Revisitando os fundamentos do poder de polícia

September 10, 2017 | Autor: F. de Melo Fonte | Categoria: Direito Administrativo, Poder De Polícia Administrativa No Brasil
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REVISITANDO OS FUNDAMENTOS DO PODER DE POLÍCIA Sumário: I. O “estado da arte”: a intervenção pública na esfera privada em modelos explicativos insatisfatórios. I.1. O modelo hobbesiano: ordem pública e prevenção ao dano social. I.2. a justificação metodológica: o problema da colisão in concreto de direitos. II. Algumas ideias para uma nova teoria para o poder de polícia. III. Síntese conclusiva. IV. Referências bibliográficas Resumo: o artigo busca identificar as duas justificações teóricas para o exercício do poder de polícia estatal com base em autores clássicos do direito administrativo, abordando-as criticamente. Em seguida, apresenta alguns elementos que devem ser considerados para a construção de uma nova teoria do poder de polícia. Palavras-chave: poder de polícia; democracia; direitos fundamentais.

I. O “ESTADO DA ARTE”: A INTERVENÇÃO PÚBLICA NA ESFERA PRIVADA EM MODELOS EXPLICATIVOS INSATISFATÓRIOS

O que temas tão distintos como o abate de animais em razão da doença da “vaca louca”, a demolição de prédios construídos irregularmente em áreas de proteção ambiental e a badalada operação “lei seca” podem ter em comum? Além de terem feito parte, em algum momento, dos noticiários nacionais, todos eles se inserem em um mesmo capítulo da disciplina do direito administrativo, denominada, sugestivamente, de poder de polícia1. Dos exemplos apresentados é possível inferir a importância do tema para a sociedade e o Direito, já que em todos os casos está em jogo a limitação e, por vezes, o próprio sacrifício de direitos fundamentais em favor de interesses da coletividade. Afinal, de acordo com definição clássica, referido poder consiste na competência atribuída ao Estado para condicionar ou restringir o exercício de direitos privados, especialmente os de propriedade e liberdade, permitindo-se, assim, a convivência pacífica e harmônica em sociedade2.                                                                                                                         1

Vale mencionar que a expressão “poder de polícia” tem sido criticada por sua conexão a um modelo de Estado vetusto, sugestivamente denominado de “Estado de polícia”. Embora estejamos de acordo com a tese revisionista, o uso do termo neste projeto assim é feito por deferência à tradição brasileira. Sobre tais críticas, confira-se: GORDILLO, Agustín. Tratado de derecho administrativo. 9ª. Ed. Buenos Aires: FDA, 2009, e SUNDFELD, Carlos Ari Sundfeld. Direito administrativo ordenador. São Paulo: Malheiros, 1993. 2

A propósito, v. a definição clássica de MEIRELLES, Hely Lopes, Direito administrativo brasileiro, 36ª. Ed., São Paulo: Malheiros, 2010, p. 134: “Poder de polícia é a faculdade de que

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Os campos da polícia administrativa são vastos. Seja por razões de moralidade, salubridade, tranqüilidade ou paz, afirma-se que a polícia administrativa existe para que seja viabilizada a própria existência social. Sem a mediação pública, estaríamos todos fadados a um bellum ominum contra omnes (ou seja, guerra de todos contra todos), já que os direitos seriam exercidos sem quaisquer limites e, por conseqüência, de maneira danosa3. E como quem quer os fins deve dar os meios4, atribui-se ao Estado prerrogativas que exorbitam dos poderes tipicamente privados, permitindo-lhe que discipline e, inclusive, utilize a força física para compelir os particulares a não transpassar os limites que impõe ao exercício dos direitos5. Ora, o abuso no exercício de direitos privados é um fato tão comum na vida social que todos, invariavelmente, já o experimentaram. Não é preciso ir longe para provar o ponto. Basta rememorar o caos que ocorre quando os semáforos de trânsito simplesmente deixam de funcionar, abandonando os cidadãos à mercê de sua própria sorte no exercício da liberdade de ir e vir. Talvez por esta razão a necessidade de atuação do Estado seja ponto consensual, um verdadeiro truísmo ou axioma do direito administrativo (o qual, aliás, precede o próprio nascimento do direito administrativo). A demanda por legitimação e justificação fez a doutrina reconhecer a supremacia geral do Estado em desfavor da sociedade, derivando dela as prerrogativas                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                             dispõe a Administração Pública para condicionar e restringir o uso e gozo de bens, atividades e direitos individuais, em benefício da coletividade ou do próprio Estado”. 3

Veja-se a seguinte passagem de CAETANO, Marcelo. Princípios fundamentais do direito administrativo. Coimbra: Almedina, 1977, p. 268: “Numa sociedade onde cada um possa fazer tudo quanto lhe apeteça sem pensar nos interesses, nas necessidades, nos direitos dos outros não há liberdade. Porque os mais fortes, os menos escrupulosos, os mais poderosos oprimirão os que não lhes possam resistir”. (negrito acrescentado) 4

Basicamente, é assim que se justifica a natureza autárquica da Ordem dos Advogados do Brasil, cf. DALLARI, Adilson Abreu. “Ordem dos Advogados do Brasil – Natureza jurídica – Regime de seu pessoal”, Revista de Informação Legislativa nº. 116, p. 260: “É certo, portanto, quem a OAB exerce função pública, pois o controle do exercício profissional do advogado transcende os interesses da corporação e configura interesse da coletividade, constituindo-se em indubitável interesse público (...) Exatamente por essa razão, por exercer função pública, é que a OAB é dotada de prerrogativas públicas”. 5

MEIRELLES, Hely Lopes, Direito administrativo brasileiro, 36ª. Ed., São Paulo: Malheiros, 2010, p. 141: “A coercibilidade, isto é, a imposição coativa das medidas adotadas pela Administração, constitui também atributo do poder de polícia”. Os limites e condições ao uso da coerção é um ponto que comporta discussão doutrinária, mas não assim quanto ao uso da força física, que é pacificamente admitido.

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públicas necessárias à manutenção da ordem6. Especificamente quanto ao poder de polícia, o discurso de legitimação vem a reboque das práticas do Estado. E se a legitimação é o problema a ser perquirido, é oportuno fazer uma breve digressão a respeito do tema. De acordo com os manuais, o poder de polícia existe desde antes da criação do Estado moderno, como atribuição das autoridades responsáveis pela condução dos negócios públicos7. A própria expressão polícia advém do termo grego politeia e do latim politia, os quais remetem à ordem na cidade. A cidade antiga é o local onde a convivência harmoniosa é possível porque nela há ordem, provida pelo titular do poder público. Nesta fase inicial, o poder de polícia compreende todas as atividades públicas, inclusive a própria administração da Justiça, o que anula a possibilidade de controle social e mesmo jurídico sobre tais tarefas públicas. Durante a época medieval a noção de polícia passou a exprimir a “boa ordem da sociedade civil presidida pela autoridade estatal, deixando-se a boa ordem moral e religiosa a cargo da autoridade eclesiástica”8. Neste momento, o poder de polícia “consiste na faculdade estatal de regrar tudo que se encontra nos limites do Estado, sem exceção alguma; é o poder juridicamente ilimitado de coagir e ditar ordens para realizar o que seja conveniente”9. Entre os séculos XIV e XVI o denominado ius politiae (expressão em latim que designava o poder de polícia) espraia-se nos países da Europa continental, sedimentando-se como o direito do Estado de cuidar do bem-estar comum valendo-se da coerção, se necessária for. Como se pode perceber, o ius politiae é a roupagem jurídica de uma prerrogativa que era tipicamente fática, de imposição de vontade por meio da força, a pretexto de salvaguardar o interesse da coletividade.

