Revista Arqueologia Pública 5, 2012

September 5, 2017 | Autor: P. Funari | Categoria: Arqueologia, Patrimonio Cultural, Arqueologia Pública, Arqueologia Histórica
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S U MÁ R I O 5

EDITORIAL ARTIGOS

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Arqueologia no Brasil e o panorama atual: os números de 11 anos de divulgação na Folha de S. Paulo Glória Tega

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Cacareco de Índio e artefato arqueológico: conversas entre arqueólogos e a Família Souza no Sítio Cedro, Santarém – Pará Raimundo Ney da Cruz Gomes e Rhuan Carlos dos Santos Lopes

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A Educação Patrimonial na Avaliação de Impacto Ambiental: possibilidades de aplicação de uma perspectiva de Arqueologia Pública Tatiana Costa Fernandes e Laercio Loiola Brochier

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Museus e diversidade sexual: reflexões sobre mostras LGBT e queer Renato Pinto

Arqueologia e Patrimônio: os acervos dos museus e sua importância Cláudio Umpierre Carlan

RESENHA

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HERRERA, Alexander. La Recuperación de Tecnologías Indígenas: Arqueología, tecnología y Desarrollo en los Andes. Editorial Universidad de los Andes: Bogotá, Colombia, 2011. Andrés Alarcón Jiménez

ENTREVISTA

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Patrimônio cultural e processos educativos, uma conversa com Elizabete Tamanini. Por: Gabriela Berthou de Almeida, Rúbia Caroline Sousa e Victor S. Menezes

número 5 | 2012

Seção de g raduação 79

A Arqueologia da Repressão no contexto das distaduras militaries da Argentina, Uruguai e Brasil Giullia Caldas dos Anjos

RESENHA

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GONÇALVES, Cristiane Souza. Restauração arquitetônica: a experiência do SPHAN em São Paulo 1936-1975. São Paulo: Annablume, 2008. Tami Coelho Ocar

número 5 | 2012

E D I TO R I A L Julho de 2012 É um imenso prazer para toda equipe do Laboratório de Arqueologia Pública Paulo Duarte (NEPAM – Unicamp) apresentar este novo número da Revista Arqueologia Pública! Continuamos com a proposta política de abrir espaços para discussões democráticas e plurais no campo arqueológico e com o reconhecimento de que não há consensos sobre o que é Arqueologia Pública. E, independente dos consensos, mantemos a premissa da Arqueologia como uma prática social engajada e que tem o compromisso da construção de diálogos com diferentes comunidades. As novidades que o leitor encontrará neste número centram-se nos artigos, inéditos, e na criação de uma nova seção para Revista Arqueologia Pública: abrimos espaços para que os estudantes de graduação publiquem artigos sobre pesquisas em andamento no campo da Arqueologia, da Memória e do Patrimônio, bem como para a divulgação de resenhas de livros. Na primeira parte, voltada para a publicação de textos produzidos por professores e pós-graduados (e pós-graduandos!), reunimos cinco artigos que versam sobre a divulgação da Arqueologia no Brasil (Glória Tega); acerca dos diálogos possíveis entre a Etnografia e a Arqueologia Pública (Raimundo Ney da Cruz Gomes); sobre Educação Ambiental em Projeto de Salvamento Arqueológico (Tatiana Costa Fernandes); acerca das relações entre as instituições museológicas e as reflexões sobre a diversidade sexual (Renato Pinto) e, sobre as relações entre Arqueologia, Patrimônios e Museus (Cláudio Umpierre Carlan). Os objetos de estudos de cada um dos artigos são analisados sobre perspectivas teóricas diferenciadas, e pertencem a múltiplos contextos nacionais e internacionais. Apresentamos ainda uma resenha do livro La Recuperación de Tecnologías Indígenas: Arqueología, tecnología y Desarrollo en los Andes (Alexander Herrera Wassilowsky), produzida por Andrés Alarcón Jiménez. E, uma entrevista à professora Elisabete Tamanini, realizada por parte da equipe do Lap, sobre Patrimônio Cultural e Processos Educativos. Inaugurando a seção dos alunos, temos o artigo de Giullia Caldas dos Anjos sobre Arqueologia da Repressão nos contextos argentino, uruguaio e brasileiro e a resenha produzida por Tami Coelho Ocar do livro Restauração arquitetônica: a experiência do SPHAN em São Paulo 1936-1975. São Paulo: Annablume, 2008 (Cristiane Souza Gonçalves). Nesta edição, mantemos a opção por publicar a Arqueologia Pública apenas em sua versão digital. Acreditamos que – apesar de em muitos lugares do Brasil a acessibilidade à internet ainda não ser uma realidade – com a versão digital podemos chegar a um grande número de leitores e instituições ultrapassando a barreira da distribuição da versão impressa. Aproveitamos o editorial para agradecer a todos àqueles que contribuíram de alguma forma para que a Arqueologia Pública estivesse aqui: autores, pareceristas, equipe do Lap e equipe da informática. Assim como no número anterior, esperemos que todos aproveitem este volume e que se sintam convidados a participar dos próximos números com textos, resenhas, entrevistas, indicações de leituras e carta dos leitores.

Boa leitura! Aline Carvalho e Pedro Paulo Funari

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Arqueologia Pública | Campinas | n° 5 | 2011

A r q u e o lo g i a n o B r a s i l e o pa n o r a m a at ua l :

os números de 11 anos de divulgação na F o l h a d e S . Pau lo

A UTOR Glória Tega

[email protected]

RESUMO

Graduada em Jornalismo (PUC Campinas), Especialista em Divulgação Científica (NJR/ECA/USP), Mestranda em Divulgação Científica e Cultural (LABJOR/UNICAMP)

No presente artigo exponho os resultados obtidos a partir do levantamento quantitativo realizado com objetivo de ter um panorama parcial do que é divulgado na imprensa quando o assunto é Arqueologia. Foram selecionados 933 textos que abordavam questões relativas a essa ciência, publicados no jornal Folha de S. Paulo, ao longo dos anos de 2000 a 2010, que apareceram na ferramenta de busca da versão digital do jornal impresso. Esses textos foram comparados quantitativamente às licenças para a realização de pesquisas arqueológicas emitidas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, IPHAN, levantadas por Wichers (2010) e Zanettini (2009). Palavras chave: Arqueologia, Jornalismo, Análise do Discurso.

A B STR A C T

In this article I present the results obtained from the quantitative survey in order to have a partial picture of what is reported in the press when it comes to archeology. 933 texts were selected that addressed issues related to this science, published in the newspaper “Folha de São Paulo”, (from 2000 to 2010, which appeared in the search engine of the digital version of the printed newspaper. These texts were compared quantitatively to the licenses to carry out archaeological research issued by the Institute for National Artistic and Historical Heritage, IPHAN raised by Wichers (2010) and Zanettini (2009). Keywords: Archaeology, Journalism, Discourse Analysis.

INTRO D U Ç Ã O

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A implantação da Portaria 230 do IPHAN, em 17 de dezembro de 2002, passou a exigir que o licenciamento ambiental contemplasse também a pesquisa arqueológica. A medida acabou impulsionando um grande crescimento no que diz respeito a essas pesquisas no Brasil; gerou a criação de empresas especialistas na realização dos licenciamentos de obras; as Universidades também passaram a se adequar para poderem realizar os licenciamentos; a demanda por profissionais arqueólogos aumentou; foram criados cursos de graduação em Arqueologia, enfim, a Arqueologia no Brasil ampliou sua atuação, as pesquisas ganharam espaço dentro e fora das Universidades, configurando-se um mercado de atuação, de trabalho. A Portaria também estabeleceu medidas que visam a um retorno à sociedade dos resultados obtidos nas pesquisas, tornando a Arqueologia

Arqueologia Pública | Campinas | n° 5 | 2012

mais evidente, chegando à população em forma de palestras, cartilhas escolares, cursos diversos, visitas guiadas aos sítios, museus criados com a cultura material proveniente de pesquisas realizadas para licenciamentos, dentre muitas outras ações que ajudaram a disseminar essa ciência, o que exigiu o envolvimento de profissionais de diversas áreas Assim, tendo a citada portaria como parâmetro, Zanettini (2009) e Wichers (2010) sistematizaram os dados a respeito da emissão de portarias para a realização das pesquisas arqueológicas no Brasil, dos quais apresento, no gráfico 1, os de Zanettini (2009):

Portarias de pesquisa emitidas para o território brasileiro (2003 a 2009) 700 600

Nº de portarias

500 400 300 200 100 0 2003

2004

2005

2006

2007

2008

2009

Gráfico 1 - Número de licenças de pesquisa expedidas pelo IPHAN para arqueólogos em território brasileiro ( janeiro de 2003 a dezembro de 2009). Fonte: Diário Oficial da União (citado em ZANETTINI, 2009: 76).

¹ “Matérias” são textos jornalísticos de diferentes gêneros, como notícia, nota, reportagem, entre outros. Tratase de um “termo genérico usado para qualquer texto que se produz para jornal” (FOLHA, 2010: 82). ²A título de conferência, pedi ao Banco de Dados da Folha de S. Paulo para orçar a mesma pesquisa, procurando no arquivo as mesmas palavras, resultando num custo de R$ 2129,20, pelas 936 páginas, ou matérias, localizadas. Fazendo manualmente a mesma pesquisa encontrei um total de 933.

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No período examinado por Zanettini, foram emitidas 3422 portarias de pesquisa arqueológica para o território nacional, englobando portarias de autorização, permissão, prorrogação e renovação, além de portarias voltadas à publicação de normas e orientações. Como mostra o gráfico, existe um aumento relativamente constante no decorrer dos anos no que tange à emissão das portarias de pesquisa, sobretudo, no biênio 2007/2008, com um crescimento de 34%. De acordo com o trabalho citado, grande parte dessas portarias (98%) está associada ao licenciamento de empreendimentos, configurando um novo campo de atuação da Arqueologia, o da Arqueologia Preventiva. Partindo do princípio de que o número de pesquisas realizadas no Brasil cresceu de forma tão evidente, o número de textos publicados nos meios de comunicação de massa, os quais, a partir de agora, chamarei também por “matérias”¹ , sobre Arqueologia, poderiam ter acompanhado essa tendência, mesmo que o espaço físico destinado às matérias que tratam de ciência seja o mesmo. Para verificar tal possibilidade, fiz um levantamento² das matérias que fazem referência à Arqueologia, publicadas no jornal Folha de S. Paulo. Primeiramente, para definir um texto como “uma matéria de Arqueologia”, partiu-se do conceito formulado por Funari, segundo o qual, “a Arqueologia estuda, diretamente, a totalidade material apropriada pelas sociedades humanas, como parte de uma cultura total, material e imaterial, sem limitações de caráter cronológico” (FUNARI, 2003, 15). Em segundo lugar, a escolha da Folha se deu porque é um jornal com sede em São Paulo, estado com o maior número de pesquisas arqueológicas

Arqueologia Pública | Campinas | n° 5 | 2012

¹ Dados obtidos da Associação Nacional de Jornais. Disponível em http://www.anj.org.br/a-industriajornalistica/jornais-no-brasil/ maiores-jornais-do-brasil. Acesso em 05/04/2011.

A pesquisa foi realizada por meio do site www.folha.uol.com.br, entre 08/ 2010 e 02/2011.

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realizadas em seu território, de acordo com Wichers (2010), mas também é um jornal de circulação nacional, podendo, inclusive, noticiar as pesquisas arqueológicas realizadas em todo território brasileiro. Além disso, trata-se da maior publicação diária do tipo impresso do Brasil em tiragem, com 295.558 exemplares por dia, em média³. O levantamento começou no ano de 2000, dois anos antes da vigência da Portaria 230 e ano em que o Brasil completou 500 anos do descobrimento, fato que poderia influenciar o número de matérias históricas e/ ou arqueológicas. Foram 11 anos pesquisados, visando também à comparação com os levantamentos de portarias de autorização e permissão emitidas para pesquisas arqueológicas realizados por Wichers (2010) e Zanettini (2009), os quais contemplaram os anos de 2003 a 2009. Terminei o levantamento em 2010, ano em que pude acompanhar o que estava sendo pesquisado e comparar com o que estava sendo publicado. Foram selecionados textos de todos os gêneros jornalísticos que apareceram na ferramenta de busca da versão digital do jornal4 , quando procuradas as palavras Arqueologia, Arqueológico, Arqueólogo, Escavação (e variações de gênero e número), para designar a área do conhecimento ou qualificar o sítio de pesquisa ou os objetos pesquisados. Eles foram primeiramente classificados por origem - Brasil ou mundo. Separadas as matérias que se referiam ao Brasil, essas foram classificadas como passíveis de comparação com as portarias de autorização e permissão emitidas para pesquisas pelo IPHAN, as quais foram divididas em pesquisas de Arqueologia preventiva e pesquisas acadêmicas. Na Tabela 1, a seguir, apresento um apanhado geral desse levantamento:

Tal separação foi realizada com o auxílio do arqueólogo Flávio Calippo.

Tabela 1 – Matérias sobre Arqueologia de 2000 a 2010 na Folha de S. Paulo

Muitos textos encontrados tinham como assunto a Arqueologia, mas não eram sobre pesquisas arqueológicas, mas sim sobre cinema, televisão, turismo, exposições, entre outros.

A primeira afirmação que podemos fazer observando a Tabela 1 é que, exceto no ano 2000, o número de matérias que tratam de assuntos relacionados à Arqueologia no mundo sempre foi superior àquelas relativas ao Brasil, assim como sugerem Amorim e Massarani a sobre a “predominância de pesquisas provenientes do exterior nos jornais” (AMORIM & MASSARANI, 2008: 80), mesmo depois de 2003 quando, suponho, o número de publicações

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já deveria começar a refletir o crescimento no número das pesquisas, pois a portaria 230 foi instituída em dezembro de 2002. Porém, no ano 2000, o curioso é que não só que o número de matérias sobre a Arqueologia no mundo foi menor que aquelas sobre o Brasil, mas também que, de modo geral, o assunto Arqueologia fez-se mais presente no total de textos publicados, comparado com os demais anos (Gráfico 3). Tais fatos podem ser explicados pelo grande número de matérias relativas às comemorações dos 500 anos do Brasil, o que, possivelmente, desencadeou também várias discussões sobre essa ciência, como na matéria “Encontro analisa a Arqueologia no Brasil”. Podemos visualizar esse quadro nos gráficos 3 e 4 a seguir:

Gráfico 3: Ano 2000, comparativo de matérias Gráfico 4: Ano 2000, comparativo de matérias publicadas na publicadas na Folha de S. Paulo: Brasil x Mundo. Folha de S. Paulo por assunto.

No Gráfico 4 , mais de 25% das matérias publicadas foram relativas às comemorações dos 500 anos do Brasil e 9% sobre discussões cujo tema era Arqueologia. Com o objetivo de se comparar numericamente as matérias publicadas na Folha com o número de portaria emitidas, reproduzo a Tabela 2, sistematizada por Wichers (2010): Tabela2 - Portarias de pesquisa emitidas para o território brasileiro

(Adaptado de WICHERS, 2010: 197)

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A segunda coluna corresponde a todas as portarias de pesquisa emitidas pelo IPHAN e publicadas no Diário Oficial da União entre janeiro de 2003 e dezembro de 2009, totalizando 3.422. Todavia, esse total corresponde a portarias de autorização, permissão, prorrogação e renovação, além de portarias voltadas à publicação de normas e orientações. Por isso, os números contidos na terceira coluna são aqueles que considero relevantes para a comparação direta com as matérias publicadas na Folha, pois correspondem apenas às portarias de autorização e permissão (2888 portarias), e, à realização de pesquisas arqueológicas propriamente ditas, tendo muito mais chance de gerar matérias jornalísticas. Além disso, voltando à coluna “comparáveis com portarias de autorização e permissão emitidas para pesquisas arqueológicas” da

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Tabela 1 e comparando-a, portanto, com a terceira coluna da Tabela 2, o crescimento relativamente constante observado na segunda, a partir de 2004, não foi constatado na primeira. Na Tabela 1 também é possível notar a inconstância no número de publicações de matérias cujo assunto são pesquisas arqueológicas no Brasil. Mas, como sugere Zanettini (2009), é possível enxergar um leve crescimento a partir de 2004 – não da ordem de 17-20% ao ano, mas em torno de 11%. Também não é possível notar crescimento algum das matérias publicadas no biênio 2007/2008, período no qual Zanettini observou um pico de crescimento na emissão das portarias. O autor também sugeriu, no início de 2009, que o total de portarias de autorização e permissão emitidas deveria ultrapassar em 2009 o montante atingido em 2008. Em 2010, talvez venhamos a assistir a um novo boom, sobretudo, se levarmos em conta que apenas 50% das verbas alocadas para o PAC do Governo federal foram efetivamente utilizadas até o momento (ZANETTINI, 2009: 77).

De fato, ao observarmos as colunas em laranja do Gráfico 5, a seguir, é possível notar que há uma tendência de crescimento no número de matérias publicadas sobre Arqueologia. Mesmo que, em 2007, esse número tenha caído muito em relação a 2006, o gráfico tende a ser ascendente, a partir de 2007.

Gráfico 5: Matérias publicadas na Folha de S. Paulo, ano a ano, de 2000 a 2010.

Entretanto, o número de matérias publicadas chega a ser ínfimo perante o número de pesquisas realizadas, quando comparados os mesmos anos dos dois levantamentos, e não acompanha, portanto, o crescimento das pesquisas realizadas no Brasil, que fica facilmente observável quando, no Gráfico 6 a seguir, colocamos o número de portarias de autorização e permissão (3ª coluna da tabela 2) e o número de matérias publicadas comparáveis com portarias de autorização e permissão (somatória da 5ª e 6ª coluna da tabela 1) lado a lado:

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Gráfico 6: Matérias publicadas na Folha de 2000 a 2010 e Portarias .emitidas de autorização e permissão pelo IPHAN entre 2003 e 2009.

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Outra discussão presente na Arqueologia brasileira é a questão da cientificidade ou não da Arqueologia preventiva. Ou seja, o quanto do que é exigido por lei é realizado já que, supostamente, o tempo concedido para a consumação das pesquisas de Arqueologia preventiva não seria o ideal, pois haveria a questão da pressão pela necessidade da realização da obra. Ao contrário, as pesquisas acadêmicas teriam o tempo compatível com a necessidade, já que não sofrem as pressões das construções. Não quero aqui me prolongar em relação a essa discussão, pois esses temas fogem do escopo da minha pesquisa. Faço essa menção apenas para, em primeiro lugar, chamar a atenção ao fato de que por meio dos números que recolhi na Folha, não há a possibilidade de chegar a conclusão alguma a respeito de quais projetos têm maior visibilidade na imprensa, se os de Arqueologia preventiva ou os de Arqueologia acadêmica e, em segundo lugar, porque quis verificar se as matérias seguiam a tendência sugerida por Zanettini (2009), de acordo com o qual a maioria das portarias de autorização e permissão emitidas entre janeiro de 2003 e dezembro de 2009 seria voltada ao atendimento de demandas geradas pelo licenciamento ambiental. Vejamos o Gráfico 7:

Gráfico 7: Matérias publicadas na Folha de S. Paulo comparáveis com portarias de autorização e permissão emitidas para pesquisas arqueológicas

No período analisado, os anos 2000, 2002, 2003, 2005, 2006 e 2008 possuem maior número de matérias publicadas a respeito da Arqueologia acadêmica. Já nos anos de 2001, 2004, 2007, 2009 e 2010, há mais matérias relativas às pesquisas de Arqueologia preventiva. Aparentemente não há uma explicação para esses números, apenas podemos observar que o ano 2000 é o que tem o maior número de textos publicados sobre pesquisas acadêmicas em todo o período analisado, matérias talvez impulsionadas pelas comemorações dos 500 anos do Brasil – apesar desse número ser quase igual aos obtidos nos anos de 2003 e 2006; nos anos de 2007 e 2008, há um declínio nos textos publicados sobre pesquisas de Arqueologia preventiva; em 2009 e 2010, o número de matérias publicadas sobre pesquisas de Arqueologia preventiva é muito maior que o número daquelas sobre pesquisas acadêmicas. Talvez, aqui, haja de fato um reflexo do crescimento das portarias emitidas, já que, de acordo com Zanettini (2009), atualmente as pesquisas de Arqueologia preventiva respondem por 98% das portarias de autorização e permissão emitidas pelo IPHAN. Também é interessante notar que algumas dessas matérias classificadas como relativas a pesquisas de Arqueologia preventiva possuem como principal entrevistado um arqueólogo pertencente a alguma Universidade. Ou seja, são matérias que tratam efetivamente de pesquisas realizadas para o licenciamento de obras, porém quem foi contratado para fazer esse trabalho foi uma Universidade, geralmente pública, como podemos observar no Gráfico 8:

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Gráfico 8. Matérias publicadas na Folha de São Paulo relativas às pesquisas de Arqueologia Preventiva sob o aspecto de quem é o principal autor da pesquisa e a instituição a qual ele pertence, de 2000 a 2010.

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A Análise do Discurso de linha francesa será usada posteriormente em alguns dos textos desse levantamento com objetivo de entender o discurso, compreendido como o lugar onde se dão “efeitos de sentidos entre locutores” (ORLANDI, 2007a: 21), pois “é pelo discurso que melhor se compreende a relação entre linguagem/pensamento/mundo, porque o discurso é uma das instâncias materiais (concretas) dessa relação” (ORLANDI, 2007b: 12).

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No Gráfico acima, a categoria ‘Indeterminado’ é relativa aos textos nos quais não foi possível determinar com exatidão se os pesquisadores citados representavam uma empresa ou uma Universidade. Pensando apenas naquelas matérias em que foi possível determinar a que tipo de instituição os entrevistados pertenciam, é possível dizer que o número de pessoas pertencentes ao meio acadêmico que aparecem em matérias que tratam de pesquisas de Arqueologia de contrato é bastante representativo (30%). Ou seja, é plausível especular que esse dado tenha origem em três aspectos: primeiro, as assessorias de comunicação das instituições de ensino provavelmente tiveram uma atuação no sentido de divulgar as pesquisas realizadas, mesmo se tratando de pesquisas de Arqueologia preventiva; Segundo, os profissionais envolvidos nas pesquisas possivelmente já são ‘fontes’ anteriormente consultadas para a elaboração do discurso jornalístico. As fontes são locais ou pessoas que o jornalista busca para obter informações e construir seu texto. No caso das pessoas, são aquelas que, geralmente, o jornalista acostumado a cobrir um determinado tema, no caso ciência, costuma procurar para saber se há algum fato relevante para se tornar notícia, ou seja, há um relacionamento um pouco mais estreito entre jornalista e fonte. É o caso do professor do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo, Eduardo Góes Neves, comumente procurado para falar de Arqueologia amazônica, seja em relação às suas pesquisas acadêmicas, às suas pesquisas de Arqueologia de contrato ou, até, para dar sua opinião a respeito de outras pesquisas realizadas na região, situações constatadas em diversas matérias desse universo aqui levantado. A Folha classifica suas fontes segundo sua confiabilidade, que vai do “Tipo zero” – a mais confiável - até o “Tipo 4” –a menos confiável. A fonte “Tipo um” é classificada pela Folha como “ a mais confiável nos casos em que a fonte é uma pessoa. (...) tem histórico de confiabilidade (...). Fala com conhecimento de causa (...) e não tem interesses imediatos na sua divulgação”, (FOLHA, 2010: 38). Acredito que é nesta categoria que se encaixam os arqueólogos pertencentes a instituições de ensino que foram fontes para matérias que tratam de projetos de Arqueologia preventiva. A questão da confiabilidade também pode ter relação com o terceiro aspecto que sugiro para justificar a presença de muitas matérias sobre Arqueologia de contrato encontradas nesse levantamento que foram feitas a partir de entrevistas com arqueólogos pertencentes a alguma Universidade, pois pensando sob a ótica da Análise do Discurso7 , é coerente afirmar que pode haver um traço de relação de força, já que uma pesquisa de arqueologia preventiva realizada por uma Universidade tem mais ‘peso’ quando repórter

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busca legitimar, dar credibilidade a seu discurso e, dessa maneira, afirmar a suposta característica do discurso jornalístico como transmissor imparcial da verdade. As relações de força podem ser encontradas nas citações entre aspas também presentes no texto jornalístico, que, de acordo com o Manual de Redação da Folha, seriam “responsáveis pela credibilidade da notícia”. Elas dariam a referida credibilidade ao discurso, pois viriam de pessoas autorizadas a falar sobre determinado assunto. Para Maingueneau (1997), o fato de um primeiro locutor se abrigar em um outro discurso seria uma maneira de “sugerir o que se pensa, sem necessitar responsabilizar-se por isso” (MAINGUENEAU, 1997: 86) e, além disso, o locutor citado aparece como a “autoridade que protege a asserção”. Voltando, ainda à Tabela 1, proponho fazer também um recorte e uma reflexão em relação ao número de matérias publicadas de acordo com o estado da federação onde as pesquisas arqueológicas foram realizadas, o que procuro sistematizar na Tabela 4 a seguir:

Tabela 4: Matérias publicadas comparáveis com portarias de autorização e permissão emitidas para pesquisa, ano a ano, por estado da federação.

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Cabe dizer que a categoria “vários” corresponde a matérias nas quais vários estados foram citados, como por exemplo, aquelas que se referem ao licenciamento das áreas da Rodovia Transnordestina, que passa por diversos estados do nordeste brasileiro. De maneira geral, para o período analisado, como já foi apontado em outro momento, o estado de São Paulo é a unidade da federação que mais obteve matérias publicadas a respeito de pesquisas arqueológicas realizadas em seu território (60), seguido de Amazonas e Piauí (15) e, com 14 matérias, os estados do Pará e Minas Gerais. Pelo Mapa 1, a seguir, fica evidente que as áreas das regiões Sudeste e Norte do país destacam-se em relação ao número de matérias publicadas, sendo que, mesmo que timidamente, é possível também notar estados com matérias publicadas na região Nordeste e Sul. Há estados da federação que não tiveram nenhuma matéria publicada. São eles Maranhão, Tocantins, Goiás, Rio Grande do Norte e Espírito Santo,

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mesmo que, de acordo com Wichers (2010), tenham sido realizadas pesquisas arqueológicas entre 2003 e 2009 em seu território. Já no caso do estado de Roraima, Wichers não constatou pesquisas realizadas no período e, assim, isso também acabou se refletindo no levantamento dos textos publicados na Folha.

