em mulheres...rs..). Temos virgens apavoradas
(Norma) diante de homens-sátiros excitados e confusos (Vicente) e até uma
Europa/Lilith mãe de monstros (Marília). Tudo isso numa amoralidade que soa
muito natural, como devia ser no Olimpo.
São tantos os mitos evocados pela história, pelos detalhes,
pelos fatos do filme e pela atuação dos personagens que antes de mergulhar
nessas analogias, faz-se mais do que necessário uma introdução ao assunto,
citando quem de fato importa a respeito disso:
A partir do século XX, os eruditos ocidentais retomaram a
percepção de mito oriunda das sociedades arcaicas, passando a compreendê-lo
como a designação de uma história verdadeira, dotada de um caráter
exemplar, significativo e sagrado. O homem moderno, compreendendo a si
mesmo como construído pela História, assim como o homem arcaico se
considerava o resultado de uma série de eventos míticos, acaba por admitir
o mito, não como teoria abstrata ou fabulação vã, mas como elemento
constitutivo de sua formação, codificação verdadeira do sagrado primitivo e
sabedoria prática. (Eliade, 1963, p.7)
Nas sociedades onde o mito vive como modelo para a conduta
humana, dando valor e significado à existência, é possível esclarecer não
só uma etapa na trajetória do pensamento humano, mas também elucidar a
contemporaneidade - captar os sentidos por trás da conduta, entender suas
causas, reconhece-las como fenômenos humanos.
O mito é uma realidade cultural extremamente complexa (...) conta uma
história sagrada, ele relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial,
o tempo fabuloso do princípio (...) narra como, graças às façanhas dos
Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja uma realidade
total, o Cosmo, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um
comportamento humano, uma instituição. (Eliade, 1967, p.11)
Todo mito de origem pressupõe e prolonga a cosmogonia, como a
criação do mundo é a criação por excelência, a cosmogonia torna-se o modelo
exemplar para toda a espécie de 'criação'. Todo mito de origem introduz uma
situação nova, algo que ainda não existia.
O meio cósmico em que se vive, por mais limitado que se vive, por mais
limitado que possa ser, constitui o "Mundo"; sua origem e sua 'história'
precedem qualquer outra história individual. (...) Uma coisa tem uma origem
porque foi criada, isto é, porque um poder se manifestou claramente no
Mundo, porque um acontecimento se verificou. (Eliade, 1967, p.39)
Para o homem religioso, o essencial precede a existência, o
homem tornou-se o que é devido a uma série de eventos, o mito os relata e
com isso explica como e porque a humanidade se formou dessa maneira. A
existência real se inicia no exato instante em que este homem recebe essa
história primordial e aceita as suas consequências. Sempre se trata de uma
história divina, portanto, eterna e atemporal.
Os eventos essenciais não são os mesmos para todas as
religiões. No caso do mundo judaico-cristão (ou seja, o nosso), o evento
essencial é o drama do Paraíso, cujo qual constituiu e definiu a condição
humana como se apresenta. Inevitável pensar em mitos de criação (e tudo no
filme gira em torno da criação, na figura deste Prometeu Pós-moderno,
Frankenstein espanhol), sobretudo na nossa cultura ocidental, sem pensar no
Éden e em todos os desdobramentos que isso significou para nós, sobretudo
no que tange à problemática da relação entre gêneros.