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MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 24ª. Ed. São Paulo: Malheiros 2007, pp. 800-805. O autor atribui a consolidação da noção de supremacia geral à obra do alemão Otto Mayer, de onde se expandiu para a Itália e Espanha. 7

BASAVILBASO, Benjamim Villegas. Derecho administrativo, t. 5. Buenos Aires: Editora Argentina, 1954, pp. 14-17. 8

BASAVILBASO, Benjamim Villegas. Derecho administrativo, t. 5. Buenos Aires: Editora Argentina, 1954, p. 14. 9

GORDILLO, Agustin. Tratado de derecho administrativo. 9ª. Ed. Buenos Aires: FDA, 2009, p. V-6.

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Assim, a marca do poder de polícia pré-constitucional é o seu caráter ilimitado: voluntas principis suprema lex est. No direito monárquico, o príncipe estava autorizado a tomar todas as medidas necessárias para a manutenção da paz pública e da boa gestão dos negócios públicos, sem que os particulares pudessem lhe opor direitos individuais, já que sequer eram considerados titulares de direitos subjetivos públicos. Nesse contexto, o poder de polícia servia de pretexto para a construção de um Estado que tudo pode. Aliás, a identidade de conceitos é tamanha que o próprio modelo estatal então vigente entraria para a história com este nome: “o Estado de polícia”10. No curso do século XVIII o ius politiae perdeu, finalmente, a sua onipotência. O pensamento liberal clássico e a sua doutrina dos direitos individuais minaram as bases do pensamento publicístico de então, reconhecendo em favor dos indivíduos prerrogativas em face do Estado. Consagrou-se, naquela quadra histórica, a necessidade de limitação do poder público, o que de fato ocorreu, ao menos em sentido formal, com as publicações das declarações de direito e o advento do constitucionalismo nos Estados Unidos e na França pós-revolução. Mais que isso, a noção de Estado de Direito demandou a submissão do príncipe ao próprio direito que edita. Aos poucos, com a afirmação da lei como fruto da vontade geral, a fonte do poder de polícia deixou de ser a vontade do soberano e passou à vontade legislativa. Desta transição emergiu a principal característica do poder de polícia no Estado moderno: a necessidade de habilitação legal para a ação administrativa imperativa. A partir do século XVIII o poder de polícia adquiriu o perfil que tem nos dias atuais: submetido ao princípio da legalidade, limitado pelos direitos fundamentais constitucionalmente assegurados e exercido em favor da harmonia social. Contudo, o advento do Estado limitado de cunho liberal não modificou o panorama do exercício do poder de polícia; ao menos não em toda a extensão devida. Isto porque a imposição do princípio da legalidade como fundamento do agir estatal não correspondeu à ablação completa da liberdade da Administração Pública nesta matéria,                                                                                                                         10

BEZNOS, Clóvis. Poder de polícia. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1979, p. 14: “Preleciona Marienhoff que a expressão ‘Estado Polícia’ originou-se do sistema que imperou na Alemanha. Nessa época, os assuntos de polícia eram resolvidos pelo Príncipe, em relação às suas decisões, não havia apelação para nenhuma instância jurisdicional”.

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não se podendo falar que esta se encontra estritamente vinculada à vontade legislativa11. Ora, valendo-se ainda de expressões genéricas como ordem pública, salubridade, moralidade e paz pública (ou seja: conceitos jurídicos indeterminados12), a Administração Pública continuou a agir discricionariamente, avocando para si a atribuição de conformar e limitar direitos privados, mesmo erigidos à categoria de direitos fundamentais, a pretexto de realizar tais misteres. Aliás, sobre a natureza (ainda) discricionária do poder de polícia, vale transcrever passagem clássica de Hely Lopes Meirelles, verbis: “Para efetivar essas restrições individuais em favor da coletividade o Estado utiliza-se desse poder discricionário, que é o poder de polícia administrativa. Tratando-se de um poder discricionário, a norma legal que o confere não minudeia o modo e as condições da prática do ato de polícia. Esses aspectos são confiados ao prudente critério do administrador público”13. Observe-se

que

a

fundamentação

do

poder

de

polícia

normalmente apresentada em manuais e estudos específicos sobre o tema é rigorosamente idêntica à utilizada no Estado pré-constitucional, ressalvados acréscimos concernentes à legalidade, pouco tendo avançado em termos de justificação democrática para o seu exercício. Insista-se que a mera referência à legalidade é insuficiente para se afirmar que há verdadeira limitação do poder, ponto que será objeto de maior atenção adiante. Por ora, compilando os diversos estudos sobre a matéria, é possível identificar,                                                                                                                         11

A propósito, veja-se a passagem de ENGISCH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. 8ª. Ed. Trad. Nelson Baptista Machado. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2001.p. 207: ‘’O princípio da legalidade da actividade jurisdicional e administrativa, em si, permanece intocado. (...) As leis, porém, são hoje, em todos os domínios jurídicos, elaboradas por tal forma que os juízes e os funcionários da administração não descobrem e fundamentam as suas decisões tão-somente através da subsunção a conceitos jurídicos fixos, a conceitos cujo conteúdo seja explicitado com segurança através da interpretação, mas antes são chamados a valorar autonomamente e, por vezes, a decidir e a agir de um modo semelhante ao do legislador. E assim continuará a ser no futuro”. (negrito acrescentado) O ponto será retomado adiante. 12

Os conceitos jurídicos indeterminados consistem em uma técnica utilizada pelo legislador para deferir ao administrador maior espaço decisório, sem que, contudo, defira-lhe ampla discricionariedade. O legislador utiliza expressões não tão objetivas, permitindo que o administrador exerça algum espaço valorativo, mas que é passível de controle por cotejo com o caso concreto, por tal razão não se confundindo com a idéia de discricionariedade. A propósito do tema, v. BINEMBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pp. 211-224. 13

Direito administrativo brasileiro, 36ª. Ed., São Paulo: Malheiros, 2010, p. 139.

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em esforço de sistematização, dois modelos de fundamentação para o exercício do poder de polícia14, são eles o hobbesiano, e o metodológico, com diferentes impactos sobre a teoria e sujeitos a diferentes críticas. É sobre estes modelos que se discorre a seguir. I.1. O modelo hobbesiano: ordem pública e prevenção ao dano social As definições clássicas e mais antigas do poder de policia possuem uma justificativa que será denominada de hobbesiana precisamente porque encontra seu fundamento último nas concepções de homem, sociedade e Estado de Thomas Hobbes, expressada em Leviatã15. Segundo elas, o poder de polícia é exercido para evitar a guerra de todos contra todos; ele é essencial à manutenção da ordem pública e da paz social. O Estado age para evitar que a sociedade degenere em conflitos, já que homo homini lupus, isto é, o homem é o lobo do homem16. Para evitar tal situação, que é indesejável e contraproducente, os homens fazem um pacto por meio do qual criam o Estado-Leviatã, delegando-lhe a tarefa – e os poderes necessários – de agir em defesa do tecido social. O primeiro modelo assenta-se em um premissa antropológica negativa. Esta visão, calcada, sobretudo, na vaga noção de ordem pública, é adotada por diversos estudiosos franceses do direito administrativo, dos quais são

                                                                                                                        14

Neste ponto, cabe dizer que foi de grande valia a compilação de teorias feita por Benjamim Villegas Basavilbaso, na obra Derecho administrativo, editada em 1954. 15

HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Trad. João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza Silva, Coleção Os Pensadores. São. Paulo: Nova Cultural. 1999. 16

HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Trad. João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza Silva, Coleção Os Pensadores. São. Paulo: Nova Cultural. 1999, p. 49: “Portanto tudo aquilo que é válido para um tempo de guerra, em que todo homem é inimigo de todo homem, o mesmo é válido também para o tempo durante o qual os homens vivem sem outra segurança senão a que lhes pode ser oferecida por sua própria força e sua própria invenção. Numa tal situação não há lugar para a indústria, pois seu fruto é incerto; conseqüentemente não há cultiva da terra, nem navegação, nem uso das mercadorias que podem ser importadas pelo mar; não há construções confortáveis, nem instrumentos para mover e remover as coisas que precisam de grande força; não há conhecimento da face da Terra, nem cômputo do tempo, nem artes, nem letras; não há sociedade; e o que é pior do que tudo, um constante temor e perigo de morte violenta. E a vida do homem é solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta”.