Mapa 1 – distribuição das matérias publicadas na Folha de S. Paulo sobre Arqueologia no Brasil (2000 a 2010).

Mapa 2 – distribuição das pesquisas arqueológicas no território brasileiro (2003 a 2009). (WICHERS, 2010, p 204)

No Mapa 2, Wichers (2010) separou as portarias de autorização e permissão emitidas para pesquisas arqueológicas por estado da federação. A autora demonstra que há concentração de portarias de autorização e permissão emitidas para pesquisas nos estados de Mato Grosso, Goiás, Bahia, Minas Gerais, São Paulo, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. A partir desses dados, podemos sugerir que o número de pesquisas realizadas em um estado não reflete na publicação de matérias veiculadas na Folha, isso porque os únicos estados que tiveram o número de textos publicados coerente – não numericamente ou proporcionalmente, apenas tendencialmente – com o número de autorizações para pesquisas emitidas foram São Paulo – cabe novamente dizer que o fato do jornal ser paulista, apesar de ter circulação nacional, pode ter influenciado esse dado – e Minas Gerais. Restringido minha análise aos estados que mais obtiveram publicações no período, observo que na região Norte, de acordo com Wichers (2010), o maior número de portarias de autorização e permissão emitidas ficou com o estado do Pará (84). Já o maior número de matérias para a região Norte foi sobre pesquisas realizadas no estado do Amazonas (15), apenas uma a mais que as que mencionam o Pará (14). Se olharmos para os números de matérias publicadas nos dois estados (total de 29), veremos que a maioria delas não é gerada por pesquisas de Arqueologia preventiva (sete matérias, correspondendo a 24,2% do total), mas sim por pesquisas acadêmicas (22 matérias, correspondendo a 75,8% do total). O número maior das matérias sobre pesquisas acadêmicas poderia ter sua raiz na maioria das portarias de autorização e permissão emitidas para ambos estados ser de fato para pesquisas acadêmicas. Isso porque eles são ocupados pela Floresta Amazônica, a região do País com maior quantidade de áreas protegidas, tendo mais de um terço de seu território enquadrado em um regime de

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Informações retiradas do site http://www.brasil.gov.br/sobre/ meio-ambiente/amazonia/ amazonia/print em 23/05/2011.

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Informações retiradas do site http://www.fumdham.org.br/, em 18/07/2011.

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Informações retiradas do site http://www.fumdham.org.br/, em 18/07/2011. 10

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proteção8 ; assim, suponho que o número de obras na região seria limitado. Outro ponto que daria visibilidade às pesquisas de cunho acadêmico é o fato de que há grande número de pesquisas na área é realizada pelo Museu Paraense Emílio Goeldi, instituição com a iniciativa de divulgar suas pesquisas, o que pode ser constatado por meio da manutenção permanente de seu Serviço de Comunicação, onde está inserida a Agência Museu Goeldi, que presta serviços de assessoria de imprensa, entre outras atividades, o que colaboraria para uma maior visibilidade, e se reflete, inclusive, no número de matérias publicadas na Folha. Outro fator que justificaria a predominância de pesquisas acadêmicas seria o interesse científico na região. Para completar é importante ressaltar, ainda, que o interesse da Folha se mostrou bastante grande quando o assunto é a ocupação da Floresta Amazônia, sua antiguidade e o modo de organização das sociedades antigas (15 dentre as 29 matérias tratavam do tema). Outra observação sobre a região é que Wichers verificou um “um aumento das portarias para o estado de Rondônia (...) nos anos de 2007 e 2008, (...) esse fenômeno está associado à implantação de grandes empreendimentos hidrelétricos e infraestrutura correspondente” (Wichers, 2010: 199). Tal fato pôde também ser observado no levantamento das matérias, pois o estado obteve publicações apenas em 2009 e 2010, após o início da realização das obras, e as sete matérias encontradas sobre Rondônia tratam exatamente de sítios arqueológicos descobertos por ocasião da construção das hidrelétricas citadas. O Piauí foi um estado brasileiro que também se destacou com o número de matérias publicadas sobre pesquisas arqueológicas em seu território. Porém, Wichers constatou que na região Nordeste, foi a Bahia que registrou o maior número de portarias de autorização e permissão emitidas (200), embora no levantamento da Folha, apenas seis matérias publicadas sobre a Bahia tenham aparecido. Olhando de forma detalhada as matérias publicadas referentes ao Piauí, constatamos que todas as 15 são sobre pesquisas de cunho acadêmico e a respeito do Parque Nacional da Serra da Capivara. Esse parque está localizado na região sudoeste do estado e possui como atrativo cultural um grande conjunto formado por 912 sítios arqueológicos, fazendo com que a Unesco declarasse-o Patrimônio Cultural da Humanidade, em 19919 . É na região da Serra da Capivara que existem as datações mais antigas para a ocupação humana no continente americano (100 mil anos), segundo a arqueóloga Niède Guidon, principal pesquisadora da área. Cabe dizer que Niède Guidon se mostrou a principal entrevistada em quase todas as matérias selecionadas e mais da metade delas discutiam a antiguidade do homem americano, a partir de datações da Serra da Capivara. Suponho que tanto a própria arqueóloga quanto o parque da Serra da Capivara sejam o que há de mais conhecido no Brasil pela população quanto o assunto é Arqueologia. Aqui, vale pontuar que, apesar de seu nome sugerir, Niède Guidon é brasileira e natural de Jaú/SP10 e essa informação torna-se importante quando refletimos sobre as matérias a respeito de Arqueologia publicadas na Folha sob a ótica da Análise do Discurso. Isso porque o fato de Nièd Guidon ser brasileira e não se importar com a frequente atribuição a ela da nacionalidade francesa, é um traço de relação de força que o jornal e/ou a própria arqueóloga usariam para legitimar seus discursos, pois a cientista

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seria uma autoridade inquestionável em virtude de ser uma pesquisadora estrangeira, ou seja, as pesquisas de um cientista estrangeiro teriam maior valor que aquelas realizadas por um brasileiro. Também é possível que esta dedicação da Folha em noticiar as pesquisas de Nièd Guidon, ainda que as datações da cientista para os sítios dessa área sejam controvérsias no meio científico, seja um reflexo da “busca pelo antigo” na mídia, como sugere Wichers: Os resultados obtidos na Serra da Capivara (as datações) (...) ocupam, frequentemente, espaços na mídia e em grandes exposições de Arqueologia, evidenciando que a busca pelo ‘antigo’ ainda marca as mentalidades expressas na Arqueologia musealizada brasileira (Wichers, 2010: 225).

Mudando o foco dessa discussão para os estados de São Paulo e Minas Gerais, que aparecem com 60 e 14 publicações na Folha, respectivamente, no levantamento feito por Wichers, a região Sudeste, à qual esses dois estados pertencem, é aquela com o maior número de pesquisas, com 1234 portarias do IPHAN, “o que corresponde a quase metade das portarias de autorização e permissão emitidas no período para o Brasil” (WICHERS, 2010: 201), um dado refletido no levantamento da Folha. Para o estado de São Paulo, a autora contabilizou 635 portarias de autorização e permissão emitidas para pesquisas no período de 2003 a 2009. No levantamento de matérias publicadas na Folha, o estado também contou com o maior número (60), ou seja, 34,5% de todas as matérias do período de 2000 a 2010. Wichers afirma que o estado também representa “pelo menos 14% das pesquisas efetuadas no território nacional” (WICHERS, 2010: 202). Não que haja compatibilidade entre portarias de autorização e permissão emitidas e matérias publicadas, mas podemos sugerir uma certa tendência. É verdade também que, pelo fato de a Folha ter sede em São Paulo, é possível que o número de matérias publicadas sobre as pesquisas realizadas em solo paulista seja explicado pelo que se chama de “proximidade”, um dos critérios que os jornalistas utilizam para decidir o que é ou não notícia: “quanto maior a proximidade geográfica entre o fato gerador da notícia e o leitor, mais importante ela é” (FOLHA, 2010: 44) – embora a Folha não divulgue se a tiragem de seus exemplares é maior no estado de São Paulo, é possível deduzir que o maior número de leitores desse jornal de circulação nacional seja paulista. Apesar disso, o que é interessante notar é que cerca de 68% das matérias selecionadas para São Paulo foram geradas a partir de pesquisas para o licenciamento de obras, ficando as acadêmicas com cerca de 32%. Wichers não dividiu as portarias que levantou por finalidade acadêmica ou licenciamento de obras, porém ela sugeriu que a configuração contemporânea da realidade arqueológica brasileira está fortemente imbricada aos processos de crescimento econômico. Dessa forma, os estados que apresentam maior dinâmica econômica, acompanhada de um maior lastro no cumprimento da legislação, foram os mais pesquisados entre 2003 e 2009 (WICHERS, 2010: 202).

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Já o estado de Minas Gerais, o segundo da região Sudeste em emissão de portarias, possui 14 matérias publicadas no período. Dessas, a maioria (13) se refere a pesquisas acadêmicas, dentre as quais apenas uma não tem como assunto as pesquisas realizadas em Lagoa Santa. No local foi encontrado o esqueleto Luzia, que acabou ficando famoso como a brasileira mais antiga da pré-história. A ossada provocou discussões a respeito de como e quando ocorreu o povoamento da América, fazendo com que o assunto “homens de Lagoa Santa” e Luzia tivessem grande destaque na imprensa nacional e internacional.

Conclusão

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Comparando o levantamento das portarias de pesquisas arqueológicas emitidas pelo IPHAN de 2003 a 2009, realizado por Zanettini (2009) e Wichers (2010), com o levantamento das matérias que fazem referência à Arqueologia, publicadas no jornal Folha de S. Paulo, entre 2000 e 2010, podemos concluir que as matérias encontradas na Folha no período acompanham apenas tendencialmente as pesquisas realizadas no Brasil. Isso porque se verificou tal tendência somente em aspectos concernentes ao pico de crescimento na emissão das portarias no biênio 2007/2008 e a tendência de aumento na publicação de matérias a partir de 2007. Também concluímos que a falta de pesquisas realizadas no estado de Roraima refletiu-se na falta matérias publicadas sobre esse estado; que as obras de hidroelétricas no estado de Rondônia geraram a publicação de matérias; e que há coerência em relação ao número de pesquisas realizadas no estado de São Paulo e o número de matérias publicadas. Porém, o número de matérias publicadas no período sobre pesquisas realizadas no mundo ainda é esmagadoramente maior se comparado às matérias que abordam as pesquisas feitas no Brasil, o que poderia ser explicado, talvez, pela publicação de matérias provenientes de agências internacionais de notícias, como a Thomson Reuters, Agence France-Presse, entre outras. A única exceção pôde ser observada no ano 2000 (82 matérias sobre Arqueologia no Brasil e 48 no mundo), porém esse número foi bastante influenciado por textos relativos às comemorações dos 500 anos do Brasil (22), que também pode ter dirigido as pautas a matérias com temas correlacionados. Além disso, quantitativamente, o número de textos publicados na Folha de S. Paulo não vem acompanhando o grande crescimento das pesquisas em Arqueologia realizadas no Brasil – fica muito longe, aliás. É preciso considerar que a Folha já tem um espaço pré-determinado para as matérias da editoria de ciência; porém, acredito que não há uma regra para a ocupação desse espaço, ou seja, se o jornalista se deparar mais constantemente com interessantes sugestões de pauta sobre as pesquisas arqueológicas, se houver uma postura proativa pela qual o assunto Arqueologia possa chegar até o jornalista da redação, o mesmo espaço disponível será mais vezes ocupado por matérias sobre Arqueologia. Em relação à divisão entre pesquisas acadêmicas e de Arqueologia preventiva, foi possível verificar que ora há mais matérias que tratam de pesquisas relacionadas ao licenciamento de obras, ora há mais matérias

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sobre pesquisas acadêmicas. Aqui não se pode notar uma tendência de crescimento das publicações a respeito das pesquisas de Arqueologia preventiva após a entrada em vigor da portaria 230 do IPHAN, em 2002. Mas é preciso dizer que, nos últimos dois anos, nota-se que o número de textos sobre pesquisas de Arqueologia preventiva acabou sendo, em 2009, o triplo e, em 2010, o dobro do número de textos sobre pesquisas acadêmicas. Talvez, aqui, observe-se o início da tendência das matérias acompanharem o tipo de pesquisa, já que os projetos de Arqueologia preventiva correspondem hoje à grande parte dos estudos arqueológicos realizados no país. Podemos fazer especulações para tentar explicar o porquê de o número de publicações na Folha de S. Paulo não ter acompanhado o crescimento das pesquisas, tendencialmente falando – insisto no “tendencialmente”, pois jamais o número de matérias publicadas irá se equiparar com o número de portarias de autorização e permissão emitidas. Ouso dizer que, talvez, o número de textos reflita a falta de interesse pela divulgação por parte dos arqueólogos, mas também pode ser reflexo da falta de conhecimento desse universo (Arqueologia, pesquisas acadêmicas e preventivas, onde obter fontes) por parte dos jornalistas, que acabam se interessando pelas mesmas pesquisas científicas, como aquelas realizadas na Serra da Capivara, Lagoa Santa ou Floresta Amazônica, tendo sempre os mesmos arqueólogos como fontes, ou se preocupam apenas em formular matérias que possam retratar o caráter “antigo” e grandes descobertas. Assim como Zanettini observou em 1991, o que ainda pode ser aplicável às matérias selecionadas neste levantamento: “acompanho os noticiários em nossos principais periódicos e o que vejo? Que a múmia mais antiga do mundo já foi descoberta centenas de vezes, que a imprensa escrita devota pouco espaço às descobertas feitas em território nacional” (ZANETTINI, 1991: 4).

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B I B LIOGR A F I A AMORIN, Luis Henrique, MASSARANI, Luísa. “Jornalismo Científico: Um estudo de caso de três jornais brasileiros”. Revista Brasileira de Ensino de Ciência e Tecnologia vol 1, n 1, jan - abril 2008. Disponível em http://www.pg.utfpr.edu.br/depog/periodicos/index.php/rbect/article/viewFile/225/198 Acessado em 17/07/2011. FOLHA DE S. PAULO. Manual da Redação da Folha de S. Paulo. Ed.16. São Paulo, SP: Publifolha, 2010. FUNARI, Pedro Paulo. Arqueologia. São Paulo,SP : Contexto, 2003. MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendências em análise do discurso. 3ed.Campinas, SP: Pontes, 1997. ORLANDI, Eni P. Análise do Discurso: Princípios e Procedimentos. Ed. 7. Campinas, SP: Pontes Editores, 2007 a. ______________. Autoria, leitura e feitos do trabalho simbólico. Ed. 5. Campinas, SP: Pontes Editores, 2007 b. WICHERS, Camila Azevedo de Moraes . Museus e antropofagia do patrimônio arqueológico: caminhos da prática brasileira. 2010. Tese. Programa de Programa de Doutoramento em Museologia. Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, Departamento de Museologia., Lisboa, Portugal. ZANETTINI, Paulo Eduardo. “Projetar o futuro para a Arqueologia Brasileira: desafio de todos”. Revista de Arqueologia Americana. Número 27, 2009. (pp 71- 87). ___________, Paulo Eduardo. “Indiana Jones deve morrer”. Jornal da Tarde. São Paulo/SP 18/05/1991. (pp. 04 - 05).

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C A C A R E C O D E Í N D I O E A R T E FATO A R Q U E O LÓ G I C O :

C O N V E R S A S E N T R E A R Q U E Ó LO G O S E A FA M Í L I A S O U Z A N O S Í T I O C E D R O, S A N TA R É M – PA R Á * * Parte dos resultados desta pesquisa foi apresentado no I Congresso Pan-Amazônico e VII Encontro da região Norte de História Oral, ocorrido entre os dias 27 e 30 de março de 2012 na cidade de Belém (PA).

AUTOR Raimundo Ney da Cruz Gomes

[email protected], [email protected]

Rhuan Carlos dos Santos Lopes [email protected] [email protected]

RESUMO

Graduado em História pela Universidade Federal do Pará – UFPA (2002), Mestrado em Serviço Educativo para o Patrimônio Artístico, dos museus históricos e de artes visuais pela Universidade Católica de Milão – UNICATT (2005) e Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal do Pará (PPGA/UFPA). Bolsista CAPES. Graduado em História pela Universidade Federal do Pará – UFPA (2010), Especialista em Educação para as Relações Étnicorraciais pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará (2010), Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal do Pará (PPGA/UFPA). Bolsista CAPES.

Neste artigo buscamos, a partir de uma experiência de campo singular, participando da escavação do Sítio Cedro, em Santarém, próximo ao planalto de Belterra, discutir a importância e as possibilidades da etnografia nos trabalhos de arqueologia; e ainda, atentos às discussões feitas sobre a Arqueologia Pública e as interações entre arqueólogos e as comunidades onde estão situados sítios arqueológicos, analisar as injunções entre o saber local com as significações arqueológicas para categorias já definidas pelas comunidades. Intentamos mostrar que as conversas no campo geram esclarecimentos mútuos que não se excluem, mas se complementam na medida em que criam junto o saber arqueológico. Palavras-chave: Arqueologia Pública, Etnografia em Arqueologia, Arqueologia Comunitária, Santarém

INTRODUÇÃO

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Pyburn (2009: 165), defendendo uma pesquisa arqueológica participativa, diz que a etnografia apropriada aos arqueólogos não tem muito a que ver com a aprendizagem sobre outras pessoas, ou mesmo sobre o ensino às outras pessoas; mas sobre o compartilhamento com o outro. Esta autora fala sobre o arqueólogo como etnógrafo e critica o fato de alguns pesquisadores desta área não fazerem nenhum esforço por incluir os “não especialistas” em seus trabalhos, ainda mais quando há um descompasso muito grande entre os envolvidos, seja por conta de condições econômicas, sociais e políticas (PYBURN, 2009). Já Hollowell e Nicholas (2009) indicam uma questão ainda mais desafiadora, ou quem sabe complementar àquela de Pyburn; estes autores questionam o fato de muitos arqueólogos buscarem na etnologia uma complementação para o registro arqueológico, e desafiam: e se o lócus da etnografia fosse deslocado da posição de “o que pode fazer para a arqueologia” e, em vez colocada nas mãos das comunidades que têm suas próprias concepções de gestão do patrimônio (HOLLOWELL & NICHOLAS, 2009).

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Buscamos nesse artigo, refletir sobre as possibilidades da etnografia aplicada ao trabalho de campo arqueológico, pensando na perspectiva de Pyburn (2009), quando esta autora fala de incluir o outros – e não necessariamente ensinar ao outro, na forma como tratamos o conhecimento produzido em campo. Trata-se não de buscar as concepções nativas e traduzilas para o público científico, e sim de demonstrar as vicissitudes presentes no trato do arqueólogo com o nativo na busca pelas alteridades locais. Considerando que o cientista tenha a preocupação com o impacto de seu trabalho na comunidade local, é sempre constante a assimetria, pelo menos inicial, entre os atores envolvidos no contexto da escavação, particularmente arqueólogos e moradores (CABRAL & SALDANHA, 2008; PYBURN, 2009). Portanto, o que apresentamos aqui são considerações metodológicas, pautadas em nossa experiência de campo, a partir das quais pretendemos refletir sobre o contexto investigativo da busca pelo outro na Arqueologia, o que pode contribuir para o entendimento da própria ciência arqueológica em seu trato com o público. Cabe, nesse sentido, formularmos considerações sobre o fazer etnográfico, tendo em vista ser essa a ‘ferramenta’ utilizada nas pesquisas com essa temática.

E tnografia e / na arqueologia

¹Utilizaremos sítio sempre como lugar onde se localiza o registro arqueológico, mas definido por arqueólogos de acordo com convenções científicas. Sobre o conceito de sítio na arqueologia, cf. Dunnell (1992).

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Em 1990, Ribeiro publica texto no qual destaca as possibilidades da perspectiva etnológica para os arqueólogos. Essencialmente, a autora pretendia evidenciar a produção bibliográfica (entre os anos de 1957 e 1988) da Etnologia brasileira e dos países que o fazem fronteira, no sentido de mostrar o potencial explicativo dessas pesquisas para as investigações acerca das populações ameríndias passadas pautadas na Arqueologia. Assim, Ribeiro (1990) argumentava que estudos dos grupos indígenas do presente poderiam contribuir para explicações sobre formas de vida nativa do passado. A despeito de ser um trabalho de fôlego, não observa-se referência alguma à possibilidade da Antropologia ser um conjunto instrumental passível de ser adotado pelos arqueólogos para explicação de seu próprio métier, ou ainda para entender as relações das populações vivas com o registro arqueológico, seja ele de origem comum à sua ou não. Por certo, essa ausência não parece ser uma falha de Ribeiro (1990) em seu cotejo bibliográfico, mas deixa evidente a ausência desse tipo de discussão no período discutido pela pesquisadora. Essas possibilidades, todavia, vêm sendo exploradas sistematicamente no Brasil, principalmente no que tange às pesquisas em Arqueologia Pública preocupadas em entender as significações dadas ao registro arqueológico pelos grupos que se assentam sobre os sítios¹ (Ver discussões várias em FERREIRA 2006, 2011; SCHAAN, 2006, 2011; REIS, 2007; CABRAL & SALDANHA, 2008; SILVA et al. 2011; BEZERRA, 2011; GOMES & LOPES, 2011, s/d). Castañeda (2008) ressaltou também as vantagens da arqueologia etnográfica, voltada tanto para o estudo do passado quanto para as implicações contemporâneas dessa ciência; desse modo, a prática arqueológica também pode ser objeto de pesquisa da etnografia. Por outro lado, levar em consideração o olhar do nativo é contribuir para as práticas descolonizantes da arqueologia contemporânea, como apontam Gnecco e Hernández (2008) (conferir também ATALAY, 2006; CASTAÑEDA, 2009). Os trabalhos que tem o público ou o nativo como foco de análise,

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utilizam-se das observações e entrevistas como forma de gerar informações etnográficas e em grande medida, o sítio arqueológico é o lócus onde ocorre tal processo. Consideremos, então, essa peculiaridade. Esse sítio ao qual nos referimos, antes de ser a área de atuação do arqueólogo e fazer parte dos cadastros oficiais, é o lugar onde habitam os membros da família Souza. Se pensarmos nas comunidades – grupos de pequena escala, diretamente relacionados com sítios arqueológicos (GOMES & LOPES, 2011) – observamos então que é estabelecida uma cosmografia definidora do território ocupado. Nas palavras de Little (2002: 4), a cosmografia define-se como o conjunto de “saberes ambientais, ideologias e identidades − coletivamente criados e historicamente situados − que um grupo social utiliza para estabelecer e manter seu território”. Portanto, trata-se de territórios sociais (LITTLE, 2002), configurados a partir das relações históricas e sociais de um grupo com o espaço em que vive; conceitualmente, observa-se a aproximação dessa perspectiva com a de paisagem, ambientes culturais elaborados na dinâmica de interação diacrônica entre as sociedades e o meio ambiente – ou entre formas físicas e culturais (SAUER, 1969) – a partir do qual podemos entender que suas modificações de sentidos são constantes (CRUMLEY & MARQUARDT, 1990; CRUMLEY, 1994; BALÉE, 2006). Não é novidade que os sítios são definidos dentro desses territórios e, menos ainda, que seus moradores possuem visão particular dos seus elementos. As pesquisas, desse modo, colocam ênfase nas percepções da paisagem local e no território social; sendo os artefatos arqueológicos integrantes desse contexto, eles são lidos pelas comunidades de acordo com a sua própria experiência social. Nesse caso, os limites dos sítios são de menor importância para a Arqueologia Pública, se pensarmos na amplitude maior dos territórios e paisagens. Por certo, ao dedicar-se às investigações em comunidades, deve-se ter em mente a não homogeneidade desses grupos, tanto se comparados a outros denominados sob o adjetivo ‘tradicional’, como internamente (LITTLE, 2002). A relação sítio arqueológico com território social, portanto, permite ao arqueólogo perscrutar de forma privilegiada as concepções nativas, na medida em que as escavações coincidem com as observações da dinâmica local, associada sempre que possível com entrevistas cedidas pelos moradores. Dessa forma, geram-se os meios necessários à construção do campo etnográfico ao pesquisador (LIMA & SARRÓ, 2006). Tem-se com isso as condições essenciais já apontadas por Malinowski (1976), para quem o contato direto com os sujeitos pesquisados integra as necessárias práticas essenciais à pesquisa etnográfica. A partir dessa relação direta, podese valorizar igualmente a observação e a participação (CARDOSO, 1986), desde que a aproximação entre pesquisador e pesquisado seja significativa ao ponto em que a presença do arqueólogo naturalize-se (MALINOWSKI, 1976). Todavia, reside aqui um dos problemas desse tipo de pesquisa em Arqueologia: o início de escavações, tendo em vista toda a dinâmica inerente, gera algum tipo de impacto na comunidade, essencialmente por conta do que Cabral e Saldanha (2008: 10) chamam de “barreira epistemológica”. Consiste isso na diferença entre as categorias explicativas de nativos e arqueólogos, o que pode gerar ressalvas nos primeiros, justamente por estarem diante do saber científico.