Almodóvar, talentoso e ousado cineasta, grande inovador da
sétima arte e reconhecidamente um questionador dessas relações, cuja
temática se apresenta de forma insistente em toda a sua obra (títulos como
Mulheres à beira de um Ataque de Nervos, Fale com Ela, Tudo sobre minha
Mãe, Ata-me, Abraços Partidos, entre outros, são um verdadeiro desfile de
diversas abordagens sobre o assunto), traz em A Pele que Habito, em todo
resgate mitológico que o filme propõe, mais um lugar onde o conflito do
Paraíso, em sua versão completa, incluindo o Adão andrógino e Lilith, é
retomado e discutido. Para quem nunca ouviu essa, cabe uma explanação:
Segundo o mito judaico-cristão, Jeová-Deus decidiu criar o
homem para que se tornasse o coroamento da criação e disse: "Façamos o
homem, que seja a nossa imagem, segundo a nossa semelhança." (Gênesis 1.26)
¹
Embora possa se pensar na estrutura afetiva e sexual de Adão
em termos antropológicos, existe um mistério obscuro a respeito da primeira
companheira de Adão: a mitologia bíblica reforça a ideia de uma androginia
inicial, ao afirmar que "Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus
o criou, macho e fêmea os criou." (Gênesis 1.27)¹ Este é um trecho sinuoso,
pois introduz o conceito de androginia no indivíduo, segundo o princípio da
harmonia total do Uno que é feito de Dois e também perpetua, através da
multiplicação da espécie, na união do masculino com o feminino, a imagem de
Deus, já que o homem lhe é semelhante. Sob essa perspectiva, Adão trazia em
si fundidos, o princípio masculino e o feminino, só depois teriam sido
separados sucessivamente. Segundo os comentários do Rabi Abba, no livro do
Esplendor – o Sepher Ha-Zohar (um dos livros Canônicos judaicos, série de
comentários místicos sobre a Torá - os cinco livros de Moisés - escritos em
aramaico e hebraico medieval, contendo uma discussão mística sobre a
natureza de Deus e considerações sobre a origem e estrutura do universo, a
natureza das almas, pecado, redenção, o bem e o mal, e diversos temas
relacionados), o primeiro homem era macho e fêmea precisamente para que se
assemelhasse a Deus que não tinha distinção de sexos em si. (Sicuteri,
1998, p.13)
Pode-se associar a esse entendimento, o mito do Andrógino
Primordial, considerado um representante do mito do duplo na mitologia
grega, localizado n'O Banquete, de Platão. Segundo o filósofo grego, a
constituição do homem era diferente da atual, havia três sexos na espécie
humana, além do masculino e do feminino, existia um que participava tanto
no aspecto, quanto no nome de ambos os outros. O masculino era considerado
filho do sol, o feminino da terra e o comum-de-dois, da lua. Os andróginos
eram fortes e orgulhosos de sua completude e perfeição, atreveram-se contra
os deuses e foram punidos, separados. (Santos, 2011, p.104)
Da mesma maneira, o homem do Éden - inicialmente Uno e
indiferenciado - ao ganhar maior consciência, é separado em dois. A
compreensão dessa separação, como se deu e quais foram suas consequências,
é essencial para esse estudo.
Segundo a mitologia judaica e babilônica, inicialmente o
homem, além de andrógino, teria também uma sexualidade indiferenciada e
primitiva, acasalando-se inclusive com animais, afastando-se dessas
práticas quando conseguiu reconhecer a mulher, uma "auxiliadora que lhe
fosse idônea" (Gênesis 2.18)¹, o Adão bíblico solicita uma companheira
quando identifica sua própria insatisfação. Os comentários rabínicos
consideram uma metáfora desse abandono do primitivismo, o livro sagrado
dizer que Adão deixaria pai e mãe para unir-se à mulher (uma vez que o
mesmo não tinha pais). Assim fica velado o desinteresse pela inferioridade
animal ao orientar-se para uma companheira mais digna. Comenta-se inclusive
que Adão inicialmente tinha um rabo, que lhe foi retirado para seu decoro,
informação ratificada pelos estudos científicos a respeito da evolução do
corpo humano. (Sicuteri, 1998, p.15)
É no momento em que Adão nomeia os animais, em Gênesis 2.20¹
que parece compreender a necessidade da diferenciação, Adão abandona então
a parte de sua identificação com o divino expressa na androginia, supera a
sexualidade animal e eleva-se pedindo a Deus uma companheira. De acordo com
a compreensão rabínica, Deus não teria criado logo de início uma
companheira para Adão porque "viu que Adão se lamentaria dela, por isso não
a criou enquanto não a tivesse pedido..."² Deste modo a mulher nasce, por
desejo de Adão, que dera-se conta de sua própria solidão e também de si
mesmo, de sua própria alma.
