Revisitando o problema da centralização do poder na Idade Média. Reflexões historiográficas. In: NEMI, A.; ALMEIDA, N.; PINHEIRO, R. (Org.). A construção da narrativa histórica (séc. XIX-XX). Campinas: Ed.Unicamp/ FAP-UNIFESP, 2014, p. 39-62.

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Grafla atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990. Em vigor no Brasil a Partir de 2009.

FICHA CETETOCNÁPICA ELABORADA PELO

SISTEMA DE BIBLIOTECAS DA UNICAMP DTRETORTA DE TRATAMENTO DA

INrOnUlçÃO

construção da narrativa histórica: Séculos XIX e XX I organizadoras: Néri de Barros Almeida, Ana Lúcia Lana Nemi, Rossana Alves Baptista Pinheiro. - Campinas, SP: Editora da Unicamp, São Paulo, SP: Fap-UnifesP, 2014.

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Historiografra. 2. História moderna

Séc. XX. I. Almeida, Néri de Barros, 1965-

Séc. XIX. 3. História moderna II' Nemi, Ana Lúcia Lana. III. Pinhei-

-

ro, Rossana Alves Baptista.

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907.2 909.81

ISBN 978-85-268-1070-9 (Editora da Unicamp) ISBN 978-85-6 I 673 -88-8 (Editora Fap-Unifesp)

909.82

Índices para catálogo sistemático:

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Historiografia

907.2

2. História moderna 3. História moderna -

Séc.

XIX

909.81 909.82

Séc. XX

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SUMARIO

APRESENTAçÃO

Ana Nemi, Néri de Barros Almeida e Rossana Alves Baptista Pinheiro...........

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os "pAIS oe ntsróRIA" E o DISCURso Do Néri de Barros

2.

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REVTSTTANDO O PROBLEMA DA CENTRALIZTçÃO DO PODER NA

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PEDRO DAMIANO, PENSADoR E ARAUTO DA

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13. MOSAICO DE SENTIDOS FACTÍVEIS: HEURÍSTICA E HERMENÊUTICE NE

OBRA DE CAPISTRANO DE ABREU

Ana Luiza Marques

Bastos......

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RESUMO1 COELHO, Maria Filomena. Revisitando o problema da centralização do poder na Idade Média portuguesa. Reflexões historiográficas. In: NEMI, A.; ALMEIDA, N.; PINHEIRO, R. (Org.). A construção da narrativa histórica (séc. XIX-XX). Campinas: Ed.Unicamp/ FAP-UNIFESP, 2014, p. 39-62.

O tema da centralização política não é uma novidade na historiografia contemporânea do ocidente. Aparece e desaparece ao sabor das épocas, de suas preocupações políticas, das ideologias do momento. Com relação ao Medievo, a centralização do poder tem uma história que somente pode ser compreendida a partir do presente dos historiadores que, em sua época, defenderam ou criticaram a abordagem centralista do poder na Idade Média. Entretanto, é inegável que o século XIX e a vitória do modelo político do estado burocrático e liberal transformaram-se no paradigma com o qual dialogaram os historiadores que escreveram sobre o poder, quer se trate do Estado na Antiguidade, ou do Estado na Pós-modernidade. Como dito, o historiador é movido e inspirado pelo seu presente. Mas, em se tratando do poder, é preciso entender que para além das inspirações do momento, existe um modelo político estatal que se naturalizou e serve de base às interpretações históricas do poder, desde o século XIX até hoje. Chega-se a conclusões que, por comparação com o paradigma do Estado Racional Burocrático, identificam origens, formações precoces, tentativas frustradas, corrupção, desvio do modelo. Portanto, uma longa evolução marcada por avanços e recuos. Alguns autores chamam a atenção para um problema da historiografia, herdeira da tradição explicativa decimonônica, que durante muito tempo entendeu que a melhor maneira de estudar o poder era seguir os cânones da História do Direito e das Instituições. Assim, bastaria conhecer as instituições formais, em toda sua grandeza ‘superestrutural’, para entender e explicar o poder. Um poder que, em sua forma estatal/institucional, é o centro político do qual emana o único poder digno de ser reconhecido como Poder. Rapidamente elevada à categoria de marco civilizatório e de progresso, essa estrutura estatal burocrática centralizada é reconhecida em diversos momentos da História do Ocidente - ainda que em estado embrionário - com o objetivo 1