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Sendo assim, as reflexões dentro da Antropologia também podem contribuir para equacionar esse entrave. Afirmamos anteriormente que a observação e entrevistas são técnicas utilizadas pela Arqueologia. Essas são duas ferramentas que por si só merecem reflexão antes de serem efetuadas. Cardoso (1986: 103) argumenta que na etnografia a observação deve ser um ato pensado em função do contexto local, inclusive por possibilitar novos encaminhamentos na pesquisa, além de possibilitar a construção de “cadeias de significação”. Por outro lado, as entrevistas também necessitam de planejamento, no sentido de buscar informações desconhecidas pelo pesquisador, mas também de despertar interesse por parte do entrevistado, como indica Arce (2000). Observação e entrevistas, desse modo, não são finalidades em si, mas sim direcionadas pelo interesse da pesquisa e não estão dissociadas, já que as perguntas são passíveis de serem feitas ao longo de todo o contato com o grupo (CARDOSO, 1986; ARCE, 2000); por certo, ambas amadurecem ao longo do seu exercício. Tendo isto em vista, a problemática da barreira epistemológica ganha uma forma de resolução. Essa barreira efetivamente é um empecilho para se alcançar o que DaMatta (1997: 20) denomina de mecanismos sociológicos que explícitos e implícitos “para constituir e ampliar um sistema universal de tradução de sistemas humanos naquilo que é a linguagem ou teoria antropológica”. Para a questão debatida neste artigo, as palavras de DaMatta devem ser lidas no sentido de entender a amplitude de possibilidades explicativas para o material arqueológico, o que pode ser alcançado pela via de análise da paisagem e territórios sociais dos indivíduos estudados. Não seria judicioso restringir o olhar aos artefatos ou ao sítio arqueológico, posto que isso confrontasse as premissas descolonizantes da Arqueologia. Com essa perspectiva a etnografia permitiria o confronto entre conceitos nativos e ocidentais durante a pesquisa de campo, apontando para uma visão alternativa dos conceitos sociológicos (PEIRANO, 1995), nesse caso os desenvolvidos na Arqueologia. Por certo, não chegamos aos níveis mais profundos de entendimento das “cadeias de significação” (CARDOSO, 1986: 103) dos moradores da Comunidade Cedro, dado o limite do tempo da pesquisa e do número de pessoas entrevistadas.

O s cacarecos e artefatos do S ítio C edro : duas formas de nominar a mesma coisa

Esta pesquisa foi realizada no mês de junho de 2011 dentro do Programa de Arqueologia & Educação Patrimonial da BR-163: Santarém-Rurópolis; BR-230/ PA: Divisa TO/PA à Rurópolis (excluindo trecho Altamira-Medicilândia); BR422: Trecho: Novo RepartimentoTucuruí, coordenado pela Profa. Dra. Denise Schaan, com auxílio financeiro do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT).

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Começamos por apresentar algumas considerações sobre a pesquisa realizada no Sítio Cedro4 ; que se localiza a 30 km da sede do município de Santarém, já no Planalto de Belterra, às margens da rodovia BR-163. Este sítio é ocupado por comunidade familiar, onde a base do sustento é a agricultura de pequeno porte. Em 2006 o local foi um dos focos de pesquisas arqueológicas, por encontrar-se em Área de Impacto Direto (AID) das obras da rodovia BR 163 – Santarém Cuiabá, primeiro com prospecções e sondagens da área, depois, em 2010, com entrevistas feitas aos moradores locais (SCHAAN & LIMA, 2011), e em 2011 com as escavações de parte do Sítio Arqueológico ali definido. Durante todas essas fases, o conhecimento dos moradores foi de importância primordial, seja para a localização de estruturas remanescentes de antigas populações que habitaram aquela área (NIMUENDAJU, 2004), como poços de armazenagem de águas pluviais e a Terra Preta Arqueológica (TPA) (GOMES & LOPES, 2011) ali encontrada

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em abundância, seja para a identificação de concentrações de cerâmica arqueológicas encontradas em superfície. Nossa investigação sobre as categorias nativas e o impacto da pesquisa arqueológica nas pessoas do lugar, nossas “conversas” buscando construir uma etnografia possível, todavia, só ocorreram na última etapa de campo de 2011. Na fase de escavação não estavam previstas ações de Arqueologia Pública, ou melhor, não era intento do projeto que métodos concernentes a esta forma de pensar e fazer arqueologia fossem aplicados. Contudo, não entendemos a possibilidade de a arqueologia constituir um trabalho apartado, em método e teoria, das pessoas que circundam nossas escavações ou que delas fazem parte, seja qual for sua contribuição. Logo, nosso interesse em investigar as concepções locais sobre o registro arqueológico surgiu em meio ao cotidiano das escavações, essencialmente por notarmos o grande interesse dos moradores pelos estudos desenvolvidos a partir de então. Para esta fase de escavação, quatro membros da família Souza, os atuais donos daquelas terras, foram contratados como auxiliares de campo, prática corriqueira entre os arqueólogos; foram eles: Anselmo, Seu José – vulgo seu Zé, Aparecido e Dona Madalena – esposa de seu Zé e que gostava de ser chamada de Dona Madá. O contato constante com estas pessoas foi determinante para essas observações e são justamente esses atores que constituíram-se nossos interlocutores privilegiados. Em trabalho anterior (GOMES & LOPES, s/d) discutimos a atuação desses trabalhadores na escavação, a partir da categoria de co-trabalhador cunhada por Shepherd (2009), para quem os membros nativos atuantes nas investigações arqueológicas devam ser reconhecidos como produtores de conhecimento e merecedores de reconhecimento. Sendo assim, as considerações que faremos aqui são oriundas de entrevistas, iniciadas após três semanas do início da pesquisa, e observações efetuadas entre esses co-trabalhadores e durante o tempo das escavações – julho de 2011. A escolha dos membros da comunidade que integrariam a equipe foi efetuada por Seu Zé, filho da matriarca da família Souza (D. Rita) e porta-voz local; ele mesmo trabalhou conosco no sítio e indicou sua esposa para o preparo das refeições. Seu Zé sempre mostrou-se, e era reconhecido assim pelo que pudemos observar, o representante da família, mesmo daqueles que vieram trabalhar conosco. Sendo o mais velho dos filhos de D. Rita, que enviuvara quando ele ainda era bem pequeno, Seu Zé guarda consigo muito da memória local, e é sempre referido como a pessoa que conhecia melhor a região e explica aos demais os elementos da paisagem. Veio de seu Zé a definição “cacareco de índio” para os fragmentos cerâmicos encontrados em superfície; segundo ele os índios que habitaram aquela região, antes de deixar o local, quebravam tudo, deixando só os cacarecos para quem viesse depois. Ao entrevistarmos esses moradores, estruturamos as perguntas de acordo com as observações participantes já efetuadas, no sentido de alcançarmos os nossos pontos de inquietação. A princípio, críamos que as entrevistas ocorreriam de forma fluída, na medida em que foram efetuadas após certo tempo de convivência diária e dentro do espaço de sociabilidade dos interlocutores. Todavia, no momento em que ligávamos o gravador, nossos falantes amigos eram acometidos de uma timidez que lhes inibia a

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memória; bem diferente das conversas que tínhamos durante nossas horas de trabalho nas escavações das unidades ou nas pausas para o almoço ou o café. Essa timidez não é propriamente uma surpresa, visto que o gravador em geral intimida. Somente Seu Zé não tinha problemas em ser gravado, pelo contrário, ele participou ativamente, ora sendo solicitado, mas na maioria das vezes não, de todas as entrevistas. Notamos, por outro lado, que o ressabiar dos interlocutores ocorria por conta do medo em estar fornecendo respostas “erradas”, como indicou Anselmo ao ser inquirido sobre o que ele entendia ser arqueologia, depois de sua participação nas escavações. Em pergunta semelhante, sobre a importância da arqueologia, Seu Zé disse: “a importância eu não posso nem explicar qual é o jeito que eu ainda não estou muito entendido”. Aliás, este último entrevistado esteve presente de forma muito espontânea em todos os momentos de conversa com os outros moradores, mesmo que tentássemos fazer isso de maneira individualizada. D. Madá chegou a afirmar sua insegurança em cozinhar para pessoas com “gostos diferentes” do seu. Apesar de não ser relativa ao trabalho arqueológico, a resposta de D. Madá indica um desconforto semelhante ao de Seu Zé e Anselmo: eles nos viam como os especialistas com formação que agora estavam interessados, estranhamente interessados, no que eles “sabiam”. Nós, os pesquisadores, mesmo não sendo um intento consciente, intimidamos as pessoas que por muitos anos habitam e conhecem aquela área – como se de uma hora a outra o que eles conheciam não fosse verdade. Nesse ponto das entrevistas percebemos o quão inapropriado é o uso imediato das categorias arqueológicas para indagar nossos entrevistados. O receio por parte deles em estarem diante de um conhecimento técnico, que tratava os cacarecos de forma tão cuidadosa e abria buracos no chão de um jeito peculiar, tudo isso questionava a forma como eles viviam a sua paisagem. As entrevistas foram redirecionadas no sentido de entendermos a trajetória de vida dessas pessoas e seus conceitos sobre o microcosmo em que vivem. Dessa maneira, podemos deixar o ambiente dos questionamentos mais ameno e próximo da realidade local. Tratou-se de entrevistá-lo não a partir do sítio arqueológico em que estavam, mas sim de seu próprio território social, do qual entendiam melhor do que nós e que nos interessava. Os artefatos arqueológicos e a TPA sempre fizeram parte do cotidiano dos Souza, mas com outras definições, todas relacionadas com a sua experiência prática na construção da paisagem. A terra preta, útil para plantação das roças, era entendida ali como uma terra fértil produto da natureza; os artefatos eram os cacarecos de índio, coriscos, caretinhas e vasilhas quebradas. Da mesma forma, o espaço no qual foi demarcado o sítio arqueológico era lido pelos moradores de acordo com a sua trajetória de vida: as saídas para a caça, o preparo da terra para a plantação, as construções das casas e casamentos dos membros da família, a saturação do solo por conta do avanço da agropecuária – com os agrotóxicos – nas imediações da pequena propriedade. Se o Sítio arqueológico Cedro é resultado da ocupação pretérita de populações indígenas, a Comunidade Cedro formouse quando do casamento de D. Rita e Seu Antônio e a aquisição do terreno que constitui aquela área; a partir de então, a família foi se expandindo e algumas uniões endogâmicas ocorreram – Seu Zé e D. Madá, por exemplo, são primos – e outras personagens entraram na dinâmica local. Arqueologia Pública | Campinas | n° 5 | 2012

A rqueologia para o p ú b lico , com o p ú b lico e em respeito a este

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Há um ditado italiano que diz: Tutto il mondo è paese, usado para indicar que há muita semelhança entre as dificuldades enfrentadas por homens e mulheres em qualquer lugar do mundo. O planeta não é mais que uma vila. Em diversos lugares se está discutindo formas de fazer do público (comunidade, cidadãos, nativos, as gentes do lugar etc.) o correspondente direto dos trabalhos realizados pelos arqueólogos. Que os trabalhos possam refletir os anseios deste público, ou ao menos, interessá-lo, em alguns casos. A arqueologia – os arqueólogos – é capaz de criar oportunidades reais de diálogo e participação de não arqueólogos em seus trabalhos? Para Paz (2010), tratando de problemas envolvendo a arqueologia em Israel, esta questão é relevante para arqueólogos de todo o mundo que consideram a Arqueologia Comunitária como um modus operandi possível. Afinal, segundo esta autora, a Arqueologia Comunitária, como uma vertente da arqueologia Pública, é um rótulo atraente, que muitas vezes pode ajudar a gerar apoio financeiro das autoridades locais e órgãos de financiamento (PAZ, 2010). Na Ásia, Marui (2010) analisa uma possibilidade de coexistência entre comunidade e patrimônio cultural e propõe incentivar uma comunidade no Camboja a participar dos trabalhos realizados em um sítio oferecendo a essa comunidade oportunidades de engajamento. Hodder (2003: 62), ao exemplificar uma arqueologia mais reflexiva e tratar da importância das “vozes locais” nos diz que o equivalente arqueológico do “informante nativo” pode ser o caco mudo, mas que há, em todo o mundo, arqueólogos trabalhando em estreita colaboração com as comunidades que reivindicam alguma forma de filiação cultural com determinados vestígios arqueológicos; e a partir desta colaboração a arqueologia pode ser definida agora, não mais como o estudo dos remanescentes materiais do passado, mas como um modo particular de inquérito sobre o relacionamento entre as pessoas e seus passados. Esta maneira de entender a arqueologia pode trazer novas luzes à forma como muitos trabalhos dentro desta ciência podem vir a ser desenvolvidos. Falando dos desafios da multivocalidade, desse estar atento a todos os envolvidos no trabalho arqueológico, Schaan (2011: 4) alerta para o fato de “A arqueologia que vem sendo feita na Amazônia, especialmente em projetos de arqueologia de contrato, carrega, frequentemente, os mesmos pressupostos colonialistas ao supor que não existe conhecimento local sobre o patrimônio arqueológico” e alerta ainda para o que chamou de “os sete pecados capitais do arqueólogo”, entre eles: “não atender ao público e subestimá-lo”. É importante pensar uma arqueologia que não seja fixada, ou mesmo limitada, pelo artefato e tenha o humano social como seu centro, uma arqueologia ciência que não prescinda das histórias de homens e mulheres que lhe estejam próximos; essa arqueologia tem sido tema de muitas discussões dentro da Arqueologia Pública – multifacetada em Arqueologia Colaborativa, ou Comunitária, Participativa, Reflexiva, ou Híbrida, Redonda, do Outro – sempre buscando uma maior integração entre os sujeitos de hoje e de sempre (Ver FUNARI, 2001; FUNARI & ROBRAHN-GONZÁLES, 2008; FUNARI & ZARANKIN, 2003; HODDER, 2003; SCHAAN 2006, 2011; FERREIRA

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2008, 2010; REIS 2007; CABRAL & SALDANHA 2008; SILVA ET AL 2011). Silva et al (2011), ao tratar da Arqueologia Colaborativa, a define, partindo de inúmeros autores, em seu escopo mais amplo como uma prática arqueológica que visa estabelecer a colaboração e o envolvimento de diferentes coletivos nas questões relativas à pesquisa e gestão do patrimônio cultural; mesmo sendo seu foco de pesquisa uma interface com populações indígenas, percebemos que é uma prática que deveria fazer-se presente em todo trabalho Arqueológico em que os sítios estejam circundados, quando não habitados, por gente. Em termos metodológicos, a prática da arqueologia colaborativa possui algumas estraté-gias fundamentais, e no caso dos trabalhos no Sítio Cedro, não podemos dizer que fizemos uso destas metodologias, quais sejam: 1) promover a in¬teração social entre a equipe de pes¬quisa e a comunidade local; 2) manter a presença da equipe na área ao longo da pesquisa; 3) buscar recursos para beneficiar a comunidade local; 4) man¬ter a comunidade inteirada sobre os procedimentos e andamento da pes¬quisa; 5) permitir o acesso fácil da co-munidade aos vestígios arqueológicos coletados. Assim, o que caracteriza metodologicamente essa prática é: 1) a comunicação e colaboração com a co-munidade em todo o processo da pes¬quisa; 2) o emprego e treinamento de membros da comunidade; 3) a preser¬vação pública do patrimônio cultural; 4) a prática de entrevistas e pesquisa da história oral; 4) a produção de re¬cursos educacionais; 5) a realização de vídeos e fotografias; 6) o controle comunitário da divulgação dos resul¬tados (SILVA et al. 2011: 37).

Ferreira (2008, 2010) diz que a Arqueologia Comunitária, como uma prática da Arqueologia Pública, significaria envolver a população local nos processos de interpretação arqueológica e na política de gestão do patrimônio cultural, não muito distante do que Silva e colaboradores (2011) definem como sendo a prática da Arqueologia Colaborativa. Em nossas atividades no Cedro, não chegamos a esse refinamento, mas não podemos desmerecer a tentativa. Procuramos jamais infringir o sétimo pecado descrito por Schaan (2011: 6, 9), qual seja: “Subestimar o Público (...) não considerá-lo capaz de participar das pesquisas e expressar suas ideias, como por considerá-lo ingênuo ouvinte das pregações sobre patrimônio arqueológico”. Com Seu Zé e nossos outros co-trabalhadores no Cedro construímos conhecimento juntos e buscamos jamais prescindir de sua colaboração; por vezes essa colaboração parece simples e óbvia, mas, como faz notar Reis (2007), não é uma escolha fácil, pois fácil seria fazer uma arqueologia estritamente acadêmica em detrimento de uma arqueologia inclusiva. Uma Arqueologia mais próxima aos cidadãos e não encastelada nas torres acadêmicas foi, e está sendo, uma conquista de todos, mas para esclarecer o que entendemos por Arqueologia Pública, um conceito que está caro aos autores é este usado por Sánchez (2011) quando disserta sobre uma arqueologia para todos os públicos: Si la arqueología trata de crear un conocimiento novedoso desde el

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estudio de los restos materiales de sociedades pasadas, la Arqueología Arqueologia Pública | Campinas | n° 5 | 2012

Pública estudia todas las relaciones entre dicha arqueología y la sociedad contemporánea con el ánimo de mejorar la coexistencia entre ambos y lograr un entendimiento generalizado del valor y uso de la arqueologia (ALMANSA SÁNCHEZ 2011: 90)

C onsideraç õ es finais

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Uma arqueologia feita só por arqueólogos e para arqueólogos não faz mais sentido. A frase anterior seria uma possibilidade de conclusão para o que procuramos apresentar neste artigo. A arqueologia no Brasil tem se voltado cada vez mais para as comunidades e isso é desejável. Neste artigo procuramos discutir a forma como nosso trabalho de arqueólogos pode ser complementado com os conhecimentos que adquirimos nas relações que se estabeleceram entre a família de seu Zé e a equipe de pesquisadores e técnicos em arqueologia, que foram escavar em sua propriedade familiar. Partindo das conversas que tivemos com estes nossos companheiros de trabalho, fundamentais desde o momento em que o sítio arqueológico foi definido como tal, até as etapas de investigações deste local, por meio de escavações e observações da paisagem e dos vestígios superficiais. Buscamos perceber como suas percepções sobre o lugar, familiar por sua longa ocupação, foram se modificando depois das intervenções arqueológicas. Intentamos também demonstrar que sem a experiência da família de seu Zé em lidar com aquele meio, e seu apurado conhecimento da paisagem local e todos os seus elementos, nosso trabalho teria outros desenvolvimentos; as indicações de seu Zé nos auxiliaram a escolher os locais onde escavar, bem como foi importante para arbitrar os limites do sítio arqueológico. Nossa proposta de discussão vem bem a calhar em um momento em que a Arqueologia busca voltar-se mais ao público, entendido não só como recebedor de informações, mas como interlocutor ativo na produção do conhecimento científico. Um dos nossos escopos foi debater a metodologia etnográfica aplicada à arqueologia, com intuito de fazer ver que o conhecimento da família Souza, alguns dos quais co-trabalhadores naquela pesquisa, sobre a paisagem em que estávamos inseridos foi de fundamental relevância para as possíveis conclusões arqueológicas que dali provenham; e acima de tudo, queríamos partir de nossa experiência naquele campo para usar como estudo de caso. Apresentamos o trabalho em três partes: primeiro nos detemos a discutir a etnografia associada ao trabalho dos arqueólogos e dos benefícios desta prática, seja para o entendimento dos objetos em estudo, que pela possibilidade de associar as pessoas dos lugares com os estudos desenvolvidos; depois partimos para o locus da pesquisa de campo e as pessoas que nos auxiliaram, sendo nossos informantes, na formulação desta discussão; por fim tecemos algumas considerações acerca de conceitos relacionados à Arqueologia Pública, Comunitária e outras formas de aproximar as comunidades e o público em geral, daquilo que é o trabalho do arqueólogo e o patrimônio cultural de todos. Nosso objetivo no Sítio Cedro não foi fazer Arqueologia Pública, Comunitária, Participativa ou outra forma mais específica que demandasse uma metodologia própria, portanto, não havíamos elaborado um plano de ação seguindo uma metodologia que desse conta desta tarefa. Contudo,

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não entendemos outra forma de fazer Arqueologia que não aquela que se relaciona com as gentes envolvidas no trabalho arqueológico. Desde o primeiro momento, estivemos sempre atentos em tornar o nosso meio de trabalho o mais dialético possível. Isso ocorreu no âmbito do cotidiano das escavações e por isso nosso foco neste artigo são os trabalhadores que atuaram junto conosco neste trabalho. Em outro texto já analisamos a relação entre a mão-de-obra nativa e os arqueólogos, tendo em vista nossa atuação no sítio Cedro (GOMES & LOPES, s/d). O que pretendemos aqui foi ressaltar, em concordância com outros autores, a importância da etnografia para o entendimento do contexto no qual está inserida a pesquisa arqueológica. Através da metodologia etnográfica é possível dar atenção às vozes nativas e inserir suas demandas, perspectivas e conhecimento nas investigações da arqueologia. Porém, cremos que a experiência é mais um entre os exemplos de que a Arqueologia deve ser pensada sempre para o público e em respeito a este (GOMES & LOPES, s/d) e a etnografia é um instrumental excelente para alcançarmos as leituras e necessidades desse público.

agradecimentos Agradecemos aos nossos interlocutores da família Souza, a CAPES que nos subsidia com bolsas. Agrademos de maneira especial à Professora Denise Schaan pelo convite que nos levou à Santarém e a nos envolver nas escavações do Sítio Cedro. Os autores são os únicos responsáveis pelo o que foi dito nas linhas precedentes.

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A Educação Patrimonial na Avaliação de Impacto Ambiental: possibilidades de aplicação de uma perspectiva de Arqueologia Pública

A UTOR MsC. Tatiana Costa Fernandes

[email protected]

Dr. Laercio Loiola Brochier

[email protected]

R E S UMO

PRESERVAR Arqueologia e Patrimônio Universidade Federal do Paraná – UFPR

O artigo reflete sobre o uso da perspectiva da Arqueologia Pública em uma atividade de Educação Não-Formal realizada no Projeto de Salvamento Arqueológico do Sítio Topo do Guararema, localizado no Vale do Paraíba em São Paulo. O trabalho foi pensado a partir da abordagem da Apresentação e Interpretação Pública da ciência arqueológica visando contribuir para os aspectos educacionais, auto-afirmação e conhecimento da história précolonial da região. Palavras-chave: Arqueologia Pública, Educação Patrimonial, Avaliação de Impacto Ambiental.

INTRODUÇÃO

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O panorama atual da Gestão de Recursos Arqueológicos (GRA) no Brasil vem se caracterizando por um aumento significativo das demandas pela pesquisa arqueológica em todo o país fruto, em sua maior parte, das pressões exercidas pelos ideais desenvolvimentistas e conservacionistas. Se por um lado, os anseios da sociedade pelo crescimento econômico têm levado a uma verdadeira “ebulição” de empreendimentos pelo território nacional, por outro, surgem apelos científicos e públicos para que estas mudanças não tragam consigo, a destruição de valores apropriados e reapropriados por esta mesma sociedade. Questões como desenvolvimento sustentável, conservação da biodiversidade, educação ambiental ou sócio-ambiental, gestão participativa, entre outros, confrontam com as metas de crescimento da sociedade, e obviamente com os interesses de grupos específicos. O avanço da temática ambiental e arqueológica reforça ainda mais o papel dos arqueólogos ligados à GRA nos processos de planejamento da Nação, considerando que estes sempre foram e serão processos políticos (PLOG, 1978: 422). Neste sentido, a Arqueologia e as Ciências de modo geral têm revisto sua posição e sua agenda social diante da fragmentação das fronteiras entre as nações, obrigando as mesmas a uma ‘redefinição’ da questão da cultura, sociedade e etnicidade, sendo vital que se coloque a diversidade histórica e cultural e o reconhecimento do outro, como metas na formação dos indivíduos enquanto cidadãos (GOHN, 2005, SILVA & GRUPIONI, 2004). A perspectiva de valoração da diversidade histórica e cultural propiciaria eliminar muito dos preconceitos para com outras culturas e estabelecer bases para um entendimento mais amplo do futuro da sociedade através do

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exercício da cidadania (WALDMAN, 2003; RIBEIRO, 2003; SILVA & GRUPIONI, 2004, NEVES, 2004). Por sua vez, as Ciências vêm buscando também superar as barreiras da especialização das disciplinas e das divisões do saber e produzir uma ciência unificada da sociedade (SPRIGGS, 1983:3 apud FUNARI, 1998:9) focada, sobretudo, na cooperação multidisciplinar e nas possibilidades de diálogo entre os especialistas e a sociedade. A Arqueologia também se insere nesta perspectiva, refletindo sobre “a impossibilidade de desentranhar a pesquisa dos interesses sociais”, na medida que os próprios estudiosos “são o produto da cultura e suas interpretações do passado são influenciadas pelo meio cultural” (FUNARI, 1998 ). A preocupação com a “apresentação” da Arqueologia para o público vem proporcionando diálogos cada vez mais profícuos com outras ciências e saberes, como, a Educação, a Museologia e a Comunicação Social. No entanto, a necessidade de pensar em formas apropriadas de comunicação com foco na interdisciplinaridade e na transversalidade tornou a Educação uma questão pública essencial na Arqueologia. Nas décadas de 1980 e 1990 nos Estados Unidos, novos direcionamentos teóricos enfatizaram aspectos políticos e públicos da Arqueologia (JAMESON, 2004). As reflexões no campo da Arqueologia Pública, principalmente em relação à interdisciplinaridade entre Arqueologia e Educação, foram debatidas no World Archaeological Congress (1986), O evento trouxe para o debate teórico a abordagem chamada de Arqueologia Mundial, que visa entender não somente como as pessoas viveram no passado, mas também como e por que mudanças acabaram resultando nas formas de sociedade e cultura existentes na atualidade (UCKO, 1994:1). Do ponto de vista dessas abordagens, o interesse social da Arqueologia é ultrapassar o caráter estático, sem implicações para o contexto histórico e social, direcionando-se conjuntamente a outras disciplinas humanas e sociais, para uma análise desse contexto em toda a sua dimensão, dentro de um processo contínuo onde o homem é sujeito ativo, o qual pode mudar e transformar a sua dinâmica de ininterrupta produção da realidade social (ZAMORA, 1990). Os pressupostos discutidos nessas linhas teóricas reforçam o papel social da Arqueologia e estabelecem assim a abertura necessária para o diálogo com outros profissionais, bem como, com grupos sociais interessados no patrimônio arqueológico e suas interpretações. Sobre as relações entre Arqueologia e Educação, a publicação de Stone & McKenzie (1994) traz a discussão sobre questões do passado que são excluídas do ensino formal, demonstrando como a pré-história e grupos tradicionais são vistos pelos currículos escolares. Na Europa, assim como em outros continentes, o início da história se dá a partir da ‘civilização’, ou seja, reproduzindo a história enquanto imagem de ‘progresso’ privilegiando a visão de determinados grupos dominantes em detrimento dos povos ‘não civilizados’. Conforme os autores, o perigo real do ponto de vista educacional é que as crianças estão sendo induzidas ao desprezo pelo passado pré-histórico, visto como um período de tecnologia simples, e consequentemente por qualquer sociedade não industrializada. As três principais problemáticas levantadas com respeito à dificuldade de acesso dos estudantes ao passado, em várias partes, estão relacionadas principalmente ao currículo, o despreparo dos professores e a falta de material didático

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adequado (STONE & MCKENZIE et al, 1994:2). Trabalhos de Arqueologia Pública nos Estados Unidos têm constatado ausências de conhecimento do passado no presente e avaliado sua importância para as gerações atuais e futuras. A partir disso, esforços acadêmicos e profissionais buscam desenvolver uma base valorativa com envolvimento na Educação e, ao mesmo tempo, cultivar um discernimento em relação à herança cultural da Nação (JAMESON, 1997). Diante disso, a Arqueologia Pública vem colaborando com historiadores, museólogos, curadores e outros especialistas em bens e referências culturais, na elaboração de estratégias para transmitir o valor da Arqueologia. Como consequência, programas interpretativos e educacionais destinados à sociedade foram desenvolvidos, cujo processo deu-se em conjunto com a organização e coordenação de simpósios acadêmicos, workshops e sessões de treinamento nos Estados Unidos e em outros países para a troca de idéias entre os diversos profissionais (JAMESON, 1997). Uma especialidade nesta linha compreende a abordagem da Apresentação e Interpretação Pública da informação arqueológica, envolvendo desde a Educação Formal e a elaboração de currículo até programas, como visitas a sítios e exposições museológicas. O termo também abrange estratégias específicas de comunicação, tais como: publicação de histórias populares, cartazes e folders de conscientização pública e criação de apresentações de multimídia incluindo a rápida proliferação desses recursos por meio da internet (JAMESON, 1997). Adotam-se ainda, programas de Educação Não-Formal (outreach), como tentativas sistemáticas de fornecer serviços educacionais, além das formas convencionais de Educação. A Interpretação Pública também engloba estratégias de comunicação entre arqueólogos e não especialistas como, por exemplo, monitores de parques, cujo trabalho é transmitir a “mensagem” da Arqueologia a uma gama variada de públicos. Os especialistas e profissionais que coordenam essas atividades incluem arqueólogos, historiadores, interpretes (on-site interpreters), professores, escritores, artistas, curadores, museólogos e outros especialistas. Embora ligada à ciência arqueológica, a Interpretação Pública difere do escopo de discussões técnico-acadêmicas que visam exclusivamente interpretações e inferências sobre o passado, pois tem como foco a tradução de conceitos e informações arqueológicas e sua comunicação simultânea a um público amplo. Assim, a Interpretação Pública preocupa-se com o engajamento, entretenimento e informação de uma maneira eticamente consciente (JAMESON, 1997). Por sua vez, não há como dissociar o valor científico da disciplina com o seu valor público. A Arqueologia provê benefícios não somente para a pesquisa arqueológica profissional, mas também para muitos participantes e públicos que a utilizam e a valorizam (LITTLE, 2002). Como ressalta Little, “os benefícios públicos estende-se para além da pesquisa arqueológica, utilizando sítios e artefatos para propostas tais como: educação, coesão (autoafirmação) comunitária, entretenimento e desenvolvimento econômico” (LITTLE, 2002:3).