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exemplos Berthélemy17, Hauriou18, Rolland19 e Vedel20. No direito italiano, igualmente Zanobini, Manzini e Santi Romano21 pensam assim. No direito administrativo português, vale citar a definição de poder de polícia apresentada por Marcello Caetano, centrada na missão estatal de evitar o dano social, verbis: “É o modo de atuar da autoridade administrativa que consiste em intervir no exercício de direitos individuais suscetíveis de fazer perigar interesses gerais, tendo por objeto evitar que se produzam, ampliem ou generalizem os danos sociais que a lei procura prevenir”22. Como se percebe, trata-se de conceito centrado na idéia de ordem pública, já que toda atividade que produz danos sociais é forçosamente contrária à ordem. Este pensamento acabou por permear a fundamentação do poder de polícia no direito brasileiro. Vejam-se, respectivamente, as definições formuladas por Hely Lopes Meirelles e Diogo de Figueiredo Moreira Neto: “Em linguagem menos técnica, podemos dizer que o poder de polícia é o mecanismo de frenagem de que dispõe a Administração Pública para conter os abusos do direito individual. Por esse mecanismo, que faz parte de toda Administração, o Estado detém a atividade dos particulares que se revelar contrária, nociva ou inconveniente ao bem-estar social, ao desenvolvimento e à segurança nacional”23.                                                                                                                         17

Veja-se o que o autor diz a respeito do tema: “A expressão polícia designa o conjunto dos serviços organizados ou as medidas prescritivas com o objetivo de assegurar a manutenção da ordem e da salubridade no interior do país”. BARTHÉLEMY. Traité Elementaire de Droit Administratif apud BASAVILBASO, Benjamim Villegas. Derecho administrativo, t. 5. Buenos Aires: Editora Argentina, 1954, p. 18. 18

Para este autor, “O Estado (...) tem por objetivo fazer reinar a ordem e a paz pela aplicação preventiva do direito; em um sentido elevado, esse objetivo pode ser chamado de polícia”. Cf. BASAVILBASO, Benjamim Villegas. Derecho administrativo, t. 5. Buenos Aires: Editora Argentina, 1954, p. 18. 19

BASAVILBASO, Benjamim Villegas. Derecho administrativo, t. 5. Buenos Aires: Editora Argentina, 1954, p. 19: “Estima esse jurista [Rolland] que o objeto da polícia está limitado aos seguintes fins: assegurar, manter e restabelecer a ordem”. 20

VEDEL, Georges. Droit Administratif, t. 2. Paris: PUF, 1959, p. 544: “A polícia administrativa, ao contrário, não se refere à noção de infração, mas à de ordem pública; ela objetiva manter a ordem pública, independentemente da repressão a infrações”. 21

V. BASAVILBASO, Benjamim Villegas. Derecho administrativo, t. 5. Buenos Aires: Editora Argentina, 1954, pp. 25-28. 22

CAETANO, Marcelo. Princípios fundamentais do direito administrativo. Coimbra: Almedina, 1977, p. 269. 23

MEIRELLES, Hely Lopes, Direito administrativo brasileiro, 36ª. Ed., São Paulo: Malheiros, 2010, p. 134. De todas as definições analisadas, a apresentada por Hely Lopes Meirelles é a

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“Chegou-se, assim, ao atual conceito de função administrativa de polícia, por meio da qual o Estado aplica restrições e condicionamentos legalmente impostos ao exercício das liberdades e direitos fundamentais, tendo em vista a assegurar uma convivência social harmônica e pacífica”24. O modelo hobbesiano dispensa completamente o discurso dos direitos, já que, segundo o filósofo, o soberano não é parte do pacto, logo não está a ele submetido. Ele passa a existir por força do acordo de vontades entre os indivíduos, logo não pode aceder a ele. Esses, sim, que renunciam, em caráter irretratável, ao livre exercício das prerrogativas individuais presentes no estado de natureza. As noções de império estatal, supremacia geral e especial da Administração, e o princípio da supremacia do interesse público podem-se dizer derivadas desta percepção do problema social que consiste no choque de interesses individuais em atividades cotidianas, e da necessidade de um ente forte capaz de preveni-los, corrigi-los e, eventualmente, reprimi-los. Veja-se, a propósito, o discurso do filósofo inglês: “Visto que o fim dessa instituição é a paz e a defesa de todos, e visto que quem tem direito a um fim tem direito aos meios, constitui direito de qualquer homem ou assembléia que detenha a soberania o de ser juiz tanto dos meios para a paz e a defesa quanto de tudo o que possa perturbar ou dificultar estas últimas. E o de fazer tudo o que considere necessário ser feito, tanto antecipadamente, para a preservação da paz e da segurança, mediante a prevenção da discórdia no interior e da hostilidade vinda do exterior, quanto também, depois de perdidas a paz e a segurança, para a recuperação de ambas”25. (negrito acrescentado) Como se verifica da leitura até aqui empreendida, a noção vigente de poder de polícia está umbilicalmente centrada na ideia empírica hobbesiana de total impossibilidade de convivência social harmônica. A premissa antropológica é de um                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                             que dá maior margem ao exercício do poder de polícia, fazendo-o assentar na conveniência do próprio Estado e também em preceitos de segurança nacional. 24

NETO, Diogo de Figueiredo Moreira. Curso de direito administrativo. 14ª. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 395. 25

HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Trad. João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza Silva, Coleção Os Pensadores. São. Paulo: Nova Cultural. 1999, p. 63.

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homem mau, egoísta, incapaz de cooperar. Em decorrência, tem-se a construção do conceito jurídico de ordem pública e do ente capaz de assegurá-la (o Estado-Leviatã), tudo fruto do pacto de sujeição. Em pleno século XXI, é possível afirmar que (i) não há provas empíricas de que a “guerra de todos contra todos” – a premissa antropológica do Leviatã – no estado de natureza seja efetivamente verdadeira; e (ii) a noção de ordem pública deve ceder vez a uma concepção de polícia que seja centrada nos direitos fundamentais. Cabe aprofundar, ainda que brevemente, estas duas ideias. O modelo hobbesiano de limitação administrativa aos direitos fundamentais tem por pressuposto sociológico a incapacidade crônica de coordenação da própria sociedade. No “estado de natureza” os indivíduos estariam sujeitos ao eterno conflito. Em outras palavras, há uma crença imanente a tal concepção, a qual de forma alguma pode ser erigida à condição de verdade absoluta, no sentido de que as pessoas são incapazes de acomodar seus espaços de maneira coordenada, em suma, de que o exercício de direitos é sempre uma atividade conflituosa. No entanto, embora seja inegável que os conflitos existam, a premissa exagera em sua generalização. Se o conflito fosse a regra, e não a exceção, seria impossível a vida em sociedade. No âmbito jurídico, a autorregulação26 é exemplo e prova de que a sociedade civil pode ser capaz de definir limites e condições para o exercício de direitos privados sem entrar em conflito. Os autores que seguem a linha hobbesiana acabam desconsiderando tais hipóteses, que são cada vez mais comuns no âmbito das sociedades contemporâneas. Ademais, para esta concepção, somente o Estado deve ter o poder de intervir para manter e restabelecer a paz social e a segurança, pois permitir que um particular assuma esta posição (de supremacia) é obrar contrariamente ao princípio da igualdade política entre os indivíduos, que deu origem ao próprio pacto. Em outras palavras, o fundamento hobbesiano impede que se faça uma distinção que não é desconhecida pelo direito atual, sugerindo um vínculo incindível entre o público e o

                                                                                                                        26

A referência sobre o tema é a obra de MOREIRA, Vital. Auto-regulação profissional e administração pública. Coimbra: Almedina, 1997.

