Revisões Literárias; Literatura Sinológica no Brasil - Apontamentos e Avaliações

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André [André Bueno]: Revisões Literárias. Literatura Sinológica no Brasil: apontamentos e avaliações. Rio de Janeiro, 2016. ISBN 978-85-65996-37-2

REVISÕES LITERÁRIAS LITERATURA SINOLÓGICA NO BRASIL: APONTAMENTOS E AVALIAÇÕES

ANDRE

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Rio de Janeiro 2016

ÍNDICE

Confúcio no Brasil: Um problema Literário, 5 As dificuldades de uma tradução: um ensaio sobre o Sunzi Bingfa 孫子兵法 e o contexto cultural brasileiro, 28 A ‘Lei da Guerra’:Uma Longa Errata...,42 A Escola Chinesa dos Estrategistas no Brasil: uma revisão literária, 49

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O Daodejing no Brasil: Uma revisão literária, 66 O I jing no Brasil: Uma revisão literária, 77 Corpus Daoísta: Que Fontes para o estudo do Daoísmo no Brasil?, 90

Confúcio no Brasil: Um problema Literário

Já são quase duas décadas que me dedico à divulgação da Sinologia no Brasil. Nesse tempo, tive que refazer diversas vezes as impressões que fui construindo sobre a recepção, por parte do público acadêmico, ao estudo das histórias e culturas asiáticas. Alguma coisa já melhorou: é possível hoje, por exemplo, aprender chinês ou japonês em cursos regulares, sem a necessidade de professores particulares. No entanto, esse começo ainda é tímido. Grande parte do público interessado nesses cursos pretende carreiras no mundo comercial ou do Direito, atinando a necessidade que já se faz presente em nosso país nesse sentido. Mas os Cursos de Humanidades, em geral, continuam fechados a essas iniciativas. Ignorantes sobre aquilo que não sabem, ficam receosos com o ‘novo’ – um hábito arraigado em gente que vive de estudar o passado, sem reconhecer o ‘imenso passado’ que o mundo asiático representa. Obviamente, tais mudanças demoraram realmente a acontecer. Talvez um pouco mais em nosso contexto educacional, em que os alunos são estimulados a fazer sempre o mais fácil e simples, sem um real compromisso de aprendizado. De qualquer modo, essas reflexões retornam periodicamente ao ponto crucial da questão: como fazer para despertar o interesse dos brasileiros pelas culturas asiáticas? Na sequencia, é necessário perguntar: como pesquisar, e como ensinar, as histórias

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asiáticas? A formação histórica, filosófica e sociológica dos acadêmicos é, em geral, absolutamente esvaziada desses conteúdos. Precisamos quase sempre partir do zero. É praticamente indispensável voltar aos princípios, constantemente, para construir algum conhecimento. Nesse jogo de vaie-vem, praticamente tudo que se constrói se desfaz, e não sobrevive aos seus fundadores. O Brasil depende eternamente dos manuais de introdução, e dificilmente produz umas poucas linhas novas sobre temas asiáticos. Isso remete, diretamente, a questão que gostaria de abordar nesse breve ensaio: quem é Confúcio (-551 -479), o velho e grande sábio chinês, para o público acadêmico brasileiro? A questão ocorreu quando me dei conta dessa ausência que existiria, em nossa cultura, de sua figura. Depois de

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anos lecionando sobre a China, e mais recentemente, tentando apresentar um pouco mais sobre o movimento intelectual do Novo Confucionismo na China, me vi forçado a relacionar, mentalmente, qual era a base que possuíamos para discutir a figura de Confúcio. O próprio Mestre dizia: ‘Sem princípios comuns, é inútil discutir’. Se esses princípios forem o conjunto de conhecimentos que a academia brasileira constituiu sobre a história antiga chinesa, estaremos então em um terreno árido e desolador. Todavia, é necessário reconhecer que a quase total ausência de fontes e estudos, aliadas a uma preguiça conveniente, tornaram desestimulante – e quiçá, ‘desnecessário’, de um ponto de vista imediatista, aprender algo sobre Confúcio. A compreensão da China como um fenômeno histórico depende, intrinsecamente, de um conhecimento maior sobre o Confucionismo. Como dissemos, porém, ao olhar sobre o passado,

vemos que pouquíssimo foi publicado sobre Confúcio no Brasil. Esse breve texto, pois, examina essa ‘não-construção’ de um entendimento sobre a história de Confúcio no Brasil, buscando compreender as dificuldades que notamos, atualmente, na construção do ensino das civilizações asiáticas.

Um início religioso Curiosamente, a primeira vez que a figura de Confúcio teve destaque nos meios intelectuais foi na fundação de um dos primeiros grupos espíritas brasileiros, em 1873 – ou seja, em plena época imperial. A Sociedade de

estudos espiríticos – Grupo Confúcio surgiu na cidade do Rio de Janeiro, e durou apenas três anos. Ela congregava a nata da sociedade carioca, e tornou-se um dos principais centros de tradução e difusão da literatura espírita kardecista no país. Os mentores espirituais do grupo seriam Ismael, o espírito protetor do Brasil [que anunciou a missão espírita do Brasil perante o mundo] e Confúcio. Sim, Confúcio aparecera no Brasil, em forma espiritual, orientando os trabalhos do grupo.[1]Não nos cabe aqui analisar a questão da crença; mas de notar que a primeira inserção notável da figura de Confúcio, em nossos meios intelectuais, se deu por meio da via religiosa. O próprio espiritismo fora tratado, na época, como ‘uma epidemia mais perigosa que a febre amarela’, o que nos permite um trocadilho jocoso com Confúcio. As atividades do grupo são encerradas em 1876, por orientação de Ismael, que teria indicado a formação de um grupo substituto, intitulado Sociedade de estudos espíritas Deus, Cristo e

Caridade. Desde então, o papel de Confúcio [e de suas orientações

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espirituais] desapareceu dos meios espíritas. Não há meios disponíveis para sabermos se essa mudança foi provocada pelo perfil do espiritismo brasileiro, essencialmente voltado ao cristianismo. A presença de Confúcio [mas isso só podemos supor] daria um aspecto exótico a esse movimento religioso, preocupado em afirmar-se como uma ciência do

espírito? De qualquer modo, Confúcio é engolido pelo tempo, e só retornará as estantes brasileiras, praticamente, setenta anos depois. Nesse meio tempo, resta-nos supor, apenas, que ele teria sido lido, por uns poucos curiosos, em francês ou inglês.

A Philosophia de Confúcio , de Ignacio Raposo A China retornou aos jornais brasileiros com algum destaque em 1936,

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após a violenta invasão japonesa [considerada, por alguns, como o verdadeiro início da Segunda Guerra Mundial]. É provável que isso tenha despertado certo interesse do público leitor brasileiro sobre a cultura chinesa. Em 1939, Ignacio Raposo publica A Philosophia de

Confúcio, que consta de uma breve introdução e uma recolha de fragmentos das quatro principais obras confucionistas; Lunyu, Daxue,

Zhongyonge Mengzi (Mêncio). Pode-se dizer que pela primeira vez, no Brasil, se via um livro de introdução a obra de Confúcio. Mesmo assim, o texto era traduzido de uma versão francesa, e estava organizado de maneira ligeiramente confusa [os comentários de Zhuxi (1130 a 1200), por exemplo, são apresentados de forma solta, o que não permite ao leitor desavisado compreender quem era esse comentarista confucionista].

O Pensamento vivo de Confúcio , de Alfred Doeblin Integrante de uma série de livros que abordava os principais pensadores da humanidade, O pensamento vivo de Confúcio é uma interessante obra de introdução ao mestre chinês. Feita por Alfred Doeblin [Döblin], famoso romancista alemão, ela foi publicada pela primeira vez no Brasil em 1940, quase ao mesmo tempo em que nos Estados Unidos e na Europa. O texto sobre a vida de Confúcio é bem elaborado, embora não apresentasse referências. O projeto da coleção consistia em apresentar uma introdução e também, trechos selecionados da obra do autor. Aqui surgem as primeiras páginas dos clássicos chineses coligidos por Confúcio, além das quatro primeiras obras confucionistas. Novamente, porém, a apresentação é confusa. Os fragmentos estão desorganizados de tal forma que às vezes torna-se difícil saber onde começa termina um livro e começa outro. Há passagens misturadas, ou com a ordem trocada. Para a construção de um quadro geral da visão tradicional que existia sobre Confúcio, o livro se presta bem ao papel. No entanto, permanecia a necessidade da publicação de uma obra capaz de aprofundar o pensamento confucionista sem perder-se. O livro foi republicado diversas vezes, até o final da década de 60. Note-se que, até aqui, Confúcio continuava sendo apresentado como uma figura religiosa – ou ‘religiosizada’-, o que o tornava relativamente desinteressante para um país, quase em absoluto, cristão.

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O primeiro contato com um especialista: Lin Yutang Em 1945, a publicação de A sabedoria da China e da Índia [Pongetti, 1945] trouxe pela primeira vez, para o público brasileiro, uma obra realmente produzida por um especialista, o chinês Lin Yutang. Preocupado em apresentar o ‘Oriente’ [principalmente a China] para o público ocidental, Lin publicou inúmeros romances e coletâneas que tiveram boa recepção do público brasileiro, haja visto que quase todos os seus livros foram traduzidos para o português. A sabedoria da China e da

Índia trazia uma seleção extensa, precedida de copiosas introduções, dos textos fundamentais da civilização chinesa e indiana. A seção sobre os clássicos chineses, que trazia o Shijing [Poesias] e o Shujing [Histórias], junto com a seção específica de Confúcio, proporcionava uma bem

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elaborada apresentação sobre o sábio, bem como sobre os textos chineses, capazes de construir um bom e seguro conhecimento sobre os temas. Contudo, o cacoete das ‘traduções religiosas’ atingiu o bem escalado time de tradutores escolhidos para versar a obra em português. Há uma insistência, contínua, em valorizar [e traduzir] conceitos chineses de uma forma cristianizada. A palavra ‘Deus’ aparece tantas vezes no texto, que quase nos leva a pensar que os chineses eram monoteístas. Em parte, essas aberturas eram culpa do próprio Lin - ele mesmo um cristão, e filho de um pastor protestante chinês - e foram devidamente aproveitadas para formatar o caráter da obra. Treze anos depois, uma obra específica, intitulada A sabedoria de

Confúcio[José Olympio, 1958], trazia uma apresentação temática da obra de Confúcio. É a primeira obra em português que apresenta a

biografia de Confúcio feita por Sima Qian [-145-90], trechos do Liji [Recordações Culturais] sobre temas diversos como política e educação na China Antiga, e fragmentos esparsos das obras de Confúcio. Tais materiais tornaram o livro uma preciosidade em termos documentais, possibilitando uma leitura de fontes até então desconhecidas no país. Aventados por um especialista, isso tornava o livro uma fonte confiável de informações sobre Confúcio. No entanto, Lin Yutang era entendido nos círculos literários brasileiros como um romancista, e não um sinólogo. A recusa do caráter válido de suas obras de divulgação revelava o pesado preconceito, contra o desconhecido, que marca a sociedade brasileira. A China – e Confúcio – não podiam, ainda, ser considerados temas de estudo acadêmico, mas sim, uma moda de romances históricos.

O primeiro padre católico chinês a visitar o Brasil: Frei João Batista Se-Tsien Kao Lin Yutang tinha um forte concorrente no Brasil da época: o primeiro padre católico chinês. Em 1945, o frei João Batista Se-Tsien Kao visitaria os Estados Unidos e a América Latina, passando em nosso país para realizar diversas palestras sobre a China.[2] O mundo estava atento ao caso chinês. Após a Segunda Guerra Mundial, a China agora se digladiava num terrível guerra civil, e perigava tornar-se comunista, temor que atingia uma boa parte do mundo ocidental capitalista – e que se tornaria real em 1949. Frei João tentava convencer os cristãos do mundo a apoiar Jiang Jieshi [Chiang Kai Shek] contra os comunistas, a aproveitava para divulgar um pouco de sua própria cultura ancestral. [3]

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Duas publicações suas constituem os primeiros estudos específicos sobre confucionismo publicados no Brasil: A filosofia social e política do

Confucianismo [1952] e Confucianismo e Tridemismo [1953]. O primeiro tratava-se de uma análise sobre a vida e obra de Confúcio, bem como do Confucionismo. O segundo, numa relação panfletária entre o confucionismo e a teoria política de Sun Yatsen, o grande patrono da república chinesa. Nesse momento, ainda havia esperança de reverter o quadro de instalação do comunismo no continente; e para isso, era necessário invocar o passado da civilização chinesa, encarnado em Confúcio, cujos pressupostos milenários de ordem política e social pareciam tão necessários para a China daquele momento. O fracasso dos republicanos em manterem a China [tendo que refugiar-se

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em Taiwan], e o caráter religioso das palestras e pregações de frei João jogaram Confúcio, novamente, no limbo dos interesses intelectuais brasileiros. Em 1955, frei João já se dedicava a um congresso de praticantes de Esperanto, que seria realizado junto ao Congresso Eucarístico no Brasil, deixando de lado o antigo mestre chinês.[4] O Confucionismo parecia ser uma doutrina religiosa, anacrônica e falida, enterrada no chão chinês pela vitória comunista. De fato, nos anos seguintes, grande parte dos solitários viajantes brasileiros interessados na China iria para conhecer a experiência comunista.[5] E para muitos deles, a repetição da ladainha panfletária presente em Crítica contraLin

Piao e Confúcio [Moraes, 1975] já bastava pra explicar como Confúcio fora reacionário, feudal, etc.

Uma década de sumiço Desde então, a figura de Confúcio desapareceu dos horizontes intelectuais brasileiros. Menosprezado como uma forma religiosa acabada, a doutrina do Confucionismo não tinha porque despertar qualquer interesse acadêmico sério. Desconhecia-se o trabalho do Confucionismo filosófico asiático e norte-americano. Apostar no Confucionismo parecia, de fato, uma excentricidade inútil. Um único livro, Filosofia: Oriente e Ocidente, organizado por Charles Moore, e publicado em 1978 em São Paulo, trazia alguns ensaios sobre filosofia asiática. O livro, apesar de excelente, trazia os textos de uma conferência realizada em 1939! Ainda assim, foi um dos primeiros esforços em apresentar as filosofias asiáticas de forma séria. No entanto, isso seria rapidamente eclipsado pela retomada dos saberes asiáticos pela via esotérica. É o esoterismo brasileiro que iria resgatar Confúcio, Buda e outros pensadores asiáticos. Inseridos na caótica sistematização da ‘sabedoria universal’ esotérica, os ‘mestres orientais’ começaram a ressurgir nas mesas dos centros esotéricos, dividindo espaço com meditação transcendental, artes marciais, astrologia, runas, cristais e tarôs. Lidos de forma superficial, os pensadores asiáticos eram enquadrados numa forma de crença religiosa sem contornos definidos, senão pelo seu papel sapiencial e exótico, que se contrapunha o que era visto como dogmatismo religioso [isto é, o cristianismo institucionalizado das igrejas].

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Captando essa tendência, que iria se desenvolver fortemente nos anos seguintes, a editora Pensamento [especializada em publicações desse campo] publicou a primeira edição dos Analectos, traduzida por Múcio P.

Ferreira,

em

1968.

Pode-se

dizer

que

foi

a

primeira

versão quasecompleta do Lunyu publicada no Brasil [no início do texto, o autor admite ter omitido certos trechos relativos aos discípulos de Confúcio]. Quase metade do livro, no entanto, é uma excelente introdução a Confúcio, e vale a sua aquisição. Essa versão reinou solitária nas estantes das livrarias brasileiras, e foi relançada em 1986, obtendo um relativo sucesso. Talvez não fosse o caso de classificar a tradução de Múcio como ‘esotérica’, mas esse foi o seu grande mercado consumidor, dada a editora que o vinculou e o interesse dos leitores; é um problema

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reincidente com sinólogos ter que lidar com este tipo de situação [eu passo pelo mesmo até hoje]. Um esforço pouco conhecido foi o de Ginés Gebran, que publicou uma tradução dos quatro livros de Confúcio [do francês] em 1974, intitulada A doutrina de Confúcio, e de fato, a primeira completa em todo Brasil. Ginés também publicou Mêncio, em volume separado. Embora sua produção pudesse ser vinculada, também, ao ‘esoterismo’ [dadas suas relações com o Instituto Pitagórico de Curitiba], sua tradução [embora indireta] era cuidadosa e bem feita, o que lhe concedia um caráter especial e bastante aproveitável no conjunto das traduções de Confúcio. O problema insolúvel do afastamento acadêmico em relação ao ‘Oriente antigo’ permanecia. Na década de 70, um autor se destacou tentando

encurtar essa distância. Murillo Nunes de Azevedo publicou o livro O

Olho do Furacão em 1973, fazendo uma breve apresentação das principais linhas de pensamento asiáticas [indiana, chinesa e japonesa]. Murillo era monge budista, professor universitário, e membro da sociedade teosófica. Obviamente, pois, seu livro mantinha o tom religioso com o qual se abordavam as doutrinas ‘orientais’ [e a própria apresentação delas, em conjunto mantém, em si, certos problemas]. No entanto, o livro foi relançado em 1987[com o nome de O pensamento

do extremo Oriente], e continuou a ser, também, uma das poucas [e podemos dizer, boas] introduções – na qual Confúcio estava incluído – sobre os pensares asiáticos.

Década de Oitenta: a fabulosa obra do Padre Guerra Nos anos 80, o jesuíta português Joaquim Guerra iniciou a tradução completa de todas as obras de Confúcio para o português – tantos os clássicos chineses como os livros do próprio Confúcio e Mêncio – algo absolutamente inédito em nossa língua. Era a primeira vez que Confúcio era vertido diretamente do chinês, e não uma tradução de outras traduções. Os trabalhos foram feitos em Macau, e não se incluiriam em nossa breve análise sobre Confúcio no Brasil, se não fosse pela abnegação de alguns poucos que se esforçaram em trazer exemplares dessa obra para cá. Em São Paulo, a distribuição dos exemplares ficou a cargo da pequena editora Rosita Kempf; no Rio de Janeiro, alguns jesuítas ficaram conhecidos entre os livreiros do centro da cidade por andarem com grandes malas, cheias de livros, a venderem de porta em porta. Tanto

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esforço se dava pelo caráter magnífico do projeto: até então, ninguém se arriscara a empreender uma obra desse fôlego e originalidade. Infelizmente, contudo, a distribuição era irregular, distante e difícil [lembremos, não havia internet]. Dependia-se de catálogos, ou mesmo do contato com os religiosos, para receber os exemplares – às vezes, com previsão

anual, às vezes sem

previsão.