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A Educação Patrimonial no conte x to da Avaliação d e I m pa c t o A m b i e n t a l – o s í t i o T o p o G u a r a r e m a

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No contexto da Arqueologia brasileira ligada a Gestão de Recursos Arqueológicos a Educação Patrimonial é delineada através das políticas públicas estabelecidas pela legislação arqueológica. A Portaria IPHAN 07/1988 prevê a realização de ações educativas no contexto de projetos de Arqueologia de salvamento. Por sua vez, a Portaria IPHAN 230/2002 define como política pública a exigência do desenvolvimento da Educação Patrimonial nos projetos de Arqueologia ligados ao Licenciamento Ambiental de empreendimentos geradores de impacto ao patrimônio arqueológico. A Educação Patrimonial caracterizada pelo IPHAN pode então ser entendida como uma denominação genérica utilizada para caracterizar a Educação Não-Formal no contexto do patrimônio cultural, incluindo o arqueológico. Conforme Brandão (2005:9) não há, uma única forma nem um único modelo de Educação, e a escola também não é o único lugar onde ela acontece e talvez nem seja o melhor; o ensino escolar não é a sua única prática e o professor profissional não é o seu único praticante. Neste cenário, observa-se uma ampliação do conceito de Educação, que não se restringe mais aos processos de ensino-aprendizagem no interior de unidades escolares formais, transpondo os muros da escola para os espaços da casa, do trabalho, do lazer, do associativismo (GOHN, 2005). Com isto a Educação reestrutura-se reformulando o campo da Educação Não-Formal, a qual aborda processos educativos que ocorrem fora das escolas, em processos organizativos da sociedade civil, ao redor de ações coletivas do chamado terceiro setor da sociedade, abrangendo movimentos sociais e organizações não-governamentais (GOHN, 2005, BRANDÃO, 2005). Também englobaria ainda outras entidades e instituições como museus, parques e empresas de consultoria em Arqueologia (ações educativas), etc. Assim, a Educação Não-Formal realizada no contexto da Avaliação de Impacto Ambiental se caracteriza como uma possibilidade de contribuição da Arqueologia para a Sociedade, transmitindo o conhecimento gerado pelas pesquisas. Entretanto, à pesquisa arqueológica realizada neste contexto possui delimitações impostas entre outros, pelo cronograma (tempo); recursos financeiros; os tipos de empreendimentos e suas especificidades técnicas; dificuldade ou impossibilidade de retorno à área, entre outros (CALDARELLI, 1999-2000:59). Deste modo, para a elaboração de programas e ações educativas no âmbito Não Formal, verifica-se igualmente a necessidade de uma avaliação abrangente e integrada dos aspectos condicionadores da pesquisa científica e dos elementos que irão auxiliar a demarcação da forma e abrangência dessas ações, tendo em conta os seguintes componentes gerais: características do empreendimento e suas peculiaridades técnicas, espaciais e temporais; as informações sobre contextos locais e regionais (ambiental, arqueológico, etno-histórico, etc.) e a planificação (design) da pesquisa; as comunidades afetadas e os públicos potenciais. Ao integrar as discussões e contextos sobre as abordagens de Interpretação Pública e as possibilidades da Educação Não-Formal nas propostas de Gestão de Recursos Arqueológicos, o Programa de Educação Patrimonial realizado no Salvamento do Sítio Arqueológico Topo do Guararema (SCIENTIA, 2004), constituiu estudo de caso pertinente na

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aplicação desta abordagem. O programa foi estruturado com base na avaliação das características do empreendimento, design da pesquisa e comunidades (público potencial). Deste modo, foram consideradas as peculiaridades técnicas da montagem de torres de linha de transmissão (500 KV); o cronograma físico da obra (fase de instalação e operação); o contexto informacional do sítio (relacionado às problemáticas arqueológicas e etno-históricas); os vestígios e estruturas identificadas; a planificação da pesquisa (metodologia e técnica de evidenciação da cultura material remanescente); cronograma físico da pesquisa e da ação educativa, bem como, inserção das comunidades e públicos envolvidos. A partir dessas considerações foram caracterizados os atributos ou elementos de significância a serem avaliados (Quadro 1), compondo os aspectos científicos e públicos do sítio e do projeto. A elaboração da ação educativa privilegiou as possibilidades de uso das informações materializadas do passado (vestígios, estruturas e ecofatos), das práticas do método científico da Arqueologia e, da percepção sobre a importância do conhecimento arqueológico para a Educação, para a valorização do patrimônio cultural e desenvolvimento cultural humano.

Quadro 1 - Atributos ou elementos de significação utilizados na avaliação do projeto e do sítio Topo do Guararema com consequências para a elaboração da proposta de Educação Não-Formal.

Públicos

Científicos

Elementos / Significâncias

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- Problemática arqueológica e etno-histórica regional; - Metodologia de escavação empregada (superfície ampla – decapagem e níveis artificiais); - Grau de preservação das estruturas e vestígios materiais identificados e expostos; - Variabilidade de vestígios constituídos de conjuntos e estruturas material lítico (polido e lascado), material cerâmico (fragmentos e peças inteiras), material ósseo (restos faunísticos), estruturas de combustão (restos de antigas fogueiras) e uma laje de argila queimada (possível área de atividade de produção e queima de vasilhames cerâmicos); - Quantidade e qualidade de vestígios e estruturas localizadas. No total, foram localizadas e resgatadas mais 25 mil peças entre material lítico e material cerâmico, além de material ósseo. Foram, também, evidenciadas 17 estruturas de combustão e uma laje de argila queimada; - Outras significâncias com correspondência pública - significância histórica (remetendo ao período específico da ocupação do município) e significância étnica (único exemplar de sítio indígena localizado no município, remetendo a ocupação indígena descrita na etno-história regional). - Extensão da área escavada (aproximadamente 2.000 m2) e técnica de escavação empregada; - Potencial de perceptibilidade (visibilidade) dos vestígios e estruturas arqueológicas; - Implantação e aspectos de inserção na paisagem; - Ocorrência, evidenciação e possibilidade de permanência de estruturas in situ; - Único sítio arqueológico localizado e escavado no município; - O número de pessoas envolvidas nos trabalhos de campo (aproximadamente 43 pessoas, sendo 10 profissionais, entre arqueólogos e estagiários e 33 auxiliares de campo). Este número de auxiliares variou durante o período de realização dos trabalhos, no entanto este número não chegou a ser inferior a dez; - Todos os auxiliares são moradores do município de Guararema; - Proximidade da área urbana (facilidade de acesso).

A avaliação dos atributos de significância científica e pública elencados no contexto do projeto demonstrou alto potencial de utilização do sítio nas atividades destinadas à Educação Não-Formal. Esta perspectiva direcionou

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o programa para a Apresentação e Interpretação Pública, a partir do contato com o sítio arqueológico no momento de sua escavação e com a exposição das evidências materializadas do passado no presente. A atividade desenvolvida baseou-se em uma abordagem construtivista, conforme COPELAND (2004). O autor desenvolveu um esquema sobre os principais fatores e processos envolvidos na construção de significados pelo público, através da apresentação e interpretação em um sítio arqueológico “in situ”, conforme Figura 1. Diante da experiência proporcionada pela evidência arqueológica, inicia-se um processo contínuo de construção de significados, por meio da organização de novos dados, transformação de idéias, formação ou modificação de conceito. A comunicação realizada possibilita a ponte entre a construção do especialista e a construção do público, onde o indivíduo incorpora informação ao selecionar aspectos que lhe são significantes. O programa implantado no sitio Topo do Guararema foi dividido em três fases contendo as seguintes ações: 1) abordagem de apresentação e interpretação pública de forma oportunística durante o curso da escavação arqueológica; 2) “O sítio em exposição” – abordagem de apresentação e interpretação pública realizada de forma sistemática durante cinco dias; 3) Oficina Preservacionista – capacitação com enfoque conservacionista e na responsabilidade do uso do conhecimento arqueológico (formação de possíveis técnicos). Ao considerar os elementos ou atributos de significância, o programa foi direcionado para dois públicos. O primeiro referese aos auxiliares de campo, contratados para serviços gerais, envolvidos nas atividades de escavação (limpeza do terreno, peneiramento e rebaixamento das camadas arqueológicas com acompanhamento técnico). Este grupo foi constituído em sua maioria por homens , de faixas etárias variadas entre 18 e 50 anos, habitantes da área rural e urbana do município de Guararema. Com pouco ou nenhum conhecimento sobre Arqueologia, seu interesse recaiu inicialmente na relação de prestação de serviços, sem envolvimento com questões de patrimônio cultural. Posteriormente, houve um processo de assimilação e Figura 1: Esquema sobre os principais fatores e processos envolvidos na construção de significados pelo público em um sitio arqueológico. Fonte: Copeland (2004), valorização importante, seja ao traduzido. longo dos 4,5 meses de resgate arqueológico, e notadamente

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quando da participação desses auxiliares na fase de apresentação do sitio em exposição. O segundo público escolhido compreendeu professores e estudantes do Ensino Fundamental e Médio do Sistema Público de Ensino municipal – crianças e adolescentes de 11 a 19 anos (em média), em fase de formação educacional formal e cidadã. O interesse deste grupo recaiu nos benefícios educacionais da Arqueologia, no desenvolvimento cultural humano e nas questões envolvidas com o patrimônio cultural do município, vislumbrados durante a visitação ao sítio arqueológico. A ação denominada “Sítio em exposição” foi realizada em 5 dias, com 24 turmas de duas escolas públicas localizadas na área urbana do município de Guararema – envolvendo turmas de 5º e 7º séries do ensino fundamental, 1º, 2º ano do ensino médio e 3º ano do magistério. Para a estruturação do “O Sítio em Exposição” foram elaboradas O sítio em exposição avaliações com respeito à cultura material encontrada e evidenciada no espaço intra-sítio, elencando 13 pontos favoráveis a apresentação e interpretação do sitio Topo do Guararema (Figura 2). Para efetivação da proposta de visitação procedeu-se o manejo do sítio utilizando-se das áreas escavadas e liberadas (materiais resgatados), transformando-as em espaços de circulação delimitados por fitas baixas ou bambus. Nos locais que apresentavam desnível acentuado (devido aos limites de escavação) foram feitas passarelas com troncos de eucalipto . Na área ainda preservada do sítio (sem material em superfície) e nos locais de deposição de solos retirados da área de escavação, foram criados e planejados os locais de parada, corredores de passagem delimitados por troncos de eucalipto, e uma escada de acesso. Na área do entorno do sítio foi construído um “anfiteatro” contendo bancos e pequeno palco feitos com troncos de eucalipto. Nesta área de “recepção” dos visitantes, foi feito um ‘portal’ com troncos e folhas de bambu que impedia Figura 2: Roteiro do “Sítio em Exposição’ e seus respectivos pontos de apresentação a visualização imediata do sitio. e interpretação da informação arqueológica. Foram instaladas lixeiras de bambu

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ao longo de todo o percurso. Conforme a abordagem construtivista proposta, cada ponto de apresentação possibilitou diferentes experiências e possibilidades interpretativas (Quadro 2), onde primeiramente houve um processo de construção do especialista a partir da inferência arqueológica, e posteriormente, a interpretação pública enquanto incorporação de informações, transformação de ideias, seleção de aspectos significativos e modificação de conceitos.

Quadro 2 – Roteiro da proposta do “Sítio em exposição” - Pontos de apresentação das informações arqueológicas Pontos

Circuito de entrada e retorno (acesso)

1 Ponto: Recepção (anfiteatro

2 Ponto: Apresentação do sítio e do projeto

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Interpretação arqueológica

Apresentação

Estratégias de Interpretação Pública

• Percepção da área de entorno do sítio, em caminho que percorre o sopé de morro, a média e alta encosta; Aspectos da área de implantação do sítio arqueológico (escolhido pelo grupo que o construiu e o habitou).

• Primeiro contato com o lugar e suas referências atuais (conhecido por uns; desconhecido por outros); - Os visitantes são recepcionados pelos monitores, que os conduzem ao sítio. - Os monitores são imediatamente reconhecidos pelos visitantes (pois são moradores da cidade);

Aproveitamento do acesso e suas dificuldades de subida, como elemento de discussão sobre estratégias de implantação do sítio;

• Área no limite do sítio arqueológico; - Introdução a temática da cultura material (vestígios) e Arqueologia; significados e importância dos sítios arqueológicos; orientações sobre as fragilidades dos vestígios materiais, o cuidado com as áreas de escavação, questão do lixo e das áreas de passagem e monitores;

Proporcionar o primeiro contato com os arqueólogos e com o ambiente do sítio; Criação de um ambiente receptivo, direcionado para a motivação da curiosidade e de expectativas quanto à visita ao sítio arqueológico; Motivação através de questionamento dos estudantes sobre informações do passado de Guararema, seu ambiente e habitantes iniciais; Manipulação de cultura material do passado (fragmentos cerâmicos e líticos);

- Fornecer conceitos básicos para possibilitar a interpretação; - Proporcionar elementos de correlação entre o contexto histórico de ocupação do município com os pressupostos e objetivos da Arqueologia; - Rememorar informações obtidas anteriormente sobre evidências arqueológicas encontradas e informações arqueológicas;

• Área no limite entre a área escavada e preservada do sítio; • Visibilidade espacial da área; • Contexto da pesquisa arqueológica (gestão de recursos arqueológicos no Brasil – exigências legais);

- Contexto dos estudos arqueológicos desenvolvidos no licenciamento ambiental empreendimentos; - Contextos específicos e etapas do trabalho da LT Tijuco Preto – Cachoeira Paulista (enfatizando as etapas realizadas pelos arqueólogos – diagnóstico, prospecção, monitoramento, delimitação e resgate);

- Proporcionar conhecimento sobre os aspectos legais relacionados ao patrimônio arqueológico; - Utilização da torre já instalada como elemento comparativo do impacto realizado que poderia ser feito no sítio arqueológico.

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Pontos

3 Ponto: Espacialidade, Contexto e Método

4 Ponto: “Buraco de Esteio”

5 Ponto: “Laje de argila queimada”

6 Ponto: “Buracos de tatu”

7 Ponto: “Decapagem” 8 Ponto: “Paisagem do sítio”

9 Ponto: “visualização”

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Interpretação arqueológica

Apresentação

Estratégias de Interpretação Pública

• Área de atividade associada a área de refugo contendo estruturas de fogueiras (duas), associadas a conjuntos cerâmicos fragmentados sobre uma estrutura; • Área de refugo (descarte) com grande quantidade de fragmentos cerâmicos e lítios esparsos por toda área, associado a manchas de solo com colorações escuras;

Foram deixadas no local as estruturas demonstrando as técnicas usadas para o quadriculamento da escavação, coleta e registro (croqui); - Apresentação dos aspectos de formação dos sítios arqueológicos; - Apresentação dos métodos e técnicas utilizadas pela Arqueologia para evidenciação da cultura material do passado; - Apresentação dos métodos e técnicas utilizadas no sítio; - Apresentação da noção de contexto arqueológico; - Apresentação das etapas de laboratório (curadoria e análise) e guarda do material;

- Proporcionar subsídios básicos para a interpretação das evidência e áreas intra-sítio; - Proporcionar de correlações entre o conhecimento escolar (disciplinas) e do senso comum,com método científico utilizado pela Arqueologia; - Propiciar reflexão sobre o sítio e seu significado como patrimônio cultural da população de Guararema; - Instigar sobre a destinação do material arqueológico após as etapas de pesquisa;

- Área localizada no limite entre área de atividade e área habitacional contendo evidência de buraco de esteio;

- Apresentação de outras evidencias materiais, inclusive indiretas; - Apresentação da técnica de escavação para verificação da evidências sobre espaços específicos no sítio e sua função; - Noção de área de atividade;

- Aproveitamento das evidências indiretas (manchas no solo) para a interpretação das estruturas de casas construídas no passado; - Situar as evidências em contextos mais amplos no interior do sítio, a fim de gerar inferências mais confiáveis;

• Área contendo evidencia de laje produzida com argila contendo bolotas de argila e fragmentos cerâmicos entre e sobre a estrutura (possível área de produção e queima de vasilhames cerâmicos)

Apresentação de outras evidencias materiais,inclusive indiretas; - Noção de possível área de atividade comunitária no espaço do sítio;

- Aproveitamento da evidencia para a interpretação de aspectos do conhecimento tecnológico na produção de cerâmica e no cotidiano do passado;

• Área contendo evidências de bioturbações (buracos produzidos por animais ou plantas)

- Apresentação da noção de dinâmica, sistêmica de sítio arqueológico; - Apresentação de evidência que podem gerar problemas interpretativos das camadas arqueológicas;

- A necessidade de registro e controle das características dos solos e dos terrenos, e seu uso atual;

• Área contendo fragmentos cerâmicos expostos (em processo de escavação) associados a estrutura de combustão próxima a área de habitação;

- Apresentação de uma das técnicas de escavação usadas no sítio (rebaixamento discreto e decapagem);

Alusão às dificuldades e possibilidades expostas pela técnica de escavação; Utilização de monitores locais nas explicações e praticas realizadas in loco durante a visitação;

• Área fora do limite da escavação (encosta de maior declive voltada para o rio Paraíba)

- Apresentação dos aspectos da paisagem do entorno do sítio; - Visualização do rio Paraíba do sul e sua distância do sítio

- Aproveitamento dos aspectos ambientais e paisagísticos do entorno como elemento de discussão sobre estratégias de implantação do sítio;

• Área elevada formada por - Apresentação de outra técnica resíduo de solo retirado da de escavação utilizada no sítio área escavada; (níveis arbitrários de 10 cm, com manutenção de conjuntos para controle de nível arqueológico); Apresentação de cantos indígenas aproveitando aspectos perceptivos sobre a área do sitio e paisagem circundante;

- Possibilitar uma visualização “êmica” do contexto sistêmico da aldeia e seus habitantes. Inserção de questões de gênero; atividades no interior e exterior da aldeia; antiga cobertura vegetal e a captação de recursos..

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Estratégias de Interpretação Pública

Pontos

Interpretação arqueológica

Apresentação

10 Ponto: “conjunto cerâmico e fogueiras”

• Área de atividade de descarne de caça e preparação de alimentos (evidência de conjuntos cerâmicos associados a restos faunísticos (ósseo),material lítico e um conjunto de quatro estruturas de combustão);

- Apresentação de mais uma área de atividade; - Apresentação de fragmentos cerâmicos com diferentes tamanhos e formas; - Apresentação de evidências não localizadas em outras áreas intra-sítio.

Proporcionar a noção de aproveitamento da aldeia para realizar diferentes atividades como em suas casas (local de dormir, local de cozinhar, etc); Aproveitamento dos fragmentos para correlações entre os usos dos vasilhames e sua forma e tamanho;

• Área contendo estrutura escavada associada a estrutura de combustão e camada orgânica enterrada;

- Apresentação da noção de estratigrafia arqueológica; - Apresentação das hipóteses da interpretação da evidência; Apresentação do tipo de sítio arqueológico denominado estrutura subterrânea e os locais onde são geralmente encontrados;

- Aproveitamento da evidencia para suscitar a noção de ambigüidade e dúvida (incerteza) em ciência; - Necessidade de correlações e verificações das evidencias (afirmações empíricas) a fim de gerar inferências, interpretação e conhecimento;

• Área localizada no final do - Apresentação do método de acesso contendo estrutura de datação por carbono 14. combustão isolada. - Apresentação da quantidade de coletas realizadas no sítio; - Apresentação da forma de coleta e cuidados necessários (contaminação); -Apresentação dos laboratórios que realizam analise das amostras;

- Aproveitamento da evidencia para aprofundar a discussão dos conhecimentos sobre química, biologia e ciências obtidos em sala de aula

• Área localizada em trecho já escavado no acesso inferior, utilizado como espaço de exposição;

Aproveitamento dos artefatos expostos na primeira mesa para a reflexão do conhecimento tecnológico das sociedades indígenas em relação a matéria prima, a fabricação dos artefatos e seu uso cotidiano; - Aproveitamento dos materiais e figuras da segunda mesa para o entendimento do trabalho do arqueólogo; - Propiciar reflexão sobre os outros usos propiciados por objetos conhecidos do cotidiano; - Propiciar reflexão sobre os conhecimentos escolares em Geografia e outros materiais e os materiais eletrônicos utilizados por arqueólogos em seu trabalho. - Propiciar a noção da interrelação entre a pesquisa arqueológica e o significado da exposição de materiais culturais (como no caso de um museu municipal) ;

11 Ponto: “estrutura enterrada”

12 Ponto: “método de datação”

13 Ponto: “exposição arqueológica”

- Apresentação didática e fotográfica da evolução do processo de escavação do sítio; - Apresentação na primeira mesa: materiais arqueológicos retirados do sítio e outros materiais de outros sítios, com figuras ilustrativas de como eles foram fabricados e utilizados. - Apresentação na segunda mesa: figuras mostrando as etapas da pesquisa arqueológica (escavação e laboratório) e materiais utilizados na pesquisa (desde receptor GPS até pincéis).

A atividade também contou com a entrega de material impresso tipo gibi – contando a história de uma turma que visita um sítio arqueológico. A história foi elaborada com base na proposta realizada no Topo do Guararema, com personagens inspirados na equipe de campo (auxiliares, arqueólogos e estagiários).

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c o n s i d e r a ç õ es f i n a i s As reflexões apresentadas nesta discussão e no estudo de caso envolvem a perspectiva da Arqueologia Pública enquanto campo de pesquisa voltado para as questões públicas e científicas. Este campo enseja a proteção e preservação do patrimônio arqueológico, a compreensão e valorização da informação arqueológica, e ainda, a defesa dos interesses profissionais, científicos e públicos da Arqueologia. Busca ainda desenvolver formas e instrumentos de diálogo direcionados a interceptação do trinômio CiênciaPatrimônio-Sociedade, onde a preservação, a ética, a gestão e a Educação constituem bases importantes para produção e acesso aos conhecimentos. Uma das propostas de Arqueologia Publica ressaltadas neste trabalho, compreende o potencial da perspectiva interpretativa-construtivista envolvendo o licenciamento ambiental de empreendimentos no Brasil. Este direcionamento implica no foco sobre abordagens vinculadas ao que se convencionou chamar de Educação Patrimonial, com a ampliação de suas ações no âmbito da Educação Não-Formal e respeitando as especificidades da ciência arqueológica. Assim, o processo comunicacional realizado em sitio arqueológico (on site) permite incorporar a experiência direta e indireta com a evidência arqueológica, gerando condições apropriadas para a construção de significados entre o especialista e o público, no âmbito da Gestão de Recursos Arqueológicos.

ag r a d e c i m e n t o s A Adriana Teixeira pelas discussões e revisão, a Manoel Ramos Junior pelo inventivo, a Solange Caldarelli pela oportunidade de desenvolver este trabalho, e aos profissionais, estagiários e auxiliares que participaram da pesquisa de campo no sitio Topo do Guararema.

