Revista Arqueologia Pública, 10, 2014 Arqueologia da repressão

September 5, 2017 | Autor: P. Funari | Categoria: Cultural Studies, Arqueología, Arqueologia, Arqueologia Histórica
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ANDRÉS ALARCÓN-JIMÉNEZ

Arqueologia Pública Revista de

No. 10 ISSN 2237-8294 dezembro de 2014

Dossiê:

Arqueologia da Repressão 1 | 

Revista de Arqueologia Pública, No. 10, Dezembro de 2014, pp. 004 - 024

Arqueologia Pública Revista de

No. 10 ISSN 2237-8294 dezembro de 2014

Dossiê:

Arqueologia da Repressão

EDITOR RESPONSÁVEL Pedro Paulo A. Funari (LAP/NEPAM/UNICAMP) EDITOR DO DOSSIÊ Rita Juliana S. Poloni (LAP/NEPAM/UNICAMP) CONSELHO EDITORIAL Alfredo Gonzalez Ruibal​(Consejo Superior de Investigaciones Científicas, Espanha) Andrés Zarankin (UFMG) Bernd Fahmel Bayer (Universidad Nacional Autónoma de México, México) Carlos Fabião (Universidade de Lisboa, Portugal) Carol McDavid (Community Archaeology Research Institute, EUA) Charles Orser (Illinois State University, EUA) Cláudio Umpierre Carlan (UNIFAL) Erika Robrahn-González (Documento Patrimônio Cultural, Arqueologia e Antropologia Ltda.) Gilson Rambelli (LAAA / NAR / UFS) Glaydson José da Silva (Unifesp) Laurent Olivier (Université de Paris, França) Lourdes Dominguez (Oficina del Historiador, Cuba) Lourdes Madalena Gazarini Conde Feitosa (USC) Lúcio Menezes Ferreira (UFPel) Marina Regis Cavicchioli (UFBA) Martin Hall (Cape Town University, África do Sul) Nanci Vieira Oliveira (UERJ) Neil Asher Silberman (ICOMOS International Advisory Committee and Scientific Council) Renata Senna Garrafoni (UFPR) ​Sian Jones (University of Manchester, Inglaterra) ​Tim Schadla-Hall(Institute of Archaeology at University College London, Inglaterra) COMISSÃO TÉCNICA Daniel Grecco Pacheco Murilo Souza dos Santos Rita Juliana S. Poloni Tobias Vilhena de Moraes ​ REVISÃO TEXTUAL ​Camila Secolin PROJETO GRÁFICO Murilo Souza dos Santos ​ ​DIAGRAMAÇÃO Murilo Souza dos Santos

Laboratório de Arqueologia Pública “Paulo Duarte” (LAP/NEPAM/UNICAMP) Rua dos Flamboyants, 155, Cidade Universitária “Zeferino Vaz” Campinas-SP, Brasil 13083-867 Contato: Tel: 55 19 3521 - 7690 E-mail: [email protected]

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| Editorial Pedro Paulo A. Funari Artigos diversos

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| O LEGADO DO PE. JOÃO ALFREDO ROHR S. J.: REFLEXÕES SOBRE SUA TRAJETÓRIA NA ARQUEOLOGIA BRASILEIRA. Fabiana Comerlato

25 | UNA EXPERIENCIA DE ARQUEOLOGÍA PÚBLICA Y

COLABORACIÓN INTERCULTURAL EN EL SECTOR SEPTENTRIONAL DE ARGENTINA Mónica Montenegro

Artigos do Dossiê Arqueologia da Repressão 44 | ANTROPOLOGIA, ARQUEOLOGIA E USOS DO PASSADO DURANTE A GUERRA FRIA - OS REGIMES AUTOCRÁTICOS, MILITARES E PSEUDODEMOCRÁTICOS, O INSTITUTO COLOMBIANO DE ANTROPOLOGIA E SEUS MODELOS DE COLOMBIANO 1950-1966. Andrés Alarcón-Jiménez

75 | ARQUEOLOGIA DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA E SUAS CONTRIBUIÇÕES NA CONSTRUÇÃO DE MEMÓRIAS Jocyane R. Baretta

90 | O VERMELHO E O NEGRO: RAÍZES COLONIAIS DO UNIVERSO CONCENTRACIONÁRIO DO GENERAL FRANCO Pedro Pablo Fermín Maguire

107 | ARQUEOLOGIA EM CONTEXTOS DE REPRESSÃO E RESISTÊNCIA: A GUERRILHA DO ARAGUAIA Patricia Sposito Mechi e Michel Justamand

121 | A PRESERVAÇÃO ARQUEOLÓGICA E A REDEMOCRATIZAÇÃO: UM BREVE ESTUDO DE CASO LUSO-BRASILEIRO Tobias Vilhena de Moraes

144 | CAMINHOS E DESCAMINHOS NO ATLÂNTICO CIENTÍFICO: ARQUEOLOGIA E ESTADO NOVO EM CONTEXTO LUSOBRASILEIRO Rita Juliana Soares Poloni

160 | COLÔNIA CORRECIONAL DE DOIS UNIDOS: COMUNIDADE E REPRESSÃO EM PERNAMBUCO. Elaine Michelly da Silva e Matheus Amilton Martins

176 | NOVAS PERSPECTIVAS PARA A ARQUEOLOGIA DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA NO BRASIL DEPOIS DA COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE Inês Virgínia Prado Soares

195 | MEMÓRIA, OBJETOS E EDIFÍCIOS – UMA ANÁLISE

ARQUEOLÓGICA SOBRE O EDIFÍCIO QUE SEDIOU O DEOPS/SP Príscila Paula de Sousa

212 | ARQUEOLOGIA E A GUERRILHA DO ARAGUAIA OU A MATERIALIDADE CONTRA A NÃO NARRATIVA Rafael de Abreu e Souza

231 | VESTÍGIOS DE UMA AUSÊNCIA: UMA ARQUEOLOGIA DA

REPRESSÃO Beatriz Valladão Thiesen, Célia Maria Pereira, Eduarda Rippel, Gabriel Rodrigues Vespasiano, Ingrend Guimarães Cornaquini, Júlio Toledo, Mariana Fernandez

Entrevista

251 | A ARQUEOLOGIA DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA – UMA CONVERSA COM ANDRÉS ZARANKIN Entrevistadores: Victor Henrique da Silva Menezes Júlia Negov de Oliveira

Foto da capa: Escavações no Centro Clandestino de Detenção Clube Atlético, Buenos Aires - Argentina. Andrés Zarankin, 2003.

EDITORIAL

A ARQUEOLOGIA NA UNICAMP E A REVISTA DE ARQUEOLOGIA PÚBLICA: TRAJETÓRIA E PERSPECTIVAS

Laboratório de Arqueologia Pública da Universidade Estadual de Campinas resulta de longa trajetória de engajamento da Universidade com a Arqueologia, em uma perspectiva científica fundada na excelência acadêmica, na inserção internacional e no engajamento social. A Unicamp surgiu em meio a um regime de força, inspirado no MIT e voltada para os saberes técnicos que pudessem transcender os questionamentos políticos que advinham das universidades de referência à época e cujos quadros foram golpeados de forma mais dura: a Universidade de São Paulo e a Universidade Federal do Rio de Janeiro. A Universidade Estadual de Campinas, fundada em 1966, no entanto, logo teve no desafio de produzir ciência de relevância internacional não um obstáculo, mas um meio de contrapor-se às exações políticas que grassavam alhures na academia, ao acolher cientistas notáveis perseguidos tanto no Brasil, como em outros países latino -americanos sob o jugo ditatorial. Em pouco tempo, a Unicamp despontava não apenas no âmbito científico, stricto sensu, como na originalidade de adotar perspectivas transdisciplinares, na busca por inserção mundial, na ênfase em ciência aplicada e políticas públicas e na atuação voltada para a sociedade, em sua diversidade. Tudo isto se refletiu no surgimento precoce do interesse da Universidade por uma Arqueologia relevante para a sociedade. Enquanto práticas e abordagens reacionárias e conservadoras eram predominantes e espíritos críticos eram silenciados, como no caso notável do fundador da USP e pioneiro da Arqueologia humanista Paulo Duarte (1899 – 1984), expulso da Universidade de São Paulo, em 1969, a Unicamp abria-se para práticas e abordagens libertárias. Acolheu o acervo de Paulo Duarte e trouxe a Professora Niède Guidon, a quem Duarte havia aberto as portas para aprender com os arqueólogos pré-historiadores mais renomados e amantes da liberdade, para atuar no Núcleo de Pesquisas Arqueológicas – Nipar (1986 – 1991). Aberta essa seara, a Ar-

queologia na Unicamp desenvolveu-se nos aspectos constitutivos tanto da Universidade, como da disciplina, em termos mundiais: em interação com a ciência mundial, em perspectiva transdisciplinar, engajada com a sociedade e em luta pela liberdade e pelo respeito à diversidade. Pesquisas arqueológicas de variado gênero foram levadas a cabo, diversas delas de expressão social, acadêmica e de repercussão internacional. O Laboratório de Arqueologia Pública e a Revista Arqueologia Pública, surgidos em 2006, resultam de um esforço continuado e de parcerias com estudiosos e instituições no Brasil e no estrangeiro, como destaque para o World Archaeological Congress. Desde seu primeiro número, os editores à época Pedro Paulo A. Funari e Erika Robrahn-González enfatizavam que “do nosso ponto de vista – e esta revista serve a este propósito – a ciência não deve alhear-se da sociedade, sob o manto diáfano do empirismo”. Este décimo número mostra bem todas essas características. A partir desta edição, o conselho editorial da revista amplia-se, com a participação adicional de estudiosos notáveis no campo da Arqueologia engajada em temas sociais e políticos, todos eles com larga trajetória de cooperação com a equipe de Arqueologia da Unicamp. Em seguida, e no mesmo sentido, tendo em vista o aprofundamento da inserção internacional da revista e sua busca por abordagens referenciais, a publicação passa a contar com dossiês temáticos. Com isto, será possível congregar artigos sobre aspectos de alta relevância social e política, no âmbito da Arqueologia, de modo a servirem para uma abordagem integrada. Neste volume, a doutora Rita Juliana Soares Poloni, pós-doutoranda no Laboratório de Arqueologia Pública Paulo Duarte com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP – líder de Grupo de Pesquisa cadastrado no CNPq e sediado na Unicamp (Arqueologia da Repressão e da Resistência) organiza dossiê sobre o estudo arqueológico em contextos políticos autoritários e ditatoriais e de transição democrática. O tema adquiriu contornos mais definidos na disciplina no início deste século, como atesta a publicação de volume com apoio da Secretaria de Direitos Humanos da República Argentina, Arqueología de la represión y la resistencia en América Latina 1960-1980 (Catamarca: Universidad Nacional de Catamarca, 2006), organizado por Pedro Paulo A. Funari e Andrés Zarankin, em seguida publicado no Brasil, em português, com apoio da FAPESP (2008) e em inglês, em 2009 (Memories from Darkness, Nova Iorque, Springer). O dossiê demonstra o florescimento desse campo e conta com a participação de diversos estudiosos que se têm dedicado a tais questões. Artigos sobre outros temas e uma entrevista com Andrés Zarankin, estudioso da Arqueologia da Repressão e da Resistência, tema do dossiê, completam o décimo volume. Pedro Paulo A. Funari Editor-Responsável

Arqueologia Pública Revista de

ARTIGO

O LEGADO DO PE. JOÃO ALFREDO ROHR S. J.: REFLEXÕES SOBRE SUA TRAJETÓRIA NA ARQUEOLOGIA BRASILEIRA

Fabiana Comerlato

No. 10 ISSN 2237-8294 dezembro de 2014

ARTIGO

O LEGADO DO PE. JOÃO ALFREDO ROHR S. J.: REFLEXÕES SOBRE SUA TRAJETÓRIA NA ARQUEOLOGIA BRASILEIRA Fabiana Comerlato1 RESUMO No cômputo de arqueólogos que se destacaram na década de 60 do século XX na pesquisa e na luta pela preservação dos sítios arqueológicos brasileiros, surge à figura de João Alfredo Rohr que exerceu papel fundamental na consolidação da arqueologia catarinense, deixando um importante legado científico para as futuras gerações. O objetivo deste artigo é fazer um retrospecto da trajetória profissional do arqueólogo Rohr e avaliar o seu contributo para a arqueologia brasileira, em especial do Estado de Santa Catarina. Palavras-chaves: Arqueologia brasileira; Patrimônio Cultural; Museu; João Alfredo Rohr. ABSTRACT On investigating archaeologists who were prominent in research on and the struggle to preserve Brazilian archaeological sites during the 1960s, João Alfredo Rohr emerges. He performed a fundamental role in consolidating archaeology in Santa Catarina, leaving an important scientific legacy for future generations. The aim of this article is to take a retrospective look at the archaeologist, Rohr’s professional trajectory and evaluate his contribution to Brazilian archaeology, particularly in the State of Santa Catarina. Keywords: Brazilian archaeology; Cultural Heritage; Museum; João Alfredo Rohr.

1 Doutora em História, área de concentração Arqueologia, professora da UFRB. Contato: [email protected]

FABIANA COMERLATO

RESUMEN En el recuento de arqueólogos que se destacaron en la década de 60 del siglo XX en la investigación y en la lucha por la preservación de los sitios arqueológicos brasileños, surge la figura de João Alfredo Rohr quien ejerció un papel fundamental en la consolidación de la arqueología catarinense, dejando un importante legado científico para las futuras generaciones. El objetivo de este artículo es realizar una retrospectiva de la trayectoria profesional del arqueólogo Rohr e evaluar su contribución para la arqueología brasileña, en especial la del Estado de Santa Catarina. Palabras-clave: Arqueología brasileña; Patrimonio Cultural; Museo; João Alfredo Rohr.

INTRODUÇÃO A memória é uma ferramenta que usamos para lembrar o que nos faz sentido. Portanto, nos parece importante o exercício de rememorar pessoas, objetos, coleções e museus, pois a construção do conhecimento arqueológico está alicerçada nestas bases de referência. No Estado de Santa Catarina, atribuímos ao Pe. João Alfredo Rohr (1908-1984) o título de “Pai da Arqueologia Catarinense”, justamente pela dimensão de seus feitos e o significado deles até hoje. Em 2014, três datas convergem e podem ser lembradas por nós: os 30 anos de falecimento de Pe. Alfredo Rohr, mesmo ano em que foi tombada sua coleção pela Fundação Catarinense de Cultura, e, principalmente, os 50 anos de criação do Museu do Homem do Sambaqui. As lembranças destes marcos cronológicos nos abrem caminho para a reflexão da importância do legado científico de Rohr e a extensão de sua obra, que continua ainda a provocar interjeições e expressões de admiração nos jovens em visita ao museu.

Fig. 1: Pe. João Alfredo Rohr. Extraído de: Revista Manchete, nº505, ano 9, Rio de Janeiro, 23 de janeiro de 1961, p. 120.

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ROHR E SUA ATUAÇÃO NA ARQUEOLOGIA A comunidade arqueológica contemporânea tende a perceber mais a figura do “Rohr arqueólogo”. Porém, seria limitante enquadrá-lo em um único adjetivo. Através de revisão bibliográfica, podemos encontrar diversas biografias sobre o Pe. Rohr, escritas em geral por pessoas que tiveram uma convivência próxima, a exemplo de jesuítas (ETGES, 1984; SCHMITZ, 2009), intelectuais catarinenses (PÍTSICA, 1984), pessoas da comunidade (NUNES, 2000) e arqueólogos (REIS & FOSSARI, 2009). Podemos dizer que o Pe. Rohr embutiu seu espírito e modo de fazer em muitas comunidades e instituições, seja no fazer espiritual, na ação em prol da cultura, em especial da arqueologia. Nos anos 50 do século XX, Rohr destacava-se como um excelente gestor educacional na direção do Colégio Catarinense e um hábil articulador na criação de novas instituições de ensino em Santa Catarina – a exemplo da Faculdade Catarinense de Filosofia (CARMINATI, 2009: 7). Rohr nunca abdicou de sua missão educadora, acumulando décadas de experiência no ensino das Ciências da Natureza (Física, Química e Biologia). Podemos dizer que seria injusto lhe atribuir à alcunha de autodidata em arqueologia, pois além de sua formação humanística sempre esteve atualizado no que era de mais moderno na arqueologia, transpondo conhecimentos e criando novas metodologias2. Dado este reconhecimento de sua importância, a Sociedade de Arqueologia Brasileira conferiu em suas reuniões bianuais o Prêmio Padre João Alfredo Rohr aos arqueólogos de destaque. Rohr, após uma aproximação com a arqueologia, faz sua primeira escavação, em 1958, no sítio arqueológico de Caiacanga Mirim junto à Base Aérea de Florianópolis. A partir daí, sucessivas campanhas somaram-se, num total de 18 projetos executados: nos sambaquis da Ilha de Santa Catarina, entre 1959 a 1961; nos sítios arqueológicos do Vale do Rio D’Una em Imbituba, 1961; nos sítios arqueológicos da Praia da Tapera e Ribeirão na Ilha de Santa Catarina, 1962 a 1967; nos sítios arqueológicos do município de Itapiranga, 1966-67/1970-71; nos sítios arqueológicos do Planalto Catarinense (municípios de Petrolândia, Atalanta, Imbúia, Alfredo Wagner, Rancho Queimado e Angelina), 1966-67/1970-71, nas inscrições rupestres em Urubici e municípios vizinhos, 1967; no sítio arqueológico de Alfredo Wagner, SC-VI-13, 1967-1969; nos sítios arqueológicos do município de Jaguaruna, 1968; nos petróglifos da Ilha de Santa Catarina e ilhas adjacentes, 1969-1974; no sítio da Armação do Pântano do Sul - Ilha de 2 A criação do método de cimentação de esqueletos arqueológicos (ROHR, 1970).

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Santa Catarina, 1971; no sítio arqueológico no Balneário de Cabeçudas, Itajaí, 1975; no sítio arqueológico do Pântano do Sul - Ilha de Santa Catarina, 1977-78; no sítio arqueológico da Praia das Laranjeiras, Balneário Camboriú, 1982; no sambaqui da Balsinha I, Imbituba, 1982; nos sítios arqueológicos no município de Urussanga, 1982. As campanhas de campo totalizaram o registro de 430 sítios arqueológicos no Estado de Santa Catarina (SANTA CATARINA, 1984: 22). Segundo Pe. Pedro Ignacio Schmitz, podemos conferir mais uma indicação superlativa, seguramente, ainda hoje, de que Rohr foi um dos arqueólogos que mais escavou no Brasil (CARBONERA, 2006: 378). Apesar de ser uma “equipe de um homem só”, como denomina Pe. Schmitz, ofereceu para muitos estagiários e estudantes uma escola prática em suas escavações, em uma época extremamente difícil no Brasil de se obter formação em Arqueologia (SCHMITZ, 2009: 18). Nos trabalhos de campo, os participantes eram compostos de estagiários, estudantes, professores, arqueólogos e operários − a maioria destes últimos cedidos pelas prefeituras. A equipe geralmente ficava alojada em casas alugadas próximas ao sítio. Verificamos nos relatórios datilografados por Rohr, o predomínio dos meses das férias de verão e inverno como períodos para as escavações, exceto os trabalhos de salvamento. Em campo, a rotina de trabalho era árdua. As escavações eram feitas em níveis artificiais de dez centímetros, elaboravam-se plantas de topo, perfis estratigráficos verticais e horizontais das trincheiras abertas e eram anotadas todas as informações relevantes no diário de campo. Além de ter realizado o registro fotográfico das etapas da escavação. Durante toda a sua carreira na Arqueologia, de 1950 a 1982, publicou suas descobertas e resultados em 92 revistas, jornais e outros periódicos, além de divulgar suas pesquisas e ações preservacionistas em entrevistas para rádio e televisão (SANTA CATARINA, 1984). Este caráter polivalente de transpor a ciência arqueológica em diversos meios e linguagens lhe garantiu mais um título: o de arqueólogo mais lido no Brasil (SCHMITZ, 2009: 18).

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Fig. 2: João Alfredo Rohr em escavações em um samba- Fig. 3: João Alfredo Rohr durante o processo qui. Referência: Revista Manchete, nº505, ano 9, Rio de de documentação das gravuras do Letreiro Janeiro, 23 de janeiro de 1961. do Arvoredo. Data: 1968. Acervo: Museu do Homem do Sambaqui Padre João Alfredo Rohr, S.J.

ROHR E A FORMAÇÃO DE ACERVOS E MUSEUS Desde sua fundação, o Colégio Catarinense abriga um museu e laboratórios que faziam parte do curso científico: “O Museu de Historia Natural, criado no início do século XX, tinha coleções de mamíferos, aves e ovos, anfíbios, moluscos, botânica e mineralogia, sendo enriquecido por doações de entidades e pessoas mormente alunos egressos do colégio e suas famílias” (DALLABRIDA, 2012: 158). O museu dentro de uma instituição educacional jesuítica cumpria um papel de cartão de visitas da instituição, um espaço de atividades empíricas para seus alunos e de pesquisa para Rohr onde passava grande parte do seu tempo, em conciliação com sua vocação religiosa. Pe. Rohr começa a se interessar por arqueologia em suas saídas de campo em busca de orquídeas, quando encontra sítios arqueológicos pela Ilha de Santa Catarina. O redirecionamento em suas pesquisas em parte se deve ao Padre Balduíno Rambo e, posteriormente, ao apoio do Pe. Ignacio Schmitz. Em 1948, Rohr compra a Coleção Carlos Berenhäuser3, dando início ao acervo arqueológico (SANTA CATARINA, 1985: 3 A coleção Berenhäuser apresenta quase que exclusivamente cerâmica guarani, contando com

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20-21). Em sua construção diária da história das populações indígenas pré-coloniais, Rohr começa a formar e catalogar o acervo que denominará de Museu do Homem do Sambaqui – a primeira instituição especializada em pesquisas arqueológicas no Estado. Com nova configuração, o museu foi fundado em 03 de outubro de 1964, tendo como entidade mantenedora a Sociedade Literária Antônio Vieira. Inicialmente, o museu era denominado “Museu do Homem Americano”, sendo mudado para Museu do Homem do Sambaqui em 1965 (SCHMITZ, 2009: 18). O modo de aquisição deste diversificado acervo deu-se de diversas formas: compra, doação e, principalmente, através das pesquisas arqueológicas efetuadas por Pe. Rohr. No Cadastro dos Museus Catarinenses da Fundação Catarinense de Cultura, segundo informações de 1979, o depósito do museu contava com 130.000 peças antropológicas e 12.000 arqueológicas. O acervo conta com exemplares arqueológicos, eclesiásticos, etnográficos, malacológicos, numismáticos paleontológicos e animais taxidermizados. O acervo exposto reúne peças de várias escavações, destacando-se as vitrines com os esqueletos, aos com zoólitos e as urnas funerárias. Era objeto de orgulho especial dos sepultamentos da Tapera, uma vértebra transpassada por uma ponta em osso (NUNES apud CRUZ, 2005: 136; SANTA CATARINA, 1984: 28). Os animais taxidermizados se prestam a abordagem biográfica por terem se transformado em cultura material (LOUREIRO, 2012: 100). O peixe lua e a onça pintada chamam a atenção: o primeiro pela sua raridade e a segunda pela história de sua aquisição, que nos presta a uma abordagem biográfica do objeto: A região de Urubici, em tempos pré-históricos, era habitada por povos trogloditas, que moravam em galerias subterrâneas, cavadas na rocha mole de arenito. Algumas destas galerias alcançam cem metros de comprimento, tendo, em média, metro e meio de diâmetro. Penetramos em muitas daquelas galerias, completamente desarmados, munidos, apenas, de um lampião de pressão Colemann, para iluminar o interior das mesmas. Não raro, encontramos no interior das mesmas, sinais evidentes do trabalho de tatús, tamanduás, gatos do mato e graxains. Sabíamos, que, na região, ainda, havia onças pardas, chamadas também, pumas, sussuaranas ou “leão brasileiro”. Não imaginávamos, porém, que poderiam aparecer, ainda onças pintadas ou jaguares. Ficamos, por isto, surpreendidos, quando retornamos ao planalto, em princípios de fevereiro, para prosseguir as pesquisas nas galerias subterrâneas e apresentaram-nos a pele de enorme, onça pintada, morta dois dias antes. Era animal extremamente gordo. Andava cevando-se de ovelhas, novilhos, pôtros e, por certo, também, de veados e outra caça, ainda frequente na região. Na madrugada de 29/01/72, matara e devorara um burro, triturando até os ossos do mesmo. Perseguida pelo capataz da Fazenda da Pedra Branca e mais um peão, enfrentou os cachor-

dezenas de objetos inteiros e aproximadamente 80.000 fragmentos. O material lítico consta aproximadamente de 8.000 peças de origem sambaquiana. A coleção formou-se com artefatos coletados por amadores, principalmente por Carlos Berenhäuser e pela população (SCHMITZ, 1959: 268-269).

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ros, juntos, a uma árvore caída. Os dois caçadores imaginavam estarem no encalço de um puma ou “leãozinho”, bastante inofensivo. Qual não foi o seu espanto, quando toparam enorme onça pintada, pronta para o bote? O capataz, Ermelindo Pedro Ribeiro, quando se deu conta, já se encontrava, quase, nas faces da fera e não teve tempo para recuar. Por isto, descarregou a sua armazinha, calibre 32, a queima-roupa no “bicharedo”. Teve sorte, atingindo-o direto no coração. Assim mesmo, mortalmente ferida, a onça saltou sobre ele, cravando-lhe os dentes e as garras, causando-lhe ferimentos profundos, no rosto no peito e nos braços. Socorrido pelo companheiro, este descarregou segundo tiro na vista da onça, que acabou, imobilizando-a. Imagine só, se dentro de uma galeria subterrânea, armados tão somente, com um foco de luz, topassemos um “bichão” destes! Já pensou! por certo esta onça não é a única na região de Urubici, onde existem campos imensos, perdidos em mata baixa, cavernas e grotões sem conta. Compramos a pele e o esqueleto da onça, que será montada para o Museu do Homem do Sambaqui, como atração turística e instrução da mocidade estudiosa, que poderá admirá -la, sem correr risco de vida. (ROHR, s/d.)

A partir de meados do século XX, o cenário cultural catarinense teve uma expansão no campo museológico. O historiador e arqueólogo Walter Piazza traz uma listagem de coleções arqueológicas e seus locais de guarda no Estado de Santa Catarina em 1965: o Museu Nacional de Imigração e Colonização, Museu Anita Garibaldi, Museu do Homem do Sambaqui, Museu Arquidiocesano “Dom Joaquim”, Museu do Colégio Dehon, Museu do Ginásio “São João Batista”, Coleção Teodoro Saade, Coleção Kurt Braunsburger, Coleção Jacob Andersen (PIAZZA, 1966: 460-461). Durante a década de 60, surgem várias instituições voltadas à preservação dos acervos arqueológicos, além do Museu do Homem do Sambaqui, foram fundados o Museu Arqueológico de Sambaqui de Joinville e o Museu Universitário da Universidade Federal de Santa Catarina (SOUZA, 2007: 16). A atuação de Rohr no campo dos museus de arqueologia também acontecia através do fortalecimento das relações institucionais. No âmbito da Universidade Federal de Santa Catarina, com o desenvolvimento das pesquisas arqueológicas, foi criado o Instituto de Antropologia, em 30 de dezembro de 1965, sob a direção de Oswaldo Rodrigues Cabral. A instalação oficial do Instituto ocorre em 29 de maio de 1968. Com a reforma universitária de 1970, o mesmo passou a denominar-se Museu de Antropologia e em 1978 passou a ser chamado Museu Universitário. Logo quando o Museu do Homem do Sambaqui de Joinville (MASJ) foi criado em 1969, Rohr acompanha o convenio entre MASJ e IPHAN. Em 1972, quando o museu é oficialmente inaugurado dentre as solenidades presentes, estava o Pe. João Alfredo Rohr como presidente do Conselho Estadual de Cultura (TAMANINI, 1994: 91). Ainda neste cenário museológico, Rohr pôde atuar na preservação no oeste de Santa Catarina, em visitas a diversas localidades do Estado, como ocorreu em Itapiranga, em 1966, com o mapeamento de 53 sítios arqueológicos às margens do rio Uruguai,

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sendo a maioria sítios cerâmicos Guarani (CARBONERA, 2011: 29). Na época, Rohr estimulou a preservação e a guarda dos acervos nas regiões de origem, como depois irá preconizar a Carta de Lausanne: Os sitiantes recolhiam as peças mais expressivas e davam-nas de presente à primeira pessoa que nelas mostrasse algum interesse. Muitas vêzes, quebravam as igaçabas e partiam os artefatos, para ver se continha ouro. Em vista disto e da grande abundância e variedade de material arqueológico que, aparecendo por tôda a parte, estava sendo destruido, delapidado e disperso, sem utilidade alguma, fizemos uma intensa campanha de esclarecimento, atravez de conferências e palestras radiofônicas e convencemos o povo e a Prefeitura Municipal da necessidade urgente de fundarem um Museu Arqueológico, ao qual fôsse recolhido todo o material encontrado nas roças, nos matos e nos pastos, para assim defenderem e conservarem o patrimônio cultural do município. Atravez do rádio instruímos o povo, sôbre a maneira mais segura de escavar uma igaçaba, atingida por um arado numa roça, sem partí-la (ROHR, 27/04/1966 a 01/06/1966).

Em uma época que a arqueologia ainda se recolhia aos museus e centros de pesquisa e caminhava muito timidamente nas ações de educação patrimonial, percebemos neste trecho de seu relatório de viagem, sua consciência do papel dinamizador que as comunidades poderiam agir em prol de seu patrimônio arqueológico. O Museu Comunitário de Itapiranga tornou-se realidade em nove de agosto de 1978, quando é registrado em cartório pelos membros do Conselho Comunitário de Itapiranga, com a presença de Rohr como representante do IPHAN4. Segundo Denise Argenta, este museu é o segundo mais antigo na região oeste de Santa Catarina. Em 1990, a instituição recebe edificação própria e em 2007 tem seu nome alterado para Museu Comunitário Almiro Theobaldo Muller (ARGENTA, 2011: 9). Atualmente, este museu é mantido pela municipalidade com um acervo bastante variado, agrega várias coleções dentre elas, ganha destaque de arqueologia (PIOVESAN, 2008: 58). Já no litoral, em 1977, as escavações do sítio Laranjeiras procedidas por Rohr compuseram o acervo do museu de Balneário Camboriú, localizado no Centro de Promoções e Informações Turísticas S/A – CITUR. Atualmente, dada às alterações de nomenclatura que se sucedeu durante sua existência, o museu arqueológico faz parte do Complexo Ambiental Cyro Gevaerd, pertencente ao Instituto Catarinense de Conservação da Fauna e Flora. Rohr continua a ocupar grande parte de seu tempo com o Museu do Homem do Sambaqui. Logo após o seu falecimento, houve um temor que o acervo de toda sua trajetória fosse deslocado para outro local. Sendo assim, a coleção foi tombada pelo Estado e União. O tombamento da Coleção Arqueológica Padre João Alfredo Rohr5 4 http://www.itapiranga.sc.gov.br/conteudo/?item=23628&fa=5001 5 A Coleção Arqueológica João Alfredo Rohr está assim distribuída: as peças depositadas nas

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data de 1984 pelo Estado e pelo IPHAN foi efetivado em 1986 (SOUZA, 1992: 25). A coleção passa a ter como responsável outro arqueólogo da mesma congregação: o Pe. Pedro Ignácio Schmitz. Decorridos anos fechado ao público e alvo de diversas manifestações da imprensa local, finalmente, o museu foi reinaugurado em 29 de agosto de 1998, passando a incorporar o nome seu mentor: Museu do Homem do Sambaqui Padre João Alfredo Rohr, S.J. (foto 4).

Fig. 4: Interior do Museu do Homem do Sambaqui “Pe. João Alfredo Rohr, S.J.”. Foto: Fabiana Comerlato, 2008.

ROHR COMO DEFENSOR DO PATRIMÔNIO Concomitante às suas pesquisas, Rohr participou de um grupo de intelectuais militantes que, articulados em cada Estado, puderam atuar em prol ao patrimônio e preservação dos sambaquis, junto com José Ascenção Loureiro Fernandes6, Paulo Duarte7 e dependências particulares do Colégio Catarinense, em Florianópolis, Santa Catarina; as peças em exposição no Museu do Homem do Sambaqui (Colégio Catarinense), em Florianópolis, Santa Catarina; as peças em exposição no Museu Arqueológico e Oceanográfico do Balneário de Camboriú, Santa Catarina; e as peças em exposição na Academia Nacional da Policia Federal em Brasília (Processo 1.129-T-84) (IPHAN, 2013). 6 José Loureiro (1908-2003) foi médico, indigenista, diretor do Museu Paranaense, fundador e diretor do Departamento de Antropologia da UFPR, fundador do Museu de Arqueologia e Artes populares em Paranaguá. Enfim, um precursor na arqueologia, etnologia indígena e cultura popular do Estado do Paraná (CHMYZ, 2005). 7 Paulo Duarte (1899-1984) foi um humanista, professor e arqueólogo, criou a Comissão de

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Luiz Castro Faria8 (CRUZ, 2012: 139). A ação articulada e contínua desta geração de intelectuais propiciou o fortalecimento da arqueologia através da criação de cursos de formação específicos, unidades museológicas e na concepção de uma legislação que garantisse a salvaguarda dos sítios arqueológicos pré-históricos (BARRETO, 1999-2000: 40). A comissão do projeto de Lei nº3537 de 29 de novembro de 1957 incluía os nomes de Rodrigo de Melo Franco Andrade, Diretor do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional; José Candido Melo Carvalho, diretor do Museu Nacional; Loureiro Fernandes, da Faculdade de Filosofia da UFPR e Paulo Duarte da Comissão de Pré-história da USP (ESTADOS UNIDOS DO BRASIL, 1959). Este projeto de lei com pequenas alterações, posteriormente, se transformou na Lei nº3924/61, que confere ao Estado Nacional a proteção dos sítios arqueológicos em território brasileiro. Nos anos 70, Pe. Rohr tornou-se representante do IPHAN para a área de arqueologia no Estado de Santa Catarina, vistoriou os sítios do litoral e interior, conscientizando autoridades e denunciando à justiça federal as depredações e vandalismos verificados. Prestou depoimento em inquérito policial contra a Prefeitura de Laguna, contra os depredadores em Jaguaruna e de outras localidades. Segundo relatório de Rohr ao MEC/SPHAN, durante os anos de 1972 a 1977 sofreu muitas ameaças, por parte de exploradores clandestinos de sambaquis quando realizara inspeções rotineiras. As ações do Pe. João Alfredo Rohr em sua função como representante do SPHAN teve amplo reconhecimento da comunidade científica da época. O combate contínuo contra interesses econômicos e políticos em prol da preservação dos sambaquis foi reconhecido e apoiado em moção assinada por 237 antropólogos na 9ª Reunião da Sociedade Brasileira de Antropologia em 1974 (SANTA CATARINA, 1985: 38). Pe. Rohr constatou que algumas prefeituras municipais do Estado nos anos 60 e 70 praticaram ações contra diversos sítios arqueológicos. Em 29 de janeiro de 1974, foram interrompidas as escavações na Armação do Pântano do Sul: Constatamos que a Prefeitura Municipal de Laguna, havia compactado quatro quilômetros da estrada do Farol de Santa Maria com conchas de sambaquis. Em Jaguaruna surpreendemos dois indivíduos, ocupados em peneirar conchas do sambaqui da Garoupaba. Nos sambaquis da Carniça II, em Laguna; do Siqueiro e da Samambaia, em Imaruí, as obras

Pré-História da USP em 1952 (FUNARI, 1994). 8 Luiz Castro Faria (1913-2004) foi professor de Antropologia da UFRJ e diretor do Museu Nacional. A mais relevante pesquisa arqueológica que realizou foi no sambaqui da Cabeçuda em Laguna (CRUZ, 2012). Em 1963, Castro Faria colaborou durante uma semana com Rohr nas escavações da Tapera, lhe aconselhando a solicitar bolsa do Conselho Nacional de Pesquisas (PISANI, c. 1982).

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de demolição estavam prosseguindo.(...) Em fins de março recebemos novas denúncias de destruição de sambaquis, vindas do Município de Garuva, divisa com o Paraná.(...) Extensos trechos de estradas municipais, haviam sido, recentemente, compactadas com material retirado dos sambaquis (ROHR, 1° de janeiro a 30 de junho de 1974).

Nesta época, as comunidades que viviam da exploração dos sambaquis em Laguna o respeitavam mais pelo fato de ser padre do que fiscal do SPHAN (FILETI, 2004: 26). Os moradores da comunidade de Campos Verdes, onde fica o complexo de sambaquis da Carniça, viam Rohr como o homem que “fechou” o Carniça, sendo assim, o responsável por tirar o sustento dos moradores (FILETI, 2004: 52). Lembremos que era consenso entre as comunidades a explicação da origem do sambaqui como testemunho do dilúvio; o conhecimento científico dos sambaquis ainda começava a ser difundido de forma mais ampla. Além de sambaquis mutilados e em constante ameaça, em março de 1979, Rohr verificou a destruição de uma laje com mais de 100 amoladores na Barra da Lagoa, em Florianópolis. A destruição foi causada pela construção de uma ponte pênsil que dá acesso à Prainha da Barra, uma obra da Prefeitura Municipal. Esta oficina lítica, denominada atualmente de Oficina Lítica Rio da Lagoa I, ficou embaixo de um dos pilares da referida ponte (foto 5; AMARAL, 1995).

Fig. 5: Foto da Oficina Lítica Rio da Lagoa I. Foto: Fabiana Comerlato.

Segundo Rohr, os principais inimigos na preservação dos sítios são: (...)a lavoura mecanizada, a abertura de novas estradas, os loteamentos, particularmente no litoral, e as represas hidro-elétricas, que vão submergindo sítios arqueológicos às centenas.

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Outra ameaça constante são os turistas, dificeis de fiscalizar o que, permanentemente, continuam fazendo pequenas depredações nos sítios arqueológicos (ROHR, s/d.).

O eminente antropólogo Sílvio Coelho dos Santos9, de maneira muito crítica, nos brinda com suas indagações perturbadoras, ainda nos parece muito contemporâneas, no sentido da ausência na aplicação de ferramentas de gestão do patrimônio arqueológico pelas esferas governamentais: A campanha encetada pelo Pe. Rohr não somente deve merecer todo apoio dos homens lúcidos e responsáveis desta terra. É necessário, e urgente, que medidas efetivas sejam tomadas. Em São Paulo, no Paraná e no Rio Grande do Sul os governos lograram coibir a destruição dos sítios pré-históricos. Por que não será possível aniquilar com as aspirações destrutivas de uns poucos interessados em lucros fáceis, aqui em Santa Catarina? Por que não será possível às Prefeituras Municipais onde se concentram importantes monumentos pré-históricos criar parques locais, visando o resguardo dos sítios e à criação de ambientes públicos de futura importância paisagística e turística? Por que o Governo Estadual não pode organizar um setor destinado ao tombamento e preservação desse patrimônio? (SANTOS, 1972: 119)

CONSIDERAÇÕES FINAIS Nesta tentativa de avaliar o legado científico de Pe. Rohr, podemos perceber a magnitude de seu trabalho em prol da cultura catarinense. No que tange à arqueologia, sua obra pode ser considerada como fonte básica no entendimento da pré-história na região sul do Brasil. O seu caráter pioneiro propiciou novos delineamentos para a arqueologia do século XXI, Pe. Rohr foi um “(...) desbravador de um território inculto, preparando -o para uma nova etapa e buscando garantir os sítios e o material para as gerações que o sucederiam” (SCHMITZ, 2009: 20).

9 “Natural de Florianópolis, Sílvio Coelho dos Santos nasceu em 1938. Cursou a graduação em História na UFSC (1960), Especialização em Antropologia Cultural e Sociologia na UFRJ (1963) e Doutorado em Antropologia na USP (1972). Professor da UFSC desde 1962, foi chefe do Departamento de Ciências Sociais, coordenador da Pós-graduação em Ciências Sociais, PróReitor de Pesquisa e Pós-Graduação, Pró-Reitor de Ensino. Sua participação foi fundamental para a consolidação de Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social e para a criação do Departamento de Antropologia da UFSC.Teve participação ativa em instituições científicas e literárias, foi sócio emérito do IHG-SC e secretário regional da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), destacando-se como Presidente da Associação Brasileira de Antropologia (1992-1994), membro da Academia Catarinense de Letras e pesquisador emérito do CNPq. Faleceu aos 70 anos em 2008” Disponível em http://nepi.ufsc.historico/fundador/ Acessado: 21 set. 2014.

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UNA EXPERIENCIA DE ARQUEOLOGÍA PÚBLICA Y COLABORACIÓN INTERCULTURAL EN EL SECTOR SEPTENTRIONAL DE ARGENTINA Mónica Montenegro

No. 10 ISSN 2237-8294 dezembro de 2014

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UNA EXPERIENCIA DE ARQUEOLOGÍA PÚBLICA Y COLABORACIÓN INTERCULTURAL EN EL SECTOR SEPTENTRIONAL DE ARGENTINA Mónica Montenegro1 RESUMEN La arqueología pública puede vislumbrarse como un espacio para desarrollar propuestas didácticas que contribuyan a generar conocimientos sobre el pasado desde una perspectiva multivocal. En este trabajo compartimos una experiencia de arqueología pública y colaboración intercultural desarrollada en una comunidad educativa del Noroeste Argentino2. Se trata de una actividad relacionada con la elaboración de un material didáctico para trabajar contenidos sobre el pasado prehispánico en el contexto áulico, que buscó integrar conocimientos ancestrales y científicos, y tecnologías de la información y la comunicación  (TICs). A partir de la misma, reflexionamos acerca del rol de la arqueología en la construcción de discursos sobre el pasado, en un complejo contexto donde se imbrican activaciones patrimoniales, mediación científica, emergencia de identidades étnicas, y re-configuración de territorios. Palabras clave: Arqueología Pública, Colaboración Intercultural, Noroeste Argentino. 1 Dra. en Antropología. Programa de Estudios Postdoctorales de la Universidad Nacional de Tres de Febrero. Instituto Interdisciplinario Tilcara, Universidad de Buenos Aires y Centro Regional de Estudios Arqueológicos, Universidad Nacional de Jujuy, República Argentina. [email protected] 2 La misma se realizó durante el año 2013, en el marco del Proyecto de Investigación y Formación Posdoctoral: “Arqueología pública y colaboración intercultural en la construcción de discursos sobre el pasado local desde la escuela. Un estudio de caso en el sector septentrional del noroeste argentino”, bajo la dirección del Dr. Daniel Mato –CONICET /Universidad Nacional de Tres de Febrero, Argentina.

MÓNICA MONTENEGRO

ABSTRACT Public Archaeology can be glimpse as a space to develop didactical proposals that contribute to create knowledge about the past from a multivocal perspective. In this work we want to share an experience of public Archaeology and intercultural collaboration developed with an educational community in the Norwest of Argentine Republic. This work is focused about a related activity with the elaboration of didactical material to work contents about pre-Hispanic past on classroom context, looking for integrate ancient and scientific knowledge and the information and communication technologies (TICs). From it, they started to shedding questions and reflections about the role of archaeology on the construction of discourses about the past, in a complex context where heritage’s activations, scientific’s mediation, emergence of ethnic identities and reconfiguration of territories, overlap. Keywords: Public Archaeology; Intercultural collaboration; Noroeste Argentino. RESUMO Pode-se entender a Arqueologia Pública como espaço de desenvolvimento de  propostas educacionais que contribuem para a geração de conhecimento sobre o passado, a partir de uma  perspectiva multivocal. Neste trabalho, compartilhamos uma experiência de Arqueologia Pública e colaboração intercultural, realizado numa comunidade do Noroeste da Argentina. Trata-se de uma atividade pedagógica, voltada à produção de material de ensino para trabalhar o  passado pré-hispânico no espaço escolar. Tal proposta integrou conhecimentos ancestrais e científicos, e as tecnologias da informação e comunicação (TICs). A partir dessa experiência, foram formuladas perguntas e reflexões sobre o papel da arqueologia na construção de discursos sobre o passado em um contexto complexo, no qual estão entrelaçadas ativações patrimoniais, mediação científica, surgimento de identidades étnicas e reconfiguração de territórios. Palavras-chave: Arqueologia Pública; Colaboração Intercultural; Noroeste da Argentina.

REFLEXIONES ACERCA DE LOS DISCURSOS ARQUEOLÓGICOS DESDE UN ESPACIO PERIFÉRICO DE ARGENTINA Cómo arqueóloga mi interés fundamental radica en acceder a la comprensión del pasado, definiendo problemáticas desde el presente para interrogar en forma sistemática y rigurosa el registro arqueológico y poder construir discursos científicos. De cierto modo, vida y muerte, voces y silencios, pasado y presente, se entrelazan en los trabajos

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arqueológicos intentando hacer presente el pasado, a través de un discurso científico. Podríamos pensar, citando a David Lowenthal que “por lo general, la gente es consciente de que el pasado real es irrecuperable. Sin embargo, la memoria y la historia, la reliquia y la réplica dejan unas impresiones tan vivas, tan tentadoramente concretas…” (LOWENTHAL, 1985: 68). Para la arqueología resulta crucial definir una estructura teórico-metodológica que permita interpretar esas impresiones y construir discursos legítimos, para ello debe además, contextualizar las investigaciones en un eje espaciotemporal que les otorgue significación y sentido. El discurso arqueológico opera simultáneamente en un doble nivel temporal: por una parte, el tiempo de enunciación, fuertemente marcado por los enfoques teóricos dominantes (presente), y por la otra, el tiempo en que acontecieron los hechos sociales que quedaron evidenciados a través de la cultura material (pasado). De cierto modo, la práctica arqueológica se debate en un juego temporal que contribuye a la legitimación de discursos acerca del pasado y, en ese punto es necesario hacer consciente el presente en el cual se desarrollan las investigaciones. En mi caso, se trata de un presente enmarcado en un contexto donde la arqueología hace tiempo que ha dejado de ser “la ciencia de los cacharros”3, y la misión de los arqueólogos está muy lejos de exhumar “las culturas aborígenes de entre las cenizas de un pueblo muerto”4. Por el contrario, el tiempo de mi praxis se define en el marco de perspectivas desarrolladas a partir de dos fuerzas que han confluido para cambiar esto: por una parte la creciente organización y proactividad de organizaciones y dirigentes indígenas con tal propósito, y por otra, las autocríticas y re-posicionamientos ideológicos relacionados con arqueología y comunidades (LAYTON, 1989; TRIGGER, 1996; UCKO, 1989) que trascienden el espacio de la excavación y el laboratorio5, revisando la 3 El arqueólogo argentino Juan Bautista Ambrosetti hace más de un siglo sostenía la importancia de los estudios arqueológicos para conocer las culturas prehistóricas, y esperaba “que la Arqueología en este continente deje de ser la ciencia de los cacharros y estos no tengan otro objeto que proporcionar bellas láminas ó adornar con sus formas curiosas e interesantes ornamentos los estantes de los museos” (AMBROSETTI, 1908: 987). 4 Fragmento de la leyenda que contiene la placa recordatoria ubicada en la pirámide funeraria del Pucara de Tilcara, construida en homenaje a los primeros arqueólogos que trabajaron ese sitio, uno de los más importantes del Noroeste Argentino. 5 Si bien ya venían desarrollándose algunas investigaciones al respecto, un antecedente fundamental fue el World Archaeological Congress celebrado en 1986, que congregó arqueólogos, antropólogos, académicos de diversas disciplinas y miembros de comunidades originarias, y generó una apertura en el horizonte de los estudios arqueológicos, al considerar central para esta ciencia, la participación de dichas comunidades, muchas de las cuales, estaban acostumbradas a ser tratadas como “materia” de observaciones arqueológicas y antropológicas, pero nunca antes habían sido admitidos como participantes en igualdad de condición para discutir su propio pasado o presente cultural (UCKO, 1989).

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relación entre las dimensiones epistemológica y ética de la investigación arqueológica (BLAKEY, 2008), y sosteniendo la importancia de interactuar “con” las comunidades locales para co-construir relatos del pasado que resulten significativos (MENEZES FERREIRA y MACHADO SÁNCHEZ, 2011). En este devenir, también surgen interrogantes relacionados con la situación espacial que ocupo en el ejercicio de enunciación y re-surgen en mí, viejas dicotomías tales como: centro/periferia, local/global, autóctono/foráneo, que me ayudan a situar los relatos. Ante todo, reconozco que mis discursos acerca del pasado son parte de una práctica institucionalizada de investigación científica, y de cierto modo siguiendo a Foucault (1970), entiendo que en tanto discursos científicos no son entidades absolutas, sino extensiones moldeadas como instrumentos de poder que conforman convenciones lingüísticas y representaciones sobre los grupos sociales y, al circular en la sociedad, se articulan a la producción regulada de otras instituciones locales, nacionales y transnacionales; en este caso se trata de discursos elaborados desde dos instituciones universitarias: la Universidad Nacional de Jujuy y la Universidad de Buenos Aires. Mi espacio de enunciación es la provincia de Jujuy, ubicada en una región de triple frontera6, aproximadamente a dos mil kilómetros al norte de la Ciudad de Buenos Aires (capital del país). Mi práctica arqueológica se enmarca en un espacio muy particular y polisémico del Noroeste Argentino: La quebrada de Humahuaca, que es a la vez una región geográfica de la Provincia de Jujuy, un corredor natural de tránsito en los Andes Centro Sur, un destino de interés turístico, un marcador de límites del Estado Nacional, una de las áreas con mayor densidad de sitios arqueológicos del país, y un paisaje cultural declarado Patrimonio Mundial por UNESCO. Precisamente las activaciones patrimoniales relacionadas con esta declaratoria junto a nuevos planteamientos de intelectuales e interpelaciones de dirigentes indígenas, promovieron instancias de activismo que obligaron a re-definir las relaciones entre comunidades locales y arqueólogos, contribuyendo a la re-formulación de discursos acerca del pasado en este espacio periférico de Argentina. NUEVOS ESCENARIOS SOCIOPOLÍTICOS PARA LA PRÁCTICA ARQUEOLÓGICA EN SUDAMÉRICA Durante las últimas décadas del siglo XX, las investigaciones científicas se han desarrollado en nuevos escenarios sociopolíticos; la complejidad de los desarrollos en-

6 Emplazada geopolíticamente en un área de Triple frontera entre la República Argentina, el Estado Plurinacional de Bolivia y la República de Chile.

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marcados en el neoliberalismo multicultural7 ha producido profundos impactos en el plano cultural; uno de ellos está asociado a la confrontación de conocimientos científicos versus ancestrales (MONTENEGRO y RIVOLTA, 2012). Las ciencias sociales se han visto interpeladas por su objeto de estudio, que en un nuevo contexto de derechos se convierte en sujeto empoderado, exigido a participar en los procesos de construcción de conocimiento que se realizan sobre sí y, sobre su grupo de pertenencia (AYALA, 2008; BOLADOS GARCÍA, 2010; MONTENEGRO, 2012). Esto ha conllevado una re-definición de objetos/sujetos, relaciones y campos de investigación, y como sugiere la antropóloga chilena Paola Bolados García (2010), el campo científico, el burocrático y el etnopolítico, se han convertido en escenario telúrico de las luchas por adjudicarse la administración de las diferencias. La arqueología sudamericana por su parte, ha generado interesantes revisiones y autocríticas en torno a la relación hegemónica que históricamente mantuvo esta ciencia con las comunidades originarias, que fue materializándose de cierto modo, en la producción de discursos colonialistas sobre el pasado de la región (AYALA, 2008; GNECCO, 2002; VERDESIO, 2010). En Argentina, también han tenido una intensidad creciente los estudios que apuntan a descentrar el discurso hegemónico de la arqueología (ENDERE y CURTONI, 2007; LAGUENS 2008; entre otros) abriendo espacios para el debate sobre arqueología y comunidades, que han promovido acciones como la Declaración de Río Cuarto (2005)8. En el ámbito local, las reflexiones sobre la práctica arqueológica se han acentuado, a partir de activaciones patrimoniales implementadas en el marco de complejos transnacionales de producción cultural9, que han desencadenado redefiniciones en torno a identidades culturales y territorios. En este escenario, las evidencias materiales del pasado han adquirido un rol protagónico en los mecanismos de memoria social de las

7 Bolados García (2010) denomina así a una versión extendida del neoliberalismo a campos socioculturales antes ignorados, donde las prácticas de gobierno tienden a la sujeción y subjetivación de los individuos a través de formas de auto-mejoramiento. 8 En el marco del Primer Foro Pueblos originarios-Arqueólogos, respondiendo al mandato de la Asamblea Plenaria del XV Congreso Nacional de Arqueología Argentina que entendió la necesidad de establecer un diálogo sobre la base del respeto mutuo entre pueblos originarios y arqueólogos; reconociendo, por una parte, la contribución de la arqueología al conocimiento del pasado indígena, y por otra, el interés legítimo de las comunidades indígenas actuales por el patrimonio que les pertenece y que es sustento del conocimiento, sabiduría y cosmovisión ancestrales. 9Concepto acuñado por Daniel Mato (2004), para definir articulaciones transnacionales de tipo global-local resultantes de prácticas individuales y de organizaciones en el contexto de relaciones sociales, políticas y económicas más amplias, atravesadas por relaciones de poder y conflictos de intereses.

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comunidades locales, quienes les otorgan nuevas valoraciones, y las re-significan por una parte, como elementos de su paisaje cultural que contribuyen a demarcar territorios ancestrales; y por la otra, como patrimonio cultural y potencial recurso de desarrollo económico asociado a proyectos turísticos. La complejidad de estos procesos provoca conflictos y negociaciones entre los diversos actores sociales que pugnan por la apropiación de sitios y bienes arqueológicos; en relación a la arqueología se presentan situaciones diversas: en algunos casos, las comunidades han impedido el desarrollo de investigaciones arqueológicas, pero en otros, han acudido a los arqueólogos para que les acerquen conocimientos sobre las sociedades que habitaron en tiempos prehispánicos esta geografía (MONTENEGRO, 2010; MONTENEGRO y APARICIO, 2013; RIVOLTA, MONTENEGRO y ARGAÑARAZ, 2011). Este complejo escenario, nos obligó a reflexionar sobre el posicionamiento de nuestra praxis en un contexto de diversidad cultural, y nos desafió a diseñar acciones para actualizar los vínculos entre arqueología y comunidades locales. Para ello fue necesario reconocer que los procesos de reconfiguración de identidades y territorios que están produciéndose al interior del territorio provincial otorgan a los bienes arqueológicos nuevas valoraciones definidas desde la multiculturalidad10, integrándolos al campo del patrimonio local. De esta manera, sitios y objetos arqueológicos son entendidos como mecanismos de activación de la memoria social y dinamizadores de procesos identitarios, considerando que “la constitución de una identidad cultural se lleva a cabo a través de la preservación de la memoria dentro de una determinada visión de mundo” (CARVALHO y FUNARI, 2012: 106). En consecuencia nuestras propuestas se basaron en acciones de arqueología pública relacionadas con patrimonio como espacio de participación social11; así, durante la última década hemos generado propuestas que favorecieran los procesos de construcción de patrimonio arqueológico en la escuela. De cierto modo, patrimonio fue una “excusa” para promover la comunicación intercultural y re-conocer a partir de múltiples voces, el pasado local, compartiendo con Carvalho y Funari (2012), la necesidad de trascender el espacio académico para dialogar con la comunidad valorando los diversos puntos de vista y respetando las distintas visiones de mundo, destacando a su vez los espacios

10 Entendiendo que “la multiculturalidad da cuenta de la presencia de culturas diferentes y de la necesidad de atender las demandas de los distintos grupos minoritarios, pero dentro de estos grupos existen dinámicas y relaciones de poder” (DIETZ y MATEOS 2011: 24). 11 Compartimos con colegas brasileños que “... la apertura de nuevas posibilidades para los enfoques participativos es un desafío importante para todos los que se interesan por el patrimonio como instrumento para la justicia social” (CARVALHO y FUNARI, 2012: 109).

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para reflexionar y elegir. ARQUEOLOGÍA PÚBLICA Y COLABORACIÓN INTERCULTURAL: NUEVAS VOCES EN LOS DISCURSOS DEL PASADO La enseñanza del pasado local en contextos impactados por el neoliberalismo multicultural conlleva interesantes desafíos, fundamentalmente, si el propósito es deconstruir antiguas políticas educativas que promovieron un ejercicio de colonialidad en ciertos espacios de producción de conocimientos. La arqueología, ha participado de estos procesos promoviendo re-consideraciones acerca del alcance de la “transferencia” de conocimientos científicos a la comunidad (LAYTON, 1989; UCKO, 1989; TRIGGER, 1996). Precisamente uno de los abordajes más interesantes que propone está vinculado al concepto de multivocalidad, que permite que sectores, otrora marginados, puedan efectuar interpretaciones acerca del pasado en sus propios términos a fin de construir significados diferentes a los modelos dominantes (HODDER, 2008). En nuestro caso, hemos operacionalizado el concepto de multivocalidad como sugiere Blakey (2008), recuperando el valor de la pluralidad de perspectivas acerca del pasado, a fin de lograr una práctica arqueológica más ética y comprometida con la comunidad. Siguiendo a ese autor, entendemos que nuestras elecciones epistémicas en relación al pasado pueden afectar a las comunidades con quienes trabajamos, por ello es necesario reconocer el potencial que tiene la práctica arqueológica como espacio para democratizar el conocimiento. Nos parecía que uno de los espacios más interesantes para desarrollar nuestras acciones era el ámbito educativo formal, en el que ya veníamos interactuando a partir de propuestas pedagógicas relacionadas con patrimonio arqueológico. Decidimos que la multivocalidad fuera el eje de las actividades de arqueología pública que proponíamos (MC. DAVID, 2002; MERRIMAN, 2004), de modo tal que los distintos actores escolares pudieran ser partícipes de la construcción de discursos acerca del pasado de forma más equitativa, y esta experiencia resultara significativa para la comunidad educativa. Consideramos además los planes rectores que propone UNESCO para lograr cambios sostenibles en los sistemas educativos de todo el mundo, uno de cuyos objetivos es lograr una Educación para Todos; por ello, desarrollamos un proceso dialógico que permitiera incorporar en los discursos del pasado, nociones nativas acerca de la historia, el pasado y el tiempo. En nuestro caso, entendiendo que no hay un saber universal (MATO, 2008), definimos la praxis disciplinar arqueológica a la luz de nuevas categorías como la de comunicación intercultural (MATO, 2012), que abre la posibilidad de comprender los vínculos sociales entre diversos actores educativos, que producen,

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negocian y disputan formulaciones de sentido acerca del pasado y del presente; no solo entre sí, sino dentro de sí. Diseñamos las propuestas de arqueología pública, partiendo de prácticas pedagógicas que promueven una descolonización del conocimiento, al decir de Catherine Walsh (2009) sustentadas en el re-existir y re-vivir como procesos de re-creación. Adherimos a la posibilidad de imaginar a la pedagogía como un “pensar con los otros sectores de la sociedad”, en un proceso inclusivo, dirigido a la transformación y a la creación de nuevas propuestas educativas, que apuesten a desarrollar un proyecto político, epistémico, social y ético de la interculturalidad (WALSH, 2009). Por lo demás, consideramos que en el ámbito del multiculturalismo, el Estado nacional re-define sus relaciones con los diversos actores locales, quienes no están exentos de interferencias discursivas transnacionales (MATO, 2004). Aquí se pone de manifiesto, como sugieren Dietz y Mateo Cortez (2011), la necesidad de transversalizar un enfoque intercultural que visibilice la diversidad, celebre la interacción y promueva actitudes positivas ante la heterogeneidad. ARQUEOLOGÍA PÚBLICA Y COLABORACIÓN INTERCULTURAL EN LA QUEBRADA DE HUMAHUACA: ENTRE SABERES ANCESTRALES E INFORMÁTICA La experiencia de arqueología pública que presentamos fue resultado de una investigación cualitativa, sincrónica, de corte exploratorio, realizada en el ámbito educativo desde una perspectiva dialógica, empleando métodos de arqueología pública (HÖGBERG, 2007; FERNÁNDEZ MURILLO, 2003; FUNARI y VIEIRA DE CARVALHO, 2012; ZABALA y FABRA, 2012). El objetivo fue promover un espacio dialógico para construir conocimientos desde una perspectiva intercultural. Aspiramos a mejorar la calidad del proceso de enseñanza, a partir de la elaboración conjunta de material didáctico sobre el pasado y el patrimonio de la región, empleando TICs12. La unidad de estudio fue la Escuela Primaria N° 44 “José Ignacio Gorriti” de la localidad de León, Provincia de Jujuy. Esta institución educativa se encuentra emplazada en el sector meridional de la Quebrada de Humahuaca, en un espacio de transición con valles templados, a una altitud aproximada de 1.620 m.s.n.m. Cuenta con Nivel Inicial y Primario y posee un albergue anexado que le permite hospedar alumnos de áreas

12 Las tecnologías de la información y la comunicación (TIC) incluyen técnicas y elementos empleados en el tratamiento y la transmisión de las informaciones, principalmente de informática, internet y telecomunicaciones.

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rurales próximas. La población está compuesta por 138 alumnos (115 externos y 23 albergados) y 33 personas que forman parte del personal de la escuela, entre las que se incluyen directivos, docentes y empleados de maestranza. A partir de sugerencias de la Supervisora de región y de la Directora se trabajó específicamente con docentes y alumnos de 4°y 5° grado. La investigación se conformó en base a observación participante, indagación de documentación institucional, y rescate de discursos de los diversos actores educativos y miembros de la comunidad local. Asumiendo que ningún saber es universal, la colaboración intercultural se vuelve imprescindible (MATO, 2008) a la hora de generar aprendizajes significativos; por ello, nuestra investigación se consolidó a través de una doble vía: a) la transferencia de resultados de investigaciones arqueológicas al entramado socioeducativo local a través de estrategias de mediación científica; b) la recuperación de conocimientos de la comunidad a través de acciones de colaboración intercultural. Nuestro interés se centró en recuperar –con la mayor fidelidad posible- el lenguaje de los actores, en sus propios términos y significaciones, transformando el contexto áulico en un espacio multivocal.