Por tratar-se de livro protegido por direitos editoriais, apresenta-se apenas um resumo estendido do capítulo.

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claro de identificar na longa linha do tempo as origens de nossa civilização. Uma história teleológica que conta a epopeia vitoriosa da construção da autoridade da Lei e do Estado, uma espécie de destino cósmico que nos empurrou até a virtude: do Código de Hamurabi à Constituição. Para a historiografia institucionalista, esse longo percurso virtuoso construiu-se com grande esforço e com muitos retrocessos. Esforço daqueles que, embora tenham vivido há séculos (e até há milênios!), estavam muito ‘à frente de seu tempo’ e entendiam os benefícios de viver sob um estado de direito, sob um poder central forte que legisla e administra com uma noção apurada da diferença entre público e privado. Esses homens foram devidamente alçados pela história ao pedestal dos “bons governantes” e, não por acaso, são lembrados até hoje pelos manuais escolares. Com relação aos retrocessos, a historiografia destaca os ‘maus governantes’, claro, mas também uma idade histórica: a Idade Média. Esse período, já se sabe, fica no meio. É o hiato, a suspensão, a negação de tudo que é considerado positivo pelos padrões da civilização ocidental, mas, fundamentalmente, de um determinado modelo de poder: o da ordem e da lei centralizadas, frutos de um projeto político estatal. Este projeto é facilmente identificado pela historiografia nas cidades-estado e nos impérios da Antiguidade, com uma natureza centralista, embora suas respectivas histórias apresentem, com alguma frequência, governantes “corruptos” que não estão à altura do projeto, e, depois, identificado novamente no Estado Moderno, a partir do século XVI. Com relação à ‘Idade do Meio’ ocorre o inverso: a historiografia atribui-lhe uma natureza política anticentralista, pontuada com alguns – poucos – “bons” governantes, ‘deslocados de seu tempo’, que apresentaram um comportamento político “positivo”, exercendo sua capacidade legisladora e impondo a ordem da coroa, mas cujos projetos acabaram derrotados pela ‘barbárie’ e pelos interesses privatistas dos senhores da guerra. Dentro dessa estratégia interpretativa, a centralização do poder ocupa um lugar primordial. Nessa forma de exercer o poder identifica-se uma das principais virtudes do Estado e, neste particular, Portugal surge como uma espécie de vanguarda política na Idade Média. A explicação é suficientemente conhecida: as circunstâncias da Reconquista teriam propiciado o fortalecimento precoce da monarquia que, apoiada num aparato burocrático e numa rede de cidades régias, conseguiu submeter a nobreza e