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estatal. É este o fundamento que vai justificar a própria indelegabilidade do poder de polícia27. Ora, sabe-se que às vezes os particulares exercem função pública (e.g., quando exercem serviços públicos por meio de delegação), ao passo que o Estado também pode ser incumbido de funções tipicamente privadas (e.g., quando intervém na economia por interesse público relevante, na forma do art. 173 da Constituição Federal). No poder de polícia, a visão hobbesiana repercute por meio das ideais de absoluta indelegabilidade, admitida somente em hipóteses excepcionalíssimas, e impossibilidade de exercício por pessoas privadas e por agentes que não sejam públicos, submetidos ao regime estatutário28. Há quem chegue ao exagero de afirmar que as prerrogativas públicas e o Estado são figuras que se confundem, não sendo possível existir um sem o outro29. O Supremo Tribunal Federal acabou por acatar a ideia de que somente o Estado pode exercer o ius imperii, sendo vedada qualquer delegação de tal poder a particulares, com exceção daquelas relacionadas à prática de atos materiais de polícia. A tese assentou-se no julgamento da ADI nº. 1.717, em que foram impugnados                                                                                                                         27

MELO. Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo, 2007, p. 815: “A restrição à atribuição de atos de polícia a particulares funda-se no corretíssimo entendimento de que não se lhes pode, ao menos em princípio, cometer o encargo de praticar atos que envolvem o exercício de misteres tipicamente públicos quando em causa liberdade e propriedade, porque ofenderiam o equilíbrio entre os particulares em geral, ensejando que uns oficialmente exercessem supremacia sobre outros”. 28

A justificativa oficial é que somente estes gozam das prerrogativas necessárias à prática de atos administrativos, o que não ocorreria com aqueles que estão sob o regime celetista comum. Ora, a grande diferença em sustentação da tese era que o servidor público não poderia perder o cargo sem justa causa, como acontece com o empregado. Contudo, após a Emenda Constitucional nº. 19/98, o servidor público pode perder o cargo sem ter dado causa, na chamada “exoneração por excesso de quadro”, prevista no art. 169, §§3º e 4º, da Constituição Federal de 1988. Além disso, o servidor não tem direito à imutabilidade do seu regime jurídico, segundo linha jurisprudencial pacífica do Supremo Tribunal Federal. Por fim, e em reforço ao exposto, a afirmação de que as garantias próprias do regime estatutário são essenciais ao exercício do poder de polícia significa que os servidores em estágio probatório e experimental (este último onde existente) não poderiam praticar qualquer ato administrativo até o término da fase, o que não ocorre na prática. 29

PIRES, Luis Manuel Fonseca. Limitações administrativas à liberdade e à propriedade. São Paulo: Quartier Latin, 2006, p. 240: “O poder das limitações administrativas à liberdade e à propriedade, o poder da supremacia geral, não é mero atributo do Estado a despeito do qual fosse possível perquirir a possibilidade de cedê-lo ou renunciá-lo em alguma circunstância; este poder não faz parte do Estado, mas é o próprio Estado, integra-o como um elemento sem o qual deixaria de existir.”

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dispositivos da Lei Federal nº. 9.649/98, dentre os quais aqueles que transformavam as autarquias de fiscalização profissional em entidades privadas30. A ementa do acórdão cristaliza a posição da Corte Constitucional brasileira: “DIREITO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 58 E SEUS PARÁGRAFOS DA LEI FEDERAL Nº 9.649, DE 27.05.1998, QUE TRATAM DOS SERVIÇOS DE FISCALIZAÇÃO DE PROFISSÕES REGULAMENTADAS. (...) Com efeito, não parece possível, a um primeiro exame, em face do ordenamento constitucional, mediante a interpretação conjugada dos artigos 5º, XIII, 22, XVI, 21, XXIV, 70, parágrafo único, 149 e 175 da C.F., a delegação, a uma entidade privada, de atividade típica de Estado, que abrange até poder de polícia, de tributar e de punir, no que tange ao exercício de atividades profissionais. 5. Precedente: M.S. nº 22.643. 6. Também está presente o requisito do "periculum in mora", pois a ruptura do sistema atual e a implantação do novo, trazido pela Lei impugnada, pode acarretar graves transtornos à Administração Pública e ao próprio exercício das profissões regulamentadas, em face do ordenamento constitucional em vigor. 7. Ação prejudicada, quanto ao parágrafo 3o do art. 58 da Lei nº 9.649, de 27.05.1998. 8. Medida Cautelar deferida, por maioria de votos, para suspensão da eficácia do "caput" e demais parágrafos do mesmo artigo, até o julgamento final da Ação”31. (negrito acrescentado) Os artigos citados na ementa, se analisados um a um, não dizem que o poder de polícia não pode ser delegado, como bem pontuado pelo Min. Maurício Corrêa em seu voto divergente. Os dispositivos do art. 22, XVI32, e art. 21, XXIV33, ambos da Constituição Federal, e únicos verdadeiramente pertinentes para a discussão, de maneira alguma vedam a delegação do poder de polícia, mas apenas afirmam que certas competências serão exercidas pela União Federal. O Ministro indica que a                                                                                                                         30

Lei nº. 9.649/98: “Art. 58. Os serviços de fiscalização de profissões regulamentadas serão exercidos em caráter privado, por delegação do poder público, mediante autorização legislativa. (...) § 2º. Os conselhos de fiscalização de profissões regulamentadas, dotados de personalidade jurídica de direito privado, não manterão com os órgãos da Administração Pública qualquer vínculo funcional ou hierárquico”. 31

STF, ADI 1717-MC, Rel. Min. Sydney Sanches, DJ 25.02.2000.

32

CF88: “Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: (...) XVI - organização do sistema nacional de emprego e condições para o exercício de profissões;”. 33

CF88: “Art. 21. Compete à União: (...) XXIV - organizar, manter e executar a inspeção do trabalho;”.