Fig. 1: Instancia de trabajo durante el taller

La dinámica incluyó el dictado un taller escolar denominado “Arqueología y Pasado local”, que se desarrolló en cinco encuentros. Trabajamos con docentes de grado y de materias especiales (actividades prácticas, expresión plástica y técnicas agropecuarias), lo que nos permitió desplegar una mayor cantidad de estrategias didácticas. Durante los dos primeros encuentros desarrollamos una actividad para conocer las representaciones de los niños acerca de la arqueología y sobre el pasado prehispánico regional. Nos interesaba indagar y activar los conocimientos previos de los niños para promover cambios

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conceptuales y lograr aprendizajes significativos. En relación con la arqueología, el 88% de los niños no conocía que era la arqueología, del 12 % restante, sólo el 4 % poseían una idea correcta acerca de esta ciencia, el resto la confundía con la paleontología (particularmente el estudio de los dinosaurios). Quienes entregaron una idea correcta acerca de la arqueología, la relacionaron únicamente con la excavación de restos óseos humanos y “ollitas” de cerámica. No hubo asociación con otras evidencias materiales del pasado como corrales, campos de cultivo, viviendas, arte rupestre, ni textiles. La metodología de trabajo se relacionó fundamentalmente con la excavación (utilizando pala y pico) y la recuperación del material para “llevarlo a los museos”. Una gran mayoría (87%) expresó no conocer sitios arqueológicos; del 13% restante, el 9% mencionó algunos materiales (puntas de flecha, ollitas de barro), solo el 4% se refirió a los mismos como “pucaras”. Esa fue la única denominación que pudimos registrar, en ningún momento nos hablaron de “antigales”, término que si hemos registrado en trabajos anteriores en otros sectores de Quebrada de Humahuaca.

Fig. 2: Representaciones acerca de la arqueología

El pasado prehispánico estaba poco representado en los discursos de los niños: solo un 18% refirió en sus discursos al “tiempo de los indios”; para el 82% restante, hablar del pasado era referirse únicamente a la “historia”, y el lapso cronológico al que aludieron correspondió al Siglo XIX, específicamente al período de Guerras de Independen-

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cia de Argentina, en particular al “Día Grande de Jujuy13”. En diálogo con las docentes una de ellas manifestó que los alumnos de 5° estaban trabajando una línea temporal en relación a las primeras ocupaciones de la Quebrada de Humahuaca, pero no lograban establecer correlaciones entre los procesos culturales prehispánicos de las diferentes regiones de la provincia, fundamentalmente en torno a continuidad y cambios en los patrones de movilidad y asentamiento de los grupos, producción y distribución de bienes materiales. Los niños de 4° todavía no habían estudiado temas relacionados con el pasado prehispánico. En cuanto a patrimonio, no se evidenció entre los actores educativos apropiación de los sitios arqueológicos como parte del patrimonio. Las referencias a patrimonio de la región se vincularon a dos temas principales: a) Patrimonio Natural: las diferentes regiones geográficas como espacios de articulación de prácticas de la vida cotidiana; y b) Patrimonio cultural: la identidad gaucha, como discurso emergente sobre el tópico identitario. En dable destacar que en reiteradas oportunidades (82%), al hablar de patrimonio se hizo alusión a la Quebrada de Humahuaca, aunque se asoció en forma directa a “Patrimonio de la Humanidad”, no con el “Patrimonio local”. A partir del diagnóstico, realizamos una selección de contenidos que comprendió dos temáticas: a) la arqueología como ciencia, sus objetivos y metodología; y b) los desarrollos culturales prehispánicos de la región. Utilizando una metodología de tipo taller, propusimos actividades relacionadas a diferentes períodos cronológicos, invitándolos asimismo a abordar el eje espacial como otra dimensión relevante y complementaria para el estudio del pasado, que permitiera integrar los procesos socioculturales con las regiones geográficas y sus recursos. Como resultado de los mismos cada grupo elaboró una producción plástica que serviría como base para elaborar posteriormente entre todos los participantes un material didáctico para la escuela. Planteamos la posibilidad de realizar ese material utilizando tecnologías de la comunicación y de la información (TICs) para procesar los contenidos a partir de un programa informático con formato de presentación. Entendíamos que el mismo podía ser utilizado como estrategia visual para la transposición didáctica de contenidos al contexto áulico, despertando en los alumnos un mayor grado de interés. Asimismo, consideramos que dicho formato permitiría realizar actualizaciones cuando los docentes lo consideraran necesario, enriqueciendo con sus aportes el documento inicial.

13 Fecha en la cual se celebra una de las victorias más destacadas del proceso independentista: la Batalla de León (27 de abril de 1821) cuando las tropas realistas fueron derrotadas por las tropas jujeñas comandadas por el coronel José Ignacio Gorriti.

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Fig. 3: Portada del Material Didáctico elaborado

El nombre elegido para la presentación fue: «Las tierras de León tiempo antes de la conquista española» se trata de un material didáctico para estudio del pasado prehispánico del sur de la Quebrada de Humahuaca en escuelas primarias. El mismo fue elaborado a partir de discursos y expresiones grafo-plásticas de los niños, a los que se integraron contenidos arqueológicos, información proveniente de textos escolares, y conocimientos que acercaron otros miembros de la comunidad. Los contenidos se estructuraron siguiendo un eje temporal que muestran diversos aspectos de la vida de las comunidades que habitaron en el pasado esta región de los Andes Centro Sur. Para ello abordamos las siguientes temáticas: primeras ocupaciones del territorio, grupos cazadores y recolectores, pueblos agricultores, los habitantes de los pucaras, la llegada de los Inkas y la formación del Collasuyu, culminando en el momento de la conquista española. Durante los talleres observamos un gran interés por parte de los niños por conocer más acerca de los métodos y técnicas de la arqueología; en relación a esto, surgió como inquietud la visita a algunos sitios arqueológicos próximos a la institución educativa, que se planificaron para el año lectivo 2014. De todos modos, aunque el pasado prehispánico les interesó, privilegiaron los conocimientos relacionados al período colonial, especialmente los tiempos de la revolución. Numerosos miembros de la comunidad educativa, nos hicieron saber en reiteradas oportunidades, que el pasado de la localidad de León está relacionado principalmente al tiempo de las Guerras de Independencia, donde León tuvo un rol protagónico como espacio de defensa de la frontera norte del país, y por ello les gustaría que los arqueólogos estudien la zona para ver si pueden encontrar “huellas” de esas batallas. Los procesos de construcción de patrimonio e identidades están asociados fundamentalmente a la música, las danzas, la indumentaria, las celebraciones religiosas, y

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otras tradiciones vinculadas a la vida de los gauchos. No hemos registrado identificaciones identitarias relacionadas con comunidades indígenas, por el contrario, en esta comunidad el referente identitario son “los gauchos”; estos resultados reafirman investigaciones anteriores (Montenegro, Cremonte y Peralta 2013) que ponían de manifiesto que las comunidades de la región de los Valles templados de Jujuy, se identifican con esa construcción identitaria propia del Estado Nacional Argentino. Por ello, consideramos que la comunidad educativa de León se encuentra emplazada en un área de frontera a nivel geográfico: valles/quebrada, que también delimitaría configuraciones identitarias: gauchos/indígenas, y construcciones patrimoniales arqueológicas de diferentes períodos: colonial/prehispánico. Sin duda estos planteos despiertan nuevos interrogantes que serán objeto de futuras investigaciones. Esta investigación logró descentrar, una vez más, a la arqueóloga de sus representaciones acerca del pasado local; fundamentalmente porque al diseñar este proyecto pensamos en aportar desde nuestras investigaciones arqueológicas, elementos para ampliar el horizonte temporal hacia -los desarrollos prehispánicos- contenidos que no siempre son tratados en el contexto áulico. La comunidad nos interpeló con sus demandas de participación no sólo en la construcción de discursos sobre el pasado, sino sobre la selección de temas que podría interesarles conocer. Al observar las producciones de los talleres pudimos advertir que era realmente poco lo que habían dejado plasmado sobre los tiempos prehispánicos, pero era notable la avidez de conocimiento que había en relación a la Batalla de León como objeto de estudio. En tal sentido, solicitaron que la arqueología comience a trabajar en estudios sobre dicho período cronológico, que aún no habíamos considerado. Nuevamente acá surgió la disyuntiva entre lo que los investigadores creen que puede interesar a las comunidades y lo que realmente les interesa a la gente. La colaboración intercultural se manifestó a través de la cooperación de diferentes miembros de la comunidad educativa que aportaron sus conocimientos acerca de “otros tiempos”, nociones de patrimonio, consideraciones sobre la identidad gaucha, conceptualizaciones del territorio provincial-regional-local, y miradas acerca de la forma en que quieren construir el pasado de esa comunidad. También pudimos registrar esa colaboración a través de la forma en que decidimos nuestra participación en cada taller, en el respeto por la diversidad de comentarios sobre el pasado, en las expectativas sobre este presente que estábamos construyendo en equipo, en las perspectivas de trabajo a futuro que quedaron planteadas, y en la forma en que los participantes fuimos apropiándonos de las ideas de los “otros”. Sin duda, lo más interesante, fue descubrir que al re-situar nuestro relato arqueológico desde una perspectiva intercultural, el mismo se volvía más significativo, tanto para la comunidad educativa, como para la arqueóloga.

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PALABRAS FINALES La experiencia que hemos compartido nos ayudó a ilustrar un contexto complejo de conflictos y negociaciones en torno a la construcción de discursos sobre el pasado desde una perspectiva multivocal. Los talleres permitieron no solo acercar conocimientos arqueológicos al contexto áulico, sino además, hacer visibles “otros” discursos acerca del pasado local, que de cierto modo se legitimaron en la escuela. El material didáctico elaborado en forma conjunta con la comunidad educativa permitió elaborar un discurso plural que integró otras voces y miradas; su formato digital, como presentación permite su uso y modificación por parte de los docentes con el fin de actualizar la información en forma permanente y se convierte en una herramienta didáctica útil para desarrollar la transposición didáctica de contenidos al aula, despertando en los niños un interés particular por tratarse de un elemento visual y con animación. Esta actividad sirvió para reflexionar sobre las elecciones epistémicas que se ponen en juego a la hora de desarrollar acciones de arqueología pública. Como arqueóloga, me interpeló la posibilidad de dejar a un lado las verdades absolutas para comenzar a compartir conocimientos, en una dinámica que implica un intercambio de roles en el doble proceso de enseñanza-aprendizaje; una experiencia cognitiva donde las comunidades y la arqueología se apropian mutuamente de ideas “otras” que permiten reconfigurar relatos acerca del pasado local, que resulten significativos para el presente. Hoy más que nunca estamos convencidas de que la multivocalidad en arqueología abre en nuestro contexto del Noroeste Argentino, una posibilidad cierta para re-pensar la construcción de conocimientos desde una perspectiva dialógica, en el marco de los principios de complementariedad y reciprocidad andina. A nuestro modo de ver, la arqueología pública se constituye como un espacio epistémico y metodológico que conlleva no sólo reflexiones disciplinares, sino también posicionamientos sociopolíticos. En tal sentido, nos animamos a proponer la necesidad de una arqueología intercultural que permita, por una parte, de-construir prácticas hegemónicas de producción de conocimientos, y por la otra, avanzar en el conocimiento de dinámicas actuales de re-configuración de patrimonio, identidades y territorios en este sector de los Andes Centro Sur. AGRADECIMENTOS Deseo agradecer en primer lugar a la comunidad educativa de la Escuela N° 44: a su Directora Isabel Galian, a las docentes: Nora M. Dávila, Esther V. Arjona, Norma

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Cruz, y Judith Zamboni, y a los niños de 4° y 5°. Agradezco fundamentalmente a Daniel Mato por dirigirme en este proceso de formación Postdoctoral. Un agradecimiento especial a Lucio Menezes Ferreira por sus valiosos aportes en torno arqueología pública, y a María Elisa Aparicio por su acompañamiento permanente y sus inestimables sugerencias en torno a la faz etnográfica de la investigación. REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS AMBROSETTI, Juan Bautista. “La Facultad de Filosofía y Letras de la Unviersidad Nacional de Buenos Aires y los Estudios de Arqueología Americana”. Anthropos Revue Internationales dÉthnologie et de Linguistique, Tom III: 983-987, 1908. AYALA, Patricia. Políticas del Pasado: Indígenas, Arqueólogos y Estado en Atacama. Línea Editorial IIAM, Universidad Católica del Norte, San Pedro de Atacama, Chile, 2008. BLAKEY, Michael. “An Ethical Epistemology of Publicly Engaged Biocultural Research”. Evaluating Multiple Narratives: Beyond Nationalist, Colonialist, Imperialist Archaeologies. J. Habu; C. Fawcett y J.M. Matsunaga (Eds.) Cap.2:17-28, Springer, 2008. BOLADOS GARCÍA, Paola. Neoliberalismo multicultural en el chile democrático: Gubernamentalizando la Salud Atacameña a través de la Participación y el Etnodesarrollo. Tesis de Doctor en Antropología Social. UCN y UTA, Chile, 2010. CARVALHO, Aline; FUNARI, Pedro Paulo. “Memoria y patrimonio: diversidades e identidades”. Antípoda. Revista de Antropología y Arqueología, núm. 14: 99-111, Universidad de Los Andes, Colombia, 2012. DIETZ, Gunther; MATEOS CORTEZ, Laura. Interculturalidad y Educación Intercultural en México. Un análisis de los discursos nacionales e internacionales en su impacto en los modelos educativos mexicanos. Secretaría de Educación Pública, Coordinación General de Educación Intercultural y Bilingüe, México D.F, 2011. ENDERE María Luz; CURTONI, Rafael Pedro. Patrimonio, arqueología y participación: acerca de la noción de paisaje arqueológico. Análisis, Interpretación y Gestión en la Arqueología de Sudamérica. Curtoni, R.P. y Endere, M.L (Eds.) Incuapa, S. Teórica N° 2 : 277-296, Unicen, Olavarría, 2003. FERNANDEZ MURILLO, María Soledad. Comunidades Locales y la Enseñanza de la Arqueología: Una experiencia en Bolivia. Chungara, Revista de Antropología chilena 35(2):355-360, Arica, 2003. FOUCAULT, Michel. El orden del discurso. Tusquets Editores, Buenos Aires, 1992 (1970).

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ARTIGO

ANTROPOLOGIA, ARQUEOLOGIA E USOS DO PASSADO DURANTE A GUERRA FRIA

REGIMES AUTOCRÁTICOS, MILITARES E PSEUDODEMOCRÁTICOS, O INSTITUTO COLOMBIANO DE ANTROPOLOGIA E SEUS MODELOS DE COLOMBIANO 1950-1966

Andrés Alarcón-Jiménez

Dossiê

No. 10 ISSN 2237-8294 dezembro de 2014

ARTIGO

ANTROPOLOGIA, ARQUEOLOGIA E USOS DO PASSADO DURANTE A GUERRA FRIA REGIMES AUTOCRÁTICOS, MILITARES E PSEUDODEMOCRÁTICOS, O INSTITUTO COLOMBIANO DE ANTROPOLOGIA E SEUS MODELOS DE COLOMBIANO 1946-1966 Andrés Alarcón-Jiménez1 Colombia is not a country of dictatorships. It is usually known for its civic tradition, alien to military governments… (LANGEBAEK apud FUNARI, ZARANKIN e SALERNO, 2009: 9).

RESUMO Esse artigo é uma proposta de estudo. Propõe-se a existência de um correlato entre Guerra Fria, Regimes políticos e Usos do Passado como forma de compreensão do processo de constituição do sujeito (no nível macro) durante processos de modernização. O correlato, nesse sentido, ligaria, no seu desenvolvimento processual, as políticas culturais da Guerra Fria e o processo de modernização e institucionalização das disciplinas antropológica, historiográfica e arqueológica; o processo gira ao redor da ideologia do “progresso” na América Latina. Considera-se esse processo como constitutivo do nosso universo presente. No caso local colombiano, esse processo se deu entre 1946 e 1966: fundar-se-ia o Instituto Colombiano de Antropologia em 1954, durante a ditadura de Gustavo Rojas Pinilla. O 1 Antropólogo pela Universidade Nacional de Colômbia. Mestre e Doutor em História pelo IFCH, UNICAMP. Membro do Grupo de Pesquisa em Arqueologia da Repressão e da Resistência. E-mail: [email protected].

ANDRÉS ALARCÓN-JIMÉNEZ

universo rural se tornou espaço privilegiado simultaneamente da guerra contrainsurgente, das políticas desenvolvimentistas e, assim, espaço privilegiado da antropologia, da arqueologia e da sociologia. Nesse marco, os pesquisadores descobririam “indígenas”, “afro-colombianos” e “camponeses”, ademais do “patrimônio nacional”, “tradições”, “folclore” e “cultura material” antiquíssima. Institucionalmente, privilegiou-se o esquema evolucionista e do progresso sociocultural, o ecologismo, assim como o enfoque racial tripartite. Explicar-se-ia, por meio desses conceitos a gênese da cultura e o passado colombiano. Contudo, uma ruptura, própria da Guerra Fria, geraria um fenômeno notável: só uma parte dessa pesquisa alcançaria diretamente o público geral, não só pelas novas Mídias, mas pela educação concebida por três regimes conservadores consecutivos, católicos, tradicionalistas e anticomunistas moldados pela nova política e ordem global: um regime autocrático, um regime ditatorial e um pseudodemocrático denominado Frente Nacional. Palavras-chave: Guerra Fria; Ditadura; Colômbia; Arqueologia; Antropologia; Progresso; Anticomunismo.

ABSTRACT This paper is a proposal I have been developing as a general research program. We propose a major work frame to study the possible correlations among Cold War, politics, and uses of the past as a mean to comprehend the constitution of the self, in the macro level, during modernization processes. We want to study the correlation among Cold War cultural politics and the process of modernization and institutionalization of Anthropology and Archaeology in Latin America, mainly around the ideology of “development”. That process is conceived as the founding base of our present and, in Colombia, that process took place between 1946 and 1966. The Colombian National Institute of Anthropology was created by Gustavo Rojas Pinilla, a conservative military dictator in 1954. The rural universe became the privileged scenario for counter-insurgent war, the government’s, developmental politics and the research subject of anthropologists, archaeologists and sociologists. In that process, researchers “discovered” the existence of Native Americans, Afro-Colombians, Peasants, folklore traditions and a new ancient material culture. Social evolution models, progress, ecologism and a new racial scheme became the privileged models to construct and explain Colombian culture and its past. This new knowledge did not reach directly the general public. New Mass Media and new cheap technologies were the main channels to capture the public’s eye, a public that kept being educated in a Colombian classic educational system developed by three consecutive, conservative, catholic, traditionalist and anti-communist regimes: an autocratic regime, a dictatorship and a pseudo-democratic form of government known as “Frente Nacional”. Keywords: Cold War; dictatorship; Colombia; Archaeology; Anthropology; progress; Anticommunism.

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RESUMEN Este artículo es una propuesta de estudio. Se propone la existencia de un correlato entre Guerra Fría, regímenes políticos y los usos del pasado como formas de comprender el proceso de constitución del sujeto (en el nivel macro) durante procesos de modernización. El correlato, en ese sentido, involucraría, en su desarrollo procesual, las políticas culturales de la Guerra Fría y el proceso de modernización e institucionalización de la Antropología y la Arqueología; el proceso giraría alrededor de la ideología de “progreso” en Latinoamérica. Se observa como tal proceso es constitutivo de nuestro presente. En el caso local colombiano, el ocurriría entre los años de 1946 y 1966. El Instituto Colombiano de Antropología sería fundado en 1954, durante la dictadura de Gustavo Rojas Pinilla. El universo rural se convertiría en el espacio privilegiado simultáneamente de la guerra contrainsurgente, de las políticas estatales desarrollistas y de la antropología la arqueología y de la sociología. En ese marco, los investigadores descubrirían a los “indígenas”, “afrocolombianos” o “campesinos”, el “patrimonio cultural” además de “tradiciones”, del “folclor” y de la “cultura material” antiquísima. Institucionalmente, se privilegiaría el esquema evolucionista y de progreso sociocultural, el ecologismo y el enfoque racial tripartite entre otros. Se explicaría la génesis de la cultura y el pasado colombiano por medio de esos conceptos. Sin embargo, debido a una ruptura en la cadena de producción y manufactura de la información, esa producción solo llegaría de forma parcial al público, no solo por medio de las nuevas tecnologías y nuevos Medios Masivos de Comunicación, sino también por medio de un sistema educativo de corte tradicional concebido por tres regímenes conservadores consecutivos, católicos, tradicionalistas y anti-comunistas: un régimen autocrático, uno dictatorial y uno pseudodemocrático llamado Frente Nacional. Palabras clave: Guerra Fría; Dictadura; Colombia; Arqueología; Antropología; Progreso; El anticomunismo.

BREVE CONTEXTO. Considere-se a ideia de que a construção do passado – manufaturado como história e memória- e o processo de constituição do sujeito são processos que acontecem, no nível individual, de forma simultânea, no cenário do corpo da pessoa. Todo indivíduo precisa construir de zero, e ao longo da vida, o “passado” que, devido às características da espécie, não é transmitidas pelos genes. Para construir e usar esse tipo específico de passado (a memória protética2) se requer de educação. Esse processo, no capítulo 2 Por médio desse conceito denominamos as extensões construídas e incorporadas a memória individual, a memória que se estende mais além da construída a partir das experiências do sujeito e inclui a de outros sujeitos, fictícios ou não, objetos, lugares, livros, etc. A existência de um sistema educativo e da escolaridade é um fator determinante nesse processo. Essa memória

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da biografia que envolve a educação do sujeito, a institucional, a formal e a informal, se da em um conjunto de cenários diversos, em lugares e tempos concretos que constituem a matriz de Si, matriz complexa que envolve cultura material e imaterial, experiências, linguagem, memória, etc., que ele transforma e que o transforma com o fim de se apropriar dela e de si: a matriz que concebemos como o conjunto de universos materiais, humanos e socioculturais e políticos a partir dos quais, no tempo, cada um de nós constrói sua persona. Examinaremos a continuação, um desses cenários em relação, no nível macrosoccial, a conformação dos campos profissionais e institucionais Antropologia e da Arqueologia na Colômbia, na época em que a Guerra Fria se fixou na região que conhecemos como , depois do sucesso da Revolução em Cuba3 (BETHELL e ROXBOROUGH, 1992; GRANDIN, 2004; LEFFLER, 2010 et. al. LEONOV, 1999; MATTHIAS, 2001; WILFORD, 2009; ZUBOK, 2007)NY, USA”,”source”:”Open WorldCat”,”event-place”:”Cambridge; New York, NY, USA”,”abstract”:”The aim of this volume is to establish that the period between the end of the Second World War and the beginning of the Cold War (1944-5 to 1947-8. Debate-se nesse cenário, de forma ampla, a relação entre antropologia, regimes autoritários e modelos de ser “Humano”, de cultura e de cultura material no contexto da Guerra Fria. Na Guerra Fria, a produção, circulação e consumo da informação aumentou ao mesmo tempo em que sua manufatura sofreu modificações importantes: devido às novas tecnologias cada vez mais baratas e, ao mesmo tempo, controladas por grupos socioeconômicos e políticos específicos, o cinema, a televisão e a rádio, os jornais e revistas começaram a exercer um papel central na massificação de visões de mundo, discursos e práticas. A lógica da guerra foi imposta sobre o uso social da linguagem (visual, audiovisual), portanto na fabricação, manufatura e uso de visões de mundo. Isto é, discursos e práticas ver-se-iam separadas umas das outras com o fim de controlar a manufatura e acesso a informação. Assim, aquilo que as pessoas consumiam como discursos não correspondiam a maior parte do tempo com as práticas. (MEDHURST, 1997; MEDHURST e BRANDS, 2000). Ver-se-ia, nesse cenário, o incremento no uso é, portanto, característica de cada tempo e relaciona-se com os regimes historiográficos, (DUX, 2011; HARTOG, 2012; GARCÍA, 1998; 2004; 2009). 3 Para uma análise e estudo compreensivo da história colombiana e do conflito armado, consulte o informe (http://www.centrodememoriahistorica.gov.co/micrositios/informeGeneral/) na página do Centro de Memória Histórica (http://www.centrodememoriahistorica.gov.co/). Os portais (http://www.verdadabierta.com/) e (http://www2.gwu.edu/~nsarchiv/colombia/index. htm) também contém grande quantidade de informação facilmente acessível. A revolução cubana alertaria ao sempre vigilante aliado do Norte sobre o perigo das revoluções comunistas na região e favoreceria sua política privada de apoio aos regimes militares enquanto, publicamente, os condenava.

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e a popularização de conceitos como o de “paranoia”, ou o de “conspiração”. Com efeito, a atmosfera de paranoia e de conspirações associar-se-ia às praticas políticas que, no processo, seria estendido ao médio cultural, científico e acadêmico particular da época. (APPY, 2000; FRANCO, 2002; SAUNDERS, 2000; WILFORD, 2009). A separação da prática da política (aquilo que se pratica em segredo) e o discurso político (aquilo que as Mídias apresentam para o público como a realidade) geraria um clima de incerteza característico da Guerra Fria (cf. MORRIS, 2004; MEDHURST e BRANDS, 2000; LEONOV, 1999). Os discursos políticos das potências envolvidas mascaravam, mais além da dicotomia de bem ou de mal encarnado pelo inimigo, duas ideias muito semelhantes de economia, desenvolvimento e progresso contidas, aliás, em esquemas de estudo e analise da história e da antropologia semelhantes: o esquema do evolucionismo sociocultural, econômico e político do materialismo histórico. O conflito, claro está, nasce do seu uso e do norte que lhe dava cada superpotência, pois cada um aplicava-o e apoiava-o, porém, nos seus sistemas sociopolíticos, militares e culturais particular. Notável mente, o materialismo “americano” tinha sido “despolitizado”, no sentido de substituir o discurso comunista e socialista por um esquema liberal e por uma definição de ciência que, como veremos, apresenta-se como livre de ideologia. A Guerra Fria se livrou, com esse intuito, em todos os campos da vida humana e em quase todo o globo terráqueo, sempre combinando a luta militar agressiva e a guerra súcia com políticas culturais. Os estudos culturais, do passado e do presente, foram redescobertos – como nos séculos XVIII e XIX- uma arma eficaz para criar conhecimentos dos outros, mas também para explicar, modificar e colonizar os outros (cf. APPY, 2000; FRANCO, 2002, SAUNDERS, 2000). Com efeito, historiadores, antropólogos e arqueólogos, os manufaturadores de “visões de mundo”, de “culturas”, “etnias”, “etnicidades” ou “raças”, “gêneros” e “costumes”, cumpriram sua parte nesse cenário. No processo de institucionalização e modernização das disciplinas que se deram no Continente americano depois do fim da Segunda Guerra Mundial, e no cenário da nova guerra, eles passaram a ocupar lugares chave do Estado, da academia, do sistema escolar, da indústria cultural, do turismo, assim como da sociedade civil, pois suas ciências e produtos tornaram-se atrativos para os Estados. É o caso da arqueologia que, devido a pesquisa do grupo encarregado do desenvolvimento da bomba nuclear para a Guerra do Pacífico, em uma das suas versões mais populares até o dia de hoje na região, apareceu fantasiada de cientificidade, neutralidade e objetividade. Como campo, a arqueologia tornar-se-ia a produtora oficial e órgão institucional de controle do uso e manufatura de passados e de culturas, de

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civilizações e de cultura material. Certas escolas da arqueologia adotariam o discurso da promoção de teorias economicistas (ligadas as teorias de modernização estatal, desenvolvimento dirigido e aproveitamento de recursos) sobre o desenvolvimento e as mudanças socioculturais, políticas e ecológicas que, tanto no caso da arqueologia processual como da social latino-americana, estariam identificadas com os projetos políticos envolvidos na Guerra Fria. Por exemplo, cultura e ecossistema, noções vitais para arqueologia como para a economia e, portanto, para a luta armada, devieram objetos privilegiados de estudo das Humanidades engajadas com a política local, regional e global. Os recursos culturais, humanos e econômicos (dos territórios) passariam a ser protegidos pela UNESCO na forma de patrimônio da Humanidade (1949; 1972). A arqueologia que se institucionalizou como A Arqueologia na América Latina nas décadas de 1950 e 1970, em detrimento de outras formas de fazer arqueologia, retomaria e institucionalizaria as ideias de “estado”, “progresso”, “desenvolvimento”, “médio ambiente”, “ecologia” e outras categorias da antropologia norte-americana e passaria a ser a administradora, legisladora e manufaturadora de tudo aquilo relacionado com o Patrimônio. Isto se deu porque, em tempos em que a ideologia do progresso e da “american way of life”4 estavam se tomando o mundo (APPY, 2000; FRANCO, 2002; 4 Para a arqueologia processual, no espaço de uma guerra que lutava contra o nacionalismo de inspiração historiográfica, não havia história, havia evolução humana e progresso, norteadas por leis gerais derivadas da sua peculiar mistura de evolucionismo comtiano e darwiniano. O ser humano, nesse marco, era mais uma espécie e a cultura uma adaptação específica dele a um lugar e tempos concretos. Pensava-se também que, no registro arqueológico, não havia elementos culturais, linguísticos, etc., pois esses elementos são particulares de pessoas e culturas vivas que não existiam já mais, porque seu período favorito era a pré-história. No registro encontram-se, portanto, traças do comportamento de humanos organizados em polities, cujo grau de desenvolvimento sociopolítico e tecnológico está relacionado com fatores ecológicos e geográficos, entre outros, apresentados como “variáveis”. Tudo isso era - é - suscetível de ser reconstruído pelos métodos da arqueologia. A História, nesse marco teórico, foi reduzida a “produto cultural”. Um discurso subjetivo que distorcia a verdade. Essa escola desligaria a origem e significado comum de evolução e história (cf. INGOLD, 1992) de forma tal que um ou outro termo identificava os arqueólogos de verdade – e os separava dos de mentira, (BINFORD, 2004; TRIGGER, 2006). O ser humano é, nesse quadro, um mau intérprete de sim. O arqueólogo não é, pois conta com as suas ferramentas que o tornam superior para compreender aos humanos normais... (BINFORD, 1962; 1967; 2004)and that explanations of differences and similarities between certain classes of material culture are inappropriate and inadequate as explanations for such observations within other classes of items. Similarly, change in the total cultural system must be viewed in an adaptive context both social and environmental, not whimsically viewed as the result of \”influences,\” \”stimuli,\” or even \”migrations\” between and among geographically defined units. Three major functional sub-classes of material culture are discussed: technomic, socio-technic, and ideo-technic, as well as stylistic formal properties which cross-cut these categories. In general terms these recognized classes of materials are discussed with regard to the processes of change within each class. Using the above distinctions in

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GILMAN, 2003; LATHAM, 2000; MEDHURST e BRANDS, 2000; PATTERSON, 2001; SAUNDERS, 2000; SCHOFIELD e COCROFT, 2009; WAX, 2008). Arqueólogos e antropólogos promoveram seus métodos científicos como de ajuda vital para o estudo da economia e das populações humanas, como forma de estudar o desenvolvimento do presente pelo estudo científico do passado, pois seus produtos permitiam compreender a história do Ser Humano como espécie (WHITE, 1945; CARNEIRO, apud DOLE e CARNEIRO, 1960; cf. BINFORD, 2004; cf. TRIGGER, 2006; cf. PATTERSON, 2001; cf. LATHAM, 2000). Essa arqueologia se oficializou e popularizou eventualmente por outros médios: uma estratégia para captar mentes foi outorgar bolsas de estudo. Bolsistas da América do Sul, Central e da Europa se formariam nos Estados Unidos, em cursos diversos de pós-graduação oferecidos para os latinos. As novas camadas de estudantes espalhariam essa mensagem para seus países e levariam aos seus profetas para casa. O caso do Brasil, durante a ditadura (1964-1985), como o da Colômbia, é exemplo disso (FUNARI, 2013). No polo contrário, uma parcela de arqueólogos tentaria apresentar outra forma de estudar o pretérito, em clara oposição a esse fenômeno educativo e cultural: na reunião de 1975 no México, e seguindo a obra do peruano Luis Guillermo Lumbreras (1981; LORENZO, 1976), vários pesquisadores fundariam o movimento da arqueologia social latino-americana5. Tratou-se de um projeto teórico e prático, historiográfico e político abertamente nacionalista, marxista e anti-imperialista, no espírito “comunista” da época. (PATTERSON, 1994; cf. OYUELA-CAYCEDO et. al., 1997). Essa “América Latina” inserida na ideia da arqueologia social era concebida como uma região unida ao redor de projetos políticos e culturais específicos; concebiase nesse espaço, um passado de base histórica baseada na Independência dos grandes poderes e na luta anti-imperialista, materialista e marxista, e pretendia combater o materialismo aparentemente despolitizado gerado nas ideologias do materialismo da arqueologia norte-americana6 que estava reescrevendo a história da região em favor de what is termed a systemic approach, the problem of the appearance and changing utilization of native copper in eastern North America is discussed. Hypotheses resulting from the application of the systemic approach are: (1. 5 Por trás desse fenômeno, ou junto com ele, estava o Pan-americanismo, política continental promovida nos Estados Unidos desde a Segunda Guerra Mundial, que competia com o forte Hispanismo existente na região. Filosofia das elites brancas e católicas, a Hispanidad (fenômenos norteados pelo amor à Espanha), essa ideologia sonhava, com saudades, por uma Hispano-américa unida e católica, como promovia o Franquismo (DIFFIE, 1943; CF. CARRANZA, 2006). 6 No caso da Colômbia, os sucessivos governos desenvolveram o norte da política exterior olhando para os Estados Unidos, apesar de que vários dos seus saudosos líderes continuaram e

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um passado livre de nacionalismos. Entre os anos 1946 e 1966 Colômbia, país conservador, de posição geoestratégica importante no norte da América do Sul, aliado incondicional dos Estados Unidos, passou de um governo liberal a um conservador; após os violentos sucessos de abril de 1948, e logo do governo conservador de Ospina Pérez, chegou ao poder o regime autocrático, de corte fascista, de Laureano Gómez – que envolveu a Colômbia na Guerra da Coreia- e, posteriormente, a ditadura de Gustavo Rojas Pinilla, (CHAMORRO, 1986; HARTLYN, 1984; MANRIQUE, 2005; ERAZO, 1999). Em 1957 a ditadura foi substituída pelo Frente Nacional, sistema pseudodemocrático onde o Partido Liberal e o Conservador alternavam o poder cada quatro anos, decidia-se o presidente antes das eleições e logo, abriam-se as urnas. Nesse período se daria a constituição do campo profissional da Antropologia, da Arqueologia e da Historiografia colombiana, sempre ao redor dos projetos de desenvolvimento do Governo como aos projetos sociopolíticos e culturais dos dois partidos. Do lado das ideologias, e junto a mudança de regime e sua inserção no cenário global, a OEA7, o Vaticano e os políticos colombianos condenaram publicamente o “comunismo” e a sua infiltração nas Américas. Esse foi o objetivo da reunião da OEA em Bogotá. O dia 9 de abril de 1948, durante essa reunião, seria assassinado o líder liberal Jorge Eliecer Gaitán8, evento que gerou a maior e mais brutal onda de violência, urbana e rural na Colômbia, cujas sequelas perduram até o dia de hoje. Logo após as ondas de destruição, o Governo conservador solicitou assistência de órgãos internacionais. Estados Unidos enviou missões militares e econômicas destinadas à recuperação e reconstrução de um país sumido na guerra civil. Essas missões fizeram diversos diagnósticos da economia, do exército e das populações colombianas, e descobririam que o universo rural existia e que estava empobrecido e abandonado. Essa situação tornou-se prioritária de ser corrigida, pois as revoluções e a guerra na Colômbia estavam definitivamente relacionadas com essa situação do campo. Pior ainda, o triunfo dos guerrilheiros cubanos estava-se apresentando como formas e modelos econômicos viáveis e alternativos para solucionar esse tipo de desigualdades. O campo colombiano tornou-se, a consequência disso, o cenário da guerra. Ao mesmo tempo, durante o regime autocrático de Gómez, durante a Ditadura e logo no apoiaram sempre a iniciativa pro-hispânica, (TORRES, 2009; 2010). 7 http://www.oas.org/juridico/english/treaties/a-42.html 8 Como consequência diplomática e política do assassinato de Gaitán, atribuído automaticamente ao “comunismo internacional”, Colômbia romperia relações com a URSS.

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Frente Nacional, as necessidades apontadas pelas missões, fomentariam a pesquisa antropológica e arqueológica institucional. Nesses anos, os governos tomam medidas que as definiriam como campos profissionais: com efeito, a sociologia, a antropologia e a arqueologia9 foram reconstituídas como disciplinas pelo Estado. A cultura, concebida como objeto de estudo, mas sobre todo como arma de transformação e controle populacional, tomaria força desde o nível mais básico, pois se instrumentalizariam uns discursos educativos, historiográficos e culturais específicos, e derivados claramente das políticas gerados desde o campo econômico que tomava conta da política local, regional e mundial (GHODSEE e DORN, 2012; MORAND, 2008; 2011; 2012). O passado e a cultura tomariam de novo, nesse contexto, um lugar privilegiado como armas do desenvolvimento nacional. Assim, e tendo como alvo a formação de novos colombianos, no universo rural e urbano – agora feito o universo privilegiado da economia, pois a cidade definir-se-ia como motor da economia, e junto a essa modernização dos campos profissionais, como dos grêmios econômicos e militares, a história e os costumes nacionais, manufaturadas no modelo clássico de começos do século XX no país, tornaram-se de novo, ferramenta formadora de cidadãos: Que el conocimiento de la historia patria, el culto a los próceres y la veneración por los símbolos de la nacionalidad son elementos inapreciables de fuerza social, de cohesión nacional y de dignidad ciudadana; Que la educación debe tener una función eminentemente social, y todas las materias de los pénsumes y programas escolares deben estar orientadas a formar en las nuevas generaciones hábitos democráticos, de decoro personal y de orgullo nacional; Que los graves acontecimientos que en los últimos tiempos han agitado a la República han puesto de manifiesto, una vez más y con caracteres de grande apremio, que el estudio concienzudo de la historia patria y la práctica de las virtudes cívicas por todos los hijos de Colombia deben ser preocupación permanente y desvelada del Gobierno…10

O passado colombiano tornar-se-ia, definitivamente, a matriz a partir da qual se criariam os novos cidadãos da Colômbia moderna e livre de comunistas. Nesse processo, desde a escola primária até o nível universitário instrumentalizaram-se modelos

9 Veja-se o plano de estudos assinado por Rojas Pinilla em: http://www.icanh.gov.co/grupos_investigacion/antropologia_social/publicaciones_seriadas_antropologia/revista_colombiana_antropologia/7300 10 Nesse ano, se reformaria de novo a educação segundo o modelo católico e conservador (MOLANO, 1979; MOLANO e VERA, 1982). O estudo da história pátria receberia nova ênfase e apoio estatal dentro desse contexto sociopolítico, religioso, cultural e anticomunista. O trecho reproduzido é o primeiro parágrafo do decreto 2388 http://www.mineducacion.gov. co/1621/articles-103421_archivo_pdf.pdf, que trata da educação em história pátria. Manter-se -iam, nesse sentido, as atribuições institucionais da Academia de História, que contaria, desde 1952, com o Instituto Colombiano de Cultura Hispânica como aliado ideológico.

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concretos de “camponês”, “indígena” e “afro-colombiano”, de “folclore nacional” e, em resumem, de como eram ou deviam ser os “colombianos”. Os colombianos, seus hábitos, costumes e linguagens tornaram-se objetos e sujeitos da pesquisa, mas junto com a definição do campo, e salvo em casos específicos, os produtos dos novos agentes do conhecimento acadêmico não seriam popularizados diretamente, mas seriam apropriados pelo Estado. (CHAMORRO, 1986; cf. BOTERO, 2006; LANGEBAEK, 2003; LANGEBAEK e BOTERO, 2009; CAMACHO, 2005; 2007). Simultaneamente, pelas novas Mídias, a cultura colombiana chegaria ao público infantil, juvenil e adulto manufaturada como “folclore nacional”, como “formas de falar espanhol corretamente”, mas, também, como país onde se começaria a consumir a cultura de forma massiva, manufaturada globalmente e pautada sobre a Guerra ideológica livrada agora em uma escala massiva nunca antes vista. Com efeito, nas escolas dar-se-ia, desde começos da década de 1950, uma maior ênfase a popularização de um conjunto de práticas denominadas “folclore nacional”, do estudo dos costumes hispanos, do estudo e uso correto do castelhano. Ao mesmo tempo, mantiveram-se os modelos nem os conteúdos do ensino da história nem de outras disciplinas relacionadas à formação de novos colombianos. Houve o boom literário da América latina que, comercialmente, levaria ao publico geral a ideia de culturas nacionais e regionais bem sucedidas, mas cosmopolitas. Aumentaria, pelas novas tecnologias, o consumo de jornais, de rádios, de televisores (introduzidos pelo ditador Gustavo Rojas Pinilla), do cinema, do incremento nas formas de se comunicar e se deslocar pelo país e pelo mundo: as novas mídias atingiram de forma efetiva aos colombianos. Isto se daria junto, não só com o deslocamento da população rural para as cidades, como estabelecido pelo Plano Currie e como fenômeno causado pelo incremento na atividade militar no campo; formar-se-ia uma nova classe média urbana, educada nas novas faculdades, com acesso a um maior volume de bibliografia e de ideias, com maior poder aquisitivo (podiam ter mais livros, educação completa, televisores e rádios e começariam a se educar em uma segunda ou terceira língua, principalmente o inglês e o francês) e de circulação (podiam viajar ao exterior). Essa nova “colombianidade” manufaturada, modificaria o processo de constituição de sujeitos que, por um lado educavam-se com uma ideia de história de começos de século XX, por outro com uma ideia de cultura nacional manufaturada durante os regimes ultraconservadores como por médio dos discursos e práticas – manufaturadas no país e fora dele- transmitidas de forma quase simultânea com outras regiões produtoras e consumidoras de bens culturais, pela televisão, radio, cinema e demais canais das novas Mídias. O turismo também se tornaria parte da economia do

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progresso e, nesse processo, a cultura local, regional e nacional tornar-se-ia bem de consumo e manufatura privilegiada e na Colômbia, os regionalismos, por exemplo, e suas culturas específicas tornaram-se objetos de consumo como de identidade. Entre os agentes manufaturadores dessa nova cultura colombiana encontramos antropólogos, arqueólogos, historiadores, sociólogos e figuras da literatura, das artes, da ciência. Na lógica da Guerra Fria, encarnar-se-iam como os agentes de luta em ambos os lados, como agentes colaboradores, como figuras de resistência, como figuras neutras, frias, cientificamente engajadas só com a ciência, pois nesse plano, ser colombiano também estaria sujeito às flutuações e pautas discursivas da Guerra Fria (e o debate entre arqueologia processual – sua institucionalização como discurso cientificista- e a social latino-americana – e sua marginalização e esquecimento - é um campo privilegiado para estudar as nossas ideias).

A CIÊNCIA E A TECNOLOGIA, UMA VARIÁVEL DEPENDENTE DA ESTRUTURA SOCIAL: O CASO DA COLÔMBIA11.

Na última década, na Colômbia, a efetividade da implantação da mentalidade da Guerra Fria e do uso do passado e da cultura como médio de doutrinamento, em todo nível, mediático ou não, tornou-se explícito. A explicitação da lógica da guerra fria na Colômbia, antes semioculta, foi resultado dos sucessos de 2001 quando o governo colombiano fez público o discurso militarista que sempre havia existido na penumbra. Junto com essa propaganda explícita, como paliativo, surgiria a Comisión Nacional de La Memoria Histórica, cujos informes revelariam a escala humana da guerra na Colômbia.

11 Para a escrita desse apartado, seguimos principalmente a obra de Milcíades Chaves (1986), antropólogo colombiano que faz um retrato da disciplina ligando-a ao universo sociopolítico e cultural colombiano e o clássico da sociologia colombiana, La Violencia en Colombia: estúdio de un proceso social de Fals Borda, Umaña Luna e Guzman Campos, (1963). Apoiamos-nos em obras de Botero, Langebaek e Pineda Camacho, (BOTERO, 2006; LANGEBAEK e BOTERO, 2009; LANGEBAEK, 2003; LANGEBAEK apud FUNARI, ZARANKIN e SALERNO, 2009; CAMACHO, 2005; 2005). Cháves, diferente de outros autores, mas reproduzindo uma ideia que até Langebaek conserva (2009), reconhece que trabalhou para a ditadura. Porém, tenta se desligar dela, pois afirma que, como todos, no começo, achavam-a “boa”. Duas ideias, concomitantes, derivam-se dessa época e se conservam: a ideia da continuidade democrática na Colômbia, tradição “alheia às ditaduras militares” que Langebaek reproduz; e a ideia de que a de Rojas Pinilla foi um tipo de ditabranda é mantida por muitos autores até o dia de hoje e por esse motivo ou rejeitam a ideia de que “era como as outras de América Latina”, ou até retratam o ditador como mártir (ERAZO, 1999).

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A tensão entre realidade histórica e propaganda política nesse país constitui o motoro da guerra pela memória que ainda vai vencendo a grande Mídia. O controle do “passado” manufaturado, nesse sentido, no presente (sempre em constante movimento histórico (o progresso), como predito e estabelecido pela antropologia e pela arqueologia), assim como o “ser humano” manufaturado (por exemplo, o cidadão) na constante tensão entre individuo e o grupo e entre ele a sua realidade material, tornar-se-ia o elemento chave para modelar o futuro e, dessa forma, ter maior controle sobre o devir do presente, (FOUCAULT, 1988; 1997; 2000; 2008). Desde tempos da ditadura, a política positiva de levar progresso, de apoiar o povo no seu desenvolvimento pelo reconhecimento oficial das suas crenças e costumes, foi apropriada (senão nasceu no seio do Estado) e tornada a colombianidade oficial, estatizada, fixada em símbolos, narrativas, etc. Sua manufatura, circulação e uso, até o dia de hoje depende de uma parca iniciativa econômica Estatal e privada (setor privilegiado, alias, pelo estado, como baliza da Cultura na Colômbia) que limita a produção no campo, do apoio a discursos visuais, audiovisuais, educativos, literários, musicais, museológicos, (etc.), específicos. Após a crise econômica de 1929, o governo conservador, instalado após um golpe de estado em 1900 e a Guerra dos Mil Dias, perdeu poder, que passou ao partido Liberal. Os dois primeiros governos tentaram subsanar a economia nacional aplicando reformas no molde do New Deal de Roosevelt. Para a década de 1940, durante a Guerra, e como consequência dela se fundaria a Escola Normal Superior, cujos cursos de Etnologia e de Arqueologia seriam organizados por Paul Rivet, quem como outros professores da instituição tinha se refugiado no país. Fundar-se-iam eventualmente o Instituto Etnológico Nacional, ligado ao projeto de Paul Rivet e o Serviço Arqueológico Nacional, ambos de modesta, mas influente produção intelectual. Enquanto o campo da Historiografia se renovaria na década de 1960 (AGUDELO, 1976), no nível universitário, o ensino de História e o projeto cívico, porém, manteriam o esquema conservador institucionalizado no começo do século XX. Uma nova etapa, duradoura, marcante, definidora e brutal, de violência política e social, estava tomando forma, principalmente no campo colombiano. A s formas de propriedade e uso da terra era o motor da Guerra interna. Em 1946, depois de concluída a Segunda Guerra Mundial, o partido Liberal, ferido pela difícil situação do pós-guerra como por divisões internas, perdeu o poder e o partido Conservador o retomou. Devolveuse a educação à Igreja Católica e se avivou a chama da guerra civil, pois se excluiu o partido Liberal do poder. O anticomunismo tornava-se ideologia e política do Estado. No

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campo, facções e guerrilhas se enfrentavam. De fora, entravam armas e ideias apoiando os grupos comunistas que começavam a ganhar força e fazer presença no território. Em 1948, durante a IX Conferencia Pan-americana, que procurava condenar o Comunismo como ideologia alheia ao Pan-americanismo12 democrático, e como ameaça global para as Américas, o dirigente liberal Jorge Eliecer Gaitán foi assassinado13. Nesse mesmo ano, o presidente Mariano Ospina Pérez trouxe uma missão norte-americana comandada pelo economista Lauchlin Currie (WORLD BANK, 195214; cf. ARÉVALO, 1997; PINZON e MOTTA, 2009), cujo informe, pautado na ideologia do progressismo, da modernização, (LATHAM, 2000; cf. HALPERÍN-DONGHI; cf. GILMAN, 2003) pela implantação de uma forma de democracia específica e de capitalismo, como definido pelos Estados Unidos, tornar-se-iam paradigmáticos, no sentido de marcar um norte para a economia e cultura nacionais. Em 1949, toma o poder o dirigente conservador, de tendência franquista, hispanófila, racista e católica, Laureano Gómez. Ospina Pérez e Gómez planejam o fechamento do Congresso para evitar a ação política do partido Liberal, contra a deles. Decretam o Estado de Sítio. Gómez seria eleito presidente no ano seguinte e tentaria reformar a constituição. A sua política conservadora fecharia o Instituto Etnológico e o Serviço Arqueológico. Dividiria a Escola Normal em duas sedes.(CHAMORRO, 1986; cf. CARRANZA, 2006). No governo de Gómez fundar-se-ia também o Instituto Colombiano de Cultura Hispânica (1951) com o qual pretendia-se dar maior ênfase

12 O pan-americanismo, atribuído a Simón Bolívar (http://www.oas.org/en/about/our_history. asp), seria uma noção e visão de geopolítica apropriada pelos Estados Unidos. Seria desenvolvida e misturada com política externa a partir da Doutrina Monroe, no fim do século XIX. Após 1930, e finalizada a guerra, por solicitude de três países, incluindo a Colômbia (TIMES, 1936), tornar-se-ia uma instituição norteada pelos interesses do país do norte ao longo desse século (BETHELL e ROXBOROUGH, 1992; CASTRO, 1959; LEFFLER, 2010; MCSHERRY, 2005; VALLADAO, 1995)NY, USA”,”source”:”Open WorldCat”,”event-place”:”Cambridge; New York, NY, USA”,”abstract”:”The aim of this volume is to establish that the period between the end of the Second World War and the beginning of the Cold War (1944-5 to 1947-8. 13 A Guerra civil interna arrasaria o país, enquanto os Conservadores no Poder como o representante militar norte-americano acusava o Comunismo internacional de ter assassinado o poderoso e popular dirigente. A Colômbia, com efeito, fechou as relações políticas e econômicas com a URSS. O assassino foi linchado e, assim, o crime ficou sem resolução. Para 1960, contar-se-iam quase 250.000 mortos e um catálogo de formas de morrer aterrorizante. 14 A missão viajou para a Colômbia por pedido do governo colombiano depois da violência desatada pela morte de Gaitán. Currie tinha trabalhado com Roosevelt no desenvolvimento do New Deal. O Banco que deu apoio à missão foi o International Bank for Reconstruction and Development, instituição surgida em 1944 da Convenção em Breton-Woods e destinada pelos Aliados para reconstruir Europa. Currie, por diversos motivos, permaneceu na Colômbia até sua morte na década de 1990, sempre sendo referencia dos economistas nacionais.

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ao estudo das tradições e histórias hispanas na Colômbia, em oposição ao ênfase dado ao indigenismo que caracterizou a etapa da Escola Normal Superior. Gómez daria um golpe de estado ao declarar o Estado de Sítio e fechar o congresso, entre outras coisas. Convocou uma constituinte que pretendia criar um estado corporativista e, nesse sentido, conseguiu promover a fundação dos grêmios econômicos. Anticomunista de coração – para ele como para a maior parte dos habitantes da América Latina, comunista definese como todo aquele que não confere com a ideologia conservadora particular-, mas temeroso ou respeitoso com os Estados Unidos, mandaria tropas para Coreia, como apoio do lado norte-americano. Por problemas de saúde, teria de delegar o poder, mas não o abandonaria. Em 13 de junho de 1953, seria derrocado por um golpe liderado por Gustavo Rojas Pinilla, militar, também conservador e católico, admirador de Franco e de Perón, anticomunista, pelo qual Gómez guardava grande ressentimento. O presidente derrocado se exilaria na Espanha. O golpe foi comemorado pelos Liberais e pelos conservadores de outras facções contrárias a de Gómez, representada por Gilbert Alzate Avendaño, conservador de ultradireita nacionalista, de grande influencia e poder no país. Em 1954, durante a Ditadura, nasceria o ICAN, Instituto Colombiano de Antropologia como estratégia do Governo. Os ministros da ditadura convocariam vários dos seus pesquisadores, estudantes de Rivet e formados na Escola Normal Superior para conformar parte do Governo, na Comision Nacional de Seguridad Social del Campo encarregada do diagnóstico do estado do campo colombiano. Durante a ditadura vieram mais duas missões econômicas, além das militares: a do sacerdote Lebret e a da CEPAL. Cada uma publicaria estudos sobre o estado do país se centrando no campo e nos camponeses. Os antropólogos, arqueólogos (e sociólogos) redescobririam nesse processo o esquema racial (racista) e culturalista tripartite. Assim, a colombianidade do cenário rural estudado, explicar-se-ia pela presença de mestiços, indígenas e afrocolombianos e suas interações durante a História. Em 1957, o político liberal Lleras Camargo viaja à Espanha, à cidade de Benidorm onde encontra Gómez. Pautam o que seria a Frente Nacional, sistema de governo bipartidista pseudodemocrático, no qual um candidato, que já tinha sido eleito, concorria com outros. Em 1958-59, após a Revolução Cubana triunfar, diversas missões norteamericanas, militares e econômicas, chegariam ao país. Em 1964, graças a empréstimos norte-americanos e em 1966, seguindo pautas da CEPAL (CHAMORRO, 1986), criarse-iam as duas primeiras faculdades de antropologia na Colômbia. Já existiam várias de Sociologia nascidas em contextos católicos que, como parte da tradição nascida com Leão XIII, e reforçada em 1948 com Pio XII; que declarou de novo o comunismo como

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um perigo, estudava agora aos setores populares com o intuito de fornecer soluções sociais para grupos que, por outro lado, eram os alvos prediletos dos “comunistas” ou “socialistas”. Ao mesmo tempo, o discurso político e a prática política divorciaram-se. Um discurso positivo de progresso e qualidade de vida pública contrastava com a política militarista do Estado e dos grupos que se declaravam em guerra contra ele. Desde finais da década de 1950, se não desde antes, começaram chegar missões militares norteamericanas na Colômbia, de forma secreta: isto é, não seria feito público mesmo que os jornais tomaram nota e publicaram, de forma crítica, notícias sobre a presença de “assessores” no país. Diversos tipos de guerrilhas e violência espalhados pelo território, muitos deles com conexões internacionais, representavam um perigo para a região, mas, sobretudo, tornaram-se um perigo real após o triunfo da Revolução de Cuba. Em 1961, ao mesmo tempo em que se explorava publicamente a imagem positiva e democrática do presidente Lleras Camargo15, atribuindo-lhe ele popularidade, assertividade e a responsabilidade pelas boas políticas, o governo, seguindo seus assessores, criava o DAS, Departamento Administrativo de Segurança Nacional, encarregado da espionagem como da polícia secreta do país. Eventualmente se instituiria o plano Laço, plano contrainsurgente que incluiria atividades nos centros urbanos, principalmente, no campo colombiano. Os militares colombianos iriam treinar na Escola das Américas e a perseguição do Estado aos inimigos teria como resultado, a partir de 1970, quando começam os registros publicados em 2014, um número incrível de desaparecidos, relacionados com partidos, movimentos ou grupos de esquerda (GILL, 2004; REMPE, 2002)16. 15 Lleras Camargo seria um grande amigo de J. F Kennedy e junto com ele, tentariam tornar Colômbia o modelo, a vitrine, de país da Aliança para o Progresso para a região. 16 Também coincide com essa “guerra fria”, o estabelecimento violento de governos ditatoriais e militares, geralmente anticomunistas (salvo nos casos específicos de Cuba e, posteriormente, Nicarágua e Peru), América Latina, África ou Ásia. Até na Europa, onde a península ibérica veria regimes da pré-guerra perdurar atá quase fim da década de 1970. Com efeito, estamos numa região onde a tradição militarista ou democracias de papel, a maior parte de marcado caráter anticomunista (onde por comunismo se entende qualquer coisa), tem comandado a política nacional e regional: Argentina (1943–1946; 1955–1958; 1966–1973; 1976–1983); Bolívia (1936–1947; 1951–1952; 1964–1971; 1971–1982); Brasil (1930-1945; 1964–1985); Chile (1973–1990); Colômbia (1954-1957; 1958-1960; Frente Nacional: 1960-1991); Cuba (1933–1940; 1952–1959; 1959-presente); República Dominicana (1930–1961); Equador (1937–1938; 1963–1966; 1972–1979); El Salvador (1931–1980); Guatemala (1931–1945; 1957–1958; 1963–1966; 1970–1986); Haiti (1950–1956; 1986–1990; 1991–1994); Honduras (1956–1957; 1963–1971; 1972–1982); México (Gobierno del PRI: 1946-2000); Nicarágua (1936–1956; 1967–1979); Panamá (1968–1989); Paraguai (1940–1948; 1954–1993); Peru

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Desenvolvimento, progresso e cidadania seriam, portanto, conceitos e projetos políticos importantes na guerra fria na Colômbia, onde a Guerra Fria era, como acostuma-se pensar tradicionalmente, um conflito alheio, longínquo e estrangeiro. Mesmo que o modelo socialista tentava se abrir espaço na região e no país, o modelo de vida norte-americano tornar-se-ia, por todos esses meios o “modelo” de vida bem sucedido (modelo que incluía um estilo de vida como uma estética). Desde 1948, desde a OEA promovia-se um modelo de ser Humano que correspondia com o projeto panamericanista:

The American peoples have acknowledged the dignity of the individual, and their national constitutions recognize that juridical and political institutions, which regulate life in human society, have as their principal aim the protection of the essential rights of man and the creation of circumstances that will permit him to achieve spiritual and material progress and attain happiness… Since culture is the highest social and historical expression of that spiritual development, it is the duty of man to preserve, practice and foster culture by every means within his power. And, since moral conduct constitutes the noblest flowering of culture, it is the duty of every man always to hold it in high respect17.

Em decorrência dos estudos das missões nacionais e estrangeiras, se construiu uma estrutura ideológica e política que, no nível governamental, ajudaria a instrumentalizar

(1933–1939; 1948–1950; 1962–1963; 1968–1980); Suriname (1980–1988); Uruguai (1973– 1985); Venezuela (1908–1935; 1948–1958; Pacto del Punto Fijo: 1958-1999); Espanha (Ditadura Militar: 1939-1942; Cortes Espanholas: 1942-1975); Portugal (Estado Novo: 1933-1974). Na Colômbia, sem necessidade de golpe de estado (já tinha provado sua futilidade no combate à pobreza e aos insurgentes), a Frente Nacional desenvolveria uma estratégia militar comandada pelos Estados Unidos por meio de operações encobertas. (TORRES, 2009; GILL, 2004; FAJARDO, 2003; CAMPOS, BORDA, e LUNA, 1962; HARTLYN, 1984; REMPE, 2002). Sendo democracia aparente falhou de imediato, pois excluiu vários grupos e movimentos sociais. Rojas Pinilla, o antigo ditador absolto já, candidatou-se às eleições de 1970. Desde sua renuncia tinha fundado um partido político (ANAPO) e venceu as eleições pela via democrática. Contudo, a Frente Nacional já tinha escolhido o candidato conservador como presidente, assim que o presidente mandou todos dormir pela TV e pela Rádio e se mudaram os resultados para favorecer Misael Pastrana, presidente entre 1970-74. Desse fiasco, nasceria eventualmente o movimento guerrilheiro M-19. Outro exemplo, em 1964, pela pressão de membros do partido conservador sobre o presidente Valencia, o exército iria atacar a grupos insurgentes que, malfeitos e pessimamente executados, geraram uma das maiores organizações guerrilheiras colombianas, as FARC, (cf. MOLANO, 2014). A relação das guerrilhas com as universidades também gerava problemas e políticas de assédio por parte do Governo e suas novas instituições de segurança interna e espionagem. Um exemplo marcante foi o caso do sacerdote, professor universitário e sociólogo Camilo Torres que se uniria à guerrilha do ELN, comandada por sacerdotes espanhóis, e logo seria morto pelo exército. 17 https://www.oas.org/dil/access_to_information_human_right_American_Declaration_of_ the_Rights_and_Duties_of_Man.pdf

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uma economia que visasse melhorar o standard de vida dos latino-americanos. O desenvolvimento foi um poderoso discurso para combater a ingerência do comunismo e evitar rebeliões e revoluções. Não só missões econômicas norte-americanas ou empréstimos bancários foram feitos para ajudar as economias da região, como os economistas iriam se educar nos Estados Unidos, como antropólogos, sociólogos ou historiadores. A CEPAL, organismo que opera na região, nasceria da iniciativa da OEA e por meio dela, se tentaria consertar o modo de vida da região, ainda atingido pelas estruturas, políticas, ordem sociocultural, práticas e dinâmicas coloniais e neocoloniais presentes na região. A ideologia do desenvolvimentismo passaria a ser tão natural que perderia como acontece hoje em dia, sua história, significado e genealogia. Tornar-se-ia apenas tecnocracia. Sua natureza sociopolítica como os seus vestidos ideológicos, aparentemente, sumiram e ninguém duvida que o país precise progredir. A naturalização do modelo deu-se pelas Mídias como pelo sistema educativo. Como já foi dito, a Colômbia vieram às missões Currie (1948-1950), da CEPAL (1954), a de Lebret (1955) durante a ditadura de Gustavo Rojas Pinilla (1953-1957) (ARÉVALO, 1997; PINZON e MOTTA, 2009). A missão Currie é especialmente importante porque o informe que apresentaram ao governo colombiano continha uma orientação antropológica nova, cultural e historicamente alheia ao país. O modelo proposto pela Missão Currie estaria determinado pela ideologia do desenvolvimento apresentada tecnicamente como esqueleto de uma teoria econômica que cobre todos os aspectos de vida, pela economia, conceituada na figura do nível de vida (standard of living) associado à de natureza (natural resources), por um esquema antropológico marcadamente racial e cultural, a moda antropológica oitocentista. Isto é, classificando a população segundo cor da pele/cultura; esse esquema antropológico também estaria associado ao corpo mesmo, a definição da “persona”, mas agora estaria determinado pela economia (manpower e productivity per capita) como pela natureza do trabalho e pela localização geográfica (rural vs. urbano; cidadão vs. camponês). O informe da missão deixou claro que se precisava de pesquisa e investimento no campo. O governo de Rojas, para levar a cabo a instrumentalização desse esquema, em um país de economia rural centrada no café, aproveitar-se-ia da antropologia e da sociologia (por um lado, pois a estratégia precisava, pelo estado da segurança interna do país, de outras estratégias). O governo do ditador, que apresentava um discurso cultural muito específico, católico, bolivariano e anticomunista, identificou como seu maior alvo o campo colombiano, sua reforma e modernização, (Colombia y Dirección de Información y Propaganda 1953; CHAMORRO, 1986).