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a Igreja à lei do Estado. Ao contrário de outras regiões da Europa, onde os reis eram considerados primus inter pares e concorriam com os demais poderes políticos, em Leão/Castela e Portugal, graças à centralização do poder nas mãos da monarquia, fora possível institucionalizar o poder muito mais cedo, o que permitiu as grandes empresas marítimas/comerciais e a conquista do Novo Mundo. Assim, Portugal disporia de um panteão copioso de monarcas que exerceram o poder de maneira “centralizadora”, sendo, portanto, mais modernos do que medievais2. É interessante notar que o esforço não reside em procurar entender como os reis medievais governaram, mas em mostrar como eles ocuparam a dianteira na corrida em direção ao futuro ou, mais precisamente, ao século XIX. O Estado, entendido então como motor do progresso, tem sido abordado pelos medievalistas principalmente por meio de seus instrumentos de dominação sobre a sociedade, ou, como preferem alguns, do exercício do poder. Trata-se de usar os registros documentais de caráter legislativo, judicial e administrativo, para mostrar como, já na Idade Média, os reis portugueses sabiam o que era preciso fazer para se conseguir uma boa gestão da coisa pública, muito embora as circunstâncias adversas e a natureza humana impedissem a implementação e/ou o desenvolvimento das iniciativas adequadas. Nesta perspectiva, nem todos os monarcas merecem o adjetivo de “bons” governantes; há, inclusive, aqueles que foram julgados pela história como “maus”, “fracos”, “incapazes de estar à altura dos acontecimentos”. A visão panorâmica da historiografia revela que os monarcas medievais mais eficientes são aqueles que conseguiram deixar evidentes rastros legislativos e administrativos, sendo que a qualidade guerreira importa, sobretudo, na medida em que se coloque a serviço do fortalecimento do Estado. Num jogo de espelhos, os maus são, evidentemente, os que não conseguiram deixar uma obra legislativa, que não tomaram atitudes firmes na administração do reino, ou, o que é pior, que destruíram os esforços de seus antecessores nessas matérias. No cotidiano político do reino, os maus são aqueles que cedem à nobreza e à Igreja, que andam ao gosto das fidelidades, dos preferidos e dos parentescos. Enfim, a galeria dos bons e dos maus é sobejamente conhecida, com nomes 2

De maneira monográfica, pude abordar essa questão com relação às Inquirições régias medievais portuguesas. Ver: COELHO, Maria Filomena. Inquirições régias medievais portuguesas: problemas de abordagem e de historiografia. In: PÉCOUT, Thierry (dir.). Quand gouverner c’est enquêter. Les pratiques politiques de l’enquête princière (Occident, XIIIème-XIVème siècles). Paris: De Boccard, 2010, p. 43-54.

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e cognomes. Entretanto, sabe-se que os adjetivos resistem mal a um confronto empírico, tal como demonstram esforços recentes em descobrir que alguns dos monarcas mal avaliados pela História também tinham em suas biografias momentos de grandes legisladores e de boa administração. Do mesmo modo, os que haviam sido alçados ao panteão dos louváveis são acusados aqui e ali de práticas condenáveis na governação e de descumprir a lei que eles próprios haviam “promulgado”. Como se pode perceber, o paradigma é o mesmo, pois, quer para destacar o poder efetivo do rei na Idade Média, quer para negá-lo, usam-se medidas políticas de outras épocas. Tudo o que se disse até agora não tem como objetivo cair no oposto do que se critica. Não se quer negar a importância do poder régio, nem se quer equipará-lo aos demais poderes. Pretende-se propor uma visão mais complexa e histórica do poder, que permita contemplar, por um lado, a existência de um princípio de unidade política (a monarquia, o reino) e, por outro, como esse princípio governava em um universo de poderes políticos que gozavam de autonomia relativa. Põe-se de manifesto a preeminência da monarquia dentro de um sistema pluralista, o que parece criar um paradoxo: a ideia de monarquia sugere a unidade do poder, enquanto que o pluralismo remete ao ‘pluricentrismo’. Sem dúvida, trata-se de uma proposta historiográfica que permite explicar (dar sentido) as instituições muito além do aparato burocrático administrativo e do direito legislativo oficial. Oferece-se a possibilidade de recuperar e por em evidência lógicas que o Estado contemporâneo reprime e condena: as relações clientelares e de fidelidade, a linhagem e a organização doméstica, a disciplina ‘informal’3. Quando se olha para a dimensão política da baixa Idade Média portuguesa, vislumbra-se uma realidade discursiva que justifica a existência dos aparatos políticos em função do público e que, sobretudo, promove uma aparência coletiva integrada. Certamente, são tais aspectos que inspiram as interpretações historiográficas centralistas, por associarem estes meios administrativos aos da modernidade. Entretanto, deixam de fora o motor que move as lógicas administrativas da monarquia: as redes sociopolíticas. Nelas, o serviço e o benefício ajudam a compreender as especificidades e interrelações do público com o privado que precisam ser entendidas

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HESPANHA, A. O debate acerca do “Estado Moderno”. In: TENGARRINHA, J. (Coord.). A historiografia portuguesa, hoje. Lisboa: Hucitec, 1999, p.138.