O mito de Lilith, surge na grande tradição oral, reunida nos
textos de sabedoria rabínica de versão jeovística e é paralelo, precedendo-
o em alguns séculos, ao da versão bíblica. Tais narrações, especialmente no
que concerne ao nascimento da mulher, são repletas de contradições e
mistérios excludentes. Deduz-se que a narração sobre Lilith, primeira
esposa de Adão, perdeu-se ou foi removida no período da transposição da
versão jeovística para a sacerdotal, em seguida sendo alterada pelos Pais
da Igreja. (Sicuteri, 1998, p.23)
A redescoberta de Lilith nos remete a uma compreensão da
origem da relação homem e mulher, da cisão entre instintivo e racional,
também a um esclarecimento do grande equívoco do primado do masculino sobre
a mulher sentida como inferior. "Toda a história psicológica da relação
homem-mulher (...) é uma série de notas de rodapé à história de Adão e
Eva." (Hillman, 1984, p.13)
Dizem os rabinos que desde o início de sua criação, Lilith foi
somente um sonho e
o sonho, para o homem, é a voz potente de seu espírito e de sua
profundidade interior. No sonho não existe espaço para verdade ou
inverdade, para a lógica ou a fantasia. No sonho o homem está inteiro (...)
E tudo existe, como existe o homem. Porque existe o homem que sonha. E
Lilith para nós nasce talvez do sonho ou da narrativa dos rabis, nasce de
uma necessidade ou de uma fantasia coletiva. (Sicuteri, 1998, p. 25)
Lilith pode ser identificada nas sutilezas, subentendidos e
alusões analógicas do Beresit-Rabba (o primeiro livro da Torá). Surge
definitivamente em Gênesis 1¹, Deus os abençoou e, segundo a versão
jeovística, macho e fêmea humanos estavam em estado animal, indiferenciados
e sem disparidade entre os sexos. Eles eram informes. O "desta vez" de
Gênesis 2.22-25¹, quando da criação de Eva, dá margem de referência para
esta mulher antecedente. Segundo a tradição, Lilith nasceu cheia de saliva
e sangue e era capaz de instigar em Adão uma insustentável perturbação e
isso o assustou terrivelmente. Em outra versão, teria sido criada com fezes
e imundície ao invés de pó puro, denotando intenção de Jeová em criar a
mulher inferior ao homem.
Na criação de Lilith está implícita a perda da unidade mágico-religiosa dos
dois sexos na pessoa única do 'homem'. A mulher, evidentemente, enquanto
reprimida e comprimida sob a autoridade do macho, tentava reconquistar
então, a paridade. Lilith nasceu das mãos do Jeová Deus, impura, humana: Um
Adão, portanto. (Sicuteri, 1998, p. 28)
Como Lilith nasce após Adão, ao entardecer do sexto dia, assim
como os répteis e os demônios, já entra no mito com uma carga de
fatalidade, um verdadeiro espírito deixado informe por Deus, ela é um
companheira que possui uma identificação com a serpente e o demônio, Lilith
estaria mais próxima do protótipo natural da mulher do que Eva. As
diferentes reações de Adão frente às duas naturezas femininas, censurando
Lilith (vista como carnal e como aquela que seduz) e aceitando Eva (vista
como imagem do bem), não o isenta de que ambos os femininos lhe tragam
desgraças, uma vez que a dócil Eva também é seduzida pela serpente e pela
sua própria curiosidade.
Embora a mulher tenha sido criada para personificar o
sentimento que liga o homem da antiga tradição a seu Deus, o amor entre o
casal é perturbado quase que de imediato. No caso de Lilith, não havia paz
entre eles porque quando se uniam sexualmente na posição tida como mais
natural – mulher por baixo do homem – ela se impacientava e questionava
porque deveria abrir-se sob o corpo de Adão, porque deveria ser dominada
por ele, se fora feita do pó e, portanto, sua igual. Solicitou então a
inversão de posicionamento para estabelecer uma paridade entre eles. Adão
recusou e a submeteu. Lilith não aceita essa imposição e se rebela contra
Adão, pronuncia irritada o nome de Deus, acusa o homem, transgride a ordem
e rompe o equilíbrio. Adão se vê abandonado e em seu desespero recorre ao
Pai que interpreta o desafio ao homem, como um desafio ao divino.