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Os agentes da Ditadura começaram pela reforma do currículo de estudos do campo antropológico e arqueológico. Mas, depois de organizar o Departamento de Seguridad Social Campesina, comandado pelo geógrafo Ernesto Guhl, o ministro Caicedo Ayerbe e o ministro Pabón Nuñez convocaram um grupo de antropólogos, arqueólogos, geógrafos e historiadores para conformar as comissões e grupos de pesquisa que iriam para o campo estudar a população nacional. Com efeito, arqueólogos, antropólogos e sociólogos formados nos Estados Unidos com bolsas emitidas pelos Estados Unidos trouxeram modelos, metodologias, autores e técnicas novas. Tentaram substituir o esquema classificatório racista e cultural herdado da colônia, que incluía as três raças e suas misturas pelo esquema tripartite racial, cultural e histórico, dando menos ênfase nas misturas, porém, focalizando a atenção na ideia de tropicalismo e de mestiçagem. O trabalho de campo seria publicado em forma de livros pelo Departamento de Seguridad Social Campesina – confira-se, por exemplo, o de Camacho Giraldo (1955), ou em artigos na Revista do Instituto, entre 1957 e 1962 (cf. CHAMORRO, 1986)18. Os informes das comissões seriam referentes às publicações enquanto, por outro lado, apresentar-se-iam os quadros que cada pesquisador manufaturou a partir do trabalho de campo com os novos enfoques científicos19 (cf. CHAMORRO, 1986)20. Por seu lado, a arqueologia colombiana não participa da reunião do México e ainda privilegiaria o enfoque processual no nível institucional governamental21. Com efeito, a arqueologia social não tomaria conta da prática na Colômbia e autores como Oyuela-Caicedo (1997), professor da Universidade da Flórida, até tentam reivindicar uma arqueologia “social” colombiana, engajada e de sabor “cosmopolita” como forma de defender a disciplina

18 http://www.icanh.gov.co/grupos_investigacion/antropologia_social/publicaciones_seriadas_antropologia/revista_colombiana_antropologia/8716. No link podem-se consultar todos os números da década de 1950. 19 Simultaneamente os folcloristas e membros do Instituto Colombiano de Estudos Hispânicos, o Instituto Caro y Cuervo (que se ocupa dos assuntos linguísticos nacionais), como a Academia de História trabalhariam pela cultura e patrimônio nacional: nos costumes colombianos, na classificação das regiões e suas culturas locais, das falas e das línguas, da história colonial. Junto com os antropólogos reforçariam o esquema tripartite e mestiço, multicultural e nacional, escrito na língua oficial castelhana, que conformam a trindade do Ser Colombiano (católico). 20 Já desde começos da década, mas, sobretudo, depois do massacre indígena de 1966, a antropologia e sociologia tomariam um caminho radicalmente diferente. Enquanto se formavam e fortaleciam os movimentos estudantis no interior das universidades, diversos docentes novos desenvolveriam tecnologias propriamente nacionais, como pode se conferir, por exemplo, nos trabalhos e ideias do sociólogo Fals-Borda ou do antropólogo Luis Guillermo Vasco (http:// www.luguiva.net.). O enfoque desses dois autores, construído por fora das lutas geopolíticas, e cuja metodologia ainda é diferenciada de outras da região, participaria dos movimentos sociais colombianos, indígenas e campesinos e daria uma face particular às disciplinas. 21 www.icanh.gov.co/grupos_investigacion/arqueologia/lineas_investigacion

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pátria da literatura marxista que a excluiu. Porém, a esquerda, dentro do campo, seria, de fato, quase marginalizada (LANGEBAEK apud FUNARI, ZARANKIN, e SALERNO, 2009). Desde 1950, o esquema tripartite seria inserido na fala dos colombianos pelos antropólogos. Esse redescobrimento das vozes e culturas indígenas e afro-colombianas, do patrimônio nacional material e imaterial, ganharia um cenário próprio e relevante no país, seguindo um “novo” modelo de “multiculturalidade”, na década de 1990; com efeito, junto com a chegada da pós-modernidade ao seio da antropologia nacional, viria à antropologia física e seu papel determinante na política e sistema judiciário nascido depois da oficialização da nova Constituição de 1991. Nessa constituição, e nessa década, ao mesmo tempo em que se impôs o neoliberalismo como política oficial, viria uma das mais brutais ondas de violência - relacionada a essa nova ordem política como ao narcotráfico-, se plasmaria e usaria o esquema tripartite, de forma positiva. Com efeito, na carta magna colombiana usar-se-iam as categorias de indígena e afrodescendente para incluí-los, reconhecer terras, direitos e história, no esquema multicultural de ser colombiano. Os colombianos pré-históricos, aqueles que dão base e origem a Colômbia moderna, seriam definidos por dois campos, pela história escolar e pelos arqueólogos. Os arqueólogos participaram das missões do Governo ditatorial de Rojas Pinilla, mas sua produção está pautada na arqueologia da época22, ou seja, a histórico-cultural americana que, nesse tempo, mudava de roupas, logo seria renovada, e tornar-seia o processualismo, escola que, como já foi dito, norteia a prática institucional da arqueologia na Colômbia contemporânea. Entre 1953 e 1966, concentrar-se-iam no estudo da história arqueológica em regiões do país sem estudar (o casal Alicia e Gerardo Reichel-Dolmatoff), como o Litoral Caribe, como tinham sido designados institucionalmente. Duque Gómez, que seria Diretor do ICAN e reitor da Universidade Nacional de Colômbia explorava mais temáticas da história e antropologia (de arqueologia histórica, se usar vocabulário adequado) nacionais do que as arqueológicas que lhe caracterizavam e competiam. O marco histórico, o método pedagógico, como alvos principais de estudo da disciplina já tinham sido traçados e identificados pelos membros da Academia de História desde a primeira década do século XX. A arqueologia explorava o passado pré-colombiano segundo o esquema que tinha sido ensinado aos colombianos desde 22 http://www.icanh.gov.co/grupos_investigacion/antropologia_social/publicaciones_seriadas_antropologia/revista_colombiana_antropologia/8716

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1910. Refletia, portanto, o projeto da Colômbia dos conservadores, instituído desde 1886 e reforçado durante as Comemorações do Centenário da Independência desse ano, (AGUDELO, 1995; GUALTERO, 2005; MELO, 2010). Desde os tempos da História da Colômbia de Henao e Arrubla, a arqueologia tinha sido inserida na narrativa oficial colombiana e, junto com Arrubla – que daria o primeiro curso da disciplina no Museu Nacional (AGUILERA, 1951), com o respaldo da Academia de História, o entusiasmo pela pré-história conseguiria se mantiver. O passado pré-colombiano nos livros de texto para crianças, revistas e Museus era o eixo racial e cultural, a alma da Colômbia. As principais culturas que seriam estudadas anos mais tarde, já estavam identificadas nos manuais de estudo da história pátria. O seu significado para a História nacional estava pautado também. Essa história, de fato, participaria do processo formativo da mentalidade histórica e arqueológica de antropólogos e arqueólogos nacionais até quase a década de 1980, (cf. HENAO e ARRUBLA, 1920; cf. GÓMEZ, 1984; BOTERO, 2009). Desde 1930, junto com a Escola Normal e o Servicio Nacional de Arqueologia, chegariam os primeiros arqueólogos profissionais (CHAMORRO, 1986; LANGEBAEK, 2003). A arqueologia pratica-se acorde as categorias historiográficas oitocentistas transmutadas em estágios de desenvolvimento cultural ou sociopolítico: há chefias, sociedades protoestatais, caçador-coletores, etc. O registro interpreta-se seguindo essa pauta. A apresentação dos artigos está feita, geralmente, ao redor da cultura material. Quando aparece o tempo do contato e aí muda a especialização: antropólogos, etno-historiadores e historiadores tomam o passado entre suas mãos. Eventualmente, os indígenas somem do “passado” e são redescobertos no século XX. Grosso modo, mantém-se a divisão história/préhistória demarcada na teoria arqueológica; conserva-se o uso da arqueologia processual para a pré-história. O envolvimento da arqueologia com a política colombiana manteria o proceder e modelos de ser humano do processualismo, no nível teórico, e do anticomunismo generalizado nas Américas no político, de forma tácita: divorciar-se-ia do marxismo (estudado como parte do leque de teorias antropológicas), e adotaria o discurso (cientificista) de que a arqueologia não tratava nem se engajava com política, mesmo estudando-a como motor dos câmbios. Outras arqueologias seriam ignoradas pelos docentes e alunos, ou seu uso e debate seriam mínimos, pois a pesquisa nessa área, como acontecia desde 1950as, era particular aos poucos afortunado que podiam ir ao campo. Mesmo com a chegada da arqueologia de resgate na década de 1990, que permitiria a muitos estudantes e arqueólogos escavar, os procedimentos e modelos institucionalizados adotar-se-iam como norma reguladora da prática. A arqueologia

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na Colômbia mantém - manteve-se - bem doutrinada, concorde a política de respice polum, e olhando para outras doutrinas regionais e de esquerda de forma desconfiada, marginalizando-as ou, simplesmente, ignorando-as. De fato, estão ainda excluídas. Manteve, de forma naturalizada, a história da Colômbia como contada pelo projeto nacional, de progresso, e de direita liberal e/ou conservadora, construído durante a Guerra Fria. Citamos, com esse intuito, e para fechar, Langebaek, que representa a visão do arqueólogo educado com um discurso historiográfico alheio a realidade nacional e que se apresenta crítico da arqueologia social por motivos cientificamente ambíguos e opacamente políticos:

As Valdez (2004) points out, social archaeology will not make any progress as long as it thinks of itself as a “national” or “Latin American” school of thinking closed to world contributions, or as long as it considers the works produced outside a certain group of colleagues – or even worse, outside Latin America – as reactionary and colonialist. There will be no Marxist archaeology without a deep critique of culture-history and cultural-ecology; without a serious and committed study of the archaeological record. Otherwise, every time we would like to discuss theory or the “correct” way to do things in archaeology we will read the works of “social archaeologists”, but every time we would like to learn more on the pre-Hispanic past we will turn to other sources. And that is a luxury we cannot afford (LANGEBAEK apud FUNARI, ZARANKIN e SALERNO 2009: 21).

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ARQUEOLOGIA DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA E SUAS CONTRIBUIÇÕES NA CONSTRUÇÃO DE MEMÓRIAS Jocyane R. Baretta

Dossiê

No. 10 ISSN 2237-8294 dezembro de 2014

ARTIGO

ARQUEOLOGIA DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA E SUAS CONTRIBUIÇÕES NA CONSTRUÇÃO DE MEMÓRIAS Jocyane R. Baretta1 RESUMO A temática a ser abordada neste trabalho está inserida no campo da Arqueologia da Repressão e da Resistência e a sua relação com a construção de memórias materiais e de memórias coletivas. Estas são memórias advindas de situações traumáticas geradas nos regimes de governo militar, entre os anos 1960 e 1980 - na América Latina, em especial no Brasil. A intenção é elaborar reflexões sobre as maneiras como são construídas memórias coletivas e materiais, de modo que estas não se tornem meras lembranças de fatos ocorridos e congelados no passado. Palavras-chave: Arqueologia da Repressão e Resistência – memórias materiais – memórias coletivas ABSTRACT The topic to be addressed in this paper is embedded in the field of Archaeology of Repression and Resistance and it’s relationship with material and collective memories. These memories arise from traumatic situations during the military government between 1960 and 1980 - in Latin America, particularly in Brazil. The intention is to develop reflections on the ways in which collective memories and materials memories are constructed aiming that they do not become mere memories of facts, frozen in the past. Keywords: Archaeology of Repression and Resistance - materials memories - collective 1 Mestranda do Programa de Pós Graduação em História Cultural UNICAMP, bolsista Capes. Contato: [email protected]

JOCYANE R. BARETTA

memories RESUMEN El tema abordado en este artículo integra el campo de la Arqueología de la Represión y de la Resistencia y su relación con los recuerdos materiales de construcción y las memorias colectivas. Estos son los recuerdos que surgen de situaciones traumáticas que surgen en los sistema de gobierno militar entre 1960 y 1980 - en América Latina, particularmente en Brasil. La intención es desarrollar la reflexión sobre las formas en que se construyen colectivamente los recuerdos y materiales de manera que no se conviertan en meros recuerdos de hechos y congelados en el pasado. Palabras clave: Arqueología de la represión y resistencia - recuerdos Materiales memorias colectivas APRESENTAÇÃO O presente trabalho tem como objetivo analisar o processo de construção das memórias traumáticas relativas aos períodos ditatoriais na América Latina, em especial no Brasil (1964/85), e como a Arqueologia da Repressão e da Resistência pode colaborar nesse processo. No primeiro momento, apresento uma reflexão sobre a construção das memórias coletivas e das memórias materiais. A seguir, exponho o levantamento sobre os estudos já realizados sobre o tema na América Latina e no Brasil, pensando como essas memórias estão sendo abordadas e trabalhadas. A partir de então, abordo as Ditaduras na América Latina (1960/85) e como as políticas de memórias que estão sendo desenvolvidas e de que modo elas contribuem efetivamente nessa construção. Por fim, discuto sobre a Arqueologia da Repressão e da Resistência e como esta vertente de pesquisa arqueológica pode colaborar na construção de conhecimento sobre o passado ditatorial e desenvolver o seu caráter ético enquanto uma ciência política e social. MEMÓRIAS COLETIVAS No prefácio do livro A memória coletiva de Maurice Halbwachs, Jean Duvignaud descreve sobre as diferenças entre “memória histórica” e “memória coletiva”: Lá situa-se, em Halbwachs, uma notável distinção entre a “memória histórica”, de um lado, que supõe a reconstrução dos dados fornecidos pelo presente da vida social e projetada no passado reinventado; e a “memória coletiva”, de outro, aquela que recompõe magicamente o passado. Entre essas duas direções da consciência coletiva e individual desenvolvem-se as diversas formas de memória, cujas formas mudam conforme os objetivos que elas implicam (HALBWACHS, 2004: 15).

A busca de uma definição sobre memória coletiva levou-me a entender que existem múltiplas formas de constituição de memórias, sejam elas pessoais ou coletivas, que elas não são fixas e que não estão dadas no passado à espera de um “resgate”. Entendo

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que as memórias são construídas cotidianamente pelas pessoas no presente (sobre algo do passado) de acordo com a necessidade daquilo que se quer dizer, com contexto e com o propósito pelo qual está sendo lembrada. Para Maurice Halbwachs (2004), as lembranças que temos mais facilidade de evocar da memória são aquelas que podem ser apoiadas nas lembranças do outro, ou seja, é mais fácil lembrar daquilo que nos é familiar e de fácil acesso, assim como o é para os outros que nos cercam. As lembranças que dizem respeito somente a nós mesmos, segundo o autor, se tornam mais difíceis de acessar. Desse modo, uma vez que ocorre um distanciamento dos grupos que nos auxiliam evocá-las, as relações vão se reduzindo e, “os caminhos” pelos quais ocorriam essas comunicações vão sendo apagados, as memórias vão se tornando cada vez mais distantes, podendo até permanecer guardadas de algum modo, mas vão se tornando inacessíveis. A memória coletiva ganha força e duração quando existe um conjunto de pessoas que lembram algo enquanto grupo. Porém, Halbwachs (2004) nos deixa claro que essas memórias não são homogêneas e que cada indivíduo lembra de acordo com o que lhe é próprio, ou seja, “cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva” (Idem: 55). É importante ressaltar que esse ponto de vista é mutável de acordo com o lugar que o indivíduo ocupa e mais, esse lugar também é mutável de acordo com as relações estabelecidas com outros meios. Elizabeth Jelin (2002), em seu livro Los trabajos de la memória, procura compreender as memórias como processos subjetivos baseados nas experiências, em marcas simbólicas e materiais. Além disso, concebe as memórias como objetos de disputas que envolvem relações de poder sobre aquilo que é lembrado ou esquecido. Contudo, ainda busca “historicizar”2 as memórias reconhecendo que existem mudanças históricas no sentido do passado. Nessa obra, propõe que as memórias, especialmente as traumáticas, possam ser trabalhadas. Isso quer dizer que “trabalhar” a memória significa a elaboração do passado traumático. Por que alguém gostaria de ficar relembrando um trauma? Essa é a grande questão, pois isso não significa a simples lembrança pela lembrança. A proposta da autora remete à busca pela lembrança do trauma de modo que este possa ser “trabalhado”, no sentido do indivíduo compreender suas questões pessoais e poder falar sobre esse trauma com algum intento e significado. As memórias podem ser elaboradas de modo a valorizar a experiência para que esta possa ser “trabalhada” em um plano também coletivo, com o objetivo de superar o esquecimento e os traumas. A tomada de distância desse passado e a elaboração de reflexões e debates são capazes de construir uma consciência histórica, como abordada por Jelin (2002). A produção bibliográfica relacionada ao estudo de memórias traumáticas ligadas à repressão na América Latina e no Brasil é considerável: Arfuch (2013), Calveiro (2013), Jelin (2002), Jelin & Kaufman (2006), Jelin & Catela (2002), Rago (2010), Rosa (2009), Sapriza (2009) e Santos (2012), apenas para citar algumas; coincidência ou não todas são mulheres falando sobre o tema. Devido aos limites deste trabalho, a questão da produção feminina poderá ser trabalhada em uma abordagem futura. Leonor Arfuch (2013) demonstra que a produção das narrativas, testemunhos e as autobiografias foram essenciais para a elaboração das experiências sobre o período 2 Ver mais em Jacques Le Goff (2003).

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repressivo na Argentina. A autora elabora uma reflexão sobre essa documentação que, segundo ela, passou por três momentos diferentes. Sendo o primeiro imediatamente após o término da ditadura Argentina, em 1983, quando as narrativas, os testemunhos e autobiografias tinham um caráter denunciativo e muitas acabaram se tornando provas judiciais. Em um segundo momento, outras memórias foram construídas no cinema, nas artes e na literatura – com diferentes gêneros -, com a intenção de recuperar a militância e escrever a sua história. No terceiro momento, as autobiografias aparecem com um caráter autocrítico, de autoconhecimento e de transformações em relação ao trauma. No Brasil, Rago (2010), em Memórias da Clandestinidade: Criméia Alice de Almeida Schimidt e a Guerrilha do Araguaia, realizou uma entrevista com a exguerrilheira e trabalhou o relato sobre a construção das memórias de Criméia de forma subjetiva, de modo que todo o trauma relatado por ela foi elaborado e transformado em experiência, o que gerou uma fala com propósito político. Criméia criou suas estratégias de resistência durante o período da ditadura e, posteriormente, ao narrar sua história, rompe com o machismo sofrido por ela (tanto da esquerda quanto da direita) e com a opressão da ditadura3. Rosa (2009) analisou as cartas escritas pela brasileira Flávia Schilling, que ficou presa no Uruguai por oito anos, entre 1972 e 1980. Os documentos foram interpretados por Rosa como um “dispositivo de resistência”. Apoiada no pensamento de Foucault (2006), ela analisa os escritos de Flávia como uma maneira de resistência e o ato de escrita auxiliava a manter sua força de devir4. Apesar da densidade de sua escrita, Flávia demonstrava o não esvaziamento provocado pela violência vivida na prisão, pelo tempo que ficou no isolamento, por todas as tentativas dos torturadores em desestruturá-la enquanto pessoa. As análises sobre a produção bibliográfica baseadas nas memórias traumáticas desde o período de transição dos regimes ditatoriais para as democracias na América Latina demonstram a relevância desse tipo de trabalho. É importante pensar sobre essa produção e problematizar a forma com que essas memórias são construídas, de modo que elas sirvam para compreender o que se está querendo dizer sobre esse passado e quais intenções estão propostas nessas narrativas, tanto como produção de conhecimento quanto ação social para que situações como essas nunca mais voltem a acontecer. MEMÓRIAS MATERIAIS O conceito de memória material proposto por Halbwachs (2004) compreende que ela sempre estará inserida no espaço. Assim, não há memória coletiva que não se desenvolva num quadro espacial. Ora, o espaço é uma realidade dura: nossas impressões se sucedem, uma à outra, nada permanece em nosso espírito, e não seria possível compreender que pudéssemos recuperar o passado, se ele não

3 Ver mais em: Gênero, feminismos e ditaduras no cone sul. Ilha de Santa Catarina: Ed. Mulheres, 2010. 4 Devir no sentido de “não se abandona o que se é para devir outra coisa (imitação, identificação),

mas uma outra forma de viver de sentir assombra ou se envolve na nossa e a ‘faz fugir’”. Ver mais em: http://claudioulpiano.org.br.s87743.gridserver.com/wp-content/uploads/2010/05/deleuze-vocabulariofrancois-zourabichvili1.pdf. Visitado em novembro de 2013.

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se conservasse, com efeito, no meio material que nos cerca (HALBWACHS, 2004: 150).

A relação entre as pessoas e a materialidade desencadeia e auxilia na formação das memórias, pois, muitas vezes, se é capaz de se lembrar de algo a partir de objetos que fazem uma ponte de ligação com o passado e que remetem a alguma lembrança. Desse modo, quando Halbwachs (2004) diz que a memória coletiva se desenvolve dentro de um quadro espacial, faz sentido pensarmos naquilo que a materialidade pode significar. Philipe Artiéres (1998), em seu texto “Arquivar a própria vida”, fala sobre as coisas que no dia-a-dia são guardadas, como papéis com anotações, documentos, boletos, tickets, fotos antigas, formando assim uma espécie de “arquivo” dentro de uma gaveta qualquer. O autor propõe que imaginemos esse lugar onde se colocam coisas referentes ao cotidiano pessoal para dizer que normalmente deixamos os nossos próprios vestígios, mas que acabamos guardando apenas uma pequena parte, em especial as que são escritas. Quando fala em “arquivar a vida”, Artiéres explica que ela não é feita de qualquer maneira e que escolhemos aquilo que queremos guardar: (...) fazemos um acordo com a realidade, manipulamos a existência: omitimos, rasuramos, riscamos, sublinhamos, (...) registramos apenas alguns acontecimentos, omitimos outros; às vezes, quando relemos nosso diário, acrescentamos coisas ou corrigimos aquela primeira versão. Na correspondência que recebemos, jogamos algumas cartas diretamente no lixo, outras são conservadas durante um certo tempo, outras enfim são guardadas; com o passar do tempo, muitas vezes fazemos uma nova triagem (ARTIÉRES, 1998: 03).

Qual o propósito de tudo isso? Pensando que de fato somos socialmente exigidos a arquivar partes da nossa vida, como aqueles comprovantes de pagamentos, ou ainda, mesmo por uma questão pessoal, como montar álbuns de fotos de um filho ou do casamento, se está reconstruindo narrativas. Essas “exigências” acabam aos poucos compondo uma história pessoal, e essa materialidade que foi “juntada” expressa e faz a conexão do presente com o passado e que é fruto de escolhas. Memória e esquecimento são construções sociais, continuamente elaboradas e reformuladas. Este processo tem lugar no marco de outra construção social e cultural mais ampla: a produção social do tempo. Sobre esse cenário da nossa concepção particular de tempo, a memória e o esquecimento, o presente e o futuro atuam e se ordenam como símbolos dessa grande obra da ação coletiva que chamamos de história (JELIN & KAUFMAN, 2006: 17).

É sobre o espaço que se ocupa ou que se teve acesso, bem como a sua materialidade, que a imaginação e o pensamento são capazes de construir as lembranças ou parte delas. Nesse lugar de criação onde “as imagens espaciais desempenham um papel na memória coletiva” (Halbwachs, 2004: 139), ou seja, as “imagens espaciais” além de possibilitarem a elaboração de memórias, elas não devem ser entendidas como algo

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fixo, pois podem mudar de acordo com as circunstâncias em que são lembradas, individual ou de forma coletiva. Portanto, as memórias podem ser construídas com auxílio da materialidade e do espaço que nos cerca. Considerando que elas são culturalmente construídas e (re) significadas cotidianamente de modo a construir narrativas, podemos entender as condições históricas para o surgimento de determinadas lembranças, bem como as relações entre pessoas e objetos. Nesse âmbito que Arqueologia da Repressão e da Resistência, sob a perspectiva da Arqueologia do Passado Recente ou Arqueologia Contemporânea aponta um novo caminho, que é democrático e com distintas possibilidades de construção dessas memórias. DITADURAS NA AMÉRICA LATINA (1960/80) E AS POLÍTICAS DE MEMÓRIAS A história das ditaduras Latino Americana teve seus primórdios nos contextos da Guerra Fria, indiretamente sobre as experiências dos EUA na Guerra da Coréia (1945) e a sua derrota na Guerra do Vietnã (1954) – como reflexo a bipartição do mundo entre capitalistas e socialistas. A Revolução Cubana (1959) foi reconhecidamente um dos processos históricos definitivos para a instauração das ditaduras na América Latina5. A insurgência dos governos militares a partir de golpes de Estado na intenção de não permitir que os ideais comunistas - que se espalhavam rapidamente -, chegassem à revolução de fato. Esse regime de governo autoritário foi marcado por desaparecimentos, prisões, sequestros e violência contra aqueles que eram considerados “inimigos” do Estado. O Brasil foi “pioneiro” nos requintes de crueldade para obtenção de confissões daqueles que estavam detidos. O aparato repressivo brasileiro serviu de “exemplo” para os outros países do Cone Sul. Em 2014, completou cinquenta anos do Golpe de Estado no Brasil. São cinquenta anos de silêncios e dos familiares em busca dos seus filhos e irmãos desaparecidos du rante a ditadura. De maneira prática, ficam duas questões: existem políticas públicas de memória que vêm sendo desenvolvidas tanto no Brasil como nos outros países da América Latina? Como se daria a elaboração de memórias traumáticas a partir de políticas de memória? Entendendo aqui por políticas de memória como as ações políticas que afetam de modo direto a produção das memórias, e que possuem objetivos bem definidos. 5 HOBSBAWM, E. J. A Era dos Extremos: o breve século XX: 1914-1991. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos. História Contemporânea da América Latina: 1960-1990. 2. ed. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 2004.

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Leonor Arfuch (2013) defende a ideia que é chegada a hora de se discutir essas políticas públicas da memória. Ela propõe que sejam instaurados locais de memória e monumentos, a abertura dos locais onde houve repressão e tortura, os “espacios sórdidos del horror” (Idem: 79), como os centros clandestinos de detenção, os campos de concentração e extermínio que, muitas vezes, estavam implantados no coração das grandes cidades, separados apenas por um muro da sua vida cotidiana. Para Lechner & Güell (2006: 22) ao escreverem sobre as políticas de memória no Chile, entendem que “toda sociedade possui uma política de memória mais ou menos explícita, isto é, o marco de poder dentro do qual (ou contra o qual) a sociedade elabora as suas memórias e esquecimentos”. Os autores demonstram que as organizações, os grupos e familiares que lutam por suas memórias para que elas não sejam esquecidas e que possam ser reconhecidas, têm papel ativo na construção das políticas de memória. Estas envolvem muitas questões político-sociais que dão forma ao modo como a sociedade vê e entende o seu passado. No Brasil, as políticas de memória compreendem iniciativas da sociedade na forma de grupos e familiares e por ações governamentais. Ações como abertura (mesmo que parcial) dos arquivos da ditadura; a Lei de Acesso à Informação; as expedições de buscas por seus desaparecidos políticos, a formação das Comissões da Verdade e os julgamentos de torturadores marcam o início de uma nova e longa jornada de esperança por justiça para com a memória daquelas pessoas que por seus ideais perderam a vida6. ARQUEOLOGIA DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA Quando se começa a pensar na relação entre a cultura material e as pessoas, é plausível a possibilidade se fazer uma análise por meio arqueológico. A cultura material é uma denominação bastante utilizada pela arqueologia e refere-se ao que, no decorrer do texto, era chamado apenas de materialidade, ou seja, tudo aquilo que foi produzido RI,1988, 2005; FUNARI & ZARANKIN, 2009) e manipulado pelo ser humano. Os autores Buchli & Lucas (2001), Ian Hodder (2001), Harrisson & Schofield (2009), Moshenska (2008 e 2009), González-Ruibal (2008 e 2012) defendem a ideia de que a Arqueologia permite trabalhar com períodos de tempos menos recuados, neste

CHAFFE, Bruna. A ditadura militar no Brasil e o controle da informação: relatos de censura nas bibliotecas da UFRGS. Trabalho de conclusão de curso Biblioteconomia UFRGS, Porto Alegre: 2009. 6 As ações governamentais só foram tomadas devido a condenação do Brasil na Corte Interamericana de

Direitos Humanos. Ver mais em Ceia (2013), disponível em: http://www.emerj.tjrj.jus.br/revistaemerj_ online/edicoes/revista61/revista61_113.pdf Visitado em 12/06/14.

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caso, durante o século XX. A Arqueologia da Repressão e da Resistência forma um novo campo com rico potencial para construção de conhecimento deste passado recente. Nesse sentido, Suárez (2014), ao utilizar o termo Arqueologia Contemporânea, afirma que este deve ser caracterizado de forma difusa sem buscar uma categorização clara, levando em consideração que a Arqueologia não pode emergir de limitações cronológicas, mas de forma afirmativa e embasada na articulação das relações entre passado e presente, cultura material, sujeitos e coletivos. Sendo assim, a arqueologia, enquanto uma ciência que tem como foco o estudo da cultura material, pesquisas em contextos de um passado recente – no caso os regimes ditatoriais da segunda metade do século XX-, passa a contribuir na construção de narrativas. Pedro P. A. Funari, Andrés Zarankin e Emily Stovel (2005) defendem a perspectiva de uma Arqueologia interpretativa, contextual e subjetiva. Assim, os arqueólogos acessam, no presente, a cultura material que remete ao passado e que possibilita a construção de discursos. Desse modo, a materialidade é vista de maneira ativa na construção dos sujeitos e das subjetividades. Como a arqueologia pode contribuir no processo de construção das memórias de contextos ditatoriais ou de conflitos contemporâneos? A Argentina foi pioneira na criação da EAAF – Equipe Argentina de Antropologia Forense no desenvolvimento de pesquisas nesse âmbito, com uma equipe multidisciplinar formada por antropólogos, arqueólogos, médicos, etc. É uma organização científica não governamental que trabalha na investigação de violações dos direitos humanos e nas buscas pelos desaparecidos políticos das ditaduras militares. Atualmente, a EAAF atua em mais de 30 países na América Latina, África, Oceania, Oriente Médio e Norte da África, Ásia e Europa (EAAF, 2013). Muitos estudos têm sido desenvolvidos e têm auxiliado tanto nas buscas e identificação de desaparecidos políticos como também a escrever as histórias das pessoas que tiveram seus mais básicos direitos violados. Na Argentina, um estudo arqueológico que muito contribuiu nesse sentido foi realizado por Zarankin e Niro (2008) A materialização do sadismo: arqueologia da arquitetura dos Centros Clandestinos de Detenção da ditadura militar argentina (1976-83). Nesse texto, os autores discutem sobre as experiências sofridas por Niro (um dos autores) dentro dos centros clandestinos de detenção (CDTs) e como se dava a organização espacial e arquitetônica dos CDTs, bem como seus efeitos sobre os corpos e mentes dos presos. O estudo da materialidade e da arquitetura dos centros clandestinos argentinos, entendido pelos pesquisadores como dispositivos de poder, possibilitou compreensão de uma ideologia sádica e perversa que se materializou dentro da organização desses espaços e que permaneceu na cultura material da repressão. Funari e Zarankin (2009), em Brilho eterno de uma mente sem lembranças: Arqueologia e construção da Memória da repressão militar na América do Sul (1960-

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80), fazem um panorama sobre os estudos de arqueologia em contextos repressivos na América Latina e escrevem sobre o trabalho arqueológico realizado em 2002, no Cube Atlético - C.A. em Buenos Aires/Argentina. O C.A, também conhecido pelo codinome de Centro Anti-subversivo, era um centro clandestino de detenção que funcionou no ano de 1977 e, “estima-se que em torno de 1.500 pessoas tenham passado por lá, e a maioria delas está desaparecida” (Idem: 42). Este tipo de pesquisa enfatiza a importância desses estudos sobre a materialidade da repressão na construção das memórias sobre a ditadura Argentina. Melisa Salerno (2009) realizou um trabalho também na Argentina, denominado A construção da categoria “Subversivo” e os processos de remodelação de subjetividades através do corpo e do vestido (Argentina, 1976-1983). Esta pesquisa versa sobre as formas que o Estado argentino criava para definir aqueles considerados subversivos, portanto, opositores ao regime vivido pelo país. Além disso, pôde, através das análises nos restos de indumentárias - que foram recuperadas nas exumações realizadas pela EAAF nas valas do Cemitério Municipal Lomas de Zamorra -, fazer o entrecruzamento de informações documentais e orais. Desse modo, a autora conseguiu desvendar informações sobre a dinâmica repressiva, sobre as prisões, onde faziam parte as constantes trocas de roupas dos presos ou mesmo o ato de despi-los, como prática de desestruturação do sujeito. Além de descobrir maneiras que o Estado arranjou para perpetuar a condição de “desaparecido”, dificultando o reconhecimento e identificação dessas pessoas. Moshenska (2010) realizou um estudo arqueológico sobre máscaras de gás infantis da Segunda Guerra Mundial na Bretanha. Sua pesquisa tomou por base as memórias narrativas de pessoas que viveram a experiência de utilizar essas máscaras de gás no tempo da guerra. O autor trabalhou os seus usos, usos “impróprios” ou subversivos, o descarte, os efeitos do gás venenoso, sua estética, a questão do aprendizado durante a infância e os treinamentos militarizados para cuidado e uso dessa peça tecnológica enquanto equipamento de proteção pessoal. O diferencial de sua pesquisa foi a ênfase dada ao aspecto sensorial e nas relações entre memória e sensibilidade. Nesse sentido, as narrativas tratadas em seu estudo, demonstram que as experiências sensoriais resistiram ao longo do tempo na lembrança dessas pessoas de forma clara e a estética das máscaras formou um rico potencial para maior compreensão das relações entre pessoas e coisas. Essas relações foram entendidas como diálogos que permitiram olhar além das máscaras de gás enquanto mediadores sociais, e, indo na direção da compreensão de que coisas inanimadas são agentes animados agindo sobre as pessoas e as pessoas sobre as coisas (MOSHENSKA, 2010: 625). No Brasil, foram publicadas duas principais obras de referência sobre o tema: Arqueologia da Repressão e da Resistência: América Latina na era das ditaduras (1960-

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1980), organizado por Funari, Zarankin e Reis (2008) e Arqueologia Direito e Democracia também organizada por Funari et all. (2009). Na primeira obra, dentre os diferentes autores latino americanos, há o texto escrito por Funari e Oliveira (2008) que trata da Arqueologia do conflito no Brasil e aponta, inicialmente, o desinteresse por parte dos pesquisadores nessa temática. Demonstra os esforços para formação de equipes forenses para busca dos desaparecidos políticos do Brasil, o que ocorreu no ano de 1992, através do Grupo Tortura Nunca Mais/RJ. As buscas aconteceram no Cemitério Ricardo Albuquerque, no Rio de Janeiro, sem êxito por parte da equipe. Em seguida, os autores escrevem sobre o potencial para pesquisas nessa área no Brasil. Na segunda obra, Funari et al. (2009) publicam um compêndio com número maior de textos sobre o tema. Monteiro da Silva (2009) discorre a cerca dos primórdios da arqueologia forense no Brasil, apontando a importância da disciplina em contextos criminais. Funari e Carvalho (2009) escrevem sobre as perspectivas e o potencial da arqueologia forense enquanto arqueologia pública, e ainda, o artigo escrito por Soares (2009) sobre Arqueologia e justiça de transição no Brasil. Inserida na temática da Arqueologia da Repressão e da Resistência no Brasil, a pesquisa de mestrado que desenvolvo junto à Unicamp, constitui um levantamento dos locais onde houve repressão e torturas, bem como de locais utilizados pelo aparato repressivo entre os anos de 1964/1985, em Porto Alegre, estado do Rio Grande do Sul. A princípio, se acreditava na existência de aproximadamente 18 locais, porém, iniciadas as pesquisas nos processos de indenização política7 e nos prontuários dos presos políticos do DOPS/RS8, como dado prévio, esse número saltou para 40 locais. Esses lugares compreendem espaços que serviram para detenção e tortura, como quartéis, presídios, escolas, delegacias; um Centro Clandestino de Detenção e Tortura e também hospitais, utilizados para atendimento médico dos presos. Após a conclusão do levantamento, a intenção é elaborar mapas temáticos sobre esses lugares e fazer uma análise comparativa com base na Arqueologia da Arquitetura do CDT - Centro Clandestino de Detenção e Tortura e de um dos estabelecimentos prisionais, o da Ilha do Presídio. O principal objetivo desta pesquisa é colaborar na construção de memórias materiais sobre o período na cidade, de modo a tornar público o que um dia se passou nesses locais. Estes são apenas alguns dados preliminares da pesquisa que está em andamento. A possibilidade de se construir histórias com base nos vestígios presentes na materialidade da repressão demonstra a importância de estudos arqueológicos no âmbito 7 Acervo do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. 8 DOPS/RS - Acervo Contra Ditadura do Museu dos Direitos Humanos do Mercosul/Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul.

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da Arqueologia da Repressão e da Resistência no Brasil, e principalmente, pelo caráter democrático e social da Arqueologia na construção de um passado tão próximo e lancinante de nossa história. CONSIDERAÇÕES FINAIS As pesquisas arqueológicas sobre a cultura material oriunda de contextos repressivos podem colaborar com as ciências forenses, de modo a contribuir na compreensão, por parte dos peritos, das circunstancias da morte, entre outros aspectos, servir como provas materiais em processos judiciais. Contudo, cabe ressaltar aqui, que essas evidências materiais possuem um enorme potencial para interpretações que fogem do âmbito forense e que possibilitam trocas com outras áreas do conhecimento, como História, Sociologia, Política, entre outras. O conhecimento produzido pela Arqueologia desempenha um importante papel social tanto para as pessoas diretamente afetadas quanto para a sociedade de um país. Digo isso no sentido de que a Arqueologia possibilita trabalhar e construir memórias - de um passado que é doloroso para as gerações que vivenciaram esse período, como para aqueles vieram depois da extinção dos regimes autoritários -, como forma de conhecer o seu passado. O desafio de se construir memórias materiais, com base em análises arqueológicas, conjuga com a ideia da construção de memórias que possam ser trabalhadas coletivamente, como proposta por Elizabeth Jelin (2002) e políticas de memórias apontadas por Leonor Arfuch (2013). Finalmente, lutar e trabalhar de maneira engajada para que as memórias e as histórias não caiam no esquecimento dos abusos de um período traumático para a sociedade brasileira e latino americana. E, com efeito, que pesquisas assim possam promover debates e reflexões ativas sobre esse passado e sobre o seu sentido para o presente e futuro. AGRADECIMENTOS Agradeço ao Professor Dr. Pedro Paulo Funari pela orientação, ao PPG História Unicamp, à Capes pelo fomento desta pesquisa. À Dra. Rita Juliana Poloni pela editoração do dossiê e pelas contribuições para o aprimoramento do texto. Também à Príscila Souza, à Mariléa Almeida e ao Varlei Couto pelos comentários e conversas que muito auxiliaram na construção deste texto, que é de minha inteira responsabilidade. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARFUCH, Leonor. Memoria y autobiografia: exploraciones em los limites. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2013.

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Arqueologia Pública Revista de

ARTIGO

O VERMELHO E O NEGRO:

RAÍZES COLONIAIS DO UNIVERSO CONCENTRACIONÁRIO DO GENERAL FRANCO

Pedro Pablo Fermín Maguire

Dossiê

No. 10 ISSN 2237-8294 dezembro de 2014

ARTIGO

O VERMELHO E O NEGRO: RAÍZES COLONIAIS DO UNIVERSO CONCENTRACIONÁRIO DO GENERAL FRANCO Pedro Pablo Fermín Maguire1 RESUMO As fases finais da rede Nazista na Segunda Guerra Mundial predominam nas imagens mais frequentes sobre campos de concentração. Mas, isolando alguns dos seus elementos conceituais, léxicos e materiais, podemos encontra-los em meio a contextos coloniais. O militarismo e o estado de exceção fornecem também algumas das condições nas quais esses elementos ou práticas geralmente associadas à declaração de inimizade, adquiriram um caráter massivo. Palavras-chave: campo de concentração; barracão; escravidão. ABSTRACT The final stages of the Second World War Nazi network of concentration camps are predominant in contemporary imageries of concentration camps. Still, if we isolate some of these networks’ conceptual, lexical and material elements we can easily trace back their roots in colonial contexts. Militarism and the state of exception have also tended to provide some of the conditions where these elements or practices- generally associated to the declaration of enmity- have acquired a massive scale. Keywords: concentration camp; barracks; slavery. RESUMEN Las fases finales de la red Nazi en la Segunda Guerra Mundial predominan en las imágenes más frecuentes sobre los campos de concentración. Pero, aislando algunos de sus elementos conceptuales, léxicos y materiales, podremos encontrarlos en medio de contextos coloniales. El militarismo y el estado de excepción proporcionan también algunas de las condiciones en las cuales estos elementos o prácticas generalmente aso-

1 Mestrando da Unicamp, tradutor e professor de inglês. E-mail: pedritofmaguire@gmail.

com

PEDRO PABLO FERMÍN MAGUIRE

ciadas a la declaración de enemistad, adquireron un carácter masivo. Palabras clave: campo de concentración; barracón; esclavitud.

INTRODUÇÃO: ARQUEOLOGIA DA REPRESSÃO E CAMPOS DE CONCENTRAÇÃO O totalitarismo (opera através de) “a instauração, através do estado de exceção, de uma guerra civil legal, que permite a eliminação física não apenas dos adversários políticos, mas de categorias inteiras de cidadãos que por qualquer razão resultam não integráveis no sistema político” (AGAMBEN, 2004: 25). As fases finais no desenvolvimento da rede concentracionária nazista predominam nos imaginários mais frequentemente atrelados às palavras “campo de concentração”. Mas tanto os trabalhos na arqueologia do confinamento (MYERS e MOSHENSKA, 2011) quanto análises desenvolvidas no campo da arqueologia da repressão (FUNARI e ZARANKIN, 2006) têm conseguido complementar tais representações, propondo outros contextos nos quais foram empregadas tanto essas palavras quanto a materialidade à qual elas se referem. Arqueólogos de vários países do continente americano e da Europa têm destacado a utilidade da disciplina para documentar e estudar práticas repressivas atreladas à violação de direitos humanos (GONZÁLEZ RUIBAL, 2007; FUNARI e ZARANKIN, 2006; FUNARI, SILVA e CARVALHO, 2009). Muitos desses estudos contribuem para a identificação de vítimas e para o reconhecimento dos projetos políticos sepultados. Esses trabalhos podem se considerar arqueológicos no sentido de relativos aos “povos sem história” (FUNARI e ZARANKIN, 2006). As tentativas mais recentes de apagamento histórico por estados ditatoriais ou totalitários forneceriam um exemplo recente e documentável do velho problema da representação dos oprimidos na História (BENJAMIN apud GONZÁLEZ-RUIBAL, 2008). Na primeira parte deste artigo, serão propostos vários exemplos que ampliam o escopo geográfico mais frequente dos estudos sobre campos de concentração. Ao fazer isso, procura-se demonstrar a restrição geográfica que supõe considerar somente a terrível experiência nazista, precisamente pelo seu caráter abominável. Procura-se também ilustrar a possibilidade de documentação do violento efeito das práticas sociais atreladas ao conceito de “campo de concentração”, e as suas diversas materializações históricas, tristemente amplas, polissêmicas. Aqui destacaremos como se desenvolveram as palavras “campo de concentração”, a materialidade e as práticas sociais corres-

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pondentes, antes de Auschwitz. Na África do Sul, por exemplo, os concentration camps da segunda guerra dos Bôeres (1899-1902) apareceram no meio de uma guerra colonial. Junto com o seu internamento em campos, a população Bôer – descendentes de colonos holandeses – foi designada pelo exército e apresentada socialmente como inimiga. A concentração preventiva desse grupo pressupunha nas mulheres e nas crianças Bôeres apoios à guerrilha contra o exército britânico. Estima-se que 27.000 Bôer morreram em campos de concentração durante essa guerra (CUTHBERSON, GRUNDLINGH e SUTTIE, 2002). Mas, como relembra o estudo arqueológico de Weiss (em MYERS e MOSHENSKA, 2011), os britânicos também confinaram em campos as populações de origem africana e cor negra. Aqueles outros campos tinham na região precedentes na arquitetura e nas práticas prévias à guerra (WEISS in MYERS e MOSHENSKA, 2011). De fato, já na década de 1880, o controle monopolístico sobre os diamantes e sobre os corpos dos mineiros negros do Sul da África tinha motivado a criação de áreas de habitação fechadas, os chamados compounds. Nesses compounds de tempo de paz controlava-se estritamente cada aspecto das vidas dos trabalhadores e os seus deslocamentos, sempre suspeitos. Já sob o estado de guerra formal e declarada – e suspeitando de um grupo maior de pessoas –os compounds foram empregados contra as duas populações, os Bôeres e os povos nativos africanos negros; mas os barracões empregados neles, barracks inspirados em modelos de minas escravistas brasileiras (WEISS, Op. Cit, p. 25) continuaram idênticos. Os mineiros negros já eram socialmente excluídos e sistematicamente suspeitos em tempo de paz, embora durante a guerra esses barracões tenham se multiplicado, sendo empregados com os Bôeres. O antropólogo e historiador Gewald relembra que o exército imperial alemão também empregou, quando precisou deles, os konzentrazionslager na Namíbia (GEWALD, 2004) contra o povo Herero. Em 1904, o Kaiser enviou à região as tropas do general Trotha, que nas suas próprias palavras visava a “eliminar” (Op. Cit, 62) o povo Herero, objetivo que quase atingiu, acabando com 80% deles. Terminada aquela guerra, a brutalidade continuou marcando as relações com os Hereros sobreviventes, trancados em campos de concentração desde 1905. A violência era cotidiana e a vida Herero só tinha o valor obtido com os trabalhos forçados. No mínimo 20.000 Hereros morreram e, quando os campos fecharam em 1908, os sobreviventes tinham perdido o direito de possuir terra e gado, as duas bases de sua organização social. Os exemplos citados mostram como os campos de concentração foram instrumentais às relações de exclusão política e social. Sob a declaração de guerra, nos exemplos citados, a relação de inimizade caiu sobre mais e mais grupos. Os exemplos dos Hereros e dos Bôeres ajudam a pensar o próprio termo em uma

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grade cronológica e geograficamente mais ampla de relações de inimizade: em ambos os exemplos, prévios à Segunda Guerra Mundial, concentration camps e konzentrationslager proliferaram no meio de práticas sociais que se debruçavam sobre os corpos daqueles que os exércitos definiam como inimigos. Práticas como eliminação, internamento preventivo, trabalhos forçados ou “reeducação” aparecem associados à prática da concentração. Embora no caso dos Hereros a inimizade trouxesse a aplicação de políticas visadas à eliminação, o exemplo dos Bôeres e de seus antecedentes mostra uma intensificação, sob a declaração do estado de guerra, de práticas já existentes nas colônias em tempos de paz. PRECEDENTES COLONIAIS DOS CAMPOS DE CONCENTRAÇÃO FRANQUISTAS O fenômeno concentracionário e as suas relações com os Estados imperialistas dos séculos XIX e XX pode se completar com uma procura de elementos materiais, como os compounds, o arame de espinho ou os konzentrationslager dos exércitos alemão e britânico. Os espaços cada vez mais fechados e milimetricamente controlados, como os ghettos na própria Alemanha nazista, traduzem espacialmente o crescimento do poder desses Estados imperialistas, que foram fechando espaços ao poder excepcional dos exércitos. Os espaços militares podem ser entendidos como âmbitos privilegiados de desenvolvimento de estratégias de poder dos Estados modernos, mas não como os únicos. Em uma cronologia mais ampla, desde o começo da época moderna, os Estados – frequentemente por meio dos exércitos – vinham atuando sobre áreas crescentemente arquitetadas. No continente americano, como relembra Zarankin (2001), as cidades foram os centros de estratégias de controle do poder capitalista e colonial. Já Funari e Menezes (2014) destacam como as cidades espanholas e portuguesas constituem uma parte distintiva do legado arqueológico e colonial na América do Sul. No caso da América Espanhola, a planta quadrada e o planejamento das cidades têm uma estreita relação com a engenharia militar. Para os Estados imperialistas mencionados, o britânico e o alemão, as colônias foram, no século XIX, o espaço de desenvolvimento da tecnologia política de controle civil e militar. Foram nelas que a arquitetura, a engenharia e as práticas punitivas se debruçaram sobre os corpos de populações excluídas e foram tratadas como inimigas. Em fins do século XIX, a engenharia e a arquitetura coloniais – e o exército em épocas de declaração do Estado de Exceção –ofereceram várias contribuições duvidosas ao elenco internacional de práticas de repressão, exploração e controle. Já no século XX, várias dessas práticas, artefatos e punições caíram sobre as populações na Europa. No

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caso dos campos de concentração franquistas, isso aconteceu antes do apogeu da rede concentracionária nazista e do sistema Gulag soviético. Nas seguintes páginas explorarei algumas das práticas legais, espaciais e materiais empregadas anteriormente e de maneira dispersa em contextos coloniais e que, juntas, se materializaram nos campos de concentração franquistas durante a Guerra Civil Espanhola. 1. CUBA: OS DEPÓSITOS, O BARRACÓNE A RECONCENTRACIÓN

Várias práticas extremamente agressivas com os corpos dos concentrados nos campos franquistas tinham aparecido antes nas colônias. A identificação compulsória, muitas vezes inscrita contra a própria vontade, a concentração segregada em determinadas áreas e o depósito em barracões aparecem no espaço urbano e em determinados tipos de fazenda altamente industrializados, no universo da escravidão em Cuba. Uma parte importante da economia cubana já era baseada na exploração de escravos durante o século XVIII. Baseado nos dados de López de la Vega Valdés (identificação do personagem), o historiador e arqueólogo cubano Gabino de la Rosa calcula em 6 milhões o número de africanos introduzidos no Caribe entre os séculos XVI e XIX (LÓPEZ VALDÉS apud DE LA ROSA, 2012). A revolta antiescravista no Haiti no final do século XVIII trouxera uma intensificação da economia escravocrata em outras áreas do Caribe, América do Sul e do Norte. Desde 1790, foram introduzidos na ilha de Cuba mais escravos do que durante um século e meio anterior (CUBRÍA VICHOT, 2012). O estudo de De La Rosa sobre as tatuagens de escravos cubanos situa essa prática de inscrição como uma resposta à necessidade de identificar os escravos com as propriedades dos donos dos engenhos (DE LA ROSA, 2012). As autoridades coloniais, os donos dos engenhos e os caçadores usavam as tatuagens para afirmar a titularidade sobre os escravos e garantir o pagamento dos impostos sobre eles. Junto com as tatuagens, a identificação também se utilizava de depósitos. Esses prédios centralizavam os escravos, e foram gerenciados por diferentes famílias em sua longa história. Mas foi a Junta de Fomento, organismo real, que construiu o maior depósito de La Habana. Ele estava situado no bairro de Cerro, no centro de La Habana e contava com vários vigilantes, um médico e um encarregado das finanças. Os cativos eram expostos publicamente naquele grande prédio e identificados por intermédio das tatuagens (carimbos) sobre os seus corpos. A mesma lei que previa a construção do depósito de Cerro em 1800 prescrevia que qualquer negro que não conseguisse ser identificado podia acabar preso dentro desses estabelecimentos. Os depósitos geraram registros cuidadosamente anotados (DALTON, 1967).

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Os depósitos eram provisórios. A moradia permanente dos escravos tinha um nome, que, como os compounds britânicos, também tracejava uma conexão entre o trabalho em cativeiro e o universo concentracionário: o barracão. Desde o século XVI e XVII, a palavra barracón, em espanhol (barracoon em inglês) designava lugares temporariamente habilitados para depósito dos escravos à venda na costa Oeste da África e na América. Durante o século XIX, a palavra passou a designar lugares de habitação de escravos na ilha de Cuba; durante esse século, os barracones viraram a solução arquitetônica que melhor se adaptava às necessidades de controle dos escravos nos engenhos cubanos de açúcar. A altíssima produtividade dos engenhos cubanos continuou enriquecendo a elite cubana “sacarocrata” – nas palavras de Manuel Moreno Fraginals, autor de um estudo clássico sobre os engenhos– durante todo o século XIX. Mas as fugas de escravos continuaram, e a luta pela emancipação somou-se a outros conflitos sociopolíticos até a guerra de Independência de 1895-1898. Durante o século XIX, a economia açucareira continuava crescendo, apesar da ameaça do desenvolvimento da beterraba – competidora na produção de açúcar vinda da Europa – no meio das lutas pela Abolição e da formação de movimentos anexionistas, reformistas e independentistas. Entre os conspiradores do começo do século XIX encontraram-se negros livres como José Antonio Aponte, que organizou um movimento abolicionista, em 1812. Também participaram escravos negros e mulatos livres na conspiración de La escalera (conspiração da escada), cujo nome remete a uma prática de punição pública na qual os escravos eram atados a uma escada e recebiam chibatadas. A brutal repressão incluiu a aplicação de torturas até a morte em até 300 pessoas, 78 execuções, 600 pessoas presas e 400 expulsas (CANTÓN NAVARRO, 1998). Nesse contexto mais amplo, podemos entender a evolução arquitetônica e da distribuição espacial dos barracones proposta pelo estudo clássico de Fraginals sobre os engenhos de açúcar. El ingenio cubano de la zúcar (1978), propõe diferentes fases no ciclo escravista, destacando a importância das tarefas de vigilância dos cativos, que trouxeram um novo uso ao termo barracón. Na ilha de Cuba, as moradias rurais foram modificadas pelos donos dos ingenios em duas fases subsequentes. Moreno Fraginals propõe uma primeira transformação, entre fins do século XVIII e começo do século XIX, na disposição dos bohíos, pequenas cabanas rurais com chão de terra e teto de folha de palma. Os bohíos passaram de um padrão mais disperso para o modelo em U (figura 1). Fraginals destaca a capacidade de vigilância dessa primeira transformação e a utilidade para distribuir as forças dos escravos no espaço. Já o termo barracón serviu, em uma fase posterior, para assinalar o ponto máximo do ciclo do açúcar. Na virada do século XIX, o barracón designava a materialização de

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toda uma estratégia de controle social, um complexo arquitetônico e industrial. O barracón era um grande prédio de planta quadrada, com uma nova localização da cozinha no centro do pátio e a mudança de materiais. A madeira dos bohíos – termo que passa a designar só o reduzido espaço para dormir – foi trocada pela pedra e pelo ladrilho, ficando só para as cercas que, em meados de 1860, deviam ser feitas em arame de espinho (Op. Cit., 1978). As sociedades de donos de engenhos promoveram estudos que prescreviam também a distribuição de outros elementos que faziam dos barracones unidades cada vez mais autossuficientes. Lojas, casas para o criador dos bois ou para os capatazes, e eventualmente áreas para chineses coolies ou escritórios para homens livres encarregados de funções administrativas. Esses manuais eram ilustrados com gravuras de alguns dos artistas mais importantes da ilha, como Eduardo Laplante. Entre os elementos arquitetônicos, Moreno Fraginals destaca também o emprego de diversos referentes visuais. Vários campanários, torres, etc. marcavam o tempo e marcavam o tempo do trabalho e o espaço dos engenhos a longa distância. A RECONCENTRACIÓN A luta pela emancipação continuou se entretecendo na ilha com os diferentes grupos sociopolíticos em formação no século XIX: reformistas dentro do Império espanhol, anexionistas com os Estados Unidos e independentistas. A política impositiva e econômica das autoridades coloniais, junto com sua incapacidade de articular reformas políticas e sociais efetivas continuavam empurrando cada vez mais setores para posições independentistas. A abolição misturava-se com a luta independentista, segundo propõe com cada vez mais frequência a historiografia sobre Cuba. Por exemplo, o historiador e divulgador Julio Cubría, em seu Breve Historia de Cuba (2012), destaca o exemplo de Carlos Manuel Céspedes Castillo. No dia 10 de outubro de 1868, o advogado da cidade de Bayamo proclamou a Independência de Cuba e simultaneamente libertou os escravos do seu próprio engenho. As cidades menores de Camaguey e las Villas secundaram o levantamento e tanto grupos de voluntários contra a Independência quanto o exército imperial espanhol reagiram, tendo como sequência uma guerra de 10 anos; depois da guerra, a ilha continuou a fazer parte da Espanha. A escravidão foi formalmente abolida pelo governo colonial da Espanha em Cuba em 1886, embora nas grandes explorações rurais os proprietários continuassem exercendo um forte controle sobre os movimentos dos seus empregados. Os conflitos sociais e políticos continuaram crescendo. Alguns dos grupos partidários da Independência aproximaram-se de setores populares e operários. Ao mesmo tempo, um processo de militarização atingiu tanto essas organizações revolucionárias quanto o governo co-

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lonial da ilha e os conflitos sociopolíticos. A segunda declaração de Independência e a guerra subsequente tiveram, como dirigentes dos exércitos de libertação, generais como José Martí, Máximo Gómez e Antonio Maceo. Eles se viram investidos de atribuições excepcionais, cívicas e militares. O governo colonial na ilha de Cuba também entregou poderes excepcionais ao General Valeriano Weyler, nomeando-o Capitão Geral da ilha. Weyler comandou em Cuba um exército de mais de 200.000 homens, o “maior exército jamais enviado a Cuba por uma potência europeia” (NAVARRO GARCÍA, 1998: 172). Foi no emprego desses poderes excepcionais que ele aplicou a prática de guerra colonial conhecida como reconcentración. Como o emprego dos concentration camps na África do Sul, a reconcentración visava a desfazer os vínculos entre os exércitos de guerrilheiros independentistas do campo e os seus apoios civis, forçando o deslocamento massivo de toda a população até as cidades e determinados pontos militarizados e fortificados. A reconcentración impôs a restrição de movimentos sobre toda a ilha. Como a lei de 1800, a prática jogava sobre o conjunto da população uma suspeita sistemática de criminalidade. Nos bandos de reconcentración propagandeavam que quem não comparecesse aos espaços designados seria considerado e julgado como rebelde, o crime mais grave do Código da Justiça Militar de 1890. Se a presunção de culpabilidade, o cativeiro e o objetivo da identificação relembravam os depósitos, a inscrição dos “apresentados” era feita com caráter metódico, em registros escritos e não em tatuagens. Vários donos de fazendas cafeeiras e açucareiras rurais se opuseram à medida que os privava da “sua” mão de obra ao exigir a presença na cidade. A reconcentración não visava, como os konzentrationslager, a eliminação massiva das populações alvo. De fato, operava sobre o princípio inverso de aniquilar os meios de vida no campo (moradias, gado, bananas e tudo aquilo que pudesse servir de sustento aos guerrilheiros) e preservar na cidade a vida dos “apresentados” em paz e sob controle. Mas a degradação das condições de vida foi catastrófica. Sem suficientes meios para fornecer o sustento dos próprios soldados espanhóis – em sua maioria procedentes das camadas populares da península –, o exército não dava conta da manutenção mínima dessa vida das massas concentradas. Entre 1895 e 1898, 41.000 soldados espanhóis morreram por causa de enfermidades infecciosas. Ao menos 150.000 civis morreram em consequência da reconcentración em toda a ilha. No nível local, um estudo sobre a área de Guira de Melena mostrou o impacto da política de reconcentración sobre os padrões de mortandade, o tamanho das pessoas e o impacto sobre os ossos delas (PÉREZ GUZMÁN, 1998). O estudo mostrou como as desigualdades aumentavam e atingiam as possibilidades de sobrevivência. Muitas pessoas mais pobres e trabalhadoras do campo tiveram que trabalhar a serviço doméstico dos mais ricos ou militarizados nas obras de fortificação dos centros de reconcentración.