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para além da dinâmica da oposição4. Não parece demais insistir em que não se trata de identificar as limitações que o privado impõe ao público, coisa que denota a preponderância de um modelo a posteriori, o estatalista, mas de partir de outra concepção completamente diferente de poder: a medieval. Assim, aquilo que é função, é muitas vezes classificado pela historiografia como disfunção. Um monarca que distribui “muitas” mercês é acusado de hipotecar o reino e de se tornar refém da nobreza. Aliás, a nobreza é normalmente interpretada como elemento negativo, e dificilmente se evidenciam as redes em torno dos monarcas como elementos positivos. É recorrente que a historiografia se refira ao rei por um lado e à nobreza por outro, como elementos que não pertencessem ao mesmo conjunto. Esquecese mesmo que o rei nunca está só; quando combate uma parte da nobreza, certamente, está apoiado em outro grupo de nobres. Um rei que destrói a nobreza, que a elimina, não faz sentido do ponto de vista da própria natureza régia. São abundantes os exemplos da participação da nobreza na administração do reino e as medidas que resultam na burocratização do Estado criam as condições necessárias ao fortalecimento das elites no poder. O fato é que a historiografia tem dificuldade em explicar uma dinâmica que parece, à primeira vista, antagônica: por um lado identifica-se o fortalecimento do poder régio mas, por outro, percebe-se também uma crescente influência da alta nobreza dentro dos aparatos burocráticos. Assim, a conclusão aponta não para a contradição, mas para a composição: o poder régio consolida-se à medida que possibilita que a nobreza governe com o rei, no interior do Estado. Esta situação de condomínio corporativo é benéfica tanto para o monarca, como para a nobreza. Sua situação de ordem superior privilegiada é mais bem dimensionada ao abrigo de uma monarquia estruturada e fortalecida, que garante a ordem e uma canalização das riquezas de maneira mais eficiente. Entretanto, as circunstâncias da vida política desenham o panorama do poder, mudando a configuração dos grupos nobiliárquicos que privam das mercês régias, mas igualmente, mudando a própria configuração da realeza, cujo ocupante do trono pode também mudar, de acordo com as tensões.

Ao referir-se à instituição da realeza, normalmente o historiador entende o fenômeno pronto, e é raro que se ofereça uma visão histórica do conceito, em sociedade.

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Isto já foi salientado, em outro contexto, por Alain Guerreau. In: GUERREAU, A. O feudalismo.Um horizonte teórico. Lisboa: Ed. 70, s/d. p. 245

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Ou seja, a evocação é de um modelo instituído e não de um modelo/conceito político em processo de instituição. Isto não quer dizer que a historiografia não reflita movimento; é comum que a estratégia narrativa recorra a imagens de “idas e vindas”, “avanços e recuos”. Os exemplos são intermináveis, mas, em termos da cronologia portuguesa medieval, isso é fartamente percebido nas análises sobre a Primeira Dinastia, que acusam os atores políticos de hesitação no que diz respeito à adoção de princípios normativos e à implementação de procedimentos. Esta época, conhecida como primórdios e afirmação da nacionalidade, associada, portanto, à imagem da infância, é imperfeita e retratada como fase de aprendizagem. Neste sentido, as personagens sequer chegam a ser verdadeiros atores políticos, uma vez que o conceito “política”, para essa historiografia, admite uma única definição, com existência histórica posterior.

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