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Constituição admitiu expressamente a delegação para o caso dos serviços notariais e de registro, conforme se pode extrair do art. 236 do texto constitucional. Cabe acrescentar, por fim, que o Mandado de Segurança nº. 22.643, precedente mencionado, não afirmou a exclusividade do manejo do poder de polícia por pessoas jurídicas de direito público, mas apenas firmou a tese que os conselhos de classe estão sujeitos à fiscalização dos tribunais de contas, já que as verbas que arrecadam, pela via tributária, constituem dinheiro público. Não se deve confundir a fiscalização de Tribunais de Contas, cujo pressuposto é unicamente a utilização da verba pública, com o caráter público ou privado do ente fiscalizado. Com efeito, e a título de exemplo, as associações civis que recebem verbas públicas, em razão de sua qualificação como organizações sociais ou organizações da sociedade civil de interesse público, estão sujeitas à fiscalização das Cortes de Contas, mas nem por isso são pessoas jurídicas de direito público. A decisão adotada pelo Supremo Tribunal Federal, a bem da verdade, esconde um nítido viés ideológico, bem expresso no voto do Min. Sepúlveda Pertence: “Sr. Presidente, tenho acentuado já em outros casos, como os relativos à polícia de trânsito, que a onda neoliberal, ou qual nome tenha, ainda não chegou ao ponto de privatizar o poder de polícia. E o que se discute aqui é uma das modalidades do poder de política mais sérios, porque envolve uma das liberdades fundamentais do cidadão, a do exercício profissional, acrescido, ademais, com poder tributário; e como se não bastasse, com imunidade tributária”. O argumento ideológico não pode ser respondido no interior do discurso jurídico, já que a este não pertence. Porém, resta clara a visão salvacionista e maniqueísta que marca a discussão sobre a delegação do poder de polícia: de um lado situa-se o Estado bom, capaz de salvar a sociedade de seus próprios males; e de outro, a sociedade e seus agentes viciados, os quais, se deixados sozinhos, estarão fadados à autodestruição. Em suma, erigiu-se uma rígida dicotomia entre Estado cum imperio e sociedade sine imperio34, que não é de índole constitucional, mas tão-somente, repita-se,                                                                                                                         34

GONÇALVES, Pedro. Entidades privadas com poderes públicos. Coimbra: Almedina, 2005, p. 35: “As várias experiências históricas que ilustram o exercício de poderes públicos por entidades privadas baseiam-se pois numa dicotomia, entre, por um lado, a esfera do governo,

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ideológica. O manejo privado do poder de polícia não precisa ser colocado sempre nestes termos, o que pode ser provado por singela remissão a alguns exemplos práticos. Em primeiro lugar, sabe-se que os instrumentos de delegação de serviços públicos foram pensados para viabilizar a prestação deles quando o Estado não tem meios de responder adequadamente às demandas sociais. Assim, convoca-se um particular para que prestar assistência ao poder público, transferindo-lhe a execução do serviço. Contudo, o ato de delegação não importa apenas na transferência de competências prestacionais para o particular, mas também lhe são passados poderes de fiscalização relativamente aos usuários do serviço. Nesse contexto, é inegável que as concessionárias acabam por exercer, em alguma medida, a fiscalização de polícia no âmbito do serviço público que executam. Perceba-se que, em todos estes casos, a delegação de poder de polícia para particulares representam uma forma de incremento dos direitos fundamentais, e não uma violação a tais direitos. O que se pretende é deixar que o executor do serviço público, que está em contato direto com o usuário, realize a fiscalização e, eventualmente, tome medidas de polícia com vistas à conservação de outros direitos (como à incolumidade física do próprio utente e de terceiros, ou a proteção dos bens afetados à prestação do serviço). A delegação do poder de polícia a pessoas privadas não amesquinha, por si só, os direitos fundamentais, mas pode ter o efeito inverso, isto é, incrementar a sua efetividade. Além da delegação direta de poderes de autoridade pelo titular da função de polícia, é possível identificar outra forma de exercício de poder de polícia por particulares: a denominada autorregulação. Entidades privadas muitas vezes editam os próprios regulamentos, julgam as questões e executam as decisões, o que pode significar a exclusão de indivíduos de espaços sociais importantes, como o mercado mobiliário. Diante de tantas perplexidades, não é possível acreditar na suficiência de um modelo de função administrativa que se alicerça em noção que está fora do direito, que                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                             da soberania, do poder, do imperium, em cujo âmbito há organizações e pessoas colocadas – pela lei, pela força ou pela propriedade – numa posição jurídica de supremacia, e, por outro lado, a esfera dos cidadãos ou dos particulares: de um lado, o Estado cum imperio, do outro, a Sociedade sine imperio.” (grifos no original)

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desconhece a centralidade dos direitos fundamentais e que confia, tão-somente, na legalidade para impor limites à Administração Pública.

I.2. A justificação metodológica: o problema da colisão in concreto de direitos A fundamentação metodológica do poder de polícia é tratada apenas em caráter secundário pelos manuais de direito administrativo brasileiro. Embora negligenciada, ela pode ser considerada um refinamento em relação ao modelo teórico anterior. De acordo com esta visão, atribuir ao Estado a tarefa de delimitar ou restringir direitos, quando concretamente exercitados, deriva de um problema essencialmente normativo, e não da necessidade imediata de garantir a ordem pública. Como os direitos em geral, e os direitos fundamentais em particular, são assegurados em caráter conjunto e universal, é natural esperar que ocorram colisões no seu exercício em situações concretas, das quais surge a necessidade de acomodação. Um exemplo ajuda a esclarecer. A Constituição Federal de 1988 atribuiu, sem distinção, o direito de liberdade, o qual seguramente compreende o direito de ir e vir nas vias públicas (art. 5º, caput e XV), e também o direito à liberdade de manifestação (art. 5º, IV), e à liberdade de reunião (art. 5º, XVI), dispensada a necessidade de consentimento da Administração Pública. Estes direitos entram em flagrante colisão quando a manifestação ocorre em vias públicas, impedindo que os usuários utilizem o bem público de uso comum do povo. Deste dilema surge a necessidade de agir, por parte do Estado, a fim de amoldar o exercício de direitos constitucionalmente previstos em caráter abstrato, mas que concretamente entram em conflito. Este modo de fundamentar o poder de polícia é atribuído ao italiano Renato Alessi, citado por Celso Antônio Bandeira de Mello, confira-se: “Convém desde logo observar que não se deve liberdade e propriedade com direito de liberdade e propriedade. Estes últimos são expressões daquelas, como admitidas em um dado sistema normativo.

confundir direito de porém tal Por isso, 14  

 

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rigorosamente falando, não há limitações administrativas ao direito de liberdade e ao direito de propriedade – é a brilhante observação de Alessi –, uma vez que estes simplesmente integram o desenho do próprio perfil do direito. São elas, na verdade, a fisionomia normativa dele. Há, isto sim, limitações à liberdade e à propriedade”35. Igualmente para o italiano Presutti, para quem “as limitações à liberdade e a propriedade privada por causa do interesse público (...) devem classificarse em duas grandes categorias: negativas e positivas. As limitações negativas constituem a mera definição da liberdade e da propriedade individual”36. No Brasil, no mesmo sentido é a conceituação de Clóvis Beznos: “Polícia administrativa é a atividade administrativa, exercitada sob previsão legal, com fundamento numa supremacia geral da Administração, e que tem por objeto ou reconhecer os confins dos direitos, através de um processo, meramente interpretativo, quando derivada de uma competência vinculada, ou delinear os contornos dos direitos, assegurados no sistema normativo, quando resultante de uma competência discricionária, a fim de adequá-los aos demais valores albergados no mesmo sistema, impondo aos administrados uma obrigação de não fazer”37. Vale aprofundar tais ideias. Em primeiro lugar, cabe distinguir entre as atividades de restrição (ou constrição, limitação) e delimitação (ou configuração, conformação) de direitos. No primeiro caso, há uma compressão dos espaços a que o direito poderia alcançar se analisado em abstrato. Por exemplo, o titular de um imóvel pode considerar incluída em suas faculdades decorrentes do direito de propriedade a prerrogativa de construir um prédio de cinco andares. Porém, determinado Município pode, sob o pretexto de regular as construções (polícia edilícia), proibir que as construções sejam superiores a três andares. Aqui, tem-se uma atividade de restrição a um direito individual.