Somava-se

a isso

o

desconhecimento do público, e o complicado [mas brilhante] sistema de transliteração de nomes chineses que o Padre Guerra criara e utilizava, mas que afastava muitos principiantes. Dentro da melhor tradição jesuíta, o Padre Guerra esperava converter Confúcio à tradição cristã, inserindo-o numa genealogia da anunciação de Deus na Terra. Assim sendo, não poderíamos esperar outro Confúcio

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dele, senão aquele mais próximo de um profeta bíblico. Todavia, suas traduções são excelentes, e poderiam ter aberto um caminho interessante para os estudos confucionistas. Mas nem os religiosos, e nem esotéricos, se interessaram pelo seu trabalho. Suas introduções eram bem feitas [embora algumas fossem essencialmente proselitistas], mas os volumes grossos e simples não eram atraentes. Definitivamente, o público não estava preparado para essas publicações, que mesmo assim percorreram o Brasil por quase uma década, ocasionalmente, enquanto foram produzidas. [6]

Diálogos de Confúcio , de Anne Cheng (1983) Uma nota especial deve ser dedicada aos Diálogos de Confúcio, publicado em 1983 pela editora Ibrasa. Trata-se de uma tradução da

versão francesa do Lunyu de Anne Cheng, renomada sinóloga sinofrancesa e especialista em Confucionismo Han. É a primeira versão filosófica do Lunyu apresentada ao público brasileiro, sem a pesada carga religiosa que se impunha as outras versões. A tradução brasileira [ainda que feita com base da versão francesa] conseguiu manter a clareza e simplicidade do texto, conseguindo estabelecer ligações seguras com o texto chinês. Diga-se, pois, um feito notável. Mesmo assim, a Ibrasa, assim como a Pensamento, colocou esse exemplar numa coleção intitulada ‘gnose’, da qual fazem parte títulos que poderíamos classificar, novamente, como ‘esotéricos’ ou de ‘ocultismo’. Vale ressaltar, porém, que ambas conheciam bem o mercado de livros no Brasil, e provavelmente essa era uma das poucas opções para tornar o livro vendável num país que ignorava Confúcio como intelectual ou filósofo.

Confúcio em 90 minutos , de Paul Strathern Passados mais de dez anos – e mostrando que nosso público pouco assimilara sobre Confúcio –, publica-se Confúcio em 90 minutos, de Paul Strathern [Zahar, 1998]. Talvez fosse aconselhável não ler esse livro; por outro lado, esse tipo de conselho só estimula mais gente a lê-lo. Devo, pois, explicar porque esse livro é um problema. O objetivo de Strathern era fazer uma apresentação cômica de vários filósofos, fazendo colocações bem humoradas e provocativas. Alguém que tivesse um conhecimento prévio de Confúcio poderia rir de algumas piadas. O problema é que o público brasileiro não riu das piadas, por que não as

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entendeu. Pior: na época que a coleção foi lançada, muitos de meus alunos a levaram a sério, utilizando-a em seus trabalhos. Esse dado é alarmante sobre o baixo nível de conhecimento do público acadêmico; não raro, ainda hoje [mais de uma década depois] vejo alunos utilizando os livros dessa coleção como fontes fiáveis, junto com O

Mundo de Sofia de J. Gaarder ou O Código Da Vinci de Dan Brown. Cabe-me, no caso, fazer uma análise do livro sobre Confúcio: a questão é que ele contém problemas sérios. Inventar que Confúcio condenava pessoas à morte por causa de roupas erradas, por exemplo, é um erro pesado, que induz a construção de uma imagem totalmente equivocada sobre um dos maiores humanistas que o mundo já conheceu. Por analogia, seria como dizer que Gandhi condenaria alguém a morte por

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comer carne. As piadas se perdem, deixando de ser colocações bem humoradas, para tornarem-se uma distorção. Se o nosso público pudesse entender isso, talvez repudiasse o livro; mas a coleção teve boa vendagem. Por outro lado, devo admitir que, em particular, sou a favor da total e ampla liberdade de leitura – pois até uma crítica só pode ser feita depois que se lê o livro. De fato, se vejo alguém rindo do livro, esse é um bom sinal: tal pessoa compreendeu as piadas, e se afastou da seriedade doente, ou do mau humor reincidente, que tanto caracteriza os pretensos sabichões.

O Pensamento Chinês , de Marcel Granet Mas a década de 90 não foi absolutamente perdida. O clássico O

Pensamento Chinês, de Marcel Granet, foi publicado em 1997

[Ed.Contraponto, 97]. Granet foi simplesmente um dos melhores sinólogos que já existiu, e essa obra cobre, exatamente, o período fundador das filosofias chinesas na antiguidade. Analisando a cosmologia chinesa, o pensamento imanente, e o surgimento das escolas éticas, o livro de Granet é um livro denso, às vezes complicado, mas extremamente recompensador e instrutivo para aqueles que começam no campo da sinologia séria. Apesar do original ter sido publicado em 1934, é uma leitura que ainda vale à pena. A publicação de Granet pode ser entendida, também, como um despertar tímido do público para o interesse científico e acadêmico na China. Os anos 2000 iriam mudar bastante esse quadro.

Os Anos 2000-12 A virada do século marcou a ascensão da China. O país consolidou seu lugar entre as superpotências, renovando o interesse do restante do mundo em sua língua, cultura e tradições. Isso se refletiu no Brasil, onde um público disperso começou a buscar pelas esparsas fontes chinesas. Foi nesse ano que comecei as atividades do Projeto Orientalismo, disponibilizando na internet as fontes que pude encontrar, em português, sobre a China e Índia. Como vimos, encontrar fontes que estivessem esgotadas, disponíveis ou fossem de domínio público constituiu uma dificuldade - e que continua a existir - em relação à história e cultura asiática. Uma média de dez mil acessos anuais, ao longo de mais de uma década, é ainda um número baixo, mas indica uma presença constante e interessada nos materiais disponíveis, cujo lócus foi definido no período

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tradicional [China e Índia antigas]. No âmbito chinês, é possível contabilizar um número maior de leitores, dado que existe um conjunto mais amplo de páginas, cobrindo aspectos diversos como história, religião, arte, filosofia, e fontes. Do mesmo modo, o mercado literário começou a apresentar novas obras sobre

Confúcio.

Uma

novidade

estupenda

foi

a

versão

dos Analectos [Martins Fontes, 2000] de Simon Leys, um dos mais críticos e renomados sinólogos da atualidade. Uma introdução analítica de Confúcio, e aforismos amplamente comentados, dão a essa tradução um caráter sinológico especial. Pode-se dizer que um estudioso em China deve, necessariamente, ler essa tradução para completar sua formação de maneira adequada. Um amplo quadro do pensamento de Confúcio se

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desenha, segura e solidamente, nesse livro. Outras duas versões do Lunyu que surgiram logo a seguir são: O livro das

respostas e explicações em vinte capítulos [Landy, 2001] e Os aforismos de Confúcio [Madras, 2003]. Embora não apresentassem nenhum elemento novo na questão da tradução, ambas propunham uma abordagem diferente da obra: a sua popularização. Simples e de baixo custo, permitiam um primeiro contato com a obra de Confúcio, para uma gama mais ampla de leitores, que provavelmente não sabiam o que iriam encontrar ao ler o velho mestre chinês. Dados os espaços de tempos que a divulgação literária de Confúcio teve no país, demorou pouco para que novas obras surgissem. Claro, podemos identificar aí um problema: a insistência, sempre, em traduzir apenas o Lunyu. A intensidade ainda não substituiu a diversidade, e muitas

obras confucionistas continuam desconhecidas. Por outro lado, as versões diferentes do Lunyu podem criar um quadro de opções, que permitem graduar o nível de conhecimento do leitor. Ou seja; com o aprofundamento do interesse, passam a existir também versões aperfeiçoadas disponíveis. Em 2008, o Instituto Confúcio, principal órgão chinês para a divulgação da língua ao redor do mundo instalou-se em São Paulo. Isso inaugurou uma nova fase dos estudos chineses no Brasil, construindo uma base segura para a formação de especialistas em língua chinesa em cursos regulares e supervisionados [e posso garantir, por experiência própria, que o ‘romance’ de aprender chinês com tutores privados é bonito, mas bastante difícil e cheio de lacunas]. Em função talvez desse interesse reavivado, lançou-se em 2008 o Autêntico Confúcio, de Anping Chin [JSN, 2008], uma livro inteiramente dedicado a história e a obra de Confúcio. Uma das poucas obras especializadas na questão confucionista, e disponível ao público, ela apresenta um conjunto de referências sobre a figura do mestre que podem ser utilizadas com segurança no ambiente acadêmico. É também uma obra moderna e atualizada, o que reforça seu valor. Um desdobramento dessa curiosidade pela China foi o lançamento do fabuloso manual História do Pensamento Chinês, da já citada Anne Cheng, publicado em 2009 [Vozes, 2009]. Cobrindo a história do pensar chinês desde a antiguidade até períodos mais recentes, esse livro é indispensável na prateleira de qualquer especialista em ciências humanas que se pretenda um humanista. O livro de Cheng tem inúmeras

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qualidades notáveis: escrita fluída, fácil, acessível e bem construída; o texto é abrangente sem ser superficial, e atualizado em relação às descobertas

arqueológicas

e

textuais

chinesas.

Organizado

cronologicamente, apresenta as diversas escolas do pensamento chinês, revelando sua multiplicidade. Enfim, uma referência indispensável para a Sinologia. Outras editoras resolveram entrar na disputa pela divulgação de Confúcio. A LP&M trouxe a consagrada versão dos Analectos de D. C. Lau [2009], traduzida do inglês, e uma excelente obra de divulgação. Por outro lado, o aspecto de ‘auto-ajuda’ de Confúcio foi retomado com a publicação de Aprendendo a viver com Confúcio [Autêntica, 2009], de Kuijie Zhou, pequeno livro em que o autor seleciona fragmentos do

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mestre e lhes aplica um caráter sapiencial [ou, ‘para viver a vida cotidiana’]. O que dizer? Afinal, Confúcio é o maior fornecedor de frases para biscoitos da sorte. No mesmo ano, Introdução a filosofia chinesa, de Karin Lay [Madras, 2009] tornou-se uma boa opção para compreender os primórdios do pensamento chinês, concorrendo diretamente com o manual de M. Granet [mas não com o de A. Cheng]. O problema do livro de Lay é que ele tem alguns graves erros de tradução, que ocasionalmente comprometem o entendimento do texto. Uma boa revisão o tornaria uma fonte segura e confiável. Karin Lay é uma especialista altamente qualificada em pensamento chinês, e suas indicações sobre o Confucionismo são muito boas.

Sintomaticamente, no ano seguinte foi lançado no Brasil o livro Confúcio com amor, de Yudan [Best Seller, 2010]. Esse livro foi um sucesso absoluto na China continental, trazendo uma apresentação de passagens de Confúcio igualmente aplicadas à vida comum. Embora pudéssemos enquadrá-lo como ‘esotérico’, devemos ter um grande cuidado nesse ponto: ele foi produzido na China, por uma chinesa, e seu intento é reler o Confucionismo a luz da modernidade, preparando o campo para uma nova compreensão do mesmo dento dessa sociedade. Assim, embora o livro possa parecer superficial, ou ter um caráter de ‘auto-ajuda’, ele representa a ponta de um projeto mais amplo de resignificar o Confucionismo na China contemporânea [e quem sabe, para o mundo]. O original é de 2006, mas no Brasil ele foi publicado no mesmo ano que a biografia chinesa de Confúcio foi lançada no cinema.[7]É uma obra significativa, se bem interpretada, para compreender como os chineses têm retomado seu interesse por Confúcio, e pelo Confucionismo, como uma doutrina moral e política, numa sociedade em que o discurso comunista maoísta dá sinais de cansaço, e se apresenta cada vez mais anacrônico perante a realidade econômica. Na esteira dessas publicações, um novo [?] estudo sobre Confúcio foi publicado. Introdução a Confúcio [Contraponto, 2012] é a junção de três textos diferentes, e todos de domínio público, dada sua antiguidade. O primeiro é uma apresentação de Confúcio feita por Richard Wilhelm, sinólogo alemão bastante conhecido por sua excelente tradução do Yijing. O texto é da virada do século 20. O segundo é a biografia de Confúcio feita por Sima Qian; o terceiro texto é uma tradução péssima e cheia de

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equívocos do Zhongyong feita por Ku Hung Ming – nesse caso, porém, o texto de Ku já vinha com todos esses problemas existentes, não sendo culpa da versão brasileira. Os textos são desiguais e antigos, não apresentando dados novos em relação às publicações mais recentes que vimos. Talvez o mais aproveitável seja a biografia feita por Sima Qian, já que a versão de Lin Yutang [Sabedoria de Confúcio, 1958] só é encontrada raramente em sebos.

Os Analectos , de Giorgio Sinedino Em 2012, a UNESP publicou a primeira versão absolutamente brasileira doLunyu, realizada por Giorgio Sinedino. Essa tradução, realizada diretamente do chinês, representa um dos primeiros esforços no sentido

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de construir uma literatura sinológica séria e científica. A obra conta com uma tradução cuidadosa dos aforismos de Confúcio, coberta por copiosas notas explicativas, que enriquecem bastante sua leitura. Seu tamanho o torna atraente para um público mais especializado e interessado, e mostra a viabilidade de se construir uma sinologia brasileira, desvinculando-se das traduções de traduções. Ela consigna-se também como um estudo acadêmico aprofundado, escapando das interpretações religiosas que tanto marcaram as traduções nacionais. Por fim, a versão de Sinedino acompanha, igualmente, a atenção renovada que tem sido dada ao Confucionismo na China atual, e que deveria servir de alerta para os intelectuais brasileiros.

E que conclusões podemos chegar? Vimos, pois, que apenas num período muito recente de nossa própria história foi possível desvincular Confúcio e o pensamento confucionista do campo das religiões. Enquanto Confúcio foi tratado como uma figura ‘sacro-oriental’, numa sociedade marcadamente cristã, foi praticamente impossível analisá-lo de modo sério. O Confucionismo, como filosofia, foi desprezado pela academia, tão dependente do Eurocentrismo que marca sua formação. No entanto, o crescimento chinês dos últimos anos tem forçado uma revisão desses parâmetros. Vimos que alguns estudos sérios surgiram; e mesmo o campo da história das religiões renovou seus interesses nos saberes asiáticos – mas agora, buscando formas de diálogo, e não de exclusão ou da construção de estereótipos. Contudo, devemos lembrar que hoje, inúmeras figuras religiosas imiscuem-se no governo, defendendo que não há separação de religião, política e pensamento. Como, então, separar a figura de Confúcio [político e social] do problema da visão religiosa? Além disso, há o problema - muito próprio da academia brasileira - de praticar uma ciência humana 'devocional'. Como nossos primeiros mestres em história e filosofia foram padres, absorvermos a prática de idealizar apenas um autor como o 'nosso caminho' teórico e metodológico, como se ele fosse um espécie de santo. O mesmo se dá com as figuras asiáticas, tais como Confúcio. Quando ele não é repudiado, o outro extremo é adorá-lo como 'um guia de sabedoria' indiscutível e perfeito. Fazer isso é incorrer exatamente no mesmo erro. Precisamos escapar dessas armadilhas.

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Ainda há um longo caminho, pois, para conseguir incluir Confúcio na academia; disso depende a formação de sinólogos, que ainda estão encerrando seus recentes cursos de língua chinesa. Por isso, Confúcio representa um problema epistemológico para os brasileiros: é um problema de construção do conhecimento, que deriva da mistura de preconceito, ignorância e limitação que afeta nossa formação cultural e universitária. Conhecer Confúcio não nos mostra apenas o que é a raiz da China, mas revela nossas próprias deficiências de formação, e a incapacidade que tivemos até agora de lidar com a diferença. Se quisermos realmente nos categorizar como humanistas, precisamos, com urgência, conhecer os outros dois terços do mundo que habitam fora da gaiola logocêntrica do Ocidente.

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Notas Esse texto originalmente compõe o livro Imagens da América Latina. Edição O Guari: União da Vitória, 2014. [1] A teoria Kardecista pressupõe que os espíritos podem usar pseudônimos ao se apresentarem publicamente. Isso tornaria viável pensar, então, que não seria o Confúcio de fato que apareceu, mas um espírito guia que utilizava esse nome. Note-se, porém, as implicações dessa escolha, numa época em o que o movimento orientalista europeu estava em plena força. No livro Brasil, coração do Mundo, Pátria do Evangelho, de Humberto de Campos [em espírito] e psicografado por Francisco Xavier, 1938, p.130, nos é dada a informação que, de fato, teria sido outro espírito a assumir o pseudônimo. [2] Ver a notícia em: http://memoria.bn.br/DocReader/Hotpage/HotpageBN.aspx?bib=22196 1_02&pagfis=26336&pesq=&url=http://memoria.bn.br/docreader# [3] http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=089842_06&p asta=ano%20195&pesq=Se-Tsien%20Kao

[4] http://memoria.bn.br/DocReader/Hotpage/HotpageBN.aspx?bib=08 9842_06&pagfis=46657&pesq=&url=http://memoria.bn.br/docreader# [5] Ver meu texto ‘Viajantes brasileiros na China’ [link]. [6]As obras confucionistas do Padre Guerra: Livro dos Cantares, 1979 [Shijing] Escrituras Selectas, 1980 [Shujing] Quadras de Lu e Relação Auxiliar, 1981 [Chunqiu Zuozhuan] cinco volumes Quadrivolume de Confúcio, 1984 [Lunyu, Daxue, Zhongyong e Xiaojing] Obras de Mâncio, 1984 [Mengzi] Livro das Mutações, 1984 [Yijing] O Cerimonial, 1987. [Liji] três volumes [7] No Brasil, o filme Confúcio foi lançado em 2011 com o incompreensível título de A batalha pelo império, mantendo a velha tradição brasileira em dar péssimos nomes para filmes estrangeiros.

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As dificuldades de uma tradução: um ensaio sobre o Sunzi Bingfa 孫子兵法 e o contexto cultural brasileiro

O interesse pela cultura chinesa, no Brasil, é bastante recente. Desde a década de 90, se ouviam notícias – sempre distantes – do crescimento econômico da China, mas nenhuma intenção real de investigá-la se desenvolvia. Iniciativas acadêmicas isoladas existiam, mas nenhuma com grande repercussão. Esse interesse se mantinha restrito a pontos focalizados da cultura chinesa: artes marciais, culinária, religião, entre

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outros, abordados de forma genérica, superficial, e carregada de equívocos. No ano 2000, iniciei um projeto de divulgação, na internet1, de fontes chinesas traduzidas para o português, que fossem de domínio público. As dificuldades foram imensas, devido à ausência quase absoluta no mercado de traduções e manuais básicos sobre a história e a literatura chinesas. Do mesmo modo, quando preparava meu projeto de Doutorado em 2002, ouvi de um respeitável acadêmico que o estudo da China não era ‘nem pertinente, nem viável e nem relevante. É uma moda, e vai passar’. Cito essas dificuldades para mostrar que, num passado muito próximo, o Brasil estava absolutamente despreparado para lidar com a China em termos econômicos, políticos e culturais. Em 1 Projeto Orientalismo, hoje disponível em www.orientalismo.blogspot.com O projeto abrange diversas páginas sobre história e culturas de China e Índia, incluindo manuais básicos e traduções de fontes.

2008, num texto intitulado A fracassada sinologia brasileira2, praticamente constatei a repetição desse mesmo diagnóstico. Mesmo com a repercussão das olimpíadas de Beijing, o país carecia de pessoal qualificado para interpretar os dados provenientes do mundo chinês. Desde então, algumas mudanças significativas foram feitas nesse quadro. A fundação do Instituto Confúcio no Brasil veio resolver a crônica carência de cursos de língua chinesa.3 Tal iniciativa pressupõe que possamos contar, daqui a alguns anos, com uma mudança daquele quadro pouco animador que citamos antes. Contudo, essa introdução foi necessária para que eu pudesse contextualizar a tradução que realizei do

Sunzi Bingfa 孫子兵法em 2009 – aparentemente, a primeira a contar, no Brasil, com uma análise de fato do texto chinês. Esse ensaio trata de analisar as dificuldades e desdobramentos dessa empreitada, tendo em vista as limitações técnicas e culturais com as quais nossa sociedade ainda passava a menos de quatro anos atrás. Embora muita coisa tenha sido feita nesse tempo, é perturbador e preocupante a maneira com que tem sido tratada a questão da China no Brasil. A tradução do

SunziBingfa孫子兵法representa, talvez, um resumo de todo esse quadro complexo e difícil de lidar que tem sido o desenvolvimento de uma sinologia brasileira.