(Sicuteri, 1998, p.35)
Lilith voa para longe, na direção das margens malditas do Mar
Vermelho, após ter profanado o nome do Pai, se torna o veículo do pecado, o
símbolo da transgressão. O 'demônio' em Lilith impele a mulher a 'fazer
algo' que o homem não permite: Lilith pede a inversão das posições no
coito, Eva obedece a serpente e come o fruto proibido. Parece haver uma
espécie de lei natural que impele a mulher à prevaricação para não ser
obrigada a submeter-se ao homem. Tanto Lilith quanto Eva assumem o risco de
seus atos e modificam tudo, dão origem a uma outra coisa, a uma nova ordem,
a uma situação nova, a um outro mundo. Lilith tem sua natureza alterada
quando blasfema contra Deus, já não é mais capaz de obedecer, não é mais
companheira de Adão, passa a relacionar-se com espíritos maléficos e a
parir demônios. Embora tenha uma natureza astuta como a da serpente e uma
grande sabedoria demoníaca, seu sofrimento aumenta quanto maior se torna o
seu conhecimento. Lilith permanece na própria liberdade, endemoninhada,
talvez rainha do inferno, como seu espírito feminino. Ao declarar guerra ao
Pai e receber dele um papel demoníaco, desencadeia força destrutiva e desde
então não há paz para o homem.
Lilith é associada à experiência das fases lunares (lua nova
representaria sua fuga do Éden) e manifesta o lado feroz de todas as
divindades femininas. Vemos aspectos dela em Hécate, nas Lâmias, Eríneas e
Fúrias, em Medéia e nas bruxas da Idade Média, também em toda mulher que
não se submete e não desiste diante da dominação masculina. Pensar em
Lilith independente, sobrevivendo por si mesma em oposição ao macho e à lei
do Pai, sugere a ideia de uma postura de total competição com o homem ou
uma elaboração interna do tema da relação e a respeito disso o mito das
Amazonas sugere uma boa analogia, já que elas constituem a forma arcaica
daquilo que é chamado impropriamente de feminismo.
É sobretudo em Vicente-Vera, o homem transformado em mulher e
em sua jornada que o mito de Lilith incide.
O filme é baseado no romance francês Mygale (ou tarântula), de
Thierry Jonquet, que rege sua principal linha narrativa com algumas
mudanças criativas que melhoram o enredo. Inevitável ligar o simbolismo da
aranha ao órgão sexual feminino - ideia talvez herdada do populacho, mas
que ganha até em Saramago seu lugar, imortalizada em O Homem Duplicado.
Atribui-se o título muito mais, porém, ao fato desse tipo de aranha em vez
de teias, cavar túneis na terra, preparando alçapões para prender suas
vítimas. Pensando no título escolhido por Almodóvar, A Pele que Habito, faz
muito sentido, uma vez que a nova pele indestrutível que continha o eu de
Vicente, representava muito mais do que um aspecto fenotípico, mas um
verdadeiro aprisionamento psíquico - pele essa acompanhada de uma vagina,
órgão celebrado e amaldiçoado pelos séculos afora, causador de misérias,
doador de prazeres, lugar por onde se obtém a luz, para Vicente um
verdadeiro alçapão. Tendo-se em vista o nome dado por Louise de Bourgeois
(de quem falaremos a seguir) a sua mais afamada obra, a aranha de bronze,
com 9 metros de altura, exposta no Museu Guggenheim em Bilbao, Maman, fica
óbvio tanto o simbolismo quanto a conflitiva sugeridas.
De modo geral, o filme trata da obsessão de um cirurgião
plástico pela criação de uma pele transgênica, capaz de resistir a
agressões as mais diversas, em especial queimaduras. Tal desejo nasce
inicialmente em prol da cura da esposa, queimada gravemente em um acidente
de carro, perpetuando-se depois da morte desta, pela sua própria loucura e
genialidade. Colocando-se como criador, Robert age de forma amoral, ignora
aspectos éticos e qualquer sentimento de culpa. Movido pela vingança,
sequestra o agressor da filha (Vicente), transformando-o numa mulher em
tudo semelhante a sua esposa falecida, Gal (evocando Galatéia, a escultura
perfeita, amada por Pigmaleão, a quem Afrodite transforma em mulher real).