                                                                                                                        35

MELO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 24ª. Ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 794. 36

Presutti, Instizuioni di Diritto Admministrativo Italiano, p. 243 apud BASAVILBASO, Benjamim Villegas. Derecho administrativo, t. 5. Buenos Aires: Editora Argentina, 1954, p. 21. Negrito acrescentado ao trecho. 37

BEZNOS, Clóvis. Poder de polícia. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1979, p. 76.

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Por outro lado, a atividade de limitação consiste em demarcar a fronteira que separa o “direito” do “não-direito”, isto é, as faculdades e prerrogativas que podem ser legitimamente extraída do enunciado normativo que confere o direito em abstrato. Exemplo clássico de limitação é utilizar a prerrogativa de liberdade de manifestação artística (art. 5º, IX, da CF88) para pintar um quadro na principal avenida da cidade, interrompendo completamente o trânsito de veículos. Não se pode dizer que a conduta do artista, neste caso, está albergada pelo direito mencionado, já que a liberdade de manifestação artística possui limites próprios para o seu exercício. Nesta hipótese não há limitação, mas sim delimitação. A Administração age para impedir uma conduta que, em último grau, não é lícita. O debate entre a limitação e conformação de direitos é já antigo no âmbito da metodologia do direito, sendo especialmente relevante no âmbito da teoria dos direitos fundamentais38. Nesta seara se costuma distinguir entre a teoria interna dos direitos fundamentais, que simplesmente recusa a colisão de direitos fundamentais, e a externa. Para os adeptos da teoria interna, os direitos possuem um âmbito próprio de aplicação, sendo certo que a (falsa) colisão é o indício de que um dos indivíduos transpassou tal círculo. O problema dos direitos fundamentais é encontrar o justo limite de cada um, atividade que deu origem ao princípio da concordância prática no direito constitucional. Na teoria interna o Estado não pode restringir os direitos fundamentais. Desponta como principal defensor desta concepção o alemão Friedrich Müller. De outro lado, a teoria externa dos direitos fundamentais sustenta a vocação expansiva de tais direitos e defende a utilização da ponderação como método jurídico para superar o conflito. Como assinala Robert Alexy, a referida teoria pressupõe a existência de duas categorias jurídicas: o direito em si, que não está restringido, e o direito restringido, precisamente o que sobra quando se colocam as restrições. Tal concepção entende com tarefa da interpretação constitucional: (i) identificar o conteúdo do direito (seus contornos máximos, sua esfera de proteção) e (ii)

                                                                                                                        38

A propósito do tema, confira-se a obra de PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Interpretação constitucional e direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.

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precisar os limites externos que decorrem da necessidade de conciliá-lo com outros direitos e bens constitucionalmente protegidos39. Em todo caso, parece clara a incapacidade do ordenamento jurídico de fornecer pautas abstratas a priori capazes de impedir que haja alguma margem de liberdade de atuação do administrador. Este é um ponto consensual: o defensor da teoria interna sustentará a necessidade de concordância prática entre direitos; o adepto da teoria externa dará ao intérprete a possibilidade de ponderar in concreto. Contudo, não se pode deixar de afirmar que constitui inegável paradoxo atribuir ao Estado a tarefa de limitar ou delimitar os direitos fundamentais, os quais, em última instância, servem para o fim de constranger a própria ação estatal. É como entregar ao presidiário a chave do cárcere, deixando ao seu talante definir quando e como ficará cativo. Esta é uma crítica óbvia ao modelo metodológico. Em contrapartida, a vantagem deste modelo em relação ao anterior consiste no abandono da noção de ordem pública como fundamento para o exercício do poder de polícia. Aqui esta é consequência e não causa para a ação estatal. Abandona-se o pecado original autoritário que fundamenta o poder de polícia, mas, contudo, não se apresenta um substituto legítimo. Neste sentido, vale mencionar que a conhecida frase de Norberto Bobbio, no sentido de que “o problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje, não é tanto de justificá-los, mas de protegê-los”40, parece deixar a descoberto uma parcela importante do fenômeno jurídico, que consiste precisamente na necessidade de legitimação, exigência própria de uma sociedade que já não é mais positivista. Daí a pertinente observação de Ricardo Lobo Torres, que afirma: “se realmente a problemática da eficácia é importante, nem por isso pode se sobrepor ou levar ao esquecimento a legitimação”, e arremata o autor, “a resposta ao problema da justificação projeta consequências jusfundamentais na prática constitucional”41.

                                                                                                                        39

Cf. PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Interpretação constitucional e direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pp. 139-151. 40

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 24.

41

TORRES, Ricardo Lobo. “Introdução”. Ricardo Lobo Torres (org.). Legitimação dos direitos humanos. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, pp. 2-3.

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Ora, ao afirmar que o seu exercício deriva da necessidade de restringir ou delimitar o exercício dos direitos fundamentais, os quais, por sua vocação expansiva, acabam por colidir, transfere-se o problema do poder de polícia para uma questão de positivação de direitos. Mas isso não esvazia a necessidade de legitimação. Logo, o modelo metodológico, embora represente inegável avanço frente às teorias anteriores, não pode ser adotado sem ressalvas. O problema das limitações administrativas não é exclusivamente uma questão de metodologia do direito ou de teoria das normas, o que significaria o esvaziamento de uma discussão que é eminentemente filosófica ou política. Quando se chama o cidadão a abrir mão de parcela de seu direito em favor do interesse público, qualquer que seja, impõe-se seja lhe dado razão substancial para tanto. Esta é uma exigência de qualquer direito administrativo que se pretenda democrático.

II. ALGUMAS IDEIAS PARA UMA NOVA TEORIA PARA O PODER DE POLÍCIA A fundamentação geral do poder de polícia na cláusula geral de ordem pública, somada a uma legalidade fragilizada pelas razões já apontadas, são elementos que propiciam o exercício arbitrário de tal função administrativa. É preciso, portanto, realizar esforços no sentido de encontrar um novo alicerce para o exercício da atividade estatal de intervenção nos direitos fundamentais, que supere as referências genéricas à ordem pública ou a defeitos na positivação de direitos, substituindo-as por uma legitimação que seja, ao mesmo tempo, democrática e ética. E a busca por esse novo fundamento conduz à necessidade de revisão da posição do papel do Estado nas sociedades contemporâneas. Em primeiro lugar, é preciso assentar a tese de que o Estado e a função pública – respectivamente, pessoa jurídica e o ius imperii – não são fins em si mesmos, mas sim instrumentos a serviço de uma missão maior; são elementos que servem à cooperação para a realização e o desenvolvimento da personalidade humana42.                                                                                                                         42

DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. 24ª. Ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 107: “Procedendo-se a uma síntese de todas essas idéias, verifica-se que o Estado, como sociedade política, tem um fim geral, constituindo-se em meio para que os indivíduos e as demais sociedades possam atingir seus respectivos fins particulares. (...)