2 Disponível em http://orientalismo.blogspot.com.br/2010/05/fracassada-sinologiabrasileira.html 3 Antes disso, a Universidade de São Paulo era a única no país a oferecer um curso de graduação em língua chinesa.

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O contexto da tradução Quando fui convidado a realizar a tradução do Sunzi Bingfa 孫子兵法, no ano de 2009 pela Jardim Editorial, inicialmente não fiquei muito entusiasmado. Já naquela época existiam, pelo menos, dez versões diferentes do livro em português. O Sunzi Bingfa 孫子兵法é, com certeza, o livro chinês mais divulgado no Brasil: contabilizei, para a realização desse texto, que já foram feitas quarenta e seis versões do livro, e mais vinte e sete análises do livro voltadas para assuntos administrativos ou de auto-ajuda. Visto assim, poder-se-ia argumentar que havia uma divulgação razoável de textos chineses no país. Contudo, seria um grande equívoco. Se o Sunzi Bingfa 孫子兵法tinha ao menos dez versões em 2009, textos fundamentais como o Lunyu 論語de Confúcio 孔夫子ou o

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Daodejing 道德經de Laozi 老子não contavam com mais de cinco versões cada. Notem que quando uso a palavra versões, busco indicar que se tratavam de traduções do inglês ou do francês, e não do chinês. Praticamente se desconheciam outros textos. Uma coletânea solitária de LinYutang 林語堂, Sabedoria de China e Índia, publicada em 1957, reinava solitária como uma das poucas fontes de fragmentos sobre a literatura chinesa. A importância de compreender, 1962,4do mesmo autor, complementava esse quadro de ausências. Ignorava-se a produção feita em Macau – notadamente a do Padre Guerra, tradutor de Confúcio – ou mesmo, pela Edições em línguas estrangeiras de Beijing.

4 LIN Yutang. Sabedoria de China e Índia. Rio de Janeiro: Pongetti, 1957; LIN Yutang. A importância de compreender. Porto Alegre: Globo, 1962.

O desinteresse pela literatura chinesa se dá, em grande parte, pelos problemas na educação brasileira. Até hoje, não há história asiática no ensino básico do país. China e Índia são pontualmente citados a partir da época das navegações portuguesas, para ressurgirem no contexto do imperialismo no século 19, e acabou-se. Nas universidades, são pouquíssimos os grupos de estudos dedicados ao tema, posto que a história da Ásia é optativa, quando existe, e não obrigatória. Mesmo assim, esses grupos ainda sofrem com a visão obscurantista de parcelas da intelectualidade brasileira que, inspirada num modelo ‘nacionalista’, pretendem que o estudo de história antiga, medieval, e de outras civilizações ‘estranhas’ ao contexto brasileiro devem ser secundarizadas – ou mesmo, abandonadas. Assim sendo, o campo da história chinesa sempre esteve em aberto. Grande parte dos ‘especialistas’ em cultura chinesa que por aqui existiam eram figuras ligadas a dois campos bastante distintos: os praticantes de artes marciais, e o público ligado à administração de empresas. O primeiro grupo fazia uma abordagem esotérica da cultura, misturando elementos da prática marcial com religião, filosofia e medicina ‘orientais’ (isto é, juntando as culturas chinesa, indiana, japonesa e coreana num mesmo todo). Se por um lado esse interesse era autêntico, por outro ele era desprovido de qualquer sistemática confiável, sendo contaminado pela absorção dogmática de versões superficiais e estereotipadas da história e literatura chinesa. Já o segundo grupo, ligado à ciência da administração, não possuía qualquer preocupação maior com a questão da cultura chinesa em si. Seu

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interesse específico pelo Sunzi Bingfa 孫子兵法 se deu pela importação de modelos empresariais europeus e americanos, que afirmavam se inspirar no livro para desenvolver suas estratégias de gestão. Foram esses dois grupos – tão diferentes entre si – que articularam, de um modo ou de outro, o interesse pelo Sunzi Bingfa 孫子兵法. Isso fez com que,em 1983, surgisse a primeira versão do livro no Brasil. Para nossa surpresa, a versão publicada era a de James Clavell, autor de

Xógum e Taipan, romances de inspiração orientalista com certa repercussão na época. Ainda assim, ela era inspirada na tradução de Lionel Giles, de 1910, constituindo uma leitura de segunda mão; e durante anos, foi a única tradução disponível no mercado brasileiro. Em torno da década de 90, algumas outras versões surgiram, muitas de

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qualidade totalmente duvidosa. Era esse quadro, basicamente, que ainda se apresentava em 2009, quando me foi apresentada a oportunidade de realizar a tradução. Meu interesse despontou a partir da leitura de algumas dessas versões. Duas delas foram feitas a partir de traduções inglesas de alta qualidade, e podemos considerá-las como boas. Todavia, o problema da tradução representa certos desafios e dificuldades, que se refletem na adaptação ao português. Do mesmo modo, percebi que não havia uma preocupação histórica com o texto, mas sim, a insistência constante em tratá-lo como um simples livro de autoajuda ou de administração de empresas. Diante de uma série de versões problemáticas e incompletas, constatei que a realização desse trabalho poderia criar uma perspectiva diferente sobre a

obra. Essas preocupações me levaram, pois, a encarar o desafio de realizar a tradução do texto para o português.

Dificuldades na tradução Obviamente, a tarefa de traduzir o Sunzi Bingfa 孫子兵法 seria facilitada pela existência de boas traduções em outras línguas, com as quais eu poderia recorrer caso fosse necessário. No entanto, esse recurso também se mostrou problemático. As opções feitas pelos autores ingleses ou franceses envolviam especificidades de suas línguas, ou mesmo de estilo, que não seriam adequadas ao português. Além disso, o texto chinês em si merece um olhar próprio, cuja tradução cotejada facilmente destorce. Um dos exemplos mais significativos foi, a começar, pelo próprio título. Optei por utilizar ‘Lei da Guerra’ por entender que ‘Arte’ era um termo bem distante do que Sunzi 孫子pretendia. Como afirmei na introdução de minha tradução:

Sunzi 孫子está praticamente dando ordens, ou recomendações para serem seguidas à risca, não são conselhos para meditar. Eles devem ser empregados para fazer planos pragmáticos, nos quais vidas estão em jogo. Eis a razão pela qual, como citei logo no início, optei por traduzir “Fa法” por “Lei”, e não “Arte”. O que há, aqui, é um método, tecnicamente raciocinado após uma observação profunda sobre a realidade das operações de combate. Tal experiência é categórica e afirmativa. (2010, p.12)

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O termo ‘Arte’ transformara-se num hábito desde a tradução do Padre Amiot, feita em 1772. Amiot buscava comparar a obra chinesa com a

Arte da Guerra de Maquiavel (1520), e criou uma ‘moda’, entre as traduções, que se perpetuou. Todas as versões do livro, no Brasil (incluso a minha, mas veremos a razão adiante), empregam o título de Arte da

Guerra. Assim, busquei deixar claro na introdução que não concordava com esse título, tanto quanto pretendia uma outra estrutura do texto. A Lei da Guerra de Sunzi, a meu ver, é um texto para ser traduzido no modo verbal imperativo. Ele apresenta comandos a serem seguidos, e não um manual de reflexão. Ele não é um texto ‘filosófico’ por assim dizer. O objetivo de Sunzi 孫子era evitar a guerra; e se não pudesse evitá-la, então vencê-la a qualquer custo, com o mínimo de perdas. Por isso, o texto é

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simples, conciso e direto. Arriscava, com isso, fazer um texto ‘chato’ para o leitor brasileiro, acostumado a versões romanceadas do livro. Essa é uma dificuldade perene na tradução dos clássicos no Brasil. Pretende-se que os livros antigos devem ser todos traduzidos num linguajar ‘bíblico’, baseado no português do século 19. Esse hábito implica num problema curioso: o leitor tende a acreditar que a ‘simplificação’ da linguagem significa uma ‘menor erudição’ do tradutor/autor. Novamente, porém, optei por utilizar um linguajar que, de certa forma, recuperasse a intenção de Sunzi 孫子de criar um manual militar. O uso de uma linguagem simples não implica na perda do texto; se evitarmos banalizações ou vulgaridades, o texto torna-se acessível sem, contudo, ser indevidamente ‘atualizado’.

Do mesmo modo, algumas palavras no texto chinês merecem atenção especial. No capítulo 5, a palavra “弩nu”, por exemplo, designa a balestra (‘crossbow’) utilizada na guerra. Pode parecer um detalhe simples, mas é bastante significativo: como essa arma só surgiu em torno do século IV5, isso implica dizer que o texto de Sunzi 孫子não poderia ter surgido no século VI, como SimaQian司馬遷afirmava (SUNZI, 2010, p.14). Ao menos, isso significaria que a versão de que se dispunha na dinastia Han 漢朝 era do século IV, o que impossibilitaria localizar a vida de Sunzi 孫子em período anterior com precisão. É um detalhe pequeno, mas historicamente importante. Em outras versões, porém, a tradução equivocada – até mesmo do inglês – induz a erros grosseiros. Numa delas, por exemplo, a palavra ‘Tian’ 天 (Céu, Tempo, Clima) é traduzida como ‘Paraíso’, numa interpretação errônea e deslocada da palavra inglesa ‘Heaven’.6 Isso mostra que o revisor do português estava bastante desatento, e desconhecia o sentido do conceito em chinês.

Dificuldades na adaptação Essas questões internas ao texto são uma atribuição do tradutor, e implicam nas opções que ele fará. Por causa disso, o processo da tradução inevitavelmente necessita de algum conhecimento da língua e da cultura em questão. Todavia, outras dificuldades, específicas do contexto 5 Como convenção, utilizaremos o sinal ‘-‘ no lugar de ‘a.C.’, como é de uso por alguns sinólogos. 6 Optei por utilizar a palavra Tempo, com todas as conotações que ela implica: condições temporais, clima, Céu, estações, etc. A escolha se deu em função do que, no meu entendimento, significa ‘Tian’ dentro do contexto: a observação das regras da natureza, da conformação do clima, do momento da ação.

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brasileiro, se interpõem na tradução do chinês. Como vimos, a ausência de

conhecimento

sobre

da

China

dificulta,

sobremaneira,

o

entendimento dos textos e formas de expressão dessa civilização. Assim, certos recursos foram sendo utilizados, no desenvolvimento do livro, que denotam a caracterização desses problemas. Uma delas foi – novamente - a tradução do título. Como indiquei anteriormente, entendo que a tradução ideal do título seria ‘Lei da Guerra’. Após a venda dos direitos, os responsáveis pela editoração informaram-me que o livro manteria, na capa, o título de ‘Arte da Guerra’ de ‘Sun tzu’. Acreditava-se que, se o livro fosse lançado como ‘Lei da Guerra de Sunzi’, ele não seria identificado pelos leitores como sendo o mesmo. Ou seja, as formas ‘Arte da Guerra’ e ‘Sun tzu’ ficaram

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tão cristalizadas, no imaginário brasileiro sobre o livro, que a opção por mantê-los parecia coerente. De fato, essa perspectiva acabou se mostrando acertada, e o livro foi bem recebido pelo público, tendo sucessivas tiragens. Alguns pontos em particular, porém, foram objeto de minha atenção e discordância em relação ao projeto editorial. Na capa, é utilizada uma Katana (espada japonesa) como símbolo da guerra, junto com o uso aleatório do ideograma Zhi知 (sabedoria prática, conhecimento). No interior, o nome ‘Sunzi’ é inexplicavelmente ‘vertido’ para o alfabeto japonês Katakana (スソシ, ‘susoshi’). Diante de minhas indagações sobre essas questões, fui informado que esse era o projeto visual vigente, e que seria mantido porque havia ficado esteticamente atraente. Por fim,

na parte final da versão em capa dura do livro, uma seção para anotações foi colocada, com o seguinte texto introdutório:

‘Anotações do leitor: a Arte da Guerra é uma das ferramentas mais valiosas para o crescimento pessoal e profissional nos dias atuais. Comece a planejar suas metas e objetivos baseados nos mandamentos e estratégias fundamentais para alcançar o sucesso’.7 Notem que todo o conjunto de estereótipos anteriormente citados foi resumido nesse pequeno fragmento. A ‘Arte da Guerra’ (contrariando a transliteração que apresentei ao longo do texto) serviria para alcançar sucesso profissional e pessoal, reproduzindo a velha tendência de fazer com o que o livro, na verdade, se adequasse ao público que o lê. Ao realizar a tradução do Sunzi Bingfa 孫子兵法, pretendi que o livro fosse capaz de atender a um público interessado na cultura chinesa, de um modo mais amplo, sem restringir sua abordagem ao aspecto marcial ou empresarial. Apesar de saber que esse não seria nem o momento e nem o espaço para o desenvolvimento de uma tradução ‘erudita’ (isto é, acadêmica), meu objetivo era contemplar um interesse relativamente diferenciado dos clássicos chineses. Por essa razão, inclui na introdução uma parte sobre a escola dos estrategistas chineses, de modo a despertar a atenção do público para os vários outros clássicos militares que existem na literatura chinesa.

7 Esse texto, obviamente, não é de minha autoria.

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Desdobramentos Contudo, após quarenta e seis versões, o Sunzi Bingfa 孫子兵法continua sem uma versão acadêmica. Do mesmo modo, outros clássicos militares chineses seguem praticamente desconhecidos no âmbito brasileiro, apesar do sucesso massificado do livro8. A recepção positiva do livro - e a ausência de críticas ao texto ou mesmo, aos detalhes anacrônicos do projeto editorial – demonstram que o público brasileiro segue desconhecendo elementos cruciais do pensamento e da cultura chinesa. Embora já se sinta um aumento gradual de manifestações no sentido de ‘saber mais’ sobre a China (aliadas à vinda de um grande contingente de chineses para o Brasil), não há nenhuma proposta sistemática organizada no sentido de levar esse debate aos centros

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acadêmicos e universitários. O panorama intelectual brasileiro depende em grande parte, ainda, de iniciativas individuais e isoladas, com sérios problemas de continuidade. No decurso de minhas pesquisas sobre Sunzi 孫子, e após o lançamento do livro, acabei convidado a escrever um livro sobre a história da estratégia na China (que seria chamado de ‘A Arte da Guerra Chinesa’). A proposta do livro seria de apresentar os diversos autores que compuseram a Escola dos estrategistas, desde Taigong até Mao Zedong (Mao Tse-tung), construindo um panorama histórico sobre a questão na história chinesa. O livro criaria também uma abertura para a futura tradução de outros clássicos estratégicos. Por mais paradoxal que possa 8 Apenas uma tradução desses clássicos foi feita no Brasil pelo monge Marcos Beltrão, e está disponível em http://www.marcosbeltrao.com/mestres_de_guerra.php

parecer, a boa venda do Sunzi Bingfa 孫子兵法 desmotivou o investimento em novos projetos nesse sentido. A lógica imediatista do capitalismo brasileiro é notável. Todavia, finalizei o projeto e o publiquei na rede, deixando-o disponível ao público.9 Por outro lado, um dos destaques dados a minha tradução foi de origem, no mínimo, curiosa. Dois dos mais temidos traficantes do Rio de Janeiro, Sandro Amorim (o ‘Peixe’) e Antônio Lopes (o ‘Nem’) foram presos em novembro de 2011. Em um de seus esconderijos, o único livro disponível era, justamente, a tradução que havia feito da Lei da Guerra.10 Isso revigorou o interesse pela obra, aumentando subitamente o número das vendas, segundo informe da própria editora. Podemos, aqui, propor várias interpretações para esse acontecimento: uma delas é de que o acesso ao texto, já vulgarizado, poderia estar atingindo camadas sociais variadas. Por outro lado, fica claro que o novo surto de curiosidade pela obra se devia aos efeitos midiáticos de sua apreensão, no contexto criminal – e, portanto, não pelo valor da obra em si. Será, pois, que os brasileiros dependem, inequivocamente, de modismos para dirigirem seus interesses literários? Contudo, não devemos menosprezar o potencial representado pela obra de Sunzi para despertar, gradualmente, a atenção brasileira para um conhecimento sinológico legítimo. Recentes traduções da Lei da Guerra

de Sunbin 孫臏兵法ou mesmo do Livro das Trinta e Seis Estratégias 9 Ver em: http://estrategiaschinesas.blogspot.com 10 A reportagem, com fotos, pode ser conferida nesse link: http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2011/11/13/policia-encontraaquario-e-livro-a-arte-da-guerra-em-luxuoso-casarao-na-rocinha.htm

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三十六計 demonstram que, lentamente, é possível construir algo mais, a partir de interesses derivados do Sunzi Bingfa 孫子兵法. Devemos ressaltar: são traduções derivadas do inglês ou francês, e feitas para nichos específicos do mercado. Ainda assim, porém, representam um aumento das leituras disponíveis, o que é sempre bem vindo.

Conclusão As dificuldades que apresentei, neste ensaio, visam demonstrar o imenso despreparo da sociedade brasileira em compreender o desafio que a cultura chinesa representa na modernidade. Para além do imediatismo nos negócios econômicos e políticos, o diálogo com a China depende de uma capacidade de compreensão mútua, que está para além do simples

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domínio útil das línguas.11 Nenhuma civilização pode ser entendida sem o estudo de suas raízes; no entanto, o panorama cultural do Brasil sofre, ainda, de um interesse meramente superficial pelo que não é euroamericano. O que apresento aqui, pois, é antes de tudo uma constatação. As dificuldades técnicas de uma tradução podem ser, de certo modo, resolvidas

(ou

assumidas)

pelo

tradutor

no

âmbito

de

seu

desenvolvimento; todavia, as questões culturais que envolvem sua recepção e consumo apresentam desafios que dificilmente podem ser superados pela simples beleza e profundidade da tradução. No caso brasileiro, o aumento de traduções chinês-português nos últimos dois 11 Um excelente texto sobre as questões éticas que envolvem a tradução é de OLIVEIRA, Maria Clara Ética ou Éticas da tradução? In “Os Limites da Tradução”, no IV CIATI - Congresso Ibero-Americano de Tradução e Interpretação. São Paulo: Centro Universitário Ibero-Americano - UNIBERO, Maio de 2007.

anos permite supor o despertar do interesse pela China; mas há que se ter cuidado em não escolher obras que meramente repitam ou aprofundem estereótipos sobre essa civilização. A tradução de outros clássicos chineses se reverteria, a meu ver, numa contribuição fundamental para a formação de especialistas em China no Brasil. Isso consolidaria um conhecimento aprofundado da civilização chinesa, e melhoraria sobremaneira a capacitação dos sinólogos envolvidos nos mais diversos níveis de atuação dentro do país, fosse à economia, educação, política e ciências. Porém, é possível mais do que isso: o estudo da civilização chinesa, e de suas formas de pensar, contribuiria na discussão de nossos próprios saberes, apresentando-lhes uma faceta inédita do mundo, e quebrando seu logocentrismo reincidente. Aprender a China nos possibilitaria repensar a nós mesmos, num sentido enriquecedor, criativo e inovador, próprio de uma cultura multifacetada como a brasileira. Afinal, como dizia o próprio Sunzi: ‘tudo é questão de preparação’.