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PRIMEIRAS APLICAÇÕES NA PENÍNSULA IBÉRICA: A “GUERRA DE FRONTEIRA” DE FRANCO EM ASTÚRIAS. Já antes da Guerra Civil, determinados grupos começaram a se destacar na implementação de políticas e práticas repressivas. No exército franquista, as forças coloniais de choque encontravam-se entre esses grupos. Muitos dos generais chave na sublevação contra a República em julho de 1936 eram africanistas, oficiais dos corpos coloniais do Norte da África. Após a perda de Cuba, Porto Rico e Filipinas em 1898, a Espanha mantinha pequenos territórios imperiais em Guiné Equatorial e no Norte da África. Várias faixas de terra e cidades, Ceuta Tetuão e Melilla, encontravam-se no meio de dois competidores bem maiores, a França e o Reino Unido. As lutas contra as tribos do Rife, os independentistas árabes, eram duras, e a mentalidade de assédio, machismo e mistificação em relação à morte eram centrais entre os militares africanistas. Com base nessas ideias, o general Franco havia fundado um corpo de elite, os Legionários, em uma fase muito formadora da sua vida. Como ele mesmo falou para o jornalista Manuel Aznar durante a Guerra Civil: “Sem África não consigo me explicar nem para mim nem para os meus companheiros de armas” (PRESTON, 1994: 16). O saque, a violência sexual contra as mulheres e a execução exemplar faziam parte das práticas já desenvolvidas pelos Legionários na guerra colonial desde bem antes da República, nos anos 20 (PRESTON, 1994). Durante a ditadura do General Primo de Rivera, em uma visita à África, o ainda jovem general Franco e os seus Legionários já haviam escandalizado o Ditador por conta de suas brutalidades para com as populações árabes locais. Entre as práticas exemplares dos africanistas era frequente a exposição de membros amputados. Em 1926, uma duquesa da alta sociedade, que havia doado dinheiro para os Legionários, recebeu como presente uma cesta contendo, entre flores, duas cabeças decapitadas de membros das tribos do Rife (PRESTON, 1994: 76). A Ditadura de Primo de Rivera e a monarquia terminaram, e o regime constitucional e democrático da II República Espanhola foi estabelecido em 1931. A República legalizou vários movimentos políticos e organizações sindicais até então perseguidos, fez avanços pela separação da Igreja e do Estado e empreendeu uma reforma agrária. Todas essas tentativas de transformação sociopolítica foram sabotadas pelos partidos e organizações sociais das forças sociais tradicionalmente privilegiadas. A República não satisfez muitos dos anseios de redistribuição e justiça social propostos por essas organizações e que atingiam uma grande parte da população da desigual Espanha da década de 1930. Tanto os governos de esquerda política quanto o regime legal, e a ideia de governo democrático e popular, ficavam muito debilitados por cada militarização dos

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conflitos sociais. A direita antirrepublicana, em contrapartida, se fortalecia. Em 1933, ganhou as eleições uma coalizão de partidos de direita. Quando em 1934, na região mineira de Astúrias, aconteceu um grande levantamento insurrecional. Nessa altura, sob as siglas UHP (Uníos Hermanos Proletarios) uma greve geral virou um levante de aspirações revolucionárias. O governo declarou o Estado de Exceção e concedeu o controle de Astúrias e o gabinete de governo ao ainda jovem General Franco, “estrela militar” do Norte da África. As tropas africanistas compostas por Legionários e tropas árabes de ocupação e policiamento e treinadas nas lutas contra as tribos do Rife encararam a repressão como se fosse uma guerra de ocupação colonial. O Código de Justiça Militar de 1890 foi aplicado na “pacificação” da região. O saque, as violências sexuais e o raspar do cabelo das mulheres aterraram a região. As estratégias de controle local e as atuações que os africanistas tinham aplicado na guerra colonial no Rife para se apropriar de jeito irreversível do território foram aplicadas em Astúrias. A desumanização do inimigo, própria do confronto colonial (ou da justificação da escravidão), também não demoraram. O próprio Franco, justificando o trato inumano dos africanistas que escandalizaram alguns membros do próprio exército (PRESTON, 1994; 2011), redefinia assim os limites do humano: “Esta guerra es una guerra de fronteras, y los frentes son el socialismo, el comunismo y todas cuantas fuerzas atacan a la civilización para reemplazarla por la barbárie” (PRESTON, 2011: 132). Na aplicação do Código de Justiça Militar os africanistas julgaram milhares de pessoas por rebelião, inclusive membros do próprio exército. Nessa altura, não houve campos de concentração, mas calcula-se em 30 ou 40.000 o número de pessoas que lotaram as cadeias (PRESTON, 1994). DA RECONCENTRACIÓN DE CÁDIZ AOS CAMPOS DE GALÍCIA NA GUERRA CIVIL ESPANHOLA Em 18 de julho de 1936, pouco tempo após uma nova vitória eleitoral da esquerda, uma parte do exército insurgiu um golpe de estado contra a Segunda República da Espanha, apoiado pela Igreja Católica e pelos setores mais privilegiados da sociedade. A sublevação dos militares foi um sucesso imediato no Marrocos espanhol, mas revelouse pior do que o esperado no resto da Península. Nas cidades maiores, como Madrid, Barcelona ou Bilbao, os militares golpistas foram contidos ou depostos nos primeiros dias após o golpe de 18 de julho. A resistência de uma parte do exército, do governo e das organizações sociopolíticas obrigou os militares sublevados a desatarem uma guerra de três anos (1936-1939) até estabelecerem a ditadura do General Franco (19391975).

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Entre as figuras mais destacadas do lado franquista encontravam-se, nos primeiros momentos da Guerra Civil, africanistas como o General Mola, de grande importância entre os generais golpistas. Desanimado no começo, Mola queria se retirar para a sua Cuba natal. Mas, animado pelos sucessos de outros africanistas como o General Varela em Navarra – já destacado na repressão asturiana de 1934 – Mola ajudou a organizar o golpe. Mola emitiu uma série de instruções para a rendição rápida do inimigo, dentre as quais podemos destacar o recurso às forças coloniais: “Moras Regulares, Mehal-las, Harkas e polícia indígena”. (PRESTON, 2011: 195). Durante a Guerra Civil, os campos de concentração viajaram, junto com táticas de choque similares, da África para Espanha (BALFOUR, 2002). As práticas concentracionárias seguiram o avanço do exército franquista desde o Marrocos espanhol, onde o golpe de Estado atingiu os seus primeiros sucessos. Nas praças militares de Tetuão e Melilla, e a fronteira com Tanger, foram detidos os primeiros inimigos em lugares frequentemente descritos na documentação como “campos de concentración” ou “depósitos”. Sob a declaração do Estado Exceção eram detidos em terríveis condições, “seguidores republicanos, obreiros, soldados, membros de lojas maçônicas e judeus” suspeitos do delito de rebelião (BALFOUR, 2002: 497). Fortalezas militares, capitanias e prisões foram os primeiros prédios reutilizados como campos de concentração. As testemunhas orais do historiador militar da Guerra de Marrocos, Sebastian Balfour recordavam que os concentrados faziam trabalhos forçados, e que os membros do partido fascista Falange tinham acesso aos campos. Os membros da Falange reconheciam e selecionavam as pessoas que seriam executadas. Uma das primeiras cidades conquistadas no Sul, no caminho dos sublevados de Marrocos à Madri, é Cádiz. As casas foram registradas, e “liberais de esquerdas, maçons e sindicalistas” (PRESTON, 2011: 198) foram detidos em massa. As prisões e o cassino da cidade encheram-se de inimigos dos sublevados, que foram torturados e executados em grande número. Um “Tribunal do Sangue” executou 600 deles em cinco dias. A cidade de Cádiz estava separada da Península por uma ponte, as Puertas de Tierra, cujo fecho permitiu um controle total sobre o espaço urbano (PRESTON, 2011), ao reconcentrar a população como em Cuba entre 1896-1898. Os espaços de detenção, execução e tortura desses inimigos apareciam de forma dispersa e improvisada em um primeiro momento. Durante o ano de 1937, os acontecimentos militares mais importantes da Guerra Civil trasladaram-se ao Norte da Península Ibérica. Desde a primavera de 1937 até o final do ano foram conquistadas as praças militares de Santander, O País Basco e Astúrias. Galícia, no extremo Oeste da faixa Cantábrica do norte peninsular, já tinha sido conquistada pelos militares durante os primeiros dias do golpe de Estado e partici-

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pou da fase de desenvolvimento industrial dos campos de concentração (RODRÍGUEZ TEIJEIRO em DE JUANA E PRADA, 2006; DOMÍNGUEZ-ALMANSA, 2008; SANTOS JULIÁ, 1999). Durante a Guerra Civil morreram 4.000 pessoas, executadas na Galícia. A declaração do Estado de Exceção desencadeou e sancionou uma situação de caçada aos suspeitos por grupos paramilitares. O exército foi declarando o Estado de Exceção em cada pequeno vilarejo, vila e cidade de cada comarca, aplicando o Código da Justiça Militar de 1890. A concentração dos inimigos, a sua identificação e o seu julgamento foram centralizadas por instituições cada vez mais focalizadas no espaço concentracionário e nos pormenores de sua gestão. Desde Março de 1937, Franco confiou o trabalho de coordenar a identificação e a classificação dos inimigos a Luis de Orgaz, africanista experiente que tinha organizado o serviço de formação e recrutamento das tropas coloniais. A instituição comandada por ele visava à Mobilização, à Instrução e à Recuperação dos prisioneiros (RODRIGO, 2003). Em maio do mesmo ano, criou-se a ICCP (Inspección de Campos de Concentración de Prisioneros), que teve no norte da Península Ibérica uma das suas áreas fundacionais de atuação e desenvolvimento sob a nova direção de Luis Martín de Pinillos (RODRIGO, 2005). As práticas de identificação, de reclusão, de execução e de aplicação de trabalhos forçados se industrializaram e massificaram, como parte do grande processo de construção de um maquinário militar. A área de Galícia, que tinha sido industrializada em sucessivas ondas desde o século XIX, oferecia boas comunicações por mar e muitos prédios industriais vazios. Deve-se a Luis Martín Pinillosa perspectiva técnica sobre os campos de concentração e o maior esforço em adaptar os prédios empregados como campos. Por meio de um discurso altamente técnico e da insistência na qualificação de uma grande equipe de engenheiros, a ICCP de Pinillos pretendia um controle e uma transformação totais dos prisioneiros por meio de um altíssimo controle do espaço em que a vida dos prisioneiros se desenvolvia. Em Galícia, criou-se “toda uma rede de campos em funcionamento entre 1937 e 1938” (TEIJEIRO, Op. Cit. P. 288). A queda de Santander em fins de Julho e começo de Agosto de 1937, motivou a criação dos campos de Cedeira, Ferrol, Muros, Rianxo e Camposancos (Op. Cit. p. 289). Depois da ocupação de Gijón, Astúrias, foram estabelecidos em Galícia os campos de concentração de Ribadeo e Santa María de Oia. Os processos por rebelião militar se massificaram até o ponto de exigir a multiplicação e o traslado de auditorias militares para a classificação, o julgamento e a punição de 100.000 pessoas, entre 1937 e 1938. A acusação mais frequente era a de rebelião ou auxílio à rebelião. Para Pinillos, o problema que eles representavam como categoria social ia muito além do inocente ou culpado e devia ser respondido também arquiteto-

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nicamente. Os relatórios da ICCP constituem uma valiosa fonte para a compreensão da concepção de Pinillos sobre suas responsabilidades. Depositados no AGMAV2 (Archivo General Militar de Ávila) os documentos descrevem a acumulação de prisioneiros em prédios improvisados como um problema “grave, magno e urgente”; um problema que exigia uma atenciosa “colocação e estudo”. Esse argumento da ICCP – a sua própria especial qualificação – percorre todas as comunicações e acompanha o conjunto da proposta do projeto social para os campos. A qualificação especial era a base de sua própria idoneidade para resolver o “problema”, para gerenciar a nova vida que surgia nesses novos lugares. Assim, a ICCP falava nesse documento das classes desses indivíduos, e do seu número, mas também da sua “categoria”, que devia ser esclarecida. Enfatizava-se também a ideia de um regime especial e específico, já fortemente caraterizado pelos trabalhos forçados. Além da ideia de classificação, a ICCP ocupava-se das questões orçamentais, especialmente da adaptação dos espaços para essa “nova vida”. Mas começa a estabelecer conexões mais específicas, mais expressas, entre essa nova vida e os espaços concretos onde ela iria se desenvolver. Junto com o critério enfatizado da urgência, e o compartilhado dos custos reduzidos e rapidez, as relações que a ICCP propôs começaram a ter uma tradução espacial, arquitetônica. Junto com mosteiros e escolas, os prédios industriais galegos forneciam pátios centrais onde se tornava fácil identificar, controlar e julgar. Sobre essa paisagem, projetavam-se questões sobre o “regime” ao qual os presos iam estar submetidos. Se ele ia ser “celular ou de aglomeração” sendo as condições de sua vida dependentes destas e de outras categorias. A especificidade da vida a ser gerenciada no interior exigia algumas transformações materiais nos prédios, que deviam ser detalhadas em materiais e lugares que veiculassem as relações necessárias entre os presos. Dependendo dessas relações a serem criadas com eles e entre eles, a ICCP projetava “condições” específicas nos edifícios. E também construções e lugares específicos: “a sua distribuição em grupos”, por exemplo, podia exigir “recintos interiores de separação”; as suas atividades, “pátios ou espaços livres reservados para passeios e exercícios”. Assim, os campos de concentração foram os primeiros lugares adaptados ex novo para conter os inimigos presos, a primeira solução arquitetônica específica da ICCP para o “problema dos prisioneiros”. Nada traduzia a novidade da “solução arquitetônica” que a instituição propunha como os barracões que propôs construir no Penal Del

2 As citações aqui mencionadas procedem do citado arquivo, das carpetas e folhas AGMAV, C. 2324, L. 46BIS, Cp. 1-12 e Documento AGMAV, C. 2330, L.57, Cp. 48-2. Já obarracón procede de AGMAV, C. 2329, 53, 16, 13.

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Dueso, adaptáveis a qualquer lugar e que reproduziam as condições ótimas de habitação que deviam imperar em um campo. A região Norte de Espanha em geral, durante os anos 1937 e 1938, e a Galícia em particular fornecem um ponto crítico no desenvolvimento tecnológico dos campos de concentração franquistas. Junto com os barracões, foram prescritas outras normas como a necessidade de colocar no centro dos pátios e em posição bem visível a bandeira da Espanha. Frente a ela deviam se ler periodicamente alguns dos artigos do Código de Justiça Militar. No interior daqueles pátios começaram algumas das práticas que depois viraram frequentes no exterior dos campos, como a saudação à romana, os três vivas a Franco, etc. que continuaram nas escolas e lugares públicos, inclusive depois do fechamento dos últimos campos, em 1947. CONSIDERAÇÕES FINAIS É difícil calcular o número exato de mortos em longa duração, mas no final da Guerra Civil Espanhola, cerca de 277.000 pessoas viviam encerradas em campos de concentração e 90.000 trabalhavam na rede de trabalhos forçados que eles ajudaram a articular (RODRIGO, 2008 apud GONZÁLEZ-RUIBAL, 2011: 57). Pelos campos passaram por volta de 500.000 prisioneiros e as condições de vida neles mataram de fome, enfermidades infecciosas e agressões físicas. A consideração de inimigos da Nova Espanha em construção pelos franquistas propiciou uma insistente fabricação da imagem dos republicanos como vermelhos. A intervenção da União Soviética foi uma consequência e não uma causa da Guerra Civil Espanhola, e o sucesso do Partido Comunista Espanhol veio da sua capacidade de organização da oposição democrática contra a ditadura e depois da Guerra. Estudando as políticas de memória da Espanha franquista e pós-franquistas, a antropóloga Layla Reinshaw insiste no caráter quase racial adquirido pela categoria dos vermelhos (p. 62). Reinshawa propõe como um “equivalente estrutural” do termo negros nas colônias da Espanha, onde a cor serviria como um pretexto para tentar introduzir no sangue do outro uma condição inferior. Podemos considerar os campos de concentração como lugares de produção em massa desse estigma que foi o vermelho. Os campos eram os primeiros lugares especificamente desenhados para a identificação, a classificação, a contenção e a agressão dos vermelhos para as suas vidas de segunda categoria. A condição estendia-se a familiares, amigos e bairros inteiros, marcando uma procedência supostamente subordinada. Sob a organização tecnológica da ICCP, as práticas de identificação massiva, de concentração, de punição e de trabalhos forçados adquiriram uma categoria massificada. Todas elas adquiriram um âmbito específico de desenvol-

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vimento técnico nos campos franquistas e na ICCP uma problematização tecnológica. Se os campos, especialmente os galegos, oferecem um exemplo de desenvolvimento industrial, eles só unificaram velhos instrumentos com que os franquistas cinzelaram na carne dos seus inimigos todos os seus medos da transformação.

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Arqueologia Pública Revista de

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ARQUEOLOGIA EM CONTEXTOS DE REPRESSÃO E RESISTÊNCIA: A GUERRILHA DO ARAGUAIA

Patricia Sposito Mechi Michel Justamand

Dossiê

No. 10 ISSN 2237-8294 dezembro de 2014

ARTIGO

ARQUEOLOGIA EM CONTEXTOS DE REPRESSÃO E RESISTÊNCIA: A GUERRILHA DO ARAGUAIA Patricia Sposito Mechi1 Michel Justamand2 RESUMO O artigo discute a abordagem interdisciplinar no estudo de contextos de repressão e resistência, focando especificamente na contribuição arqueológica para o desvendamento das histórias ocultadas da última ditadura brasileira a partir do caso da guerrilha do Araguaia. Para isso, são levantados alguns aspectos deste que foi um dos episódios mais violentos do período, indicando temas identificados a partir da análise das fontes e da bibliografia disponível, em que a arqueologia pode oferecer relevantes contribuições. Palavras-chave: arqueologia; ditadura; repressão; resistência; guerrilha do Araguaia. ABSTRACT The article discusses the interdisciplinary approach to the study of contexts of repression and resistance, focusing specifically on archaeological contribution to revealing the hidden stories of the last Brazilian dictatorship, from the case of the Araguaia’s guerrilla. In this regard, some aspects of this are raised, which was one of the most violent episodes of the period, indicating themes, identified from the analysis of the sources and the available literature, in which archeology can provide relevant contributions.

1 Professora adjunta da UFT – Universidade Federal do Tocantins. Doutora em História Social pela PUC-SP. Líder do Centro de Estudos de História da América Latina do Tocantins (CEHALTO), pesquisadora do Centro de Estudos de História da América Latina (PUC-SP) e do grupo de pesquisa Arqueologia da repressão e da resistência (UNICAMP). E-mail: patriciamechi@

hotmail.com

2 Professor adjunto da UFAM – Universidade Federal do Amazonas, Pós-Doutor em História, Doutor em Antropologia e Graduado em História pela PUC-SP; e vinculado ao grupo de pesquisa Arqueologia da repressão e da resistência (UNICAMP). E-mail: micheljustamand@

yahoo.com.br

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Keywords: archeology; dictatorship; repression; resistance; Araguaia guerrilla. Resumen: El artículo analiza el enfoque interdisciplinario en el estudio de los contextos de represión y resistencia, centrándose específicamente en la contribución arqueológica para revelar las historias ocultas de la última dictadura brasileña desde el caso de la guerrilla de Araguaia. Para eso, son levantados algunos aspectos de este que se trata de uno de los episodios más violentos de la época, indicando temas identificados a partir del análisis de las fuentes y la literatura disponible, en los que la arqueología puede proporcionar contribuciones pertinentes. Palabras clave: arqueología; dictadura; represión; resistencia; guerrilla de Araguaia.   DITADURAS NO BRASIL E NA AMÉRICA LATINA, FONTES HISTÓRICAS E ARQUEOLOGIA Uma das características da ditadura civil-militar brasileira que vigorou no país entre 1964 e 1985 foi o fato de esconder as práticas repressivas que se desenvolviam tanto contra militantes quanto contra a população comum, ambos vistos, pela ótica do regime, como potenciais subversivos. A este ocultar em vigor à época, somou-se, após o fim da ditadura, um esforço por parte dos agentes da repressão, para apagar os sinais dessas atividades. Foram feitos mutirões em delegacias para desaparecer com indícios comprometedores, destruiu-se documentos em órgãos públicos e as instituições militares recusam-se, até os dias atuais, em disponibilizar seus arquivos do período. Por outro lado, a dinâmica própria dos setores de repressão durante a ditadura fez com que estes replicassem documentos, que eram enviados às diversas instituições e instâncias do poder, o que traz algum alento aos pesquisadores. Como vem revelando os recentes estudos sobre a estrutura da repressão, ela era ramificada, composta de elos legais e ilegais e obedecia a uma cadeia de comando, que incluía desde a Presidência da República, no topo e, em geral, oficiais de baixa patente na ponta (STARLING, 2014). Entretanto, mesmo com o volume de informações disponíveis, pode-se tomar como certo que houve atividades repressoras que, pela sua natureza, não deixaram registros escritos. É o caso, por exemplo, dos centros clandestinos de tortura e desaparecimento que existiram no período da última ditadura, dos quais foram identificados mais de quinze centros (IDEM). A historiografia e outras ciências que se valem de registros do passado para investigar as sociedades sempre lidaram com registros escritos fragmentários por diversos motivos. Dificuldades ou falta de interesse em preservar e armazenar a

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documentação são realidades constantes enfrentadas por estudiosos de diversos temas. No Brasil, talvez o caso mais conhecido de destruição deliberada de documentos caros aos historiadores refira-se aos da escravidão, queimados em 1890 por ordem de Ruy Barbosa, quando era Ministro da Fazenda, durante o governo de Deodoro da Fonseca. Mesmo em períodos ditos democráticos, as práticas dos órgãos repressivos são difíceis de serem rastreadas por meio de registro escrito, já que muitos desses órgãos fomentam práticas que se situam fora da lógica da legalidade instituída por essas mesmas sociedades. Certamente, a primazia do documento escrito oficial, considerado como “portador da verdade”, foi a muito deixada de lado por profissionais da área, que buscam compreender o documento em seu momento de produção; entretanto, se perdeu a primazia, isso não significou seu abandono como fonte e se reconhece que em determinados temas, em particular aqueles que se centram no estudo do Estado, das práticas de governos e suas instituições, o registro escrito oficial ainda tem importância fundamental. Se o alargamento das possibilidades documentais não excluiu delas o documento escrito, somam-se a eles outras fontes de análise, num campo constantemente enriquecido com novos aportes, como os fotográficos, sonoros, artísticos, orais, além de outros vestígios da cultura material. Assim, sobre registros escritos lacunares ou inexistentes, destruídos deliberadamente ou por negligência, é possível contar com outras fontes documentais, como as citadas acima. Nesse aspecto existem cada vez mais frequentemente, esforços interdisciplinares sobre temas que apresentam grande interesse e relevância social. Nosso foco no presente artigo é problematizar um dos campos que é capaz de trazer contribuições relevantes para estas investigações; trata-se da arqueologia, em particular, a arqueologia histórica, como é conhecida a vertente que estuda os vestígios humanos mais recentes, e que é, em muitos casos, politicamente engajada. No presente texto, nos voltamos para os temas da última ditadura brasileira, tomando como caso a guerrilha do Araguaia. Os estudos arqueológicos têm contribuído para os esforços que vêm se realizando em alguns países latino-americanos, para resgatar as histórias ocultas, encobertas ou esquecidas e deliberadamente distorcidas da vaga ditatorial que assolou diversos países do continente a partir da segunda metade do século XX. A análise da documentação dos períodos ditatoriais, necessariamente lacunar e fragmentária, se beneficia das técnicas, reflexões e problematizações próprias da arqueologia. Como afirmam Justamand, Mechi e Funari, ela “emerge como a ciência que contribui para o esclarecimento dos procedimentos repressivos e para a recuperação da história dos desaparecidos” (JUSTAMAND et alii, no prelo). Em sua origem, a arqueologia esteve a serviço do imperialismo, e forneceu explicações, instrumentos e “provas” da superioridade do homem branco europeu.

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Esteve vinculada aos grandes projetos de dominação do capitalismo imperialista em sua expansão sobre o mundo, interferindo de maneira decisiva e irreversível em diversas comunidades espalhadas pelo globo. Muitos grupos humanos desapareceram, outros foram submetidos de formas variadas aos desmandos das potências. Nesse contexto, a arqueologia vinculou-se aos projetos levados a cabo pelos opressores. A despeito de sua origem, contemporaneamente a arqueologia tem apresentado cada vez mais potencial para recuperar as histórias dos excluídos, minorias, daqueles que não tiveram registros escritos. Apesar de nos acostumarmos a pensar na Arqueologia como o estudo do passado mais antigo, ela tem se notabilizado por permitir a realização de pesquisas em períodos contemporâneos. Ela oferece aporte, inclusive, para atividades de pesquisa no campo da chamada “História do Tempo Presente”. No Brasil, o movimento de aproximação da arqueologia com as questões sociais teve início com o final da ditadura civil-militar, período em que o campo padeceu de uma linha autoritária, silenciando pesquisadores que pretendiam uma renovação, como Paulo Duarte. Entretanto, a partir dos anos de 1980 foi possível contribuir com a reescrita da história de diversos temas, tais como Canudos, Contestado, movimentos de resistência à escravidão, história dos povos indígenas, entre tantos outros. No que se refere ao estudo da ditadura civil-militar, a dinâmica própria de seu encerramento e a vigência – ainda nos dias atuais – da Lei de Anistia, que buscou “esquecer” os crimes cometidos pelos agentes do estado. Num movimento que servia menos aos perseguidos políticos do que aos próprios algozes, dificultou os estudos sobre a ditadura, em particular sobre o funcionamento da estrutura da repressão, as torturas, os desaparecimentos e mortes promovidas pelo regime. Como já mencionado, ao fim da ditadura muitos dos documentos que poderiam esclarecer aspectos do regime foram destruídos, prática que se seguiu após o término da ditadura. Ainda hoje, pesquisadores enfrentam dificuldade para pesquisar, já que em muitas instituições ainda é negado o acesso a documentos que são públicos3. Sobre essa história pairam poderosos entraves políticos e ideológicos. Assim, para que seja contada, revelada e problematizada, a arqueologia pode oferecer luzes para recuperar aquilo que o registro oral ou escrito nem sempre é capaz de revelar, ou que as lacunas deixadas pela ação de destruição e negação de acesso aos documentos tornam inteligíveis. Por meio das análises de vestígios materiais deixados em centros de detenção, tortura e morte, celas oficiais ou improvisadas, ou por meio de 3 É o caso, por exemplo, da equipe de pesquisadores do projeto “Memória, Verdade e Justiça no Tocantins”, do Centro de Direitos Humanos de Palmas em parceria com a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, da qual uma das autoras deste artigo faz parte; algumas instituições visitadas no estado do Tocantins negam ou dificultam o acesso à documentação.

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escavações, a ciência arqueológica pode fornecer novos dados e dar voz a aqueles que foram silenciados pela brutalidade da ditadura. Esse aspecto evidencia uma dimensão democrática da arqueologia; em contraponto à sua origem opressora, atualmente ela possui mecanismos que permitem desmontar as versões oficiais divulgadas pelos regimes ditatoriais (FUNARI et alii, 2008). A arqueologia, no tocante à história da última ditadura brasileira, com recursos escassos, já atuou, por exemplo, nas escavações realizadas no cemitério Dom Bosco, no bairro paulistano de Perus, onde existe uma vala clandestina, que continha mais de mil ossadas sem nenhuma identificação, acondicionadas em sacos plásticos, que seriam de “indigentes”; a vala ainda hoje é objeto de estudos, em particular da Comissão da Verdade de São Paulo. Outro caso importante em que a arqueologia atua é na recuperação dos desaparecidos na região da guerrilha do Araguaia, que se apresenta a seguir com maior detalhamento.

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Fig. 1: Área da guerrilha do Araguaia: Bases guerrilheiras e militares

ARQUEOLOGIA E GUERRILHA DO ARAGUAIA A guerrilha do Araguaia ocorreu entre os anos de 1972 e 1974, numa região fronteiriça entre os estados do Pará, Maranhão e Tocantins (à época norte de Goiás), em torno da região tocantinense conhecida como “Bico do Papagaio”. A região se tornou

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conhecida nacionalmente por ser palco de sangrentos conflitos em torno da posse da terra, com inúmeras vítimas fatais. A guerrilha foi organizada pelo Partido Comunista do Brasil (PC do B), que enviou cerca de setenta militantes à região, a maioria deles desaparecidos até hoje, e é considerada pela historiografia sobre o tema como a mais duradoura e importante experiência de luta armada no campo contra a ditadura civilmilitar (MECHI, 2013). Costuma-se dividir a repressão à guerrilha do Araguaia em três fases, tendo como critério as campanhas militares desenvolvidas na região. Delas, a terceira e derradeira campanha foi a mais violenta, resultando na prisão, tortura e morte de militantes e camponeses. A guerrilha ocorreu numa área de selva densa. Os militantes do PC do B começaram a chegar à região em 1966 e puderam ir se ambientando à vida rural, aproximandose dos costumes, meios e modos de vida da população residente na região. Também puderam se familiarizar com a mata, fazendo treinamentos, montando pontos de apoio, identificando locais de possível refúgio, estradas principais e secundárias. Entretanto, dadas as dificuldades de guiar-se pela mata, a partir de sinais que não são conhecidos daqueles que passaram boa parte da vida em centros urbanos (caso da maioria dos militantes), este foi um trabalho muito lento e nem todos puderam desenvolver plenamente esta habilidade. O militante Glênio de Sá, por exemplo, esteve perdido na floresta por mais de um mês. Em relato sobre sua participação na guerrilha, afirma que se destacava por suas habilidades de caçador, mas que era péssimo em orientação (SÁ, 1990). Glênio foi um dos primeiros militantes a chegar à região e, apesar do treinamento, não desenvolveu um senso de orientação na mata apurado. Afirmava-se na região que “na mata ninguém é bom”, e mesmo mateiros4 experientes se perdiam com frequência. Entre os militantes, também era frequente que se perdessem na mata. Mechi afirma que: O diário de Maurício Grabois contém inúmeros relatos de atrasos em “pontos” marcados entre os guerrilheiros, pois estes se perdiam nas matas. Michéas Gomes de Almeida (Zezinho, ou Zezinho do Araguaia) considerado o melhor mateiro entre os guerrilheiros, entrou e saiu algumas dezenas de vezes da área da guerrilha, foi responsável pela retirada de alguns militantes da região, como a guerrilheira Criméia Schmidt Almeida (Alice) e Ângelo Arroyo (Joaquim). Era a pessoa que fazia a ligação da guerrilha com o partido, trazendo dinheiro, suprimentos e outros materiais para a área. Zezinho atrasava-se com frequência, às vezes por alguns dias, pois freqüentemente se perdia na mata ao tentar encontrar seu acampamento. As dificuldades para orientação nas matas eram tão grandes que algo impensável no contexto da

4 Também conhecidos como guias, os mateiros são encontrados em diversas regiões do país. São eles que guiam pesquisadores de áreas como a arqueologia, biologia, geologia, entre outras, em seus trabalhos de campo. São também guias de turistas em regiões de difícil acesso, tais como o Jalapão, no Tocantins, onde há uma cidade intitulada “Mateiros’.

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guerrilha urbana era corriqueiro na região: havia uma tolerância para atraso aos “pontos” de até 48 horas (MECHI, 2012: 208).

Assim como os militantes (que após a deflagração da guerrilha passaram a ser denominados guerrilheiros) e, em alguns casos, os próprios moradores do local, as forças repressivas tiveram imensa dificuldade com a mata. Para conseguir sucesso na atividade repressiva, os militares obrigaram vários moradores a trabalharem como guia do Exército. Foi na terceira campanha que se utilizou mais sistematicamente os conhecimentos dos moradores locais sobre a mata e que, efetivamente, se conseguiu exterminar a guerrilha. Esse aspecto é importante de ser levantado, pois esse contato mais próximo entre os moradores locais e as Forças Armadas fez com que os primeiros tomassem conhecimento de quais guerrilheiros foram assassinados, em que circunstâncias e em alguns casos, indicar se houve sepultamento e em quais locais. Foi a partir de informações prestadas por moradores que o Ministério Público dos estados do Pará, São Paulo e Distrito Federal puderam levantar que 21 guerrilheiros teriam sido presos pelas Forças Armadas, dos quais 18 foram vistos nas bases militares; todos atualmente constam nas listagens de desaparecidos e não existem registros oficiais sobre essas prisões e mortes (MINISTÉRIO PUBLICO FEDERAL, 2002). Evidencia-se, assim, a íntima relação que se estabeleceu, para o esclarecimento dos episódios de violação dos Direitos Humanos na região da Guerrilha do Araguaia. Tanto entre os moradores locais, afetados sobremaneira pela repressão que se dirigiu também contra eles à época, quanto àqueles interessados em saber sobre o destino dos mortos e desaparecidos na guerrilha, entre eles familiares e pesquisadores de diversas áreas. Convém destacar, contudo, que a movimentação em torno do esclarecimento das circunstâncias das mortes e desaparecimentos, seja na guerrilha do Araguaia, seja em outros episódios da ditadura, tem sido protagonizada pelas organizações de familiares e teve início antes do término da ditadura. No caso da guerrilha do Araguaia, a atuação dos familiares foi responsável direta pela aprovação, em 1995, da Lei nº 9140, de dezembro de 1995 (IDEM), que resultou numa missão na região dirigida pela Comissão Especial dos Mortos e Desaparecidos Políticos, criada no âmbito do Ministério da Justiça. Nesta missão, foi contratada a E.A.A.F. – Equipo Argentino de Antropologia Forense, já que à época não existia no país equipes de arqueólogos com o mesmo know-how da equipe argentina, adquirida nos anos anteriores, durante os trabalhos de resgate e identificação de restos mortais de militantes assassinados naquele país. Na ocasião, as escavações da equipe localizaram os restos mortais de duas

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pessoas: os de Maria Lucia Petit, identificada em 1996, e os de Bergson Gurjão Farias, encontrados naquela missão, mas identificado apenas em 2009. Apesar do resultado, a EAAF pontuou que os resultados poderiam ser mais satisfatórios “caso fosse realizada uma investigação prévia, visando levantar mais dados sobre possíveis pontos de sepultamento” (IDEM). Foram feitas novas investigações a partir da recomendação da equipe argentina, que tinham como objetivos: (a) reunir informações que permitissem identificar eventuais locais de sepultamento das pessoas mortas durante os combates e, se for o caso, participar de escavações, e (b) produzir documentos oficiais sobre esse episódio recente da história brasileira, enquanto concretização dos direitos fundamentais à informação e à verdade (IDEM). Essas investigações foram feitas no ano de 2001. No mês de julho, foi realizado o trabalho de levantamento de informações, que resultou em 55 depoimentos de moradores locais que tiveram contato com a guerrilha; ainda em finais de julho e, posteriormente, em dezembro, foram escavados alguns dos pontos identificados durante os depoimentos dos moradores. Esse trabalho contou com o apoio técnico dos arqueólogos do museu Emílio Goeldi e com um médico legista de São Paulo (IDEM). Nesta missão, foi verificada a existência de quatro principais bases militares, além de outras menores ou temporárias (em regiões como: Oito Barracas, no município de São Domingos do Araguaia; São Raimundo, lugarejo situado entre São Domingos do Araguaia e São Geraldo do Araguaia, além da base no município de Araguatins, entre outros). As principais bases foram assim identificadas: 1. Na cidade de Marabá – PA, mediante a utilização de 3 imóveis: sede do DNER (identificada pelos depoentes como “Casa Azul”), sede do INCRA, e um presídio militar (da PM ou do antigo grupamento de Tiro de Guerra, a depender da fonte). As instalações de Marabá foram utilizadas para interrogatórios e prisão de suspeitos de participar ou colaborar com os guerrilheiros, e possuíam pista de pouso; 2. Na localidade da Bacaba, sita no km. 68 da Rodovia Transamazônica (Município de São Domingos do Araguaia - PA), no local em que ficava o canteiro de obras utilizado pela construtora Mendes Junior na construção dessa rodovia. Nessa base havia pista de pouso, e uma grande área para a detenção de camponeses suspeitos, além de alojamentos para os militares e prisões para interrogatórios; 3. Na cidade de Xambioá (então Estado de Goiás, hoje Estado de Tocantins), às margens do Rio Araguaia. Também tinha pista de pouso e funcionou como prisão e local de interrogatórios. Foi a base das operações pelo Rio Araguaia;

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4. Na cidade de Araguaína, então Estado de Goiás, hoje Tocantins (IDEM). As informações desse relatório sobre essas bases militares permitiram que se desenvolvessem pesquisas posteriores na região, inclusive as que estão em curso, promovidas pela Comissão Nacional da Verdade. Atualmente, a base militar identificada na cidade de Marabá, é considerada um dos seis centros clandestinos de tortura e desaparecimentos, identificados oficialmente em 2014, mas cuja existência, os estudiosos e familiares já sabiam há alguns anos. Apesar de identificadas as bases, nas escavações realizadas em 2001 não se encontraram evidências de sepultamento. Isso provavelmente decorre por causa das profundas mudanças ocorridas na paisagem depois de mais 40 anos do início da guerrilha, além da realização, após a guerrilha da “Operação Limpeza”, em que os militares retornaram à região para apagar os vestígios das violações que praticaram na região. Isso evidencia a necessidade de maiores investimentos para a realização dos trabalhos, que carecem de aportes tecnológicos mais sofisticados. Em 2010, o Estado Brasileiro foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos – órgão da Organização dos Estados Americanos – pela guerrilha do Araguaia. A sentença prevê que o país deve dar conta “do paradeiro das vítimas e identificar e entregar os restos mortais aos seus familiares, além de prestar atendimento médico, psicológico e psiquiátrico quando necessário” (MECHI, 2013: 30). Graças a essa condenação, quase uma década depois, os trabalhos foram retomados no Araguaia. Foi criado o Grupo de Trabalho Araguaia (GTA), coordenado pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR) e pelos Ministérios da Justiça e Defesa. Já foram realizadas cinco expedições na região, a maior parte delas no cemitério de Xambioá. O GTA resgatou até o momento mais de 20 ossadas, ainda não identificadas. Entretanto, nas escavações também foram encontrados vestígios materiais que podem revelar aspectos ainda não esclarecidos das práticas repressivas, tais como garrafas, medicamentos, projéteis, pilhas, recipientes de comida vazios e até mesmo um jipe. O GTA avalia esses objetos como sinais da existência de uma base de comunicação militar no local (GRUPO DE TRABALHO ARAGUAIA, 2012). Destaque-se também que, durante a já mencionada “Operação Limpeza”, é provável que os militares tenham desenterrado algumas ossadas na região, transladando-as para outros locais, mas é possível também que outros vestígios da atividade repressiva tenham sido “sepultados” nessa ocasião, a exemplo dos mencionados acima. Outro dado que aparece na fala dos moradores e que a arqueologia pode contribuir para trazer maiores esclarecimentos, é sobre um tipo de prisão que existiu durante a guerrilha do Araguaia, dos quais os próprios moradores foram vítimas: é o “Buraco do

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Vietnã”, que consistia em: Um buraco com uma grade de ferro por cima, onde o preso era colocado junto com animais rasteiros – como insetos (formigas, aranhas, besouros) e animais não peçonhentos como o calango – e ali permanecia por dias, tomando sol e chuva. Sua alimentação e suas necessidades fisiológicas eram realizadas ali (MECHI, 2013: 29).

O nome desse tipo de prisão faz referência à guerra travada entre os Estados Unidos e o Vietnã do Sul, entre os anos de 1955 e 1975, período em que a guerrilha do Araguaia também se desenvolvia. Trata-se de um tipo de prisão não convencional, além de ser também um tipo de tortura que, sintomaticamente remete a outro episódio marcado por violações de direitos das populações locais, que foi o caso da guerra do Vietnã. Esse buraco também já foi denominado pelos moradores de “buraco de sal”, referindo-se a uma modalidade em que o fundo do buraco era revestido desse mineral. Na historiografia, há menções de prisões não convencionais em áreas de conflito rural, o que denota que este pode ser um caminho para compreender a repressão à população camponesa para além da guerrilha do Araguaia e da ditadura. Outra referência é encontrada na Revolta de Trombas e Formoso, ocorrida nos anos cinquenta no estado de Goiás, em que as prisões eram feitas num “caixote de madeira que cheirava a sangue” (ABREU, 2002). Além das práticas repressivas, a arqueologia, especialmente a histórica, pode contribuir para revelar aspectos pouco esclarecidos da dinâmica da própria guerrilha e do dia a dia dos guerrilheiros. Sabe-se que os guerrilheiros montaram pontos de apoio na mata, onde estocavam remédios, alimentos, tecidos, lonas, livros e até mesmo um microscópio (SÁ, 1990). Alguns pontos de apoio foram descobertos e destruídos pelos militares; entretanto, não se sabe, até o momento, se esses materiais foram retirados ou enterrados nos locais onde estavam. Outros pontos ainda não são conhecidos, pois segundo as regras de segurança de guerrilha, em muitos casos, apenas o guerrilheiro que montou o ponto de apoio sabia a sua localização. Apesar das dificuldades em localizálos, estes vestígios podem lançar novas luzes sobre a guerrilha. Da mesma forma, não se tem notícias que foram feitas escavações nos três destacamentos guerrilheiros, nas regiões de Faveira, Gameleira e Caiano, conforme se vê no mapa 1. Aqui se trata de outro flanco a ser explorado pela Arqueologia, que pode se munir das indicações dos moradores locais, como já tem feito nos casos de violações dos direitos humanos promovidos por agentes do estado. Poder-se-ia contar também, como fonte, com Diário de Maurício Grabois, um extenso relato do dia a dia da guerrilha, que se julgava perdido, mas que veio à tona em 2011 (GABROIS, 2012). O diário cobre o período entre 12 de abril de 1972, quando ocorreu o primeiro ataque do Exército, ao episódio do “Chafurdo do Natal”, em 25 de dezembro de 1973, quando

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PATRICIA SPOSITO MECHI e MICHEL JUSTAMAND

seu autor foi assassinado juntamente com diversos outros guerrilheiros e considera-se exterminada a guerrilha. CONSIDERAÇÕES FINAIS Procuramos levantar neste artigo alguns elementos da história da guerrilha do Araguaia que podem ser esclarecidos a partir de trabalhos arqueológicos. É de fundamental importância que se avance nos estudos dos vestígios materiais dos episódios de repressão e resistência no período ditatorial e isto só poderá ser feito de forma profunda com a criação de equipes interdisciplinares, que contem com a presença de arqueólogos. Ao avançar nesses estudos, novas questões podem surgir e novas interpretações podem ser sugeridas para a análise de outras fontes documentais, inclusive as fontes escritas. Desse modo, fica evidente que o esforço para esclarecer a natureza do contexto repressivo instituído com a última ditadura e as formas de resistência à ela devem contar com o recurso, de uma maneira mais sistemática, dos estudos arqueológicos. Sem eles, torna-se difícil avançar na questão da garantia dos direitos humanos no país e garantir o direito à memória e a verdade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABREU, S. de B. De Zé Porfírio ao MST: A luta pela terra em Goiás. Brasília: André Quicé Editor, 2002. FUNARI, Pedro Paulo; ZARANKIN, Andrés & REIS, José Alberioni dos. Arqueologia da repressão e da resistência: América Latina na era das ditaduras (décadas de 19601980). São Paulo: AnnaBlume e FAPESP, 2008. GRABOIS, Maurício. Diário de Maurício Gabrois. Disponível em: http:// www.cartacapital.com.br/wp-conten/uploads/2011/04/Di%C3%A1rio_de_ Mau%C3%ADcio_Gabrois.pdf acessado em 15 de maio de 2012. GRUPO DE TRABALHO ARAGUAIA. Relatório de conclusão. 04 de novembro de 2011, fl 22. Disponível em: http://2ccr.pgr.mpf.gov.br/coordenacao/grupos-de-trabalho/justica-detransicao/relatorios-1/relatorio-final-gta-2011/Relatorio%20Final%20de%202011.PDF acessado em: 10 de julho de 2012. JUSTAMAND, Michel; MECHI, Patrícia Sposito & FUNARI, Pedro Paulo A. No prelo. “Repressão política e direitos humanos: arqueologia, história e memória da ditadura militar brasileira”. in: MECHI, P. S, e MELLO, W. F. Questões da ditadura: violência, vigilância, projetos e contestações. Palmas: Editora da UFT, 2014.

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MECHI, Patrícia Sposito. Protagonistas do Araguaia: trajetória, representações e práticas de camponeses, militantes e militares na guerrilha. Tese de Doutorado, PUCSP, 2012. MECHI, Patrícia Sposito. “Contra a revolução, a barbárie”. Revista de História da Biblioteca Nacional. Dossiê Guerrilhas. N. 90, março/2013. MECHI, Patrícia Sposito. “Camponeses do Araguaia: da guerrilha contra a ditadura civil-militar à luta contemporânea pela terra.” Projeto História (PUCP/SP), São Paulo, n. 46, pp. 167-195, abril/2013. MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, Procuradorias da República do Pará, São Paulo e Distrito Federal. Relatório Parcial das Investigações sobre a guerrilha do Araguaia, Brasília, janeiro/2002. SÁ, Glênio. Araguaia: relato de um guerrilheiro. São Paulo: Anita Garibaldi, 1990.

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Arqueologia Pública Revista de

ARTIGO

A PRESERVAÇÃO ARQUEOLÓGICA E A REDEMOCRATIZAÇÃO:

UM BREVE ESTUDO DE CASO LUSO-BRASILEIRO

Tobias Vilhena de Moraes

Dossiê

No. 10 ISSN 2237-8294 dezembro de 2014

ARTIGO

A PRESERVAÇÃO ARQUEOLÓGICA E A REDEMOCRATIZAÇÃO: UM BREVE ESTUDO DE CASO LUSO-BRASILEIRO Tobias Vilhena de Moraes1 RESUMO Este artigo tratará de uma reflexão inicial sobre a trajetória de ideias e conceitos de Preservação Arqueológica nas Missões Jesuítico-Guaranis, localizadas no sul do Brasil e em Mértola, Portugal. A análise concentrar-se-á particularmente no período compreendido entre 1970 e 1990, caracterizado pelo fim de regimes autoritários e a abertura democrática em ambos os países. Sobretudo, busca-se compreender como se deu a produção do conhecimento arqueológico dentro de um contexto repressivo. Este artigo faz parte do projeto de Pós-Doutorado que venho desenvolvendo no Laboratório de Arqueologia Pública Paulo Duarte (LAP/UNICAMP) financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Palavras-chave: Arqueologia Histórica; Preservação Arqueológica; Patrimônio Cultural; Missões Jesuítico-Guaranis; Mértola; Redemocratização. ABSTRACT This paper aims to mainly present the trajectory of ideas and concepts for the Archaeological Preservation of the material culture remainings in the Jesuit-Guarani Missions, located in the south part of the Brazilian territory, and in Mertola, Portugal. The analises will be concentraded in the period of 1970 and 1990, from the ditactorship and the redemocratisation in both countries. Above it all, we want to understand how the archaeological knowledge was produced during an oppresive regime.This paper is part of my pos-doc research which has been developed at the Laboratory of Public Archaeology Paulo Duarte (LAP/UNICAMP) and it is sponsored by São Paulo Research Foundation (FAPESP). Keywords: Historical Archaeology; Archaeological Preservation; Cultural Heritage; 1 Pós-doutorando LAP/UNICAMP/FAPESP e Arqueólogo IPHAN-RS. Email para contato: [email protected]

TOBIAS VILHENA DE MORAES

Jesuitic-Guarany Missions; Mértola-Portugal; Re-democratisation. RESUMEN Este artículo tratará de una reflexión inicial acerca de la trayectoria de ideas yconceptos de Preservación Arqueológica en las Misiones Jesuítica-Guaranis, ubicadas en el sur de Brasil y en Mértola, Portugal. El análisis estará concentradoparticularmente en el período entre los años de 1970 y 1990, marcado por el fin delos regímenes autoritarios y la apertura democrática en los dos países. Sobre todo, buscará comprender como se dio la producción arqueológica a lo largo de uncontexto de represión. Este artículo es parte de la investigación Post-doctoral queestoy desarrollando en el Laboratorio de Arqueología Pública Paulo Duarte(LAP/UNICAMP), financiada por La Fundación de Apoyo a la Investigación del Estado de São Paulo (FAPESP). Palabras clave: Arqueología Histórica; Preservación Arqueológica; PatrimonioCultural; Misiones Jesuítico-Guaranís; Mértola; Redemocratización

A ARQUEOLOGIA E A PRODUÇÃO CIENTÍFICA Ao longo dos últimos dez anos, o estudo sobre as relações entre a produção científica e seus respectivos contextos históricos tem ganhado cada vez mais espaço dentro do debate científico nas humanidades, especialmente na Arqueologia, com a realização de trabalhos de diversos pesquisadores estrangeiros e brasileiros interessados na questão. Obras como Nationalism, politics, and the practice of archaeology (KOHL; FAWCETT, 1995), Confronting the past: negotiating a heritage of conflict in Serra Leone (BASU, 2008), Nationalism and Archaeology in Europe (DÍAS-ANDREU; CHAMPION, 1996), Histories of archaeology: a reader in the history of archaeology (MURRAY; EVANS, 2008), The Archaeology of colonialism: intimate encounter and sexual effects (VOSS; CASELLA, 2011), Território primitivo: a institucionalização da arqueologia no Brasil (1870-1917) (FERREIRA, 2010) e ainda Identidades, discurso e poder: estudos da arqueologia contemporânea (FUNARI; ORSER JR.; SCHIAVETTO, 2005) exemplificam com perfeição esse movimento. Esta bibliografia evidencia que um dos principais desafios do arqueólogo contemporâneo é superar a difundida visão de sua área como mera técnica de resgate do passado – vinculada, na maior parte do tempo, a escavações breves –, compreendendo-a como uma ciência ativa na identificação, proteção e valoração do patrimônio cultural em seu tempo (BUENO & MACHADO, 2003; FUNARI, 1995; KERN, 1995; MC-

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DAVID, 2004; MERRIMAN, 2004; MORLEY, 1994; SHACKEL, 2004). Vista ainda por alguns profissionais de outras áreas das ciências apenas como uma ferramenta de pesquisa, a Arqueologia pode contribuir para a construção de um humanismo contemporâneo, colaborando na formação de recursos humanos de alta significação (FUNARI, 1995, 2003 e 2007; KERN, 1995; MCDAVID, 2004; RENFREW, 1998; SHACKEL, 2004). No contexto da Arqueologia da Repressão e da Resistência, o presente trabalho busca perceber de que forma a noção de patrimônio emergida em dois contextos de abertura para a democracia, tanto em Portugal, quanto no Brasil, expressam ideários políticos específicos e estabelecem diálogos com as políticas de Estado implementadas durante os longos períodos ditatoriais que vivenciaram os dois países durante o século XX. O PATRIMÔNIO BRASILEIRO E PORTUGUÊS SOB REGIMES DE FORÇA Desde o início do século XX, diversos regimes de força foram tomando o poder e estabelecendo novas formas de lidar com o patrimônio cultural de seus povos. Em Portugal, por exemplo, o golpe de estado, em 28 de maio de 1926 – que levou a criação da Direção-Geral dos Edifícios Monumentais Nacionais em 1929 – e a instauração do Estado Novo em 1933, foi o responsável pelo afastamento da Associação dos Arqueólogos Portugueses (AAP) do processo decisório sobre a gestão dos monumentos do país. Para ela, restaram apenas funções de investigação e consultoria arqueológica e histórica. Enquanto isso no Brasil, desde a primeira metade do século XIX, a busca da identidade nacional crescia no discurso intelectual. O objetivo agora passava a ser não apenas imitar a Europa, mas identificar e afirmar uma cultura nacional autêntica. O tradicional e regional deveriam ser valorizados (GONÇALVES, 2002; FONSECA, 2005). Neste mesmo período, ganhou corpo no território brasileiro o desenvolvimento de políticas oficiais de patrimônio, principalmente em 1936, quando, pela primeira vez, foi proposta a criação de uma agência federal que se reponsabilizaria pela proteção do patrimônio. Assim, logo após o golpe que instaura o regime político do Estado Novo, (10/11/1937) é criado por decreto presidencial – Lei nº 378 - o SPHAN (Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), instituição que desde seu início assume como principal objetivo proteger o patrimônio histórico e artístico nacional brasileiro (GONÇALVES, 2002; FONSECA, 2005).

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No resto do mundo, no período antecedente ao início da Segunda Guerra Mundial chegou ao auge a ênfase nacionalista sobre o patrimônio. Vestígios localizados em um tempo remoto e de origem longínqua poderiam ser utilizados para construir a ideia de nacionalidade. Alemanha, Itália e mesmo a Inglaterra buscavam suas origens na Antiguidade. Nos períodos ditatoriais como na Itália Fascista e na Alemanha nazista, o uso da arqueologia como política de estado foi intenso (FABIÃO, 2009; GOMES, 2007). Esta postura continuou por todo terceiro quarto do século passado, embora com um viés econômico cada vez mais presente. Em plena ditadura militar brasileira, por exemplo, durante os anos 1970, a preservação do patrimônio cultural observou um ciclo de renovação e de ampliação conceitual (TORELLY, 2012). No ano de 1973, é criado o Programa Integrado de Reconstrução das Cidades Históricas (PCH), que tinha como objetivo articular ações de quatro ministérios – Educação e Cultura, Interior, Planejamento e Indústria e Comércio. O principal objetivo deste programa era permitir um arranjo eficiente das políticas públicas do governo federal e assim, fomentar e incrementar o potencial econômico e turístico das cidades históricas. Buscava-se assim, inseri-las no processo de crescimento econômico conhecido como “milagre brasileiro” (TORELLY, 2012). Concomitantemente, o PCH permitiu alargar a capacidade administrativa e financeira do próprio instituto. Dentre outros aspectos, foi possível estabelecer políticas mais eficientes para a proteção de conjuntos urbanos beneficiados, assim como estabelecer uma melhor qualidade da infraestrutura e da gestão administrativa e pública dos outros entes federativos e também das cidades participantes (TORELLY, 2012). Este enfoque com forte interesse econômico e social também pode ser observado no período do salazarismo em Portugal. Em um contexto em que o poder colonial perdia força, o Estado Português passou a favorecer diversas ações de valorização de seus vínculos com as colônias ultramarinas. A todo instante, a grandeza de Portugal passou a ser associada com os territórios de suas colônias. Ganha espaço, assim, a valorização de um passado glorioso cristão baseado nas navegações, principalmente aquele passado relacionado ao período manuelino (séc. XVI). Um discurso de estado que queria, sobretudo, a permanência destes territórios sob sua influência direta. A PRESERVAÇÃO ARQUEOLÓGICA NA AMÉRICA LATINA Ao longo dos últimos anos, diversos países do continente americano têm apresentado uma importante trajetória nas discussões sobre Preservação Arqueológica. Alguns deles, herdeiros de monumentos Incas, Astecas e Maias, tiveram muitos problemas a enfrentar no campo da conservação e restauro. Isso se deveu não apenas à escala das

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estruturas remanescentes dessas civilizações, mas a sua complexa distribuição, localização e distribuição, assim como à farta quantidade. Na América do Sul, estruturas de adobe, presentes em países como Equador e Peru, eram o grande desafio. O estabelecimento de medidas de salvaguarda era urgente. O marco para a consolidação do corpo teórico da Arqueologia na América Latina foi, sem sombra de dúvida, o Encontro de Quito (1967). Nesse evento, foram estabelecidos pontos que reconheciam a escassez de recursos humanos e aconselhavam a concepção de um centro ou instituto, de caráter interamericano, especializado em matéria de restauração. Várias instituições internacionais participaram desse esforço. Dentre elas, podemos citar a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), o Instituto de Museus e Conservação de Roma (ICCROM) e o Conselho Internacional dos Monumentos e Sítios (Icomos), bem como algumas representações nacionais americanas da área do patrimônio. Progressivamente, a partir do final dos anos 1960, foram sendo implantados vários centros de capacitação e cursos regionais, em vários países (CHOAY, 2001 e 2011; DÍAS-ANDREU, 2007; HARRISON, 2013; POULOT, 2009; FAUSTO, 2013). No Brasil, especificamente, os resultados do Encontro de Quito são visíveis, na consolidação do Curso Regional de Especialização em Conservação de Monumentos e Reabilitação de Cidades Históricas, UFBA - IPHAN – Salvador (CECRE) e Curso de Conservação e Restauração de Bens Móveis, UFMG – IPHAN, Belo Horizonte (CECOR). O primeiro teve como enfoque desde sua fundação, em 1980, os bens imóveis e sítios, tendo começado na cidade de São Paulo e depois sendo deslocado para a Bahia. Já o segundo foi gestado em 1976, constituído em 1980, e teve como principal foco os bens móveis. Essas instituições novas e dinâmicas marcavam um novo período no campo da salvaguarda do patrimônio no território nacional. Desde o fim da década de 1970, o país enfrentava mudanças significativas em sua política, com a crise do governo militar e o caminho aberto para a democracia. Em 1979, o órgão responsável pela gestão do patrimônio cultural brasileiro modifica sua estrutura administrativa e técnica, surgindo assim duas estruturas institucionais que coexistiram por certo período, a Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan), com poder de polícia, e a Fundação Nacional Pró-Memória (FNPM), responsável pela execução de políticas de preservação, sendo conhecidas pela expressão “Sphan/Pró-Memória” (GONÇALVES, 2002 e 2013; FICO, 2004). A narrativa histórica desse período institucional vê a mudança do enfoque sobre temas técnicos e historiográficos para os conceitos da moderna Antropologia. Isso pode

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ser facilmente percebido na mudança do discurso que tratava do “patrimônio histórico e artístico”, da geração heróica anterior (como foi denominado o primeiro grupo de técnicos do patrimônio), para a noção de bens culturais, adotada pela presidência do instituto na época (GONÇALVES, 2002 e 2013). O passado começa a ser tratado como referência que deve ser reinterpretada no presente, com propósitos futuros. Nesse contexto, exalta-se a diversidade cultural como item importante no processo de desenvolvimento. As culturas africanas e ameríndias não são mais consideradas estágios de uma evolução universal, mas distintas formas de vida social e culturais contemporâneas e em construção. Ao mesmo tempo, autores de outros campos da ciência vêm somar-se aos arqueólogos para teorizar e refletir sobre cultura material. Nesse sentido, destaca-se a atuação do antropólogo britânico Daniel Miller (2005, 2013), que enfatiza a necessidade de uma abordagem global das pessoas e coisas. O autor extrai de Hegel seu conceito de objetificação, enxergando no esquema progressivo daquele um processo dinâmico no qual um determinado objeto desenvolve-se a partir de uma projeção em um mundo externo e, consequentemente, reapropria-se de sua própria projeção. Nessa época, os objetos e atividades sociais e culturais passam a ser classificados como “bens culturais”, entendidos como meios pelos quais os diversos segmentos da sociedade expressam-se. Miller (2005, 2007, 2013) destaca a necessidade de que o mundo dos objetos criados pela sociedade não seja classificado como algo abstrato e separado dela. Para ele, a sociedade deve apropriar-se da cultura que produziu. Nesse contexto, os diversos órgãos responsáveis pela área da cultura, espalhados pelo mundo, passam a considerar o patrimônio arqueológico de forma mais ampla e completa (MENEZES, 1984 e 1996). No campo prático, a partir dessa época, principalmente no México, a ação de proteção vincula-se à necessidade de pesquisa intensiva e profunda para formular uma base teórico-metodológica específica, que oriente as intervenções restaurativas, a partir dos elementos arquitetônicos diferenciados existentes naquele país (MONTES, 1998). Nesse campo, destacaram-se principalmente a discussão crítica de Augusto Molina Montes (1998) sobre as intervenções e reconstruções do patrimônio monumental mexicano e, no âmbito educacional, a atuação de Carlos Chanfón Olmos (1928-2002), que dirigiu o setor de Monumentos Históricos do Instituto Nacional de Antropologia e História (Inah), no México, a partir de 1968. Cabe destacar que este último prosseguiu sua carreira no Centro Churubusco, dedicado à investigação e à formação de restauradores e à prática da restauração, tendo sido patrocinado pelo governo mexicano, a Organização das Nações Unidas (ONU), através da Unesco, e a Organização dos Estados Americanos (OEA) (MONTES, 1998).