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Esta, por sua vez, é entendida como o núcleo essencial do princípio da dignidade da pessoa humana e causa última da existência do próprio Estado. Este modelo deve estar assentado em três diferentes premissas gerais, que representam a superação de paradigmas do Estado oitocentista. Em primeiro lugar, deve haver um fundamento político-filosófico renovado. Havendo perfeita distinção entre a esfera de atuação privada, reservada à sociedade, e a esfera pública, de atuação dos governantes, no Estado oitocentista tudo que era de interesse público necessariamente também era estatal, de acordo com a premissa hobbesiana. Assim, este era senhor absoluto do interesse público, detentor da primazia sobre a sociedade civil, não lhe cabendo fornecer justificativa para o seu agir. Não assim quanto ao Estado contemporâneo, que não mais pode reivindicar esta posição de supremacia sem um argumento de legitimação. Como afirmado anteriormente, a dogmática jurídica não mais prescinde de argumentos morais; eles são essenciais à nova ciência jurídica, e não podem faltar à teoria do Estado e ao direito administrativo. Contudo, não há espaço para reedição do velho e exaurido debate entre o jusnaturalismo e o positivismo. Uma teoria do poder de polícia deve recorrer à teoria democrática como fundamento de uma ética pública, onde a prevalência do Estado, quando cabível, somente pode ser resultante da discussão no espaço público e da persuasão racional entre cidadãos livres e iguais. Essa é a proposta da democracia deliberativa, assim definida por Amy Gutman e Dennis Thompson, verbis: “Podemos definir democracia deliberativa como uma forma de governo na qual cidadãos livres e iguais (e seus representantes) justificam decisões em um processo no qual eles dão uns aos outros razões que são mutuamente aceitáveis e acessíveis pelas generalidade dos partícipes, com o objetivo de alcançar conclusões que são vinculantes para os cidadãos presentes mas abertas a modificações no futuro”43.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                             Assim, pois, o desenvolvimento integral da personalidade dos integrantes desse povo é que deve ser o seu objetivo, o que determina uma concepção particular de bem comum para cada Estado, em função das peculiaridades de cada povo”. (negrito acrescentado) 43

GUTMAN, Amy; THOMPSON, Dennis. Why deliberative democracy?, Princeton: Princeton University Press, 2004, p. 7.

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Sendo assim, o poder estatal de restrição aos direitos fundamentais demanda adesão dos administrados e somente pode ser entendido num contexto de justa cooperação social. As limitações aos direitos fundamentais admissíveis são aqueles que cidadãos livres e iguais, “em busca de termos justos para a cooperação não possam razoavelmente rejeitar”44. Este é o fim último do poder de polícia: encontrar os confins dos direitos (restringindo-os ou delimitando-os) de modo a tornar viável a vida social democrática. É inadmissível que as pessoas sejam tratadas como meros objetos de legislação, mas devem ser entendidas como partes ativas no processo de edificação do espaço público. Essa forma da pensar coloca em evidência o indivíduo e a sociedade civil, superando-se o primado do Estado e a identidade imediata entre o público e o estatal. Desta forma, fica patente a necessidade de adesão dos particulares à atividade administrativa, o que torna especialmente relevante os mecanismos de atuação ditos horizontais, tais como os acordos substitutivos, dos quais o maior exemplo são os termos de ajuste de conduta celebrados no exercício do poder de polícia45. “Nesse cenário, aponta-se para o surgimento de uma Administração Pública dialógica, a qual contrastaria com a Administração Pública monológica, refratária à instituição e ao desenvolvimento de processos comunicacionais com a sociedade” 46. Em segundo lugar, uma nova teoria do poder de polícia deve possuir um novo fundamento sociológico, de certa maneira já antecipado neste texto. Em tal contexto, não se admite o exercício do poder com premissa na incapacidade moral dos indivíduos, como se o Estado fosse o superego da sociedade. No modelo novo, deve ser reconhecida a plena capacidade da sociedade civil de coordenar seus                                                                                                                         44

GUTMAN, Amy; THOMPSON, Dennis. Why deliberative democracy?, Princeton: Princeton University Press, 2004, p. 7. 45

Os termos de ajuste de conduta são um verdadeiro sucesso no âmbito do poder de polícia ambiental. 46

OLIVEIRA, Gustavo Justino de. Direito administrativo democrático. Belo Horizonte: Fórum, 2010, p. 217.

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interesses e suas demandas, de modo que a atividade interventiva estatal deve ser sempre pautada pela subsidiariedade. Partindo de tal premissa, é reconhecida a plena possibilidade de bipartição entre público e o estatal, nos termos seguintes: “Público significa ‘o que é comum, pertence a todos, é do povo, pelo que, opondo-se a privado, se mostra que não pertence nem se refere ao indivíduo ou ao particular’ (SILVA, 2000, p. 661). A esfera pública inclui as questões da coletividade, que estão para além do indivíduo, da família e dos grupos restritos. O público é mais abrangente que o estatal. Ele manifesta-se em duas modalidades: público estatal e público não estatal. Apenas num hipotético ‘Estado total’, em que o Estado fosse o sujeito de todas as iniciativas coletivas, é possível pensar em uma identificação plena entre um e outro. Em sociedades complexas e pluralistas, além dos entes estatais, o público inclui uma gama de organizações e instituições que prestam serviços de interesse coletivo, ou seja, são públicas não estatais. (BRESSER PEREIRA, 1997)”.47 (negrito acrescentado) Em outras palavras, o interesse público pode recomendar que o Estado aja na qualidade de particular, coordenando-se com os demais atores privados, e que a sociedade civil, em determinadas hipóteses, haja com poder de império, desde que tal delegação seja justificada e cercada de garantias aos direitos dos envolvidos. É sobre essa premissa que se entenda legítima a delegação de poder para particulares no exercício das competências executórias de serviços públicos. Acresça-se que o Supremo Tribunal Federal, por ocasião do julgamento da ADI nº. 3.026/DF, já flertou com este avanço teórico. Neste julgado, a corte reconheceu a natureza pública não-estatal da Ordem dos Advogados do Brasil, qualificando-a como serviço público independente48. Em outras palavras, o Tribunal                                                                                                                         47

SCHMIDT, João Pedro. “O comunitário em tempos de público não estatal”. Avaliação (Campinas) [online]. 2010, vol.15, n.1, p. 34. 48

STF, ADI 3026-DF, Rel. Min. Eros Grau, DJ 29.09.2006. Confira-se a emente: “AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. § 1º DO ARTIGO 79 DA LEI N. 8.906, 2ª PARTE. "SERVIDORES" DA ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL. PRECEITO QUE POSSIBILITA A OPÇÃO PELO REGIME CELESTISTA. COMPENSAÇÃO PELA ESCOLHA DO REGIME JURÍDICO NO MOMENTO DA APOSENTADORIA. INDENIZAÇÃO. IMPOSIÇÃO DOS DITAMES INERENTES À ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DIRETA E INDIRETA. CONCURSO PÚBLICO (ART. 37, II DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL). INEXIGÊNCIA DE CONCURSO PÚBLICO PARA A ADMISSÃO DOS CONTRATADOS PELA OAB. AUTARQUIAS ESPECIAIS E AGÊNCIAS. CARÁTER JURÍDICO DA OAB. ENTIDADE PRESTADORA DE SERVIÇO PÚBLICO INDEPENDENTE. CATEGORIA ÍMPAR NO ELENCO DAS PERSONALIDADES