Essa transformação de Vicente em Vera leva 6 anos, assim como no final dos
6 dias da criação Lilith é criada, após o período de evolução do Adão
andrógino indiferenciado.
Transformado do dia para noite em mulher, através de uma
vaginoplastia, num processo avesso ao que se costuma fazer nos casos de
transsexualidade, em que primeiro existe a aplicação de hormônios para a
alteração das características físicas secundárias do paciente e só depois a
mudança de sexo propriamente dita é efetuada. Vicente se vê de imediato
destituído do poder sobre si mesmo, aqui representado muito
psicanaliticamente pela perda do falo. A seguir se vê sendo modificado dia
após dia, até se tornar outra pessoa por completo, numa sequência de
intervenções cirúrgicas e medicamentosas completamente alheias ao seu
desejo e consentimento. Vicente é feito coisa, substância, matéria prima
para a criação de algo novo, em uma palavra se torna argila.
Aprisionado no corpo e no espaço, reduzido a um quarto
televisionado, Vicente feito Vera, portanto um homem posto em um corpo de
mulher ainda inacabado (Adão andrógino com Lilith, misturados e informes),
vivenciando em si mesmo todo o processo de criação de seu idealizador,
inicia uma busca interna por equilíbrio e sobrevivência. Trilhando uma
verdadeira jornada de herói, onde cada etapa é importante, onde cada
escolha define o personagem, determina assim a reconstrução de seu caráter
e destino. Em cada instante de escolha de Vera, é a lógica de Lilith que
prevalece, seu modelo de feminino, feminino transgressor, aquele que se
recusa à submissão e à vitimização.
Nesse momento outros nomes são invocados neste caminho de formação da
nova pessoa que ainda é Vicente, mas que também é Vera. Refletindo sobre o
fato de que nas metamorfoses míticas, por mais outro que o indivíduo se
torne, algo seu permanece, a 'mens', o que se observa é uma ação
estratégica por parte do personagem no intuito de preservar essa essência.
Essa ideia fica bem ilustrada pela cena em que Vera, trancafiada em seu
quarto, seleciona canais de TV. Entre assistir um documentário em que
felinos gigantes capturam uma presa e identificar-se com a vítima, e um
programa de Ioga, onde a apresentadora justamente faz um discurso sobre a
necessidade de encontrar no interior de si mesmo um local de refúgio, onde
ninguém poderia lhe destroçar, opta pelo segundo e passa a praticar Ioga
diligentemente, com o objeto de "não confundir a forma – Assana – com o
conteúdo".
Vera segue sendo provada dia após dia, são lhe oferecidas
roupas de mulher, que ela se recusa a usar, mantendo-se vestida apenas com
seu macacão protetor, cor da pele que nos dá sempre a impressão de nudez,
nudez mítica, nudez informe do paraíso e mesmo quando aceita se vestir a
agir como a mulher idealizada por Robert, só o faz na esperança de
conseguir escapar dali . As roupas femininas, recortadas, servem como
matéria prima para suas esculturas, inspiradas num livro em que toma
contato com as esculturas de Louise Bourgeois. A artista, muito
influenciada pelo surrealismo e pelo primitivismo, apresenta numa obra com
inequívoca dimensão autobiográfica, uma militância interior que se
contrapõe ao mundo exterior assumindo um caráter universal. Trata
especialmente das emoções mais fundamentais do homem, partindo sempre do
particular, falando da consciência trágica e brutalmente cruel da
existência humana, expressando através de suas esculturas os complexos
emaranhados existentes na constituição das questões de gênero, corpo,
essência, sobretudo no que tange aos aspectos do feminino e de sua
condição:
"Femme Maison" é uma série de pinturas figurativas e metafóricas que
reflectem sobre identidade e condição de género dentro da complexidade
modernista e vertical da cidade em explosão. A disfuncionalidade da
arquitectura, dita doméstica, converte-se no próprio corpo da mulher em
clausura, a mesma mulher menina para quem a casa familiar da infância
provincial, miniaturizada em mármore à escala de uma boneca, significava a
guilhotina pendente em "Cell (Choisy)". Tornadas arquitecturas totémicas,
as esculturas "Personages" das décadas de 40 e 50, celebram a abstracção
antropomórfica que a linguagem anterior não contém. Com total autonomia
inicial, começam progressivamente a integrar ambientes cada vez mais
complexos, em diálogo umas com as outras, num histórico contributo para a
genealogia da instalação. É também no espaço e do espaço que brotam as
esculturas em gesso e látex do período seguinte. Viscerais, primitivos,
orgânicos e disformes, os corpos em metamorfose parecem libertar-se,
fluidos, a partir de fissuras e orifícios subterrâneos. (...) Mais
referenciais e controladas, as esculturas de mármore reforçam o carácter
sexual das anteriores. Falos, vulvas, torsos hermafroditas, reconfiguram
uma linguagem escultórica híbrida materialmente classicizante. As celas e
os quartos são o apogeu narrativo do pensamento plástico de Bourgeois.