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Na Arqueologia latino-americana, principalmente aquela vinculada às obras de restauro, surgem diversos profissionais e instituições. Os profissionais de maior destaque são Manuel Gámio (1883-1960), diretor da Escola Internacional de Arqueologia e Etnologia Americana, e Jorge R. Acosta (1904-1975), chefe da Seção de Preservação e Conservação do Departamento de Monumentos Pré-Hispânicos do Inah, que trabalharam na escavação e restauração de alguns dos grandes sítios arqueológicos mexicanos, como Teotihuacán, Monte Alban e Tula (MONTES, 1998; PÉREZ, 1998). Nesse contexto de expansão da atuação dos organismos responsáveis pelas ações de conservação e restauro, desenvolve-se a Arqueologia Histórica latino-americana. Mais especificamente no Brasil, sua prática ganha força a partir de 1980, como resultado da paulatina reconquista das liberdades públicas e do declínio do arbítrio, primeiro com a Lei de Anistia (1979), depois com o relaxamento da censura e, finalmente, com a volta de um regime civil em 1985. Um exemplo disso é que nesse momento surgem e ganham força projetos de escavação nas Missões Jesuítico-Guaranis (FUNARI, 1994b e 2005; FUNARI & ORSER, 2007; IPHAN, 1998a e 1998b; ORSER, 1992; GONÇALVES, 2002; SCHÁVELZON, 2003; SYMANSKI, 2009; FICO, 2004). A GESTÃO DO PATRIMÔNIO ARQUEOLÓGICO MISSIONEIRO Localizadas na região sul da América do Sul, as Missões foram palco de uma acirrada disputa territorial entre Espanha e Portugal, durante os séculos XVII e XVIII. Ao mesmo tempo, marcaram uma das mais surpreendentes experiências históricas entre povos europeus e indígenas em solo americano. Um processo de contínua transformação cultural alterou para sempre o modo de vida dessas populações sob a influência contínua das inovações europeias, sem que a cultura tradicional indígena desaparecesse completamente (BARCELOS, 2000; CURTIS, 1993; CUSTÓDIO, 1987 e 2002; FURLONG, 1937 e 1962; KERN, 1998; PESAVENTO, 1994; SHULZE- HOFER, 2008). Os vestígios materiais daquela época testemunham hoje as expressivas manifestações culturais que ali ocorriam. Esculturas, cerâmica e arquitetura eram tratadas com delicadeza, apuro e técnica por religiosos e indígenas (CUSTÓDIO, 1987, 2002 e 2009; GUTIÉRREZ, 1982, 1987 e 1992; STELLO, 2005; WEIMER, 1993). Atualmente, as Missões Jesuítico-Guaranis representam um sistema de bens culturais transfronteiriços localizados nos territórios do Brasil, Argentina e Paraguai. Representam, sobretudo, um importante testemunho do processo de formação do território sul-americano e das diversas relações culturais entre europeus e povos nativos. No entanto, quando observamos as primeiras ações dos órgãos de gestão do patrimônio cultural, iniciadas no segundo quarto do século passado, boa parte dos trabalhos

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centravam-se em temas relacionados à consolidação das estruturas arquitetônicas remanescentes (BRASIL, 1993 e 2006; CUSTÓDIO, 2002 e 2009; GUTIÉRREZ, 1982 e 1992; LEVINTON, 1998; MAYERHOFER, 1947; STELLO, 2005). Uma das primeiras iniciativas para superar essa abordagem foram as escavações executadas por Fernando La Salvia em São Nicolau, no fim da década de 1970. O trabalho coordenado pelo pesquisador decorreu de convênio firmado entre o Sphan e a Subsecretaria de Cultura, Desportos e Turismo do Governo do Estado do Rio Grande do Sul, com o objetivo de promover escavações arqueológicas nos remanescentes da antiga redução jesuítico-guarani, na cidade de São Nicolau. Esse trabalho, uma escavação ampla (cerca de 4.500 m2), no centro da cidade, pode ser considerado um marco para a Arqueologia Histórica brasileira. Foram escavadas estruturas de igreja, colégio, adega, casas de índios, hospital, sistema de esgotos nos fundos da igreja, cabildo e habitações próximas a ele (LA SALVIA, 1982 e 1983b). No entanto, a falta de trabalhos de consolidação e estabilização dos remanescentes encontrados acarretou a perda de boa parte da área escavada, expondo parte dos vestígios e estruturas às intempéries e à ação humana. As poucas imagens existentes sobre os trabalhos ilustram esse problema. Pisos, colunas, canais d’água não foram abrigados corretamente. Posteriormente, o próprio La Salvia (1983a: 214) alertou que aquela “escavação deveria ter tido continuidade com a estabilização dos remanescentes e um processo de conservação dos pisos e evidências, o que não se realizou”, desconhecendo a causa disso, mas afirmando que o ocorrido levara a “um dano muito grande à área escavada” e “praticamente à sua perda”. Esse fato gerou uma mudança de perspectiva nas práticas futuras de escavações arqueológicas. Os limites impostos à Arqueologia são identificados não apenas na região missioneira, mas por todo o Brasil. Eles também não são um fenômeno exclusivo daquela época e, nos últimos anos, emergiram como elemento de discussão em congressos e seminários, a partir de uma preocupação constante com “[...] as consequências sociais, políticas e culturais do trabalho de Arqueologia” (BARRETO, 2008: 48) e com o papel da Arqueologia no campo do patrimônio cultural. Em decorrência dessas atividades, em 1983, o Sphan (órgão normativo), através da FNPM (órgão executivo), levava à Unesco a proposição de transformar o sítio missioneiro de São Miguel em Patrimônio Mundial. A articulação de arqueólogos que atuavam no estado pressionava por uma atuação permanente desses profissionais, em um trabalho que deveria considerar uma ação definitiva e imediata nas regiões urbanas e agropastoris onde se encontravam os remanescentes (LA SALVIA, 1983a e 1983b). Nesse mesmo período, a Arqueologia brasileira e a ciência mundial passaram por

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profundas mudanças em sua estrutura funcional e científica. Desde a interlocução com outras áreas do saber até a internacionalização dos contatos entre profissionais, cada vez mais a Arqueologia buscava um diálogo com seu próprio mundo (BASTOS, FUNARI, 2008; LIMA, 2001 e 2002; SHANKS, TIILEY, 1993; REIS, 2005; ROBRAHNGONZÁLEZ, 2000; TRIGGER, 2004). Nesse caminho, caem muros que impediam o contato com outras áreas do conhecimento e instituições (dentro e fora do país), o que vinha “[...] provocando uma circulação direta e mais rápida das informações, renovando as discussões teórico- metodológicas” (KERN, 2002: 123). Isso passa a ser vislumbrado já na década de 1980, com o desenvolvimento de outra etapa de pesquisa arqueológica nas Missões. Com a saída do professor La Salvia, estruturou-se um novo projeto, denominado Arqueologia Histórica Missioneira (1985), por meio de um acordo de cooperação técnica entre a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e o Sphan. O trabalho teve coordenação técnica dos arqueólogos Arno Alvarez Kern e Pedro Augusto Mentz Ribeiro, e coordenação institucional do arquiteto Julio Curtis. A partir dessa época, os trabalhos arqueológicos desenvolveram-se em diferentes ocasiões nos sítios de São Lourenço, São João Batista e São Miguel Arcanjo (Fig.1). O Sítio Escola Internacional Missões, realizado nos anos 1990, merece destaque por ter proporcionado a produção de um significativo conjunto de pesquisas – monografias, dissertações e teses – a partir das escavações. Um de seus principais objetivos era reconhecer o espaço das reduções, para posteriormente cercá-las (KERN, 1994 e 1998). A fim de divulgarem-se os resultados da pesquisa, vários artigos relacionados ao projeto Arqueologia Histórica Missioneira começaram a ser lançados em revistas de circulação acadêmica, e a participação de profissionais ligados a ele em eventos científicos também ajudou nessa divulgação (CARLE, 1998; KERN, 1992 e 1994; SOUZA, 1988).

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Fig. 1: Sítio Arqueológico de São Miguel das Missões. Fonte: Arquivo IPHAN/RS. Cabe destacar que, desde o fim da década de 1970, a Arqueologia brasileira encorpava seus quadros profissionais. Além do crescimento de instituições de formação, vários eventos em universidades e museus ajudavam a solidificar a Arqueologia no país (SOUZA, 1991; FUNARI, 1994b e 1999; PROUS, 1992; LIMA, 1993 e 2006). Essas transformações coincidiam com a abertura política do país e com os movimentos que pressionavam pela redemocratização. Nesse novo contexto de circulação do conhecimento, o profissional arqueólogo passa a agir para ultrapassar limites impostos até então e aproximar-se de outras disciplinas, que atuavam (ou poderiam vir a atuar) no desenvolvimento de projetos contínuos de gestão integrada em uma perspectiva multidisciplinar (BARRETO, 2008; KERN, 1998; TUNBRIDGE; ASHWORTH 1996; TRIGGER, 2004). Muitas vezes, a articulação com outras áreas do conhecimento em projetos de pesquisa em Arqueologia contribuiu para ampliar o conhecimento dos arqueólogos sobre o passado missioneiro, como ficou claro com os estudos geológicos e geofísicos que buscaram compreender a utilização das rochas no processo construtivo da missão. Consolidava-se, assim, um enfoque do patrimônio como um fenômeno social amplo (NOWATZKI, 2004 e 2007; HARRISON, 2013). Desse modo, ao mesmo tempo em que o papel do cientista arqueólogo se modificou nos últimos anos, também o campo da cultura expandiu seus horizontes, demandando novos olhares sobre as práticas de gestão do patrimônio arqueológico há muito consolidadas (HOLTORF, 2005 e 2007; LITTLE, 2007; HARRISON, 2013; SAID, 2010 e

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2011; VOLKMER, 2005). Assim, fica claro que o reconhecimento da pesquisa científica focada sobre o patrimônio cultural, e dentro de cada contexto histórico, torna-se um instrumento de trabalho fundamental na compreensão da trajetória da ciência arqueológica. Reconhecer a trajetória do campo da Preservação Arqueológica e os diversos conceitos patrimoniais que o permeiam permite compreender como se deram as diversas iniciativas executadas. Trabalhos com esse enfoque são rotineiramente desenvolvidos, seja nos tantos parques dos Estados Unidos controlados pelo National Park Service (NPS), no Museu de Londres ou em trabalhos de arqueologia comunitária de empresas do setor privado. Ele ganha espaço, sobretudo, em programas de gestão patrimonial dos órgãos públicos nacionais que têm como proposta recuperar a memória de escavações arqueológicas anteriores e definir métodos mais eficientes de curadoria no presente (HEITERT, ELQUIST, GILLIS, 2012; CORBISHEY, 2011; SHA, 1993; SMITH, WATERTON, 2009). Este padrão de análise não se restringe aos programas de gestão patrimoniais, como atestam algumas investigações atuais executadas no âmbito acadêmico. No Brasil e na Argentina, por exemplo, alguns pesquisadores têm desenvolvido este tema em suas instituições. Sobretudo, estes pesquisadores concentram sua investigação sobre a produção em Arqueologia durante governos ditatoriais designados como Estado Novo (entre os anos de 1926 e 1946) e Ditadura civil-militar, no contexto brasileiro, ou durante os diferentes golpes de estado executados na Argentina na segunda metade do século XX. Tratam-se de propostas de trabalho que tomaram nações com histórico semelhante em seu quadro político e social para analisar o percurso da ciência arqueológica (POLONI, 2009; CARVALHO, FUNARI 2009; GOMES, 2005; LEAL, 2012; ZARANKIN, 2002). UM CASO PORTUGUÊS: MÉRTOLA Seguindo esse mesmo caminho, diversos estudos conduzidos em Portugal tomaram como premissa principal o levantamento das práticas de gerenciamento do patrimônio arqueológico através do tempo, inclusive em localidades registradas como Patrimônio Mundial pela Unesco. Surgiram, assim, no país, esforços destinados a fazer da cultura e do patrimônio um vetor primordial para o desenvolvimento local. O caso do Projeto Mértola Vila Museu é de especial interesse para estabelecer uma relação com o universo da produção arqueológica missioneira do mesmo período. Com o fim do regime Salazarista, em 1974, e a redemocratização institucional do país, várias prefeituras portuguesas incentivaram projetos até então irrealizáveis.

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Poucos anos mais tarde, na pequena aldeia alentejana de Mértola, entre 1978 e 1980, desenvolveram-se escavações com a participação de jovens da própria comunidade, cujo foco principal eram os sítios relacionados ao período de ocupação islâmica. Essa postura de trabalho consolidou-se como uma abordagem inovadora em Portugal, na época, quando vários projetos arqueológicos e da área de arte tinham como principal foco o mundo cristão do período das navegações (ALMEIDA, 1965; FABIÃO, 1989; MACIAS, TORRES 2001; MARTÍNEZ, 2003; TORRES, 2009; PALMA, 2012). Em 1980, foi criada a Associação para a Defesa do Patrimônio de Mértola (ADPM), sob proteção do Partido Comunista Português, que assumiu a prefeitura local. Ela tinha como principais objetivos inventariar, estudar, defender e valorizar o patrimônio local (MACIAS, TORRES, 2001; TORRES, 2009). Com o enfoque amplo, desde o início a multidisciplinaridade foi posta em prática. A participação de etnógrafos, arquitetos e biólogos foi fundamental para o crescimento do projeto. Experiências inovadoras no âmbito do teatro e da animação foram bem recebidas pela comunidade (Fig. 2). O desafio principal do projeto, no início, era sustentar sua forma de trabalho em uma região relativamente extensa (1.280 km2) e que enfrentava um contínuo processo de desertificação humana, com a saída dos camponeses para cidades ou aldeias maiores (MACIAS, TORRES, 2001; MARTÍNEZ, 2003; TORRES, 2009; PALMA, 2012). Esse grupo de pesquisa – que atualmente faz parte do Centro de Estudos Arqueológicos das Universidades de Coimbra e do Porto – conseguiu fomentar, ao longo dos anos, o levantamento, análise e pesquisa do patrimônio, propondo sua conservação e salvaguarda e cooperando com entidades públicas e privadas em ações científicas ou de promoção cultural e social.

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Fig. 2: Mértola, anos 2000. Fonte: Campo Arqueológico de Mértola. As diversas ações de salvaguarda e práticas educativas para o patrimônio aplicadas foram fundamentais, em vários momentos, para o estabelecimento de um sistema de parceria contínua com os diversos agentes públicos e moradores (MACIAS, TORRES, 2001; TORRES, 2009; PALMA, 2012). Contemporâneas, as pesquisas iniciadas em Mértola e nas Missões são importantes estudos de caso que permitirão contrastar realidades socioculturais com os discursos patrimoniais adotados na época. Sobretudo, comparando diferentes realidades políticosociais do fim dos anos 1970 e início dos anos 1980. Fato é que os dois sítios arqueológicos começaram a ser foco de pesquisas sistemáticas no período de transição entre a ditadura e a democracia em seus respectivos países. Observar como se deu a relação entre os diferentes sistemas políticos e a produção arqueológica permitirá, primeiramente, demarcar aproximações e distanciamentos entre dois países separados por um oceano. Em segundo lugar, será possível reconhecer de maneira clara como foi reconquistado e reconstruído o caminho para discussão do patrimônio arqueológico em um ambiente democrático. A GESTÃO DO PATRIMÔNIO ARQUEOLÓGICO EM DIFERENTES CONTEXTOS Principalmente entre o fim da década de 1970 e início de 1980, o orgão responsável

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pela gestão do patrimônio arqueológico brasileiro, o IPHAN, presenciou uma grande mudança na sua forma de atuação técnica. Se antes suas principais atividades se restringiam em identificar, tombar, preservar e restaurar monumentos, a partir de agora, o discurso institucional colocava relevância em noções de pluralismo cultural, participação da comunidade e democracia (GONÇALVES, 2002 e 2013). Este discurso colocava como uma dos seus principais propósitos a apropriação dos bens culturais em nome da “nação” e o seu retorno para as comunidades locais, que seriam seus autênticos proprietários (GONÇALVES, 2002: 77). As discussões sobre o patrimônio cultural brasileiro mudam substancialmente neste período, saindo dos temas técnicos e historiográficos para conceitos da moderna antropologia. Tal fenômeno é perceptível através da mudança do discurso que tratava do “patrimônio histórico e artístico”, pela noção de “bens culturais” adotada pela nova presidência do Patrimônio, principalmente, no breve período coordenado por Aloísio de Magalhães (1979- 1982). O passado passa a ser considerado como referência que deve ser reinterpretada no presente e com propósitos futuros. Por sua vez, a diversidade cultural e a participação ativa das comunidades passam a ser elencadas como conceitos importantes a serem considerados no processo de desenvolvimento do próprio país. Aspecto importante e que se encaixa perfeitamente no espaço de discussão sobre a abertura democrática que ocorria no país. Como brevemente apresentado neste artigo, este fenômeno de transformação não foi exclusivo do Brasil e também pode ser percebido em outros países latinoamericanos e mesmo europeus, como no caso português apresentado acima, quando a partir de 25 de Abril de 1974, com a queda do regime Salarazista, uma nova forma de encarar o passado ganha espaço. A própria Associação dos Arqueólogos Portugueses (AAP), a partir dessa época, é reconduzida ao centro do debate sobre as atividades arqueológicas. Diversas escavações e debates que contemplam a diversidade cultural do país proliferaram por todo o território (FABIÃO, 2009; GOMES, 2007). A pesquisa em desenvolvimento na UNICAMP propõe-se, assim, investigar a trajetória de ideias e conceitos de Preservação Arqueológica nas Missões Jesuítico-Guaranis, localizadas no sul do Brasil, e em Mértola, Portugal. O foco concentra-se na análise do período compreendido entre 1970 e 1995, caracterizado pelo fim de regimes autoritários e pela abertura democrática em ambos os países. Época em que os atores políticos e agentes sociais reconquistam espaço para discussão de políticas culturais em um ambiente democrático. Com esse objetivo, a investigação buscará, em um primeiro momento, caracterizar e compreender as transformações políticas e os diferentes discursos sobre cultura

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nacional existentes no período, a fim de perceber como foram construídos os projetos políticos para a proteção e valorização do patrimônio no Brasil e em Portugal na segunda metade do século passado. Em seguida, procurará perceber os discursos utilizados na preservação do patrimônio arqueológico nacional em um período de profundas transformações políticas e socioculturais. O enfoque se concentrará na atuação de pesquisadores, instituições e programas científicos existentes na época. Os objetivos e principais desafios existentes devem refletir o ideário intelectual, cultural e político do qual eram contemporâneos. Este estudo ainda está em sua caminhada inicial e ao longo do projeto será desenvolvido de forma mais detalhada e aprofundada. Para desenvolver uma investigação ampla deverão ser considerados os resultados de diversas escavações, observando a construção histórica de normativas legais e técnicas referentes ao patrimônio cultural, analisando a trajetória dos discursos arqueológicos e de patrimonialização existentes nestes dois sítios arqueológicos. Por fim, serão observadas as redes estabelecidas no interior dos diferentes sistemas políticos vigentes à época, em sua relação com a respectiva produção arqueológica com o objetivo de demarcar claramente aproximações e distanciamentos entre esses dois contextos. Um método de trabalho que buscará compreender um pouco mais a trajetória da Arqueologia no fim do século passado.

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Arqueologia Pública Revista de

ARTIGO

CAMINHOS E DESCAMINHOS NO ATLÂNTICO CIENTÍFICO:

ARQUEOLOGIA E ESTADO NOVO EM CONTEXTO LUSOBRASILEIRO

Rita Juliana Soares Poloni

Dossiê

No. 10 ISSN 2237-8294 dezembro de 2014

ARTIGO

CAMINHOS E DESCAMINHOS NO ATLÂNTICO CIENTÍFICO: ARQUEOLOGIA E ESTADO NOVO EM CONTEXTO LUSO-BRASILEIRO Rita Juliana Soares Poloni1 RESUMO O presente trabalho busca comparar o desenvolvimento das pesquisas arqueológicas em Portugal e no Brasil, durante os governos ditatoriais denominados, nos dois países, por Estado Novo. Procurará perceber os diálogos internos à própria disciplina bem como as relações entre temas de pesquisa, investigadores, discursos oficiais e redes de poder instituídas no período. Palavras-chave: Brasil, Portugal, Estado Novo, Arqueologia, nacionalismo, repressão

ABSTRACT The present paper aims to to compare the development of archaeological research in Portugal and in Brazil, during the dictatorial governments so-called, in both countries, by the Estado Novo. Seek to understand the internal dialogues of the discipline itself as well as the relationships between research topics, researchers, official discourses and networks of power established in the period. Keywords: Brazil, Portugal, New State, Archaeology, nationalism, repression

RESUMEN El presente trabajo tiene como objetivo comparar el desarrollo de la investigación arqueológica en Portugal y en Brasil, durante los gobiernos dictatoriales llamados, en

1 Pós-doc LAP/NEPAM. E-mail: [email protected]

RITA JULIANA SOARES POLONI

ambos países, por el Estado Novo. Trata de entender los diálogos internos de la propia disciplina, así como las relaciones entre los temas de investigación, investigadores, discursos oficiales y las redes de poder establecidas en el período. Palabras clave: Brasil, Portugal, Nueva Estado, Arqueología, el nacionalismo, la represión

INTRODUÇÃO: O ATLÂNTICO CIENTÍFICO E A ARQUEOLOGIA DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA COMO OBJETOS DE ESTUDO

A abordagem da produção arqueológica do Estado Novo em contexto luso-brasileiro é de especial interesse para estabelecer uma relação entre o universo científico dos dois países, numa perspectiva lusófona, tanto quanto para ampliar o conhecimento dos discursos arqueológicos construídos no âmbito dos governos fascistas do período. Nesse sentido, o presente objeto de estudo contribui para esclarecer até que ponto a produção científica arqueológica pode ser comparável, no contexto luso-brasileiro demarcado pela vigência de regimes ditatoriais de inspiração fascista, denominados por Estado Novo. Por outro lado, tal abordagem é de especial interesse também para a Arqueologia da Repressão e da Resistência. Muito mais direta é a relação que se estabelece entre a investigação de contextos de prisão, tortura, guerrilha, terrorismo de Estado, e os objetivos desse campo de estudos, sobretudo, no que se refere à América Latina, no período posterior à Segunda Guerra Mundial. Mas a abordagem desse campo é ainda mais ampla, tanto em termos geográficos e históricos, quanto em relação aos seus objetos de estudo. Assim, a Arqueologia da Repressão e da Resistência diz respeito não somente à produção científica que tem por objeto de estudo contextos circunscritos pela definição do campo (de repressão e de resistência), mas também ao estudo da própria produção científica nascida nesses contextos, ou seja, dos limites do campo científico dentro de um quadro histórico e político repressivo. Tais estudos podem circunscrever a investigação dos temas estimulados e condenados, dos cientistas que passam a ocupar lugares de poder e dos que são expurgados pelo Regime, enfim, de todas as permanências e transformações sofridas pelo campo científico durante governos repressivos ou Estados de exceção.

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Por outro lado, também não se limita ao universo latino-americano, nem às Ditaduras implantadas no continente americano, no período pós Segunda Guerra Mundial. Pode se referir a qualquer espaço-tempo em que estejam caracterizados contextos repressivos e de resistência, tendo como foco principal a relação entre Estado e sociedade civil. Dessa forma, a investigação da produção científica arqueológica que se constrói durante os regimes ditatoriais denominados por Estado Novo, tanto em contexto português, quanto brasileiro, apresenta-se como um objeto de estudos para o campo da Arqueologia da Repressão e da Resistência e procurará contribuir para o aprofundamento das temáticas por ele abordadas.

ARQUEOLOGIA E ESTADO NOVO: O CONTEXTO PORTUGUÊS

Entre as décadas de 30 e 40 do século XX, tanto Portugal, quanto o Brasil vivenciavam regimes políticos de inspiração fascista, denominados por Estado Novo. Muito embora a ditadura portuguesa tenha sido sensivelmente mais extensa que a brasileira, tendo sobrevivido de 1936 a 1974, ambos os regimes possuem traços em comum no que tange à construção dos discursos histórico-nacionalistas e ao papel da arqueologia nesse processo. No caso português, os últimos anos do século XIX trazem consigo grandes progressos na consolidação da Arqueologia como campo científico no país, como o surgimento da disciplina de Antropologia, Paleontologia Humana e Arqueologia PréHistórica, na Faculdade de Filosofia da Universidade de Coimbra, a partir de 1885, sob a regência de Bernardino Machado (1851-1944). Muito embora os conteúdos ministrados dessem preferência à Antropologia Física, o contexto era propício à criação de novos campos de discussão e de investigação para a Arqueologia portuguesa emergente, que, neste caso, se debatia, sobretudo, em torno da ancestralidade do povo português. Contestando as teses de Alexandre Herculano (18101877) e Oliveira Martins (1845-1894) acerca da desconexão entre os antigos lusitanos e o Estado Nacional português, o jovem arqueólogo Leite de Vasconcellos (1858-1941), iria consolidando progressiva posição de destaque em cenário nacional no alvorecer do século XX (FABIÃO, 1996: 114-116). Enquanto Herculano, reforçado por Martins, punha na Idade Média o nascimento

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da Nação, como ato político, negando a conexão entre o povo português e outros ancestrais, Vasconcellos irá, com auxílio da linguística, defender que Portugal seria uma continuação da Antiga Lusitânia, sendo a língua portuguesa fruto do natural desenvolvimento da linguagem luso-romana. Neste sentido, Vasconcellos punha-se a favor das ideias de Martins Sarmento (1833-1899), que tendo em conta suas escavações na Citânia de Briteiros e no Castro de Sabroso, povoados proto-históricos localizados em Guimarães, norte do país, defendia a remota existência dos lusitanos e a resistência da sua cultura ao domínio romano (FABIÃO, 1999: 93-94; FABIÃO 2011: 126-137). Vasconcellos acabaria por assumir o cargo de conservador da Biblioteca Nacional de Lisboa e passaria a dedicar-se a criar um acervo de antiguidades para compor um novo projeto: o Museu Nacional de Etnografia que viria a se concretizar em 1893, sob os auspícios de Bernardino Machado, então secretário das obras públicas. Obra de caráter nacionalista, buscando evidenciar a tese da antiguidade remota do povo português, terá seu poder acrescido pela criação da revista “O Archeólogo Português”, em 1895, e se constituirá em importante instrumento de valorização do campo científico arqueológico nacional. Em 1929, Leite de Vasconcellos se aposenta e suas posições na Universidade e no Museu passam a ser ocupadas por Manuel Heleno (1894-1970). Juntamente com ele, Mendes Correia (1888-1960) e Vergílio Correia (1888-1944), este último professor da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, serão as personalidades de destaque no mundo da Arqueologia portuguesa da primeira metade do século XX (FABIÃO, 1999: 119-120). Enquanto o professor de Coimbra se dedicará à escavação da cidade romana de Conimbriga, à publicação de obras no domínio da história da arte e manterá uma carreira de distanciamento dos grandes conflitos de poder que marcarão o período, o sucessor de Vasconcellos, que assumirá o principal posto da investigação nacional, marcará a sua carreira por um clima de forte disputa com Mendes Correia, esse, sem dúvida, um personagem com maior destaque no cenário nacional e internacional. Correia ocupará cargos de destaque, tanto no âmbito acadêmico quanto político, como diretor do Instituto de Antropologia da Universidade do Porto, do Centro de Estudos de Etnologia do Ultramar, do Centro de Estudos de Antropobiologia, do Instituto Superior de Estudos Ultramarinos, além de presidente da câmara municipal do Porto e deputado à Assembleia Nacional entre 1945 e 1956. Assim, a carreira de Mendes Correia irá consolidá-lo como importante cientista e político do período, tanto em caráter nacional quanto internacional, relacionando seu prestígio pessoal a uma vigorosa campanha para o desenvolvimento de investigações antropológicas e

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arqueológicas nos territórios coloniais (CARDOSO, 2011). Manuel Heleno, o mais novo dos três importantes personagens e com menor currículo acadêmico, se esforçará para reafirmar seu lugar de poder através de publicações de caráter nacionalista em periódicos locais, em consonância com as críticas a Herculano e Oliveira Martins acerca da antiguidade do homem português de que partilhava também seu mentor, Vasconcellos. Já Mendes Correia, que também partilhava das mesmas ideias, recusará, entretanto, que se pudesse reconhecer no português uma raça com características físicas próprias, uma vez que, segundo ele, os dados antropométricos dissuadiam tal perspectiva. Mas a descrença numa unidade física, não impedia que ele defendesse, entretanto, uma unidade moral lusitana (FABIÃO, 1999: 121-126). Curiosamente, porém, as ideias sobre a importância dos antepassados remotos da nação não irão ser tomadas como importantes pelo Estado Novo, que não dará nenhuma atenção especial ao tema durante sua vigência. Ao invés disso, a Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, criada em 1929, irá se dedicar a novos tipos de apropriação política do patrimônio nacional. A prioridade do momento passa a ser a “restauração” de monumentos, sobretudo edifícios religiosos e políticos, de forma a recuperar sua pureza original, o que significava extrair características adquiridas durante o século XVII e XVIII. Tal projeto tinha como intuito revalorizar a religiosidade tradicional do povo português, desprezada pela secularidade da República, como propaganda ideológica do governo totalitário (FABIÃO, 1996: 96-104). Tal política, aliada à valorização dos territórios ultramarinos, será de suma importância para a manutenção do regime. A valorização das colônias estará, por sua vez, relacionada à concretização de missões científicas para esses territórios. Entre essas destacam-se as chamadas Missões Antropológicas. Realizadas durante a vigência do Estado Novo em várias províncias ultramarinas, abarcando pesquisas no âmbito da Antropologia Física, e em menor grau, da Etnologia e da Arqueologia, irão nutrir-se dos discursos nacionalistas do regime ditatorial na construção de seus projetos e discursos científicos. Assim, para o governo Salazarista, são os territórios ultramarinos juntamente com um ideal de reaportuguesamento do país (GOMES, 2006-2007: 197), que significa novamente um retorno aos tempos áureos dos Descobrimentos, que constituirão os pilares do regime. Por um lado, esse reaportuguesamento era representado por um retorno à vida rural, a um estilo de vida caracterizado pela simplicidade, pela vida em comunidade, pela importância do trabalho, da família, dos ideais patrióticos e religiosos. Por outro lado, a importância dos territórios ultramarinos andava em conjunto com a exaltação dos Grandes Descobrimentos, de forma que, nenhum tempo anterior ou posterior

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a esse, que representasse uma queda na grandiosidade do país, deveria ser lembrado (GOMES, 2006-2007: 205-208). Nos dois casos, o papel da Arqueologia parece secundário, de forma que, apesar da importância que as colônias tomam no regime, e a despeito das pesquisas arqueológicas realizadas no âmbito das Missões Antropológicas nos territórios ultramarinos, o projeto político para as investigações em ciências sociais terá a Arqueologia como conteúdo de menor importância no propósito de conhecer os indígenas do ultramar ou de valorizar o passado da Nação. ARQUEOLOGIA E ESTADO NOVO: O CONTEXTO BRASILEIRO

No caso brasileiro, o século XIX representa a contestação de um discurso arqueológico que se pode classificar como nobiliárquico, herdeiro do Primeiro e do Segundo Reinados, período durante o qual a disciplina nasce no país. Sob a égide desse discurso, as origens dos povos indígenas do território brasileiro passam a ser procuradas em antigas migrações de povos mediterrânicos, tais como fenícios, gregos e egípcios, ou mesmo de navegadores europeus modernos, como os provenientes do norte da Europa, como forma de justificar as origens nobres das elites nascentes (FERREIRA, 2009). Esses antepassados nobres dos indígenas eram personagens idealizados da construção do passado do território, ao passo que os nativos do presente, eram vistos como seres degenerados que tenderiam a ser absorvidos no corpo da nação. Nesse sentido, a conquista de seus territórios passa a ser justificada pela sua inevitabilidade, e a interferência cultural e política nessas comunidades como um símbolo inevitável do progresso. Essa construção discursiva tinha, entre outros seguidores, o apoio de Ladislau Neto (1838-1894), diretor do Museu Nacional, que defendia a hipótese de que os antepassados dos indígenas sul-americanos seriam oriundos de migrações de povos asiáticos (FERREIRA, 2009). No Museu paulista, dirigido por Hermann Von Ihering (1850-1930), por sua vez, as ideias sobre temas indígenas eram ainda mais conservadoras. Para o pesquisador, filiado às teorias científicas de fundo racista do período, tais como a hereditariedade racial da inteligência e do comportamento, e os discursos eugênicos, a política de extermínio dos nativos é matéria defensável, tendo sido inclusive objeto de artigo de sua autoria, publicado no próprio Jornal do Museu Paulista. O mesmo pesquisador também estará envolvido em uma polêmica com Ladislau Neto, acerca da origem dos sambaquis. Enquanto esse último pesquisador defendia, em concordância com Peter Lund (1801-

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1880), que os sambaquis tinham origem artificial, ou seja, eram resultado de depósitos humanos propositais, de restos alimentares e de sepultamentos, enviando, inclusive, várias missões com o propósito de recolher vestígios desses sítios, Von Ihering defendia que essas formações tinham origens naturais em lugares antigamente ocupados pelo mar. Tal opinião se coaduna, naturalmente, com a sua visão depreciativa da capacidade intelectual dos indígenas e da complexidade das suas culturas (FUNARI: 2002: 138139; PROUS, 1992: 8). Emílio Goeldi (1859-1917), então diretor do Museu Paraense, que haveria de levar, posteriormente, o seu nome, faz, em oposição à abordagem nobiliárquica de Ladislau Neto, um trabalho que é devedor de padrões espaciais, tecnológicos e estéticos, buscando ressaltar as complexidades culturais nativas e reconstruir suas filiações etnológicas. Com isso, se por um lado, ele rechaça a origem europeia dos indígenas, por outro lado, permanece nos horizontes de uma ciência colonialista, não somente no que tange à anexação dos territórios nativos, que também defendia, mas também à escolha geoestratégica dos locais de pesquisa, visando, por exemplo, o resguarde das fronteiras do país (FERREIRA, 2009). As primeiras décadas do século XX assistem a um aprofundamento das discussões acerca da importância dos povos nativos na constituição do povo brasileiro. No Museu Nacional, sob a diretoria de Roquette Pinto (1884-1954), entre 1926 e 1935, os estudos antropológicos e arqueológicos indígenas ganham destaque. O pesquisador estará, desde o início da carreira, ligado aos estudos arqueológicos. Já em 1906, faz uma expedição científica aos sambaquis do litoral do Rio Grande do Sul que lhe ajudará a moldar as suas concepções acerca da origem daquelas formações. Roquette Pinto, seguindo as teorizações de Charles Wiener (1851-1913), adotará a corrente mista, que defende a ideia de que tanto fatores naturais quanto antrópicos contribuíram para a formação daqueles sítios. Dessa forma, os sambaquis poderiam ser divididos entre aqueles que seriam fruto de processos ambientais, os que teriam nascido como resultado da acumulação fortuita de restos e outros, que seriam obras monumentais humanas (MUSEU NACIONAL: 2007-2008; LIMA, 1999-2000). Entretanto, será no âmbito da antropologia que as suas teorizações ganham especial destaque. Para Roquette Pinto, os brasileiros podiam ser divididos em tipos diversificados e sua variedade não era um sinal negativo de degradação das raças, mas sim uma característica positiva da nação. A partir das discussões da então denominada “moderna antropologia física” e inspirado, particularmente, nos princípios da escola alemã de Félix von Luschan, Rudolf Martin e Eugen Fischer, que negava a hierarquia entre as raças, Roquette Pinto argumentava que os defeitos atribuídos aos brasileiros eram menos características raciais que efeitos da má organização política e social do país.

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Baseado nos seus estudos, dividiu o povo brasileiro em quatro tipos antropológicos principais e argumentou que a miscigenação tenderia para o branqueamento da população ao mesmo tempo em que os vestígios de sangue negro e indígena dariam aos tipos brasileiros a necessária aclimatação ao meio ambiente nacional. Assim, se por um lado, Roquette Pinto produz um discurso racial que visa à construção da nacionalidade brasileira através da constituição do seu povo, por outro, a valorização do elemento branco em detrimento das outras raças que ele apontava como constituintes do corpo na Nação, indica a permanência do paradigma da inferioridade do indígena e do negro brasileiros (SOUZA, 2012). Durante a vigência do Estado Novo, os principais personagens do cenário arqueológico e antropológico nacional alteram-se. Entre 1937 e 1955, assume a diretoria do Museu Nacional, Heloísa Alberto Torres (1895-1977), que havia sido introduzida aos trabalhos do Museu como estagiária das pesquisas antropológicas de Roquette Pinto. Heloísa Torres fará uma carreira de pesquisadora profundamente ligada à arqueologia. Estudou sambaquis no litoral de São Paulo, sítios cerâmicos tupi-guarani em Minas Gerais, além das suas celebradas pesquisas sobre a cultura Marajoara. Também exerceu diversos cargos públicos relacionados a temas culturais, tais como no Conselho Nacional de Proteção ao Índio, no Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, além de ter participado da criação da Fundação Nacional do Índio (MUSEU NACIONAL: 2007-2008). Ainda durante o Estado Novo, passa a ocupar o cargo de diretor do museu Emilio Goeldi, Carlos Estevão de Oliveira (1880-1946) e o museu paulista passa a ser dirigido por Afonso d’ E. Taunay (1876-1958). Estevão, nomeado interinamente diretor do museu quando do Golpe de 1930, irá dirigir a instituição até o final do Estado Novo, em 1945. Durante a sua direção, as pesquisas arqueológicas tiveram grande desenvolvimento, em parceria com o Etnólogo alemão Curt Nimuendajú (1883-1945), e com a arqueóloga estadudinense Helen Palmatary, que também colaborou muito tempo com o Museu. Nesse período os temas indígenas permanecem em destaque, sobretudo os referentes à cultura Marajoara e Santarém (CUNHA, 1989). Já Taunay, diretor do Museu Paulista desde 1917, direciona os seus esforços discursivos em uma direção diversa dos outros dois pesquisadores. Reformula toda a exibição do museu, em razão da comemoração do centenário da Independência, transformando-a completamente em uma glorificação da recém-criada figura histórica do bandeirante, um dos pilares discursivos do Estado Novo. Tal figura servirá para dar vulto às elites do período e também para justificar as políticas desenvolvimentistas e de colonialismo interno do país, durante o período ditatorial (FUNARI, 2002). Ainda no mesmo contexto do Centenário da Independência de 1922, é fundado

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no Rio de Janeiro o Museu Histórico Nacional. Obra de Gustavo Dodt Barroso (18881959), um membro da elite nordestina que pretendia criar um espaço de resguardo das tradições do país. Barroso, que também foi membro da Ação Integralista Brasileira, imprimirá ao museu uma visão estatal e militarista da história do Brasil (BITTENCOURT, 2000-2001). A par disso, será responsável pela condução de Angyone Costa (1888-1954) ao cargo de professor do curso de arqueologia brasileira no Museu. Angyone Costa será mais uma figura de particular interesse no contexto arqueológico do período. Ele produzirá vários manuais da disciplina, abarcando temas tais como a arqueologia pré-colombiana, clássica e egípcia. Entretanto, seu tema de predileção será, sem dúvida, a arqueologia em contextos indígenas brasileiros. Obras como Introdução à Arqueologia Brasileira, publicado em 1934 (COSTA, 1980), Arqueologia Geral de 1936 (COSTA, 1936), Migrações e Cultura Indígena, de 1938 (COSTA, 1939), e Indiologia de 1943 (COSTA, 1943a), representam, assim, parte importante do panorama da produção do campo arqueológico brasileiro durante o Estado Novo. Não obstante a presença da Arqueologia e, particularmente, dos estudos de temas indígenas, nesse período, sobretudo através da ação de importantes personagens como Heloisa Alberto Torres, Carlos Estevão e Angyone Costa, a arqueologia, assim como no caso português, não será um campo privilegiado pelo regime ditatorial do período. Ao contrário dos estudos arquitetônicos e artísticos sobre o Barroco e, particularmente, da obra de “Aleijadinho”, que serão amplamente valorizados, as pesquisas arqueológicas ocupam um lugar secundário nos interesses políticos oficiais. Assim, o Barroco passa a encarnar, em meio ao contexto ditatorial e modernista do período, um forte símbolo do nascimento da cultura brasileira, da sua particularidade, da sua diferenciação em relação à metrópole. A sua riqueza estará justamente em sua interpretação pouco rebuscada, comparada aos exemplares europeus dessa escola artística, e no seu caráter eminentemente mestiço, quer em termos raciais, através do seu símbolo maior, Aleijadinho, quer em termos culturais, através das influências locais da sua interpretação. Mas também é um símbolo da obra civilizadora europeia, do poder constituído, conectando a jovem nação à Europa (NOGUEIRA, 2005: 198-234). Assim, se as pesquisas sobre temas indígenas prosseguem e se elas se inserem nas discussões acerca da origem do homem americano, e, por conseguinte, do povo brasileiro, elas não serão as escolhidas para representar os discursos oficiais nacionalistas e identitários do período, senão uma manifestação cultural que posiciona o Brasil na linha do tempo que tem a Europa como personagem central.

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ARQUEOLOGIA, NACIONALISMO E PODER: ALGUNS DIÁLOGOS POSSÍVEIS A análise do processo produtivo de qualquer discurso científico abarca diálogos internos da própria disciplina e um sem número de condicionamentos políticos, econômicos, sociais e mesmo circunstanciais que ajudam a circunscrever cada uma dessas produções discursivas. Assim, acompanhar o desenvolvimento de contextos científicos não implica localizar uma entidade exógena à própria sociedade na qual se inserem, uma espécie de contentor dentro do qual se encontra depositada uma forma de conhecimento puro e autônomo, claramente distinguível no tecido social, mas, ao contrário, é em meio a redes complexas, frágeis e caóticas, ou, nas palavras de Latour, em meio às galerias de um cupinzeiro, que a confiabilidade de uma mensagem é constituída e confirmada sua capacidade de tornar-se científica, de forma que apresenta-se um procedimento inócuo separar, em meio às diversas substâncias que constituem essas galerias, o que seriam os seus elementos científicos, dos econômicos, políticos, técnicos ou administrativos (LATOUR, 2000: 377). No caso específico do Estado Novo, essa análise implica em perceber as relações entre o contexto ditatorial e as abordagens científicas, neste caso, especificamente arqueológicas, nascidas nesse contexto específico. Tanto no Brasil, como em Portugal, percebe-se que a arqueologia, diferente do que ocorre em outros regimes de inspiração fascista surgidos no período, como na Itália ou na Alemanha2, não constitui campo preferencial de construção dos discursos oficiais. 2 Na Alemanha, o Terceiro Reich (1933-1945) irá enfatizar a política nacionalista alemã, que vinha a se

constituir desde o século XIX, assim como a importância da arqueologia pré-histórica nesse contexto. O uso de supostos símbolos germânicos antigos como a suástica ou as runas que simbolizavam a SS são alguns entre os muitos exemplos do fortalecimento de tais ideias durante o governo Nazi (WIWJORRA, 1996: 173-179). Uma figura de grande importância nesse período é Herman Wirth (1885-1981). Seu trabalho de interpretação de arte rupestre e de decoração cerâmica buscando perceber nesses vestígios os indícios de uma cultura pré-histórica atlanto-nórdica que teria se espalhado pelo mundo criando novas culturas e tornando-se os antecessores dos germanos, denota o forte nacionalismo a que os estudos pré-históricos estavam associados no período (WIWJORRA, 1996: 180-183). Algo semelhante acontecerá à Itália, onde o forte apelo nacionalista virá a enfatizar o passado romano da Nação e terá papel preponderante, sobretudo durante a decorrência do regime fascista. Muitas iniciativas são tomadas nesse período para glorificar o passado romano da Nação, como uma grande mostra sobre a Roma Antiga, a recuperação de dois navios do Lago Nemi e os trabalhos realizados, entre 1928 e 1939, na área do Fórum Romano e do Coliseu. Através dessa última intervenção, Mussolini procurou manifestar a grandiosidade do fascismo no interior do passado romano da cidade, com a construção da “Via dell’Impero”, que cria um conjunto em torno de edifícios emblemáticos, como o Pallazzo Venezia, que sediava o escritório do próprio Dulce, a Basílica de Maxentius, o Altar da Pátria de Vítor Emanuel, o Coliseu e o Arco de

Constantino. Tal conjunto passará a constituir uma caminhada pela própria história da nação ligando o período romano ao fascista, e favorecendo o discurso político do governo ditatorial

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Entretanto, percebe-se que as pesquisas arqueológicas prosseguem, tendo em conta temas específicos. Em contexto brasileiro, as discussões acerca dos indígenas, de suas origens e de sua importância na constituição da Nação prosseguem, como se pode atestar pelas discussões em torno da cultura Marajoara desenvolvida por Heloisa Alberto Torres e por Angyone Costa, por exemplo. Heloisa Torres defende abertamente que os marajoaras não seriam detentores de uma cultura superior, o que se comprovaria somente se eles tivessem deixado outros vestígios materiais correspondentes a uma cultura complexa, tais como construções de blocos de barro cozido, por exemplo. Além disso, ressalta que a cultura marajoara pode ser comparada a outros grupos históricos amazônicos, possuindo elementos típicos em comum e constituindo com esses um quadro equilibrado (TORRES: 1940: VI-IX). Em oposição, Angyone Costa defende que os responsáveis pela fabricação da fina cerâmica marajoara terá sido um povo de mais adiantada cultura, mais hábeis e com melhor gosto artístico em relação aos que posteriormente vêm habitar a região. Argumenta que os “Tupis puros” presentes na margem esquerda do Amazonas, além dos Aruã e os Neengaíba, possuíam vestígios de “cultura adiantada” quando da chegada dos europeus à América. Chega mesmo a cogitar a viabilidade de se encontrar correspondências entre a autoria dos mounds da região e povos da Flórida e do vale do Mississípi, nos Estados Unidos. Mais especificamente, Costa aventa que a substituição de um primeiro grupo de mulheres primitivas mais adiantadas culturalmente e a que se atribuiria a fabricação da cerâmica mais rebuscada da região, por outras bárbaras, fruto de espólios de guerra e escravidão, teriam levado à decadência da fabricação louçaria fina marajoara (COSTA, 1934 (1980): 75-89). As duas argumentações, a seu modo, constituem parte das discussões acerca da nacionalidade e do povo brasileiro, de suas origens, constituição e capacidade criativa. Ao mesmo tempo, representam uma continuidade em relação às discussões desenvolvidas dentro do campo da Arqueologia desde o século XIX. Entretanto, a valorização do Barroco permanece em destaque durante o Estado Novo brasileiro, direcionando a construção do discurso oficial acerca da brasilidade e da valorização do patrimônio nacional. Nesse contexto, a escolha do tema indígena, não significa uma desconexão entre os arqueólogos do período e o contexto político do país. Ao contrário, seus principais representantes manterão um diálogo claro com o governo ditatorial. Em 1937, é criada a Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, como parte do contexto de fundação do próprio Serviço e fruto da conciliação dos (GUIDI, 1996: 111-112; GOMES, 2006-2007: 201-202).

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interesses governamentais com os discursos produzidos pela escola modernista nascente. Logo na sua primeira edição, Heloísa Alberto Torres publicará um artigo intitulado “Contribuição para o Estudo da Proteção ao Material Arqueológico e Etnográfico no Brasil”. Nesse texto, ela discute a proteção às jazidas arqueológicas, coleções de museus e patrimônio de comunidades indígenas e “neobrasileiras” com risco de dissolução. Além disso, ela será membro nato do Conselho Consultivo do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, desde a sua fundação, cargo vitalício indicado pelo próprio presidente (TORRES, 1937). Já a ligação de Angyone Costa, com o regime, fica clara, entre outros exemplos, através da sua contribuição com a Revista Cultura Política. Esse periódico circulou de março de 1941 até outubro de 1945 e era a revista oficial do governo, diretamente vinculada ao Departamento de Imprensa e Propaganda. Definia-se como uma “revista de estudos brasileiros”, destinada a definir e esclarecer as transformações socioeconômicas por que passava o país. O próprio presidente Vargas enfatizou a importância de seu caráter doutrinário na construção das diretrizes do Estado Nacional. Em 1943, Costa escreve para a Revista “Observações sôbre a contribuição do Índio na nossa formação” (COSTA, 1943b). Texto praticamente análogo àquele publicado na introdução do seu livro do mesmo ano, denominado Indiologia. Esse texto ressalta as qualidades dos nativos na constituição do povo brasileiro numa ótica em que prevalecem os elementos europeus da colonização. Entre outras coisas, afirma ter o índio ensinado ao branco muitas coisas e contribuído com este, sobretudo, no âmbito do espírito, ajudando a alegrar e confortar os primeiros emigrados, sobretudo, a partir da ação da mulher indígena no domínio doméstico. Em contexto português, percebe-se um quadro semelhante que se exemplifica na figura de Mendes Correia. Conforme citado anteriormente, ele será, ao mesmo tempo, cientista e político atuante durante o regime ditatorial e assim como outros colegas, sobretudo relacionados às pesquisas arqueológicas ultramarinas atrelará seus discursos científicos às diretrizes políticas do Estado, enfatizando a importância estratégica das suas pesquisas (THOMAZ, 2005). Percebe-se, dessa forma, que os discursos científicos produzidos por esses arqueólogos, durante o Estado Novo, não podem ser desconectados daqueles produzidos, em âmbito oficial, pelo governo, ou o seu trabalho separado das redes burocráticas constituídas no âmbito do próprio regime. Muito embora os temas estudados sigam um diálogo iniciado no século XIX sobre a natureza do indígena, sua capacidade intelectual e complexidade cultural, a manutenção dessas discussões no interior do regime está relacionada às redes discursivas e de poder do período.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS A produção arqueológica no contexto estado-novista lusófono possui, sem dúvida, muitas particularidades se comparado à contribuição que tal disciplina tem nos discursos nacionalistas desenvolvidos por outros regimes constituídos no mesmo período. Nos dois casos, a arqueologia possui um interesse secundário para esses governos, que vão buscar em momentos históricos mais recentes os tempos áureos da Nação, a partir dos quais o regime deve se justificar no presente. Nos dois casos, percebe-se a importância de instituições de pesquisa e, sobretudo, de museus no prosseguimento das pesquisas arqueológicas durante o período. A manutenção dessas pesquisas, se por um lado, aponta para um diálogo próprio no interior da disciplina, por outro, demonstra ligações entre pesquisadores, instituições, produções discursivas oficiais e as próprias redes burocráticas e de poder do Estado. Dessa forma, não será possível estudar essa produção científica desconectada do contexto político do período, mas antes como parte intrínseca do momento histórico no qual se insere.

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COLÔNIA CORRECIONAL DE DOIS UNIDOS: COMUNIDADE E REPRESSÃO EM PERNAMBUCO

Elaine Michelly da Silva Matheus Amilton Martins

Dossiê

No. 10 ISSN 2237-8294 dezembro de 2014

ARTIGO

COLÔNIA CORRECIONAL DE DOIS UNIDOS: COMUNIDADE E REPRESSÃO EM PERNAMBUCO Elaine Michelly da Silva1 Matheus Amilton Martins2 RESUMO O presente trabalho tenciona apresentar um estudo de caso sobre a colônia penal localizada no bairro de Dois Unidos, Recife. Para sua inserção no contexto pré-golpe de 64, buscamos o entendimento das ações da SSP-PE sob a gestão do Cel. Costa Cavalcanti, a fim de apreender os panoramas de sua construção e uso, entendendo suas relações com o bairro em que se localiza. Palavras-chave: Ditadura Civil-Militar Brasileira; Abusos policiais nos regimes de exceção; Colônia Penal de Dois Unidos. ABSTRACT This paper aims to present a case study on the penal colony located in the neighborhood of Dois Unidos, Recife. To its insertion in the pre-coup of 64 context, we seek to understand the actions of the SSP-PE under the management of colonel Costa Cavalcanti, in order to grasp the panoramas of its construction and use, understanding their relations with the neighborhood in which it is located. Keywords: Brazilian Civil-Military Dictatorship; Police excesses in a state of emergency; Penal colony of Dois Unidos. RESUMEN El presente trabajo pretende presentar un estudio de caso sobre la colonia penal localizada en el barrio Dois Unidos, Recife. Para su inserción en el contexto pre-golpe de 1964, buscamos comprender las acciones de la SSP-PE bajo el mando del Cel. Costa

1 Graduanda em História pela Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: [email protected] 2 Licenciado em História pela Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: [email protected]

ELAINE MICHELLY DA SILVA e MATHEUS AMILTON MARTINS

Cavalcanti, con el objetivo de aprehender el marco de su construcción y uso, entendiendo sus relaciones con el barrio donde está localizada. Palabras clave: Dictadura cívico-militar brasileña; Los excesos de la policía en el estado de emergencia; Colonia penal de Dois Unidos.

SOBRE A SOCIEDADE PERNAMBUCANA E A FABRICAÇÃO DA AVERSÃO AO COMUNISMO O tema da ditadura civil-militar brasileira está difundido dentro de uma ampla bibliografia, dado o grande impacto e as cicatrizes que esse processo legou a nossa sociedade. Tais produções seguem as mais diversas linhas, o que gera um consequente problema na seleção dos fundamentos de pesquisa. Localizamo-nos nessas conjunturas a partir do delineamento de uma inserção no debate sobre a propaganda anticomunista nos anos anteriores ao golpe de 1964, para alçar a compreensão de como a estrutura repressora e penitenciária, em Pernambuco, se constitui no sentido de coibir as manifestações políticas de esquerda. É chave para o entendimento do contexto atentar para o histórico monopólio do poder político pernambucano por parte da elite usineira, herdeira direta dos senhores de engenho (COELHO, 2012: 68), que construíram a estrutura e os espaços de decisões sociais sob sua órbita de hegemonia – geralmente relacionados a União democrática Nacional (UDN) ou outros partidos da direita que transitavam ao seu redor – e as oposições que se constituíam aos seus projetos políticos. Nessa sociedade latifundiária e patriarcal – elaborada à imagem da antiga aristocracia açucareira – estruturam-se núcleos de resistência aos desmandos de tais oligarquias. No momento pré-golpe civil-militar (entre 60 e 64), dos diversos grupos de esquerda organizados no Estado, as Ligas Camponesas merecem destaque; não só pela estrutura, que contava, segundo Denise Rollemberg – ao destrinchar o posicionamento das esquerdas brasileiras –, com o “apoio de Cuba para montar campos de treinamento guerrilheiro no Brasil, visando à preparação de militantes para o confronto armado” (2007: 67); mas também pela amplidão de suas reivindicações expressas patentemente em suas palavras de ordem: “reforma agrária na lei ou na marra”. O cientista social Fernando Barcellos nos fornece um olhar quantitativo sobre a disseminação dessa organização: No início da década de 60, as Ligas Camponesas estavam em fase de acelerada expansão. Atingiram, praticamente, todo o Estado de Pernambuco, embora suas lutas mais intensas fossem na Zona da Mata. Em determinado momento de 1961, chegaram a ter 10 mil associados e 40 sedes municipais [...]. De 1960 a 1962 as Ligas estavam presentes em mais de

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uma dezena dos Estados brasileiros (2011: 7-8).

Fernando Coelho, ao observar o diferencial da sociedade civil, em Pernambuco – que conta com uma maior participação do elemento proletariado urbano-rural, em comparação ao restante do Brasil – aponta para tal abrangência, elaborando uma ressalva quanto à capacidade organizacional interna das entidades camponesas. Em suas palavras há certa escusa à contradição existente entre o tamanho do movimento e seu rápido desmantelamento pela repressão que seguiu o pós-golpe: [...] o campesinato surgia como novo figurante nas lutas sociais, com força redobrada após as conquistas [eleitorais] de João Goulart e Miguel Arraes. Marcando presença. Fazendo-se ouvir através das Ligas Camponesas e dos Sindicatos Rurais, que – embora ainda precariamente organizados – se multiplicavam pela zona da mata. Colocando suas reivindicações. [...] Em posição de oposição a das grandes entidades patronais, como a Federação das Indústrias e a Associação Comercial – ambas atuando na órbita da UDN [...] (COELHO, 2004: 64, grifo nosso).

Os estudos de Antônio Torres Montenegro, que tocam a “cultura do medo” na construção da imagem das esquerdas pela mídia pernambucana, fornecem-nos um suporte para discutir sobre o tema. Ao delinear as linhas com que trabalhou na concepção do artigo “Labirinto do medo: o comunismo (1950-1964)”, ele nos assinala a interessante configuração com que: [...] a discussão sobre a forma como, a um acontecimento comum no período – o incêndio de canaviais –, na denominada zona da Mata de Pernambuco, foi associada uma outra rede de significação, ou seja, a ameaça comunista. Na imprensa, no rádio, nas feiras livres do interior, nos púlpitos das igrejas, era reafirmado que os incendiários dos canaviais não passavam de comunistas que desejavam destruir a propriedade, a religião e a família. Assim, era produzida toda uma representação de medo, de temor, associado aos incêndios dos canaviais. Na época não era uma prática comum a queima antes do corte da cana, como se faz hoje (MONTENEGRO, 2009: 216).

Outra informação que nos é indicada pelo seu trabalho, é a referência ao acontecimento do engenho Cairá, que segundo reportagem do “Diário de Pernambuco”, se trataria de um incêndio criminoso no canavial provocado por um avião: “a matéria dizia, inicialmente, que alguns senhores da região falaram à reportagem que, provavelmente, aquele incêndio era de responsabilidade do líder das Ligas Camponesas, Francisco Julião”. Entretanto, uma posterior investigação policial desemboca em [...] um relatório de 14 páginas, produzido por dois agentes da polícia de Pernambuco, acerca desse episódio. [...] O resultado [...] é um rico documento, onde a história do avião incendiário é inteiramente desconstruída, pois os trabalhadores afirmam de forma unânime que ‘aquilo é história de menino, ninguém ali acredita’ [...]. Não há no relatório confidencial escrito por esses agentes nenhuma referência a comunistas ou ao ‘pessoal das Ligas Camponesas’, como costumava aparecer na imprensa (Ibidem: 216-217).

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Apesar desse esforço investigativo, Montenegro destaca que nenhum de seus resultados enviados ao delegado auxiliar do Estado de Pernambuco se tornou de conhecimento público. É possível, a partir dessas informações, sugerir que a formulação do sentimento de medo aos comunistas, pode ser encarada como uma construção social, fruto de uma evidente manipulação de informações por parte da mídia, e da omissão e negligência na divulgação dos resultados das investigações por parte das autoridades policiais responsáveis. É o sentimento de estranhamento e de aversão ao comunismo que fornece a “liga” social, a argamassa que vem a alicerçar o edifício do sistema repressor, posterior a 64. Esse que, para além de desbaratar os movimentos de esquerda, aniquila seus integrantes, desde o âmbito físico ao moral. SISTEMA DE VIGILÂNCIA ÀS ESQUERDAS EM PERNAMBUCO: A SECRETARIA DE SEGURANÇA PÚBLICA As mesmas autoridades que impedem a divulgação de investigações, que desmistificariam situações que a mídia construíra como obra de “comunistas” atentando contra a propriedade privada, aparentam estar relacionadas com os personagens que ganham destaque na historiografia pela formulação de um aparelho repressor dentro dos instrumentos policiais e policialescos. A situação de Pernambuco aparenta ter um destaque espacial. Dimitri Felix do Nascimento, na sua análise sobre a estrutura do Serviço Nacional de Informações (SNI) no período pós-golpe, expõe que Recife foi uma das primeiras [capitais] a ser instalada uma Agência do SNI na cidade, porém sabemos que, por ser o Estado de Pernambuco um dos quais as mobilizações populares apresentavam um maior grau de radicalismo, os desafios também eram enormes para as funções que fora criada, desta forma a agência agiu conjuntamente, com as Forças Armadas e a Polícia Estadual, mas, sobretudo com o CENIMAR, agência que tinha mais experiência de investigação aos comunistas e outros agentes (NASCIMENTO, 2013: 5).

Contudo, a produção de Nascimento não elabora uma questão fundamental para o entendimento da repressão no Estado, qual seja, a ideia da existência de uma articulação prévia – que remonta a mais de uma década antes do golpe – na qual a Secretaria de Segurança Pública (SSP) vinha sendo instrumentalizada para perseguição dos movimentos sociais que se punham em oposição às elites usineiras locais. Assim a SSP, sob o comando de grupos ligados as direitas locais, toma para si uma função de instaurar um clima de insegurança local, afirmando “[...] veementemente que a sociedade não teria segurança, enquanto as ideias comunistas e seus defensores

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não fossem extintos, porque o estado encontrava-se à beira de uma insurreição, de uma revolução [...] caso os comunistas não fossem vencidos” (CAVALCANTI, 2010: 7). Erinaldo Cavalcanti investiga a atuação da SSP no interior Pernambucano, mais especificamente no município de Garanhuns, e nos fornece um quantitativo de mais de 250 pessoas filiadas ao Partido Comunista, desde 1947, quando o partido entra na ilegalidade, segundo fichas das investigações conduzidas por aquele órgão (Ibidem: 7). Se esse quantitativo de informações estabelece-se para a interiorana cidade Agrestina, imaginemos, pois, a dimensão na qual se desenrola a atuação da SSP no centro político do Estado, a cidade do Recife. É nesse cenário que encontramos a nomeação, em 1959, do Cel. Costa Cavalcanti para secretário de segurança pública do Estado de Pernambuco, durante o mandato do usineiro e governador Cid Sampaio (UDN). Sua chegada ao cargo deve-se à instituição por parte do ministro da guerra do governo Kubitschek, Gen. Henrique Teixeira Lott. De antemão, apontamos que essa conexão carece de melhor investigação em dois âmbitos: primeiro, na própria conexão pessoal de Lott e Cavalcanti; e em sequência, na relação político-administrativa entre a SSP e o ministério da Guerra. Entretanto, a partir das atividades que desempenhou no seu cargo, em associação à situação do embate dos usineiros e dos movimentos camponeses, pode-se supor que sua missão em Pernambuco dizia respeito à articulação de um sistema de vigilância e repressão aos grupos de esquerda, como instrumento político da elite local e uma prevenção ao “perigo vermelho”. Tal conjectura não passa sem fundamentação. Tomando como exemplo a história do bairro de Dois Unidos, nosso foco de investigação, podemos perceber a criação de toda uma rede planejada para sistemática repressão aos movimentos sociais, elencando vários fatores nesse sentido. AS POLÍTICAS DE COSTA CAVALCANTI PARA A LOCALIDADE DE DOIS UNIDOS: “SEGURANÇA, CASA E ESCOLA” Tomando como base os fundos de documentação do DOPS, sob a guarda da APEEJE-PE, temos certa noção de como a experiência política vinha sendo acompanhada pela SSP. No prontuário individual de Manoel Cipriano da Silva – vulgo Manoel Barbeiro, liderança da esquerda no bairro de Dois Unidos – encontramos um relatório, redigido à mão, de Idio Santos Pinto, agente social, descrevendo a observação de suas ações políticas, ainda em dezembro de 1947. Nele podemos ler: [...] convidava [Manoel Barbeiro] os operários de uma fábrica de calçados que fica na aproximidade [sic] de sua residência para o comício de hoje. [Manoel e seus dois companheiros] Encorajavam os mesmos, dizendo:

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Que não tivesse medo de polícia, que tiro para o ar só matava passarinho3.