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afirmou que a instituição de classe dos advogados, embora possua natureza pública em razão da função que desempenha, não é estatal, já que não está formalmente vinculada à estrutura do Estado49. Ademais, o tribunal reconheceu a possibilidade de exercício de poder de polícia das profissões por entidades não-estatais, avançando, assim, com relação à posição adotada no julgado da ADI nº. 1.717/DF, já mencionada neste texto. Esses dois elementos reunidos devem ser sopesados na construção de uma nova teoria do poder de polícia, desgarrada das noções hobbesiana ou no problema metodológico apontado. À luz desses elementos, a função estatal de polícia deve ser compreendida como a força pública de conformação de direitos que serve de suporte à cooperação social democrática e à realização dos direitos da pessoa humana.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                             JURÍDICAS EXISTENTES NO DIREITO BRASILEIRO. AUTONOMIA E INDEPENDÊNCIA DA ENTIDADE. PRINCÍPIO DA MORALIDADE. VIOLAÇÃO DO ARTIGO 37, CAPUT, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. NÃO OCORRÊNCIA. 1. A Lei n. 8.906, artigo 79, § 1º, possibilitou aos "servidores" da OAB, cujo regime outrora era estatutário, a opção pelo regime celetista. Compensação pela escolha: indenização a ser paga à época da aposentadoria. 2. Não procede a alegação de que a OAB sujeita-se aos ditames impostos à Administração Pública Direta e Indireta. 3. A OAB não é uma entidade da Administração Indireta da União. A Ordem é um serviço público independente, categoria ímpar no elenco das personalidades jurídicas existentes no direito brasileiro. 4. A OAB não está incluída na categoria na qual se inserem essas que se tem referido como "autarquias especiais" para pretender-se afirmar equivocada independência das hoje chamadas "agências". 5. Por não consubstanciar uma entidade da Administração Indireta, a OAB não está sujeita a controle da Administração, nem a qualquer das suas partes está vinculada. Essa não-vinculação é formal e materialmente necessária. 6. A OAB ocupa-se de atividades atinentes aos advogados, que exercem função constitucionalmente pr ivilegiada, na medida em que são indispensáveis à administração da Justiça [artigo 133 da CB/88]. É entidade cuja finalidade é afeita a atribuições, interesses e seleção de advogados. Não há ordem de relação ou dependência entre a OAB e qualquer órgão público. 7. A Ordem dos Advogados do Brasil, cujas características são autonomia e independência, não pode ser tida como congênere dos demais órgãos de fiscalização profissional. A OAB não está voltada exclusivamente a finalidades corporativas. Possui finalidade institucional. 8. Embora decorra de determinação legal, o regime estatutário imposto aos empregados da OAB não é compatível com a entidade, que é autônoma e independente. 9. Improcede o pedido do requerente no sentido de que se dê interpretação conforme o artigo 37, inciso II, da Constituição do Brasil ao caput do artigo 79 da Lei n. 8.906, que determina a aplicação do regime trabalhista aos servidores da OAB. 10. Incabível a exigência de concurso público para admissão dos contratados sob o regime trabalhista pela OAB. 11. Princípio da moralidade. Ética da legalidade e moralidade. Confinamento do princípio da moralidade ao âmbito da ética da legalidade, que não pode ser ultrapassada, sob pena de dissolução do próprio sistema. Desvio de poder ou de finalidade. 12. Julgo improcedente o pedido”. 49

V. SUNDFELD, Carlos Ari; CÂMARA, Jacintho Arruda. “Conselhos de fiscalização profissional: entidades públicas não-estatais”. Revista de Direito do Estado nº. 04, 2006, p. 323: “A superação desse impasse se dá com a separação de duas realidades distintas: a natureza pública, de um lado, e a estatal, de outro. Todavia, por vezes, esta distinção é esquecida. De um modo geral se pretende vincular a natureza de direito público à estrutura burocrática que integra o Estado. A premissa da qual se parte é a de que, por ser público, o ente também seria, necessariamente, estatal. A recíproca também é tida como verdadeira. Desta outra forma entende-se que se não for estatal, o ente só poderia ostentar natureza jurídica de direito privado”.

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III. SÍNTESE CONCLUSIVA O direito administrativo é, dentre os ramos clássicos do direito, aquele de desenvolvimento mais recente. Ele é mais novo que o direito constitucional, e certamente ainda um infante se comparado com o direito civil. Não bastasse isso, em razão das modificações das tarefas do Estado e do dinamismo nas relações deste com a sociedade civil, o direito administrativo não pode gozar da mesma estabilidade do direito privado, cujas categorias remontam há mais de um milênio. Disto decorre a obrigação de sua constante releitura e adaptação. O tema “poder de polícia” é um assunto que está presente no diaa-dia da cidadania, quando se dirige um veículo nas vias públicas, quando se compra medicamentos, quando se constrói uma casa. Em tempos de expansão vertiginosa da tecnologia, o espaço de liberdade do cidadão tem se ampliado e o exercício legítimo do poder de polícia emerge como garantia essencial à segurança, à paz e à convivência pacífica e harmoniosa. Já se sabe que a demanda hoje é por mais Estado, e não menos Estado. Mais do que nunca a regulação pública dos domínios da liberdade – aparentemente ilimitada pela expansão da tecnologia – torna-se imperiosa. Essa regulação, contudo, não pode ser feita sem mais explicações e de modo unilateral. Pelo contrário, ela demanda intensa justificação constitucional. O pressuposto do poder de polícia não pode mais ser o homem hobbesiano, mas deve reconhecer os indivíduos como sujeitos de direito, autônomos e capazes de cooperar socialmente. Uma teoria do poder de polícia compatível com a ordem constitucional de 1988 deve reconhecer a sua subsidiariedade, com primazia da autorregulação, e a necessidade de participação dos regulados nas decisões públicas coletivas e individuais.

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IV. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976. Coimbra: Almedina, 1976. ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências reguladoras e a evolução do direito administrativo econômico. Rio de Janeiro: Forense, 2004. ______. “A concepção pós-positivista do princípio da legalidade”. Revista de Direito Administrativo, v. 236, pp. 51/64. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. ______. Direito dos serviços públicos, Rio de Janeiro: Forense, 2008. BARCELLOS, Ana Paula de. Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. BASAVILBASO, Benjamim Villegas. Derecho administrativo, t. 5. Buenos Aires: Editora Argentina, 1954 BEZNOS, Clóvis. Poder de polícia. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1979. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992. CAETANO, Marcelo. Princípios fundamentais do direito administrativo. Coimbra: Almedina, 1977. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 23ª. Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. CRETELLA JÚNIOR, José. Do poder de polícia, Rio de Janeiro: Forense, 1999. DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. 24ª. Ed. São Paulo: Saraiva, 2003. ENGISCH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. 8ª. Ed. Trad. Nelson Baptista Machado. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2001. FIGUEIREDO, Lucia Valle. Curso de direito administrativo. 7ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2006. GASPARINI, Diógenes. Direito administrativo. 7ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2002. GONÇALVES, Pedro. Entidades privadas com poderes públicos. Coimbra: Almedina, 2005. GUTMAN, Amy; THOMPSON, Dennis. Why deliberative democracy?, Princeton: Princeton University Press, 2004. 24    

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HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Trad. João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza Silva, Coleção Os Pensadores. São. Paulo: Nova Cultural. 1999. JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 2ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2006. LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 3ª. Ed. Trad. José Lamego. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1997. MAURER, Hartmut. Direito administrativo geral. Trad. Luís Afonso Heck. Barueri: Manole, 2006. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro, 36ª. Ed., São Paulo: Malheiros, 2010. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 19ª edição, São Paulo: Malheiros, 2005. MOREIRA, Vital. Auto-regulação Profissional e Administração Pública, Coimbra: Almedina, 1997. MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo: parte introdutória, parte geral e parte especial. 12ª edição, Rio de Janeiro: Forense, 2004. ______. Quatro paradigmas do direito administrativo pós-moderno: legitimidade, finalidade, eficiência e resultados. Belo Horizonte: Fórum, 2008. MÜLLER, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional. Trad. Peter Naumann. 3ª. Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. NADER, Paulo. Introdução ao estudo do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2001. OLIVEIRA, Gustavo Justino de. Direito administrativo democrático. Belo Horizonte: Fórum, 2010. OSÓRIO, Fábio Medina. Direito administrativo sancionador. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. PEREIRA,

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