Referências SUNZI. A Arte da Guerra [Tradução André Bueno]. São Paulo: Jardim dos Livros, 2010. BUENO, André. A Arte da Guerra Chinesa – a história da estratégia na China, de Sunzi a Maozedong, 2011. Página Eletrônica: www.estrategiaschinesas.com LEVI, Jean. Os 36 estratagemas: manual secreto da arte da guerra. São Paulo: Ciranda cultural, 2007. SAWYER, Ralph. A arte da guerra: Sun tzu e Sun pin. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

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A ‘Lei da Guerra’: Uma Longa Errata...

2009 foi o ano que publiquei a minha versão do Sunzi Bingfa, mais conhecida como ‘Arte da Guerra’ de Sunzi, que eu preferiria traduzir como a ‘Lei da Guerra’. Foram cinco anos intensos, desde então, nos quais minhas capacidades de dialogar, ler e escrever em chinês declinaram ao nível da insuficiência. De fato, já faz quase uma década que moro numa cidade do interior, onde a possibilidade de praticar a língua é

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inexistente. Por outro lado, são muitos os recursos eletrônicos e midiáticos para realizar esse tipo de treino – mas aí, a acomodação, as exigências do estudo e da profissão de lecionar, tudo isso serviu para compor o nada favorável quadro de distanciamento ao uso dessa ferramenta indispensável ao sinólogo, que é o uso da língua. Todavia, somente a passagem do tempo me possibilitou um olhar mais crítico e aprofundado sobre a versão que fiz do texto. Paradoxalmente, me coloco agora no lugar de um leitor que não entende chinês, ou que só conhece o livro de modo superficial. Examinei o texto – e principalmente, a introdução – e admito que me incomodei bastante com algumas das afirmações e pontos de vista apresentados. No afã de explicar algumas das características que permeavam a realização do texto, perdi-me em críticas duras ou arbitrárias que não fazem jus aos trabalhos

anteriores. Após meditar sobre a questão, percebi que seria adequado – creio, na verdade, necessário – fazer uma longa errata acerca da introdução do livro. Decidi, por uma questão de consciência crítica, refutar de modo sincero alguns dos apontamentos que fiz. Assim, separei alguns dos fragmentos do texto inicial que rediscutirei, no seguir. Quanto ao corpo da própria tradução, basta dizer que eu refaria muito do que escrevi – se ainda estivesse habilitado para tal. Vendo com clareza, existem muitas passagens que poderiam ser melhoradas, simplificadas ou ainda, devidamente explicadas. Não sei se essa possibilidade existe hoje, porém. Deixo, pois, essa pequena revisão de afirmações que agora me incomodam.

Revisão

“Existem muitas tentativas de traduzir da obra de Sunzi, e algumas são péssimas; além disso, grande parte é feita em outra língua, antes de ser vertida para o português, processo no qual muitas informações relevantes se perdem”. Traduções são escolhas, muitas vezes calcadas num determinado ponto de vista ou proposta. Claro, erros e equívocos acontecem; e eles aumentam quanto maior for a distância do texto original. Por outro lado, grandes tradutores lidaram com esse texto antes, tornando-o acessível ao público. Não se deve menosprezar, de forma alguma, as traduções derivadas de línguas intermediárias; elas são o primeiro acesso que uma

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sociedade pode ter a certos textos. O papel dos tradutores, nesse ponto, como difusores culturais, é fundamental e basilar. No mais, seria absolutamente falso da minha parte afirmar que não consultei outras traduções – ao contrário! Foi ao lê-las que concebi algo diferente; foram nelas que encontrei soluções adequadas, ou caminhos que preferi não seguir. A discussão sobre as obras anteriores deve ser conduzida com o cuidado de evitarmos juízos de valor, cujas generalizações não contemplam as conquistas por ela alcançadas.

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“A tendência em fazer versões estilizadas da “Lei da Guerra” foi sempre uma maldição para este livro. O Padre Amiot fez a sua em 1772, com uma linguagem rebuscada que poderia transformar o livro quase num romance; Lionel Giles, em 1910, fez sua versão na qual dá uma “tradução exata” de alguns termos que mesmo os chineses têm dificuldade de explicar!; mas a versão que popularizou o texto – pasmem – foi a de James Clavell, autor de romances como “Xógum” e “Taipan”, o que nos dá um indicativo de como a obra tem sido analisada até então...” Disse Newton: ‘se vi mais longe, é porque me apoiei no ombro de gigantes’. Eu nem chegaria a tanto. Mas simplesmente, a constatação dessa frase, por mim, foi de uma infelicidade tremenda. Comecemos pelo básico: tanto Amiot quanto Giles, entre outros, aprenderam chinês clássico diretamente com chineses que sabiam esse mesmo chinês. Estudaram com letrados educados nas ancestrais tradições chinesas. Que dizer mais sobre o domínio da língua chinesa que eles possuíam?

Ressalte-se a carência dos recursos de ensino na época, e entenderemos que o trabalho deles foi heroico. Suas opções estilísticas correspondiam a época no qual estavam inseridos, com todos os maneirismos e características que um texto entendido como erudito deveria ter. Simplesmente, não fossem suas opções canônicas, talvez o texto não parecesse relevante para a Sinologia. Por inversão, minha versão do texto talvez não fizesse sucesso algum na época. As deles estão imortalizadas, e foram iniciadoras. Eu, no entanto, já embarquei numa via razoavelmente consolidada, contando com suas traduções para tudo – até mesmo criticá-las. Senti-me injusto e desrespeitoso para com eles, e entendo que minha versão do texto não pode se valorizar com base nesse tipo de afirmação. Embora eu proponha muitas coisas diferentes deles, uma introdução histórica mais adequada redimensionaria o papel deles na história das traduções do Sunzi Bingfa. Seria o mínimo a se fazer, e a eles, presto o meu tributo. No mais, quanto à versão de James Clavell; ela mostra o despreparo de nosso público, em relação aos textos chineses, e não o quanto sua versão era boa ou má. Se ainda dependemos de um escritor de sucesso, como foi Clavell, para sermos atraídos para aspectos mais profundos de outra cultura, isso ganha o contorno de um eficaz expediente didático, adequado aos nossos problemas de formação e de leitura. Por fim, devemos perder o ranço de sempre criticar escritores de sucesso apenas porque venderam bem. Muitas vezes, eles abrem estradas ao conhecimento.

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“Mesmo sendo um dos textos mais traduzidos para línguas ocidentais, a “Lei da Guerra” carece, estranhamente, de uma tradução direta para o Português. Isso se deve á uma tendência muito própria, no mundo Lusófono, de acomodar-se à existência de traduções anteriores, feitas em outros idiomas, que parecem ser mais simples de traduzir que o próprio chinês. Acredito que esta postura é lastimável, e mostra uma submissão intelectual tremenda em nosso país – a de que sempre poderemos contar com intermediários culturais e tecnológicos, quando poderíamos, nós mesmos, construir conhecimento”. Percebo agora o quanto isso é problemático. Fazem séculos, e alguns poucos especialistas tentam revelar ao mundo lusófono a importância do estudo sínico. Seus trabalhos, basilares, costumeiramente foram

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apreciados, mas postos de lado após algum tempo. A construção de uma Sinologia brasileira engatinha, mas dá alguns poucos passos. Em breve teremos formandos em chinês, muito mais capazes do que a geração anterior. Ademais, estudar chinês com professores particulares é de uma dificuldade tremenda, uma aventura que deixa falhas enormes na formação, mesmo com todo o zelo que eles empreguem. Não posso, contudo, deixar de lastimar o contínuo desinteresse que os nossos intelectuais demonstram pela China – e mesmo, um receio – que não deveria fazer parte, de modo algum, do que se entende serem as ‘ciências humanas’. Mas acredito que, em breve, as traduções possíveis do Sunzi

Bingfa da próxima geração, que corajosamente investe agora em cursos regulares de chinês, serão inequivocamente melhores que a minha.

Uma nota em especial deve ser feita aqui: continuei minhas pesquisas sobre as traduções de Sunzi, e descobri a tradução de Adam Sun, pela editora Conrad e publicada em 2006. Além de ser a primeira tradução do chinês para o português, é uma edição cuidadosa, muito bem feita e que conta, inclusive, com o texto original para comparação. Um trabalho primoroso, ao qual faço minha vênia aqui.

“Do mesmo modo, dispensei nesta tradução o uso de um português arcaico, como se nos tempos antigos as pessoas somente se comunicassem por uma linguagem culta e erudita, muito comum nas versões que incluem o “Vóis sois”, desejais ou “pensais”, etc... Isso não faz a mínima diferença para o chinês clássico do qual estamos traduzindo, que em sua natureza era simples, direto, sintético e elegante. Seria no mínimo curioso imaginar que os chineses usariam estas expressões rebuscadas apenas porque elas são antigas. Lembremos que a gramática dos tempos clássicos é mais simples do que a de hoje. Por estas razões, creio que o uso de uma linguagem franca e direta é bem mais fiel aos princípios gerais da obra”. Como se chinês fosse fácil... Não, não é. Não é também absurdo, ou impossível – apenas tem suas dificuldades próprias. Impossível mesmo é fazer uma tradução sem bons dicionários por perto, ainda mais de chinês antigo, no qual muitas palavras mudaram seu significado. A opção pela linguagem franca e direta, como disse, é uma questão de estilo, que me faz sentido: mas nem por isso, a simplificação torna uma tradução um processo simples. Ah, quanta pretensão! Simplificar um texto, de modo a

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atingir sua essência, é talvez, e justamente, um trabalho dificílimo. Eis porque não me furto em dizer que refaria muitas coisas no corpo do texto. E mesmo assim, estou longe de pensar que elas resolveriam todos os problemas de transpor uma língua pra outra. ‘Tradutor, traidor’, dizia um antigo provérbio. Nada mais real.

Um Final Enfim, é isso. Um mea-culpa dos exageros propagandísticos e conceituais, motivados tanto pelo entusiasmo do trabalho quanto pela pretensão de fazê-lo melhor. Uma conscientização sobre a perda de habilidades que, com o tempo, agora me custam. Quando alguém me diz: 'seu livro ficou muito bom', me apresso em

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dizer: 'obrigado, mas é de Sunzi'. Sim, eu sou apenas mais um transmissor, cujo esforço avalio nesse momento. Graças ao interesse que existe acerca do livro, que eu pude dar a conhecer a minha versão, e não o contrário. A modéstia e o reconhecimento para com nossos mestres são, porém, bons guias pra firmar os pés no chão. Os antigos abriram um caminho que hoje trilhamos com muito mais conforto, e reconhecer isso é uma benção. Doravante, há que pensar muito antes de abrir a boca, tomando o cuidado severo de buscar afirmar, apenas, sobre aquilo que se tem certo conhecimento. Exorcizar essas questões é um bálsamo pra alma, e um excelente exercício de sabedoria.

A Escola Chinesa dos Estrategistas no Brasil: uma revisão literária

Introdução De todas as obras chinesas traduzidas para o português, o Sunzi Bingfa 孫子兵法– conhecido como A Arte da Guerra de Sunzi 孫子[séc. -5?] é, com certeza, a mais divulgada e conhecida. Em minhas pesquisas para esse ensaio, contabilizei mais de trinta versões atualmente disponíveis em lojas virtuais de livros, além de duas de domínio público. Tamanha quantidade não se expressa diretamente em qualidade, e não dá uma ideia precisa da recepção que a obra de Sunzi tem em nosso público. Do mesmo modo, há uma certa fixação em traduzir a obra de Sunzi, mas se desconhecem as traduções de outros textos estratégicos chineses no Brasil – com a rara exceção de Sunbin 孫臏, como veremos adiante. Tal consideração revela alguns problemas acerca de como nossos pensadores recebem a obra de Sunzi, quais os seus propósitos, e que lições extraem delas. O que pretendo, nesse texto, é analisar algumas traduções do Sunzi

Bingfa, dimensioná-las em nosso contexto literário e intelectual, e ainda, analisar alguns aspectos relativos ao que seria a ‘Escola dos Estrategistas’ e suas outras produções, tendo em vista ampliar o debate sobre esses

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escritos chineses em nosso país. Ademais, indicarei os tradutores originais do chinês, e citarei apenas as obras colhidas no Brasil, de modo a estabelecer esse panorama.

A tradução fundadora – James Clavell Dado grande número de traduções de Sunzi, me deterei em analisar aquelas que entendo serem relevantes para os estudiosos, seja pela qualidade da tradução, pela proposta editorial ou pelas informações que trazem conexas. Devemos ter em mente que o Sunzi Bingfa é a mais publicada das obras clássicas chinesas no Brasil; mas não foi, aparentemente, a primeira. Antes dela, Confúcio 孔夫子[Raposo, 1939] e Laozi 老子 [Yutang, 1945] já haviam sido traduzidos para o português,

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alcançado uma relativa difusão. O fenômeno da Arte da Guerra começou com a publicação da versão de James Clavell & Lionel Giles [1983]. A tradução de L. Giles era antiga [1910], e o romancista James Clavell, autor de Xógum [Shogun, 1975], Casa Nobre [1981] e Taipan [1966], fez dela uma adaptação e a prefaciou. É difícil saber por que a Arte da Guerra foi traduzida para o português. É provável que o interesse fosse acompanhar as boas vendas de seus romances; na década de 80, quando o livro foi lançado, sua novela Xógum havia sido inclusive adaptada para Televisão [1980], trazendo atores famosos como Richard Chamberlain e Toshiro Mifune, sendo exibida no Brasil. Nessa versão, destinada ao grande público, Clavell apresentava uma versão acessível, fácil de ler, da obra de Sunzi. Ela também grafa, em português, as denominações ‘Sun Tzu’ e Arte da Guerra. ‘Sun Tzu’ vinha

da grafia de nomes chineses feita pelos ingleses, sistema conhecido como Wade-Giles [um de seus criadores foi o pai de Lionel, Herbet Giles, que também era sinólogo]; quanto a Arte da Guerra, o termo fora grafado desde a primeira tradução Ocidental do texto, feita pelo Padre Amiot [1772], e consolidou-se na literatura. Faltam-nos dados para compreender a assimilação do público. Nesse caso, só podemos fazer uma digressão, especulando os motivos das boas vendagens do livro [ao menos quatro tiragens no espaço de um ano]. A década de 80 marca o surgimento de dois movimentos amplamente distintos entre si: os grupos de administração contemporâneos, e os grupos esotéricos. O grupo ligado à administração valorizava a Arte da Guerra por defender a teoria de que o mercado e a vida empresarial são tais quais como uma guerra, e por isso, exigem estratégias eficazes para alcançar o sucesso e a superação. Veremos que algumas dessas concepções são equivocadas e exageradas, mas encontram uma fonte abundante na literatura norteamericana, que fundou essa visão. Lições estratégicas fundamentais, aprendidas nos conflitos da Coréia [1950-53] e do Vietnã [1963-75], ajudaram na elaboração de conceitos que foram levados por ex-militares ao mercado empresarial.12 O grupo dos esotéricos surgiu no rescaldo da década de 70, quando muito ex-hippies decidiram aceitar as regras de mercado, difundindo seus conhecimentos em artes esotéricas em troca de remuneração. Várias artes 12 Um bom exemplo pode ser visto no livro de Mintzberg, Henry et alli. Sáfari da estratégia. Porto Alegre: Bookman, 2010.

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ocultas, e uma ampla gama de obras da literatura ‘oriental’, passaram a ser valorizadas com formas de aprimoramento pessoal. É no seio dessa comunidade que surgiu a literatura de ‘Auto-ajuda’, que se constitui num vasto conjunto de textos, dos mais diversos matizes, que tem por mister auxiliar na vivência cotidiana e na busca de um sentido filosóficoreligioso individual. De certo modo, os praticantes de artes marciais – grandes consumidores dessa literatura – contribuíram na promoção da Arte da Guerra como um livro desse gênero, dentro da mais legítima tradição de um ‘misticismo oriental’. Vejamos a seguir, pois, uma história dessas traduções, e suas características gerais.

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A versão do Padre Amiot A versão de Clavell reinou sozinha no mercado editorial até que, dez anos depois, surgiu a tradução da Arte da Guerra do Padre Amiot [LP&M, 1993]. Embora o formato da publicação fosse econômico, o texto de Amiot não o era. Dentro de uma tradição própria de tradução dos clássicos chineses, os franceses preferiam traduzir um termo ou conceito chinês em uma longa expressão que denotasse seu sentido, ao invés de somente uma palavra isolada. Isso fazia com que parágrafos sucintos se transformassem em trechos longos e detalhados, que acoplavam palavras que simplesmente não existiam no original. Esse método tem duas implicações: um, que determinada passagens, às vezes obscuras ao nosso entendimento, ficam esclarecidas dentro de um determinado ponto de vista; por outro lado, essas mesmas passagens, cujo sentido é amplo ou

exigem reflexão, ficam condicionadas a uma única interpretação – nesse caso, a do Padre Amiot – perdendo seu sentido polissêmico. A escolha de uma tradução consagrada, porém, foi uma boa opção, tornando-se um referencial seguro. Notas explicativas não foram incluídas nessa versão. Podemos supor que o objetivo, de fato, era alcançar um público mais amplo, diversificado, que estava cada vez mais interessado na obra de Sunzi. Por fim, ressalte-se o esforço em adaptar a obra para o português, tendo em vista que a proposta de Amiot era, de certa forma, fazer uma tradução erudita, adequada ao contexto do século 18.

Versões boas e acessíveis Uma versão muito interessante é de Thomas Cleary, publicada em 1995. Acompanhando a crescente onda de traduções da Arte da Guerra, essa tradução trouxe para o português o texto claro, limpo e simples de Cleary, um renomado divulgador da literatura chinesa. Suas versões costumam ser vulgarizadas, mas nem por isso deixam de ser boas pontes para a antiguidade chinesa. Nessa tradução, foram incorporados os comentários de estudiosos chineses da antiguidade ao texto de Sunzi, na versão que foi estabelecida durante a dinastia Song [960 +1279]. Isso, por si só, torna essa versão bastante especial. O problema dessa edição é que ela omite alguns trechos do texto original, o que constitui, provavelmente, um problema de revisão. Igualmente boa é a tradução de Samuel Griffith, de 1996. Quem olha, não dá crédito a uma singela versão de bolso. Todavia, o texto foi bem traduzido, também traz os comentários clássicos chineses e ainda, conta

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com o texto completo. O formato minúsculo e a ausência de um suporte histórico mais amplo é que podem ser criticados nessa tradução.

Sunzi e Sunbin Em 1972, haviam sido descobertos, na China, os fragmentos da Arte da

Guerra de Sunbin, descendente de Sunzi. Como é comum nessas situações, o texto demorou algum tempo para ser catalogado, preservado, formatado e finalmente, traduzido. A Arte da Guerra de Sunbin trazia um extenso complemento a Arte da Guerra de Sunzi, comentando passagens, ilustrando situações e propondo aplicações das estratégias. Em 2002, veio a lume a versão completa de Sunzi e Sunbin, a partir da tradução de Ralph Sawyer, especialista nos textos clássicos dos

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estrategistas chineses. A versão em português conseguiu preservar a simplicidade da linguagem original, e pode ser considerada uma fonte excelente para compreender ambos os textos. Em 2004, publicaram-se mais duas versões de Sunbin, ambas pela mesma editora. Na primeira, apela-se ao domínio público do nome, intitulando-se a obra Sun Tzu II – A Arte da Guerra e os documentos

perdidos. Apesar desse oportunismo, há que se considerar a dificuldade do público brasileiro com os nomes chineses; além disso, a versão é do mesmo Thomas Cleary, experiente tradutor do chinês, como vimos. Contudo, a segunda versão é uma primorosa tradução, acompanhada de um bom estudo, feito por dois tradutores acadêmicos renomados, D.C. Lau e Roger Ames. Embora se trate essencialmente do mesmo livro, o título é Sun pin, incorporando essa importante modificação de

nomenclatura. Devemos observar, pois, que apesar das inúmeras traduções disponíveis já nessa época, que multiplicavam-se como cogumelos após a chuva, o mercado editorial investiu em tradutores de peso, secundados por estudos sérios do papel histórico e filosófico de Sunzi e Sunbin.