(Arte Capital - ver referências)
Importante salientar que esse viés artístico é próprio de
Vicente que já trabalhava na confecção de esculturas e na ornamentação de
vitrines na loja de roupas 'Vintage' de sua mãe, costureira e restauradora
de figurinos – que comprava roupas usadas e as 'reformava'. Nesse ponto
vale também comentar a importância da frase de Hemingway escrita na parede
por Vera – "A Arte é garantia de saúde", que sem dúvida revela o eixo
paradigmático em que a essência de Vicente se apoia para tolerar a condição
de aprisionamento físico e mental em que vive. Em seus desenhos, escritos e
esculturas trata de estabelecer um diálogo entre o que era e o que está se
tornando, construindo em si mesmo outra coisa, coisa esta capaz de abarcar
todo o conteúdo simbólico, informativo e emocional com o qual é obrigado a
lidar.
Outro momento importante de escolha para Vicente-Vera é
aquele em que ela se vê diante da proposta de maquiar-se, recebendo
inúmeros cosméticos e um livro de orientações. A escolha da marca dos
produtos, Chanel, não parece ter sido aleatória, uma vez que Coco Chanel,
costureira (como a mãe de Vicente) e estilista francesa famosa por
transformar a imagem da mulher no mundo, traz de forma emblemática em sua
história pessoal a transgressão, a recusa por submeter-se ao papel social
imposto à mulher, transmitindo essa possibilidade a todas as outras através
da moda – ao abandonar o uso dos espartilhos, ao cortar os cabelos curtos,
ao mudar toda a maneira de vestir a mulher, abriu do externo para o interno
um caminho novo para o feminino. É bárbaro refletir sobre isso, porque a
marca Chanel é usada para propor a Vera um jeito de ser mulher baseado no
desejo de Robert e ao recusar a maquiagem, ficando apenas com o lápis para
suas escritas na parede, Vera recusa a marca Chanel (que acabou se tornando
também um instrumento midiático de controle da mulher) e opta pela Chanel-
Lilith, por sua ideologia igualitária e por sua originalidade, ou seja,
pela essência da mulher real. Essa grande ênfase em roupas, cortes e
costuras, sem dúvida serve de metáfora para a pele, bastando para isso
lembrar-se das cenas em que Robert está desenvolvendo GAL em um manequim e
depois em Vera. A pele, nosso maior órgão, aquilo que nos contorna, que nos
formata, que nos contém.
Um nome que surge un passant no filme, mas que vale
comentar é o de Alice Munro, primeira contista a ganhar o Nobel da
Literatura, em 2013. A escritora é conhecia por abordar aspectos do
cotidiano inusitado, situações que levam o enredo – ou uma vida – a algum
sobressalto importante ou até mesmo a uma mudança completa de rumo. Suas
personagens femininas estão sempre envolvidas em algo não convencional, mas
se mostram sempre resignadas em sua sorte. No que tange ao momento em que
Vera o recebe, pode-se pensar numa referência ou reforço à sua aparente
aceitação passiva da condição em que se encontrava.
A grande cena 'Lilithiana' do filme ocorre quando depois de
6 anos e uma tentativa de suicídio frustrada, percebendo a obsessão de
Robert por ela, Vera começa a tentar seduzi-lo.