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b i b l i o g r af i a COPELAND, T. Presenting archaeology to the public: constructing insights on-site. IN: MERRIMAN, Nick. Public Archaeology. London: Routledge, 2004. p. 132 – 144. FUNARI, P. P. Arqueologia. São Paulo: Ática, 1988. GOHN, Maria da Glória. Educação Não-Formal e Cultura Política: impactos sobre o associativismo do terceiro setor. 3 ed. São Paulo: Cortez, 2005. JAMESON, J. H. Jr .Introduction: What this book is about. IN: JAMESON, J. H. Jr (ed). Presenting Archaeology to the public:digging for truths. London: Altamira Press, 1997. p. 11 – 20. JAMESON, J. H. Jr. Public archaeology in the United States. IN: MERRIMAN, Nick. Public Archaeology. London: Routledge, 2004. p. 21 – 58. LIPE, W. Public Benefits of Archaeological Research. IN:LITTE, B (org). Public Benefits of Archaeology. University Press of Florida. 2002. 21-28. LITTE, B. Archaeology as a Shared Vision. IN:LITTE, B (org). Public Benefits of Archaeology.University Press of Florida. 2002. 3-19. NEVES, Eduardo Góes. Os índios antes de Cabral: arqueologia e história indígena no Brasil. IN:SILVA, Aracy Lopes da & GRUPIONI, Luís Donisete Benzi (org). A Temática Indígena na Escola: novos subsídios para professores de 1º e 2º graus.4 ed. São Paulo: Global; Brasília: Mec: MARI: UNESCO, 2004. p. 171 – 192. PLOG, F. Cultural Resouce Management and The “New Archaeology”. IN: REDMAN, C.L. et al. (ed.). Social Archaeology. Academic Press, 1978. RIBEIRO, Wagner. Em busca da qualidade de vida. PINSKY, Jaime & PINSKY, Carla Bassanezi. História da Cidadania. São Paulo: Contexto, 2003. 400-417. SCIENTIA CONSULTORIA CIENTÍFICA. Projeto Resgate do Sítio Topo do Guararema, Município de Guararema, SP. São Paulo, 2004. SILVA, Aracy Lopes da & GRUPIONI, Luís Donisete Benzi. Introdução: Educação e Diversidade. IN:SILVA, Aracy Lopes da & GRUPIONI, Luís Donisete Benzi (org). A Temática Indígena na Escola: novos subsídios para professores de 1º e 2º graus. 4 ed. São Paulo: Global; Brasília: Mec:MARI: UNESCO, 2004. p. 15 – 23. SPRIGGS, M.Another way of telling: Marxist perspectives. IN: SPRIGGS, M.(ed) Marxist perspectives in Archaeology. Cambridge, Cambridge University Press, p. 1 – 9. 1983. STONE, Peter G. &McKENZIE, Robert (eds). The excluded past : archaeology in education. London; New York :Routledge, 1994. UCKO, P,.Museums and sites: cultures of the past within education Zimbabwe, some ten years on, in P STONE &MOLYNEUX B (eds), The Presented Past: heritage, museums and education, 237-282. London: Routledge, 1994. WALDMAN, Maurício. Natureza e Sociedade como espaço da Cidadania. PINSKY,Jaime &PINSKY,CarlaBassanezi. História da Cidadania. São Paulo: Contexto, 2003. 545-561. ZAMORA, Oscar M. Fonseca. A Arqueologia como História. Dédalo. São Paulo, nº 28, p. 39 – 62, 1990.

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Museus e diversidade sexual r e f l e x õ e s s o b r e m o s t r a s L G BT e q u e e r AU T O R Renato Pinto

[email protected]

RESU M O

Doutor em História Cultural. Pesquisador associado do Laboratório de Arqueologia Romana Provincial – LARP. Pós-doutorando do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo – MAE-USP. Bolsista FAPESP.

Esta breve reflexão está focada no tema das exibições em museus que buscam mostrar artefatos, a história e a memória de grupos LGBT-Q (lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros e queer). Interessa-me relatar – sem a pretensão de acentuado aprofundamento nas discussões teóricas ou de exaustiva apresentação de exemplos – algumas das inquietudes e soluções criativas que se apresentam aos curadores e organizadores de mostras que contenham acervo erótico ou de cunho sexual que possam ser associados aos grupos LGBT-Q, inclusive mostras sobre a Antiguidade. Parte desta reflexão é resultado de um trabalho que desenvolvo desde o inicio de meu doutoramento no campo da História Cultural. Palavras-chave: Teoria Queer, LGBT, museus.

I N T R O DU Ç Ã O De uma forma geral, há poucas mostras em museus que tratam especificamente de sexualidade humana, e que deem muita atenção aos temas ligados aos indivíduos ou grupos LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros). Os membros de comunidades marginalizadas muitas vezes por suas práticas sexuais dissonantes das normas sociais, progressivamente identificados como queer a partir da década de 1980, não logram encontrar nas exibições dos museus muitas referências aos seus estilos de vida e às suas experiências e conquistas. Sua história é silenciada ou simplesmente ignorada. Nos museus britânicos, embora tenha surgido um interesse maior pelo tema, é um fenômeno dos últimos dez anos, apenas (FROST, 2010: 138). Para os estudos da diversidade sexual humana, e a fim de promover a inclusão e integração das populações LGBT (e devemos incluir aqui o ‘Q’ de queer à sigla), a cultura material presente nas mostras temporárias ou permanentes possuem um enorme potencial transformador social. Uma vez que a cultura material é parte ativa e inseparável do ser humano, ela oferece um campo rico para os estudos das diversidades e das construções e desconstruções dos discursos histórico-arqueológicos (JENKINS, 1991: 256; HODDER, 2005: 255). Enquanto criação humana que resulta de contextos culturais, a cultura material é afetada por muitas negociações de interesses e significados fluidos, como identidade, gênero, sexualidade, entre outros fatores. Contudo, ela não é passiva (FUNARI, 2005: 1). Antes, a cultura material tem força própria para mudar o comportamento do ser humano, criando novos contextos sociais e novos cenários culturais (TILLEY, 1998: 325-6). Assim, o papel exercido pelo museu e seus acervos materiais na

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preservação do patrimônio cultural também implica sua atuação no campo da transformação das sociedades. M u s e u s no p ó s - mo d e r n i s mo

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O museu pode afetar de maneira direta ou indireta a interpretação do passado, produzindo distorções advindas da seleção e classificação dos artefatos, em um movimento de criação de narrativa histórica. Os museus produzem discursos sobre a relação entre os visitantes e os objetos exibidos e reside na disposição e na seleção de tais artefatos o interesse para que façam sentido ao visitante. Para a cognição, há um consciente sistema de apresentação e de visualização em prática (SHANKS & TILLEY, 1992: 68). O museu, desta forma, é o resultado de um complexo processo que é conduzido antes que o acervo seja exposto. Em uma abordagem pos-modernista/ pós-processualista, não se espera que haja a concepção de um passado objetivo, livre de preconceitos, por parte de arqueólogos e curadores. Toda apresentação de artefatos é retórica de persuasão, uma mobilização ativa de modos particulares de apresentação que encobre as distâncias entre o passado e o presente. Os artefatos são comumente organizados cronologicamente, mas podem surgir unidos por sua taxonomia. De qualquer forma, a cultura material parece refletir sobremaneira o sistema arqueológico, não seu uso pelas pessoas em algum momento de sua trajetória histórica fora dos museus. Não raramente, a subjetividade do artefato lhe é negada pela catalogação (SHANKS & TILLEY, 1992: 69, 70), que pressupõe um controle científico refratário a qualquer questionamento sobre sua natureza empírica. Todavia, a subjetividade é um elemento inerente às escolhas feitas por arqueólogos e curadores. Como apontava Roland Barthes, um inventário nunca é algo neutro: inventariar é se apropriar (BARTHES, 1986: 222). O museu, de forma paradoxal, preserva o presente, pois o passado está ausente e o artefato significa tal ausência: é somente representação (SHANKS & TILLEY, 1992: 76. Muitas vezes o passado torna-se não uma réplica, mas um simulacro, uma cópia de algo que nunca existiu, e, desta feita, o passado se transforma em sua própria imagem (SHANKS & TILLEY, 1992: 79. Não se pode dizer, contudo, que o museu consegue (ou que deseje) condicionar todas as visões (SHANKS & TILLEY, 1992: 85., mas muitos museus dão ênfase na cientificidade dos métodos de descoberta e de classificação (SHANKS & TILLEY, 1992: 88. e o passado, muitas vezes, é apresentado como fixo, imutável, ainda que se possa admitir que sua interpretação seja variável por causa da “falha” da subjetividade do arqueólogo, afetado por seu presente. (SHANKS & TILLEY, 1992: 90. Mas essa visão que propugna a existência de um passado objetivo e homogêneo, empírico, não se sustenta. Na medida em que não parece haver um presente homogêneo reconstruindo o passado, pode-se argumentar que também não haja um passado genuíno para ser retratado. Assim, o museu é figurativo e retórico, é seu ato de interpretação e de persuasão que dá sentido às exibições. (SHANKS & TILLEY, 1992: 95. O artefato é também transitório, precário, e não se pode afirmar que exista um método universal ou que haja princípios formais de interpretação e de exibição de artefatos. O museu costuma suprimir as contradições (SHANKS & TILLEY, 1992: 96 e 97), mas poderia servir de fonte para o estudo das construções ideológicas. Enquanto as mostras

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estão intimamente ligadas ao presente, o processo ideológico não deve ser apagado, e a maneira como as sociedades construíram suas identidades ao longo da história deveria estar aparente. Não se espera que o museu apague suas ideologias passadas, como sugeriu Ruy Barbosa (MENESES, 1995: 108). O processo de construção tem de estar presente e o visitante deveria participar desta incessante construção, em conjunto com o curador e o arqueólogo. Da mesma forma, o contexto político da trajetória do objeto deve constar em conjunto com o contexto político do museu e da mostra no presente (SHANKS & TILLEY, 1992: 98). O pós-modernismo/pós-processualismo abriu caminho para abordagens interpretativas múltiplas do passado, que mostram a mulher e outras formas de gênero ativamente envolvidas na criação da tessitura social, e na criação da cultura material de sociedades desaparecidas (WHITLEY, 1998: 219). Podese observar, entretanto, que ainda há certa relutância em abraçar os temas dos gêneros e da diversidade sexual nos estudos de cultura material, e que a prática arqueológica ainda retém muito de seu discurso hetero-androcêntrico (KNAPP, 1998: 241; NELSON, 2005: 131). Esta é uma constatação perturbadora e contundente, em especial quando se fala de estudos de grupos LGBT-Q. arqueologia queer

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As preocupações da Arqueologia com grupos LGBT e queer estão associadas ao movimento feminista e aos estudos de gênero, ainda que as lutas sociais dos seus participantes possam ter tido origens distintas. A publicação de Conkey & Spector (1984) “Archaeology and the Study of gender”, é tida como o gênesis da Arqueologia Feminista, seguida, mais tarde por outros influentes trabalhos relacionados aos estudos de gênero, como o de Gero & Conkey (1991), Engendering Archaeology. Tais estudos tiveram inspiração feminista e denunciaram a ausência das experiências e conquistas das mulheres nos discursos populares e acadêmicos como um mecanismo por meio do qual uma ideologia patriarcal se replicava, privilegiando a experiência masculina (VOSS, 2000: 181). Outro fenômeno acontecia paralelo ao surgimento da Arqueologia feminista e de gênero: a AIDS. Paralelo num primeiro momento, diga-se, mas que logo se ligaria a muitos estudiosos do tema do feminismo e das relações de gênero. A AIDS jogou de supetão nas manchetes dos meios de comunicação termos que circulavam com mais frequência apenas nos guetos das subculturas das minorias ou nos trabalhos voltados a elas: homossexualidade, sadomasoquismo, lesbianismo, prostituição, transgêneros e transexuais. Nos meios acadêmicos dos estudos sobre a sexualidade humana, o resultado dessa exposição foi a percepção de que as teorias de gênero não davam conta da pluralidade e da diversidade das identidades sexuais. A sexualidade passou a ser estudada como um aspecto social distinto, não uma mera extensão do gênero. Nesta nova constelação, as minorias passaram a ser associadas ao conceito de queer, ou seja, aquilo que estava em confronto com as normas estabelecidas pela maioria. Nas décadas de 1940 e até os anos 1970, o termo queer era uma invectiva comum àqueles tidos pela sociedade americana como pecadores, pervertidos, desviantes das normas da respeitabilidade: os homossexuais e efeminados, em geral. Na língua inglesa atual, em especial na América do Norte, os termos faggot (para homens homossexuais) e

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dyke (para lésbicas) algo como que tomaram esse papel classificador. Por outro lado, o termo gay foi transformado para se adequar a identidades reconhecidas pelos próprios homossexuais, a fim de representar sua própria condição de grupo minoritário. Mas, à medida que a universalidade da palavra gay não parecia, outrossim, dar conta das variantes identitárias da sexualidade não heteronormativa, certos grupos não mais se sentiram identificados com ela: caso das lésbicas, dos transexuais e daqueles que não se encaixavam no termo, como os grupos dos ursos (bears), por exemplo. Além disso, o termo gay parecia cada vez mais se referir aos homossexuais masculinos, apenas. O advento da AIDS escancarou também as diferenças entre as minorias e o termo queer resurge como uma tentativa de evitar as taxonomias engessadas, plasmadas. Movimentos norte americanos que repudiavam a ideia de imposição de normalidade como ACT UP, Queer Nation, The Pink Triangle respondiam a uma sociedade americana atravessada (GABRIEL, Peter, 2010: 71) pelo conservadorismo da era Reagan. Os trabalhos de Sedgwick (1990), Epistemology of the Closet e de Judith Butler (1990), Gender Trouble, levaram a sexualidade para além dos limites dos gêneros, e são tidos como fundamentais para o surgimento e fortalecimento da teoria queer. A teoria queer, ou talvez devêssemos dizer teorias queer, não tratam apenas de gays e lésbicas, mas sim de indivíduos e grupos que não se enquadram nas conformações heteronormativas, tampouco se restringem a estudar tão somente fenômenos urbanos modernos. Podem mesmo ser alçadas para estudos sobre a Antiguidade, por exemplo (LEVIN, 2010: 51). Os estudos feministas, de gênero e queer desestabilizam o preceito de que o mundo sempre foi e tem de ser dominado por um estrutura familiar heteronormativa, um cenário construído pelo capitalismo ocidental. Ao mesmo tempo, a diversidade humana não precisa apenas ser apresentada como negação. Seguindo um modelo foucaultiano de pensar, pode-se enfatizar as negociações e adaptações, mostrando que o poder não emana apenas do topo da pirâmide social, antes, mostra-se muito mais nuançado, e as dissidências e convoluções existem mesmo no interior de grupos tidos erroneamente como homogêneos no afã de tudo classificar (DOWSON, 2000: 163; CROUCHER, 2005: 611; COBB, 2005: 633-4). A adaptação, nem sempre fácil e livre de controvérsias, das teorias queer para aplicação aos estudos da cultura material fundou a Arqueologia queer (VOSS, 2000: 187). A Arqueologia feminista e a de gênero compartilham de semelhanças com a Arqueologia queer: todas, ainda que surgidas em contextos políticos específicos, procuram, em alguma medida, rejeitar as taxonomias androcêntricas e as políticas de intolerância contra minorias sociais (VOSS, 2000: 182-5). Mais especificamente, a Arqueologia queer foca seus esforços no intento de mostrar como a diversidade sexual humana deixou marcas no vestígio material (VOSS, 2000: 186). Da mesma forma, denuncia as ausências capciosas ou como os discursos arqueológicos da supremacia do homem branco heterossexual afetaram nossa forma de ver os vestígios do passado, assim como as práticas acadêmicas modernas (DOWSON, 2000: 162).

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LG B T - Q no s m u s e u s

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Há séculos que as grandes coleções dos museus mais tradicionais da Europa e dos Estados Unidos vêm representando as vontades e as viagens de gentlemen abastados das nações colonizadoras. Também ali se mostram os espólios das conquistas e as narrativas de nacionalismo. Os grandes museus do Ocidente tiveram papel fundamental na construção da tríade “nacionalidade”, “masculinidade’ e “colonialismo”. (LEVIN, 2010: 1,2. Mas as mulheres dos grandes homens capitalistas também visitavam museus. De fato, ao fim do sec. XIX, ir ao museu esteve associado a um lazer feminino, ressalvas àqueles pais e seus filhos que procuravam os museus “masculinos”: exposições de armas, de dinossauros, museus de ciência, etc. (LEVIN, 2010: 2. Não deve passar despercebido o incremento no número de mulheres nos museus a partir do final do séc. XIX, e as próprias representações femininas nos acervos dos museus serviram de veículos para manifestações políticas com aspirações feministas, como o movimento das sufragistas na Inglaterra, que atacavam certas coleções que retratavam a mulher como um objeto social passivo e inferior ao homem. As sufragistas haviam compreendido que os acervos eram um receptáculo da propaganda do controle masculino que o governo, exercido por homens, aplicava aos museus (LEVIN, 2010: 2. Mas com a Segunda Guerra, e a escassez de mão de obra masculina, o próprio trabalho nos museus se tornou mais feminino e criou-se mesmo a percepção de que homens afeminados também controlavam os museus, em especial aqueles de acervo de cunho artístico. Isso se dá a partir de estereótipos, de que locais tidos como femininos servem de abrigo para os profissionais homossexuais. O fato é que há pouquíssimas documentações da participação de funcionários LGBT nos museus. São silêncios que espelham distorções e extirpações que rodeiam a história das populações LGBT no Ocidente. E se há alguns exemplos de homossexuais masculinos enquanto colecionadores de renome, exceções que comprovam a regra, muito mais obscura é a participação de lésbicas e de transexuais em trabalhos que envolvem os museus (LEVIN, 2010: 3. Esse descompasso pode encontrar explicação no enorme preconceito que ainda cerca essas minorias e na permanência do sexismo machista, também. Embora o museu possa ser percebido por muitos como um local de mulheres, os homens ainda dominam as posições de poder e de doações, e há indícios de que os salários de funcionários é um pouco mais alto do que o de funcionárias nos Estados Unidos (SCHWARZER, 2010: 17). Em algumas culturas mais hostis aos homossexuais, qualquer referência às sexualidades que não a heterossexual são obliteradas, como no Iraque e no Afeganistão, mas não somente. Em 2006, um diretor de um museu norte-americano foi mandado embora porque havia sido visto em um bar gay (SCHWARZER, 2010: 26) Apesar deste quadro desalentador, há alguns resultados positivos na maneira como os profissionais dos museus vêm sendo treinados. Hoje é possível debater em que medida os funcionários dos museus devem se instruir das técnicas de exibição de peças e o quanto devem estar inteirados das discussões teóricas sobre o patrimônio das populações comumente marginalizadas. Estudar os debates teóricos sobre os museus e sua relação com a diversidade humana representa compreender como se dão as escolhas de temas, a forma de apresentar o acervo e a dinâmica da interpretação da cultura

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material exposta. As teorias feministas e os estudos queer apresentam um arcabouço para a autorreflexão e hoje se mostram ricas em suas abordagens que visam retratar a diversidade de forma diversa, justamente (LEVIN, 2010: 50. Como aponta Funari (2007, 104): A formação do profissional de museu [...] não se restringe ao saber técnico, nem, menos ainda, ao domínio das artimanhas do micro-poder. O desafio que se impõe é formar profissionais que sejam autônomos, críticos, infensos à inércia, propensos à luta pela transformação. Aparente paradoxo, que se busque a transformação, em uma profissão voltada para a preservação.

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Que artefatos melhor representariam a comunidade LGBT-Q? Com a AIDS, temia-se que a cultura material da população LGBT estaria muito mais presente nos memoriais do que em exibições mais autoafirmativas de acervos nos museus. Os traços de derrotas e de obliterações com precessão sobre os acervos que pudessem mostrar as conquistas sociais e políticas, as histórias e personalidades ligadas ao mundo LGBT-Q. Mas há hoje novas exibições que se concentram em mostrar tais coleções, embora um fato que logo se mostrou consternador e ao mesmo tempo revelador para alguns é o de que pode haver pouca ou nenhuma diferença entre a cultura material de heterossexuais e homossexuais (LEVIN, 2010: 4). Então, o que se colocaria numa exibição queer, por exemplo? Cartas? Diários? Desenhos? Esculturas? Vestimentas? Em larga medida, são itens já encontrados em muitos museus que não se dedicam às minorias sexuais. Contudo, nos últimos anos, em especial nos museus britânicos, há um claro movimento para realçar e fomentar as coleções sobre a história e estilos de vida queer. Um exemplo é o da mostra de 2006, Queer Is Here, do Museu de Londres, que procurou retratar como as comunidades LGBT-Q se dedicam e reagem ao ativismo político, às questões de saúde, de aceitação própria (o outing), e ao bullying nas escolas, entre outros temas. Um dos motivos para esse renascer é a revogação em 2003 do Ato Governamental da cláusula 28, emitido em 1988, que proibia a “promoção” de homossexualidade em qualquer manifestação artística ou educativa que contasse com subsídios governamentais. Embora ainda hoje parte da mídia britânica ainda resista em aceitar certas mostras voltadas ao tema queer sem a aparente homofobia: ao advertir o pagador de impostos de que seu dinheiro está sendo usado para promover a promiscuidade ou a pedofilia (MILLS, 2010: 80-1). No entanto, o fato é que os museus britânicos podem hoje contar com o endosso financeiro público. Por sua vez, nos museus americanos, o movimento queer procurou dar maior visão para indivíduos e grupos que escapavam da heteronormatividade, focando no gênero como uma construção social, mas ressaltando que a sexualidade não é vista por todos os estudiosos como resultado da biologia, tampouco (LEVIN, 2010: 6. Enquanto uma distinção entre sexo e gênero pode ser benéfica e útil para alguns, já que algumas feministas e alguns teóricos queer enfatizam a distinção entre gênero e sexo biológico para desconstruir a formulação: biologia-é-destino (SCHMIDT & VOSS 2000: 2-3), para uma das mais influentes autoras de teoria queer, Judith Butler (1990), isso cria impressão de que o sexo biológico é uma página em branco onde

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se inscrevem culturalmente o gênero e a sexualidade. Para Butler, o sexo biológico é também culturalmente construído (p. 6). A aparente falta de consenso sobre as definições de termos relacionados aos gêneros, às práticas sexuais e à sexualidade é apenas um dos fatores que trazem desconforto aos arqueólogos e curadores quando da organização de mostras sobre o público LGBT-Q. Barbara Voss (2000: 4 e 5) elenca quatro grandes obstáculos para o tratamento da sexualidade por arqueólogos: o essencialismo, a negatividade, a hierarquia e o tratamento lascivo da sexualidade. O axioma do essencialismo estabelece que o sexo é algo natural, imutável, baseado em normas biológicas. Se não é tido como um fenômeno cultural, então muitos arqueólogos entendem que não está condicionado pelos contextos históricos, ficando restrito às instituições como o casamento e a procriação nos estudos arqueológicos e o mesmo se vê nas exibições resultantes de tais trabalhos. A negatividade do sexo é também um obstáculo. O sexo e o erótico são tidos por muitos autores e acadêmicos do mundo ocidental como destrutivo, ameaçador, a não ser que tenha o firme propósito da procriação. Há uma hierarquia da sexualidade, também. O sexo monogâmico voltado à reprodução tem precedência sobre outros atos sexuais. Com isso em mente, o sexo heterossexual domina os estudos e a homossexualidade ou variações das normas heterossexuais são marginalizadas. Por fim, o tratamento do sexo como algo que deve ser exagerado, caricato ou cômico, prejudica certas representações e abordagens mais adequadas aos grupos minoritários ou o estudo de práticas sexuais menos “populares”. As abordagens lascivas trivializam o sexo e certos setores da mídia procuram escandalizar seus leitores ao invés de informar algo construtivo. O tablóide inglês The Sun, por exemplo, tem uma longa história de homofobia (MILLS, 2010: 81). Em vista dos motivos citados acima, as mostras sobre sexualidade podem causar grande controvérsia. Um exemplo são as fotografias do famoso artista Robert Mapplethorpe, que se especializou em retratar homens nus em temas homoeróticos, inclusive de conotação sadomasoquista. Várias de suas obras expostas em museus sofreram algum tipo de censura nos Estados Unidos (FROST, 2010: 138). Ainda que haja tais retrocessos, as repercussões na mídia colaboram para que tais exibições LGBT-Q se tornem ao menos comentadas e se difundam em alguns círculos que de outro modo não se preocupariam muito em refletir sobre a presença de tais temas nos museus. A maioria das mostras LGBT-Q concentram-se em arte recente ou contemporânea, e o Mundo Antigo parece um pouco negligenciado. Um problema a ser enfrentado é justamente o das nomenclaturas a serem usadas para classificar os artefatos do passado e estabelecer suas ligações com grupos significados como marginais por ideologias predominantes em seu tempo. Para que tudo não se restrinja a uma verdadeira logomaquia, parece ser mais produtivo explicar como certos termos ganham ou perdem ao longo da história seus efeitos semânticos classificatórios nas sociedades, algo ainda mais necessário quando falamos de Antiguidade, por exemplo. Mesmo termos tidos hoje por muitos como pouco problemáticos podem ser frutos de construções discursivas bastante recentes, sem qualquer significado para sociedades antigas. O próprio termo “homossexualidade” teria sido usado pela primeira vez em um texto alemão anônimo, de 1869 (que tem, comumente, sido atribuído a Karoly Kertbeny), uma palavra que