A 1ª tradução diretamente para o Português Em 2006, Adam Sun, chinês radicado no Brasil, efetuou a primeira tradução direta do chinês para o português da obra de Sunzi. Acompanhada do original em chinês, com muitas notas explicativas e um texto acessível, esse excelente livro tornou disponível, ao público brasileiro, uma versão sem intermediações, senão aquelas feitas pelo próprio tradutor. Jornalista profissional, com vasta experiência tanto na escrita quanto no ofício de checagem [verificação de erros, ortografia e adequações em artigos e matérias], Adam não se limitou a fazer uma versão cuidadosa, mas ainda, estabeleceu uma crítica séria com relação a outras que se encontravam disponíveis no mercado daquela época. No entanto, em meio à grande quantidade de versões mais baratas que existiam [mas de forma alguma melhores], seu valor intelectual e cultural não foi devidamente conhecido e apreciado.

A minha versão Dentro desse quadro, fui convidado a realizar uma tradução da Arte da

Guerra, em 2009. Como afirmo na introdução da mesma, não estava inicialmente motivado a fazer esse trabalho, supondo que a grande

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quantidade de versões disponíveis no mercado simplesmente engoliria qualquer trabalho mais recente. No entanto, ao examiná-las, percebi que poderia ser interessante dar uma versão própria, alternativa a abordagem superficial que identificava em muitas. Busquei utilizar minha experiência sinológica na produção do livro, buscando apresentá-lo numa linguagem simples, sintética, e fazendo uma introdução histórica capaz de contextualizar o livro sem ser, no entanto, exaustivo. De fato, minha intenção era criar uma obra capaz de atrair o público para o campo da Sinologia, mas de forma suave. Conhecia as versões de Giles, Amiot, Griffith e Cleary, além de várias outras sem qualquer indicação plausível ou segura. Não conhecia a de Adam Sun, o que poderia ter colaborado bastante no meu trabalho, e que reordena a história das

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traduções de Sunzi como eu informara no livro, e em um artigo no qual analisei as dificuldades de realizar a tradução [Bueno, 2014]. A experiência, porém, foi bastante válida, no sentido de perceber as ausências brasileiras em relação a um conhecimento mais profundo dos estrategistas chineses, o que me deu base para a escrita do presente artigo.

Subindo níveis No mesmo ano de 2009, uma versão da Arte da Guerra de alto nível apareceu no mercado [Ediouro, 2009]. Ela trazia ensaios introdutórios feitos por Antônio Bezerra Junior e Chen Tsang Jye, professores do curso de Chinês da USP, que corroboravam a qualidade da tradução. Nesse sentido, duas outras traduções seguiram a ideia de buscar a interpretação chinesa sobre o original de Sunzi: a primeira se baseava na tese de

doutorado do especialista Yan Kee Wing [Mauad, 2011]; a segunda, na experiência de combate do general Tao Hanzhang [Gente, 2011], atualizando o debate sobre o entendimento da Arte da Guerra na China de hoje. Se pudermos entender a elevação da qualidade dessas obras como um índice de compreensão da Arte da Guerra, isso seria um excelente índice. No entanto, para cada uma dessas boas traduções, há pelo menos três de origem desconhecida, ou que reproduzem montagens de fragmentos, entre outros problemas. O alto consumo das obras de Sunzi, sempre bem qualificada nos rankings de vendas, demonstra que o custo e a curiosidade ainda são os maiores vendedores desse livro, muito mais do que um interesse sério ou especializado.

Problemas estratégicos Agora, quero retomar agora a ideia de perceber os problemas da recepção de Sunzi no Brasil. O primeiro deles diz respeito à obsessão estrita com a obra de Sunzi, o que demonstra o total desconhecimento sobre outras obras estratégicas da história chinesa. A Arte da Guerra acabou se tornando um livro único, isolado do contexto histórico no qual foi produzido, e cujos propósitos foram desviados. Uma pesquisa mais acurada mostraria o milenar debate que existe na China entre diversos autores e obras de estratégia, e que deveriam ser mais conhecidos para que pudéssemos construir um panorama mais amplo da mentalidade chinesa. Podemos considerar que

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houve uma ‘Escola dos Estrategistas’[Bingjia 兵家] na China antiga, cujos autores ignoramos solenemente. Obviamente, pois, tornamo-nos especialistas de um livro só, restringindo bastante nosso entendimento sobre as questões, conceitos e perspectivas que permeavam essas propostas. Em segundo lugar, há um proveito muito equivocado sobre a Arte da Guerra. Permanece a insistência em tratá-lo como um manual administrativo ou da vida, o que aproxima a área da administração com o campo da autoajuda. A guerra, como o próprio Sunzi dizia, é um evento terrível, que ocorre quando a moral acabou, e as regras sociais não valem mais. Quando se inicia um conflito, a única doutrina moral que sobrevive é aquela que motiva o combatente, em oposição aquela que ele

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deve vencer – a do outro. Não é preciso dizer que isso cria um panorama de conflito na mente daqueles que entendem que esse livro é aplicável ao cotidiano, mesmo que de forma metafórica. A incrível quantidade de livros disponíveis que empregam a Arte da Guerra na administração, nas vendas e na vida comum nos revela uma perspectiva muito problemática: estamos dispostos a enganar, matar, roubar, pressionar, assustar, tramar ou trapacear? Pois a guerra se trata disso, e é a isso que Sunzi se dirige. O objetivo é a vitória, quando a negociação acabou. Pergunto: de fato, a vida é assim? Essa pequena digressão serve para ilustrar o exagero do uso da Arte da Guerra como um instrumento de auto-aperfeiçoamento. Sunzi não fez um texto metafórico, mas realístico. Sua grande aceitação deriva, em parte, da

ausência de julgamentos morais de Sunzi. Afinal, para ele, quando a guerra estoura, não há mais limites – limites, esse, justamente, que vivemos hoje. Se vivermos no âmbito das leis e de uma moral que, ainda que egoísta, compreende a existência dos outros, então Sunzi voltará a se circunscrever ao campo da estratégia; mas, se estivermos dispostos a aceitá-lo como um guia real, então, estamos dispostos a embarcar numa aventura niilista. Obviamente, isso se trata de uma postura hipócrita. Queremos vencer na vida, ser o melhor administrador, a melhor pessoa, mas buscamos igualmente o amparo das leis. Ou seja: há uma conveniência cínica por parte daqueles que defendem a estratégia na vida comum; quando a vantagem lhes favorece, a estratégia é pertinente. Isso em muito se assemelha, por analogia, aquelas pessoas que estudam Nietzsche e passam a defender a falência da moral, e o direito do Super Homem – todavia, quando roubados ou traídos, chamam a polícia, e clamam pela lei. Sunzi deve ser lido, claro. Afinal, lemos livros sobre tanques, aviões, armas, guerras mundiais, e nem por isso somos todos soldados, pilotos de caça ou estrategistas. No entanto, é preciso situar o plano ao qual o discurso de Sunzi se dirige, tomando cuidado com possíveis abordagens interdisciplinares que espalhem suas ideias como se fosse uma panaceia humanística e superior. Não o é. E a busca de eficácia, desprovida de Humanidade, já foi devidamente criticada pelos autores chineses antigos. E mesmo um olhar sobre os outros textos da escola dos estrategistas nos daria uma ideia disso. É do que vamos falar, a seguir.

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A Escola dos estrategistas Ao contrário do que se imagina, Sunzi e Sunbin não foram os únicos a lidar com a questão da estratégia na China antiga. Antes deles, Taigong 太公 [séc. -4?]13 e Sima 司馬[séc. -4?] teriam escrito seus livros de estratégia, num contexto de disputa por atenções, prestígio e riqueza. Sima invocava a guerra cavalheiresca, Taigong elaborava estratégias complexas. E, após Sunzi, outros escritores, como Wuzi 吳子, Weiliaozi 尉繚子 e o Duque Huang 黃石公 também deixaram suas visões sobre a questão. O tempo dos Estados Combatentes foi profícuo para esses pensadores, ligados diretamente a questão militar. Somente séculos depois, porém, no período Tang [618 +907], é que foi feita uma classificação mais ou menos definitiva, chamada de Sete Clássicos da

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Estratégia Militar, que criam um corpus desses tratados. Eram eles: Seis

ensinamentos secretos de Taigong [Liu Tao 六韬]; O método de Sima [Sima Fa 司馬法]; A lei da guerra de Sunzi 孫子兵法; Wuzi 吳子;

Weiliaozi 尉繚子; As três estratégias do duque Huang [Huangshi Gong Sanlue 黃石公三略]; e Questões e respostas de Tang Taizong e Li

Weigong [Tang Taizong Li Wei Gong Wen Dui 唐太宗李卫公问对, este último da própria dinastia Tang, de autoria de Lijing 李靖(571 +649)]. Notem que o tratado de Sunbin não estava presente nessa lista, e talvez fosse pouco conhecido na época. Outro gênio da estratégia, Zhuge Liang 13 Também conhecido como Jiang Ziya 姜子牙. Afirma-se que o texto original seria do século -11, mas não há fontes que comprovem isso; a indicação é somente aquela do próprio texto, sem nenhuma outra indicação nos antigos clássicos chineses.

諸葛亮[183 +234], também não aparece. É possível, portanto, que além da arbitrária, a escolha tivesse motivações específicas, tais como alguma espécie de canonização histórica. O que ressalto, aqui, é que o público brasileiro praticamente desconhece esses livros. Grosso modo, ele só tem um parco conhecimento sobre um sétimo do que foi produzido pelos estrategistas – e assim mesmo, de qualidade variável, e carregado de estereótipos empresariais ou esotéricos. Isso é até certo ponto compreensível, tendo em vista que mesmo nos países com uma tradição sinológica mais desenvolvida, alguns desses textos só foram traduzidos mais recentemente. Uma excelente fonte para conhecê-los é o livro de Ralph Sawyer, The Seven Military Classics of

Ancient China [Westview, 1993]. Mas, como estamos a discutir a literatura em português, e no Brasil, precisamos saber o que há sobre. Os primeiros fragmentos desses clássicos apareceram em A sabedoria do

guerreiro, compilado por Thomas Cleary [2001]. Ele traz um conjunto de trechos selecionados dos sete livros, mas a versão em português não traz uma explicação mais detalhada sobre quem eram seus autores ou fontes. Fica-se, pois, com a sensação de um livro de autoajuda, embora o livro seja agradável, e o texto tenha sido traduzido com cuidado e clareza, mas sem qualquer nota explicativa. Foi o Monge Marcos Beltrão que traduziu os sete clássicos de Taigong, Sima, Sunzi, Wuzi, Weiliaozi, Huang e Lijing. Essa fonte merece uma atenção maior por parte do público, sendo a única fonte completa, em nossa língua, desses clássicos. As traduções são cuidadosas, e tem um custo baixo para aquisição eletrônica. Uma notável obra, cuja pouca

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divulgação, a meu ver, revela os problemas do nosso público leitor, quase sempre interessado em versões imediatistas e superficiais.14 Os estrategistas Zhuge Liang e Liuji 劉基 [1311+1375] receberam uma tradução de Thomas Cleary, publicada em 1989, com o nome de

Conhecendo a Arte da Guerra. Recentemente, outra editora reeditou esse mesmo texto [Madras, 2011], que traz as visões estratégicas amplamente distintas desses autores, que viveram bem depois de Sunzi – mas em momentos não menos tumultuados da história chinesa. O padrão em relação os obras de Cleary são os mesmos: traduções simples, basicamente corretas, mas com poucas informações históricas ou elucidativas.

As ‘Trinta e seis estratégias’

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Igualmente clássica, na China, são as trinta e seis estratégias, conjunto de aforismos ligados a habilidade militar e de espionagem, que se transformou em um livro de título homônimo. Os aforismos, isoladamente, pouco dizem, e precisam de explicações adicionais para serem compreendidos. Recentemente, eles se transformaram numa fonte igualmente famosa, pela facilidade de serem decorados e pelas abordagens multifacetadas que lhe são possíveis fazer. A primeira versão desse livro veio a lume, em português, em 1996, pela leitura de Harro Von Senger. No entanto, apesar de bem explicado e contextualizado, o livro só trazia parte dos estratagemas, deixado para um segundo volume – nunca publicado – o seu fecho. Senger fez uma análise 14 Para ver as obras do Monge Beltrão, visite o site: http://marcosbeltrao.com/mestres-de-guerra/

bastante rica dos aforismos, e seu livro vale como uma boa introdução aos 36 estratagemas. A segunda versão foi importada dos chineses, em 2001. As 36 estratégias

dos chineses, de Wee Chow Hou e Lan Luh Luh apresenta historicamente os estratagemas, mas todos os exemplos vêm atrelados à questão empresarial e dos negócios. Mesmo os chineses, portanto, se entregaram a ideia de vender os estrategistas como uma solução administrativa. No mesmo tom é a versão de Hiroshi Morya [2011], As

36 estratégias secretas, o que não contribui muito para a compreensão histórica desse texto. Uma versão excelente foi publicada em 2012, intitulada Os 36

Estratagemas – Manual Secreto da Arte da Guerra. A tradução é magistral, feita por Jean Levi, sinólogo francês ainda ativo. Essa versão recupera o sentido clássico dos estratagemas, sua conexão com a sabedoria tradicional chinesa, e propões sentidos bastante diversos das banalizações feitas em outras versões. Novamente, é um livro que deveria ser mais bem conhecido e divulgado; mas, sem apelo mercadológico, é uma versão magnífica dos clássicos que vê sua circulação restrita pelo desinteresse do público em abordagens mais sérias e densas.

Por uma conclusão Vemos, pois, que para um estudo filosófico e militar da escola dos estrategistas, já temos em português uma relativamente boa literatura disponível. Relativa, claro, porque as melhores versões ainda são pouco conhecidas. Todavia, o velho reclame da ausência de fontes – eterna

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cantilena impeditiva de estudos sinológicos no Brasil -, nesse caso, não mais procede. É possível, portanto, elaborar bons trabalhos acadêmicos nesse sentido, com o auxílio de excelentes manuais de pensamento chinês, como os de Marcel Granet [1997] e Anne Cheng [2009]. O que proponho, contudo, é que se a literatura estrategista será empregada em questões de administração ou da vida comum, que se leiam, enfim, os outros clássicos. Sem eles, todas essas obras continuarão a representar visões incompletas e problemáticas do antigo pensamento chinês. Como disse Confúcio: ‘estudar sem refletir é inútil; e refletir sem estudar é perigoso’. Nesse caso, o desconhecimento das outras fontes manifesta-se, exatamente, nas limitações que as obras calcadas somente em Sunzi apresentam.

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É necessário, portanto, que estudemos mais, e investiguemos mais, para aprofundar nossos conhecimentos sobre essas antigas doutrinas chinesas. É mais um fértil campo aberto a nascente Sinologia brasileira, e passível, já nesse momento, de uma abordagem séria e bem alicerçada em traduções confiáveis.

Referências [Para diferenciar as versões, eu as apresentarei segundo seus tradutores originais]

Sunzi e Sunbin Ames, Roger e D.C. Lau. Sun Pin. São Paulo: Record, 2004. Amiot, Padre. A Arte da Guerra. Porto Alegre: LP&M, 1993. Bueno, André. A Arte da Guerra. São Paulo: Jardim dos livros, 2009.

Cerbari, Gustavo. A Arte da Guerra. Rio de janeiro: Ediouro, 2009. [com os textos de Antônio Menezes e Chen Tsang Jye] Clavell, James. A Arte da Guerra. São Paulo: Record, 1983. Cleary, Thomas. A Arte da Guerra. São Paulo: Pensamento, 1995. Cleary, Thomas. Sun tzu II – os documentos perdidos. São Paulo: Record, 2004. Griffith, Samuel. A Arte da Guerra. São Paulo: Paz & Terra, 1996. Sawyer, Ralph. Sun tzu e Sun Pin – obra completa. São Paulo: Martins Fontes, 2002. Sun, Adam. A Arte da Guerra. São Paulo: Conrad, 2006. Tao, Hanzhang. A Arte da Guerra de Sun tzu. São Paulo: Gente, 2011. Yan, Kee Wang. A Arte da Guerra. Rio de janeiro: Mauad, 2011. Outros textos Cleary, Thomas. A sabedoria do guerreiro. São Paulo: Record, 2001. Cleary, Thomas. Conhecendo a Arte da Guerra. São Paulo: Gente, 1989. Cleary, Thomas. Dominando a Arte da Guerra. São Paulo: Madras, 2009. Jean Levi. Os 36 estratagemas. São Paulo: Landy, 2012. Morya, Hiroshi. As 36 estratégias secretas. São Paulo: Évora, 2011. Raposo, Ignácio. A Philosophia de Confúcio. Rio de Janeiro, 1939. Senger, Harro Von. O livro dos estratagemas. Rio de janeiro: Ediouro, Wee, Chow Hou e Lan, Luh Luh. As 36 estratégias dos chineses. São Paulo: Record, 2001. Lin, Yutang. Sabedoria de Índia e China. 2vls. Rio de janeiro: Ponguetti, 1945. [Coletânea que traz a primeira tradução de Laozi]. Manuais Cheng, Anne. História do pensamento chinês. Petrópolis: Vozes, 2009. Bueno, André. ‘As dificuldades de uma tradução: o Sunzi Bingfa e o contexto cultural brasileiro’. Cadernos de Literatura em Tradução, n.14. São Paulo: USP, 2014. Bueno, André. A Arte da Guerra chinesa: uma história da estratégia na China, de Sunzi a Maozedong. 2011. Disponível em: http://estrategiaschinesas.blogspot.com.br/ Granet, Marcel. O pensamento chinês. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

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O Daodejing no Brasil: Uma revisão literária

Introdução O Daodejing 道德經 [em outras grafias, Tao Te Ching ou Tao Te King] constitui uma fonte fundadora do pensamento daoísta chinês. O texto teria sido composto por Laozi 老子, em torno do séc. -6, sobre o qual se tem poucas informações, basicamente presentes na biografia feita por Sima Qian司馬遷 [-145 a -90] no Shiji 史記, praticamente quatro séculos depois. Isso deu margem a diversos tipos de suposição sobre a

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vida do Mestre, inclusive sua existência. Todavia, esse é um texto bem conhecido na China, e talvez o mais divulgado, junto com o

Lunyu 論語 de Confúcio 孔夫子 [-551 a -479]. O Daodejing, porém, é mais acessível, poético e sucinto, razão de sua atração. Sua leitura, no entanto, é complexa, e demanda um profundo – ou ao menos, desenvolvido – raciocínio filosófico e interpretativo. O Daodejing deu origem ao pensamento dos ‘Caminhantes’ [Daoísmo], que cedo se dividiram entre os ‘pensadores’ [Daojia 道家, ou Escola do