Todo o discurso da personagem nesses momentos é pura menção
a cena em que Lilith tenta convencer Adão de que é igual a ele, feita como
ele e, portanto, sua companheira ideal. Vera começa sua fala dizendo que
tanto ela quanto Robert não eram como todo mundo, propõe que convivam, de
'igual para igual', diz a ele que pertence a ele, que fora feita à medida
dele e que ele havia gostado disso. Assim como Adão, Robert rejeita essa
proposta, só acolhendo Vera como amante ao vê-la vitimizada por Zeca,
portanto, rebaixada, agredida, humilhada, profanada e conspurcada, da mesma
forma que Adão só se anima a recuperar Lilith após ela ter se exilado e se
imiscuído aos demônios. Nesse momento, assim como Dionísio que acolhe
Ariadne após ter sido abandonada por Teseu, Robert salva Vera, assassinando
seu próprio irmão, que ainda está em cima dela na cama. Desse modo, como
Adão, Dionísio e Robert, essa figura mítica do homem que é incapaz de
aceitar uma mulher, a menos que ela esteja numa posição de vítima, de
alguma forma inferiorizada, desvalida, desprotegida e reduzida é tema
recorrente na história e na literatura, trazendo a tona um complexo de
inferioridade e um medo ancestral do homem com relação à mulher de quem ele
só consegue se aproximar quando fragilizada. Dionísio surge aqui também no
hábito de Robert de oferecer ópio a Vera, assim como o deus grego que
embebedava suas conquistas.
Importante destacar que Robert já reconhecia em Vera seu
duplo, em sua obsessão por observá-la, copiando muitas vezes até suas
posições e gestos, toda a fascinação se dá por uma identificação plena e
pela percepção da força do outro – 'Vera é uma sobrevivente!', a imagem
dela que vai crescendo na tela em relação à dele, embora ela siga olhando-o
de baixo para cima, numa reverência de criatura para criador. Mesmo após
ceder às propostas dela, segue temendo-a e se confia nela é unicamente por
reconhecer nela as marcas de si mesmo. Ao final, quando ela enfim o mata,
apenas trocam de lugar, Robert dando a ela o poder de vida e morte sobre
ele, poder que antes era dele sobre ela.
Outro aspecto de Lilith surge na figura de Marília, a
mulher cuja loucura habita o ventre. Conta-se que Lilith passou a parir
demônios após entregar-se aos espíritos caídos. Marília, mãe que Robert
trata como serva, pois ignora ser seu filho, seduzida por um empregado (pai
de Zeca) e por seu patrão (pai de Robert), gera dois loucos, cada um louco
à sua própria maneira. Lilith também se expressa no embriagamento de Robert
pelo cheiro de carne queimada vindo de Gal, na adoção de um estilo de vida
de vampiros após o acidente dela e de suas queimaduras, sem espelhos e na
completa escuridão. Lilith surge também em Josefina, a mulher que foge e
abandona marido e filho constantemente e para quem não haverá mais
vestimentas, uma vez que seu marido vende suas roupas, numa tentativa
talvez de apaga-la de vez de sua vida.
A Lilith amazona surge em Cristina, a mulher que não gosta
de homens e que desafia Vicente a vestir ele mesmo o vestido que deseja ver
nela.É essa cena que Vera retoma no final do filme para convencer Cristina
de sua real identidade, mostrando a ela que de fato vestira o vestido ele
mesmo.
Impossível não resgatar aqui um texto de C.G.Jung, chamado Resposta a
Jó, onde o autor faz toda uma reflexão sobre a relação entre Deus e o
homem, sugerindo que Jeová - afetado pelo discurso e atitude de Jó (que,
após ter sido vítima de toda a coleção de torturas e injustiças que bem
conhecemos, revelando a frágil condição humana diante de um Deus Todo
Poderoso e sem nunca amaldiçoa-lo, antes ciente de que o mesmo Deus que o
feria era o único a poder salvá-lo) - teria sido modificado, evoluindo de
uma postura divina despreocupada de julgamentos morais ou sem uma ética que
Lhe impusesse obrigações (já que a moralidade pressupõe consciência, e
Deus, avalia Jung, é uma experiência psíquica transcendente, um fenômeno
absolutamente portentoso, e não um homem, simplesmente).