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primeiro teria sido usada na língua inglesa em 1890, por Charles Chaddock. Foi por este momento que aflorou a percepção de que existiria um tipo diferente de ser humano, que se fazia distinto da maioria por seus desejos e atos sexuais voltados para pessoas do mesmo sexo, e assim, em termos médicos e legais, surgiu o homossexual, uma forma de identidade que se tentou isolar e categorizar, para então reprimir e punir (PETRY, 2010: 1523). Como aponta Michel Foucault, em sua influente História da Sexualidade (2005), o surgimento das categorias homossexual e heterossexual acabou por revelar que não se pode dizer que as sexualidades são formas naturais, pré-discursivas, antes, são todas elas construções culturais. Mostrar como se desenvolveram as discussões que ora afastam e ora aproximam gênero (o desejo de ser), tradicionalmente tido como cultural, e sexo (o desejo de ter), tido como biológico, pode ser muito útil para compreendermos como conceitos do passado, como os cinaedi, os efeminados entre os romanos, e o crime da sodomia, do sexo não natural, na Idade Média, podem desaparecer, ganhar novos significados, ou serem obliterados em nosso tempo, especialmente tendo em vista o advento da sexualidade enquanto campo de estudo de identidades, fruto do séc. XIX (MILLS, 2010: 82-3). As mostras de vasos eróticos gregos, que retratam cenas homossexuais masculinas não são um fenômeno recente, mas suas exibições de forma organizada para gerar debates e reflexões sobre as condutas e práticas sexuais entre pessoas do mesmo sexo na Antiguidade é algo que vem se consolidando há apenas alguns anos. Um curioso caso que pode ilustrar as mudanças no tratamento de peças consideradas polêmicas pelos museus é o da taça de período romano conhecida como Warren Cup. A Ant i g u i d a d e no s m u s e u s : o c a s o d a W a r r e n C u p

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A Warren Cup recebeu seu nome por causa de seu primeiro dono moderno: Edward Perry Warren, também conhecido como Ned Warren (WILLIAMS, 2006: 17). Ned Warren se notabilizou como um ávido colecionador de curiosa erótica. Muitas das peças da sua coleção particular foram doadas em vida para o Museum of Fine Arts de Boston (FROST, 2010: 143-4) e parece certo que aquele museu contou com uma coleção de peças eróticas doadas por Warren por volta de 1908, a chamada The Warren Collection of Erotica (SOX, 1991: 253). Todavia, a coleção só foi exposta pelo Museu de Boston nos anos 1950. O puritanismo da Nova Inglaterra se sentiu afrontado e tinta preta foi aplicada sobre cenas tidas como obscenas, e uma “pessoa” no cargo de curadoria do museu chegou mesmo a mutilar uma das estátuas, cortando-lhe o pênis de mármore e escondendo-o na gaveta de seu escritório. O membro extirpado foi mais tarde encontrado por outro curador, que o devolveu à estátua emasculada (FROST, 2010: 144; SOX, 1991: 120, 253-254). A Warren Cup é um kantharos de prata, oval, de 11 centímetros de altura (WILLIAMS, 2006: 7, 38). A peça teria sido encontrada nas cercanias de Jerusalém, naquele que teria sido um pequeno lugarejo datado do início do séc. I d.C., o mesmo período associado à sua fabricação. Não há consenso sobre como ou porque a taça teria ido parar lá. O que a faz tão famosa atualmente são as repercussões modernas causadas por seus relevos externos, ricos em detalhes de cenas homoeróticas entre homens

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de variadas idades, inclusive uma cena de sexo entre um jovem adulto e um menino. A partir da morte de Ned Warren em 1928, a Warren Cup segue um sinuoso percurso até o seu atual local de exibição: o Museu Britânico, em Londres. Em 1953, a Warren Cup chegou de forma pouco clara à Nova Iorque, tendo sido lacrada e considerada pornografia por um oficial da alfândega americana (WILLIAMS, 2006: 30). Devolvida no ano seguinte à Inglaterra, foi oferecida para venda ao Museu Britânico. Mas este se recusou a adquirí-la por causa do teor das representações e porque um dos principais curadores do museu, o Arcebispo de Canterbury, poderia se enfurecer com tamanha ousadia. Sem alarde, a Warren Cup acabou vendida a um colecionador particular que a levou para fora da Inglaterra. Após ser corajosamente exibida ao público em meados dos anos 1980 no Antikenmuseum, na Suíça, a Warren Cup foi doada em 1992, anonimamente, ao Metropolitam Museum of Art de Nova Iorque, de onde foi removida seis anos mais tarde, sem explicações, e vendida a um comerciante britânico. Foi finalmente comprada pelo Museu Britânico em 1999, por quase dois milhões de libras esterlinas, que passou a exibi-la em 2006 (WILLIAMS, 2006: 30-1). É sintomático das percepções modernas da homossexualidade e do homoerotismo que a Warren Cup tenha tido tanta dificuldade em ser exibida ao público ao longo do séc. XX. O desconforto com as imagens dos relevos da Warren Cup denuncia um longo histórico de censura ao erótico nos museus da Europa. Em 1795, o museu de Portici, Herculano, possuía uma sala reservada para os objetos considerados obscenos e, em 1813, foi criado naquele museu o Gabinete dos Objetos Obscenos (FROST, 2010: 140), com grandes restrições de acesso ao público em geral. Já na década de 1830, certos objetos tidos como inapropriados foram também segregados no Museu Britânico e, nos anos 1840 e 1850, foi criado o Museum Secretum para dar-lhes abrigo e mantê-los longe de olhos mais suscetíveis aos apelos “contranatura” retratados nas peças. O último depósito no Museum Secretum foi feito em 1953, e nos anos 1960 houve uma maior liberalização da censura e, em 1967, o Sexual Offences Act reduziu o peso criminal da homossexualidade na Inglaterra e no País de Gales. Ainda assim, desde então, não foram muitas as exibições que trataram do tema da sexualidade (FROST, 2010: 140-1), menos ainda de temas ligados aos grupos LGBT-Q. Atualmente, a Warren Cup está em exposição permanente no Museu Britânico, na galeria 70, dedicada à Roma como “cidade imperial”. Fig. 1. O curador da exibição, Dyfri Williams, explica que o propósito do museu é mostrar como o passado se distinguia do presente, e provocar a reflexão sobre as atitudes que hoje expressamos a respeito das práticas sexuais (FROST, 2010:144). A peça sofreu interpretações diversas desde 1998 e foi tema de uma mostra chamada de The Warren Cup: sex and society in ancient Greece and Rome, entre maio e julho de 2006. O Museu Britânico resolveu associar a história do cálice às atitudes modernas diante do homoerotismo e, na exposição, havia cartas do séc. XVIII, imagens do filme Brokeback Mountain, e imagens do Japão da primeira metade do séc. XIX, entre outras. A resposta dos visitantes foi muito positiva. A Warren Cup foi mostrada também no Yorkshire Museum, na exposição The Warren Cup: The Classical ideal, de

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dezembro de 2006 a janeiro de 2007. Motivos e temas sexuais faziam parte do quotidiano da decoração de artefatos na arte clássica. Mas os visitantes podem desconhecer os usos corriqueiros de tais peças porque os museus não anunciam o fato ou se mostram hesitantes e preocupados em demasia com os resultados das mostras. A exibição de artefatos como a Warren Cup contribui para a reflexão sobre nossas próprias atitudes diante do sexo em nosso tempo. c on s i d e r a ç õ e s f i n a i s Em 2006, a ONG britânica Proud Heritage lançou uma pesquisa chamada de Proud Nation Survey entre os museus britânicos, pedindo que registrassem suas exibições LGBT-Q junto àquela entidade. A ideia era criar um banco de dados online que mapeasse objetos, histórias e memórias das populações LGBT-Q (FROST, 2010: 148). Os resultados poderiam ser vistos no site oficial da entidade, que, no entanto, oferecia poucas informações até o momento desta publicação. Contudo, o site permite a busca por exibições LGBT em museus britânicos, com bons e surpreendentes resultados. As exibições nos museus são valiosas ferramentas de inclusão social. A materialidade serve como legitimadora de identidades e institucionaliza construções sociais precárias, transformando-as em fatos sociais. Por outro lado, pode servir como valioso recurso em práticas que transformam ou desestabilizam essas mesmas identidades sociais (VOSS, 2008: 23). O engajamento social dos museus com o público LGBT-Q é importante e os arqueólogos e curadores vêm, aos poucos, promovendo narrativas, e estendendo debates sobre os problemas sociais e a diversidade sexual, tanto antiga quanto moderna. Enquanto as teorias arqueológicas queer podem auxiliar na desconstrução de discursos normativos, transpor a história queer para o público acaba por contestar tais normas e por revelar um pouco mais dos mecanismos sociais envolvidos em suas construções.

Figura 1 – Mostruário da Warren Cup no Museu Britânico. Acervo pessoal.

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A r q u e o lo g i a e Pat r i m ô n i o : o s a c e r v o s d o s m u s e u s e s u a i m p o r tâ n c i a A UTOR Cláudio Umpierre Carlan

RE S UMO

Pós-Doutorando em Arqueologia (NEPAM / UNICAMP); Professor Adjunto 2 de História Antiga da Universidade Federal de Alfenas; Membro do Grupo de Pesquisa Arqueologia Histórica da Unicamp.

O artigo começa com apresentação do museu, como um local, no qual abrigava os mais variados ramos das artes e ciências. Sofreu uma severa evolução desde os gabinetes de curiosidades dos séculos XV – XVI, até o século XXI, como o “guardião” da cultura material. Essa cultura material, diretamente associada ao Patrimônio Histórico, nos relata não apenas objetos produzidos pela inteligência humana, mas partes importantes do seu cotidiano. Palavras-chave: Museu Patrimônio e Arqueologia

A B S TR A C T

the paper starts with presentation of the museum as place in which housed the various branches of the arts and sciences. he suffered a severe evolution from cabinet of curiosities the centuries XV - XVI, to XXI century as the “guardian” of material culture. This material culture, closely associated with the Historical Patrimony, tells us not only objects produced by human intelligence, but important parts of everyday life. Key-words: Museum – Patrimony - Archeology

INTRO D U Ç Ã O

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Historicamente o museu é responsável pela produção do conhecimento e a convergência dos saberes científicos. Não basta guardar o objeto. Sem uma pesquisa permanente, a instituição fica subestimada, a um centro de lazer e turismo. Cabe aos pesquisadores inserir os objetos, reclusos em suas reservas técnicas, como fontes históricas. A pesquisa em si é uma visão crítica, a relação homem / objeto / espaço, formam a memória e o patrimônio cultural. Essa documentação museológica é um conjunto de informações sobre cada um dos seus itens e, conseqüentemente, a representação destes por meio de palavras ou imagens (CÂNDIDO: 2006, 37). Trata-se de um sistema de recuperação de informações, do passado, fundamental para a reconstrução cultural de uma sociedade. A reserva técnica, como coração do museu, deve, ou pelo menos deveria, exercer um papel primordial dentro da instituição. Ela agrega uma grande leva de objetos, pertencente ao seu acervo, que por sua vez são marcas da memória. Para isso, devemos trazê-la para o campo do

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conhecimento histórico decodificando suas mensagens simbólicas. Uma série de informações intrínsecas e extrínsecas a serem identificadas. A memória em si, ligada a aprendizagem, ou a uma função e experiência aprendida no passado, faz parte de uma preocupação básica com a sociedade. As exigências da vida em grupo resultam freqüentemente na modelagem da memória através da repressão, do enfoque em certas esferas de interesse. Não é uma propriedade da inteligência, mas a base, seja ele qual for, sobre a qual se inscrevem as concatenações dos atos. Quanto a isto podemos destacar a memória social, na qual designa o caráter social da construção da memória humana: a associação com as questões do tempo e da história, como um meio de identificar e formar as identidades. Assim, nosso objetivo é o de realizar uma análise tanto da memória social ou coletiva, no sentido da identidade dos grupos, classes, tradição histórica, como também da memória individual, na realização de um fato social. Existindo desta forma uma relação entre memória e o documento. Estes acervos, transformados em documentos, guardiões de uma memória coletiva, devem ser guardados e protegidos, mas não excluídos dos debates acadêmicos. Os danos ao patrimônio estão regulamentados por leis de proteção. Na Espanha, por exemplo, as multas por danos vão de 60 a 600 mil euros. Além de prisão, sem direito a fiança. No Egito o contrabando de acervo arqueológico é tão grave quanto o tráfico de drogas. Em 2006, foi publicado pelo IPHAN, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o livro Coletânea de Leis sobre Preservação do Patrimônio, resenhada por Pedro Paulo Funari, com objetivo de tornar público as leis que protegem os nossos bens históricos. A obra chega em uma boa hora, principalmente depois do episódio (mal explicado pela imprensa brasileira) da Marina da Glória, Rio de Janeiro, por ocasião dos Jogos Pan Americano. Os organizadores dos jogos, os patrocinadores e o próprio Governo Municipal queriam realizar uma série de “reformas”, descaracterizando totalmente um bem tombado. Na mesma linha, o roubo de peças do Museu de Arte de São Paulo (MASP) demonstra a importância não apenas da legislação patrimonial, como de práticas de gestão que incluam a sociedade civil. Como mostra a experiência internacional, e as recomendações da própria UNESCO, apenas políticas públicas que contemplem a participação de todos garante não apenas a conservação, como a vivificação da memória. Órgãos como o IPHAN e os conselhos estaduais e municipais de patrimônio só podem obter resultados duradouros e efetivos se incluírem a participação dos segmentos sociais. Os museus, o patrimônio, como instituições públicas, não podem ficar com as portas fechadas para a população. Devem guardar seus acervos, não escondê-lo. Os objetos arqueológicos encarcerados nas reservas técnicas devem ser analisados, estudados e apresentados ao público, acadêmico ou não. Assim, a cultura material prosseguirá no seu caminho, de construção, ou melhor, de reconstrução do nosso passado histórico.

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Colecionismo, Arqueologia e Patrimônio Histórico

¹ O autor também descreve que apenas as pessoas do círculo pessoal do imperador tinham acesso à coleção. Alguns, como Marco Agripa (? – 12 a. C.), vencedor da Batalha do Actium contra Antônio e Cleópatra, amigo de infância do imperador, ajudou Augusto a montar essa coleção.

² O Museu Histórico Nacional / RJ, tem dois exemplares dessas moedas de ouro de Chindasvinto. A museológa Rejane Vieira publicou na Revista do Clube da Medalha (Casa da Moeda) um artigo sobre essas peças. Em 2005 apresentei no Programa de Estudos Medievais da UFRJ um trabalho sobre as cunhagens visigodas, tendo esses exemplares como modelo.

³ Era chamado de Porfirogêneto, nascido da púrpura em grego, por ter nascido no salão púrpura do palácio imperial de Constantinopla.

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Luís XIV (1638 – 1715) herdou a coleção do Cardeal Mazzarino (1602 – 1661) e, conseqüentemente a coleção de manuscritos de Carlos V (1338 – 1380), parte do acervo particular de Mazzarino.

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Hoje visto apenas como um hobby, o colecionismo sempre foi à primeira expressão de uma hierarquia política, econômica e social. Suetônio (69 – 140), no século I da Era Cristã, já relatava a importante coleção numismática do Imperador Augusto (63 a. C. – 14 d.C.)¹. Com a divisão da Europa, após a grande derrocada do Império Romano do Ocidente (476), os novos reinos germânicos, vulgarmente conhecidos por “reinos bárbaros”, procuraram a legitimação dos seus governos no passado romano. Na Península Ibérica, o rei visigodo Chindasvinto (562 – 653), associou seu filho e sucessor Recesvinto (? – 672) ao trono, ainda em vida. Algo raro entre os jovens reinos germânicos. Como elemento legitimador do seu poder, Chindasvinto manda cunhar uma moeda de ouro, onde estão representados, no seu anverso, os bustos dele e do filho. O rei “bárbaro” usou o mesmo método de propaganda adotado pelos imperadores romanos: a moeda. Assim, conseguiu apaziguar o inconstante reino visigodo². Durante o Renascimento Carolíngio, século VIII, Carlos Magno (747 – 814) estabeleceu leis, onde tudo que lembrasse a cultura romana fosse guardado. Preservar, recolher, recuperar, essa era a ordem do dia. Com isso, através de uma importante atividade cultural, o imperador franco é reconhecido pela Igreja como legítimo sucessor de Roma. Fato esse de vital importância para atual União Européia. O papa João Paulo II em seus discursos, fez uma alusão a importância de Carlos Magno, e seu avô Carlos Martel (688 – 741), para a Europa Cristã. A própria constituição européia referencia o governo dos francos. Notamos a influência do passado, legitimando o presente e o futuro. No Império Romano do Oriente, Império Bizantino, também era comum durante festas religiosas, militares e políticas, exposições das coleções reais. O imperador Constantino VII Porfirogêneto (905 – 959), no século X, realizava anualmente essas exposições³. Francesco Petrarca (1304 – 1374), célebre humanista e poeta italiano, considerado um dos precursores da coleção monetária na península itálica. Seu principal objetivo era conhecer a História de cada civilização através da moeda. Dono de um importante acervo, Petrarca defendia esses objetos arqueológicos como uma verdadeira paixão, porém, iniciou alguns métodos próprios, mais tarde adaptados pela metodologia científica. A partir do Renascimento Artístico italiano, mais precisamente no século XV, tudo que lembrava Roma, a cidade modelo precisa ser imitada, começa a fazer parte das salas dos mecenas. As mesmo tempo que os pintores mesclam ideologia e mensagem política em seus quadros, as esculturas, mosaicos, moedas, objetos arqueológicos de uma maneira geral, também estão presentes. Essa revolução do olhar, acompanhada pela Expansão Marítima, leva as realezas européias dos séculos XVI e XVII a adquirirem suas próprias coleções4. O modelo da Vila Albani, em Roma, onde os intelectuais europeus se encontravam para discutir suas idéias e achados (entre eles o alemão Johann Winckelmann, 1719 – 1768, um dos fundadores da arqueologia científica). A vila pertencia ao cardeal Albani, sobrinho do Papa Clemente XI (1649 – 1721), grande protetor das artes, ordenou as primeiras escavações arqueológicas nas catacumbas romanas. A construção

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Doutrinas das Moedas Antigas.

6 Cidade Amuralhada de Carcassonne, Patrimônio da Humanidade pela Unesco desde 1997, possui o conjunto de muralhas mais antigo da França (século IV d.C.). É um dos pontos turísticos mais visitados do país, localizado próximo aos Pirineus Orientais, palco da Heresia dos Cátaros, no século XIII. Graças ao estudo dos objetos arqueológicos encontrados no sítio, foi possível datar sua ocupação por volta do ano 3000 a.C. Seu nome remonta a lenda da Dama de Carcas, princesa sarracena responsável pela defesa da cidadela, depois da morte do marido. Carlos Magno sitiou a cidade por mais de cinco anos sem sucesso. Quando exército franco iniciou a retirada, Carcas ordenou que tocassem todos os sinos. Carlos Magno teria exclamando Carcas Sonne. Na realidade, bem menos romântica, a cidade foi construída no topo do monte Carcasso.

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da vila levou aproximadamente 20 anos. Nela, havia uma rica coleção grecoromana, hoje pertencente ao Museu do Louvre. Ainda no século XVIII, o abade Joseph Eckhel (1737 – 1798), diretor do Gabinete Numismático de Viena e professor de Antigüidade, elabora os primeiros padrões científicos para a catalogação de moedas e medalhas. Tendo com base a coleção do Cardeal Médici, em Florença (Ekchel trabalhou muitos anos com essa coleção), estabelece a organização das peças cronologicamente (por países, reis, governos) em seu livro De Doctrina Nummarum Veterum5, escrita em oito volumes. Até hoje, referência nos museus quanto a organização dos acervos numismáticos (CARLAN: 2007, 26). De uma maneira geral, as primeiras expedições arqueológicas tem início no século XVIII.. A palavra expedição está ligada às expedições militares que ocorreram tanto no século XVIII, quanto no século XIX. Essas campanhas eram acompanhadas por estudiosos e arqueólogos amadores. O principal exemplo desse momento, a descoberta da Pedra de Roseta, próximo a Alexandria pelas tropas napoleônicas em 1799. Sabendo da importância desse artefato, os ingleses incluíram no tratado de capitulação de 1801. Antes disso, em 1753, foi criado o Museu Britânico. Com a Revolução Francesa, a partir de 1792, o Comitê de Salvação Pública (Terror), institui os primeiros decretos e aparatos jurídicos para proteção do Patrimônio Histórico Francês. Os bens da Igreja, realeza e nobreza passam a pertencer ao Estado. Os revolucionários tentam acabar com uma ideologia imposta pela elite, proprietária desses objetos. Em 1793 Louvre é transformado em museu, com o objetivo de instruir a Nação, difundir o civismo e a história. Os cidadãos teriam conhecimento do passado e, ao mesmo tempo, ocorria uma legitimação ideológica dos Estados Nacionais. No Brasil, o Museu Real (hoje Museu Nacional, antigo palácio de D. Pedro II), foi criado por D. João VI em 1818. O próprio regente doou a primeira coleção de História Natural. O referente museu, durante os primeiros anos da República, foi palco das discussões racistas, consideradas na época científicas e modernas, defendidas pelo médico e antropólogo Raimundo Nina Rodrigues (1862 – 1906) que, por sua fez, foi influenciado pelo médico italiano Cesare Lombrosco (1835 – 1909). Durante o século XIX, para muitos intelectuais o século das ciências, os primeiros conceitos de patrimônio e restauração são lançados. O arquiteto, arqueólogo e escritor francês Eugéne Viollet –le- Duc (1814 – 1879), pertencente a escola revivalista, precursor da moderna arquitetura, definiu as primeiras teorias das restauração e preservação patrimonial. Na realidade, Viollet – le – Duc, influenciado pelo romantismo, baseou grande parte do seu trabalho no imaginário medieval, valorizando o Gótico. Seus estudos realizados em Carcassonne, histórica cidade do sul da França, foram considerados pioneiros6.

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M u s e u H i s t ó r i c o Nac i o n a l e o A c e r v o Numismático O conjunto arquitetônico que hoje abriga o Museu, teve origem a partir do Forte de Santiago, na Ponta do Calabouço, um dos pontos estratégicos para a defesa da cidade do Rio de Janeiro, construído entre os séculos XVI e XVII, para defesa da região, prevendo uma futura invasão de corsários franc Atualmente o MHN ocupa todo o espaço destinado a antiga ponta do Calabouço, local no qual se encontrava instalado originalmente o Forte de Santiago, construído em 1603, ao qual se acrescentou a Prisão do Calabouço (1693) - destinada a escravos faltosos - a Casa do Trem (1762) - depósito do “trem de artilharia”, responsável pelo deslocamento interno de armas e munições, o Arsenal de Guerra (1764) e o Quartel do Exército (1835). A instituição foi criada pelo decreto número 15596, de 02 de agosto de 1922 pelo então presidente da República, Epitácio Pessoa (1919-1922), com a função de museu voltado para a História do Brasil. Iniciou as suas atividades no dia 11 de outubro daquele mesmo ano, integrado à Exposição Internacional Comemorativa do Centenário da Independência do Brasil, instalado em duas galerias, nas dependências do antigo Arsenal de Guerra, (transferido para a ponta do Caju em 1908), ampliadas e decoradas para servirem como “Palácio das Grandes Indústrias”, um dos pavilhões mais visitados da exposição. A política de aquisição trazia para o museu insígnias militares, religiosas e nobiliárquicas, que, reunidas, retratavam a glória do passado, a nobreza do povo brasileiro, as forças emergentes da nação. Vargas, durante o Estado Novo (1937-1945), foi um dos grandes incentivadores, doando vários objetos pessoais para coleção. Assim sendo, foram entregues ao público, bens culturais até então dispersos, em outros órgãos institucionais, ou pouco valorizados (CHAGAS, GODOY: 1995, 39). Podemos citar como exemplo a coleção de numismática, que se encontrava na Biblioteca Nacional, desde o final do século XIX. A origem da coleção é um tanto obscura. O corpo técnico do museu acredita que a maior parte das peças foi legado, em 1921, da grande coleção reunida pelo comendador Antonio Pedro de Andrade à Biblioteca Nacional, onde o seu antigo diretor, Ramiz Galvão, desde 1880 havia começado a formar o que mais tarde viria a ser a “coleção oficial brasileira”. Antonio Pedro reuniu uma coleção de 13.941 moedas e medalhas que compreende, entre outros núcleos expressivos, 4.559 moedas e 2.054 medalhas portuguesas e 4.420 moedas da Antigüidade. É também possível que alguns exemplares sejam precedentes das coleções da família imperial, legadas pelo imperador D. Pedro II ao Museu Nacional em 1891 e incorporadas pela Biblioteca Nacional em 1896. Em um relatório de 1881, dirigido ao Barão Homem de Melo, ministro de Império, que doou 114 moedas e 10 medalhas, Galvão utilizou diferentes argumentos para alcançar seus objetivos: “A Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, exmo sñr., não possuía moedas nem medalhas por um vício de organização que é fácil de explicar;

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quando criada, pensou-se que esses trabalhos eram antes objetos de curiosidades, e por isso os deixaram fazendo parte do Museu Nacional...É todavia incontestável que moedas e medalhas são antes de tudo documentos subsidiários da história, e que por conseqüência o seu lugar próprio não é ao lado das coleções de história natural...o lugar da numismática é ao lado da história, e o da história é na Biblioteca Nacional. Pensando assim todas as grandes bibliotecas da Europa tem a sua seção de numismática...” (VIEIRA:1995, 98).

Segundo Poliano, é bem possível que Gustavo Barroso, primeiro diretor do MHN, tenha usado uma argumentação semelhante para conseguir a transferência da coleção da Biblioteca Nacional para o Museu Histórico (POLIANO: 1946, p.p. 9-10). O primeiro lote de peças, estava composto por 406 moedas e 6 medalhas e foi doado à biblioteca em setembro de 1880. Nos anos seguintes, o acervo continuou a crescer, por meio de compras, ou doações, como, por exemplo, a doação da coleção do comendador Antonio Pedro de Andrade, que compreendia 13.941 moedas e medalhas, entre outros núcleos expressivos; de 4.559 moedas e 2.054 medalhas portuguesas; e de 4.420 moedas da Antigüidade. Em 1922, quando o Museu Histórico Nacional foi criado, o decreto que o instituiu também determinou que o acervo numismático existente na Biblioteca Nacional – assim como em outras instituições como o Arquivo Nacional e a Casa da Moeda – fosse para ali transferido. No momento em que se efetivou a cessão, a coleção total ultrapassava as 48 mil peças. Durante esse processo de transferência, foram lacradas uma grande quantidade de medalhas e moedas romanas, acompanhadas dos recibos de compras do século XIX. Toda essa documentação ficou “esquecida” na reserva técnica como refugo (lixo). Em 2002 começamos a analisá-la e identificamos, além de exemplares inéditos do Imperador Diocleciano, os detalhes citados pelos ourives portugueses, citadas nesses recibos, para indicar a raridade de uma determinada peça. Modelo esse utilizado durante a segunda metade do século XIX e início do século XX. Grande parte dessa coleção é composta por moedas de bronze, naturalmente mais gastas, devido à sua maior circulação nas camadas mais populares do Império, que as de prata ou de ouro. E, artisticamente falando, de categoria inferior, estão determinadas por fatores históricos precisos e definidos; o seu estudo pode vir a elucidar traços fundamentais do momento histórico em que essas peças se difundem.