Tal vigilância tem continuidade e, aparentemente, ganha maior atenção sob o secretariado de Costa Cavalcanti. A região de Dois Unidos apresenta-se nos relatórios – integrantes do prontuário institucional referente à Colônia Correcional de Dois Unidos – de agentes sociais como um locus privilegiado de atuação dos movimentos de esquerda. Em janeiro de 1960, o agente social Benedito Gomes de Lima aponta as atividades de divulgação política das principais lideranças da localidade, encontramos então: Em um nucluo [sic] da Frente Popular Nacionalista, o presidente [...] conhecido no local pelo vulgo de Zéca. [...] Em frente ao nucluo[sic], de um poste a outro, achava-se uma facha[sic] com os seguintes dizeres ‘Com Cid, Arraes e Rangel, teremos a garantia de nossos direitos’, em continuação pude anotar mais adiante que existia outro nucluo[sic] do Partido Socialista Brasileiro, grupo de base de Dois Unidos, sendo o presidente do mesmo, João Barbino. Outra facha[sic] com os seguintes dizeres: Lutaremos para a garantia de nossa família4.

Ainda nesse documento, encontramos, mais uma vez, Manoel Cipriano presidindo uma organização com uma nomenclatura que parece se relacionar às Ligas Camponesas: [...] Encontrei uma Associação Agricula Peculiaria [sic] de Dois Unidos. O presidente da mesma é conhecido pelo vulgo de Manoel Barbeiro, e em frente a referida Associação estava uma facha [sic] com os seguintes dizeres: A nossa vitória é a vitória do povo5.

A partir de então, o investigador parece seguir em missão de perseguição às figuras de esquerda da região de Dois Unidos. Quatro dias mais tarde, em 16 de janeiro, escreve novo relatório apontando para continuação da observação dos mesmos cidadãos, se dizendo “[...] em cerviço[sic] aos elementos residentes em Dois Unidos, como seja Edgard Manoel de Moura, Carlos Francisco Junqueira, Alonso, guarda municipal, Zeca pedreiro e Mario José de Souza”6. Encontramos, no mesmo prontuário, recortes de jornais e documentos oficiais que apontam para esse período como o momento em que se gesta a ideia da construção da Colônia Correcional de Dois Unidos. Em cópia do diário oficial de 26 de março de 3 Fundo SSP/DOPS/APEJE: 9204. Prontuário individual nº2770. Manoel Cipriano da Silva. 4 Fundo SSP/DOPS/APEJE: 4276. Prontuário institucional nº 1482D. Colônia Correcional de Dois Unidos. (Documento da SSP-PE, de autoria de Benedito Gomes de Lima em 07/02/60, sobre a vigilância do Bairro de Dois Unidos). 5 Idem. 6 Idem. (Documento da SSP-PE, de autoria de Clovis Calixto da Silva em 16/01/62, sobre a vigilância do Bairro de Dois Unidos).

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1960, em posse da SSP, o governador do Estado, Cid Sampaio, reúne uma junta de autoridades competentes para elaborar “O REGULAMENTO DA COLÔNIA DE REEDUCAÇÃO, ora em construção em Dois Unidos”7. Entre essas está Fernando César Tasso de Souza, delegado auxiliar da SSP, o mesmo que em artigo ao Jornal do Comércio de 17 de maio de 1962, aponta para a deturpação do projeto original de tal estabelecimento penal: [...] O que [eu] defendia ardorosamente não se podia interessar aos que de polícia somente compreendem linguagem da violência física e moral, dos castigos mediáveis, de há muito superados. É que fiz ver da necessidade de vir a ser essa Colônia, não apenas um depósito de preso, mas sobretudo um reformatório capaz de desempenhar a sua nobre e elevada missão, recuperando o homem para a sociedade. Disse, vezes inúmeras, que a legislação pátria não mais autorizava a existência das chamas ‘colônias correcionais’ do passado, época em que a polícia podia prender alguém e carregá-lo, sem julgamento, desde que sob a alegação de ‘correcional’, o que deu margem a abusos de toda ordem. [...] E o resultado aí está. A Colônia inaugurada festivamente, sem regulamento algum, sem saber a Justiça a sua finalidade especifica, entregue a sua direção a um oficial da Polícia e a um investigador, desconhecendo-se as suas possibilidades de recuperar o homem-detento como um autêntico ‘depósito’ de presos ilegalmente recolhidos, fugindo inteiramente de sua finalidade e violentando a lei [...]8.

A notícia do Diário de Pernambuco de 18 de março de 1962, nos fornece uma singela noção de quem é o responsável pela idealização da Colônia nos panoramas, supracitados, da fala de Fernando César Tasso de Souza: “A Colônia reeducacional de Dois Unidos, um dos grandes planos realizados pelo secretário da Segurança Pública, Cel. Costa Cavalcanti [...]”9. Esse personagem aparece também como articulador de um acordo com “o Programa do Ponto IV – idealizado pelo presidente americano, Harry Truman, com o objetivo de prevenir a ‘infiltração comunista’. Isso se traduzia na combinação de ajuda econômica e treinamento das forças policiais dos países da região”. (PROJETO CONTEMOS NOSSA HISTÓRIA, s/d : 17), para construção de uma Escola policial nas imediações da Casa Correcional, como conta a notícia do Diário de Pernambuco de janeiro de 1961: Acompanhado pelo representante de Ponto IV em Pernambuco, Sr. Gleason, o Secretário da Segurança Pública, coronel Costa Cavalcanti, esteve, ontem, em visita às terras de propriedade do Estado, em Dois Unidos.

7 Idem. (Cópia do Diário Oficial de 26/03/60, que trata sobre a elaboração de um regulamento para a Colônia Reeducacional de Dois Unidos). 8 Idem. (Recorte do Jornal do Comércio de 17/05/62, trata-se de uma artigo de opinião de Fernando Tasso de Sousa com a manchete “A Colônia Penal de Dois Unidos”) 9 Idem. (Recorte do Diário de Pernambuco de 18/03/62, com a manchete “Colônia Reeducacional de Dois unidos: Primeiros Resultados”).

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O principal objetivo da visita foi a escolha, ali, do local destinado à construção da Escola de Polícia de Pernambuco, através do Ponto IV. O imóvel se levantará segundo o processo de casas pré-fabricadas, vindo as suas peças dos Estados Unidos da América10.

Em 1962, Dois Unidos aparenta ser um espaço privilegiado do investimento em segurança pública. Mais do que relacionado à existência da Colônia Correcional, podemos imaginar essa Escola como mais um componente da estrutura repressora, montada pela SSP na intenção de desbaratar os movimentos sociais de esquerda. Compõem-se assim um significativo conglomerado policial, que inclusive impulsiona a construção do bairro em suas cercanias. DOIS UNIDOS: A COLÔNIA E SEUS RASTROS A própria existência do presídio no bairro de Dois Unidos, Recife – em associação ao fato dessa não ser destacada na historiografia atual, como parte integrante do sistema penitenciário da cidade do Recife – o coloca numa posição de estranhamento e suspeição para nosso trabalho, o que dentro do contexto do regime militar, abre margem para determinados caminhos de análise. O primeiro indício levantado sobre a Colônia Penal de Dois Unidos se deu através do manejo de documentos (habeas corpus) sob a guarda da Diretoria de Documentação/Arquivo Geral do Tribunal de Justiça de Pernambuco (DIDOC/TJPE), que trazem no corpo do texto referências a várias prisões, de legitimidade duvidosa, cujas custódias dos presos apontam como sob a guarda e competência da referida colônia. O paciente supra qualificado, encontra-se sofrendo coação ilegal por parte do titular da Delegacia de Investigações e Capturas, que sem um motivo justificável, vem o mantendo preso na prisão de Dois Unidos sem que para tanto tenha ocorrido às hipóteses previstas [...]11.

Diante da recorrência de processos da mesma categoria, com conteúdos similares, como também da persistência dos delegados citados, em negar a custódia dos pacientes (réus), levanta-se a tese de estarmos diante de um espaço utilizado para sistemática repressão e ocultação de prisioneiros. Um exemplo satisfatório da atitude das autoridades pode ser encontrado no trecho da resposta do delegado Carlos Veras ao habeas corpus supracitado: “Em resposta a solicitação contida no ofício n 105, de 22 do corrente, datado, desse juízo, informo a V. Exª que o Paciente: P. A. M. citado no oficio em referência não se encontra preso à disposição dessa especializada”12. 10 Idem. 11 TJPE. Processo de Habeas Corpus. 1ª vara Crime. Pct 396 (CV17). 1966. 12 Ibdem. Ofício 268/66 parte integrante do processo de Habeas Corpus.

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Essa suposição se enquadra num conjunto de argumentos sobre a perseguição política durante a ditadura. Nos autos, se observou também a preocupação dos advogados em mencionar as práticas desumanas realizadas naquele espaço, chegando a compará -las aos campos de concentração. A S. S., que se encontra preso, recolhido a Colônia Correcional de Dois Unidos (o mais recente campo de concentração de que se tem notícia na América) por ordem emanada do Sr. Delegado da Delegacia de Roubos e Furtos, há mais de oito dias, numa demonstração lógica e incontestável, da ilegalidade do ato da autoridade policial. Que o paciente esta proibido de comunicar-se com seus familiares. [...] Que o paciente tem sido submetido a toda prova de maltrato, físico e moral, como se não existisse nem lei nem justiça13.

Em outro processo, encontramos uma comparação direta com instalações do período da segunda Guerra Mundial, utilizada por nazistas para o extermínio, tortura e trabalho forçado dos Judeus: [...] o paciente preso naquela delegacia ou por ordem do Sr. Delegado, não há pairarem dúvidas, pois a informação foi do Sr. Comissário, que informava a prisão do paciente, e que não o soltaria, porquanto iria recambiá-lo a Dois Unidos, a Colônia Penal que lembra os centros de concentração Nazista14.

Tal ponto é intrigante, na medida em que relaciona explicitamente a colônia penal de Dois Unidos com um espaço de utilização da razão técnica, direcionada especificamente para o aniquilamento do outro. No entanto, é mais seguro afirmar que tal denominação direcionada à colônia, implica na presença de trabalhos forçados e no duro tratamento enfrentado pelos detentos, sem excluir com isso, a prática de assassinatos e ocultação de cadáveres. Todos esses indícios são encontrados nas falas de moradores do local, que experienciaram o cotidiano da Colônia Penal de Dois Unidos. Trazemos o testemunho de Dona Maria da Soledade Paixão, residente na região desde seus 12 anos de idade, que corrobora com essa ideia: [A polícia] batia pelo meio da rua a gente via batendo, eu mesmo... tinha um cabo aí que batia era muito nos presos no meio da rua fazia pena, caia no meio da rua se levantava saia ia simbora [embora] mesmo que batia muito. Porque os policiais traziam os presos pra trabalhar pra eles... Lá perto da minha casa mesmo tem uma casa que foi eles que construíram; [...] o homem era policial trazia os presos aí um dia ele trazia pra trabalhar, os presos tudo com fome às vezes até pedia comida aos vizinhos eles batiam no preso que não era pra pedir comida né? o pessoal tinha pena...Um dia um preso fugiu era três que trouxeram pra trabalhar no fim dessa rua eu sei até a casa hoje já é a viúva já é outras pessoas que moram, mas quando ele era noivo o policial ia casar e fez a casa trouxe três presos. Aí ficou um preso fugiu desses três... Acho que com fome né? Ali pra dentro era uns matos... Apanhou tanto, os dois que ficou, que não tinha nada a ver, né? [...].

13 TJPE. Processo de Habeas Corpus. 2ª vara de Patrimônio. Pct 924. 1968. 14 TJPE processo de Habeas Corpus n.895. 1ª vara de Patrimônio. Pct 80 (CV18) 1971.

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Não seio o que foi que o preso fez... [o policial] deu uma pancada na cabeça dele que o preso caiu, [...] Mataram o preso depois eles tiravam né?... Sem dúvida. Não tinha quase ninguém. Tinha pouca gente, não era essa população de hoje15.

Os testemunhos de violência e assassinato, como o de D. Maria, não são poucos, mas se tratando da Colônia, sua excepcionalidade reside no desconhecimento dos fatos para além dos limites do bairro de Dois Unidos. Ainda sobre a violência e o abuso de poder, Coelho diz: Quem exercitava o poder físico de prender, dos comandos à periferia da estrutura policialmilitar, passava a ser juiz absoluto e incontrastável da liberdade dos demais cidadãos. [...] Os direitos individuais e as garantias fundamentais da pessoa humana nada significavam e não impunham qualquer limitação à prática arbitrária das autoridades (COELHO, 2012: 219).

Na ausência de uma fonte direta, construímos outros caminhos que nos auxiliem a reforçar a tese de que o espaço era utilizado, também, como prisão política. Com refino da busca, utilizamos a lista dos torturadores, disponível no livro Brasil Nunca Mais, resultado de um projeto desenvolvido clandestinamente durante os anos de Chumbo, que trazem os nomes de alguns delegados ativos em Pernambuco conhecidos por sua postura anticomunista e pelo uso sistemático da tortura em presos políticos. São exemplos contundentes, nesse sentido: Nivaldo Braz de Almeida, Bartolomeu Gibson, Evandro Couceiro, Carlos Veras. Todos esses personagens de habeas corpus negados pela ausência da custódia do paciente, que é indicada sob a competência da Colônia Penal de Dois Unidos. Diante do exposto, podemos inferir, a partir do manejo dos documentos, a existência de um “ponto cego” na historiografia: tal Colônia Penal se associava às perseguições políticas em Pernambuco, ainda que, na visão dos habitantes da região, esse locus fosse residência de presos condenados pela prática de crimes pequenos. Tal leitura é, decerto, uma demonstração do poder de dissimulação do governo militar, de tal maneira que a identidade dos prisioneiros sucumbe ante a produção da cultura e da memória local. Como pode ser evidenciado pela música carnavalesca da região, declamada por D. Maria: Você precisa conhecer o Dois Unidos, [...]/ Você precisa conhecer o Capitão,/ [...] Você precisa carregar pedra pesada/ Nessa cabeça rapada [raspada] pra deixar de ser ladrão16.

15 PAIXÃO, Maria da Soledade. Entrevista concedida a Matheus Martins e Elaine da Silva sobre a Colônia Penal e a Comunidade de Dois Unidos. Recife-PE, 13-01-2014. Acervo de entrevista do LAHOI-UFPE. 16 PAIXÃO, Maria da Soledade. Entrevista concedida a Matheus Martins e Elaine da Silva sobre a Colônia Penal e a Comunidade de Dois Unidos. Recife-PE, 13-01-2014. Acervo de

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A PRÁTICA DO IPM: ORIGEM DOS HABEAS CORPUS NEGADOS Do período pós-golpe até o Ato Institucional de número 5 (1964-1968), “havia uma preocupação do regime em orientar suas pretensões punitivas por meio do aparato institucional” (CARVALHO, 2013: 15). Nesse ínterim, os IPMs funcionam como ferramenta para repressão política contra intelectuais, professores e funcionários públicos. Tais inquéritos tinham como objetivo apurar e comprovar a ação de grupos “subversivos”, fornecendo a base jurídica tão necessária aos governos autoritários do século XX. Cabe-nos, neste artigo, entender que as brechas criadas pelos militares – na tentativa de emular, e legitimar-se, como democratas – refletem-se também na ação legal de defesa dos acusados. Assim, garante-se a possibilidade do pedido de habeas corpus, na tentativa de projetar uma ideia de legalidade nos parâmetros de atuação autocrática e arbitrária do regime. No entanto, não há nada de democrático nessa prática, haja vista que concebe e possibilita uma série de manobras realizadas cotidianamente, pelos envolvidos com o regime, na intenção de burlar e atrasar a libertação de prisioneiros. Esse conteúdo se integra à nossa pesquisa no ponto que tange os processos habeas corpus em tal período. Sendo assim, nos deparamos com dois questionamentos que nortearão o entendimento dessa documentação: primeiramente, quais os tipos de ação e como se dá o mecanismo judicial que culmina na formulação do processo apresentado à justiça? E o mais importante, como esse mecanismo foi utilizado ou desmontado pela Ditadura a ponto de haver tantos pedidos julgados “prejudicados” pelo TJPE, ou seja, sendo esse, um recurso contra a coação ilegal sofrida por muitos – coação instituída e legitimada pelos IPMs (Inquérito Policial Militar) – quais os mecanismos utilizados diariamente pela “Justiça Fardada” para desmontar o direito concedido pelos habeas corpus? Vale salientar o campo burocrático que culmina no pedido de habeas corpus; em traços gerais, a ação consiste na prisão do “suspeito/acusado”, numa condição específica, o flagrante. A partir da prisão, o advogado entra com o pedido de habeas corpus (caso essa prisão tenha sido realizada ilegalmente ou em tantas outras situações, como quando a legalidade não é um fator importante para o exercício da autoridade policialesca) esse é apresentada ao Juiz da Vara Crime, que por sua vez pede explicações a Autoridade Coatora – Delegado das Especializadas responsável pela prisão. Finalizando esse ciclo de relações, as informações solicitadas são remetidas por ofício ao Juiz, que julga prejudicado, ou não, o pedido. entrevista do LAHOI-UFPE.

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O que acontece com esse mecanismo, no período estudado, é uma multiplicação de informações desencontradas, falsificadas e a utilização dos Inquéritos Policial Militar (IPMs) como instrumentos de coação (i)legal, com a intenção de manter sob custódia militar partidários de movimentos sociais ou figuras públicas que se opusessem ao golpe de 64. Sobre o tema, Fernando Coelho relata o caso da prisão do Governador deposto de Sergipe, Seixas Dória, que tem o habeas corpus concedido pelo Supremo Tribunal Federal e o mesmo não é cumprido pelo então comandante do IV Exército Mourão Filho, sob alegação de que Seixas estaria respondendo a outro IPM. Vê-se, portanto, que paralelo à falsificação de informações, a multiplicação dos Inquéritos constituem uma arma nas mãos dos militares (COELHO, 2012: 283). É parte dessa manobra “[...] a farsa de fingir libertar presos políticos beneficiários de ordem de habeas corpus, para imediatamente após, prendê-los novamente (COELHO, 2012: 285) – com a justificativa de que estariam respondendo por outro IPM. Tal manobra foi tentada, inclusive contra Miguel Arraes como frisa Coelho ao citar a obra de Antônio de Brito Alves, “O habeas-corpus de Miguel Arraes”. Ainda tratando do manejo com a burocracia judiciária, o translado de presos figura como artimanha eficaz no que tange retardar a concessão do direito ao habeas corpus. Essa manobra consiste na transferência dos presos das Delegacias Especializadas, unidade responsável pela prisão, aos Comissariados dos bairros. Tal estratégia funcionava para mantê-los sob guarda policial, anulando a ação do Judiciário, já que o responsável direto pela prisão não responde pela custódia do detento. Eduardo Ratis, presidente do Sindicato dos Gráficos, em carta coletiva enviada ao jornal Correio da Manhã do Rio de Janeiro, relata as longas sessões de espancamento a que foi submetido entre o Comissariado de Água Fria e o buque da SSP (COELHO, 2012: 472). Nesse mesmo conjunto de cartas, encontra-se uma referência à Escola de Polícia de Dois Unidos. Menção que entrelaça definitivamente a utilização do espaço com a prática de tortura: Funcionários do IAPI, posto do Recife, Banco do Brasil, foram igualmente conduzidos a comissariados, onde eram atirados sem roupa e sem alimentação, no xadrez molhado e infecto. Espancados, ameaçados de suicídio (“ninguém sabe onde você está!”), altas horas da noite eram conduzidos à Escola de Polícia (doada pelo Ponto IV) e interrogados por Chico Pinote. Ou o depoimento era assinado sem ser lido ou a vítima retornaria ao comissariado (COELHO, 2012: 473).

Essa passagem corrobora o que tem sido levantado pela pesquisa em dois sentidos: o presídio de Dois Unidos integrava o dispositivo utilizado pela Ditadura para suas práticas hediondas, e em sequência, delineia a existência de presos políticos em Dois Unidos. Haja vista que muitas dessas manobras são identificadas nos processos em

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questão. Essas informações, ao que parece, não eram do conhecimento da população local, o que denota uma preocupação em dissimular a permanência de presos dessa categoria na referida Colônia. CONSIDERAÇÕES FINAIS Sabendo que Pernambuco conheceu a face mais dura da repressão, resultado de práticas coercitivas e de um histórico de atividades ditas “subversivas”, uma das preocupações da nossa pesquisa, ao se debruçar sobre o momento anterior ao golpe, foi tentar compreender o clima político do Estado que resultou em tamanha perseguição e, por conseguinte, na montagem do aparelho coerção, tortura e punição. Esse olhar é focalizado, sobremaneira, na construção da Colônia Penal de Dois Unidos. Diante desse cenário, encontramos uma ação conjunta entre a Secretaria de Segurança Pública do Estado, na figura do Cel. Carlos Cavalcanti, e o Plano Ponto IV – entidade Norte Americana de financiamento ao treinamento da polícia, na América Latina, para o combate anticomunista – comprovando uma atuação do governo dos EUA na vida política do Estado. Dessa ação, resulta a construção da Escola de Policiais de Pernambuco, que se avizinhava ao presídio ou Colônia Penal de Dois Unidos. Com tais informações a mão, a leitura do habeas corpus ganhou um peso diferenciado. Partindo dos estudos de Fernando Coelho, temos visibilidade das inúmeras manobras realizadas pelo sistema policialesco. Essas explicam o número de prisões e transferências para a Colônia Correcional de Dois Unidos, na qual corriqueiramente a custódia do paciente/réu é negada pelas autoridades. A recorrência dessa prática, nos levou ao nome de alguns delegados, tidos como torturadores em Pernambuco, segundo o Projeto Brasil Nunca Mais. Dados que reforçam e legitimam a tese levantada. Conclui-se, portanto, que o espaço citado, a Colônia Correcional de Dois Unidos, reúne, desde a sua construção na década de 1960, elementos que a colocam dentro da estrutura montada, primeiro pela SSP, de uma política de vigilância às esquerdas e aversão ao comunismo durante o pré-golpe; e pela Ditadura civil-militar como locus ideal para a prática de tortura e interrogatórios no período pós-golpe. É bem verdade que nossa pesquisa tem proporções que extrapolam os limites do que pode ser redigido num artigo, diante da complexidade de relações e da vasta documentação existente sobre a Colônia. Tal entendimento desemboca no reconhecimento de uma produção limitada, mas que possibilitou o vislumbre do estreitamento das relações entre a Colônia e a Ditadura. Entretanto, os sujeitos “esquecidos”, as vítimas da crueldade policial, ainda se apresentam para nós como rostos anuviados. Maneira pela qual se expõe um novo desafio para historiografia contemporânea, que só pode

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ser vencido através de um longo trabalho de investigação. Desvendar “o Dois Unidos” é o “carregar pedra pesada nessa cabeça raspada”, como mencionado na canção de D. Maria, que nos possibilita o reescrever da história a partir do olhar sobre o Outro, derrotado e perdido.

ARQUIVOS DE PESQUISA: Fundos do Departamento de Ordem Política e Social(DOPS) sob a guarda do Arquivo Público Jordão Emerenciano (APEJE-PE) Fundos do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE), sob a guarda daDiretoria de Documentação/Arquivo Geral do TJPE. Acervo de entrevistas do Laboratório de História Oral da Universidade Federal de Pernambuco (LAHOI-UFPE). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARCELLOS, F. H. G. Francisco Julião e as ligas camponesas: uma análise das narrativas e usos do passado, Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura, 2011. Disponível em , acesso em 03 de fev. de 2014. CARVALHO, C. P. Intelectuais, cultura e repressão política na ditadura brasileira (19641967): relações entre direito e autoritarismo. 2013. Dissertação (Mestrado em Direito). Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito. Universidade Nacional de Brasília, 2013. CAVALCANTI,E. V. “Narrativas do medo: Histórias e memórias das ameaças comunistas em Pernambuco (1960 – 1964)”. In: X Encontro nacional de história oral: testemunhos; história e política, 2010, Recife: Anais eletrônicos. Recife, UFPE, 2010. Disponível em < http://www. encontro2010.historiaoral.org.br/resources/anais/2/1269101964_ARQUIVO_NarrativasdoMedo.pdf>, acesso em 03 de fev. de 2014. COELHO, F.V. Direita, volver: o golpe de 1964 em Pernambuco. 2.ed. Recife: Bagaço, 2012. MONTENEGRO, A. T. “História política e cultura do medo”. In: Confluenze, Vol. 1, No. 2, pp 212-226, Dipartimentodi Lingue e Letterature Straniere Moderne, Universitàdi Bologna, 2009. NASCIMENTO, D. F. do. “O Serviço Nacional de Informações (SNI) e a Polícia Militar de Pernambuco: O aparelhamento e centralização das forças de repressão”. In: XXVII Simpósio Nacional de História, ANPUH-Brasil, 2013, Natal: Anais eletrônicos. Disponível em , acesso em

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PROJETO CONTEMOS NOSSA HISTÓRIA, Memória dos trabalhadores metalúrgicos de São Paulo. Investigando os crimes da ditadura civil-militar. s/d. Disponível em < http://www.marxists.org/portugues/tematica/livros/diversos/investigando.pdf> Acesso em 03 de fev. de 2014. ROLLENBERG, D. “Esquerdas revolucionárias e luta armada”. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. O Brasil Republicano. O tempo da ditadura : regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.

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NOVAS PERSPECTIVAS PARA A ARQUEOLOGIA DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA NO BRASIL DEPOIS DA COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE Inês Virgínia Prado Soares

Dossiê

No. 10 ISSN 2237-8294 dezembro de 2014

ARTIGO

NOVAS PERSPECTIVAS PARA A ARQUEOLOGIA DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA NO BRASIL DEPOIS DA COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE Inês Virgínia Prado Soares1 RESUMO O texto discute a importância da Arqueologia da Repressão e da Resistência na atual agenda de direitos humanos brasileira no tema da memória e verdade, a partir do argumento de que um dos possíveis legados da Comissão Nacional da Verdade – CNV será uma inédita demanda de pesquisas arqueológicas. Palavras-chave: Arqueologia da Repressão e Resistência; Comissões da Verdade; Justiça de Transição. ABSTRACT The following paper discusses the importance of the Archaeology of Repression and Resistance in the current brazilian human rights agenda. The main argument in this direction is that one possible legacy of the Brazilian´s Truth Commission (CNV in portuguese) will be an unprecedented demand for archaeological research. Keywords: Archaeology of Repression and Resistance; Truth Commissions; Transitional Justice.

1 Mestre e Doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica da São Paulo. Realizou pesquisa de pós-doutorado no Núcleo de Estudos de Violência da Universidade de São Paulo - NEV-USP (2009-2010). Pesquisadora do Laboratório Arqueologia e Ecologia Histórica dos Neotrópicos do MAE-USP e co-líder do Grupo de Pesquisa Arqueologia da Resistência da Unicamp. Procuradora Regional da República. Contato: [email protected]. Tel. 11.2192-8657.

INÊS VIRGÍNIA PRADO SOARES

RESUMEN El artículo discute la importancia de la Arqueología de la Represión y Resistencia en la actual agenda brasileña de derechos humanos, desde la argumentación que uno de los posibles legados de la Comisión Nacional de la Verdad – (CNV en portugués) será una demanda sin precedentes por investigación arqueológica. Palabras clave: Arqueología de la Represión y Resistencia; Comisión de la Verdad; Justicia de Transición.

INTRODUÇÃO De 1964 a 1985, o Brasil viveu sob uma ditadura, marcada por supressão de direitos e práticas estatais de graves violações de direitos humanos. Com a consolidação da democracia, foi estabelecido certo consenso sobre o direito à informação e sobre o dever do Estado brasileiro de revelar a verdade sobre os acontecimentos mais nefastos do período ditatorial. Os trabalhos de Comissões da Verdade - CVs têm se revelado como um modo potencialmente exitoso para tornar o direito à verdade efetivo, já que possibilitam a revelação da verdade e a (re)significação da memória coletiva após a transição de um regime autoritário ou de uma guerra civil para a democracia ou a paz. Estas Comissões são arranjos institucionais para lidar com o legado de violência, a partir do acolhimento de testemunhos dos sobreviventes das atrocidades (vítimas, algozes e espectadores) e da reunião de dados sobre os locais e a cultura material que comprovam a repressão ou a resistência. São particularmente úteis quando há impunidade, como ocorre no caso brasileiro, em que nenhum torturador foi condenado criminalmente. No Brasil, a Comissão Nacional da Verdade - CNV foi criada pela Lei 12.528/2011 e iniciou suas atividades em maio de 2012, para esclarecer episódios de violência, repressão e outras situações de graves violações aos direitos humanos de 1946 a 1988. A lei que criou a CNV também fortaleceu a possibilidade de trabalho em rede, com a instalação de outras CVs de âmbito local ao mesmo que deu abertura para CNV atuar em cooperação com a sociedade, com Universidades e outras instituições, inclusive com CVs locais. Acompanhando as diretrizes legais, as CVs locais podem estender suas atividades por mais tempo e eleger seu foco investigativo. Um dos focos investigativos da CNV, e também de algumas CVs locais, é a estrutura física da repressão, com atenção aos locais usados para detenção, tortura e outras práticas nefastas. Como estes lugares guardam relações com memória, espaço,

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documentos e narrativas, é possível que um dos legados da CNV e das CVs seja uma inédita demanda por pesquisas arqueológicas. O escopo do artigo é abordar a importância da Arqueologia da Repressão e da Resistência para a agenda brasileira de direitos humanos. A pesquisa avalia as (novas) possibilidades da investigação arqueológica após o encerramento das atividades da Comissão Nacional da Verdade e das Comissões locais; e como os trabalhos arqueológicos podem ser aproveitados na atuação judicial e também nas iniciativas oficiais e não-oficiais de memória e verdade. Para o desenvolvimento do texto, serão apresentadas conexões entre Arqueologia, Direito, memória e verdade. Depois, a análise se concentrará no cenário brasileiro, antes do funcionamento da CNV. Nesse item são destacadas as iniciativas oficiais e não-oficiais adotadas para revelação da verdade que guardam importância para a Arqueologia da Repressão e da Resistência. No último tópico, a reflexão gira em torno da pergunta se haverá novas demandas arqueológicas depois do encerramento dos trabalhos da CNV. A ARQUEOLOGIA, DIREITO, MEMÓRIA E VERDADE: ALGUMAS CONEXÕES Desde o retorno à democracia, o Estado brasileiro e a sociedade (especialmente vítimas e familiares de mortos e desaparecidos políticos) empreendem ações para a revelação dos acontecimentos mais nefastos do período, com a finalidade de reparação do sofrimento das vítimas, revelação da verdade (principalmente sobre o paradeiro dos desaparecidos), reposicionamento da memória coletiva (revisitação da história oficial), responsabilização dos perpetradores e reformulação das instituições. Essas iniciativas são estudadas no campo dos direitos humanos, no recorte temático que se convencionou chamar de Justiça de Transição, definida como o conjunto de experiências, ferramentas e mecanismos (judiciais e não judiciais) utilizados pelo Estado e sociedade para lidar com o legado de violência quando da passagem de um período de graves violações dos direitos humanos (guerra civil, conflitos armados ou regimes autoritários) para outro pautado em valores democráticos e de respeito aos direitos básicos (MEZAROBBA 2009; UN Security Council, 2004, parágrafo 8º, p.4). É consenso que a Justiça de Transição não se trata de um tipo especial de justiça, mas uma abordagem para se alcançar justiça após a transição. É também unanimidade entre pesquisadores e defensores dos direitos humanos que as medidas adotadas após o retorno à democracia e/ou depois de cessado o conflito devem garantir a não repetição das atrocidades. Por isso, as estratégias para enfrentar o passado também

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precisam incluir as perspectivas do futuro. Daí a pertinência do termo “Nunca Mais” e a importância de equipamentos culturais a serem usufruídos pelas gerações que não viveram o período recente e violento. No cenário brasileiro, desde a edição da Lei de Anistia em 1979 (portanto, em momento anterior ao fim do regime militar, em 1985, e à promulgação da Constituição democrática 1988), já havia uma importante movimentação dos familiares e defensores de direitos humanos para divulgar as perseguições, torturas, desaparecimentos e assassinatos dos opositores do regime e exigir respostas do Estado, especialmente em relação aos desaparecidos políticos. As demandas por justiça, reparação e verdade continuaram na democracia e foram incorporadas à agenda de direitos humanos do governo, com destaque para a abertura de arquivos sobre a ditadura e criação de Comissões. No âmbito da justiça administrativa, o programa reparatório das vítimas da ditadura brasileira previsto na Lei dos Desaparecidos (1995) e na Lei dos Anistiados Políticos (2002) foi assumido, respectivamente, pela Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) e pela Comissão de Anistia (CA). Esse programa, além de reconhecer a responsabilidade do Estado brasileiro para com as vítimas e a sociedade pelo legado de graves e sistemáticas violações, teve repercussão sob a ótica documental e permitiu a formação de importantes acervos de direitos humanos. A responsabilização criminal dos perpetradores é uma demanda por justiça que até hoje não foi atendida e que marca, negativamente, o cenário brasileiro. Mas, nota-se a chegada de novos ares: mesmo com o obstáculo da Lei de Anistia (1979), julgada compatível com a Constituição pelo Supremo Tribunal Federal em 2010 (pela ADPF 153), o Ministério Público Federal propôs, desde 2012 até meados de 2014, nove ações penais. No que toca à memória e verdade, a menção aos espaços físicos onde as violências foram cometidas sempre representou uma diretriz para a atuação dos órgãos públicos, integrando constantemente as narrativas das vítimas e familiares. A conjugação entre espacialidade, artefatos materiais e testemunho para explicação do passado demanda “uma abordagem interdisciplinar que combine análise textual, oral e artefatual, com aportes sociológicos e antropológicos, entre outros” (FUNARI e OLIVEIRA, 2008). Seguindo a experiência de outros países, abriu-se uma nova linha de pesquisa e investigação no Brasil: a Arqueologia da Repressão e da Resistência. Nas palavras de Juliana Poloni: a Arqueologia da Repressão e da Resistência é um campo de estudos com abrangência internacional e multitemática, ampliando a investigação para além dos contextos de resistência, combate, prisão, julgamento, tortura, morte e desaparecimento decorrentes dos períodos repressivos, e englobando a materialidade inerente à construção dos mecanismos de poder,

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quais sejam diretamente, ou não, relacionados aos aparelhos repressivos, como forma de compreensão ampla das ações desses governos e lideranças, bem como do próprio campo científico dialógico aos mesmos. Abarca os estudos dos silêncios, da repressão estabelecida a indivíduos, grupos e temas específicos, não só no que se refere aos opositores políticos dos regimes, mas também a outros profissionais (cientistas, professores universitários, escritores, jornalistas, dentre outros) atuantes no período, em especial dentro do campo da Arqueologia. Procura, por fim, trabalhar na divulgação do tema bem como no estabelecimento de diálogo entre os diversos discursos sobre os contextos repressivos, nacional e internacionalmente. (POLONI, 2014)

No cenário local, a Arqueologia da Repressão e da Resistência foi influenciada diretamente pelo trabalho exitoso e paradigmático de profissionais argentinos, que criaram em 1984, logo após o fim da ditadura, um grupo de Antropologia Forense, a Equipo Argentino de Antropología Forense – EAAF (FONDEBRIDER, 2008). Outro marco importante, mais geral, foi a criação, em 1986, do Congresso Mundial de Arqueologia (World Archaeological Congress-WAC), uma Organização não governamental que lançou luzes sobre a necessária integração da Arqueologia aos problemas sociais e políticos contemporâneos (FUNARI, 2006) e influenciou os pesquisadores brasileiros. Nesse momento, a Arqueologia se engajava socialmente e as oportunidades de realização de trabalhos sobre desaparecidos da ditadura eram raríssimas: em 1991, houve uma expedição não-oficial à região do Araguaia, promovida por familiares, que contou com o trabalho de integrantes da EAAF da Argentina; e, em 1992, houve a primeira atuação reconhecida publicamente, e que contou com apoio de órgãos públicos, no Cemitério Ricardo de Albuquerque, no Rio de Janeiro, onde foram localizados 14 presos políticos, a partir de mais de 2000 ossadas. Para esse trabalho de busca e identificação dos desaparecidos políticos, o Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro- GTNM/RJ organizou a montagem de uma equipe composta por profissionais da Escola Nacional de Saúde Pública - FIOCRUZ e do Museu Nacional da UFRJ e treinada pela EAAP. Além desses dois trabalhos, a utilização da Arqueologia aconteceu em outros dois casos emblemáticos que até hoje estão em investigação: o das valas encontradas nos cemitérios paulistas (Cemitérios de Dom Bosco/Perus e de Vila Formosa) e o da busca por corpos de guerrilheiros na região do Araguaia, na região Norte do país. No entanto, há suporte teórico para exigir do Poder Público que a Arqueologia seja chamada a integrar outras investigações sobre o legado da ditadura. No âmbito jurídico, o tratamento do patrimônio cultural brasileiro, principalmente após a Constituição, permite uma comunicação profícua entre Arqueologia e Direitos Humanos. Esses campos, construídos a partir de pressupostos diversos e com instrumentos próprios, permitem novas e criativas abordagens tanto para explicar as graves violações de direitos humanos como para prevenir que voltem a acontecer.

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Como lembra Elizabeth Jelin, as iniciativas espaciais que vem se desenvolvendo na América Latina, com a finalidade de marcar os locais de horror das ditaduras que assolaram a região, têm origem dentro dos movimentos de direitos humanos (JELIN, 2009: 132). Mas, a legitimidade de certos grupos para conferir sentido a estes cenários de violência sob a ótica dos direitos humanos não muda a natureza do local nem os instrumentos aptos a protegê-lo. Esse processo é estritamente ligado ao campo do patrimônio cultural e o local é portador de valor cultural (histórico, principalmente). A partir desta perspectiva, serão produzidos estudos arqueológicos, arquitetônicos, antropológicos, museológicos, históricos, arquivísticos dentre outros; e utilizados os instrumentos protetivos dos bens culturais para preservação e viabilização da existência do local. Quando há vontade política e respaldo técnico (pelas pesquisas já realizadas), esse lugar, que abrigou o terror e o sofrimento, pode ser transformado em Memorial com a finalidade de oferecer à comunidade um espaço de educação para os direitos humanos. Ao mesmo tempo, o Memorial é uma forma de reparação coletiva da sociedade; é um veículo físico, palpável, concreto, de revelação da verdade e de fortalecimento da memória das vítimas, que serve para dar voz aos que sofreram torturas e outras crueldades e combater o negacionismo e/ou a história oficial do funcionamento do local (SOARES e QUINALHA, 2011). Nesse contexto, a disciplina Arqueológica é ferramenta relevante para o esclarecimento dos desaparecimentos e de outros crimes cometidos em espaços públicos e privados (inclusive nos Centros Clandestinos de Detenção) contra os opositores da ditadura. AS PESQUISAS ARQUEOLÓGICAS (BEM) ANTES DO ENCERRAMENTO DAS ATIVIDADES DA COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE Há iniciativas marcantes da primeira década pós-ditadura (até 1995) que contribuem sobremaneira para reflexão acerca da potencialidade dos trabalhos de Arqueologia da Repressão e da Resistência no atual cenário brasileiro. Essas iniciativas repercutem até hoje na formação dos acervos e na construção da memória e verdade em nosso país e explicam, de certo modo, a necessidade de um amplo incentivo em investigações e estudos arqueológicos como garantia de não repetição. A primeira iniciativa é o Projeto Brasil: Nunca Mais – BNM (1979/1985) e a divulgação, em 1985, do livro homônimo e da lista com os nomes de 444 torturadores apontados à justiça militar pelas vítimas durante o processo. O BNM resgata os depoimentos das vítimas, prestados em processos judiciais, para relevar publicamente a violência. O projeto é, portanto, focado nos sofrimentos das

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vítimas, nas atrocidades praticadas, na vivência real da tortura, na lembrança das dores físicas que pareciam intermináveis. Os discursos das vítimas retratavam a situação de muitos: “consciente de não ser o único sujeito à tortura, a voz do torturado apresenta a dor dos outros no interior do processo narrativo em que expõe a sua, suprimindo a fronteira entre ele e os outros à sua volta, que com ele partilham o terror” (GINZBURG, 2010). Os dados colhidos no BNM estão totalmente disponíveis na internet desde 2013 quando foi lançado o site BNM Digital: http://bnmdigital.mpf.mp.br. Dentre as inúmeras denúncias publicadas no BNM Digital, é possível ler no relatório de torturas uma matéria publicada no Pasquim, em 1981, baseado em manuscrito, de 1971, de autoria da expresa política Inês Etienne Romeu. Esse testemunho foi entregue ao Conselho Federal da OAB, em 1979, quando Inês foi libertada. A matéria do Pasquim traz os dados dos algozes e os lugares por onde Inês passou, inclusive a Casa da Morte, em Petrópolis-RJ, que era um Centro Clandestino de Tortura, da qual foi a única sobrevivente2. A Casa da Morte foi declarada de utilidade pública, em 2012, e será despropriada pelo Município de Petrópolis, com a finalidade de transformá-la num centro de memória. Em março de 2014, a CNV realizou audiência pública sobre esta Casa e foi divulgado no site da CNV o “Relatório preliminar de pesquisa sobre a Casa da Morte de Petrópolis”3. Apesar de o tema ter voltado à evidência nos últimos anos, não houve discussão significativa sobre a necessidade de realização de pesquisas arqueológicas no local. A atenção está centrada na transformação do imóvel em um Memorial. No entanto, vale lembrar que as experiências de outros países, especificamente da Argentina, indicam que os estudos dos Centros Clandestinos de Detenção, sob a ótica da Arqueologia da Repressão e da Resistência, são extremamente relevantes para a reparação simbólica das vítimas e das famílias dos desaparecidos, bem como para a explicitação do terror do Estado para a sociedade, para que nunca mais essas crueldades se repitam. No nosso atual cenário, seria interessante tomar como inspiração o concurso público de projetos, promovido pelo Governo da Cidade de Buenos Aires/Argentina, para escavar os restos do Club Atlético, um Centro Clandestino de Detenção. Um dos pontos centrais do projeto vencedor foi a valorização da memória material, com a transformação dessa memória em algo físico: que pode ser tocado, ouvido, lido, desde a perspectiva dos que foram presos naquele local. Pesquisas com esse enfoque seriam enriquecedoras para o preenchimento das lacunas no caso brasileiro. 2 Texto disponível em: http://www.docvirt.com/docreader.net/docreader. aspx?bib=DOCBNM&PagFis=7864, acesso em 22/04/2014. 3 http://www.cnv.gov.br/images/pdf/petropolis/Versao_final_-_Casa_da_Morte_-_relatorio_ preliminar_revisado.pdf, acesso em 25/05/2014.

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O reconhecimento oficial dos locais de repressão surge juntamente com o funcionamento da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos - CEMDP (Lei nº 9.140 em 1995) e a Comissão de Anistia (Lei nº 10.559 de 2002). O acervo documental produzido por estas Comissões permitiu a identificação não apenas de locais onde se praticavam os crimes, mas também a revelação pública do circuito de horror ao qual alguns presos políticos eram submetidos. Assim, a menção aos lugares das violências passou a estampar também os documentos oficiais. No livro Direito à memória e à verdade, lançado pela Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, em 2007, os relatos das torturas quase sempre indicam os locais em que estas atrocidades eram praticadas. No mesmo sentido, o vasto conjunto reunido pela Comissão da Anistia, a partir dos processos administrativos que analisam o pedido de anistia e que colhem depoimentos de perseguidos políticos e familiares, indica a centralidade da referência aos locais de tortura (e outras violências) na narrativa. A segunda iniciativa é a propositura de ação ordinária na Justiça Federal, em 1982, na qual familiares de desaparecidos na Guerrilha do Araguaia cobravam a localização e o traslado dos restos mortais de seus entes; e a entrega de informação oficial, pelo Ministro da Guerra, acerca das atividades militares na região e as circunstâncias dos desaparecimentos. A ação civil foi julgada favorável, em 2003. Foi uma vitória dos familiares, mas o caso também já tramitava na Organização dos Estados Americanos (OEA). Como a ação demorava injustificadamente, o Estado brasileiro foi denunciado perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (Comissão IDH) da OEA. A denúncia foi aceita em 2001 e encaminhada para julgamento pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) após instrução pela Comissão IDH. Em 2010, o Brasil foi condenado pela CIDH pelo desaparecimento de aproximadamente 70 vítimas, no caso conhecido como Caso Araguaia (Júlia Gomes Lund e Outros contra Brasil, Demanda n. 11.552). Na condenação do Brasil pela Corte Interamericana, os parágrafos 261 e 262 da decisão tratam dos desaparecidos e da importância de estudar o local em que os restos mortais sejam encontrados. E essa citação renova e reitera a já conhecida necessidade de investigação sob a ótica da Arqueologia da Repressão e da Resistência para busca e localização dos guerrilheiros do Araguaia. Em 1996, a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos foi à região do Araguaia auxiliada pela EAAF da Argentina. No entanto, a busca dos corpos começou bem antes. Em 1991, sem qualquer participação e/ou apoio do Estado, os familiares dos desaparecidos organizaram uma expedição com participação de profissionais da EAAF da Argentina, na qual foram encontrados os restos mortais posteriormente identificados

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como de Lucia Petit, guerrilheira. Essa ossada estava no Cemitério de Xambioá, assim como outra ossada, identificada em 2009 como de Bergson Gurjão Farias, também participante da guerrilha. Para cumprimento da decisão da Justiça Federal de 2003, foram editadas Portarias que ofereciam alguns parâmetros para as buscas dos restos mortais. Atualmente, está em vigor a Portaria Interministerial n. 1, de 5 de maio de 2011 (do Ministro da Defesa, da Justiça e da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República), que tem por finalidade reformular o grupo de trabalho criado pela Portaria nº 567-MD, de 29 de abril de 2009 que prevê, em seu art. 2º, a participação no GT de representantes do Museu Emilio Goeldi e de Universidades Federais e Estaduais em apoio e exercício de atividades periciais (incisos IX e X). Não se tem notícias de trabalhos exclusivamente de grupos de antropólogos e arqueólogos para localização e identificação de restos mortais dos desaparecidos e, muito menos, de editais do Poder Público para seleção de propostas de projetos arqueológicos para exploração da área. Assim, a Arqueologia ocupa um lugar de menor importância nesse processo, quando deveria ser o contrário. Ao mesmo tempo, ainda que houvesse uma percepção do Poder Público sobre a importância da investigação sob o viés da Arqueologia da Resistência e da Repressão no caso Araguaia, a falta de colaboração das Forças Armadas na apresentação dos documentos relativos às operações realizadas contra os guerrilheiros continua a ser um obstáculo de difícil transposição. Difícil, mas não impossível... Até porque, esses documentos existem e devem estar bem guardados em algum local público ou mesmo com os agentes que participaram da repressão e hoje estão aposentados ou reformados. Vale lembrar que os documentos secretos das Forças Armadas, de 1972, davam orientações sobre o registro de informações sobre os “inimigos mortos” (MEZAROBBA, 2006: 79) e é ingênuo acreditar que esses documentos foram destruídos. Tanto é assim, que o desaparecimento de Rubens Paiva foi esclarecido após as mortes de dois agentes da ditadura, que guardavam documentos oficiais em suas casas, por cerca de trinta anos: a morte do coronel reformado Molinas Dias, assassinado em Porto Alegre, em 2012; e a do coronel Paulo Malhães, também assassinado no Rio de Janeiro, em 2014. Os documentos encontrados pela Polícia na residência de Molina Dias foram entregues à CNV e comprovavam que Rubens Paiva passou pelo DOICodi-RJ. A CNV deu continuidade às investigações e, em 2014, há a oitiva de Malhães. No entanto, cerca de um mês depois, Malhães é assassinado e são recolhidos outros documentos públicos em sua casa. A terceira iniciativa foi a devolução, pelo governo federal, dos arquivos do DOPS

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do Rio de Janeiro e de São Paulo, no início dos anos de 1990. Os arquivos foram devolvidos em 1992. Em São Paulo foram disponibilizados para consulta em 1994; no Rio de Janeiro, de imediato. Os governos estaduais de Pernambuco e do Paraná também abriram seus arquivos nessa mesma época. Outros arquivos foram abertos e digitalizados entre os anos de 1990 e 2000, dentre os quais os arquivos dos extintos Serviço Nacional de Informações, Conselho de Segurança Nacional e Comissão Geral de Investigações, além dos arquivos do Departamento de Polícia Federal, do Gabinete de Segurança Institucional e de outros órgãos públicos. Esses acervos foram incorporados ao Centro de Referência das Lutas Políticas no Brasil. Este Centro foi concebido juntamente com o Projeto Memórias Reveladas, criado em 2009 e implantado no Arquivo Nacional. Em 2011, este acervo documental foi apresentado pelo Brasil à Unesco sob o título Rede de informações e Contrainformação do Regime Militar no Brasil (1964-1985) e foi escolhido como Patrimônio Documental da Humanidade, sendo registrado no Programa Memória do Mundo. Apesar da abertura dos arquivos, ainda há entraves na prática. O principal está relacionado à posição das Forças Armadas - FA em afirmar que os documentos sobre a repressão foram legalmente destruídos, bem como os Termos de Destruição. Esse argumento é colocado em xeque quando, por acaso, surgem papéis oficiais desta época, em situações inusitadas. A Arqueologia fica bem prejudicada com essa postura das FA e precisará se valer de outras fontes. Ao mesmo tempo, apesar do acervo oficial contribuir para compreensão da estrutura de repressão e, em alguns casos, para localização dos desaparecidos, é válido ressaltar que nem todos os documentos sigilosos do período veiculam a verdade, já que a ditadura brasileira “fizera do segredo e do arbítrio uma maneira vulgarizada de invadir a privacidade das pessoas, de produzir ‘documentos’ e ‘provas’ que podiam tanto tirar a vida quanto a liberdade” (D’ARAÚJO, 2007: 126). O Projeto Brasil Nunca Mais deu ampla divulgação aos casos mais relevantes de tortura, mas ainda hoje há dificuldades para acessar os aúdios e acervos relativos aos julgamentos do Superior Tribunal Militar - STM no período da ditadura. Uma decisão do Supremo Tribunal Federal - STF (Segunda Turma do STF nos autos do RMS 23.036/ RJ) garantia o direito de acesso aos arquivos de aúdio das sessões do STM para fins de elaboração de um livro. O STM não cumpriu integralmente a decisão do STF e deu acesso apenas às sessões públicas. O caso foi novamente à julgamento (ReclamaçãoRCL nº 11.949, Relatora Ministra Carmen Lúcia) e a posição do Ministério Público Federal - MPF foi de que o acesso deve ser a todas as gravações daquela Corte, inclusive às discussões consideradas secretas. Até junho de 2014, não havia decisão definitiva, mas a jurisprudência do STF é pacífica no sentido de garantir o direito de acesso a

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documentos sigilosos para pesquisas acadêmicas. E esse é um ponto favorável para os arqueólogos. Outro ponto relevante foi a edição da Lei de Acesso a Informações - LAI (Lei 12.527/11). Esta lei trouxe mudanças positivas no acesso aos documentos e dados públicos, com dispositivos que prestigiam a gestão transparente de dados e documentos pelos órgãos e entidades do poder público (art. 6º) e o amplo acesso à informação necessária à tutela judicial ou administrativa de direitos fundamentais (art.21), estabelecendo que não cabe qualquer restrição ao acesso a informações ou documentos que versem sobre condutas que impliquem violação dos direitos humanos praticada por agentes públicos ou a mando de autoridades públicas (art.21 §1º). A LAI também revogou o capítulo da Lei de Arquivos (1991), sobre o acesso e o sigilo dos documentos públicos e privados (arts. 22 a 24), regulamentando o tratamento e classificação de informações sigilosas (artigos 24 e 35), com a previsão do prazo máximo de 25 anos para restrição no acesso a documentos públicos (art. 24 §1°), que pode se estender até 50 anos no caso das informações classificadas como ultrassecretas (art.35 §1° III). O entendimento que predominou foi de que não cabe sigilação de documentos da ditadura, já que cumprido o lapso temporal. A passagem do tempo também foi essencial para que os Estados Unidos tomassem a decisão de colaborar com a CNV e devolver, em 2014, documentos secretos sobre a ditadura brasileira. No mesmo sentido, também em 2014, Brasil e Chile firmaram acordo para disponibilização de documentos sobre a ditadura; e a Argentina encaminhou à CNV dois relatórios do período ditatorial, que informam sobre brasileiros desaparecidos em território argentino e sobre argentinos desaparecidos no Brasil. A quarta iniciativa foi a descoberta, em diversos cemitérios (SP, RJ, PE etc.), de valas clandestinas nas quais poderiam ser localizados desaparecidos políticos, com destaque para a descoberta da vala de Perus, em setembro de 1990, com 1049 ossadas no Cemitério de Dom Bosco, em São Paulo (conhecido como cemitério de Perus, em razão da localização no bairro homônimo) e da vala no Cemitério Ricardo de Albuquerque, no Rio de Janeiro, onde foram localizados 14 presos políticos (FUNARI e OLIVEIRA, 2008). No caso da vala de Perus, no início dos anos 1990, os familiares juntamente com o Núcleo de Estudos da Violência da USP (NEV), a Anistia Internacional e a Americas Watch convidaram o Dr. Clyde Collins Snow e a EAAF para colaboração com a UNICAMP na catalogação e identificação das ossadas encontradas. Mas esse trabalho conjunto sequer foi iniciado, por oposição da equipe de medicina legal da Universidade. A denúncia de valas clandestinas com restos mortais de presos políticos somadas às outras iniciativas do mesmo período (mencionadas nesse item do texto) e à mobilização persistente dos familiares e vítimas da ditadura levaram ao reconhecimento público,

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pelo Estado brasileiro, de sua responsabilidade pelas mortes, desaparecimentos e por perseguições a opositores do regime autoritário. Esse reconhecimento veio com a edição da Lei nº 9.140/95 (conhecida como Lei dos Desaparecidos), que pela primeira vez, desde o retorno à democracia, reconheceu a responsabilidade do Estado pelos crimes de tortura, sequestro e assassinato e criou Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos - CEMDP. A CEMDP ficou responsável pela reparação dos familiares de desaparecidos políticos, tendo cumprido esta tarefa com o julgamento de quase 500 casos, além de produzir um acervo importante sobre vítimas e as atrocidades por elas sofridas. Essa Comissão enfrentou vários obstáculos para acessar documentos sobre a repressão, principalmente os sob guarda das Forças Armadas. Nessa situação, a CEMDP se valeu de arquivos estaduais abertos, de livros dos e investigações sobre cemitérios clandestinos, de documentos do Superior Tribunal Militar (STM) e, também, de narrativas. Um exemplo que une pesquisas em fontes variadas é o caso da “Chacina da Chácara São Bento”, de 1973. A investigação da CEMPD comprovou que todos os militantes da VPR (Vanguarda Popular Revolucionária) foram presos e torturados antes de serem levados para a chácara São Bento; e que houve uma simulação de tiroteio entre os militantes e os policiais. Também foi esclarecido o descarte dos despojos dos mortos em uma vala clandestina. Os julgados da CEMDP serviram de base para a publicação do livro Direito à Memória e à Verdade, lançado pela Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, em 2007, e disponível na internet. E também de outras publicações, dentre as quais, sob a ótica dos desaparecidos políticos, destaca-se o Habeas Corpus: que se apresente o corpo. Esse livro aponta a existência de cemitérios e valas clandestinas usadas para “descartar” os presos políticos assassinados, com análise detida do caso mais conhecido, que é do Cemitério Dom Bosco, em Perus, São Paulo. E ainda destaca que esse padrão de “desaparecimento” é repetido em outros cemitérios de São Paulo, como o de Vila Formosa, Campo Grande e Parelheiros, e em outros lugares do País, nos Estados do Rio de Janeiro, Pernambuco, Paraná, Tocantins, dentre outros (BRASIL, 2010: 110-134). A CEMDP também participa até hoje da busca e identificação de desaparecidos em cemitérios paulistas. Mas a atuação de todos os órgãos do Poder Público nessa tarefa tem sido bem instável, por diversos fatores e os resultados não são satisfatórios. As buscas não proporcionaram a identificação das ossadas e os familiares continuam sem saber do paradeiro de seus entes queridos. No entanto, atualmente, há indicação de medidas positivas no “projeto de Perus”. No recorte dos trabalhos arqueológicos, este projeto apresentou avanços desde 2013/14:

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tem a colaboração de arqueólogos, desde a montagem do laboratório num espaço da Unifesp, em São Paulo. E arqueólogos e antropólogos serão contratados pelo Governo Federal para participação em todas as etapas. A Equipe Peruana de Antropologia Forense - EPAF e da Equipe Argentina de Antropologia Forense - EAAF atuarão em conjunto com os profissionais brasileiros. Há expectativa de que sejam oferecidos cursos de Antropologia Forense para os familiares que participam/acompanham o projeto. O RELATÓRIO DA COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE: NOVAS DEMANDAS ARQUEOLÓGICAS? A CNV e as CVs locais tiveram a vantagem de aproveitar a experiência das 40 CVs existentes no mundo e contar com vasto conjunto documental interno, com destaque para o Projeto Brasil Nunca Mais e Dossiê da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, e os acervos da Comissão Especial dos Mortos e Desaparecidos Políticos, da Comissão de Anistia e do Memórias Reveladas. A CNV começou as atividades em maio de 2012 e teve término previsto para dezembro de 2014. Dentre as tarefas investigativas da CNV, estava a identificação das estruturas, dos locais, das instituições e das circunstâncias relacionados à prática de violações de direitos humanos (art. 3°, II1, da Lei 12.528/2011). Um dos trabalhos da CNV diretamente ligado à Arqueologia é o da investigação sobre as violações aos direitos dos povos indígenas, feito pelo Grupo de Trabalho Graves violações de Direitos Humanos no campo ou contra indígenas. Em abril de 2014, foi promovida uma audiência pública em Dourados para coleta de depoimentos de representantes de seis etnias: guarani-ñandeva, guarani-kaiowá, terena, kinikinau, ofaié-xavante e guató, todas do Mato Grosso do Sul. Além disso, a CNV recebeu informações sobre sete casos emblemáticos, dentre os quais o de submissão de índios Kaiowá a trabalho forçado, prisão e tortura no Reformatório Krenak, no município de Resplendor/MG, nos anos 70; e a expulsão dos Guató da Ilha Ínsua (região do Pantanal/ MS) pelo Exército, em 1972. Em maio de 2014, este GT da CNV recebeu relatório sobre as atrocidades sofridas pelos indígenas da etnia Aikewara. No documento é dito que esta etnia foi forçada a se envolver com a repressão das Forças Armadas à Guerrilha do Araguaia, na primeira metade da década de 70. E em seu último ano de trabalho, a CNV também dedicou atenção à tarefa de reconhecer oficialmente os locais (públicos ou privados, clandestinos ou oficiais) mais simbólicos da repressão, que eram sabidamente usados para torturar, matar e desaparecer com os opositores do regime ditatorial brasileiro. As investigações da Comissão consistiram no mapeamento dos prédios, revelação dos detalhes de sua

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localização, cadeia de comando e outras informações que poderão ser complementadas pelas investigações arqueológicas. Em abril de 2014, a CNV anunciou que funcionavam pelo menos dezessete Centros Clandestinos de Detenção (CCDs) durante o regime militar, especialmente entre 1970 a 1975, e que estes CCDs eram ligados às Forças Armadas. Dois meses antes, em fevereiro, a CNV pediu a colaboração para apuração administrativa, pelas Forças Armadas, das violações no período compreendido entre as décadas de 1960 e 1980, de sete instalações militares, dentre as quais os DOI/CODI de São Paulo, do Rio de Janeiro e de Recife. O Ministro da Defesa comunicou, à CNV, em junho, o resultado das sindicâncias: a conclusão foi de que não houve desvio de finalidade do fim público estabelecido nessas instalações. A reiterada posição de negacionismo das Forças Armadas é adotada no mesmo momento em que outras revelações vêm à tona com a divulgação de relatórios parciais, pela CNV, com destaque para informações: a) de que o corpo de Stuart Angel, desaparecido político, teria sido enterrado na base aérea de Santa Cruz-RJ; e b) sobre a morte e desaparecimento de Rubens Paiva, o caso Riocentro e a Casa da Morte, em Petrópolis, RJ, dentre outros. Essa resposta do Ministério da Defesa chegou quando a CNV já iniciava a elaboração do seu Relatório Final. Esse Relatório, dividido em partes, contém uma sessão dedicada às Recomendações, com propostas para o futuro. Os pontos da Recomendação entram na categoria de medidas de garantias de não repetição e serão exitosos se forem considerados nas políticas públicas. Porém, é válido lembrar que o encerramento dos trabalhos da CNV não significa o fim da busca pela verdade ou sequer fecha o ciclo de existência de Comissões da Verdade no Brasil, já que as CVs locais não sincronizaram o término de suas atividades com a CNV e muitas funcionarão por mais um par de anos, com levantamento de informações e possivelmente (oxalá!) com demandas arqueológicas. Ao mesmo tempo, a partir do Relatório da CNV e com a continuidade das Comissões locais, a agenda brasileira de direitos humanos terá algumas demandas históricas dos familiares e defensores dos direitos humanos oficializadas como diretrizes de políticas públicas. É nesse cenário que pode se identificar uma ampla abertura para novos trabalhos arqueológicos, em três frentes: na busca e identificação dos desaparecidos políticos; na participação no desenho de memoriais e nas pesquisas em locais de horror/repressão; e em pesquisas nas comunidades indígenas atingidas pela ditadura. Nos itens anteriores já estão apontados a relevância da Arqueologia para os desaparecidos, tanto nos poucos trabalhos realizados no cenário brasileiro, mas, principalmente, na ausência da investigação com metodologia arqueológica nos

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inúmeros casos. Além disso, destacou-se que a atenção da CNV e das CVs locais aos lugares de repressão abriu, em tese, caminho para novas frentes investigativas e para pesquisas sob a ótica da Arqueologia. Para o Direito, os locais de repressão na ditadura representam elementos constitutivos, traços diferenciadores e valores de referência; e se enquadram, em tese e a princípio, na categoria de bens integrantes do patrimônio cultural brasileiro ligados à memória, à identidade e à ação do povo brasileiro (art.216, caput). São bens materiais da modalidade espaços destinados à manifestação cultural (art. 216, inc. IV) ou sítios de valor cultural ou de interesse arqueológico (art. 216, inc. V); e que podem ser tutelados por todos instrumentos protetivos dos bens culturais, sejam pelos nominados como tombamento, desapropriação, inventário etc., ou sejam por outras formas de acautelamento inominadas (art. 216, § 1°). No plano infraconstitucional, a lei do Plano Nacional de Cultura - PNC (Lei 12.343/10) estabelece as diretrizes culturais brasileiras para os próximos dez anos e relaciona a liberdade de expressão, criação e fruição, o respeito aos direitos humanos, o direito à informação, à comunicação e à crítica cultural e o direito à memória como princípios do PNC. Além disso, a promoção do direito à memória por meio dos museus, arquivos e coleções é um dos objetivos do PNC. No âmbito jurídico, é possível refletir sobre medidas judiciais e extrajudiciais para exigir estudos sob o enfoque da Arqueologia da Repressão e da Resistência, em territórios que vivem (ou viviam) as comunidades indígenas afetadas pelo regime militar, nos locais de tortura ou de descarte de corpos indicados no Relatório da CNV. Quanto à possibilidade de judicialização do teor do Relatório Final da CNV, as Recomendações contidas nesse documento acerca desses locais de repressão e também para localização dos desaparecidos políticos são compromissos do Estado com o tema, cabendo ao Poder Público adotar todos os meios cabíveis para a implementação dos pontos recomendados, em um prazo razoável. Caso isso não aconteça, a posição do Supremo Tribunal Federal é no sentido de que é cabível o controle e a intervenção do poder judiciário no tema de implementação de políticas públicas, quando configurada hipótese de abusividade governamental (ADPF-MC Nº 45, Rel. Celso de Mello, DJ 4.5.2004). Para a adoção de medidas extrajudiciais, é preciso partir do pressuposto de que a contribuição da Arqueologia da Repressão e da Resistência será mais efetiva se somar os resultados do Relatório da CNV e as investigações em andamento das Comissões locais com outras fontes, com foco na narrativa das vítimas. É que o envolvimento da Arqueologia com a prática do desvelamento das marcas de terrorismo do Estado numa ditadura exige que se estabeleça também uma ligação entre verdade e autonarração, além

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da ligação natural que há entre Arqueologia e pesquisa em arquivos (principalmente nos da repressão) e a partir de dados históricos (HABER, 2008) “consolidados”. Há diversos exemplos no mundo de iniciativas para o tratamento dos locais de repressão para seu uso na democracia. E os projetos arqueológicos se enquadram em diversas etapas desse processo de resignificação do espaço e de nova interpretação dos acontecimentos a partir da memória material (SALERNO, ZARANKIN, PEROSINO, 2013). E muitas das iniciativas interessantes que adotam a Arqueologia da Repressão podem ser reproduzidas no Brasil, inclusive com a cooperação de profissionais de outros países. As medidas extrajudiciais podem ser adotadas pelo Poder Público, que tem papel importante no fomento de ações para a memória e verdade. Além da abertura e financiamento de linhas de pesquisa acadêmica ligada à Arqueologia da Repressão e Resistência, é possível também o lançamento de editais e a promoção de concursos públicos para escolhas de projetos arqueológicos para exploração dos locais de repressão indicados pela CNV e pelas CVs locais, independentemente da existência de outros mecanismos de proteção desses espaços, como tombamento, desapropriação ou implantação de projeto museológico. CONSIDERAÇÕES FINAIS A condução do processo de valorização da memória e de revelação da verdade de períodos ditatoriais segue caminhos diferentes a depender de cada povo e não há uma fórmula única para se lidar com o legado autoritário e de violência após a transição para a democracia. Ao longo desse texto, podemos perceber algumas peculiaridades do caso brasileiro. Destacamos a contribuição da Arqueologia da Repressão e da Resistência no processo brasileiro de (re)construção da memória coletiva e de busca da verdade e trouxemos reflexões que indicam a Arqueologia como uma das disciplinas essenciais para as investigações nos locais de horror da ditadura (espaços construídos e territórios indígenas) e também na busca pelos desaparecidos. O artigo, no entanto, não responde se as demandas arqueológicas aumentarão de forma inédita nos anos seguintes à divulgação do Relatório da CNV. Nosso entendimento é que, no plano teórico, as perspectivas são boas e inspiradoras, especialmente porque consideramos que o conjunto de ações e abordagens em torno da memória e verdade ganhou novos ares depois da experiência das Comissões da Verdade que funcionaram Brasil a dentro e produziram seus Relatórios e Recomendações para o futuro. Mas, é preciso lembrar que, além dos mecanismos jurídicos existentes e das

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iniciativas da sociedade, há um componente político relevante (nem sempre previsível): o da opção pelo fortalecimento dos direitos humanos e de reconhecimento de certos grupos da sociedade que foram injustiçados. Cabe à Arqueologia conquistar sua posição, sabidamente valiosa, nesse mosaico. AGRADECIMENTOS À Rita Juliana Poloni, pela revisão deste texto e também por toda condução das discussões no Grupo de Pesquisa Arqueologia da Repressão e Resistência. E aos demais integrantes do Grupo, pela rica troca de ideias, com especial referência ao Prof. Pedro Paulo Funari.