Sobe essa perspectiva, a experiência com Jó teria sido uma espécie de
divisor de águas na relação de Deus com o homem, o ponto culminante de um
arquétipo em evolução, pois esse homem mortal viu o semblante de Javé, a
partir do que Deus se renova "conhecido", tomando consciência de si, agindo
e crescendo dentro dos homens. Para completar a contraparte desta
experiência mística, Javé (ou Jeová) decide encarnar-se em nosso meio.
Entretanto, o segundo Adão (Jesus) não nasce de das mãos divinas e do pó,
mas sim do ventre de uma mulher humana, uma segunda Eva. Jesus
representando o Deus que viveu entre os homens, que conhece a condição
humana, pode arbitrar sobre ela com justiça e redimi-la, pois a conhece de
dentro para fora, se fez como homem, se fez homem.
De forma análoga, Vera representa o homem que só é capaz de
compreender a condição feminina e redimi-la ao se tornar uma mulher. Da
mesma forma que Javé vitimiza Jó, pois sequer possui a consciência moral
para não fazê-lo, uma vez que não contém em seu íntimo a noção, de si e do
outro, necessária para que isso não lhe seja possível, para que haja um
limite moral imposto dele para ele, o homem não consegue VER a mulher,
integrá-la e acolhê-la enquanto não se exercita na alteridade e na empatia,
na capacidade de abrir em si mesmo um espaço do outro e para o outro – no
caso, para a mulher, o grande outro do homem. A Pele que Habito conta a
história de um homem que obrigado a viver como mulher, é submetido a todas
as opressões e experiências fatais que uma mulher pode vivenciar em sua
história de vida, protagonizando um processo de redenção por um ato não
intencional de agressão (situação com Norma) que resulta em verdadeira
homenagem ao espírito feminino e à sua resiliência inata. Ironicamente, a
conclusão desse processo abre um espaço para que ele se torne desejado pela
mulher que deseja e que não desejava homens, ilustração talvez de que o
caminho para o coração e para a vagina da mulher habite na capacidade de
compreendê-la e de se colocar em seu lugar e no resultado disso revelado na
forma de trata-la.
Conclui-se retomando a ideia de que sempre que o conflito entre o
masculino e feminino se verifica, quando os gêneros de alguma forma se
mostram imbricados, confundidos, emaranhados e em disputa, o que se
manifesta são os aspectos do embate mítico do Paraíso; pode-se afirmar que
muito tem sido conquistado no sentido de se integrar o desejo de igualdade
de Lilith à necessidade de autoafirmação de Adão, mesmo a curiosidade de
Eva tem sido amplamente saciada na busca livre pelo conhecimento por parte
de muitas mulheres, aplicadas a instruir-se e investir todo seu potencial
construtivo e criativo. Muito tem sido feito também no sentido de
conscientizar o mundo a respeito da violência contra a mulher e, a despeito
das culturas e religiões que ainda insistem em reprimi-la e oprimi-la
embaixo da pecha de uma falsa manutenção da ordem, pode-se intuir que um
mundo onde homens e mulheres se respeitam em suas diferenças ou ao menos
estão abertos ao diálogo e à colaboração mútua só pode se tornar um lugar
infinitamente melhor para se viver.

Referências bibliográficas:
¹Bíblia Sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. Revista e
Atualizada. 2 ed. Barueri. Sociedade Bíblica do Brasil, 1993.
²Commento ala Genesi, BeresitRabba, org. T.Federici, V.T.E.T., Torino,
1978, p.136 apud Sicuteri
ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. São Paulo. Perspectiva.
HILLMAN, James. O Mito da Análise. São Paulo. Paz e Terra, 1984.
SANTOS, Elaine Cristina Prados dos. Orfeu refletido: uma entrada especular
no outro mundo. In: ALVAREZ, A.G.R.; LOPONDO, L. (org) Leituras do Duplo.
São Paulo: Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2011.
SICUTERI, Roberto. Lilith: A Lua Negra. Paz e Terra: Rio de Janeiro, 1998.

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