C o n s i d e r aç õ e s f i n a i s Em novembro de 2002, ano que o MHN comemorava seus 80 anos, foi inaugurada a exposição permanente “A História Através da Moeda”, localizada na antiga Casa do Trem. Essa exposição, cronologicamente organizada, expõe algumas moedas da coleção, mostrando a riqueza do acervo. Inicia-se com as primeiras cunhagens, na Lídia segundo o historiador grego Heródoto, até o atual euro. Ao final, encontramos uma reprodução de um gabinete numismático do século XIX. A numismática durante muito tempo ficou confinada às reservas

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técnicas dos museus, não sendo o objeto central de estudos ou análises. Ficando apenas cotejada ou, simplesmente, como um suporte para a documentação escrita. Hoje, no Brasil, existem uma série de estudos e análise tendo a moeda como objeto principal de análise. O Museu oferece a outras instituições - museus, centros culturais, colégios e empresas - exposições itinerantes baseadas em seu acervo. As exposições disponíveis são: “O Império e a República”, “A República no Traço de Rian”, “Memória Cearense”, “Imagens do Brasil”, “Pelas Ruas e Calçadas - Comércio Informal e Ambulante Ontem e Hoje” e “Oreretama, A Terra do Índio”. Vale a pena uma passagem rápida pelo site do Museu Histórico Nacional www.museuhistoriconacioanl.com.br. Apesar de ainda estar sendo organizado, existe uma série de imagens sobre a estrutura do MHN, desde o século XVI até os dias atuais. De gabinetes de curiosidades, arrumados de qualquer maneira, os museus sofreram uma profunda transformação a partir do século XVIII. Carl Von Linné (1707 – 1778), mais conhecido como Lineu, escreveu em 1768 seu livro Systema Naturae, onde institui a moderna organização da taxonomia (ciência da classificação), descrevendo o que chamou de nomenclatura binomial. Os Museus de História Natural, primeiramente, adotaram esse sistema. Mais tarde o método é adaptado para os outros objetos pertencentes as reservas técnicas. A idéia de Patrimônio Histórico e Cultural, também sofreu uma série de influências a partir do século XX. De construções seculares e milenares, ampliam sua área de atuação para o Patrimônio Imaterial, como o Drama de Elche, na Espanha (1980) ou Samba de Roda do Recôncavo Baiano (Bahia) e o Samba Carioca do Rio de Janeiro, em 2008. Analisando e estudando a cultura material, identificamos as técnicas, os usos e as diversas funções de cada objeto. Associados aos valores estéticos, históricos, simbólicos de uma época. É fundamental manter, preservar e estudar cada um desses objetos culturais. Função essa que, tanto o Departamento de Museus, quanto o IPHAN, tem por obrigação proteger para as gerações futuras.

a g r ad e c i m e n t o s Aos amigos e colegas do NEPAM / Unicamp, em especial a Aline Carvalho e Pedro Paulo Funari, pela oportunidades de trocarmos ideias: a Vera Lúcia Tostes, Eliane Ney, Rejane Vieira.

A responsabilidade pelas ideias restringem-se ao autor.

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A ARQUEOLOGIA DA REPRESSÃO NO CONTEXTO DAS D I TA D U R A S M I L I TA R E S D A A R G E N T I N A , U R U G UA I E B R A S I L AUTOR Giullia Caldas dos Anjos [email protected]

RESUMO

Graduanda do Curso de Bacharelado em História pela UFPel. Bolsista de Iniciação Científica FAPERGS.

Este artigo propõe-se a analisar a chamada “arqueologia da repressão” no Uruguai, na Argentina e no Brasil, a partir de obra de alguns autores que elegeram esse tema enquanto objeto de estudo, como, por exemplo, a de Pedro Paulo Abreu Funari, Andrés Zarankin e José Alberioni dos Reis, “Arqueologia da repressão e da resistência: América Latina na era das ditaduras (décadas de 1960-1980)”. Este artigo estrutura-se em quatro partes, abrangendo delimitação conceitual; breve histórico a respeito do período ditatorial nos três países tratados; como é trabalhada a arqueologia da repressão nos países em questão; e, por fim traçarei um paralelo entre a forma pela qual é visto este tipo de arqueologia em cada país, de que forma o seu estudo afeta as sociedades e qual é a importância que assumem tais evidências para estes países, que só muito recentemente, retomaram o estado de direito. Palavras-chave: Arqueologia da Repressão; Ditadura; Resistência.

ABSTRACT

This paper proposes to examine the so-called “archaeology of repression” in Uruguay, Argentina and Brazil, from the work of some authors who chose this subject as an object of study, such as Pedro Paulo Abreu Funari, Andrés Zarankin and José Alberioni dos Reis, “Archaeology of Repression and Resistance: Latin America in the era of dictatorships (decades of 1960 -1980)” . This article is divided into four parts, covering conceptual delimitation; brief history about the dictatorial period treated in the three countries, how the archaeology of repression is crafted in the countries concerned, and finally, I’ll draw a parallel between the way it is seen this kind of archaeology in each country, how this study affects societies and which is the importance of such evidence for these countries, which have very recently taken over the rule of law. Keywords: Archaeology of Repression; Dictatorship; Resistance.

INTRODUÇÃO

¹ BENJAMIN (1991, FERREIRA, 2008, p. 42)

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apud

Sabe-se que a história é escrita pelos vencedores e para os vencedores, e esses acreditam que sua história é “a história”. Porém, os vencidos – ou as minorias – buscam, de certa forma, “reconstruir o destruído a partir dos escombros acumulados pela marcha triunfal dos vencedores”¹ . Essa História, dita tradicional, mostra-se invariavelmente parcial devido ao fato de ater-se às fontes geradas pelos que detêm o poder. Dessa forma, são relegados ao

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² A história latino-americana é pródiga do ponto de vista da existência de regimes ditatoriais. Todavia, a abordagem que aqui iremos desenvolver centrase fundamentalmente no caso das ditaduras militares que se estenderam durante as décadas de 1960 a 1980 no Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai.

³ A esse respeito, recentemente foi publicado um artigo referente a Guerra do Araguaia (PEIXOTO, 2011)

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anonimato todos aqueles grupos considerados desimportantes, como é o caso das minorias étnicas ou raciais e as classes oprimidas. Coincidimos com Foucault (1997) quando este afirma que a história não deve ser estudada de maneira contínua, posto que esta deve ser considerada em sua descontinuidade. Destarte, o historiador não almeja a totalidade, pois ela não pode de fato ser alcançada. O que importa é o acontecimento em sua dispersão temporal e como ele responde a um conjunto de práticas discursivas de uma época, produzindo efeitos de verdades que advêm de relações de força do campo do saber-poder. É nesse sentido que ganham relevo outros campos do conhecimento que partem desse compromisso de busca de abordagens e de outras perspectivas para além das narrativas oficiais. Uma questão é crucial para delimitar o campo da reflexão que nos propomos desenvolver nesse artigo, a qual pode ser formulada nos seguintes termos: de que forma a arqueologia, enquanto campo do conhecimento e espaço de atuação sócio-profissional pode auxiliar as minorias étnicas e grupos subalternos no sentido de fazer com que a sua história seja reescrita? Segundo Matthew Johnson: “sólo la arqueología aborda la profundidad temporal necesaria para generar generalizaciones interculturales acerca de los procesos culturales de largo alcance” (2000, p. 18). Além disso, o mesmo autor afirma que a Arqueologia é um instrumento da revolução cultural e que, assim, poderia ajudar a emancipar as pessoas das ideologias repressivas (JOHNSON, 2000, p. 18). Por fim, basta dizer que uma escavação nunca é neutra, tendo em vista que os artefatos não podem simplesmente fazer nenhum relato, mas devem ser interpretados, fato que coloca a Arqueologia em questão. A Arqueologia pode dar conta dessa materialidade do passado e criticá-la. Por fim, afirma Johnson, “aunque no hace falta añadir que nunca podremos ser completamente explícitos acerca de nuestros prejuicios y nuestros apriorismos, no por ello no debemos internarlo”. E assim, através do uso da arqueologia da repressão, é possível interpretar, criticar e reconstruir a história desses grupos. A arqueologia da repressão pode então ser definida como uma busca dessas histórias ditas como não-oficiais, particularmente as que resultam do sofrimento de pessoas que experimentaram a opressão e a tortura nas mãos de seus algozes em meio ao período marcado pelos regimes ditatoriais, durante as décadas de 1960 a 1980, nos países que hoje integram o chamado Mercado Comum do Cone Sul² . Dessa forma, é possível procurar tanto locais de tortura ou campos de concentração, como também encontrar os restos de pessoas desaparecidas, dentre outros diversos elementos. A busca dessas evidências remete o público interessado (organizações da sociedade civil, familiares dos desaparecidos, movimentos sociais, etc.) a desvendar as circunstâncias relativas ao ato da tortura e desaparecimento das pessoas³. Em última análise, supõe a possibilidade de retomar as formas pelas quais foi engendrado todo um complexo sistema de repressão montado pelas ditaduras militares latino-americanas, as quais, como hoje sabemos, estiveram irmanadas em torno da conhecida “Operação Condor”, de que falarei posteriormente.

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B re v e h ist ó rico sobre as ditaduras na A rgentina , U ruguai e B rasil

Segundo Chagas (2006, p.92), A estratégia foquista consistia no deslocamento de um pequeno grupo de guerrilheiros para uma região inóspita às tropas regulares, onde se iniciaria um processo de ambientação e treinamento. Em seguida, o pequeno destacamento realizaria ações militares junto aos camponeses com dois objetivos: mostrar o caráter justo de sua luta e recrutar guerrilheiros entre as populações locais.

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As origens das ditaduras latino-americanas no período referido anteriormente encontram-se ineludivelmente ligadas aos efeitos da chamada “guerra fria”, no qual o mundo se apresentava dividido entre o bloco de países comunistas, integrados ao Pacto de Varsóvia, e as nações capitalistas, signatárias do Tratado Atlântico Norte. Após a derrota norte-americana em Cuba e o episódio dos mísseis soviéticos, recrudesceu o medo dos EUA de “esquerdização” do continente. Os graves problemas sociais demandavam a implantação urgente de reformas de base – sobretudo a agrária – em meio a um cenário de efervescência política que se viu reforçado com a vinda de Che Guevara para o continente (1966), em sua frustrada tentativa de implantar o foquismo4 e a guerrilha rural na Bolívia. É desse modo que deve ser compreendida a estratégia norte-americana de apoiar política e logisticamente a ascensão de regimes militares, estendendo sua área de influência sobre estes países, comandados agora por ditaduras. Na Argentina, o período da ditadura (1966 - 1983) iniciou-se a partir do movimento “Revolução Argentina”, liderado pelo General Videla, e se constituiu através do golpe de Estado que derrubou o presidente Arturo Illia, no dia 28 de junho de 1966. Cabe ressaltar que todo este contexto é, na verdade, fruto de um processo que se inicia, na verdade, anteriormente, em 1955, momento em que cai o governo do general Juan Domingos Perón. Desde então “vinha ocorrendo um amplo e crescente processo de institucionalização do poder militar como ator político” (PRIORI, 2006). Em 1966, a Junta Revolucionária, com os comandantes das três forças armadas, Tenente General Pascual A. Pistarini (Exército), Almirante Benigno I. Varela (Operações navais) e o Brigadeiro Major Teodoro Álvarez (Força aérea), toma o poder sob a prerrogativa de que las fuerzas armadas, en cumplimiento de su misión de salvaguardar los más altos intereses de la Nación, deben optar, de inmediato, las medidas conducentes a terminar con este estado de cosas y encauzar definitivamente al país hacia la obtención de sus grandes objetivos nacionales. (CISNEROS, ESCUDÉ, 2000)

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Dessa forma, se resolve constituir a Junta Revolucionária, destituir dos cargos o presidente e vice-presidente da República, e aos governadores e vice-governadores. Além disso, define-se a dissolução do Congresso Nacional, assim como as legislaturas provinciais. Outra medida importante é a dissolução de todos os partidos políticos do país (CISNEROS, ESCUDÉ, 2000). É na “Acta de la Revolución Argentina”, que fica definido que quem exercerá o cargo de presidente da República será o Tenente General Juan Carlos Onganía. Segundo Priori (2006), teria havido uma pequena pausa nessa ascensão do militarismo argentino no momento em que Perón e Isabelita Perón sucedem o governo de Héctor Cámpora, entre 25 de maio de 1973 e 24 de março de 1976. Juan Perón, que assumiu o governo através de eleições livres que emergem após a renúncia de Cámpora, morre após um ano, sucedendolhe a então vice-presidente Maria Estela Martínez de Perón (Isabelita). Seu governo, segundo Priori, teria sido marcado pela forte disputa entre as forças

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Segundo a Constituição: “Tomar medidas prontas de seguridad en los casos graves e imprevistos de ataque exterior o conmoción interior, dando cuenta, dentro de las veinticuatro horas a la Asamblea General, en reunión de ambas Cámaras o, en su caso, a la Comisión Permanente, de lo ejecutado y sus motivos, estándose a lo que éstas últimas resuelvan”. (Constitución de la República del Uruguay, Capítulo III, Artículo 168, § 17)

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Foi um acordo realizado no dia 12 de fevereiro de 1972, onde Bordaberry aceita todas as exigências dos militares e a partir do qual se dava “a inserção das Forças Armadas no sistema político – mediante a coparticipação militar na condução do Estado” (PADRÓS, 2005, p. 360). Como resultado, nasce o COSENA (Conselho de Segurança Nacional).

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de esquerda e de direita. Porém, o auge da ditadura na Argentina se dá num segundo momento, após a queda de Izabelita Perón, no golpe militar no dia 24 de março de 1976. É nesse momento que uma nova Junta Militar, desta vez composta pelo general Jorge Videla, almirante Emílio Massera e o brigadeiro Orlando Agosti, instalam a ditadura permanente, conhecida pelo nome “Processo de Reorganização Nacional”, sendo “a mais violenta e transformadora da história argentina” (SAIN, 2000 apud PRIORI, 2006). A partir de então, percebe-se o endurecimento do regime, no que diz respeito à prática da tortura e da repressão pelo Estado autoritário. E foi apenas com a derrota na Guerra das Malvinas, que a Junta Militar se enfraqueceu e que se deu o retorno à democracia, com a eleição na qual Raúl Alfonsín assumiu o governo em dezembro de 1983, pondo fim a este período sangrento da recente história argentina. Já no Uruguai, o período da ditadura está compreendido entre o início dos anos 1970 e o começo dos anos 1980. Para entender o processo é necessário conhecer os antecedentes do golpe de Estado de 1973 no Uruguai. Dessa forma, vale lembrar a presidência de Jorge Pacheco Areco, de 1967, que se inicia após a morte do então presidente, general Óscar Diego Gestido, até março de 1972, quando finalmente lhe sucede Juan María Bordaberry. O governo de Pacheco fez uso das chamadas “medidas prontas de segurança”5 para poder reprimir toda e qualquer agitação popular, como também a guerrilha do Movimento de Liberação Nacional-Tupamaros. Foi durante seu governo que se censuraram meios de comunicação como a imprensa escrita, além da proibição da atuação de qualquer partido de esquerda como o Partido Socialista Uruguaio. Como a Constituição de 1967 não permitia a reeleição imediata, a União Nacional Reelecionista uruguaia organizou, em 1971, um plebiscito para tentar reeleger Pacheco. Porém, com medo de que essa medida não obtivesse sucesso, decidem indicar um substituto (Bordaberry) de acordo com o regime vigente. Como o plano de reeleger Pacheco não deu certo, Bordaberry acabou sendo eleito presidente do Uruguai. Durante seu governo, para manter-se no poder, aliouse com os setores mais conservadores, tanto no âmbito militar quanto civil, sendo que dessa forma era visível que o posicionamento dos militares no governo continuava a aumentar. Em fevereiro de 1972, houve um conflito entre os militares do Exército e da Força Aérea e o então presidente Juan María Bordaberry, pois este não havia concordado com a nomeação feita pelos militares no sentido de colocar Antonio Francese como Ministro de Defesa. Porém, acaba cedendo e aceita a nomeação através do Acordo de Boiso Lanza6. Dessa forma, abre-se aos militares um amplo leque de possibilidades de exercer o poder. Esse processo, na opinião de Padrós (2005, p. 360), consiste no fato de que “formalmente, governavam os civis, entretanto, de fato, os militares se haviam aquinhoado de boa parte do poder”. Foi então, a partir de 1973, que as forças militares passaram a exercer controle político pleno sobre a população. No dia 27 de junho de 1973, Bordaberry e as Forças Armadas fecham o Senado e a Câmara dos Deputados. Em junho de 1976, Bordaberry encaminha propostas de renovação da ordem constitucional, dentre as quais, destaca-se a eliminação dos partidos políticos, a supressão da Constituição anterior e elaboração de uma nova carta

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magna. As Forças Armadas não aceitam esse encaminhamento, e tampouco concordam com a ideia de Bordaberry no que diz respeito à participação das Forças Armadas na política uruguaia futura. Mas se Bordaberry assumia que as Forças Armadas deviam restringir-se à defesa da Segurança Nacional e do governo civil [...] as Forças Armadas entendiam que, para garantir a ‘segurança para o desenvolvimento’, deviam institucionalizar sua participação no governo como ator protagonista. (PADRÓS, 2005, p. 389, aspas no original)

Devido a essas divergências de opiniões e choque de interesses, as Forças Armadas explicitam seu poder ao destituir do cargo Bordaberry e substituindo-o, então, por Alberto Demicheli. Nesse sentido, as Forças Armadas publicam um documento no qual demonstram todas essas supostas divergências: 1.

En que el Presidente no acepta el futuro funcionamiento de los

Partidos Políticos tradicionales. Entiende que éstos no tienen cabida en el Uruguay del futuro. Propone en sustitución de la vigencia de ellos, la promoción y desarrollo de corrientes de opinión que en definitiva vendrían a ocupar el vacío dejado por aquéllos. En cambio las F.F.A.A. [Forças Armadas] no quieren compartir el compromiso, la responsabilidad histórica de suprimir los Partidos Políticos Tradicionales. 2.

El señor Presidente de la República no acepta el pronunciamiento

popular a través del voto, porque considera que esa práctica en las democracias actuales es algo superado, argumentado que el voto solamente se debe requerir a los ciudadanos a través de referendum o plebiscitos sobre puntos o temas específicos que el PE [Poder Executivo] considere conveniente. En contraposición a esto, las F.F.A.A. sostienen que la soberanía está radicada en la Nación y que, entre otras, una forma auténtica de expresión de esa soberanía, es el voto popular [...] Surge así una incompatibilidad entre el pensamiento político de las F.F.A.A. y el del señor Juan María Bordaberry que impide a este continuar dentro de un proceso en el que no cree [...]. Por lo expuesto y para garantizar la continuidad del proceso cívico-militar en procura del Bienestar Nacional, se hace indispensable revitalizarlo con una actualización de los hombres responsables de esa conducción. En base a ello, las F.F.C.C. [Fuerzas Conjuntas] han retirado su confianza y apoyo al señor Juan María Bordaberry7. JUNTA DE COMANDANTES EM JEFE. Las Fuerzas Armadas al Pueblo Oriental. T II. El Proceso Político. (1978 apud PADRÓS, 2005, p.. 391)

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É Alberto Demicheli, Presidente do Conselho do Estado, que firma o Ato Institucional Nº 1, suspendendo a convocação de eleições gerais e que cria o Consejo de la Nación, com o Ato Institucional Nº 2, que, conjuntamente com a Junta de Oficiais Generais e com o Conselho de Estado, indicavam o Presidente da República, os membros da Suprema Corte de Justiça, etc. Dessa forma, todos os cargos importantes e todos os organismos do Estado ficavam totalmente subordinados aos Oficiais Generais integrantes do Conselho da Nação (PADRÓS, 391). A partir desse momento é que se inicia a fase mais dura da ditadura uruguaia, e conforme os Presidentes vão se opondo às intenções do Conselho da Nação, estes irão sendo sucessivamente substituídos. Este é o caso de Demicheli, que ao se opor ao Ato Institucional Nº 4, é substituído por Aparício

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DIREITO À MEMÓRIA E À VERDADE, P. 21.

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Mendez. Pelo Ato Institucional Nº 4, “se excluíam da vida política do país, por um prazo de 15 anos, cerca de 15 mil cidadãos” (PADRÓS, p.391). Após outros diversos Atos Institucionais e muita repressão política, firma-se, em 1984, o acordo do Pacto do Clube Naval, entre Gregorio Álvarez, o Partido Colorado, Frente Ampla e a União Cívica. Este Pacto permitiu o retorno do regime democrático ao Uruguai. Marcou, ainda, o final do período ditatorial no país e também as bases para operar a tão sonhada transição à democracia. No Brasil, o regime militar desenvolveu-se entre 1964 e 1985, desdobrando-se em três grandes fases. A primeira inicia-se com o golpe de Estado em 1964, que depôs o governo do gaúcho João Goulart, herdeiro político do trabalhismo de Getúlio Vargas. Nesse momento, os militares das Forças Armadas, vindos da Escola Superior de Guerra (ESG), encontravam-se em franca disputa, ainda que internamente, sobre como organizar-se-ia a administração do governo estatal.8 É a partir do Ato Institucional Nº1 que se percebe o caráter repressivo do governo militar. Isso se percebe através das consequências desse Ato, entre as quais figuram em destaque a “cassação de mandatos, suspensão dos direitos políticos, demissão do serviço público, expurgo de militares, aposentadoria compulsória, intervenção em sindicatos e prisão de milhares de brasileiros”.9 Nesse sentido, vale mencionar a Doutrina de Segurança Nacional, que foi uma

BRASIL, 2007, p. 22.

tentativa de fundamentar conceitualmente a suspensão das garantias constitucionais, a limitação das liberdades individuais, a introdução da censura aos meios de comunicação e a repressão total aos que se opunham por meio de atividades clandestinas. (BRASIL, 2007, p. 22).

10

BRASIL, 2007, p. 27.

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O que se pode perceber com essa Doutrina de Segurança Nacional é a mudança do foco “inimigo” para o Estado, que agora passa de agente externo para interno, de forma a legitimar a repressão. Quanto à segunda fase da ditadura, ao final de 1968, é quando se dá a implantação do Ato Institucional Nº5, durante o governo de Costa e Silva, e que levou ao ápice do endurecimento do regime, agora então marcado por uma total repressão e prática da tortura. Fato que pode ser percebido também durante o governo de Medici, de 1969 a 1974, caracterizado pelos chamados “anos de chumbo”. Já a terceira fase da ditadura no Brasil começa com a posse do general Geisel, em 1974. Embora no início de seu governo, a repressão e tortura ainda fossem algo cotidiano, pode-se perceber, durante sua administração, uma “distensão lenta, gradual e segura”.10 Nesse momento, é abolido o Ato Institucional Nº5 e a liberdade de imprensa pouco a pouco ia sendo devolvida. Oficialmente, foram reconhecidas aproximadamente 200 pessoas assassinadas pela ditadura.

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P ro j etos N u n c a M á s como parte constituidora de mem ó rias emblem á ticas

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STERN (2000 apud JOFFILY, 2010).

Os Projetos Nunca Más, segundo Joffily (2010, p.1), operam “como um vetor de constituição de uma determinada memória emblemática sobre o legado dos governos militares”. Como memórias emblemáticas, entenda-se, segundo o conceito de Stern11 , como sendo aquelas que organizam e articulam várias memórias soltas a um determinado processo histórico, atribuindo a elas um sentido maior. Reúnem através de critérios de seleção e de uma determinada linha interpretativa, uma série de memórias individuais e coletivas, definindo os contornos do que deve ser incorporado e do que deve ser esquecido. (STERN (2000 apud JOFFILY, 2010, p. 1)

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BAUER (2008, p. 4).

Foi durante a transição política das ditaduras que se deu a criação das diversas comissões de desaparecidos em ambos países. Na Argentina, a Comissión Nacional sobre la Desaparición de Personas, foi criada pelo presidente Raúl Alfonsín, em 1983, através do decreto 187.12 Estas comissões, para Patricia Valdez, se crean en momentos históricos de recuperación del estado de derecho, con el advenimiento de un régimen democrático o al producirse intervenciones internacionales que tienen como misión apoyar procesos de paz y establecer premisas básicas para la convivencia. Su creación tiene el objetivo de investigar los hechos, conocer las causas que los motivaron y establecer responsabilidades de los diversos sectores involucrados. (VALDEZ, 2007 apud BAUER, 2008, p. 5)

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JOFFILY (2010, p. 4).

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JOFFILY (2010, p. 4).

15

SERPAJ (1989, p. 5-6).

16

MARCHESI (2001).

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Em 1984, na Argentina, foi disponibilizado pela primeira vez o Informe da CONADEP, que recebeu o nome de Nunca Más. Esse título “inspirou o grupo brasileiro envolvido com a sistematização dos processos da Justiça Militar a modificar o nome do projeto Testemunhos Pela Paz para Brasil: nunca mais”.13 Esse título foi utilizado por diversos países. Dessa forma “iniciava-se uma espécie de filiação a um objetivo compartilhado entre nações latinoamericanas egressas de períodos ditatoriais: que as barbáries cometidas pelas ditaduras militares não viessem a se repetir”.14 No Uruguai, foi o Servicio de Paz y Justicia, fundado em 1981, o responsável pela realização do Informe Nunca Más, viabilizado em 1989, e que tinha o objetivo de “conocer a fondo, en toda su magnitud la catástrofe padecida”.15 No Brasil, desde 1979, a Arquidiocese de São Paulo e diversos ativistas dos direitos humanos vinham realizando muitas pesquisas e levantamento de documentos e depoimentos que culminaram na publicação do Informe Brasil: Nunca Mais, em 1985.16 Atualmente a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos vem realizando publicações de diversos materiais a respeito da ditadura, como o livro “Direito à Memória e à Verdade”, “Luta, substantivo feminino”, entre outros. De acordo com os dados do CONADEP de 2007, de um total de 8691 desaparecidos na Argentina, a prevalência de homens (70%) é bastante expressiva. A mesma fonte indica que que 59% desse universo é formado

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por jovens entre 21 e 30 anos de idade. A Fig.1 indica que o recrudescimento da ditadura militar argentina ocorre fundamentalmente entre os anos 1976 a 1978, período que concentra mais de 85% dos desaparecidos.