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MEMÓRIA, OBJETOS E EDIFÍCIOS

UMA ANÁLISE ARQUEOLÓGICA SOBRE O EDIFÍCIO QUE SEDIOU O DEOPS/SP

Príscila Paula de Sousa

Dossiê

No. 10 ISSN 2237-8294 dezembro de 2014

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UMA ANÁLISE ARQUEOLÓGICA SOBRE O EDIFÍCIO QUE SEDIOU O DEOPS/SP Príscila Paula de Sousa1 RESUMO Partindo das memórias de Elza Ferreira Lobo e Rose Nogueira, ex-presas políticas que estiveram encarceradas no Deops/SP pela Ditadura Militar que assolou o Brasil de 1964 a 1985, este trabalho analisará as relações entre a cultura material – artefatos, incluindo construções arquitetônicas – e o cotidiano dessa mesma prisão. Inserido no âmbito da Arqueologia da Repressão e da Resistência, esse trabalho contará também com a metodologia da Arqueologia da Arquitetura para analisar o espaço físico do prédio que sediava a prisão e, atualmente, sedia o Memorial da Resistência de São Paulo. Palavras-chave: Arqueologia da Repressão e da Resistência; Memória; Arqueologia da Arquitetura. ABSTRACT Based on Elza Ferreira Lobo and Rose Nogueira’s memories, both political prisoners during Brazilian military regime (1964-1985) who were imprisoned at Deops/SP, an internal security agency, this paper will discuss the relations between the material culture –artifacts, including architectural buildings – and the daily routine in this prison. Inserted into the study area of Archaeology of Repression and Resistance, this article will use the methodology of Archaeology of Architecture examining the physical space where the prison worked in the past and, nowadays, where is the Memorial of Resistance in Sao Paulo. Keywords: Archaeology of Repression and Resistance, Memory, Archaeology of Architecture. RESUMEN Partiendo de las memorias de Elza Ferreira Lobo y Rose Nogueira, ex-presas políticas 1 Mestranda em História Cultural pela Unicamp. Bolsista Capes. Contato: [email protected].

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que estuvieron encarceladas en Deops/SP por la dictadura militar que asoló a Brasil desde 1964 a 1985, este trabajo analizará las relaciones entre la cultura material, - artefactos, incluyendo construcciones arquitectónicas - y el día a día de la misma prisión. Incluyendo en el ámbito de la Arqueología de la Represión y Resistencia, ese trabajo contará también con la metodología de la Arqueología de la Arquitectura para analizar el espacio físico del edificio que fue sede de la prisión y actualmente es sede del Memorial de la Resistencia de São Paulo. Palabras clave: Arqueología de la Represión y Resistencia, Memoria, Arqueología de la Arquitectura

INTRODUÇÃO Na sociedade capitalista, “o material” tem um lugar fundamental dentro do sistema ideológico e simbólico. É por isso que “uma memória que pode ser tocada, olhada, sentida e experimentada, terá um efeito mais duradouro nas pessoas” (ZARANKIN, 2003: 36).

A ligação entre os indivíduos e a cultura material a sua volta é, notadamente, algo forte e marcante, que deixa lembranças para qualquer pessoa. Objetos e edifícios – artefatos – nunca são vazios de significado. Essa simbologia e as relações indivíduos -objetos são potencializadas quando os últimos estão ligados a um período de medo, repressão, tortura, sofrimento, prisão, enfim, a um contexto ditatorial. Nesse sentido, acredita-se que utilizar as memórias de pessoas que estiveram presas durante a ditadura é uma ferramenta importante para analisar a cultura material do período e as relações estabelecidas com e dentro dessa cultura material. Dentre essas memórias, optou-se pelos testemunhos que foram coletados pelo Memorial da Resistência de São Paulo, quando do início dos estudos para a montagem do mesmo. O objetivo da coleta de testemunhos foi utilizar as memórias de ex-presos políticos para compreender como se deu a ocupação do prédio e compor o espaço museológico. Fruto concreto dessa coletânea de memórias é a maquete montada e exposta no mesmo Memorial, símbolo da materialização de várias memórias, representada abaixo:

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Fig. 1: Maquete construída pelo Memorial da Resistência a partir dos dados apresentados pelos ex-presos políticos em seus testemunhos. Fonte: NEVES, 2014: 50.

Dentre esses testemunhos, foram escolhidos, especificamente, os de duas mulheres que estiveram presas no prédio que abrigou o Deops/SP – Departamento de Ordem Política e Social/São Paulo. São elas: Rose Nogueira e Elza Lobo. A escolha da memória feminina para compor o trabalho se deve ao fato de que ainda são poucos os trabalhos biográficos e autobiográficos de mulheres que lutaram, foram presas e resistiram à ditadura (RAGO, 2009). Rosemary Nogueira foi presa em sua residência no dia 04 de novembro de 1969, na companhia do marido, pelo delegado Fleury, do Departamento de Ordem Social do Deops/SP. Segundo o prontuário policial da presa, o motivo de sua detenção foi o Inquérito Policial. Em seguida, permaneceu presa para averiguação e sua incidência penal foi a Lei de Segurança Nacional. Então, com 23 anos, Rose era jornalista da Folha da Manhã. Foi removida para o presídio Tiradentes, em 02/12/1969 (SECRETARIA, 1969). Os oficiais chegaram até sua casa porque, foi relatado por algum preso político, durante tortura, que Carlos Mariguela pudesse estar lá. Ela e o marido, Luíz Roberto Clauset, ofereciam sua moradia como ponto de encontro para reuniões, mas não participavam das mesmas (NOGUEIRA, 2011). Elza Ferreira Lobo foi detida e levada à OBAN – Operação Bandeirante – em 10

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de novembro de 1969, e encaminhada ao Dops em 24 de novembro de 69, de onde foi removida em 06 de janeiro de 1970, para o presídio Tiradentes, ganhando liberdade condicional em 20 de setembro de 1971. Era jornalista e professora e trabalhava na Secretaria da Fazenda, sendo detida em sua residência por infração à Lei de Segurança Nacional (SECRETARIA, 1969). Seu prontuário é vinculado ao inquérito de Diógenes de Arruda Câmara, líder do PC do B, pois se acreditava que tivessem alguma ligação. Elza nega tal contato militante e afirma que somente trabalhavam na mesma área (LOBO, 2013). O edifício que será analisado pelo trabalho teve sua construção iniciada em 1906 e finalizado em 1914, pelo escritório de arquitetura Ramos de Azevedo, a fim de abrigar o armazém e os escritórios da Estação Ferroviária Sorocabana e, a partir 1942, foi utilizado pelo Deops/SP (NEVES, 2014). Assim, principalmente durante o período ditatorial, foi usado para manter e interrogar prisioneiros considerados subversivos pelo Regime Militar. Situado no Largo General Osório, 66, na cidade de São Paulo, atualmente abriga o Memorial da Resistência de São Paulo, vinculado à Pinacoteca do estado. Embora toda a história do prédio seja importante, daremos aqui especial atenção à sua ocupação no período ditatorial e, sendo assim, este trabalho se insere no âmbito da Arqueologia da Repressão e da Resistência. ARQUEOLOGIA DA REPRESSÃO E RESISTÊNCIA

A Arqueologia da Repressão e da Resistência tem gerado pesquisas no Brasil e na América Latina, especialmente nas sociedades que passaram por ditaduras militares, dedicando-se ao estudo de locais onde houve atuação do aparato repressivo, dos espaços que foram palco de resistência a essa repressão, de locais onde há indícios de ocultação de cadáveres pelos oficiais operantes nessas ditaduras, atuando também no processo de identificação desses cadáveres, enterrados, muitas vezes, como indigentes (FUNARI e SOARES, [2014]). O termo foi utilizado pela primeira vez no livro lançado em 2006, Arqueología de la represión y resistencia en América Latina (1960-1980), organizado por Pedro Paulo Abreu Funari e Andres Zarankin. Fruto de um simpósio ocorrido na Quarta Reunião de Teoria Arqueológica na América do Sul (ZARANKIN; SALERNO; PEROSINO, 2012), o livro conta com diversos estudos sobre as ditaduras latino-americanas a partir de uma abordagem arqueológica, relacionando diversas formas de cultura material, os regimes militares e as pessoas que foram resistentes a ele.

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Especificamente, nos estudos sobre a Ditadura Militar brasileira, a Arqueologia tem muito a contribuir, visto que, para além da quantidade de informações que a cultura material pode oferecer – comum a qualquer período sobre o qual os arqueólogos se debrucem – temos o agravante de que boa parte da documentação escrita sobre o período foi destruída ou permanece oculta sob o poder dos militares, embora, desde 18 de novembro de 2011 haja a lei 12.527 (FUNARI; SOARES, [2014]) que deixa claro que qualquer dos órgãos do governo deve, mais do que permitir, facilitar o acesso a informações relevantes à sociedade: Parágrafo único.  Subordinam-se ao regime desta Lei:  I - os órgãos públicos integrantes da administração direta dos Poderes Executivo, Legislativo, incluindo as Cortes de Contas, e Judiciário e do Ministério Público; [...] Art. 3o  Os procedimentos previstos nesta Lei destinam-se a assegurar o direito fundamental de acesso à informação e devem ser executados em conformidade com os princípios básicos da administração pública [...] Art. 6o  Cabe aos órgãos e entidades do poder público, observadas as normas e procedimentos específicos aplicáveis, assegurar a: I - gestão transparente da informação, propiciando amplo acesso a ela e sua divulgação; (BRASIL, 2011).

Esta mesma lei, porém, versa no Art. 24º sobre a possibilidade de manutenção em sigilo de alguns documentos por um período determinado, desde que seja “observado o seu teor e em razão de sua imprescindibilidade à segurança da sociedade ou do Estado” (BRASIL, 2011). De acordo com o primeiro parágrafo desse artigo, documentos considerados Reservados, Secretos e Ultrassecretos podem ser mantidos em sigilo durante cinco, quinze e vinte e cinco anos, respectivamente. Embora esse artigo preserve a segurança do Estado, acaba por dificultar e retardar pesquisas sobre o período e possíveis identificações de desaparecidos políticos (FUNARI; SOARES, [2014]). Pessoas consideradas subversivas e, por isso, perseguidas e tragadas pela repressão em nome da segurança nacional, agora veem seu direito à memória do período impedidas em nome da mesma e antiga “segurança nacional”, bem como as famílias que perderam, à época ditatorial, seus entes queridos e que veem ainda hoje a busca e identificação dos mesmos impedida pelas leis do Estado. Relembram Funari, Mechi e Justamand ([inédito]), que os documentos produzidos pelos grupos de oposição ao governo também são escassos, uma vez que, devido à sua clandestinidade, sempre que algum membro do “aparelho” “caía”, toda a documentação era destruída afim de que não se encontrassem provas de existência do grupo e de seus membros. Quando isso não ocorria, toda a documentação era apreendida pela repressão e seu acesso, atualmente, fica condicionado às mesmas questões da documentação oficial, uma vez que está sob a tutela do Estado.

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Dentre as possibilidades de estudo no âmbito da Arqueologia da Repressão e da Resistência, nesse trabalho, optou-se por analisar como se relacionam a memória e as fontes arqueológicas – os artefatos da carceragem e o edifício onde as pessoas eram mantidas presas. ARQUEOLOGIA E MEMÓRIA A dificuldade de acesso à documentação sobre o período ditatorial torna a existência de fontes materiais e orais ainda mais importantes. A coleta de testemunhos e a análise dos relatos de sobreviventes do período ditatorial são importantíssimas para ajudar a elucidar algumas passagens ocorridas nesse período. Estudos sobre a memória vêm sendo desenvolvidos desde o século XIX, nos mais variados campos de pesquisas, consequentemente, é ainda um tema de estudos nada unificado e/ou definido (MONSHENSKA, 2010a). A Arqueologia é uma das disciplinas que tem voltado seu olhar aos estudos e contribuições das memórias, especialmente quando aborda conflitos recentes, repressão e resistência. “Many scholars working in this field [history archaeology] have noted the value of memory as a concept encompassing war memorials, souvenirs, oral history interviews and commemorative rituals (e. g. Saunders, 2004; Schofield, 2005; Tarlow, 1999)” (MONSHENSKA, 2010b: 33). O estímulo à memória a partir dos objetos relacionados a um determinado período é uma das formas de trazer para os relatos coisas que poderiam ter sido relegadas ao esquecimento. Janet Hoskins demonstra que obteve maior sucesso em conhecer as histórias dos indivíduos ao perguntar-lhes sobre alguns objetos, que ao interrogar-lhes sobre si mesmos, sem esse intermédio. A autora conclui que “quite to my surprise, was that I could not collect the histories of objects and the life histories of persons separately. People and the things they valued were so complexly intertwined that could not be disentangled” (HOSKINS, apud MONSHENSKA, 2010a:2). Para ilustrar tal relação entre memória e objetos, podemos citar o exemplo do testemunho de Rose Nogueira que, quando relata sua prisão, relembra como ficou irritada com o fato do delegado Sérgio Paranhos Fleury ter tirado sua aliança e a guardado com ele. Diz que aquele objeto era uma ligação com o marido e a família e que aquele ato doeu muito (NOGUEIRA, 2008). Aqui, fica nítida a simbologia e importância da cultura material para os indivíduos, não era qualquer objeto que o delegado estava furtando em sua casa, era sua aliança de casamento, seu elo de ligação com o marido e o filho. Partindo dessa inseparabilidade entre memória, história e objetos – cultura material no geral – o trabalho analisa o edifício que sediou o Deops/SP, fazendo uma analise de dentro para fora, a partir das experiências e sensações testemunhadas por pessoas que

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ali estiveram encarceradas e como se relacionam com a estrutura arquitetônica e a cultura material que havia em seu interior. Para abordar tal cultura material arquitetônica, a Arqueologia da Arquitetura é uma ferramenta extremamente necessária. ARQUEOLOGIA DA ARQUITETURA A Arqueologia da Arquitetura possibilita o estudo da materialidade das construções arquitetônicas, abordando-as não como um elemento dado, mas reflexos de ideologias, costumes e práticas de uma sociedade (ZARANKIN, 2002). “Um edifício terminado nos expõe, num único olhar, uma soma de intenções, das invenções, dos conhecimentos e das forças que sua existência implica; ele manifesta à luz a obra combinada do querer, do saber e do poder do homem” (VALÉRY apud ZARANKIN, 2002: 9). Quando se trata de edifícios utilizados por órgãos policiais, como é o caso da sede do Deops/SP, fica clara a ideologia empregada nas divisões dos espaços e a relação de poder que a própria materialidade do prédio impõe entre seus frequentadores – detentos e oficiais. O filósofo francês Michel Foucault percebe a mudança na arquitetura, que deixa de ser algo construído para ser visto – palácios – ou para ver o exterior – serventia das fortalezas e muralhas – e passa a se voltar para seu interior, para observar, agir sobre, disciplinar, controlar e dominar aqueles que se encontram dentro do seu espaço. “As instituições disciplinares produziram uma maquinaria de controle que funcionou como um microscópio do comportamento [...] formaram, em torno dos homens, um aparelho de observação, de registro e de treinamento” (FOUCAULT, 2012: 167). Comparando o sistema carcerário montado no prédio do Deops/SP ao projeto do Panóptico de Jeremy Bentham, encontramos algumas divergências. Das cartas, escritas por Bentham em 1787, em Crecheff, Rússia Branca, e enviadas à Inglaterra, encontramos, dentre as propostas de construção: existência de um prédio central que seria o “alojamento do inspetor” e a configuração das celas instaladas também em formato circular, separadas por uma “área intermediária” e a ideia de que na parte interior as celas deveriam ter “uma grade de ferro suficientemente fina para não subtrair qualquer parte da cela da visão do inspetor” (BENTHAM apud TADEU, 2008). Pois bem, a prisão ditatorial não contava com nenhuma construção circular e possuía portas de madeira com pequenos espaços gradeados que possibilitavam a visibilidade entre cela e meio externo, dificultando assim a observação de todo o espaço pelo agente penitenciário. Elza Lobo relata que todas as celas tinham as portas iguais: de madeira e com espaço para passar o prato (LOBO, 2008). Embora as características físicas do Panóptico e da sede do Deops/Sp não sejam as mesmas, os dois projetos arquitetônicos respondem ao mesmo propósito: nesses tipos

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de locais de sujeição, os prisioneiros não tem a certeza de que estão sendo vigiados, mas sabem que podem estar, “quem está submetido a um campo de visibilidade e sabe disso, retoma por sua conta as limitações do poder” (FOUCAULT, 2002: 192). O encarcerado não vê o tempo todo o encarregado da segurança, mas sabe que ele está ali e pode o estar observando sem que ele veja – no caso do Panóptico – e que a qualquer momento ele pode fazer uso da pequena janela da porta para verificar o que ocorre na cela – no caso da prisão ditatorial. Assim, os corredores do Deops-SP estão para o “alojamento do inspetor” como os agentes penitenciários estão para o inspetor. Vale ressaltar que, como apresentado anteriormente, o prédio analisado não foi construído com a finalidade de se tornar um aparelho de repressão policial, diferente da proposta do Panóptico. Ainda assim, foi adaptado para abrigar um sistema carcerário, com a construção de celas no andar térreo. Sobre essa modificação no espaço interno do prédio e a data em que isso se deu não se encontrou nenhum registro. Zarankin e Niro (2006) demonstram como a análise das prisões ditatoriais dá indícios de que o aparato repressivo era pensado de modo a destruir a identidade dos prisioneiros e suas possibilidades de resistência (ZARANKIN; SALERNO; PEROSINO, 2012). Percebemos isso na preocupação desses dois modelos prisionais com a comunicação entre os prisioneiros. No Panóptico, as celas deveriam ser individuais e construídas de modo a não permitir a comunicação entre os presos (BENTHAM, apud TADEU, 2008). Já no prédio do DEOPS-SP, a pequena quantidade de celas frente ao grande número de prisioneiros proporcionou aos mesmos que dividissem o espaço com outros companheiros. Além disso, apesar do fato de a comunicação com as outras celas fosse proibida, Elza relata que as três celas representadas na parte central superior da maquete produzida pelo Memorial da Resistência (foto 1) eram vazadas na parte de cima, facilitando a comunicação entre as pessoas (LOBO, 2008). Havia também, nessa cela, uma pia e uma fossa. Comunicar-se então, era também uma forma de ser resistente e não se entregar à proibição imposta. Os presos, resistindo à “lei do silêncio” que lhes era imposta, encontravam sempre mecanismos para se informar sobre o que se passava aos “vizinhos”, quem havia chegado e saído. Em depoimento à Comissão da verdade, Elza Lobo relata que optou por ajudar a servir a comida aos companheiros, pois, ao levar os pratos às celas, poderia conseguir alguma informação nova, ver e perceber o que estava havendo e quem estava nas outras celas (LOBO, 2013), além de procurar melhorar o aspecto da comida que “vinha num latão, né?! Aquilo para mim era um negócio horroroso... então a gente tentava... que a visão [do prato] fosse um pouco melhor” (LOBO, 2008). Atitudes como essas podem ser encaradas como atos de resistência a todo o poder e tentativa de aniquilação do ser realizada pelo poder repressor. Percebemos que o aspecto e os utensílios

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do alimento eram importantes e marcantes, pois, no testemunho de Rose Nogueira, ela também relembra que comia em colheres de plástico e pratos, também de plástico azuis (NOGUEIRA, 2008). Outro ato de solidariedade, como a própria Elza define, foi praticado por ela no Natal e final de ano, quando pede à mãe que leve ao presídio um bolo e algumas flores – cravos vermelhos – para que pudesse presentear os outros: “Sabe assim quando você quer levantar a moral também das pessoas? Então se de um lado você tem uma agressão muito forte, você tenta amenizar, né?! Passar um natal sem nada... tem que ter alguma coisa!” (LOBO, 2008). Esse episódio deu origem a uma das composições materiais da exposição do Memorial da Resistência, onde se pode ver um cravo vermelho (fig. 2) e ouvir o depoimento de ex-presos políticos, inclusive Elza, relatando o episódio.

Fig. 2: Representação do cravo vermelho distribuído por Elza Lobo aos companheiros, às vésperas do Natal. Fonte: http://energiapaulistanica.blogspot.com.br/2012/04/memorial-da-resistencia-didatura. html

Ainda a respeito do “fichamento” ao chegar no Deops/SP, as duas se recordam que a ficha de identificação e os registros em vários livros eram feitos num balcão no térreo, logo na entrada do edifício, onde normalmente ficava um carcereiro (LOBO; NOGUEIRA, 2008). Através da comparação entre os relatos e a maquete (fig. 1), podemos supor que esse espaço de identificação seria a pequena sala representada na parte inferior da figura, à direita. Elza Lobo e Rose Nogueira lembram-se que a sala do delegado Sérgio Paranhos Fleury, figura emblemática e cruel do Deops/SP, ficava num andar superior, pois subiam

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escadas. Nenhuma das duas, porém, afirma exatamente qual era o andar. Tendo em vista um Livro de Portaria do Deops que descreve quais as pessoas que trabalhavam em cada andar e os órgãos que ali funcionavam, podemos afirmar que a sala do Delegado Fleury ficava no segundo andar, contando-se o térreo (DEPARTAMENTO, 1972). No caso de Rose, esse foi o primeiro lugar para onde foi levada quando chegou ao prédio. Descreve-o: Fomos para uma sala enorme que dava para a rua, onde tinha uns sofás verdes de couro e uma mesa que era a mesa do Fleury e em cima aquele cartaz num papelão amarelo desses de caixa com a caveira desenhada e E.M (Esquadrão da Morte), e na mesa dele também, ele não escondia isso [...] Na parede do outro lado tinha uma vitrine cheia de arma, de espingarda assim em pé. Parecia essas coisas de filme (NOGUEIRA, 2008).

O símbolo do Esquadrão da Morte na sala do delegado Fleury é também citado por Elza Lobo. A mesma diz que nessa sala não havia tortura física, apesar de ser uma tortura psicológica estar nesse lugar, diante do renomado delegado e do símbolo do seu Esquadrão da Morte (LOBO, 2008). Na fala das duas mulheres, percebemos como esse cartaz ficou cravado nas memórias e como foi emblemático para a situação vivida, devido ao que representava. DIFERENTES OCUPAÇÕES NUM MESMO EDIFÍCIO Tendo o edifício passado por várias ocupações ao longo dos anos – armazém e escritórios da estrada de ferro Sorocabana, Deops/SP, Decon, Memorial do Cárcere – algumas modificações arquitetônicas ocorreram em seu interior para que se adaptasse o espaço aos diferentes fins necessários. Sobre essas mudanças, porém, é extremamente difícil encontrar fotos e documentos. Isso se deve, em parte, ao longo processo de tombamento da 2ª Estação de Ferro Sorocabana, que depois abrigou o Deops/Sp e esteve pendente no Condephaat – Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado – desde 20 de maio de 1976, sendo efetivamente tombado em 08 de julho de 1999 (CONDEPHAAT, 1976, 1999). Nota-se aqui que o início do processo se dá durante o período ditatorial militar e que isso foi um complicador para que se angariassem documentos e se desse continuidade aos tramites do tombamento. Com isso, podemos perceber os interesses políticos na preservação ou não de memórias. Segundo Deborah Neves, a resolução SC-28 de 08/07/1976, que decide pelo tombamento do prédio se dá devido a um interesse de capitação financeira para a transformação do prédio na Escola Superior de Música: Assim, ao contrario da ideia de que o local fora preservado dado o seu caráter histórico,

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sendo pensado como um ‘lugar de memória’, carregado de sentidos e significados, o tombamento do edifício do DEOPS/SP não tem qualquer nexo com a preservação e/ou construção de uma memória para a ditadura (NEVES, 2014: 105).

Na edição de 14 de abril de 1998, o Jornal Metrô News Norte noticia que a antiga sede do DOPS dará lugar à Academia Superior de Música, que prevê a construção de um teatro, área de lazer, livraria, estúdio de gravação, auditório, salas de aulas teóricas, práticas individuais e coletivas e salas de ensaio. As celas seriam transformadas no Memorial do Cárcere. O jornal aponta ainda que “o edifício sofreu muitas modificações em seu interior, mas nada foi fotografado ou registrado por pesquisadores” (SALIGNAC apud. CONDEPHAAT, 1999), o que é notável ainda hoje quando se percebe a falta de documentação e informações sobre o interior do prédio. O contrato para iniciar tais obras seria assinado pelo governador Mário Covas, em uma visita ao edifício no dia 1 de abril de 1998 (SALIGNAC, apud. CONDEPHAAT, 1999). Curioso notar que, a data escolhida para o início do processo de transformação de um espaço de memória sobre a ditadura, a tortura e a resistência em um centro cultural relativo à música é feito justamente no aniversário de 34 anos do início dessa mesma ditadura. Ou seja, em um dia bastante significativo para a memória do período, pretende-se promover na quase totalidade do prédio – uma pequena parte seria o Memorial do Cárcere – um apagamento do que foi ali vivido no regime ditatorial. Elza Lobo esteve, a convite do governador e com outros ex-presos, nessa visita ao antigo DOPS. Em seu testemunho ao Memorial da Resistência afirma que quando da visita Quando chegou aqui no fundão tava fechado né?! Aí eu virei para o governador e falei: ‘Governador, por favor, abra essa porta porque eu fiquei nessa parte’, ele virou pra mim e falou assim: ‘É melhor esquecer porque a gente não sabe o que tem do lado de lá’. Aquilo me marcou muito, eu falei assim: ‘Que diacho de coisa não se pode ver, né?!’. Aí eu sair e fui ver pelo lado de fora, aí já tava tudo destruído aqui, porque com a reforma que tinham feito da Sala São Paulo, esse pedaço fizeram não sei se é uma parte da garagem ou estacionamento (LOBO, 2008).

Esse trecho do depoimento de Elza é bastante significativo, pois sinaliza que o fundão, uma parte do edifício importante para ela, foi demolido e ainda não se encontrou documentos que versem sobre a justificativa e quais os interesses ligados a essa demolição. Afinal, o estacionamento da Sala São Paulo não precisaria, justamente, daquele espaço, relativamente pequeno se compararmos com o tamanho do estacionamento do local, visível hoje em dia. Percebemos também na fala de Elza, a importância do espaço edificado, o querer ter aquele espaço ainda inteiro para preservar a sua memória. As chamadas celas do fundão são as quatro pequenas celas representadas no canto

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superior direito, na maquete (fig. 1). Elza relata que no início, as celas do fundão eram ocupadas somente por mulheres, mas que em determinado momento isso mudou. Eram celas totalmente fechadas e sem janelas, com uma lâmpada alta. Rose esteve na cela do fundão quando chegou, lembra que perto dessas celas havia um fogão e um balcão, não contemplados pela maquete. Por esse motivo, não se pode dizer se ficavam no pequeno cubículo no canto superior direito ou se eram situadas no corredor em frente às celas. Rose descreve o interior das celas, dizendo que nelas havia “espécie de camas de alvenaria com colchões em cima [...], o banheiro era uma bacia e uma pia [...] o colchão era de palha” (NOGUEIRA, 2008). Em visita ao Memorial da Resistência em São Paulo, pode-se ver uma porta de madeira representada ao final do corredor, que simboliza o acesso a essas quatro celas demolidas. A primeira cela onde Elza esteve detida era bem pequena, ainda assim, chegou a dividi-la com mais quatro companheiras. Conta que, além do pouco espaço da cela, havia um catre de madeira bem alto na frente da porta, com colchão em cima e uma luz ficava acesa dia e noite. Devido à falta de espaço “sentava no chão, punha um jornal. Não dormia, você recostava né?!” (LOBO, 2008). A impressão que se tem, pelos relatos é de que esse primeiro lugar onde esteve, é a primeira cela do canto superior esquerdo (fig. 1). Fala recorrente no testemunho das duas ex-presas são as condições de higiene às quais estavam submetidas e a sujeira no prédio como um todo. Rose relata que “esse edifício me lembra sujeira [...] eles eram muito porcos. [...] Era uma sujeira, no chão, em todo lugar. [...] Tinha um ralo em algum lugar onde eles jogavam comida, tudo em volta.” (NOGUEIRA, 2008). E Elza se lembra que “outra coisa que a gente viu é que tinha muita barata. [...] As condições eram muito inóspitas” (LOBO, 2008). Quanto à própria higiene, as condições não eram melhores. Elza descreve que “para tomar banho você tinha o chuveiro, um cano que às vezes saía água, às vezes tinha que ficar batendo no cano para sair [...] e você tinha que fazer assim, aquelas higienes de francês né?! Passar a toalhinha” (LOBO, 2008). A respeito disso, a memória de Rose não é diferente: “eu sangrava muito, não tinha absorvente. Ficava muito suja e fedida” (NOGUEIRA, 2008). A RELAÇÃO ENTRE A MATERIALIDADE E INDIVÍDUOS A partir da proposição da historiadora Ewa Domanska, em sua obra The Material Presence of the Past, há três formas de análise das relações entre pessoas e objetos: orientalism, que seria a dominação dos homens sobre as coisas; paternalism, administração humana dos objetos; communalism, baseado na reciprocidade e no diálogo entre

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as duas partes (DOMANSKA, apud MONSHENSKA, 2010a). Dentre as opções citadas acima, este trabalho segue ao communalism, por acreditar que possibilita uma abordagem mais transparente da relação entre as ex-presas políticas e a cultura material à sua volta, uma vez que foram moldadas pela materialidade, assim como a moldaram. Poderíamos incutir em um erro grave, se partíssemos do pressuposto de que, sendo uma prisão ditatorial, tudo é repressão e os indivíduos não tiveram influências sobre os objetos e a estrutura que lhes é imposta. Como demonstra Pilar Calveiro “qualquer poder reconhece um limite, e diante de qualquer poder existe uma possibilidade de resistência” (2013: 64). Exemplos dessa modificação e um ato de resistência e sobrevivência – fazer um registro de que esteve ali – foram as inscrições deixadas nas paredes, por muitos dos presos. Elza Lobo relata que escreveu nas paredes da cela uma frase, da qual não se lembra exatamente e que não chegou a escrever o próprio nome. Deixou ainda registrado, o nome da cela em que estava, num momento em que os presos resolveram nomear todas as celas, gravando esse nome na parede e gritando para que os outros soubessem qual era. A cela de Elza foi batizada ‘Schael’ – estudante de medicina morto na OBAN – e as inscrições foram feitas por ela e Edith Negrais, “foi um trabalho lascado porque a gente fez com grampos de cabelo[...] então levou dias [...] foram umas atividades assim, fortes” (LOBO, 2008). Rose Nogueira relembra que “tinha muita coisa escrita [nas paredes]”, ela mesma escreveu “meu bebê está la em cima”, quando seu filho foi trazido, acompanhado dos avós – pais do marido Luíz Roberto Clauset – ao prédio do Deops/SP a fim de ouvir o depoimento dos mesmos, pois acreditavam que ela era uma mulher que havia viajado para Cuba com Marighela. O objetivo era também pressioná -la para que liberasse informações que os oficiais queriam ouvir, enquanto ameaçavam machucar o bebê (NOGUEIRA, 2008). Quando da visita feita pelo governador Mario Covas, juntamente com alguns ex -presos, em 1998, Elza Lobo relata que “tavam ainda as celas rabiscadas” (LOBO, 2008). Em 1999, porém, o edifício passou por outra reforma para abrigar a Escola de Música2 e, nessa reforma, todas as inscrições nas paredes foram apagadas (NEVES, 2014). A partir dessa informação e do depoimento de Elza, que lá esteve em 1998, não resta dúvidas de que a reforma de 1999 foi responsável pelo apagamento das inscrições. Após a época em que teriam início as obras que levariam à Escola Superior de Música, os periódicos Folha de São Paulo (01/04/1998 e 02/04/1998); Metrô News Norte (14/04/1998); Jornal da Tarde (02/04/1998); Urbs (jun/jul/1998); Jornal do Síndico

2 Ver mais sobre as mudanças e reformas no edifício em: Deborah Neves, A persistência do passado: patrimônio e memoriais da ditadura em São Paulo e Buenos Aires, 2014.

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(10/1998); noticiaram que parte do prédio seria reservado Memorial do Cárcere, justamente as seis celas (4 menores e 2 maiores). Desses periódicos, 4 deixam claro que as intenções, pelo menos as que foram expressas à mídia, eram de que se mantivessem as inscrições nas paredes: “Ali, recados, nomes, números deixados pelos prisioneiros continuam a marcar as paredes e serão mantidos como estão” (CONDEPHAAT, 1999). Dois dos jornais também fazem referencia à existência de algum mobiliário restante nas celas, O Estado de São Paulo, de 02 de abril de 1998, descreve que “alguns instrumentos de tortura enferrujados, como uma máquina de dar choques, ainda podem ser vistos no local” (CONDEPHAAT, 1999). Não se sabe o paradeiro desses artefatos que ainda estavam no prédio em 1998. Provavelmente foram retirados do prédio devido à obra, mas não há qualquer menção a isso na documentação. CONSIDERAÇÕES FINAIS Por ser um acontecimento historicamente recente, a Ditadura Militar é um período que proporciona uma gama plural de abordagens – vestígios materiais, fontes orais e documentos escritos –, o que pode tornar as pesquisas sobre esse tema cada vez mais ricas. Isto se dá não somente porque pode-se agregar informações de caráter diferenciado, mas, principalmente, porque a confrontação entre essas fontes pode apontar contradições que só são perceptíveis devido a essa pluralidade de registros. Este trabalho demonstra como a abordagem arqueológica do período ditatorial é rica em fontes e informações. Além disso, a utilização da memória de pessoas que viveram intensamente esse Estado de Exceção fornece ricas informações para integrar um quadro da composição material da repressão. Como visto ao longo do texto, muito dessa cultura material ligada à Ditadura Militar se perdeu devido, ora à falta de interesse em preservar, ora ao interesse em esconder essa página da História do país. Hoje, 50 anos após o golpe, ainda é importante e necessário pesquisar, analisar e interpretar os remanescentes desse período, visto que isso ajuda a responder questões pendentes e faz jus aos atos das pessoas que viveram o período ditatorial. Além desses, as famílias que perderam seus entes queridos, cuja ausência se faz presente sempre, também merecem que suas questões sejam esclarecidas. É preciso preservar essas memórias e fazer com que sejam conhecidas por um número cada vez maior de brasileiros, para que todo o cerceamento da liberdade, toda dor, morte e tortura que aconteceram naqueles 21 anos nunca mais se repitam e que, aqueles que passaram por tudo isso, jamais sejam relegados ao esquecimento.

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FONTES ORAIS: NOGUEIRA, R. Amor e Revolução: Depoimento. [2011]. São Paulo: Sistema Brasileiro de Televisão. NOGUEIRA, R. Depoimento [16 set. 2008]. São Paulo: Memorial da Resistência. LOBO, E. Depoimento [2013]. São Paulo: Comissão Nacional da Verdade. LOBO, E. Depoimento [16 set. 2008]. São Paulo: Memorial da Resistência. FONTES DOCUMENTAIS: BRASIL. Lei nº 12.527, 18 de novembro de 2011. Dispõe sobre os procedimentos a serem observados pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios, com o fim de garantir o acesso a informações previsto no inciso XXXIII do art. 5o, no inciso II do § 3º do art. 37 e no § 2º do art. 216 da Constituição Federal. Presidência da República: Casa Civil. Brasília, 18 nov. 2011. CONDEPHAAT. Tombamento da Estação Ferroviária Sorocabana. Processo n. 20151, 1976. CONDEPHAAT. Tombamento da Estação Ferroviária Sorocabana. Processo n. 38685, 1999. DEOPS. Livro de Portaria São Paulo: Arquivo do Estado. [1 jan a 21 mar.] 1972. SECRETARIA DE SEGURANÇA PÚBLICA. Departamento de Ordem Política e Social. Prontuário 146140. 26 nov. 1969. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CALVEIRO, Pilar. Poder e Desaparecimento: Os campos de concentração na Argentina. São Paulo, Boitempo, 2013. FOUCAULT, M. Vigiar e Punir. 40ª edição. Petrópolis, Vozes, 2012. FUNARI, P.; SOARES, I. Arqueologia da Resistência e Direitos Humanos. Disponível em: < http://www.evocati.com.br/evocati/artigos.wsp?tmp_codartigo=616 >. Acesso em: 23/12/2014 FUNARI, P. ZARANKIN, A (comp.). Arqueología de la represíon y resistência em América Latina (1960-1980). Catamarca, Encuentro, 2006. JUSTAMAND, M.; MECHI, P. S.; FUNARI, P. P. A. Repressão Política e direitos humanos: Arqueologia, História e memória da ditadura militar brasileira. [Manuscrito

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inédito]. MONSHENSKA, G. “Gas masks: material culture, memory, and the senses”. Journal of the Royal Anthropological Institute, Londres, n. 16, p. 609-628, 2010a. MONSHENSKA, G. “Working of Memory in the Archaeology of Modern Conflict”. Cambridge Archaeological Journal, Londres, v. 20, p. 33-48, fev. 2010b. NEVES, D. A persistência do passado: patrimônio e memoriais da ditadura em São Paulo e Buenos Aires. 2014. Dissertação. Programa de Pós-Graduação em História Social, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014. RAGO, M. “Desejo de memória”. Revista Labrys. São Paulo, n. 15, 13 set. 2009. SALERNO, M.; ZARANKIN, A.; PEROSINO, M. “Arqueologías de la clandestinidad. Una revisión de los trabajos efectuados en los centros de detencíon clandestinos de la última dictadura militar en Argentina”. Revista de História Militar on line. n. 2, p. 4984, .2012. TADEU, T (org.). O panóptico: Jeremy Bentham. 2ª edição. Belo Horizonte, Autêntica, 2008. ZARANKIN, A. “Arqueología de la Arquitectura: modelando al individuo disciplinado em la sociedad capitalista”. Revista de Arqueología Americana. [...], n. 22, p. 2539, 2003. ZARANKIN, A. Paredes que domesticam. Buenos Aires: Fapesp/CHAAUnicamp, 2002.

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ARQUEOLOGIA E A GUERRILHA DO ARAGUAIA OU A MATERIALIDADE CONTRA A NÃO NARRATIVA Rafael de Abreu e Souza

Dossiê

No. 10 ISSN 2237-8294 dezembro de 2014

ARTIGO

ARQUEOLOGIA E A GUERRILHA DO ARAGUAIA OU A MATERIALIDADE CONTRA A NÃO NARRATIVA Rafael de Abreu e Souza1 RESUMO Neste artigo, utilizo o exemplo das buscas pelos desaparecidos na Guerrilha do Araguaia para levantar questões, mais do que fechá-las, sobre a potencialidade da arqueologia em contextos associados à repressão orquestrada pela ditadura militar brasileira. Parto do pressuposto de que a arqueologia, reivindicando a si o estudo da materialidade, opõese diametralmente à não narrativa perpetrada pelo ostensivo silêncio oficial sobre os eventos ocorridos. Enquanto ferramenta política, dialógica a construção de memórias materiais, a Arqueologia da Repressão e da Resistência é uma autoarqueologia, plural, do crível e do vivível. Palavras-chave: Arqueologia do Passado Contemporâneo; Arqueologia da Repressão e da Resistência; Guerrilha do Araguaia; Narrativa. ABSTRACT In this article, I use the example of the search for the missing of the Araguaia Guerrilla to raise questions, rather than close them, about the potential of archeology in contexts associated to repression orchestrated by Brazilian military dictatorship. I assume that archeology, claiming itself the study of materiality, diametrically opposed to nonnarrative perpetrated by official ostensibly silence about past events. As a political tool, dialogic to the construction of material memories, repression and resistance archaeology is a kind of auto-archeology, plural, possible, credible and liveable. Key-words: Archaeology of Contemporary Past; Arqueologia of Repression and

1 Arqueólogo. Doutorando em Ambiente e Sociedade pelo NEPAM/UNICAMP, pesquisador do Grupo de Arqueologia da Repressão e da Resistência CNPq/IFCH/ UNICAMP. Doutorando em Arqueologia pelo MAE/USP. E-mail: rafaelabreusouza@ gmail.com

RAFAEL DE ABREU E SOUZA

Resistence; Araguaia Guerrilla; Narrative. RESUMEN En este artículo utilizo el ejemplo de las búsquedas de los desaparecidos en la Guerrilla del Araguaia para levantar interrogantes, más que para concluirlas, sobre la potencialidad de la arqueología en contextos asociados a la represión orquestada por la dictadura militar brasileña. Parto del presupuesto de que la arqueología, reivindicando en sí el estudio de la materialidad, se opone diametralmente a la no narrativa perpetrada por el evidente silencio oficial sobre los eventos ocurridos. Como herramienta política y dialógica en la construcción de memorias materiales, la Arqueología de la Represión y de la Resistencia es una autoarqueología, plural, de lo creíble y de lo vivido. Palabras-clave: Arqueología del Pasado Contemporáneo; Arqueología de la Represión y de la Resistencia; Guerrilla del Araguaia; Narrativa.

INTRODUÇÃO Nos últimos anos, a Arqueologia tem sido chamada a auxiliar nas investigações em torno do desaparecimento de pessoas como estratégia do terrorismo de estado2 das ditaduras e regimes totalitários. No Brasil, esta entrada, todavia, não tem ocorrido sem questionamentos, de ordem interna e externa, à própria Arqueologia: internamente, as problemáticas em torno de sua própria consolidação (CALDARELLI, MENDONÇA de SOUZA, 1997; BEZERRA, 2008) e da necessidade de valorização de campos pouco populares entre os pesquisadores brasileiros, como a Arqueologia Histórica e a Bioarqueologia; externamente, a constante necessidade de reafirmação de seus conhecimentos em nichos dominados por profissões consolidadas a que um senso comum atribui status elevado, como a medicina e o direito (FREIDSON, 1995). Concomitantemente, assiste-se a alguma distorção no sentido dos termos “antropologia” e da alcunha “forense”. Por outro lado, desde os anos 1990, arqueólogos têm ressaltado o papel da Arqueologia como ferramenta potencial na produção de narrativas alternativas aos discursos hegemônicos oficiais (ROWLANDS, 1994; PLUCIENNIK, 1999; FUNARI, 2002; HODDER, 2003; KOJAN DANGELO, 2005). Contudo, como a Arqueologia pode colaborar quando não existe um discurso oficial, ou melhor, quando ele é uma

2 Utilizo a expressão “terrorismo de estado” para o regime de violência instaurado pelo governo, quando um grupo político deteve o poder utilizando-se do terror como instrumento de governabilidade (BAUER, 2006, 2011).

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não narrativa3 (LANGDON, 1993; BOHES, 2000)? Os densos silêncios deixados pelo regime militar vêm sendo substituídos por narrativas, no sentido dado por White (1995), enquanto representações ordenadas e coerentes de eventos, em tempo sequencial, especialmente produzidas por aqueles que lutaram e opuseram-se (MARTINS FILHO, 2003). Vale lembrar que até o momento não conta-se com versão oficial das Forças Armadas sobre episódios do período, como os da Guerrilha do Araguaia. A tal silenciamento, a essa ausência de relatos orais, documentos escritos ou iconográficos, a ausência de narrativa, de uma coerência de episódios conhecidos, prostra-se o potencial investigativo da materialidade, sobre a qual debruça-se o arqueólogo (OLSEN, 2003). O papel da Arqueologia tecendo reflexões teóricas sobre a repressão, memórias e usos do passado, na busca e identificação de pessoas assassinadas e na investigação da materialidade do aparato repressivo orquestrado pelo Estado (ZARANKIN, SALERNO, 2008), pode trazer à tona feitos inenarráveis, desconhecidos, problematizados em seus regimes de verdade, construindo, assim, “memórias materiais” da repressão e da resistência (ZARANKIN, NIRO, 2010). O Brasil entrou bastante tarde neste processo. O contexto político da redemocratização do país fora determinante para a conformação das dinâmicas da chamada “justiça de transição” – respostas às violações sistemáticas ou generalizadas aos direitos humanos (SCHINCARIOL, 2011). As especificidades da justiça de transição brasileira, em sua notável divergência histórica comparada a processos como os da Argentina, retardaram revisitas a este passado (como a sistemática busca pelos desaparecidos) e o reconhecimento de seus crimes (REÁTEGUI, 2011). Essencialmente interdisciplinar, a Arqueologia (em sua relação com a Antropologia e a História) tem buscado contribuir com diálogos, por vezes difíceis, com as ciências médicas e jurídicas (SILVA et. al., 2012) e com o Estado e sua máquina burocrática (GAUER et. al. 2008), no âmbito das discussões sobre direitos humanos, memória e justiça (GASSIOT et. al., 2007). O caráter social da Arqueologia reforça a necessidade de compreender práticas como a do desaparecimento forçado, usual política dos regimes ditatoriais, a partir de abordagem social e flexível, apostando nas categoriais êmicas dos atores envolvidos e fornecendo elementos para a construção de narrativas às vítimas, aspectos que faltam às ciências forenses, as quais pouco ultrapassam as esferas científicas e a rigidez acadêmica (BARAYBAR, BLACKWELL, no prelo).

3 Adoto aqui o conceito de “não narrativa” para referir-me à situação sobre a qual sabese que algo fora do comum aconteceu, mas da qual ninguém fala sobre, contribuindo indiretamente para posteriores e concomitantes impunidades e não resoluções (LANGDON, 1993; BARTHES, 2008).

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A contribuição da Arqueologia para questões contemporâneas é dialógica ao processo pelo qual tem passado, no sentido de perspectivas descolonizadoras (SAID, 2003; BHABHA, 2003; BOSI, 1992; CHAKRABARTY, 2000; GNECCO, 2009; ATALAY, 2006; HABER, 2009; OLAND, HART, FRINK, 2012; GOSDEN, 2004) e preocupações com suas dimensões públicas (LIPE, 2002; MCMANNAMON, 2000; HOLLOWELL, NICHOLAS, 2009; COLWELL-CHANTHAPHON, 2009; CARVALHO, FUNARI, 2009) frente a seu reconhecimento enquanto ferramenta política (TRIGGER, 1984; MCGUIRE, 1999; FERREIRA, 2011; KOHL, 1998; MESKELL, 1998). Neste sentido, a Arqueologia vem se inscrevendo no conjunto de práticas sociais, dos regimes democráticos, de revisão do passado, propondo memórias, reivindicando direitos políticos e desvelando paisagens de terror (landscapes of terror ou terrorscapes) (MULLINS, 2012) relacionadas a episódios opressivos pouco conhecidos (MAGUIRE, CARVALHO, 2013). A fim de enveredar por algumas das problemáticas apontadas nesta pequena introdução, trago como exemplo as possibilidades de arqueologia no contexto da Guerrilha do Araguaia enquanto arqueologia do conflito supermoderno do século XX (GONZALEZ-RUIBAL, 2008), como autoarqueologia, plural (pois essencialmente interdisciplinar e pública), possível (uma vez que ultrapasse a máquina burocrática, os interesses políticos, os campos acadêmicos e parta de paradigmas específicos), do crível (para que não se esqueça) e do vivível (para tornar praticável a vida de muitos). Meu objetivo também é apresentar algumas reflexões sobre como a arqueologia tem se relacionado com o quadro forense e com estudos sobre o aparato repressivo do Estado, e suas consequências, partindo do contexto da Guerrilha do Araguaia para levantar potencialidades à análise da materialidade como arma às não narrativas: isto é, a Arqueologia oposta à ausência de discursos oficiais e, por isso, muitas vezes, a única narrativa possível sobre determinados fenômenos e processos (Gonzalez-RUIBAL, 2008). AUTOARQUEOLOGIA DO SÉCULO XX Os anos 1980 marcam uma nova Arqueologia para a América Latina (POLITIS, 2003; ZARANKIN, SALERNO, 2008). O fim dos regimes ditatoriais acarretou movimentos de abertura em prol da recuperação de informações sobre direitos usurpados durante os anos de repressão. Neste contexto, a Arqueologia ganhou peso na produção de conhecimento sobre o período e na luta para que se encontrassem mecanismos de reparação jurídica (CARVALHO, FUNARI, 2009). Debruçar-se arqueologicamente sobre a ditadura militar é explorar os mecanismos

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opressivos e o aparato repressivo do Estado àqueles que se opuseram ao regime (ZARANKIN, FUNARI, 2009) e refletir sobre a própria produção intelectual do período (ZARANKIN, FUNARI, 2008). Também é uma forma de autoarqueologia, um mergulho à genealogia material (GONZALEZ-RUIBAL, 2008) de nossa própria identidade, não simplesmente enquanto “herdeiros” da luta pela democracia e de processos iniciados ainda no período (como a militarização das instituições de segurança), mas como filhos, em sua acepção política e muitas vezes biológica, das lutas e resistências à ditadura militar. As paisagens de terror (MULLINS, 2012) construídas, opressivas, herdadas, continuam seu processo contínuo de ressignificação no âmbito das lutas por memórias excluídas. A Arqueologia em contextos de repressão e resistência às ditaduras militares é exemplo do potencial de uma arqueologia do passado contemporâneo (BUCHILI, LUCAS, 2001; VOSS, 2010) que pode contar muito sobre nós mesmos ao explorar a complexidade de sentidos encruados em objetos da cultura material moderna e na gama de imagens discordantes que os acompanham (HARRISON, SCHOEFIELD, 2009), engajado-se socialmente na criação, contemporânea, de uma “memória coletiva” (RICOEUR, 2000) e de uma “memória material” (ZARANKIN, NIRO, 2010) para não esquecer (MCGUIRE, 1999; WEISSEL, 2003), ressaltando a agência das coisas (SHANKS, 1997; GOSDEN, 2005; KOPYTOFF, 2008) a partir da materialidade de um “passado familiar” (GRAVES-BROWN, 2000). Afinal, o que há para dizer sobre o terrorismo de Estado e as ditaduras militares que já não foi dito? Muito. A Arqueologia poucas vezes olhou para os contextos repressivos, também em claro predomínio da antropologia forense sobre as demais dimensões da Arqueologia (GONZALEZ-RUIBAL, 2008; GONZALEZ-RUIBAL et. al., 2010). Além disso, externamente, predominam, no quadro interpretativo da Guerrilha do Araguaia, comunidades epistêmicas (HAAS, 1992) de historiadores, sociólogos e jornalistas, por um lado, e, por outro, de médicos legistas. Apagados, negligenciados ou esquecidos, contextos de ocupação dos novecentos são submetidos a “coletas seletivas” em escavações que tendem a discriminar matériasprimas: os vestígios poliméricos (plásticos e demais polímeros sintéticos) são aqueles que mais sofrem, não coletados em prol de materiais clássicos arqueológicos, como cerâmicas e líticos. A não coleta desses artefatos gera um recuo cronológico quando da aplicação de ferramentas para datação relativa, alimentado por nossa dificuldade na identificação dos materiais do século XX, dentre outros problemas. No Brasil, a área ainda é bastante tímida, associada à própria imagem da Arqueologia ligada ao estudo de um passado recuado (deep past) e na crença de que os documentos escritos e os relatos orais são suficientes para a percepção de determinados

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processos (GONZALEZ-RUIBAL, 2006). Uma vez que o número de desaparecidos no Brasil não é fechado e o total de vítimas da violência ditatorial é desconhecido, ou não reconhecido, quantos são os desaparecidos no país? Quem quer que vá ao Bico do Papagaio, ou acompanhe notícias e a produção científica sobre a região, sabe que a incidência da violência do Estado no local é anterior aos anos 1970 e continuou para além dos anos 1980 (NOSSA, 2011; PEIXOTO, 2011). A Arqueologia tem reforçado seu potencial como construtora de narrativas (KOJAN, DANGELO, 2005) a períodos sobre os quais seus métodos são implacáveis em tornar públicos processos passados marcados pela ausência de fontes escritas, poucos relatos orais, mas certamente enorme abundância de fontes materiais. É por uma autoarqueologia, e pelo fato de que a narrativa, por definição, só pode ser narrada em primeira pessoa (FIORIN, 1995), que utilizo a primeira pessoa do singular neste artigo, contra a aparente esquizofrenia do falar acadêmico e no intuito de inclusão do leitor (ARAÚJO, 2003; JOYCE, 2002), reconhecendo que, enquanto sujeito, a memória da ditadura militar também é a minha, como brasileiro, nascido no século XX, herdeiro, político e biológico, daqueles que lutaram contra o regime militar. ARQUEOLOGIAS PLURAIS E NÃO NARRATIVAS Uma Arqueologia da Repressão e da Resistência da Guerrilha do Araguaia deve partir da premissa da arqueologia no plural - arqueologias - reconhecendo que não existe “o” passado, mas muitos passados, e valorizando a ampla gama de abordagens, pontos de vista e particularidades a determinadas temáticas (ZIMMERMAN, 2006). Pluralizando a arqueologia, é possível realizar uma arqueologia da guerrilha do Araguaia questionando quatro frentes: problematizando as diversas áreas da própria arqueologia que podem contribuir com as pesquisas, a formação dos arqueólogos e antropólogos no país e a quebra da comunidade epistêmica estabelecida pela medicina legal no contexto forense e, finalmente, o estabelecimento de linhas comunitárias, públicas e participativas, menos hierárquicas e colonialistas, em torno do conhecimento produzido. Uma Arqueologia da Guerrilha do Araguaia deve problematizar memória e narrativa, ambos locus de disputa e conflitos envolvendo os usos do passado (HERING, 2002; MARTINS FILHO, 2003). Os silêncios e os regimes de verdade relacionados às narrativas e discursos produzidos sobre as conseqüências do terrorismo de estado estão no cerne dos relatos e das histórias produzidas sobre as ditaduras latinoamericanas. Uma vez que o extinto regime militar nunca manifestou versão oficial sobre o conflito, as narrativas a serem produzidas pela Arqueologia em contextos

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repressivos, neste âmbito, tornarão possível e inteligível pensar nossas vidas e a nós mesmos historicamente (BROCKMEIER, 2002; ARENDT, 2008), quebrando silêncios e não permitindo impunidades. A Arqueologia pode construir memórias, mais do que rebater discursos hegemônicos, uma vez que estes são, justamente, não narrativas. Assumir que a Arqueologia produz narrativas a partir da materialidade, considerando que toda ação humana deixa marcas materiais, é reconhecer, portanto, que ela opõe-se, diametralmente, às não narrativas e ao paradoxo do “apagamento de vestígios”. As lutas pelo direito de não esquecer, ou não deixar esquecer e não se repetir, têm sido, igualmente, um norte à presença da Arqueologia e seu auxílio na construção de outras narrativas aos eventos, ao produzir memórias materiais (ZARANKIN, NIRO, 2010). Vale lembrar que a etimologia da palavra latina forense é foro, um dos sentidos para público e manifesto (GASSIOT, 2012). Sendo assim, um dos objetivos da Arqueologia Forense, e não apenas da Arqueologia da Repressão e da Resistência, está relacionado às reflexões sobre a memória, as possibilidades de pluralizá-la (CARVALHO, FUNARI, 2009) e de converter o oculto em público, para, a partir daí, ser objeto de deliberação judicial (GASSIOT, 2012). No país, no entanto, o contexto político e a confrontação legal com as “injustiças do passado” tardaram processos deflagrados décadas antes em outros países. Mesmo com o legado dos julgamentos de Nuremberg e da Guerra Fria (TEITEL, 2003), foi somente com o final dos anos de 1990 que a “justiça de transição” efetivamente teve ações práticas no Brasil, ancorada nos processos de globalização que a tomaram enquanto paradigma do Estado de direito, sob influência da criação de tribunais para julgamentos de crimes de genocídio derivados dos conflitos nos Bálcãs e em Ruanda (SILVA FILHO et. al., 2013). Finalmente, uma “arqueologia no plural”, com abordagens participativas, comunitárias e públicas, norteando processos de buscas e pesquisas em contextos repressivos, não deve ser confundida com “interdisciplinaridade”. Uma equipe composta por diversos profissionais pode ser tão excludente quanto uma equipe disciplinar e nada pública. O Grupo de Trabalho Tocantins (GTT), criado pelo Ministério da Defesa para as buscas no Araguaia, em cumprimento a determinação da 1ª Vara Federal do Distrito Federal, por exemplo, não incluiu a participação de familiares de desaparecidos; com a reformulação do processo, resultando na criação do Grupo de Trabalho Araguaia (GTA), e coordenação interministerial, contando com o Ministério da Justiça e a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, o quadro alterouse, apesar da queixa sobre a qualificação técnica e a constante presença do Exército Brasileiro (CARVALHO, FUNARI, 2009). “Participação” claramente não quer dizer quebra de hierarquias de conhecimentos ou efetivo envolvimento de diferentes sujeitos