Dao] e os ‘religiosos’ [Daojiao 道教, ou Ensinos do Dao]. No âmbito da Filosofia Chinesa, os ‘pensadores’ diluíram-se, incorporando-se [e incorporando] outras linhas de pensar chinesas. Já a ‘religião daoísta’ consolidou-se como uma forma de culto bem estabelecido, sincretizada

com a religião popular [Shenjiao 神教, ou Ensinos dos Espíritos]. É notável imaginar que ambas as visões tenham o Daodejing como texto fundador, já que constituem pontos de vista bem distintos. Contudo, a religião daoísta pretende a elaboração de uma abordagem igualmente filosófica que permite concomitantemente, assim, a existência de Laozi como um pensador e santo do Daoísmo. De fato, essa ligeira introdução é necessária para compreender que tipos de tradução iremos analisar aqui. Foge ao nosso escopo, por exemplo, a resenha de Te Tao Ching, traduzido por Robert Henricks [1992], a partir das descobertas de Mawangdui 馬王堆, cuja ordem dos dois livros – Dao 道[Caminho] e De 德 [Virtude] aparece invertida. Aqui, vale uma postura tradicionalmente defendida na Sinologia que é: depois da dinastia Han 漢朝[-206 a +221], esses textos estão praticamente consolidados nas formas que conhecemos hoje. Desse modo, é relevante pensar que poderiam existir versões diferentes do texto até o século -3. Isso, porém, só serve para a própria história do livro, mas não do Daoísmo como um todo, que tem por base a versão consolidada que hora discutimos. Assim, o que dispomos é de uma série de traduções feitas com base no texto tradicional [ou oficial], sobre a qual se assenta o discurso daoísta – filosófico e religioso, antigo e moderno. Tal condição é importante para esclarecer que versões iremos debater. O Daoísmo, no Brasil, pode ser encontrando em três abordagens distintas: a primeira, acadêmica, ainda é esporádica e contextual, mas já apresenta algumas produções de relevo; a segunda é a do Daoísmo religioso, trazido

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por mestres chineses como Wu Chao Hsiang [Wu Chaoxiang, 1917 a 2000] e seu filho Wu Jyh Cherng [Wu Zhixeng, 1958 a 2004] e Liu Pai Lin [1907 a 2000, cuja abordagem oscilava entre a filosofia e a religiosidade daoísta]; e, por fim, a abordagem exotérica, ampla consumidora de obras daoístas, mas em caráter superficial e pouco preciso. Obviamente, essa separação só pode ser feita por uma leitura especializada. Afinal, algumas das versões do Daodejing foram publicadas por editoras voltadas ao público exotérico, bem como as análises religiosas do Daoísmo são facilmente absorvidas pelos mesmos. O objetivo dessa nossa revisão, portanto, é apresentar aqueles materiais que, numa visão sinológica, se tratam de versões que possam ser lidas e

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pensadas de maneira acadêmica. Nisso, claro, minha opinião como leitor, e autor dessa resenha, confundem-se claramente com minhas posturas sinológicas, determinando de antemão que eu assuma as opiniões aqui apresentadas. Ver-se-á, porém, que minha intenção é analisar os textos que considero como sérios, utilizáveis para uma pesquisa científica e universitária. Não é da minha alçada, portanto, discutir versões que possam ser lidas como autoajuda, nem os seus méritos ou problemas; minha apreciação diz respeito á viabilidade de ler essas traduções como fontes confiáveis para um estudo mais sério. No mais, limitarei a análise das obras publicadas no contexto brasileiro, entendendo a sua circulação e possível aquisição. Obras portuguesas, ainda

que

esporadicamente

disponíveis,

justamente

por

não

representarem uma constante entre o possível público em nosso país, não serão analisadas.

A primeira versão: Lin Yutang, 1945 Em 1945, a primeira versão do Daodejing surgiu no Brasil na coletânea de Lin Yutang, A Sabedoria de Índia e China. As obras de Lin Yutang 林語堂[1895 a 1976] desfrutavam de sucesso no mercado brasileiro, e a editora Ponguetti encarregou-se de traduzir grande parte delas. A Sabedoria de Índia e China foi traduzida por um grupo seleto e destacado de especialistas e literatos brasileiros, cujo esmero e capacidades foram pontualmente ofuscados por certas confusões conceituais e terminológicas. Um exemplo clássico é a tradução da palavra ‘Céu’ por ‘Deus’, numa evidente associação cristã, como acontece com os textos de Confúcio da mesma coletânea. Por outro lado, a tentativa de manter o tom poético recriou outras passagens do texto, com o uso de palavras um tanto quanto distantes do original. Contudo, a tradução foi feita do inglês [já com algumas dessas modificações], bem como os tradutores se depararam pela primeira vez com textos da Cultura Chinesa, o que os isenta da maior parte dos possíveis equívocos e pecadilhos. Trata-se, porém, de uma tradução responsável e cuidadosa, capaz de escapar de uma mera estereotipização religiosa. A versão consegue manter o tom espiritualizado de Laozi, sem tratá-lo de forma dogmática ou exotérica, e preserva as possibilidades de uma abordagem filosófica criteriosa.

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Tomio Kikuchi, 1966 A tradução de Lin Yutang só ficaria solitária até 1966, quando a versão de Kikuchi, Moral Universal de Lao Tsé e Essência do Oriente foi lançada. A tradução se incluía em um programa cultural mais amplo, relacionado à alimentação Macrobiótica, no qual o professor Kikuchi, vindo do Japão, era promotor. As qualificações acadêmicas e linguísticas do tradutor devem ser levadas em conta, posto que privilegiam seu acesso ao texto original; todavia, por estar inserida em um programa específico de pensamento que não está diretamente ligado ao Daoísmo, a versão exige uma atenção especial em sua leitura e emprego.

Richard Wilhelm, 1978

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Foi a editora Pensamento, conhecida por seu vasto catálogo de obras exotéricas, que publicou a excelente versão de Richard Wilhelm [1873 a 1930], composta no início do século 20, intitulada Tao Te King. Wilhelm era um pastor alemão que fora à China converter o povo ao Cristianismo, mas que acabou tornando-se um dos maiores sinólogos e tradutores da Civilização Chinesa. Ocasionalmente, suas obras são consideradas religiosas ou exotéricas, dada a sua abordagem das crenças chinesas, ou mesmo, da sua defesa da eficácia do Ijing 易經 [Tratado das

Mutações] como oráculo. Isso, porém, não desmerece a qualidade de suas obras. Wilhelm traduzia os textos do chinês para o alemão, e depois, traduzia novamente para o chinês, para comparar a precisão de seu texto. Por conta disso, a tradução do Ijing e do Daodejing demorou anos, mas

alcançou um nível de cuidado e sensibilidade reconhecido pelos próprios mestres daoístas chineses como excelente. A tradução para o português conseguiu conservar a maior parte das conquistas de Wilhelm, bem como suas introduções elucidativas. Assim, essa tradução qualifica-se para uma abordagem multifacetada do

Daodejing, permitindo-nos interpretar as inferências filosóficas e religiosas chinesas.

Huberto Rohden, 1982 Curiosamente, uma boa – mas pouco conhecida – versão do Daodejing é a do filosofo catarinense Huberto Rohden [1893-1981], dono de uma vasta obra, na qual se inclui o Tao Te Ching – o livro que revela a Deus. Rohden era defensor de uma proposta filosófica original, que defendia uma integração universal do pensamento metafísico, cujas características complexas só podem ser mais bem avaliadas pela leitura de seus livros. Aparentemente, a sua tradução não foi feita do chinês; mas o que torna essa versão do Daodejing importante é a releitura que ele faz do texto, inserindo-o em seu sistema filosófico, e estabelecendo com ela um legítimo diálogo ‘Ocidente-Oriente’. O próprio título revela a preocupação de realizar uma projeção religiosa sobre o texto; contudo, a apresentação de Rohden não descamba para uma abordagem exotérica superficial, mas mantém a integridade de um raciocínio lúcido e perscrutador, que investiga o pensar chinês em busca de respostas. Desse modo, é necessário dizer que a precisão com a terminologia chinesa se vê um tanto prejudicada; por outro lado, ao captar [e transmitir] uma

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essencialidade da obra, bem como uma abordagem filosófica Ocidental, Rohden conseguiu propor o livro de uma maneira original, que vale ser conferida como fonte.

Murillo Nunes de Azevedo, 1992

O livro do Caminho Perfeito – Tao Te Ching é a tradução de Murillo Nunes de Azevedo [1920 a 2006], pensador brasileiro com intenso trânsito em disciplinas asiáticas [foi monge budista] e na Teosofia. Posto que a Sociedade Teosófica, com a qual ele se relacionava diretamente, é uma das agremiações mais comumente associadas às práticas exoteristas, e que o livro foi publicado pela editora ‘Pensamento’, estaríamos diante de mais um caso [como o de Wilhelm e Kikuchi] em que nossa tendência

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seria de classificar a obra como ‘exotérica’. Mas a tradução de Murillo é de uma sensibilidade tremenda, capaz de captar e transmitir a essência do Daoísmo de Laozi. Usando de sua experiência com as doutrinas ‘orientais’, Murillo conseguiu ler o texto de uma forma profunda, transformando-o em imagens brilhantes, que surgem nos comentários apresentados após cada um dos poemas. O seu texto, pois, além de bem produzido, torna-se um guia para a leitura do Daodejing, possibilitando um acesso consciente tanto ao especialista como ao leigo. Por fim, as inserções de caráter sapiencial ajudam a explicar e entender o texto, o que o enriquece sobremaneira. É notável que essa característica pode virtualmente torná-lo um manual de autoajuda; todavia, se todos os guias de autoajuda fossem assim, eu seria obrigado a rever minhas opiniões sobre essa categoria de livros. Assim, a versão de Murillo facilmente

emparelha com as outras já comentadas, mas possui o caráter didático que muitas vezes falta às versões acadêmicas.

Wu Jyh Cherng, 1998 O Mestre e Sacerdote daoísta Wu Jyh Cherng 武志成 produziu uma tradução do Daodejing em 1998, que deve ser aqui indicada. Além de ser uma versão direta do chinês para o português, ela nos põe em contato com o legítimo pensamento religioso chinês, tratando-se então de uma versão de grande riqueza antropológica. O interessante nessa tradução é buscar as conexões estabelecidas entre o texto e o Daoísmo religioso difundido em nosso país pelo Mestre Cherng, o que caracteriza uma abordagem relativamente diferente daquelas que podemos classificar como literárias e filosóficas. Não que a dele não se propusesse, também, filosófica: mas, inserida na mentalidade religiosa de sua comunidade, ela nos proporciona um panorama alternativo e, por isso, relevante, principalmente no que toca a compreensão das práticas religiosas chinesas.

Mário Bruno Sproviero, 2000/2002

Daodejing – Escritos do Curso e sua Virtude, de Mário B. Sproviero, é a primeira tradução absolutamente nacional, feita por um especialista em literatura chinesa. Sproviero fez um magistral uso da língua portuguesa, ao adaptar a tradução versificada do texto chinês, criando uma imagem única, capaz de transmitir a essência e de revelar o âmago de uma poesia altamente espiritualizada e filosófica. Muitas vezes, é difícil combinar a

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correção da tradução acadêmica com o vigor e a beleza da tradução livre, pois o que ganha uma em sentido, perde em forma, e vice-versa. O trabalho artesanal de Sproviero revela um domínio único do chinês, e uma habilidade ímpar em transcrevê-lo ao português. Se já dispúnhamos de traduções capazes de dar conta dos aspectos filosóficos ou religiosos do Daodejing, Sproviero conseguiu ir além, criando uma peça literária, própria para o estudo sério, tanto quanto para a apreciação estética. Esta tradução, pois, constitui-se obra indispensável na leitura do Daodejing.

Burton Watson, 2002 Essa versão se trata de uma ‘tradução-padrão’ do Daodejing, feita pelo prolixo e altamente qualificado Burton Watson, cujo conjunto de

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trabalhos e traduções é simplesmente maior, provavelmente, do que tudo que já foi publicado na área da Sinologia no Brasil. Curioso, porém, é que essa versão é muito boa em termos acadêmicos, mas não se destaca de modo específico em relação às outras. O vocabulário conceitual é apropriado, correto, e consiste numa fonte segura para o estudo do texto. Todavia, optou-se por um trabalho seguro, menos ousado ou poético, sem um estudo mais amplo, mas com um texto acessível e correto, bem reproduzido em português. É provável que a intenção de Watson fosse criar uma versão de referência, que não incorresse em trechos dúbios, ambíguos ou criasse pontos de tensão em relação à interpretação das passagens. Desse modo, sua versão é absolutamente recomendável para estudos, mas é menos atraente em termos estéticos e analíticos mais amplos.

Conclusão Passada mais de uma década, outras versões do Daodejing surgiram, mas não apresentam dados relevantes para o nosso estudo, constituindo, em geral, obras de divulgação sem maiores preocupações. Diferente das obras de Confúcio, o Daodejing foi contemplado, entretanto, com um escol de tradutores dedicados e devidamente interessados na produção de traduções responsáveis e adequadas. A presença das opções citadas permite ao estudioso encaminhar suas análises sobre o Daodejing em bases relativamente seguras, constituindo um bom ponto de partida para a compreensão do Daoísmo – seja filosófico, religioso, ou ambos. As razões que poderíamos elencar – que o Daodejing seria um texto sucinto, rápido ou simples – não justificam, ainda, a presença de tão boas traduções. É possível que o esmero tenha se ajuntado ao interesse legítimo e à própria beleza que a natureza do texto nos traz, no momento de ‘transcriá-lo’ para o português [mesmo nos casos chinês-inglêsportuguês]. Há, contudo, um padrão identificável no sucesso dessas versões, quiçá, ligado à apreensão do ‘espírito’ do texto. Se assim for, estamos bem providos de um acesso adequado – e belo – ao Daoísmo no Brasil.

Nota Final: Daodejing, Tao Teh Ching ou Tao Te King? As denominações usadas para

a obra 道德經 correspondem às

transcrições fonéticas do som das palavras em chinês. O que ocorre é que, ao lidar com versões diferentes, cada um terminou por grafar a forma que

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mais lhe convinha. A pronúncia aproximada, em português, seria algo como ‘Dao Dê Jíng’, cujo ‘D’ tem um som duro, como ‘d’ de ‘dado’ ou o ‘t’ de ‘tato’, e o ‘j’ um tanto soprado, como de ‘janela’. A pronúncia se presta mesmo à confusão, quando alfabetizada. Em inglês, a transcrição fonética culminou em ‘Tao te ching’, e no alemão, o ‘k’ de ‘King’ representaria o som ‘ch’. A transcrição ‘Daodejing’ vem do sistema pinyin 拼音, usado na China continental, que tem se tornado padrão internacional. Nesse caso específico, a pronúncia em português se aproxima bastante da original, tanto sonora quanto da transcrição pinyin.

Traduções [Ordenadas segundo o nome dos tradutores originais]

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Burton Watson. Tao Te Ching. São Paulo: Martins Fontes, 2002. Huberto Rohden. Tao Te Ching – o livro que revela a Deus. São Paulo: Alvorada, 1982. Lin Yutang. Sabedoria de Índia e China. Rio de Janeiro: Ponguetti, 1945. Mário Bruno Sproviero. Daodejing-Escritos do Curso e da sua Virtude. São Paulo: Hedra, 2002 [1a versão: São Paulo: Mandruvá, 2000]. Murillo Nunes de Azevedo. O Livro do Caminho Perfeito – o Tao Te Ching. São Paulo: Pensamento, 1992. Richard Wilhelm. Tao Te King. São Paulo: Pensamento, 1978. Robert Henricks. Laozi: Te-Tao Ching. Nova Iorque: Ballantines, 1992. Tomio Kikuchi. Moral Universal de Lao Tsé e Essência do Oriente. Belo Horizonte, s/Ed., 1966. Wu Jyh Cherng. O Livro do Caminho e da Virtude. Rio de Janeiro: Mauad, 1998.

O I jing no Brasil: Uma revisão literária

Talvez nenhum outro texto chinês seja lido de forma tão controversa como o Ijing 易經[em pinyin, ‘Yijing’ e em português ‘I Ching’, o ‘Tratado das Mutações’]. Uma das obras mais antigas do pensamento chinês – senão a mais ancestral de todas – o Ijing é conhecido no Ocidente como um livro oracular, de sortilégios, conselheiro ideal para o cotidiano. Nada mais justo: os chineses fazem amplo uso dele neste sentido, existindo mesmo consultores especializados em tirar a sorte por meio do livro. A história do Ijing explica as razões desse destino oracular de uma fonte tão preciosa para compreender o pensamento chinês. O Ijing surgiu, supostamente, no século -12, quando os pensadores chineses empreendiam uma racionalização cosmológica da Natureza. É provável que o livro já existisse antes, mas é no período Zhou 周 [1046 – 221] que ele começou a tomar a forma que conhecemos hoje. Organizado e comentado pelos sábios fundadores do passado, o livro consagrava um sistema de compreensão da Natureza, estabelecendo relações entre seus processos e suas características morfológicas. Do mesmo modo, o livro expressava a realidade por meio de imagens – um elemento caro à

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linguagem logográfica chinesa – tornando-se o cerne de um pensamento correlativo, de associação, que constitui o âmago da lógica chinesa. Assim, o Ijing surgiu como um manual de ciências, um discurso sobre a Filosofia da Natureza – suas fases, ciclos, propriedades e propensões. Contudo, se o Ijing era capaz de explicar a Mutação [易] – o mundo material, em suas mais diversas perspectivas – ele poderia ser capaz, também, de prever o desfecho de determinadas situações, de acordo com suas tendências energéticas. Assim, pois, como se espera frio no inverno, ou calor no verão, quando uma situação X se apresentasse a uma pessoa [ou grupo], que possíveis desdobramentos poderiam ocorrer? Desse potencial análogo, os chineses conceberam a ideia de que o Ijing poderia fornecer-lhes respostas para situações do presente ou do futuro, por meio

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da formulação de perguntas e a intercessão do livro. É difícil determinar como se daria a conexão entre pergunta-resposta; os próprios chineses respondiam de formas variadas, tais como: a) que o ser interage com o Cosmo, e apenas se conscientiza de suas tendências; b) intervenção dos espíritos ou ancestrais, que podiam explicar essas tendências por meio de símbolos; c) dinâmica energética, a partir do toque da mão com as varetas ou moedas oraculares, criando um processo de identificação análogo entre o livro, que apresenta imagens de diversas situações, com a própria situação na realidade, etc. De um modo ou de outro, a questão é que o Ijing vulgarizou-se como um oráculo, e o próprio sábio Confúcio, que no século -6 tratou de reorganizá-lo e comentá-lo, não fez questão de desfazer essa visão comum. Ao contrário; seu interesse em aprofundar-se no estudo do Ijing

fez com que ele desejasse mais tempo de vida [Conversas 論語, 7,17]. Ou seja, era crença corrente entre os chineses de que um Tratado Cosmológico poderia servir para a signomancia. É provável que esse seja um caso único na história da humanidade, tornando os chineses, mais uma vez, um povo singular. Um estudo sério do Ijing nos mostra, porém, que além dessas impressões estético-mágicas, é possível ainda compreender as origens do pensamento imanente chinês, que doravante embasaria a filosofia chinesa, por meio do refinado sistema yin-yang de ‘coordenadas do real’. Isso porque yinyang não são valores absolutos, mas tendências e propriedades de algo que, em dado contexto, definem um objeto, e aquilo que se contrapõe a ele, dando-lhe a forma e o sentido – processo esse conhecido como ‘oposição complementar’. Dessa lógica, surge a noção absolutamente dialética do pensar chinês, constituindo-se em seu método fundamental de observar, raciocinar e analisar. O Ijing, portanto, mereceria um estudo mais aprofundado, no sentido de desvendar-lhe as lógicas internas, de modo a fazer compreender a mentalidade chinesa antiga. Mesmo assim, não estamos carentes de boas traduções dessa fonte no Brasil: apenas, porém, elas não são essencialmente acadêmicas, ou ao menos, assim elas não são vendidas. Como veremos, algumas traduções abalizadas do Ijing foram promovidas, justamente, por seu aspecto mais atraente – o oráculo – e por isso, caíram nas graças dos exoteristas. No entanto, alguns desses materiais podem ser usados adequadamente em estudos sinológicos, provendo traduções seguras e conceituadas.