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de igual forma no processo; a Equipe Peruana de Antropologia Forense (EPAF), por exemplo, organiza cursos, para famílias e comissões, de antropologia forense, no intuito de “empoderamento”, igualmente atentos ao fato de que a linguagem técnica pode ser utilizada como arma, tal qual a burocracia, para ludibriar, controlar e solidificar discursos aparentemente inquestionáveis, já que “objetivos e “neutros”. ARQUEOLOGIAS CRÍVEIS Fazer uma arqueologia da Guerrilha do Araguaia é materializar o inacreditável, o inenarrável, no sentido de tornar crível algo que ocorreu, mas é negado, silenciado ou tornado inverossímil: uma narrativa, a partir de memórias materiais, contra não narrativas. Uma vez que a narrativa pode tornar ficcionalmente real um simulacro produzido pelo poder, sem fornecer objetos críveis (DE CERTEAU, 1994), a arqueologia pode materializar o crível. O crível é verossímil e está relacionado às possibilidades e limites das pesquisas sobre vestígios e marcas em locais relacionados à guerrilha (seja resistência, seja repressão), a nomes, números e coisas que magnetizam identidades de lugares, ou de não-lugares, como bases militares e campos clandestinos de prisão, tortura e assassinatos. Pesquisar o crível também é encarar, em seus regimes de verdade e fluxos de memória, testemunhos de familiares e outros envolvidos nas lutas contra a ditadura militar brasileira, frequentemente desacreditados pela não narrativa. Foram anos de descrédito até que o poder público levantasse a possibilidade de que as denúncias do horror no Araguaia fossem críveis. A Arqueologia, de uma forma ou de outra, sempre esteve rondando as buscas pelos desaparecidos da Guerrilha do Araguaia, já que ao longo das quase três décadas, alguns profissionais (bioarqueólogos e antropólogos físicos) foram chamados a comparecer, seja em reuniões, seja em consultas esporádicas, tanto da parte do governo como, com maior afinco, dos familiares. A presença oficial e sistemática de arqueólogos só viria ocorrer em 2012, quando a juíza federal Solange Salgado exarou documento exigindo sua presença junto do GTA, corpo pericial composto, maciçamente, por médicos legistas, auxiliados por geólogos e cartógrafos, na busca pelos desaparecidos. O processo, todavia, deve-se ao esforço das famílias na busca por respostas ao vazio da não narrativa criada pelo Estado. As primeiras caravanas de familiares à região foram organizadas ainda durante o regime, nos anos 1980 (TELLES, 2005; PEIXOTO, 2011). Em 1982, parentes de guerrilheiros instauraram processo contra a União, pedindo à Justiça documentos comprobatórios das mortes e atestados de óbitos. Sem resposta, em 1991, por conta própria, e acompanhados por membros da EAAF, realizaram escavações no Cemitério de Xambioá e outras localidades (EAAF, 1996-

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7), resultando na posterior identificação (1996) de Maria Lúcia Petit, a “Maria”. Em 1996, os remanescentes esqueléticos de Bergson Gurjão Farias, o “Jorge”, foram localizados, identificados por DNA em 2009. Em 2001, a EAAF realizou mais uma etapa de campo, em quatro locais distintos, a pedido de familiares e da Procuradoria da República (EAAF, 2001). No mesmo ano, já com apoio da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, arqueólogos do Museu Paraense Emílio Goeldi realizaram escavações pontuais na região. Com a redemocratização, entidades de direitos humanos passaram a pressionar os governos e somente em 1995 a Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) exigiu, do país, cumprimento ao direito à informação, a partir de ação movida pelos parentes para localização e esclarecimento de circunstância de morte, em 1982, considerada procedente somente em 1992 (TELES, LISBOA, 2012). Em 2003, a 1ª Vara do Distrito Federal ordena quebra de sigilo das informações militares em um prazo de 120 dias; no mesmo ano, a Advocacia-Geral da União apela da sentença que determina a abertura dos arquivos; em outubro, o governo Lula cria uma comissão interministerial para localização dos desaparecidos, solicitando documentos que nunca foram entregues. Em 2009, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA condena o governo brasileiro por detenção arbitrária, tortura e desaparecimento de 70 pessoas (guerrilheiros, moradores e camponeses) durante a ditadura, o que resulta na organização do GTT pelo Ministério da Defesa. Em 2010, a Corte acata a denúncia da Comissão e condena o Estado por utilizar a Lei da Anistia como pretexto para não julgar militares envolvidos na repressão à guerrilha. Em 2011, cria-se o GTA através de portaria interministerial (Secretaria de Direitos Humanos, Ministério da Justiça e Ministério da Defesa), com objetivo de localizar desaparecidos. Concomitantemente, diversos países da América Latina encabeçaram, nos anos 1980, processos de justiça transicional, com investigações em contextos repressivos, com destaque a bem sucedida empreitada da EAAF, nascida em 1985 (FONDEBRIDER, 2008; ZARANKIN, SALERNO, 2008). Mais recentemente, foram formadas a Equipe Peruana de Antropologia Forense (EPAF), a Equipe Colombiana Interdisciplinar de Trabalho Forense e Assistência Psicossocial (EQUITAS), a Fundação de Antropologia Forense da Guatemala (FAFG), o Grupo de Investigação em Arqueologia Forense do Uruguai (GIAF) e a Equipe Mexicana de Antropologia Forense (EMAF), enquanto instituições não governamentais ou ligadas ao Estado. Em julho de 2013, o Brasil assinou portaria, junto da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, para a criação do Grupo de Arqueologia e Antropologia Forense (GAAF) para casos de desaparecidos políticos associados ao período da

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ditadura entre 1964 e 1985, com duração de um ano, podendo ser renovada. O GAAF, todavia, ainda não realizou nenhuma ação prática. Este longo e duro caminho para resolução dos crimes da ditadura, para o acesso às informações, para compreender o aparelho de repressão montado pelo regime, é fruto da credibilidade dada aos relatos de ex-presos e familiares sobre eventos ocorridos durante os anos 1960 e 1980. É, portanto, uma arqueologia do crível. ARQUEOLOGIAS DO VIVÍVEL Antônio Carvalho (RIBEIRO, 1996) definiu o “vivível” como o que torna a vida praticável, pensável. Se a Arqueologia pode construir “memórias materiais” para a materialização de lembranças, saber e conhecer para não esquecer, compreender sem perdoar, na concepção de Hannah Arendt, ela pode, por isso, colaborar para tornar a vida pensável, auxiliando desfechos através do fim da angústia do inacabado, do devir eterno do desaparecimento. Neste sentido, torna psicologicamente e materialmente a vida viável e, assim, vivível (livable). A construção de uma “memória material”, que pode ser tocada, ouvida, experimentada, que pode tornar-se símbolo de sofrimento, como propõem Zarankin e Niro (2010), que asseguram credibilidade à memória, ou são parte do encerramento de uma vida de luta (TELES, LISBOA, 2012), conforma uma das arqueologias possíveis do crível. Diferentes agentes construíram táticas distintas para tornar a vida vivível após os processos desencadeados pela repressão à guerrilha no Bico do Papagaio. O evento do desaparecimento de entes queridos, uma situação-limite, desencadeou processos de reconstrução do mundo e da vida de familiares de desaparecidos políticos na guerrilha do Araguaia (SOUSA, 2011). Camponeses da região, migrantes advindos de sucessivas expulsões de suas terras, criaram mitos e lendas, na tentativa de dar sentido às mudanças em seu mundo cotidiano, às rupturas em um mundo que existia até então na fronteira da Amazônia oriental (MONTEIRO, 1974; SADER, 1990; VELHO, 1995). O corpo é uma das mais fortes representações da materialidade em contextos repressivos, tanto no sentido de seu potencial em criar provas materiais para crimes, como enquanto locus privilegiado sobre o qual a repressão agia (SALERNO, 2009). No Araguaia, uma das estratégias militares estava em mostrar aos moradores os corpos machucados, mutilados e inanimados de alguns guerrilheiros mitificados e heroificados ainda em vida. Osvaldo Orlando da Costa, o “Osvaldão”, tornava-se lobisomem, fumaça para escapar, era protegido da mãe d’água e de outras divindades amazônicas; teria sido enterrado no interior da base de Xambioá e seu corpo pendurado em um helicóptero e exposto a amigos e conhecidos; Dinalva Conceição Oliveira Teixeira, a

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“Dina”, desfazia-se em borboletas, e, como Osvaldão, por isso nunca era capturada, ludibriando as mais complexas manobras militares, já que, nos relatos orais sobre sua memória, não andava, flutuava (STUDART, 2006; MACIEL, 2011). O imaginário social também construiu narrativas de representação para as realidades vividas, tornando crível, aos moradores do Araguaia, a bravura e os símbolos de resistências, materializados, tornados palpáveis. Ainda cantam-se odes aos heróis em locais recônditos da mata, como táticas de reconstruções de mundo por representações que permitiram dar sentido e continuidade à vida após a repressão. Também deste modo, a arqueologia pode propor narrativas e memórias materiais para uma vida praticável, tornando crível planos para o vivível, mesmo a partir de materialidades ausentes (CAZDYN, 2013). Apesar de seu papel fundamental na localização dos mortos, é no esclarecimento aos vivos dos episódios ocorridos, reconsiderando o sentido etimológico de “forense”, que a Arqueologia pode apaziguar a dor do desaparecimento, do não saber, do imaginar e do elucubrar. Ao debruçar-se sobre a paisagem, os lugares, a arquitetura, o uso do espaço, os vestígios materiais (também os não esqueléticos) associados ao contexto da ditadura cívico-militar, mergulha no simbolismo de lugares de memória e esquecimento (CARR, JASINSKI, 2013) e nas táticas para continuidade da vida após a violência, auxiliando na materialização e construção de histórias por narrativas que se opõem ao silêncio institucional, legitimado pela máquina estatal, sobre o episódio da Guerrilha do Araguaia. Mais do que arqueologias forenses ou da repressão e da resistência, trazse à tona o sensível (BEZERRA, 2013), de forma simétrica (WITHMORE, 2007), da materialidade au combat às não narrativas. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARAÚJO, A. D. Identidade e subjetividade no discurso acadêmico: explorando práticas discursivas. Fortaleza: Ed. UECE/UFC, 2003. ARENDT, H. Compreender: formação, exílio e totalitarismo (ensaios). Belo Horizonte: Ufmg, 2008. ATALAY, S. “Indigenous Archaeology as Decolonizing Practice”. The American Indian Quartlerly, V. 30, N. 3-4, p. 280-310, 2006. BARAYBAR, J. P.; BLACKWELL, R. Where Are They? Missing, Forensics And Memory. No prelo. BARTHES, R. Análise estrutural da narrativa. Petrópolis: Vozes, 2008.

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Arqueologia Pública Revista de

ARTIGO

VESTÍGIOS DE UMA AUSÊNCIA:

UMA ARQUEOLOGIA DA REPRESSÃO

Beatriz Valladão Thiesen Célia Maria Pereira Eduarda Rippel Gabriel Rodrigues Vespasiano Ingrend Guimarães Cornaquini Júlio Toledo Mariana Fernandez

Dossiê

No. 10 ISSN 2237-8294 dezembro de 2014

ARTIGO

VESTÍGIOS DE UMA AUSÊNCIA: UMA ARQUEOLOGIA DA REPRESSÃO

Beatriz Valladão Thiesen1 Célia Maria Pereira2 Eduarda Rippel3 Gabriel Rodrigues Vespasiano4 Ingrend Guimarães Cornaquini5 Júlio Toledo6 Mariana Fernandez7 “É para os desesperados que nos foi dada a esperança” Walter Benjamin8 RESUMO Relatamos aqui uma experiência de Arqueologia Pública realizada com o tema dos desaparecidos da Ditadura Militar brasileira. O trabalho objetivou atingir as subjetividades e provocar um sentido de pertencimento. Para tanto, utilizando os caminhos da memória e dos afetos, empregando a cultura material e o abandono do texto escrito. Pela utilização de um simulacro, propusemos fazer uma tradução dos desaparecimentos ocorridos durante o período da ditadura. 1 Professora Associada do Curso de Bacharelado em Arqueologia da Universidade Federal do Rio Grande – FURG. Contato: [email protected]

2 Arte Educadora e Bacharelanda do Curso de Bacharelado em Arqueologia da Universidade Federal do Rio Grande - FURG 3 Bacharelando do Curso de Bacharelado em Arqueologia da Universidade Federal do Rio Grande - FURG 4 Bacharelando do Curso de Bacharelado em Arqueologia da Universidade Federal do Rio Grande - FURG 5 Bacharelando do Curso de Bacharelado em Arqueologia da Universidade Federal do Rio Grande - FURG 6 Bacharelando do Curso de Bacharelado em Arqueologia da Universidade Federal do Rio Grande - FURG 7 Bacharelando do Curso de Bacharelado em Arqueologia da Universidade Federal do Rio Grande - FURG 8 BENJAMIN, Walter. Les affinitésélectivesde Goethe, in Walter Benjamin. Oeuvres Choisies. Trad.  Maurice de Gandillac. Paris, Julliard, 1959.

THIESEN, PEREIRA, RIPPEL, VESPASIANO, CORNAQUINI, TOLEDO e FERNANDEZ

Palavras-chave: Ditadura Militar; Cultura Material; Arqueologia da Repressão. ABSTRACT This article was constituted upon our experiences within public archaeology, based on the theme: politic missing persons from brazilian Military Dictatorship. Our research has its goals on reaching the subjectivities and to induce a sense of belonging, evoking memories and attachment through material culture only, putting aside made discourses such as written texts. We describe in this article how our simulacrum installation was used to translate the disappearances during the dictatorship period. Keywords: Military Dictatorship; Material Culture; Archaeology of Repression. RESUMEN Relatamos aquí una experiencia de Arqueología Pública realizada con el tema de los desaparecidos de la Dictadura Militar brasileña. El trabajo objetivó atingir las subjetividades y provocar un sentido de pertenencia. Para tanto, utilizamos los caminos de la memoria y de los afectos, empleando la cultura material y abandonando el texto escrito. Por la utilización de un simulacro, propusimos hacer una traducción de los desaparecimientos ocurridos durante el período de la dictadura. Palabras clave: Dictadura Militar; Cultura Material; Arqueología de la Represión.

CINQUENTA ANOS SE PASSARAM E AS FERIDAS CONTINUAM ABERTAS O golpe de 1964 me encontrou ainda criança e eu cresci naqueles dias tempestuosos, entre o medo e a ignorância, entre o espanto e a ingenuidade. Em 1968, ouvi os Beatles pela primeira vez. E gostei. Tinha, então, 10 anos. A Jovem Guarda não me empolgava, mas achava Ronnie Von um príncipe. Odiava as freiras do colégio, o uniforme que nos assexualizava, e sonhava em ir (escondida) à loja - frequentada pela juventude rica e supostamente rebelde porto-alegrense - que vendia uniformes americanos usados por soldados na guerra do Vietnã. Não ouvi falar no AI-5. Minha pré-adolescência misturou a euforia da chegada do homem à lua e a vitória do Brasil na copa de 1970, com um desconforto, algo que eu

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não entendia, mas que ficava no ar quando adultos conversavam e mencionavam coisas sobre comunistas e generais. Havia bandidos e havia mocinhos. Não entendia bem, mas sabia que havia o bem, de um lado, e o mal, de outro. Na minha casa havia muitos livros. Ouvia-se música clássica a alto volume, diariamente. Havia um clima, até certo ponto, intelectual. Meu pai me ensinava sobre Beethoven, Michelangelo e Machado de Assis. Para mim, meu pai sabia tudo. Não entendia como ele não era presidente da república: era óbvio que consertaria o país. Um dia, o vi pegar nossas apostilas da aula de religião e jogar tudo no chão bradando: “As gurias vão sair desse colégio! Essas freiras são umas comunistas!”. Ora viva! As freiras malvadas, que nos colocavam de castigo, que nos chamavam de pecadoras, que nos obrigavam a usar saias medonhas e nos condenavam a passar frio durante o inverno - já que calça comprida era proibida no colégio -, eram as comunistas. Tudo resolvido! Concordei com meu pai: “Sim, os comunistas são muito maus. Sairemos do colégio!”. Fomos estudar em um lugar que não exigia uniforme. Podíamos matar aula (desde que não excedesse o número admitido de faltas), podíamos fumar no recreio, namorar. O paraíso. O lugar dos bons, por certo! Eu entrava, então, na adolescência. Conheci as drogas, as viagens de carona, os primeiros amores. Comecei a ver que além de Beethoven, Michelangelo e Machado de Assis, existiam muitas coisas mais. Aprendi o que era o AI-5 e o que é ter medo da polícia. Mas ainda não tinha perdido aquela doce inocência e, mesmo rindo muito com os colegas, todos abraçados e pulando juntos para trás e cantando “Este é um país que vai para frente”, ainda achava que o milagre econômico dos generais tinha nos salvado: havíamos construído uma casa e não via mais meu pai, de madrugada, desesperado e contando moedinhas. Quando entrei na Universidade, a coisa toda mudou. Ainda ingênua, conheci Marx, Engels e os anarquistas. Fiquei extasiada! Amor livre, cerveja, passeatas, discursos inflamados, e, pronto: mudamos o mundo. Apanhamos da polícia, gritamos, fomos parar nas delegacias. Sabíamos que tinha gente desaparecida. De novo, gritamos e apanhamos. Radicalizamos: deitamos em frente aos ônibus, tiramos a roupa e dançamos nus sobre a bandeira nacional. Apanhamos novamente. E gritando e apanhando, num belo dia, a ditadura acabou. O irmão do Henfil voltou, mas teve gente que nunca mais apareceu. Novamente, entre a euforia e a ignorância, esperei que tudo se resolvesse: a democracia trataria da justiça. Mas não... Cinquenta anos se passaram e eu pensei que precisava fazer alguma coisa. Professora de Arqueologia do Mundo Contemporâneo, desafiei os meus alunos: ainda precisa-

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mos mudar o mundo. Eles responderam com a garra da juventude: “vambora”!9. A SAUDADE É O PIOR TORMENTO É PIOR DO QUE O ESQUECIMENTO10 Decidimos espalhar informações, falar com a voz da arqueologia para aqueles que tivessem vivido os anos de chumbo, sem saber o que realmente acontecia. Além disso, as novas gerações, certamente, pouco ou nada sabiam sobre tudo que se passara naqueles tempos. Na cidade onde vivemos, falas simples e concisas do tipo “foi um período muito bom para a economia do país”, ou ainda “a polícia levava presos os marginais, e os drogados”, ou, até mesmo, “não me lembro de muito, mas era uma boa vida que levávamos”, dão a medida do que se conhece sobre aqueles anos. Ou do que se deseja lembrar daqueles anos. Mais do que isso, Rio Grande, único porto marítimo do estado do Rio Grande do Sul, é uma cidade que se considera devedora de um dos principais mentores da Ditadura Militar: o general Golbery do Couto e Silva11. Para grande parte da população local, o general - visto como herói -, através de sua influência no regime militar, alavancou o crescimento da cidade através de importantes obras. A instalação Vestígios de uma ausência: uma arqueologia da repressão veio de encontro a esta percepção local, ainda muito evidente em nossos atos cotidianos. Esta instalação foi pensada pelos alunos da turma 2011 do bacharelado em Arqueologia 9 Depoimento de Beatriz ValladãoThiesen. 10 Os subtítulos deste artigo são versos de Chico Buarque de Holanda da canção “Pedaço de Mim”. 11 Golbery teve uma formação militar, tendo estudado na War School de Fort Leanvenworth, no Kansas.

Trabalhou no front italiano da guerra como oficial de inteligência e informações. Seu histórico de ações contra o governo começa em 1954, quando, ao lado de coronéis, redigiu uma manifesto contra o aumento do salário mínimo proposto por Getúlio Vargas. Em 1955, tentou impedir a posse de Juscelino Kubitscheck e, em 1961, tentou vetar a posse de João Goulart. Em 1962, criou e dirigiu o IPES (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais) que passou a grampear ilegalmente milhares de telefones no Rio de Janeiro, reunindo arquivos e dossiês que mais tarde serviram para criar o SNI (Sistema Nacional de Informações) em 1964, – quando participou ativamente do golpe militar - com intuito de espionar e perseguir qualquer um que estivesse tentando conspirar contra o regime. Criou uma máquina responsável por centenas de desaparecimentos, mortes e torturas. Por ser natural de Rio Grande e por ter realizado ações como a criação da atual Universidade Federal do Rio Grande e a transferência do 5º Distrito Naval de Florianópolis para Rio Grande, é considerado por muitos como um benfeitor local. Essa imagem reflete-se em recorrentes homenagens feitas pela prefeitura local e por outras instituições. Recentemente, em 2008, o 6º Grupo de Artilharia e Campanha (GAC) inaugurou um monumento a Golbery intitulado O reconhecimento de sua terra natal. A última reverência à memória do general diz respeito à instituição do

Ano Acadêmico Golbery do Couto e Silva pela Academia Rio-grandina de Letras.

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da Universidade Federal do Rio Grande/FURG, em resposta à proposta da Professora Beatriz Thiesen, referente à disciplina de Arqueologia do Capitalismo III. A intenção do trabalho foi abordar a Ditadura Militar no Brasil através de objetos e sensações. Usando as ideias do arqueólogo Gonzalez Ruibal (2008), pretendemos demonstrar que uma arqueologia do passado recente, além de oferecer meios para contestar as versões oficiais dos fatos, também é capaz de escancarar o que nos causa ódio e repugnância. Ressaltese que ela foi a única intervenção trazendo à tona o tema da Ditadura Militar realizada na cidade do Rio Grande em abril de 2014, mês que marcou os cinquenta anos do golpe. Resolvemos revelar, não através das palavras, mas da cultura material12, os rostos das vítimas da ditadura, mostrando tanto o visível, como as realidades ocultas da história: a ausência. Quisemos, seguindo Potter (1994), provocar a autorreflexão e integrar teoria e prática. Concordamos com Connerton (2009) que o esquecimento é uma característica da modernidade e que precisamos realizar esforços para documentar a vida contemporânea para a sociedade futura. Foi assim que, com um texto de Alfredo Ruibal (2008), nas mãos e mil ideias na cabeça13, nasceu o Vestígios de uma ausência: uma arqueologia da repressão. O autor de Time to destroy. An archaeology of supermodernity, nos diz14: We need alternative ways of translating the remains from the past (Shanks 2004;Witmore 2004a), and this need is especially urgent because, given the overabundance of historical information, there is a risk of saturating memory with a proliferation of narratives and details, which may eventually neutralize and trivialize the past, and because the evidence is often very particular in its abject detail and its traumatic political implications. (RUIBAL, 2008: 250).

Assim, buscamos realizar o trabalho tomando os caminhos da memória e do afeto. 12 A tentativa que realizamos neste artigo é a de relatar, com palavras, o que realizamos, evitando o uso delas e utilizando a cultura material. Uma tarefa paradoxal, com certeza. 13 Fazemos referência aqui à célebre frase de Glauber Rocha «uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”, utilizada para se referir à produção de filmes baratos e voltados à realidade brasileira, adotando uma linguagem adequada à situação social da época e buscando a transformação social. 14 Os textos em língua estrangeira foram traduzidos livremente aqui. A responsabilidade pela tradução é nossa. “Precisamos de formas alternativas de traduzir os restos do passado (SHANKS, 2004; WITMORE, 2004) e essa necessidade é especialmente urgente no contexto do passado contemporâneo, pelo menos, por duas razões: porque, dada a superabundância de informações históricas do passado recente, há um risco de saturar a memória por uma proliferação de narrativas e detalhes, que podem eventualmente, neutralizar e banalizar o passado [...], e porque a evidênciana arqueologia da supermodernidadeé frequentemente muito especial no seu detalhe abjeto e nas suas implicações políticas traumáticas”. (RUIBAL, 2008: 250).

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Se, como já se disse, somos o que a nossa memória nos diz que somos, precisamos não esquecer. Porque se esquecemos, morremos em uma parte. Claro que também sabemos que a memória está permanentemente construindo-se e reconstruindo-se e, assim, é um engano pensar que podemos resgatar memórias, pois não se trata de um pacote de informações acabado (MENEZES, 1992). Ligada ao esquecimento, ela só permite lembrar de partes do passado. O que queríamos lembrar, então? Consideramos que a arqueologia é uma atividade inerentemente política e que ela pode e deve contribuir com um mundo mais justo e humano (McGUIRRE, 2008; LITTLE & SHACKEL, 2014). Quisemos gritar, em alto e bom som, que a história está construída por tiranias, resistências, sonhos, lutas, vaidades. Que a história não é feita apenas de heróis reconhecidos, mas também de pessoas comuns, cuja agência é ignorada, e de outras tantas pessoas banais, que tiveram que viver suas vidas com as consequências da violência, com partes que lhes foram arrancadas, com ausências... Quisemos mostrar as sombras dos rostos daqueles que estão excluídos das histórias oficiais e dos quais não devemos esquecer. Mas memória não é só lembrança e esquecimento. Ela está em documentos, em monumentos, em museus, mas também “encontra-se nos corpos, nas experiências e nos afetos” (SILVA, 2008: 62). Ainda conforme Silva, Nesse sentido, podemos pensar nos afetos como formas de conhecimento, compreensão e experimentação do mundo, bem como de tradução das nossas vivências para os outros. O indivíduo está mergulhado em uma totalidade de significados, daí que não é possível pensá-lo fora dos contextos sociais. O homem está sempre, de algum modo, “afetado” e essas afecções qualificam suas “disposições para...”, suas relações com o espaço e o tempo, nas suas interdependências, definindo, inclusive, porque se sente dada emoção e não outra, em situações específicas. Razão e emoção são um duplo reversível: a racionalização opera com base na afetividade em dada situação ao mesmo tempo em que utiliza seu potencial reflexivo para orientar as emoções (ibidem: 68).

Assim, consideramos a necessidade de utilizar um recurso que nos permitisse atingir as subjetividades. Pretendemos que, ao alcançar as afetividades, provocássemos um sentido de pertencimento às memórias que reconstruíamos ali. Que, através de emoções provocadas, o indivíduo vivenciasse a experiência proposta e pudesse, assim, se considerar como parte de uma história da qual ele também é personagem. Através de um simulacro15 (BAUDRILLARD, 1991), propusemos fazer uma tradu15 Utilizamos simulacro no sentido de Jean Baudrillard (1991), ainda que para este autor, um simulacro seja um signo sem vínculos com o real, que se apresenta mais real que a realidade. Para este autor, o simulacro não mantém qualquer relação com qualquer realidade. Para nós, a construção desse simulacro obedeceu critérios de realidade. Ainda assim, tomamos de Baudrillard a ideia defendida em Simulacros e Simulação de que na pós-modernidade os símbolos têm mais importância e mais eficácia do que a própria

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ção, ou uma metáfora, dos desaparecimentos ocorridos durante o período da ditadura. Era importante que evitássemos o uso de textos e que pudéssemos apresentar o tema de forma que “fosse capaz de nos assombrar” (SHANKS apud RUIBAL, 2008: 251). Hélio Oiticica - artista experimental16 - em suas obras fazia uso de objetos e materiais que possibilitassem ao visitante explorar cores, cheiros e sons como ativadores de sentidos. A participação era o fator mais importante em sua obra. Andar descalço sobre areia, água ou pedra. Sua proposta era recuperar sentimentos, propiciar sensações. Com Vestígios..., algo semelhante ocorre, mesmo sem a intenção de obra de arte. O visitante ouve, sente cheiros, percebe cores – preto, branco, vermelho - que em alguns momentos estão presentes juntas, em outros, isoladas, como na sala escura, onde sons simultâneos ocorrem (polifonia). As cores, os sons, as imagens e os trajetos conduzem a percepções e a sensações, nos levando há um tempo que - mesmo não vivido -, através do simulacro, experimentamos. A instalação cria uma narrativa, articulando fatos ocorridos durante o regime ditatorial brasileiro, que resultou entre tantos sofrimentos, no desaparecimento de pessoas que a ele se opuseram. E nesses acontecidos, “personagens, objetos e lugares [atribuem] uma lógica sequencial e rítmica para compartilhá-lo com outras pessoas” (GLOSSÁRIO ..., 2010: 11). A instalação age como um dispositivo - assim como em obras de arte contemporânea a partir dos anos 196017 – solicitando a participação do espectador. Essa participação é ativada pela interação do que compõe o trabalho e as memórias, vivências, realidade e que simulacros, como simulações imperfeitas do real, fascinam o espectador muito mais que o próprio objeto reproduzido.

16 Helio Oiticica foi um dos primeiros artistas a usar o espaço e todos os sentidos humanos em seu trabalho. Na proposta que apresentamos aqui, Oiticica é inspirador. Como ele, queremos fazer ver coisas de uma forma diferente. 17 “A década de 1960 é marcada pela velocidade das vanguardas artísticas, que tem Nova Yorque

como capital cultural do século XX. Dentre as manifestações artísticas como Minimalismo, Op Arte, Arte Cinética, Novo Realismo e Tropicália, a Pop Arte surgida na Inglaterra, mas apropriada e difundida pelos norte-americanos foi a vanguarda mais decisiva da década. Sem programa preestabelecido, sem manifesto, utilizando-se do repertório do cotidiano do consumo e da cultura de massa, foi rapidamente transformada em tendência internacional. Isso mostrou o poder cultural dos americanos.O desafio aos policias e os protestos dos estudantes nas ruas de Paris foi um marco que desencadeou movimentos de contestação, em vários Países, revoltas e guerrilhas urbanas. Estudantes, artistas e intelectuais ocupam as ruas, fazem passeatas. A contra cultura, a revolução cultural. Os artistas plásticos abandonam os museus, as galerias, saem da solidão dos ateliês e se misturam na multidão. É a poética do gesto, da ação, da coletividade, a utopia da arte / vida como participação do espectador na realização da obra de arte. No Brasil a Tropicália de Hélio Oiticica, foi uma das manifestações mais polêmicas, ao lado de Terra em Transe filme experimental barroco de Glauber Rocha e a peça O Rei da Vela de Oswald de Andrade, dirigida por José Celso Martinez.” (http://josekuller.wordpress.com/2008/07/17/as-artes-plasticas-

na-decada-de-60-e-em-maio-de-68/)

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conhecimentos e subjetividades. Pode-se pensar o trabalho como a criação de um território, de um espaço, no qual cada um percorre em um ritmo particular, conduzido pela maneira como se afeta, como interage. Pode-se perceber que nesse trajeto, os estímulos geram pausas e reflexões, provocadas pela capacidade de sentir e de inserção de cada um. Outro aspecto a enfatizar refere-se à preocupação estética que permeou todo o desenvolvimento do trabalho coletivo, desde a proposta. É fundamental trazermos o significado da palavra estetizar: “lidar com determinado fato, acontecimento ou elemento intensificando seu valor estético, sua beleza18 e sua atratividade. Leituras e práticas estetizantes envolvem a possibilidade de sedução ou repulsa” (GLOSSÁRIO ..., 2010: 9). Houve duas instalações, que apesar de serem em lugares bem diferentes, com públicos diferentes, mantiveram o projeto estrutural inicial intacto. A primeira foi no Prédio do Diretório Central de Estudantes da Universidade Federal do Rio Grande, com o público esperado de acadêmicos e pessoas envolvidas no âmbito universitário. A escolha, neste momento, esteve relacionada ao fato de que o prédio do DCE é um local de livre acesso aos estudantes, próximo ao Restaurante Universitário e, portanto, localizado em posição central e estratégica. A segunda instalação abrangeu um projeto bem maior, o qual se chamou Circuito Resistência Manifesta. Este projeto foi o desdobramento da proposta inicial. Neste circuito, tivemos atividades tanto na Prefeitura Municipal, no centro da cidade, quanto no Bairro Cassino, o bairro/balneário da cidade. A intenção de utilizar estes locais deveu-se à possibilidade de atingir um público amplo e diversificado. A Prefeitura, localizada na área central da cidade, favoreceria o acesso do cidadão comum, que transita cotidianamente por aquela área. O Cassino, situado a cerca de 20 quilômetros do centro, apresentava a possibilidade de atender os moradores do bairro e os turistas que frequentam o balneário. Na prefeitura, ficou a Instalação aberta ao público, e também foram feitas algumas Rodas de Conversas com convidados que trabalham diretamente com o tema da repressão, como foi o caso do Arqueólogo Andrés Zarankin, do Historiador Renato Della Vechiae, Eliane de Oliveira Rubim, integrante do Instituto Mário Alves19. Também pessoas que vivenciaram a questão na cidade, 18 Entendendo-se beleza como relação entre o objeto e o observador. Uma forma das pessoas se relacionarem entre si e com o mundo. Tudo no mundo recebe uma denominação e um valor como reflexo do sentir e do pensar, que, por sua vez, concretizam-se através de símbolos, e a partir destes, conseguimos dar significações para as nossas experiências (DUARTE JR, JoãoFrancisco. “O que é Beleza”. Coleção Primeiros Passos, vol. 167, 3. ed. São Paulo, Brasiliense, 1991). 19 O Instituto Mário Alves (IMA) é um instituto voltado ao desenvolvimento de estudos e pesquisas políticas, econômicas e sociais. Tem como proposta central a criação de um espaço

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como a militante do Movimento Estudantil da época, Margareth Badejo. No Balneário Cassino, foram exibidos filmes20 que, depois de assistidos, foram discutidos. Os cartazes de divulgação foram feitos com fotos dos integrantes do grupo, fazendo uma referência aos antigos cartazes que estampavam o rosto de supostos terroristas procurados. Estes cartazes eram distribuídos pela cidade e conclamavam os cidadãos a delatar, para o seu bem e de seus familiares, os indivíduos ali retratados. E solidariamente nos colocamos em seus lugares, tendo a certeza de que se tivéssemos vivido em tal período, também poderíamos ser tratados como terroristas. Em uma cidade relativamente pequena21, sabíamos que em alguns casos poderíamos ser reconhecidos. Este fato traria para o âmbito da pessoalidade e da familiaridade algo que, a princípio, estava tão distante e, provavelmente, não afetaria diretamente o público. Os cartazes foram distribuídos pelo Campus da Universidade, em ruas da cidade, paradas de ônibus e outros locais com grande afluência de pessoas.

Fig. 1A: Na direita, cartaz de divulgação do evento realizado no recinto do DiretórioAcadêmico da Universidade Federal do Rio Grande. Imagem: Célia Maria Pereira. Fig. 1B: Na esquerda,cartaz da época da Ditadura. Fonte: http://folhetando.blogspot.com.br.

que promova a discussão, elaboração e a formação política, objetiva a participação de pessoas, instituições, movimentos sociais e entidades (governamentais e não governamentais). Fonte: http://www.imapelotas.blogspot.com.br/2009/09/o-ima.html. 20 Os filmes foram: Que bom te ver viva, direção de Lúcia Murat, que teve como debatedor Lizandro Mello; Batismo de Sangue, dirigido por Helvécio Rattom; e Zuzu Angel de Sérgio Rezende. 21 Conforme o Censo 2010, a população de Rio Grande - RS é composta por 94.983 homens e 102.245 mulheres, atingindo, naquele ano, quase 200.000 habitantes (http://www. cidades.ibge.gov.br).

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A SAUDADE É ARRUMAR O QUARTO DO FILHO QUE JÁ MORREU A estrutura da instalação foi pensada detalhadamente para que o público fosse fortemente impactado com o lado perverso da repressão e depois fluísse para a materialidade, refletindo a ausência dos indivíduos brasileiros desaparecidos durante a ditadura. O intuito da proposta da instalação era criar ambientes em que as pessoas ficassem livres para interpretar o que quisessem sobre aquela arqueologia da repressão. Iríamos usar da cultura material para alcançar a sensibilidade dos sentidos e a percepção de cada pessoa que entrasse na instalação, possibilitando com que cada uma delas fizesse parte da instalação em si, criando o seu próprio discurso ali dentro. Dividimos a instalação em cinco ambientes diferentes. O primeiro deles era a Entrada, onde as pessoas eram recepcionadas pelo título da instalação e seu ícone, o pau de arara. Neste mesmo ambiente, selecionava-se um nome escrito em um pedaço de papel entre vários acondicionados em uma caixa preta.

Fig. 2: Entrada da InstalaçãoVestígios de uma Ausência: uma Arqueologia da Repressão. Foto: Célia Maria Pereira, 2014.

O segundo ambiente era o Quarto Escuro. Este era, de fato, o primeiro ambiente em que a pessoa ficava só. Era uma pequena sala, completamente escura, sem luz e sem ventilação, onde o som de relatos de torturados, gritos e descrições de métodos de tortura se misturavam aos sons de discursos dos generais da ditadura - especialmente

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os que anunciavam as medidas de exceção - e a narração de jogos da copa do mundo de 1970. Os sons vinham de todos os lados através de caixas colocadas estrategicamente nos quatro cantos do quarto. Ao mesmo tempo, em uma parede, projetou-se continuamente um vídeo que apresentava um turbilhão de imagens desfocadas de pessoas sendo torturadas. Essas imagens eram interrompidas por fotografias dos mortos da ditadura. Como estas:

Fig. 3: Imagens projetadas no Quarto Escuro de torturados na ditadura. Fonte: http://zequinhabarreto. org.br/?p=7002

Ficava-se ali... Até quando fosse possível aguentar. Em pé. Naquele ambiente caótico, pavoroso, terrificante. Alguns ficavam segundos e voltavam, indo embora, abandonando a instalação. Outros seguiam adiante. Poucos toleravam ficar por muito tempo ali. Quando não era mais possível suportar, achava-se uma saída que, de fato, ficava escondida entre lonas pretas. O terceiro ambiente, mais conhecido como a Sala dos Rostos, tinha uma luz tênue e, ao contrário do ambiente anterior, era todo branco, amplo e silencioso. E a única coisa que se via era o mural com o rosto, nome, idade, profissão e data de desaparecimento de sessenta e quatro brasileiros22 projetados na parede ao fundo. A pessoa identificaria 22 Fizemos a seleção dos sessenta e quatro desaparecidos políticos conforme os seguintes dados: nome completo, profissão, idade, imagem do rosto e data de desaparecimento. Tais da-

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ali o rosto daquele nome que tinha retirado na Entrada. Encontravam-se homens e mulheres, jovens e velhos, estudantes ou profissionais. Todos desaparecidos. A sensação era de um intenso vazio.

Fig. 4: Imagem projetada na Sala dos Rostos. Foto: Célia Maria Pereira, 2014.

O quarto ambiente era chamado Quarto da Ausência. Era justamente o que o nome diz ser, um quarto de um(a) jovem que estava estagnado no tempo. Era um quarto ambientado de acordo com o final da década de 1960 e começo da década de 1970, época em que houve mais denúncias de desaparecimentos e mortes de militantes. O quarto apresentava vários objetos e cheiros que refletiam a imagem de um(a) jovem militante e a sua ausência naquele lugar congelado no tempo. Um quarto comum: os chinelos ao lado da cama, uma escrivaninha com uma máquina de escrever ainda com uma folha parcialmente escrita, livros de Karl Marx, um violão sobre a cama, uma figura de Che Guevara na parede, almofadas e discos no chão. Havia fotos também. Nessas fotos, sempre uma pessoa apagada. Uma sombra onde deveria estar uma criança entre os pais. Outra sombra, onde deveria estar um jovem entre dos foram retirados do sítio http://www.desaparecidospoliticos.org.br, que é organizado pela Comissão Nacional da Verdade, entidade que age na luta contra a omissão e o esquecimento desses crimes cometidos na ditadura. Portanto, esses sessenta e quatro indivíduos fazem parte de um grupo muito maior de desaparecidos políticos no país.

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seus amigos. E assim por diante. Um quarto que ficou ali, sem que houvesse alguém para povoá-lo. O quarto vazio. O quarto da ausência. Ali, as pessoas se emocionavam.

Fig. 5: Vista geral do Quarto da Ausência. Foto: Célia Maria Pereira, 2014.

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Figs. 6, 7, 8, 9: Aspectos do Quarto da Ausência. Foto: Célia Maria Pereira, 2014.

O quinto e último ambiente foi o Mural de Escritos, onde painéis expositores foram revestidos de papel pardo para que as pessoas, recém-saídas do Quarto da Ausência, também pudessem deixar seus vestígios na instalação. Este ambiente era bem claro e ali se ouvia canções que serviram de resistência e protesto naqueles anos. Cantores como Chico Buarque, Elis Regina, Geraldo Vandré e Milton Nascimento foram alguns dos artistas escolhidos para fazer o plano de fundo e manter o clima de envolvimento no

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momento de deixar seu depoimento23. É importante esclarecer que ninguém foi obrigado a escrever no mural. Ao sair do Quarto da Ausência - por vezes emocionadas ou chocadas - as pessoas eram instruídas, se quisessem, a deixar no mural um vestígio seu: um sentimento, uma indignação. A sua parte no nosso trabalho.

23 Os depoimentos no mural foram feitos espontânea e anonimamente.

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Fig. 10: Deixe aqui o seu vestígio... Fig. 11: Uma das frases no mural. Fig. 12: Visita de estudantes. Fig. 13: Detalhe do Mural. Fotos: Célia Maria Pereira, 2014.

Acreditamos que o mural foi mais do que o retorno do público: foi uma recompensa. Foi então a nossa vez de nos emocionar e ter certeza de que o nosso objetivo foi cumprido: a cultura material por si só, as diversas coisas colocadas juntas no contexto certo expressam o que palavras não diriam. Conseguimos então demonstrar o poder que a arqueologia tem de, através da cultura material, despertar sentimentos, indignação e, principalmente, pertencimento e empatia. Numa tarde que tinha tudo para ser igual a qualquer outra, as pessoas que se dispuseram a visitar a instalação saíram de lá com sentimentos diversos: -“Nojo!” -“Triste!” -“Orgulho, Medo/Revolta, Vergonha!”. -“Agonia, Revolta, desespero, aperto no coração...”. -“Esperança de que nunca se repita” -“Momentos de dor...”. -“Relembrei minha infância nos anos 70...”. -“Cenas que nos fazem refletir... Obrigada pelas sensações, por me tirar da zona de conforto!” -”Afasta de mim esse cale-se!” -“A sala dá uma sensação horrível, consegue-se sentir, nem que seja um pouco de terror, e o quanto dá melancolia por ver o sumiço da possível pessoa que viveu ali.” -“Assim como na época de ditadura me senti desorientado e confuso com as narrativas de futebol de tal maneira que fiquei um pouco alienado com as imagens que passaram na minha frente. O espetáculo do futebol usado para alienar as pessoas”. Nós, envolvidos no trabalho, nos dividimos em pequenos grupos de dois ou três para podermos auxiliar o público em todos os horários que a instalação ficou aberta.

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Portanto, de maneira geral, todos nós tivemos um contato muito direto com o público, possibilitando avaliar diariamente como a proposta impactava os visitantes. Apesar da emoção geral do público, era impossível pensar que não haveria manifestações a favor do regime militar. Um aluno pertencente a uma turma de ensino médio de certa escola pública da cidade escreveu: “Não há futuro para o país sem a ditadura”. A professora levou as respostas dos alunos como um tema a ser discutido em sala de aula, chamando atenção para as diversas versões que se contam sobre o período. Esta foi a única manifestação favorável à ditadura que recebemos. Em contrapartida, muitas pessoas escreveram chamados de revolução: -”Toda revolução é impossível até que seja inevitável”. -“Não podemos desistir, não podemos por eles, por nós pelo povo!”. -“Hay hombres que luchan un dia y son Buenos/ Hay otros que luchan un año y son mejores/ Hay quienes luchan muchos años y son muy Buenos/ Pero hay los que luchan toda la vida/ Esos son inprescindibles” (citando Bertold Brecht). -“Liberdade-Utopia”. -“Não nos devemos Sistematizar! Se não fossem as ‘causas perdidas’ o que nos impulsionaria? Até quando a culpa não é minha”? A SAUDADE É O PIOR CASTIGO E EU NÃO QUERO LEVAR COMIGO A MORTALHA DO AMOR Entendendo a Arqueologia como uma disciplina dotada de grande responsabilidade social e política, a instalação possibilitou ao público relacionar experiências de um passado sombrio com o presente. Em meio à ebulição popular vivida nos últimos meses, percebeu-seque ainda vivemos com marcas daquele tempo. A força desproporcional, a brutalidade policial que, a serviço do poder, parece fazer uma limpeza nas ruas, permitiu aos visitantes uma reflexão do panorama atual do país. A questão da desmilitarização da polícia apareceu em falas. Através do mural feito de papel pardo, a comunidade pode interagir e deixar o seu testemunho. Quisemos ouvir o que cada um tinha a dizer. Quisemos que cada um deixasse seu vestígio. A instalação trouxe ao público talvez uma redescoberta, uma nova visão sobre o nosso trabalho, que rotineiramente é tratado como um mero entretenimento, dotado de aventuras fantásticas com segredos preciosos, e que se atém apenas ao antigo. Ou, como quando uma das integrantes do grupo foi questionada: “Por que isso é arqueologia e não história?’’. Foi um deleite finalmente poder responder: - “É arqueologia, pois trazemos as coisas à tona”. A materialidade traz a vida que os documentos escritos usurpam. Não que a história não tenha o poder de emocionar com os textos, mas é absolutamente dife-

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rente ler sobre os fornos utilizados nos campos de concentração nazistas e deparar-se com o sapatinho de uma criança incinerada dentro de um, como frizou Lizandro Mello24 em sua fala após a exibição do filme Que bom te ver Viva. Conseguimos mostrar que é possível ir além, e proporcionar momentos mais incríveis do que uma personagem sendo perseguida por uma bola gigantesca em uma de suas aventuras25. Talvez sim, talvez tenhamos um toque de magia, talvez nossa magia seja a possibilidade de tocar as pessoas e proporcionar essa reflexão ao escancarar o sujo, o feio, o que revolta, opondo-se assim a qualquer mecanismo de higienização do passado. AGRADECIMENTOS Agradecemos a todos os alunos da disciplina de Arqueologia do Capitalismo III, do curso de Bacharelado em Arqueologia da Universidade Federal do Rio Grande - FURG -, que se envolveram neste projeto. Agradecemos ainda, ao Liber Studium, Laboratório de Arqueologia do Capitalismo da FURG, à Direção de Arte e Cultura da Pró-Reitoria de Extensão desta Universidade, à Secretaria de Município da Cultura do Rio Grande, à Associação dos Professores da FURG (APROFURG), ao Sindicato do Pessoal Técnico-Administrativo da FURG (APTFURG), ao DCE da FURG, ao Ponto de Cultura ArtEstação e ao Instituto Mario Alvez. Agradecemos, sobretudo, aos que lutaram para que hoje pudéssemos estar aqui.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e Simulação. Lisboa, Relógio d’Água Editores Ltda, 1991. CONNERTON, Paul. How Modernity Forgets. Cambridge, Cambridge University Press, 2009.

24 Bacharel em Direito (FURG, 2007), Advogado (OAB/RS 73.076), Bacharel em História / Patrimônio Cultural (FURG, 2013). Atua nas áreas de Direitos Humanos, Direito Criminal, Patrimônio Cultural, Ditaduras de Segurança Nacional na América Latina no período Pós-II Guerra, Direito e Justiça Social. Foi convidado para participar da roda de discussão sobre o filme “Que bom te ver viva” de Lúcia Murat, no Circuito Resistência Manifesta. 25 Fazemos referência aqui ao filme: Indiana Jones e os Caçadores da Arca Perdida, de Steven Spilberg.

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LITTLE, Barbara J.; SHACKEL, Paul A. Archaeology, Heritage, and Civic Engagement: Working Toward the Public Good. WalnutCreek, Left Coast Press, 2014. GLOSSÁRIO + Regras do Jogo. Material Educativo da 29ª Bienal de São Paulo. São Paulo, Bienal, 2010. McGUIRE, Randall H. Archæology as Political Action. Berkeley and Los Angeles, University of California Press, 2008. MENESES, Ulpiano B. A. “História, Cativa Da Memória? Para um Mapeamento da Memória no Campo das Ciências Social”. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, nº 34, p. 11, 1992. POTTER Jr., Parker B. Public Archaeology in Annapolis: A Critical Approach to History in Maryland’s Ancient City. Washington, Smithsonian Institution Press, 1994. RUIBAL, Alfredo G. “Time to destroy. An archaeology of supermodernity”. Current Anthropology, nº 49(2), p. 247-279, 2008. SILVA, Veruska A. S. da. “Memória e Afetividade: A Importância das Emoções nas Trajetórias Sociais”. OPSIS Dossiê História e Sensibilidade Universidade Federal de Goiás/Campus Catalão, v. 8, n. 11, p. 59-76, 2008.

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ENTREVISTA

A ARQUEOLOGIA DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA: UMA CONVERSA COM ANDRÉS ZARANKIN

ENTREVISTADORES Victor Henrique da Silva Menezes Júlia Negov de Oliveira

Dossiê

No. 10 ISSN 2237-8294 dezembro de 2014

ENTREVISTA

A ARQUEOLOGIA DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA: UMA CONVERSA COM ANDRÉS ZARANKIN ENTREVISTADO Andrés Zarankin – Professor titular da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pesquisador associado do Laboratório de Arqueologia Pública Paulo Duarte (LAP/ NEPAM/Unicamp). Email: [email protected] ENTREVISTADORES Victor Henrique da Silva Menezes – Graduando em História pela Unicamp e estagiário do Laboratório de Arqueologia Pública Paulo Duarte (LAP/NEPAM/Unicamp). Contanto: [email protected] Júlia Negov de Oliveira – Graduanda em História pela Unicamp e colaboradora no Laboratório de Arqueologia Pública Paulo Duarte (LAP/NEPAM/Unicamp). Contanto: [email protected] RESUMO Na presente entrevista, o leitor encontrará uma breve definição do conceito “Arqueologia da Repressão e Resistência”, bem como um panorama sobre as possibilidades desse campo de pesquisa. Além de ressaltar a importância de estudos nessa área, o professor Andrés Zarankin tece comentários acerca do processo de musealização, e ressalta a importância do contato com as comunidades e os agentes históricos. Palavras chave: Arqueologia da Repressão e Resistência; estudos do tempo presente; musealização; arqueologia pública.

UMA CONVERSA COM ANDRÉS ZARANKIN

INTRODUÇÃO Andrés Zarankin é professor titular do Departamento Antropologia e Arqueologia da FAFICH-UFMG e doutor pela Universidade Estadual de Campinas, com enfoque na área de Arqueologia e análise arquitetônica. Montou e liderou a equipe de escavação do Centro de Detenção Clandestino Clube Atlético em Buenos Aires, entre os anos de 2002 e 2003. Possui experiência e pesquisas nas áreas de Arqueologia Histórica, Arqueologia Antártica, Arqueologia do Capitalismo, Arqueologia da Arquitetura e dos campos de concentração latino americanos. Na entrevista que se segue, Zarankin conta sobre sua trajetória como estudioso da cultura material e sua relação com os movimentos pelos direitos humanos. Posiciona-se sobre a importância das pesquisas na área de Arqueologia da Repressão e Resistência, sobre o papel do arqueólogo e suas ações na comunidade relacionadas com Arqueologia Pública, e indica as possibilidades para jovens pesquisadores interessados nessa temática. Entrevistadores: Para começar, agradecemos ao professor por ter aceitado o convite para participar desta entrevista, e, gostaríamos que falasse um pouco acerca de sua trajetória como estudioso da cultura material, e em particular, do tema da repressão e resistência. Quais foram os caminhos que te levaram a realizar pesquisas na área de Arqueologia? Andrés Zarankin – Essa é uma pergunta difícil de responder, já que as escolhas aconteceram em diferentes épocas e por diferentes motivos. Talvez possa colocar como eixo conector meus pais. Quando tinha seis anos, eles me deram de presente um livro intitulado A grande aventura da Arqueologia, o que me fez decidir a tão curta idade virar arqueólogo. Claro que minha ideia da profissão estava associada aos estereótipos dos tesouros e aventuras, que mais tarde seria reforçado por Indiana Jones (o que também intensificaria minha vontade de virar arqueólogo). Por outro lado, meus pais sempre participaram ativamente de movimentos políticos e de diretos humanos, o que fez que mantivesse sempre uma posição de engajamento, principalmente nas reivindicações por justiça relacionada aos crimes da ditadura Argentina. O problema foi que estes dois campos na minha vida permaneceram separados por muito tempo, já que na universidade era ensinado que a descoberta do passado real deveria ser pura e não contaminada. Além disso, trabalhava-se com um passado distante. Foi a partir de meu amadurecimento como arqueólogo, da leitura extracurricular de autores como Hodder, McGuire, Shanks, Tilley, Beaudry, Funari, Tania Andrade Lima,

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dentre outros, que minha cabeça começou a mudar, e entendi que tinha vivido preso dentro de limites com medo que o que fizesse não fosse mais considerado arqueologia. Neste momento, compreendi que arqueologia e política estavam atravessadas uma pela outra. Assim, porque não utilizar a arqueologia para tratar no mundo moderno, de temas como dominação, resistência, violência, ideologia, capitalismo, entre outros? Surgiram assim meus primeiros trabalhos que buscavam analisar a ideologia na arquitetura. Posteriormente meu interesse se voltou para o tema da ditadura e violência política. Já existia o exemplo do EAAF (Equipe Argentina de Antropologia Forense), porém, este inspirador grupo de vanguarda sempre tinha funcionado fora do universo acadêmico (e de fato não era costume deles publicar ou participar de congressos e eventos científicos). Neste momento, 2002, o governo da cidade de Buenos Aires abriu concurso para o desenvolvimento de um trabalho de escavação no centro clandestino Club Atlético. Era uma grande oportunidade, então montei uma equipe e apresentei um projeto. Esse tinha como objetivos principais o estudo da arquitetura do lugar como estratégia repressiva e, ao mesmo tempo, era a construção de uma memória material sobre a repressão. Nosso projeto foi escolhido e durante um ano trabalhei de graça, unicamente pelo meu convencimento de que finalmente estava podendo reunir duas grandes questões que sempre me instigaram, a arqueologia e a luta por justiça.     Entrevistadores: Existe consenso hoje, no meio acadêmico, na definição do campo da arqueologia da repressão e da resistência? Como você o define? Andrés Zarankin – O conceito foi proposto por Pedro Paulo Funari e por mim num livro que leva este título em 2006. Posteriormente, foi utilizado por outros pesquisadores de formas diversas. Nossa ideia original foi simplesmente desenvolver uma Arqueologia política que tivesse como foco o estudo dos processos de violência política na América Latina, entre as décadas de 1960 e 1980. É importante salientar que sempre utilizamos os conceitos de repressão (para falar das políticas do sistema), mas também de resistência, para mostrar que as pessoas não são passivas e aceitam de forma submissa as imposições. Mas, pelo contrário, estas desenvolvem táticas (segundo a definição de De Certau) a partir das quais lutam, se enfrentam e às vezes conseguem resistir ou mudar aquilo que lhes é imposto. Entrevistadores: No contexto da América do Sul, qual é a função e a importância de realizar pesquisas no âmbito da Arqueologia da Repressão e Resistência? Andrés Zarankin – Pessoalmente, acredito que essas pesquisas são da maior importân-

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cia. Não só para desenvolver uma visão critica do passado recente, e, portanto, de uma memória do que não queremos que aconteça novamente, mas também para compreender as estratégias de reprodução do sistema, para não continuarmos a acreditar que as desigualdades sociais são naturais e que as pessoas comuns não tem força suficiente para construir outra realidade. A história não só da América do Sul, mas também da América Latina tem sido de lutas e conflitos e a arqueologia coloca-se como uma ferramenta política a serviço dos povos (dentre as quais destaco os estudos do presente), tendo o potencial de ajudar a reforçar sociedades mais democráticas. Entrevistadores: Como esse campo da Arqueologia estuda o uso dos espaços pelos governos totalitários e autoritários? Andrés Zarankin – A arqueologia como disciplina nos capacita para efetuar leituras sociais a partir da materialidade. O espaço é um dos componentes centrais para o estudo da cultura material, já que este é transformado em lugar a partir de uma distribuição de pessoas e objetos criando funcionalidades e sentidos. O controle do espaço, como assinala Foucault, tem sido uma estratégia recorrente por parte do sistema a partir do século XVII e principalmente do XVIII. Ter o poder de distribuir pessoas e coisas é uma estratégia eficaz de disciplina. No caso especifico dos governos totalitários, separar e reunir os inimigos facilita o exercício do poder, de controlar e aniquilar. A arqueologia pode utilizar estes lugares para discutir a estratégias repressivas (assim como também as resistências como uma linha alternativa de estudo). Entrevistadores: Você poderia nos apresentar um exemplo concreto de estudo desenvolvido no campo da Arqueologia da Repressão e Resistência? Andrés Zarankin – Existem múltiplos exemplos que vão desde a recuperação dos corpos dos desaparecidos, como parte dos estudos em antropologia forense, que buscam determinar quando e como morreu a pessoa, até outros estudos que trabalham a organização espacial dos campos de concentração, passando por análises da roupa encontrada junto com os corpos dos desaparecidos, os grafites em paredes de prisões, a construção de lugares para a memória sobre as ditaduras, assim como muitos outros. Vários destes trabalhos podem ser encontrados nos livros Arqueologia da Repressão e da Resistência na América Latina na era das ditaduras (Funari & Zarankin, 2008) e Histórias Desaparecidas (Zarankin, Salerno e Perosinio, 2012). Entrevistadores: Como as pesquisas arqueológicas interagem com as vítimas dos

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regimes totalitários na América do Sul? E quanto aos familiares das vítimas, como eles podem dialogar com tais estudos? Andrés Zarankin – Fora as equipes de Antropologia Forense, que em geral atuam como ONGs, só recentemente a Arqueologia tem entrado de forma sistemática na temática da repressão e resistência durante as ditaduras da segunda metade do século XX. Ademais, os arqueólogos estão acostumados a trabalhar de forma isolada da comunidade e dos atores sociais que produziram o registro arqueológico (que em geral estão mortos há muitas centenas de anos). Isto tem dificultado a interação entre os arqueólogos e os sobreviventes ou seus familiares. Porém, com sorte isto está mudando e, atualmente, em grande parte dos projetos, vítimas, familiares, organismos de direitos humanos, dentre outros, participam ativamente das pesquisas e são incluídos na tomada de decisões sobre o rumo dos projetos.   Entrevistadores: É possível desenvolver pesquisas no campo da Arqueologia da Repressão e Resistência numa perspectiva da Arqueologia Pública? Andrés Zarankin – Acredito que não exista outra forma de desenvolver uma Arqueologia da Repressão que não seja pública e que não implique um contato e uma colaboração com as vítimas, com suas famílias ou com a sociedade. Qualquer outro intento seria retornar às práticas de uma arqueologia tradicional e autoritária, dentro da qual o arqueólogo é o dono da verdade sobre o passado, indo contra os próprios princípios implícitos numa arqueologia da repressão e a resistência. Entrevistadores: Como os museus podem tratar da Arqueologia da Repressão e Resistência? Como eles podem atuar/trabalhar com a cultura material advinda de tais estudos? Andrés Zarankin – Este é um tema que deveria ser discutido com os museólogos em conjunto com os sobreviventes, agrupações de direitos humanos, etc. Existem muitas possibilidades de apresentar tanto as informações como a cultura material recuperada. Cada uma destas vai ter um efeito diferente sobre o público, que pode ir desde uma sensação de esperança (monumentos, objetos feitos pelos prisioneiros, espaços repressivos agora limpos e cheios de espaços verdes) até o maior sofrimento que seja possível imaginar (ex. manchas de sangue, instrumentos de tortura, roupa furada por balas, etc.). Como mencionei, não é o arqueólogo ou o museólogo quem deve escolher como deve ser apresentada a história do lugar ou os objetos recuperados, mas esta decisão precisa

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ser pensada com os protagonistas dessa história e com a sociedade. Entrevistadores: O que há ainda para ser feito nesse campo da Arqueologia nas pesquisas que tem como foco a América do Sul? Andrés Zarankin – Tudo! De fato, estamos frente a um tema que apenas recentemente a Arqueologia tem começado a tratar dentro do âmbito acadêmico. São mínimas as pesquisas existentes, pelo que considero este tipo de estudos um dos grandes desafios da arqueologia na atualidade.                                                                                                                         Entrevistadores: Agora, para finalizar: aos nossos leitores brasileiros que tiverem interesse em desenvolver pesquisas na área de Arqueologia, em especial, voltadas aos estudos da Arqueologia da Repressão e da Resistência, quais são os possíveis caminhos a percorrer?   Andrés Zarankin – Não existe diferença com os percursos de qualquer pesquisa, isto é, dentro da problemática da Arqueologia da Repressão e Resistência, escolher um objeto de estudo e pensar quais as perguntas que querem ser respondidas. Também é fundamental pensar uma metodologia adequada. Tudo isto pode ser feito em diferentes níveis de pesquisa que vão desde um TCC até um mestrado ou tese de doutorado. Atualmente, acredito que grande parte dos cursos de Arqueologia no país está aberta para receber estudantes interessados na temática.

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