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Mais uma vez, circunscrevo-me ao panorama brasileiro, apresentando as traduções que me parecem mais relevantes para o estudo sério. Via de regra, as omissões se constituem das obras que não consultei, ou que não valem para uma compreensão acadêmica da mesma. Ainda que em menor número que as traduções de Laozi ou Confúcio, o Ijing já dispõe de versões problemáticas e superficiais o suficiente para torná-lo um livro obscuro ou descaracterizado. Delas, pois, nos apartamos, privilegiando uma crítica séria e construtiva.

John Blofeld, 1968 Apenas uma versão amadorística, sem indicações de tradução, resumida e absolutamente vulgarizada, circulava no Brasil antes da chegada da

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primeira versão séria do Ijing feita por John Blofeld, lançada em 1968. Blofeld [1913-87] trabalhou e lecionou na China durante anos, e era um estudioso do Daoísmo e do Budismo, que se interessou por fazer uma tradução do Ijing, em critérios bastante interessantes. Blofeld conhecia outras traduções européias [que ainda não haviam chegado ao Brasil] e, por conta disso, fez algumas opções no sentido de simplificar o texto – não necessariamente para vulgarizá-lo, e sim, aproximar-se do original em chinês clássico, sintético e direto, caracterizado por um uso econômico das palavras. Algumas de suas interpretações distam das e outros tradutores,

criando um

contraponto fértil

ao

debate. Blofeld

provavelmente não dominava o chinês clássico como James Legge ou Richard Wilhelm, como veremos, mas também não era, com certeza, um iniciante inábil. Sua versão, portanto, é um bom ponto de partida para

uma leitura do Ijing, embora o aspecto oracular fique privilegiado. Ademais, sugere-se dispensar alguns comentários inseridos na versão brasileira, estranhos ao original, e que o descaracterizam.

James Legge, 1972 A versão da obra de James Legge [1815-1897] se trata de uma das traduções mais conceituadas do Ijing no campo da Sinologia. Ainda hoje, em inglês, ela constitui a versão ‘standard’, que pode ser usada com razoável confiança e credibilidade. De fato, Legge tinha um domínio do chinês impressionante, que poucos alcançaram; pode-se criticar sua obra pelo uso de uma terminologia antiga [datada do século 19], mas nem de longe ela apresenta problemas sérios de conteúdo, ao contrário: Legge foi capaz de criar várias soluções para verter o chinês clássico para o inglês, praticamente definindo alguns dos conceitos chineses, cuja complexa interpretação encontrou, em sua versão, um padrão até hoje vigente em certos casos. A obra de Legge somou uma relevante contribuição ao nosso parco corpo de traduções sínicas, lamentando-se que somente o Ijing tenha sido traduzido. Legge conseguiu criar um texto distanciado do aspecto religioso, o que se preserva na versão em português. Colocando de outra forma: seu texto apresenta-se como uma tradução clássica, erudita, e ninguém se sente estimulado a consultá-la como um oráculo após sua leitura. Isso pode parecer um demérito, mas não é: ao contrário, torna-se uma virtude, na medida em que o texto carece de apelos vãos ou superficiais, constituindo uma abordagem profissional e dedicada ao

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original. Pode-se extrair muito, em termos de religião, crença ou ciências chinesas da leitura da versão de Legge, mas de maneira sinológica e séria, sem recorrer-se ao lado ‘exotérico’ da obra.

Richard Wilhelm, 1983 Costuma dizer-se que a versão de Richard Wilhelm [1873-1930] pode ser considerada ‘A tradução definitiva’ do Ijing, e vários motivos apontam para tal: o cuidado primoroso, o envolvimento, a sensibilidade na análise dos hexagramas e suas linhas, e ainda, o vasto estudo dos comentários e análise presente na segunda parte do livro, o que a tornam uma obra indispensável na biblioteca sinológica. Sua tradução é reconhecida, mesmo, por especialistas chineses, tendo o aval de sua

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impecabilidade. Não seria absurdo dizer que Wilhelm ‘entendeu’ o Ijing, de tal modo que hoje, se nos é possível entender o texto, é porque ele abriu o caminho e nos facilitou enormemente a vida. Wilhelm consumiu anos de trabalho nessa tradução, que ele fez para o alemão e depois, traduziu novamente ao chinês, para verificar sua correção. Mesmo sendo posterior a de Legge, ela tornou-se paradigmática, constituindo um ponto de inflexão e debate. No Brasil, a obra foi traduzida brilhantemente por Alayde Mutzenbecher, cujo estudo aprofundado do Ijing levaria a tradutora a realizar sua própria versão, que iremos analisar a adiante. A tradução brasileira traz, ainda, o a introdução do psicanalista Carl Jung, contributo notável a essa obra fantástica.

Wu Jyh Cherng, 1993

I Ching, Alquimia dos Números, é a versão realizada, no Brasil, pelo sacerdote daoísta Wu jyh Chergn [Wuxi Zheng, 1958-2004], cujo perfil religioso justifica sua inclusão. Como representante legítimo da religião daoísta chinesa no Brasil, a tradução de Cherng preserva um caráter introdutório, simplificado, sem abordagens das linhas ou dos comentários. Em termos práticos, ela não contribui diretamente para a compreensão do Ijing historicamente dito, mas sim, para a visão religiosa que dele os daoístas mantém. Entre as crenças do Daoísmo, há formas diferenciadas de abordar o oráculo, o que implica em sistemas de leitura diferentes, cuja transmissão é feita por iniciação. Posto assim, não faria sentido que a tradução investisse em explicações longas e detalhadas. Podemos propor, enfim, que essa versão tem um caráter antropológico importante, e pode assim ser examinada.

Alfred Huang, 2007 O lançamento de I Ching – Edição completa [2007] trouxe ao público uma versão atualizada do texto, transposta ao francês pelo mestre daoísta Alfred Huang. Não se trata apenas de uma versão mais recente de que dispomos, mas de um texto que transita facilmente entre o cuidado acadêmico e a abordagem religiosa. Contudo, o trabalho de Huang é extenso, completo e cuidadoso, permitindo um acesso multifacetado ao texto. Entende-se que o livro, tal como proposto por ele, mantém-se uma fonte clássica, um texto religioso e um oráculo, abrindo-o para inferências antropológicas significativas, tal como a versão de Wu

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Cherng. Todavia, algumas das traduções antes citadas são capazes de superá-la em termos textuais, propondo-nos uma leitura cuidadosa do mesmo.

Alayde Mutzenbecher, 2010 A tradutora, com uma profunda e vasta experiência no Ijing, investiu na construção de uma tradução própria, em que conciliou e ponderou as diversas versões existentes no sentido de construir um texto mais completo e uníssono. De certa forma, sua versão preserva e disponibiliza o sentido oracular do Ijing; contudo, o primor de seu trabalho, o acerto na escolha dos termos, aliado a um consciente poder de síntese – fruto provável de anos de experiência – transformou seu trabalho numa fonte

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rica, confiável e segura para os estudos acadêmicos. Há que se destacar o fato de ser a primeira tradução em português feita por uma brasileira, cujo denodo foi capaz de depurar os equívocos de versões anteriores, e construir um texto impecável e apreciável nos mais diversos sentidos.

Jorge Vulibrun [online] É preciso destacar a versão online [não datada] do argentino radicado no Brasil Jorge Vulibrun, disponível no site [http://yijingorienta.com.br], cujo apuro e extensão denotam igualmente anos de estudo sobre o texto do Ijing. Um trabalho laborioso, feito com base em traduções diversas, comparações e reflexões ajudaram na construção de uma versão rica e abrangente, absolutamente oportuna para estudos acadêmicos sérios. Junto ao texto do Ijing, o autor apresenta introduções ao pensamento

chinês, na forma de artigos, que contribuem substancialmente para ampliar a compreensão tanto do Ijing como do próprio pensamento chinês. Nesse ponto, pois, uma tradução segura, clara, bem estruturada e gratuita, torna-se um excelente instrumento para o estudo sinológico, permitindo-nos o acesso a uma fonte qualificada e bem produzida.

Estudos sobre o Ijing Existem muitos outros livros produzidos sobre o Ijing, que constituem os mais diversos tipos de abordagem ao texto sem se tratarem, de fato, de traduções. Alguns são estudos sobre o Ijing, cujo cunho é totalmente oportunista e superficial, propondo análises que em muitos casos – sua grande maioria, na verdade – em nada contribuem para a compreensão do texto clássico. Por outro lado, alguns trabalhos bastante relevantes foram publicados, proporcionando uma visão histórica e filosófica do

Ijing, que não só permite-nos compreendê-lo melhor como ainda, nos mostram outros aspectos do texto clássico que o público alheio à prática sinológica desconhece. Assim, creio que é oportuno comentar alguns desses estudos sobre o

Ijing, de modo a apontar caminhos e pontos de vista que possam enriquecer o conhecimento e o debate sobre a obra. Richard Wilhelm, esse grande especialistas no Ijing e no Daoísmo, teve publicados mais dois estudos sobre o Ijing: O Pequeno I Ching e A

sabedoria do I Ching, nos quais resume os aspectos mais amplos da obra, discute alguns de seus pontos principais e relata suas experiências com o

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livro, o que nos revela o teor e a profundidade de suas relações e vivências com o Ijing. Podemos dizer que essas duas obras introduzem o Ijing para o público leigo, posto que sua tradução, em muitos pontos profunda, poética e belíssima, não é acessível para quem busca respostas fáceis, rápidas e superficiais. Wilhelm, provavelmente, estava consciente do quanto havia se distanciado dos leitores em geral, ao mergulhar de modo singular no complexo sistema do Ijing e do pensar chinês. Nesse sentido, ele utilizou de sua vasta experiência para traduzir, de modo mais acessível, as complexidades do texto, criando uma versão vulgarizada e séria. Diferentes de Wilhelm são as obras de Cyrille Javary, conceituado sinólogo francês, cujo conhecimento do Ijing é igualmente respeitável.

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Duas obras suas de análise sobre o Ijing estão disponíveis para nós: I

Ching, o livro do Yin e do Yang é uma preciosa introdução histórica ao clássico, mostrando-nos sua trajetória na civilização chinesa. O livro de Javary dirige-se a quem já conhece o Ijing, mas sabe pouco sobre ele além da tradução. Aspectos peculiares e importantes do pensamento chinês, ligados ao Ijing, são discutidos pelo autor, num tom claro, sistemático e embasado. Apesar de pequena, essa obra constitui um bom suporte para os estudiosos do livro. Já A organização do I Ching se trata de uma explicação sobre os aspectos de funcionamento do sistema yin-yang e sua aplicação no Ijing, a questão das disposições das linhas internas, sua dinâmica e movimento, etc. É um texto bastante específico, para quem igualmente já conhece o Ijing, e pensa em aprofundar-se em seu entendimento.

Uma introdução histórica que segue uma linha aproximada a de Javary é

I Ching, o oráculo chinês: mito e história, do intelectual argentino Ezechiel Saad. É uma obra pequena, informativa, simples e, no entanto, bastante esclarecedora sobre muitos aspectos do tratado das mutações. Trata-se de uma boa introdução ao clássico chinês, e sua leitura é recomendável. J. Schlumberger produziu também um abrangente estudo sobre o Ijing, intitulado O I Ching – princípios, prática e interpretação. Seu trabalho é complexo, pois aborda e desconstrói inúmeras relações presentes no texto, esmiuçando seus aspectos estruturais e funcionais. Não é uma obra fácil, mas ao mesmo tempo, é um estudo bastante sensível e complexo sobre o clássico chinês.

Conclusão Talvez caiba citar, ainda, uma introdução simples, acessível, e porém não menos correta, de Anton Kielce [1986]. Embora de fortes caracteres exotéricos, seu livro de introdução escapa de uma leitura errônea, para encaminhar o leitor a uma abordagem mais séria e constrita do Ijing, valendo-se dos estudos de Wilhelm e Javary. Num texto cujo objetivo era realizar uma revisão sinológica dessa fonte no Brasil, pode parecer um tanto recomendar também, por fim, essa pequena introdução um tanto distante das traduções eruditas do Ijing. A questão é que, de uma maneira ou de outra, o Ijing continua a ser um clássico antigo e profundo, sobre o qual várias leituras superficiais têm buscado se impor. Algumas das fontes aqui utilizadas são indicações de

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escol, mas nem sempre compreensíveis ao público não especializado. Desse modo, indicar a qualidade das obras não transmite o fato de que algumas são difíceis, o que nos permite propor estudos ou introduções, como fizemos ao fim. Isso se deve a que um estudo sinológico sério precisa de instrumentos seguros, com os quais não se tem acesso de modo acidental ou imediato. No caso do Ijing, dispomos de gratas versões do texto para nossa língua, mas necessitamos de cuidado e esforço para compreendê-las, posto que elas aludem à um complexo e milenar sistema de pensamento, que em muitos aspectos simplesmente desconhecemos. Temos, pois, traduções do Ijing; e estudos – possíveis começos – para aqueles que demandam um interesse vivo pelo antigo clássico.

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Referências [ordenadas pelos autores] Blofeld, John. I Ching: O livro das Transmutações. Rio de janeiro: Record, 1968. Huang, Alfred. O I Ching - Edição completa. São Paulo: Martins Fontes, 2007. Javary, Cyrille. A organização do I Ching. São Paulo: Grypuhs, 2014. Javary, Cyrille. I Ching, o livro do Yin e do Yang. São Paulo: Pensamento, 1989. Kielce, Anton. O I Ching. São Paulo: Martins Fontes, 1986. Legge, James. I Ching: O livro das mutações. São Paulo: Hemus, 1972. Mutzenbecher, Alayde. I Ching: o livro das Mutações. São Paulo: Gryphus, 2010. Saad, Ezechiel. I Ching, o oráculo chinês: mito e história. São Paulo: Pensamento, 1989. Schlumberger, Jean. I Ching - princípios, prática, interpretação. São Paulo: Pensamento, 1993 [Círculo do Livro, 1987] Wilhelm, Richard. A Sabedoria do I Ching. São Paulo: Pensamento, 1995.

Wilhelm, Richard. I Ching: o livro das Mutações. São Paulo: Pensamento, 1983. Wilhelm, Richard. O Pequeno I Ching. São Paulo: Pensamento, 1990. Wu Jy Cherng. I Ching: a Alquimia dos Números. Rio de Janeiro: Mauad, 1993.

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Corpus Daoísta: Que Fontes para o estudo do Daoísmo no Brasil?

Num ensaio anterior, apresentamos algumas traduções do Daodejing 道德經, que consideramos viáveis para o estudo do pensamento e da religião daoísta no Brasil. Pudemos constatar que o Daodejing dispõe de versões boas e acessíveis, tornando-se um ponto de partida seguro para uma compreensão mais ampla do pensamento chinês. O corpus de obras daoístas, porém, é

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vastíssimo, e dele sabemos quase nada em nosso país. Quem quiser, pode consultar as relações de obras daoístas feitas por Fabrizio Pregadio [http://www.goldenelixir.com] ou a de Kristofer Schipper e Franciscus Verellen [The Taoist Canon – a Historical Companion to the Daozang, 3 volumes, 2004], das quais a maioria não se encontra Tratados e textos curtos; traduzida para os idiomas ocidentais. Muitos são apenas outras são volumes extensos, cujas traduções ainda estão praticamente em andamento, como no caso do Baopuzi 抱樸子 de Ge Hong 葛洪 [sécs. +3+4]. Não é de estranhar, pois, a dificuldade de achar textos daoístas traduzidos no Brasil. Além da carência de especialistas interessados nesse tema, a quantidade limitada de produções para línguas ocidentais, bem como o reduzido público para as mesmas, torna pouco atraente o investimento na tradução e publicação de tais obras. De fato, dado o alto

grau de especialização que a compreensão das mesmas envolve, é mais coerente que o pesquisador aprenda chinês clássico e dedique-se a interpretação direta. Mesmo assim, não se pode negar que algumas obras do corpus daoísta se transformaram em clássicos da literatura, cuja leitura revela alguns aspectos importantes do pensamento e da cultura chinesa. Isso proporcionou a tradução de algumas obras chinesas para o português, seja pelo seu sucesso de divulgação no exterior, seja pelo interesse real na compreensão dessa civilização. Um ponto importante deve ser colocado aqui: embora eu critique constantemente as abordagens superficiais do exoterismo, por outro lado, é o interesse assíduo desse grupo que tem motivado a realização dessas traduções, muitas vezes com fins de consumo rápido, mas que acabam sendo divulgadas. Devemos lembrar que o mercado editorial vive de vender livros; mas, a par das publicações oportunistas, esse público tem sido disputado cada vez mais por traduções de qualidade, que acabam colaborando para a publicação de obras de referência [como no caso do Ijing de Richard Wilhelm ou de James Legge]¹. Por um lado, esses textos podem encaminhar os exotéricos para uma leitura mais séria e profunda dos clássicos; por outro, eles revelam o profundo desinteresse da academia pelos temas asiáticos, evidenciando essa ausência gritante e problemática. Em resumo: a academia pode vociferar contra os exotéricos, mas muitas vezes, não tem nada a oferecer em troca, senão os conteúdos consagrados de sempre. Nessa fratura epistemológica, atuam então os mais diversos tipos de autores, desde aqueles em busca de visões alternativas - mas sérios em

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seus propósitos - até aqueles cujo oportunismo age em função do desconhecimento ou da obtusidade. Essa não é uma análise ampla e exaustiva do problema, que fique claro, mas nos remete à necessidade de constatar que, graças aos exotéricos, temos algumas obras daoístas traduzidas. São pouquíssimos os tradutores acadêmicos desse tipo de texto no Brasil, e com esse conjunto restrito, precisamos então nos conscientizar do material que temos em mãos, suas possibilidades e características, permitindo-nos assim visualizar que tipos de usos podemos fazer deles. Nessa apresentação, indicarei as traduções paulatinamente, por cada texto e/ou autor, buscando resenhá-las conforme suas características literárias e sinológicas. Ademais, obras não incluídas aqui implicam, como já disse em outras oportunidades, no meu

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desconhecimento acerca delas ou de que, segundo minha análise, não significam uma indicação relevante.

Zhuangzi Zhuangzi 莊子 [-369-286?] foi o autor mais importante do Daoísmo filosófico depois de Laozi 老子, e sua obra tem se tornado, nos dias de hoje, uma referência importante no estudo sinológico. Ela tem sido abordada de maneira multifacetada, permitindo inferências no campo do pensamento, da religião, da linguagem, da história e das mitografias chinesas. A obra de Zhuangzi consiste em trinta e três capítulos, dos quais apenas sete são considerados 'originais', e por isso são chamados de 'internos' [‘nei pian’ 內篇]. É muito comum, portanto, que mesmo as

versões de Zhuangzi em outras línguas tragam apenas esses capítulos tradicionais, deixando de fora aqueles que teriam sido adicionados posteriormente. Por se tratar de uma obra cuja estrutura está em prosa, composta por narrativas fabulares, o Zhuangzi permite um acesso diverso em relação à obra de Laozi. Essa propriedade do texto permitiu que a tradução feita na obra de Lin Yutang [1945] fosse repassada ao português de forma linda, clara e correta. Em Sabedoria de Índia e China, 1945, os 'capítulos internos' apareceram pela primeira vez em nossa língua, no Brasil, e conservaram uma beleza extraordinária na tradução. Mesmo assim, passagens mais difíceis algumas delas ligadas a questão da linguagem - não perderam seu conteúdo e essência, sendo muito bem transpostas para o nosso idioma. Pode-se dizer que essa tradução foi um caso feliz de adaptação, permitindo-nos uma leitura fácil e agradável. Ela também foi única até 1976, quando a versão de Thomas Merton foi lançada. Merton [1915 a 1968] era um monge cristão, profundamente interessado nas filosofias asiáticas, com as quais elaborou um fértil diálogo. A via de Chuang Tzu é uma versão poética do texto chinês, comentada, cujo sentido religioso predomina sobre o cuidado na tradução. O texto - que foi versificado - dirigia-se a busca de uma conexão espiritual e intelectual, se constituindo como uma obra literária de significativo interesse antropológico e filosófico. Embora a visão de Merton prevaleça sobre a tradução, há que se levar em conta que não existem versões isentas, e que toda tradução é uma opção. Seu trabalho, contudo, é uma importante peça de compreensão do processo de câmbio

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entre culturas diferentes, e deve ser lida para que possamos vislumbrar formas diversas de abordar a obra de Zhuangzi - dentro e fora - do contexto chinês. Já a tradução de Burton Watson [1987] trouxe para o Brasil a versão de um dos maiores tradutores do chinês que se tem conhecimento. Embora ela perdesse um pouco em brilho, é uma tradução mais precisa, completa e cuidadosa, que conta com uma boa introdução explicativa. Burton é um renomado tradutor, e sua versão para o português engrandece nosso parco cabedal de clássicos chineses. Seu texto só traz, igualmente, os capítulos internos, mas pode ser considerado uma referência ou padrão em nossa língua.

Chuang tzu - ensinamentos essenciais [2000] é a primeira publicação em

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que diversos capítulos da obra, além dos 'internos', são apresentados. Ela não está completa, mas organiza-se numa série de trechos que contemplam quase toda a sua dimensão. Embora os tradutores - Sam Hill e J. Seaton - afirmarem eles próprios que o seu objetivo não era criar uma obra erudita, seu texto preserva muito da vitalidade e do humor de Zhuangzi, tornando-se uma leitura leve e simples. Além disso, a escolha das passagens é bastante interessante: numa, por exemplo, Zhuangzi [um pacifista inveterado] surge como um hábil espadachim! Essa abordagem nos permite entrever o quanto foi adicionado ao núcleo original da obra, mostrando as diferenças fundamentais entre os capítulos 'internos' e os 'apócrifos', inseridos em datas não precisadas. Por conta disso, a versão de Hill e Seaton é única no Brasil, e merece um olhar atento.

Liezi Liezi 列子 [séc.-5?] teria sido o mestre de Zhuangzi, mas quase nada se sabe sobre ele. Pode-se tratar de uma figura mítica. Fato é que seu texto parece surgir na Dinastia Han, em torno do século +1, não apenas por seus conteúdos, mas por sua escrita e estrutura. Alguns fragmentos de Liezi estão espalhados na obra de Lin Yutang, em Sabedoria de Índia e

China [1954] e A importância de compreender [1988]. A única tradução completa de que dispomos é de 2001, feita pela editora Landy, intitulada

Tratado do Vazio Perfeito, feita a partir de outras traduções. O texto é correto, adequado, sem retoques ou floreados. Não se trata de uma tradução esteticamente destacada, mas serve de fonte com segurança, suprindo a inevitável carência desse texto em nosso idioma, e indispensável para a compreensão do Daoísmo e do pensamento durante o período Han. Uma outra versão disponível, e de boa qualidade, é a de Amadeu Duarte², que pode ser lida com segurança, e está disponível na rede.

Mestres do Tao , de Henry Normand Uma breve vênia deve ser feita ao pequeno, porém instrutivo, livro de Henry Normand, Mestres do Tao [1993]. Nele, o autor apresenta trechos selecionados de Laozi, Zhuangzi e Liezi, proporcionando-nos uma visão geral sobre os três. Embora introdutório, e construído com fragmentos das obras, é um livro agradável e simples de ler, valendo como uma apresentação ao tema.

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Wenzi O pouco conhecido texto de Wenzi 文子 [datação incerta: supostamente contemporâneo de Laozi ou Zhuangzi, mas o texto de que dispomos é do séc. -1, da dinastia Han] apareceu no Brasil numa singela edição de 1991, pela editora Teosófica, cujo caráter exotérico torna clara a proposta do livro. A tradução para o inglês foi feita por Thomas Cleary, um grande promotor e vulgarizador de textos clássicos chineses no Ocidente. Por conta disso, estamos diante de uma tradução acessível, prazerosa de ler, com algumas incorreções, mas que pode ser bem aproveitada. Uma marca nas traduções de Cleary é que suas introduções não costumam ser muito explicativas ou aprofundadas, tratando os textos de forma mais literária e menos histórica ou filosófica.

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De fato, como Cleary quer dar a conhecer esses textos para um público além do sinológico [uma ideia louvável], ele dispensa ensaios mais eruditos, densos e pesados, que não agregariam muito ao leitor passageiro. Todavia, em alguns casos, Cleary mal identifica o texto que estamos lendo, o que não nos permite saber de qual fonte ele foi tirado, as alternativas da tradução, os ideogramas chineses, etc. Aparentemente, pois, ele não está preocupado em ampliar o acesso posterior dos leitores aos textos chineses - mas podemos argumentar, igualmente, que quem estiver interessado, irá estudar chinês. Por fim: as traduções de Cleary nos abrem portas para a literatura chinesa, mas devem ser lidas com cuidado, e quem quiser se aprofundar nelas tem um ponto de partida, mas cedo perceberá suas incompletudes e carências.

Mais obras de Thomas Cleary Como as traduções de Cleary são fáceis, claras e acessíveis, elas são propícias à tradução, proporcionando versões agradáveis de leitura. Por causa disso, vários outros textos chineses, traduzidos por ele, ganharam versões em português, significando uma diversificação do nosso acervo de textos daoístas. Em Estratégia e Liderança [1994], ele nos apresenta trechos da enciclopédia daoísta do Huainanzi, texto da época Han fundamental para compreender as transformações no Daoísmo filosófico e religioso. Os fragmentos selecionados cobrem apenas as questões referentes à arte de governar, a política e a estratégia, estando sem indicação das passagens originais. Já em Essencial do Tao [1991], ele coteja fragmentos de Laozi e Zhuangzi, pondo ênfase em seu caráter sapiencial. Alguns desses textos apareceriam novamente em O espírito do Tao [2002], uma pequena coletânea de bolso de textos daoístas. Da mesma época é sua versão básica do Ijing, I Ching [2002], sem qualquer relevância maior no âmbito das traduções desse texto. Em Trovão no Céu [1993], Cleary nos apresenta dois textos obscuros do daoísmo religioso chinês, Trovão no Céu e O Mestre do vale do demônio [séc. +4?]. O livro é difícil de achar, e a tradução reproduz devidamente o original em inglês. São dois textos pouco conhecidos, bastante ricos em informações, e ainda pouco trabalhados academicamente. A abordagem de Cleary privilegia os aspectos políticos e estratégicos dos textos, no mesmo sentido de Estratégia e Liderança. O despertar do Tao, de Liu I-

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Ming [1992], assim como Meditação Taoísta [2002], se tratam de traduções sobre a alquimia interna daoísta, escapando consideravelmente ao âmbito da autoajuda [embora o público brasileiro não consiga fazer grande distinção]. São traduções adequadas de textos difíceis, que não são facilmente acessados, lidos e compreendidos.

Huahujing O Huahujing 化胡經 é um texto do século +4, que contava a história de como Laozi teria 'convertido os bárbaros' [não chineses] ao Daoísmo. Ele foi escrito em meio a uma polêmica que graçava na China da época, a chegada do Budismo. Essa religião, vinda da Índia, ameaçava o predomínio milenar dos daoístas no campo da metafísica e das artes

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sagradas, que em resposta, elaboraram um texto inventando que Buda teria sido discípulo de Laozi, quando ele fora embora da China no século -6, e que o Budismo seria então um tipo de Daoísmo.3 Poderia ser uma tradução notável, se ela não tivesse alguns problemas sérios: o principal, em português, é que nenhuma versão contém a introdução histórica da obra [seu 1o capítulo], na qual se explica toda a lenda relacionada ao

Huahujing.4 Duas versões existem em nossa língua: a de Hua Ching Ni [1997] e Brian Walker [1997]. São basicamente idênticas, inclusive com alguns erros e anacronismos marcantes. O texto traduzido se atém aos aspectos filosóficos, religiosos e meditativos, o que nos permite indicar a obra nesse sentido. Todavia, a ênfase dada a uma apresentação exotérica não

contribui em nada para uma apreciação correta do texto. Do ponto de vista sinológico, deve ser lida com atenção e muitas ressalvas.

O Segredo da Flor de Ouro Se as traduções do Huahujing são fracas, o mesmo não se pode dizer das traduções do Segredo da Flor de Ouro [‘Taiyi Jinhua Zongzhi’ 太乙金華宗旨, de Lü Dongbin 呂洞賓, séc. +8+9?]. As versões do 'Segredo da flor de Ouro' são de uma qualidade ímpar. A primeira é do conceituado sinólogo Richard Wilhelm [1873-1930], que traz impressa o cuidado e apuro com que o autor costumeiramente trabalhava suas traduções. Não obstante, nessa obra se faz presente à contribuição sensível e rica do psicanalista Carl Jung [1875-1961], cuja parceria com Wilhelm rendeu textos notáveis tanto para a Sinologia quanto para a Psicanálise [Jung traria essa experiência em seu livro Psicologia e Religião

Oriental [1986]]. Curiosamente, Wilhelm foi muito criticado por Thomas Cleary, quando este apresentou sua tradução do ‘Segredo...’ em inglês [não traduzida no Brasil], mas seus apontamentos obtiveram pouca repercussão. A tradução de Wilhelm poderia definir-se como única, mas o trabalho de Mokusen Miyuki, A Doutrina da Flor de Ouro [1993], é também muito boa, e vale ser conferida. O texto traz a prática da alquimia e da medicina daoísta, e o estudioso que se interessar pelo tema tem nessas duas traduções versões seguras e abalizadas sobre o original chinês, permitindo uma abordagem séria e bem encaminhada com base no texto.

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Wu Jyh Cherng O sacerdote daoísta Wu Jyh Cherng [1958-2004] traduziu para o português dois textos relevantes da tradição do Daoísmo religioso chinês, o Tratado sobre a união oculta [Yinfujing 陰符經, séc. +8?] e o Tratado

sobre sentar e esquecer [Zuo Wanglun 坐忘論, séc. +8?]. São traduções de caráter religioso, mas inéditas até então. Para um estudo da antropologia religiosa chinesa, são dois textos fundamentais e absolutamente relevantes, feitas por um autor que dominava diretamente o chinês. São obras notáveis que merecem uma atenção maior.

Eva Wong O texto As Artes Taoístas da Saúde, da Longevidade e da Imortalidade

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[Landy, 2003] é a versão da escritora Eva Wong sobre um tratado daoísta relacionado à alquimia. Eva é uma grande divulgadora do Daoísmo, e seu trabalho está voltado a uma compreensão vulgarizada da corrente religiosa, sem incorrer, no entanto, em qualquer expediente de proselitismo excessivo. Nessa versão, publicada para um acesso leigo, temos um texto correto, sem grandes distorções, sobre práticas alquímicas e meditativas. Trata-se de uma versão sem estudos exaustivos, ou devidamente preocupada com questões conceituais e de vocabulário. Ela pode ser apreciada como peça literária; como fonte, exige certos cuidados. No mesmo sentido é a tradução de ‘O Método Correto de Cultivar e Manter a Energia da Vida’ [2003], que se aproxima, tanto em forma, quanto em problemas, das obras de Cleary.

Tratado de Zhao Bi Chen O Treinamento Interior Taoísta: Tratado de Alquimia e Fisiologia [2012], de Zhao Bìchen 趙避塵 [1860-1942], produzida no início do século 20, quando a China passava por grandes transformações culturais, políticas e sociais. Bem traduzido, o texto pode ser lido tanto pelos seus aspectos ‘médico-alquímicos’ como ainda, um importante documento histórico, que trata do momento em que muitos chineses abandonavam suas tradições em busca de uma modernidade europeurizada.

Bony Schachter

Rito de Passagem do Escrito Amarelo da Claridade Superior [2014]5, de Bony Schachter, é uma tradução rigorosa, exemplar, bem embasada e amplamente estudada, que destoa do panorama de traduções nacionais. Estudioso brasileiro radicado na China, Schachter apresenta-nos uma versão abalizada e direta do original chinês de um texto religioso daoísta provavelmente da época Han ou Tang, totalmente inédito fora da China. O trabalho de Schachter é uma das raríssimas exceções no contexto da Sinologia Lusófona, cujo domínio da língua e da história torna-a uma tradução impecável em vários sentidos, constituindo uma peça de estudo confiável, segura, fluente, natural e bem estudada.

Conclusão Vemos por essa análise que o Corpus de obras daoístas, no Brasil, não é incipiente, mas carece de sistematização e constância. Voltados aos interesses de focos específicos de consumo exotérico, as obras publicadas

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variam bastante de qualidade, desde as versões problemáticas do

Huahujing até as sólidas versões de Wilhelm e Schachter, ou das ricas versões de Cherng. A onipresença de Cleary denota também a opção por versões rápidas e de fácil acesso - nem sempre incorretas, mas quase sempre incompletas - cujo objetivo claro é a divulgação, mas que terminam servindo de fonte para aqueles que não dominam o chinês ou não possuem traduções em outras línguas ocidentais. Não podemos dizer, contudo, que se constata um panorama desolador e estéril; o pouco conhecimento sobre o Daoísmo no Brasil, tanto o filosófico quanto naturalmente limitado o interesse do público, mesmo o sinológico. No contexto em que estamos, longe ainda de formar escolas de

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tradutores em chinês, o uso de 'traduções de traduções' se tornou a solução temporária que, muitas das vezes, é tratada como definitiva. É compreensível ainda que, num mercado cujo interesse no Daoísmo também é pontual, a presença dessas versões atende a demanda básica por literatura chinesa, muito ligada às questões religiosas, e cuja visão, por parte dos leitores brasileiros, é ocasional e confusa. É provável, por exemplo, que um leitor iniciante associe o Huainanzi à Sunzi, ambos traduzidos por Cleary, por conta da ênfase ao foco estratégico, dado pelos trechos selecionados·da tradução. Assim sendo, há direcionamentos em parte equivocados na divulgação dessas obras. Por outro lado, eu não costumo ser partidário da ideia de que 'não ter é melhor que ter algo ruim'. Se o que temos agora não é [e está longe de ser] o ideal, ainda pode vir-á-ser a ponte para o despertar de

um interesse sério e mais profundo sobre a China. O risco do desinteresse, causado pelas imprecisões, é proporcional. Mas não poderia haver qualquer tipo de debate ou curiosidade sem um ponto de partida. Nisso, pois, tais textos cumprem a sua função.

Referências Ordenadas segundo o autor da obra. Cleary, Thomas. Estratégia e Liderança. Rio de Janeiro: Saraiva, 1994. Cleary, Thomas. Meditação Taoísta. Brasília: Teosófica, 2000. Cleary, Thomas. O Despertar do Tao. São Paulo: Pensamento, 1988. Cleary, Thomas. O espírito do Tao. São Paulo: Rocco, 2002. Cleary, Thomas. O essencial do Tao. São Paulo: Best Seller, 1991. Cleary, Thomas. O I Ching. São Paulo: Rocco, 2002. Cleary, Thomas. Trovão no Céu. Belo Horizonte: Eleusis, 1993. Cleary, Thomas. Wenzi. Brasília: Teosófica, 1991. Hill, S. e Seaton, J. Chuang Tzu: ensinamentos essenciais. São Paulo: Cultrix, 2000. Hua Ching Ni. Hua Hu Ching. São Paulo: Pensamento, 1997. Jung, Carl. Religião e Psicologia Oriental. Petrópolis: Vozes, 1986. Liezi. Tratado do Vazio Perfeito. São Paulo: Landy, 2001. Lin Yutang. A importância de compreender. Porto Alegre: Globo, 1988. Lin Yutang. Sabedoria de Índia e China. Rio de Janeiro: Ponguetti, 1945. Merton, Thomas. A via de Chuang Tzu. Petrópolis: Vozes, 1976. Miyuki, Mokusen. A doutrina da Flor de Ouro . São Paulo: Pensamento, 1993. Normand, Henry. Mestres do Tao. São Paulo: Pensamento, 1993. Schachter, Bony. 'Rito de Passagem do Escrito Amarelo da Claridade Superior' em Bueno, A. e Neto, J. [org.] Antigas Leituras: Visões da China Antiga. União da Vitória: Unespar/Upe, 2014. Walker, Brian. Hua Hu Ching. São Paulo: Best Seller, 1997. Watson, Burton. Chuang Tzu: escritos básicos. São Paulo: Pensamento/Cultrix, 1987.

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Wilhelm, Richard. O Segredo da Flor de Ouro. Petrópolis: Vozes, 1983. Wong, Eva. As Artes Taoístas da Saúde, da Longevidade e da Imortalidade. São Paulo: Landy, 2003. Wong, Eva. O Método Correto de Cultivar e Manter a Energia da Vida. São Paulo: Pensamento, 2003. Wu Jyh Cherng. Meditação Taoísta. Rio de Janeiro: Mauad, 2008. [Zuo Wanglun] Wu Jyh Cherng. Tratado sobre a União Oculta. Rio de Janeiro: Mauad, 2008. [Yinfujing] Zhao Bichen. Treinamento Interior Taoísta: Tratado de Alquimia e Fisiologia. São Paulo: Editora É, 2012. Notas

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1.Ver meu texto sobre as versões do Ijing: http://sinografia.blogspot.com.br/2015/05/o- ijing-no-brasil-umarevisao-literaria.html 2.Ver em http://textosdemetafisica.blogspot.com.br/2014/04/lie-tzutratado-do-vazio- perfeito.html 3.Ver meu artigo sobre essa questão em: http://sinografia.blogspot.com.br/2013/12/buda-discipulo-de-laozicontroversia-da.html 4.Ver a tradução do 1o capítulo em meu artigo: http://sinografia.blogspot.com.br/2012/11/buda-aluno-de-laozi.html 5.Livro ‘Visões da China Antiga’ disponível em: http://escritosinicos.blogspot.com.br/

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知之為知之,不知為不知,是知也!

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