Figura 1: Porcentagem dos desaparecidos por ano, Argentina. Fonte: CONADEP, 2007.

Na Fig.2, apresentamos os dados referentes à ocupação dos desaparecidos da Argentina. Podemos que perceber que a maior parte é composta de operários (30,2%), seguido de estudantes (21%), ou seja, mais da metade dos desaparecidos na Argentina são ou operários ou estudantes.

Figura 2: Porcentagem da ocupação dos desaparecidos, Argentina. Fonte: CONADEP, 2007.

Muito semelhante é o caso do Uruguai (Fig. 3) no que diz respeito ao desaparecimento de pessoas tendo em vista o ano. Nesse caso, não são 85% – 1976-1978 – mas sim, 95% dos desaparecidos no Uruguai se deram no mesmo período.

Figura 3: Porcentagem de desaparecidos por ano, Uruguai. Fonte: SERPAJ, 2006.

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Enquanto os dados da Argentina e do Uruguai destacam os desaparecidos, no Brasil o que se percebe é a análise dos torturados. Quanto à distribuição por gênero, percebe-se que enquanto que na Argentina cerca de 70% dos desaparecidos são homens e no Uruguai, segundo o SERPAJ de 1989, são 76%, no Brasil, segundo o Projeto Brasil: Nunca Mais, de um total de 1.843 torturados, 79% são do sexo masculino. A seguir, apresento alguns dados retirados do Projeto Brasil: Nunca Mais, no que diz respeito à tortura no Brasil. Na Fig.3, estão expostas as denúncias de tortura por ano, e é possível destacar que, no período de 1969 a 1973, foram realizadas as denúncias de quase 75% do total (período de 1964 a 1977).

Figura 3: Denúncias de Tortura por ano. Fonte: Brasil: Nunca mais, 1985.

Classificando os torturados no Brasil por faixa etária, é possível confrontar os dados com os desaparecidos da Argentina e perceber o envolvimento de jovens nesse contexto. Enquanto na Argentina, cerca de 58% dos desaparecidos eram jovens (21-30 anos), no Brasil, segundo o Projeto Brasil: Nunca Mais de 1985, essa mesma faixa etária compreendia mais de 45% dos torturados. A Fig.4 demonstra o número absoluto de torturados por tipo de tortura. O relatório do Projeto Brasil: Nunca Mais, totaliza 310 tipos diferentes de torturas. Porém, aglutina-os em diversos grupos, que são representados abaixo. Dentre as coações morais e psicológicas temos, como exemplo, ameaças diversas, ambientalização de terror, pressão moral , vexames, cuspir no rosto, humilhar, insultar, difamar, etc. Dentre as coações físicas temos agressão, açoite, uso de cassetete, chibata, chicote, coronhadas, torturas frente à esposa, torturar os filhos, esposa, pais, etc. Quanto às violências sexuais, existem das mais variadas no relatório, como por exemplo, furar órgãos genitais com agulhas, uso de presilhas nos órgãos genitais, estuprar esposa presa, etc.

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Figura 4: Distribuição absoluta do número de torturados segundo sexo e forma de torturas. Fonte: Brasil: Nunca mais, 1985.

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Quando, na Fig.4, destaco instrumentos, refiro-me às torturas com instrumentos perfuro-contundentes, cortantes e queimantes, como dedos e juntas marteladas, enfiar canivete nas unhas, queimaduras com cigarros, maçarico e papel aceso, dentre outras. No que diz respeito às torturas com aparelhos mecânicos, constam, sobretudo, o uso de crucifixo, corda amarrada no pescoço e genitais, pau de arara, pendurar pelos punhos, pendurar pelos pés com os braços suspensos, etc. Ao falar sobre as torturas com aparelhos elétricos, refiro-me à cadeira do dragão e aos diversos choques elétricos. Além disso, contra os sinais vitais são destacados diversos afogamentos, asfixia, uso de esponja de água na boca, enforcamento, dentre outros. Com relação às torturas complementares às torturas, são destacadas: o uso de água para piorar choques, ácido no rosto, álcool mais ventilador, uso de amoníaco na boca, gás asfixiante, injeção de éter, etc. No que diz respeito às torturas atípicas, constam as que incluem o uso de diversos animais, como baratas, cães, cobras, ratos, etc., além de obrigar a pessoa torturada a cavar a própria sepultura, obrigar a comer os próprios excrementos, beber urina, dentre outros. Os dados da Figura 4 indicam ainda que os mais atingidos foram os homens, com um total de 4.918, sendo que deste número 2.369 sofreram coações físicas. Já com relação às mulheres, temos um total de 1.098 pessoas, sendo que destas 431 também sofreram coações físicas. Pode-se perceber, então, o sadismo existente nesse contexto e sua materialização durante o período. Seria absolutamente impossível resumir no curto espaço que aqui dispomos a diversidade de formas de tortura utilizadas no Brasil e nos demais países analisados pelos órgãos de repressão. A tarefa que nos impõe agora é no sentido de abordar o tema da arqueologia da repressão no âmbito dos três países aqui analisados. A rqueologia da repressão na A rgentina U ruguai e B rasil A Arqueologia da repressão é apontada como estudo da materialidade do período relativo às ditaduras militares, permitindo uma nova interpretação para o quadro social e político dominante entre as décadas de sessenta e setenta. Sabe-se que na Argentina funcionaram, no período da ditadura, cerca de 340 CCDs (Centros Clandestinos de Detenção). Trata-se de aparelhos instalados geralmente em prédios já existentes, sendo lugares destinados à repressão e ao terror praticado pelo Estado (agentes civis ou militares). Mas tais locais cumpriam outros propósitos que não os de deter, corrigir e entregar o indivíduo de volta à sociedade, mas, sim, destruir e eliminar por completo todos os que eram considerados como “inimigos do Estado” por praticarem atos supostamente terroristas. Zarankin e Niro (2008) apontam importantes diferenças existentes entre os campos de concentração em geral e os CCDs: [...] a diferença é que, enquanto um campo de concentração é “um lugar” que se rege por convenções (ao menos deve fazê-lo segundo uma série de convenções internacionais que garantem algum respeito aos prisioneiros), o CCD não possui nenhuma – ao menos oficialmente – porque simplesmente não existe institucionalmente. Sua condição de

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clandestino lhe outorga a vantagem da invisibilidade e da impunidade,

convertendo-o em um “não-lugar” para aqueles que se encontram dentro de seu espaço. (ZARANKIN e NIRO, 2008, p. 194; aspas no original)

17

ZARANKIN & NIRO, 2008, p. 206.

18

“O “inimigo interno” podia estar localizado em outro país (exilado, escondido), assim como o “inimigo interno” de outra nação também precisava ser combatido não somente pelo país que o abriga. Este era o fundamento da criação da Operação Condor”. (FERNANDES, 2009, p. 2) 19

MAZZ, 2008 p. 171.

20

MAZZ, 2008 p. 172 (destaque no original). 21

MAZZ, 2008, p. 173.

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Em 2003 foi aprovado o projeto de escavação de um dos CCDs existentes em Buenos Aires – o Club Atlético. Tratava-se de desvendar a lógica da arquitetura deste dispositivo. Segundo Zarankin e Niro, no primeiro nível estavam instalados dois escritórios correspondendo à esfera burocrática do CCD. No segundo nível, ou seja, abaixo do primeiro (subsolo) estavam as salas de detenção coletiva. No nível abaixo estavam outras celas e, logo depois, as salas de tortura. Dessa forma, nota-se a questão emblemática da constituição da estrutura do Club Atlético. As salas de tortura, ao serem colocadas no espaço intermediário entre as celas, como mostram os autores, acarretam grande transtorno aos detidos. Permitem evidenciar, de forma ineludível, a “materialização do sadismo implícito no projeto arquitetônico do CCD”.17 No Uruguai, no entanto, como demonstra Mazz (2008), a conformação dos locais onde ficavam retidos os presos políticos deu-se através de duas formas. Num primeiro momento, esses pontos de retenção e repressão política estavam centrados em lugares militares. Não obstante, num segundo momento, já sob a égide da “Operação Condor”18, essa localização é modificada e conforma-se, então, uma rede de lugares clandestinos para onde são levados os presos políticos. Dessa forma, os restos de desaparecidos formam um “documento fundamental”19 que auxilia na interpretação da história extra-oficial do período ditatorial. Como destaca o autor, “a localização do enterramento clandestino de um detido desaparecido pode transformar um espaço, até agora irrelevante e passível de ser considerado um ‘não-lugar’ [...], em um ‘lugar de repressão’”20. Foram realizados no Uruguai diversos estudos forenses em valas comuns, obtendo destaque os cemitérios de Colônia do Sacramento e da cidade de Castillos. Entretanto, até agora não foi possível recuperar vestígios significativos, especialmente devido ao “pacto do silêncio”21. Nesse contexto, a arqueologia forense e a arqueologia da repressão destacam-se como alicerces para ressemantização do significado atribuído aos restos encontrados e como auxiliares tanto da história, por dar voz aos silenciados, como da justiça aos familiares e amigos dos desaparecidos. No Brasil, pouco se avançou em termos de uma arqueologia do período ditatorial. É imperativo reconhecer a importância desses estudos para a sociedade, buscando respostas a questionamentos que ainda atormentam a população de forma geral. Porém, como apontam Funari e Oliveira (2008, p. 148), “não se pode estudar bem a repressão sem um exame das condições que levaram a arqueologia em nosso país a abster-se do tema por tanto tempo e de maneira tão persistente”. É necessário, portanto, dar importância para essa área que ao passar do tempo ganha cada vez mais destaque. No Brasil, a pesquisa arqueológica no estudo do período da ditadura ainda está em sua infância, como resultado das diversas armadilhas jurídicas e políticas colocadas pelo Estado autoritário. É mister afirmar que a arqueologia da repressão corresponde a um campo do conhecimento pouco valorizado. Isso se deve, em parte, a que muitos personagens que atuaram nas ditaduras latino-americanas ainda estão no poder. Recentemente alguns pesquisadores estão se dedicando ao tema, considerando que esse esforço há que superar as fronteiras

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internacionais diante do fato de que muitas pessoas desapareceram em outros países, sob o império do terror implantado pela “Operação Condor”. Mas essa luta demanda recursos e decisão política, algo que não se pode circunscrever a uma mera ação indenizatória de alguns poucos casos em que o Estado se viu obrigado a reconhecer tais práticas, diante da força das evidências levantadas por arqueólogos, antropólogos forenses e outros atores que se envolveram nesta verdadeira cruzada em busca da verdade. Entre 1964 e 1979, o projeto Brasil Nunca Mais contabilizou 7.367 acusados judicialmente, 10.034 atingidos na fase de inquérito, 130 pessoas banidas, 4.862 cassados e pelo menos 245 estudantes expulsos da universidade, sendo que apenas 357 mortos foram efetivamente reconhecidos (BRASIL, 2007, p.30).

C onsideraç õ es finais Algumas de 1960 e 1970. Todavia, não cabe dúvida de que a arqueologia da repressão representa uma via para fazer emergir estes fatos e buscar elucidar uma outra narrativa contrapondo-se à oficial a respeito de nosso passado, sobretudo quando é evidente a queima de documentos e de arquivos no interior dos quartéis e dependências militares. Os dados e informações aqui apresentados ilustram, de certa forma – embora ainda seja necessário que se aprofundem as pesquisas no tema – a dimensão das atrocidades cometidas durante o regime militar. Todavia, não cabe dúvida de que nos encontramos diante de um imperativo indispensável para construir uma sociedade mais justa e equilibrada do ponto de vista político. Conhecer como funcionavam os aparelhos de repressão e os equipamentos de tortura é uma tarefa dolorosa, mas imprescindível para desvelar um país que a própria população desconhece.

aGRADECIMENTOS Agradeço o apoio institucional da FAPERGS (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul) pela concessão de Bolsa de Iniciação Científica. Ao Prof. Dr. Lúcio Ferreira Menezes por todo o apoio e incentivo ao longo desses anos, pela leitura atenta e sugestões.

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RESENHA “La Recuperación de Tecnologías Indígenas: Arqueología, tecnología y Desarrollo en los Andes”. Alexander Herrera. Editorial Universidad de los Andes. Bogotá Colombia

Andrés Alarcón Jiménez

E-mail: [email protected]

¹ O CV dele pode ser consultado aqui: http://antropologia.uniandes. edu.co/cv.php/16/index.php ² http://antropologia.uniandes.edu. co/cv.php/16/index.php ³ http://publicacionesfaciso.uniandes.edu.co/descargar.php?f=vr/Tecnologias_indigenas.pdf

Antropólogo Universidade Nacional da Colômbia. Mestre e Doutorando do programa de História Cultural no IFCH-UNICAMP. Bolsista CNP.

Alexander Herrera é professor da Universidade de Los Andes, em Bogotá, Colômbia e este seu livro foi publicado em 2009 pela editora dessa instituição. Herrera leciona sobre arqueologia; formou-se em universidades do Peru e da Inglaterra, sua linha de pesquisa está centrada, segundo CV institucional¹, em “paisagens culturais e identidade social”, “sociedades complexas dos Andes Centrais” e “tecnologia indígena” e possui várias publicações nestas áreas². Para escrever essa resenha foram lidas tanto a versão em pdf que está disponível on-line³, como o texto físico, enviado pelo autor ao LAP, Laboratório de Arqueologia Pública da Universidade Estadual de Campinas (a numeração das paginas é diferente em cada versão e, portanto, nas citações usadas nesse texto).

No texto a resenhar, logo de início Herrera aponta: Nuestra revisión de estas críticas no pretende ser una “arqueología del desarrollo” (Agrawal, 2002). Deseamos, más bien, mostrar los caminos por los que podría perderse una bien intencionada arqueología para el desarrollo, antes de abordar la recuperación de tecnologías indígenas como un posible camino para profundizar y ampliar las libertades de individuos latinoamericanos, específicamente, del campesinado andino. Es decir, mostrar las vicisitudes de un desarrollo en el sentido propugnado por Sem (vide infra) (Herrera 2009:11).

A diferença que Herrera estabelece entre arqueologia do desenvolvimento e arqueologia para o desenvolvimento é parte da estrutura desse livro. É sua posição política. O que veremos é como o texto aponta corretamente, em termos de crítica, à noção de desenvolvimento, e como redefini-la para beneficio de pessoas que, no cotidiano, resultam atingidas física e culturalmente pelo uso e aplicação de modos de produção, e pela preservação e reprodução, sempre violenta, sempre em favor de um status quo, dos modelos socioeconômicos

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contemporâneos que estruturam, e exercem o controle do poder no mundo globalizado. Mas esse ponto será abordado, porque Herrera constrói sua crítica sem se posicionar a si mesmo. Na mesma seção do texto ele acrescenta que: Los múltiples y complejos vínculos entre la tecnología y la sociedad son el objeto de estudio central de una disciplina académica particular: los estudios de la ciencia, la tecnología y la sociedad (ECTS), también llamados estudios en ciencia y tecnología o STS, por su sigla en inglés (Science and Technology Studies). Los ECTS son un campo interdisciplinario emergente que nace como un componente interno, ético y crítico de las ‛ciencias tecnológicas’, como el diseño industrial, las ingenierías y las ‛ciencias de la salud’. (Herrera ídem:14)

Esse campo, a diferença das tecnologias nativas americanas a serem defendidas, e como as tecnologias que são alvo das críticas do autor, é produto do trabalho organizado no campo acadêmico das universidades de países como Estados Unidos, de vários do continente europeu e de alguns asiáticos, todos eles ligados, de alguma forma, no mundo globalizado, com a própria definição, implementação e controle do mundo globalizado. O olhar de Herrera está construído, no que respeita à questão teórica, ao universo multidisciplinar construído desde a sociologia da ciência contemporânea francesa, inglesa e norte-americana ligada ao uso de diversos autores, entre eles, principalmente, Bruno Latour e Michel Callon, autores que ele debaterá no primeiro capítulo, e cujo espírito percorre todo o texto. Porém, essa classe de tecnologias, porque o autor não considera a ideia que as teorias acadêmicas são uma classe de tecnologia, não é considerada no mesmo nível que aquelas criticadas e que, de fato, ele vai usar, entre outras, como profissional e no texto, como parte de sua explicação do porque existem pobres na América Latina e como os arqueólogos podem ajudá-los a ter uma vida melhor, por meio da recuperação de conhecimentos indígenas desenvolvidos há milênios na região andina ligada, hoje em dia, à história e patrimônio nacional peruano, equatoriano, boliviano e argentino (Herrera 2009:9).

O texto de Herrera apresenta um debate em torno das noções e usos de “tecnologia” no presente e, relacionado com ela, do “passado”. O debate gira em torno das aplicações práticas de tecnologias desenvolvidas pelos moradores antigos da região como parte das estratégias socioeconômicas dirigidas a solucionar problemas relativos ao uso da terra e dos recursos naturais, temas relacionados sempre à segurança alimentar e à qualidade de vida de comunidades andinas, indígenas e camponesas no presente. Herrera dedica dois capítulos à discussão teórica e ético-política que liga o pensamento arqueológico com a historiografia latino-americana e a antropologia, seguindo um discurso que vai da tendência clássica processual, debate de correntes filosóficas e antropológicas clássicas que permeiam os debates atuais, passando pelo discurso da arqueologia social peruana e pelas tendências pós-processuais contemporâneas. Mistura-o todo com um

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olhar crítico sobre a Modernidade e as imposições externas sobre a vida das comunidades locais, reproduzindo o tom político próprio do discurso de autores como Eduardo Galeano, sobretudo com respeito ao que à critica, historiográfica e política, das estruturas e dinâmicas econômicas que modulam a vida dos habitantes da região. Nesse quadro, o argumento central gira em torno da noção de “tecnologia”, ao debate sobre desenvolvimento econômico de comunidades pobres, e à controvertida divisão, apresentada pelo autor, entre próprio e forâneo. Os outros três capítulos estão dedicados a três temas principais, a saber, técnicas agrícolas, pecuárias e agroflorestais, nos quais o autor faz uma viagem pela região andina que compreende quatro nações e vários milhares de anos. Cada capítulo resgata estudos arqueológicos, registros etnográficos e bibliografia histórica sobre o tema e a região escolhida, e os leva para discussão com problemas das comunidades do presente e as políticas econômicas públicas. A exploração temática das tecnologias antigas nativas serve para construir o argumento do autor que tenta, ao longo da obra, sustentar a ideia de que as tecnologias nativas, desenvolvidas para solucionar problemas locais, podem dar uma melhor resposta aos problemas do presente do que aquelas produzidas por agentes “externos” a essa história e região, causando, desta forma, a destruição da paisagem, o empobrecimento da região e mantendo a situação socioeconômica adversa dos seus habitantes. No que respeita ao tom do discurso do livro, o texto caracteriza-se pelo olhar crítico do autor sobre a modernidade, aplicado por meio duma reflexão sobre o passado e pela desconstrução da noção de tecnologia como dos seus usos sociais no presente. Expõe-se nele a possibilidade de usar o passado por meio de uma justificativa ética, ou seja, da apropriação de diversas soluções tecnológicas desenvolvidas em tempos pré-colombianos, e recuperadas – neste livro, o passado pode ser recuperado – a partir de diversas fontes, sugerindo como tal passado, representado pelas tecnologias recuperadas, pode ser usado para formular soluções para problemas concretos, próprios das populações, marginais, marginalizadas ou pobres do presente, na América Latina. Esta proposta que está bem explicada nesse parágrafo e, evidentemente, não está construída sobre teorias contemporâneas pós-processuais nem na arqueologia social, mas na linha política que deu primazia às correntes teóricas que geram conhecimentos úteis na planificação das políticas estatais (Trigger 1992:292-298), também revela a verdadeira face detrás do tom ambiguamente humanista e científico: El estudio arqueológico y antropológico de las tecnologías agrícolas andinas antiguas y tradicionales surge en la década de 1980, en el contexto de las emergentes críticas a los modelos de desarrollo agrícola enfocados en el volumen y el valor monetario de la producción (CEPAL, 1965; UNACAST, 1973: 115-135). Esta búsqueda de alternativas constituye el foco de investigación más antiguo y dinámico dentro del campo de la recuperación de tecnologías indígenas. Sin embargo, los niveles de inversión en el campo de las tecnologías autóctonas permanecen muy por debajo de la inversión institucional frente al estudio de la adaptación de técnicas foráneas, como el cultivo de especies genéticamente modificadas, el riego por aspersión y la mecanización industrializada

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O texto está destinado, segundo o autor, a um público variado, maior do que o reduto normal de estudantes e pesquisadores do campo da antropologia e da arqueologia, mas a narrativa e a forma erudita de citar e argumentar leva a pensar que o círculo de leitores é o acostumado para este tipo de livros. A sua proposta traz sim um olhar que incorpora (como pano de fundo do discurso ético e político) uma visão popular da história e cultura da região. Com efeito, as propostas éticas e políticas do livro giram, sem enuncia-lo, ao redor da visão de passado construída sobre o modelo popular de “América Latina”. Esta noção toma sua forma particular no período após a finalização das guerras de Independência do século XIX e o começo dos conflitos derivados das empresas neocoloniais dos Estados Unidos e da Europa. A noção logo seria sistematicamente explorada e usada como fundamento do discurso nacionalista durante o convulsionado período que vai de 1920 a 1950. Contudo, essa “América Latina” que reconhecemos no texto de Herrera é aquela surgida após a Revolução Cubana. Esse projeto político que se tornou popular pela difusão da revolução midiática global e junto com fenômenos como o sucesso editorial e de marketing da literatura em espanhol, espaço privilegiado de representação da região como universo cultural, que tomaria formas concretas durante a Guerra Fria, no discurso e políticas destinadas a esta zona que seria definida pelo discurso histórico-cultural imbricado, ou, no que se refere à esfera econômica, como dependente, como Terceiro Mundo, como subdesenvolvida. Discursos que foram incorporados não só na estrutura interna do Estado como na construção dependente das suas relações com o exterior. Contudo, esses discursos tornaram-se bandeira identitária de moda, popular, midiática, mas também dentro e fora das escolas e universidades que formaram seus cidadãos. Nesse contexto, pensamos que o coração da proposta de Herrera para pensar e usar o passado que caracteriza esse livro pode ser encontrado em dois parágrafos. Eis o primeiro: A diferencia de la mayoría de textos arqueológicos, el objetivo central de este libro no es responder preguntas acerca de lo que sucedió en el pasado. Más bien buscamos aprovechar las prácticas tradicionales en torno a la materialidad del pasado, en especial el uso productivo intensivo y coordinado de microambientes dispersos que tanto asombrara a los primeros europeos como inspiración. El objetivo es abordar los vínculos entre las políticas de desarrollo formuladas a partir de los restos materiales del pasado, la inseguridad alimentaria..., el pobre manejo del agua. Del suelo y de los bosques de los Andes, y las identidades campesinas.

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Temos dois assuntos a tratar a partir deste trecho. Por um lado, ver como se define o uso do passado, representação produto do arqueólogo que se define como científico antes que como intérprete (cf. Binford 1980:4-19), mesmo que moralmente louváveis. De outro, ver como o autor estabelece as políticas públicas de uso do patrimônio e da história sob o olhar diferenciado do profissional, que cimenta sua autoridade como leitor privilegiado – mesmo que com boas intenções – do passado (cf. Binford 1991:28-40). Em primeiro lugar, parece claro que o autor, mesmo se situando no universo da arqueologia pós-processual e social latino-americana – Herrera pisca um olho para Luis Guillermo Lumbreras - faz uso, na sua base prática, do

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passado seguindo a linha teórica de clara tradição norte-americana e inglesa. O passado não só pode ser recuperado pelo arqueólogo, mas, neste caso, usado como fonte de conhecimentos a serem aplicados, fora de contexto, como parte de um debate no presente. Seu valor patrimonial e histórico é derivado da sua utilidade econômica e sua justificativa ética derivada da política. O arqueólogo torna-se relevante porque gera, pela recuperação científica do pretérito, conhecimento que permite operar sobre o mundo físico. Nesse caso, o fato de ser conhecimento produzido pelos “nossos” antepassados, valoriza ainda mais sua função pública como intelectual, como acrescenta o valor do trabalho e conhecimento dos povos indígenas já extintos e, derivado disso, redime a história “não contada” de uma região onde os “erros históricos”, como, por exemplo, não usar técnicas agrícolas ou pastoris pré-colombianas, gera e a mantém na sua condição de subdesenvolvida. Em segundo lugar, mesmo situando-se no universo crítico das arqueologias contemporâneas, esse argumento de Herrera está ligado mais à visão de autores como Binford do que aos pós-processualistas. O arqueólogo interpreta o registro arqueológico, a história, ciência usada como “auxiliar” nesse sentido, fornecedora de dados complementários para explicar o passado. Mas o arqueólogo é quem decide quem fala. Herrera segue a lógica metodológica da área onde o arqueólogo é quem sabe como reconstruir o registro arqueológico e explicá-lo, inclusive aos próprios agentes que o produziram. Nesse sentido, tanto o presente como o passado, como atuado e lembrado pelos agentes humanos, está mediado pela cultura, que tudo o deforma. Inclusive, quando se admira a cultura estudada, admira-se a cultura pelas lentes do pesquisador. O arqueólogo, com ou sem visão social e política, é quem pode fornecer tanto da explicação do que aconteceu no passado como de fornecer as soluções a problemas sociopolíticos no presente. O segundo parágrafo que, para nós, distingue a proposta de uso do passado de Herrera é o seguinte: En suma, el estudio de las tecnologías tradicionales se plantea en este trabajo como un aporte a la construcción de estrategias de desarrollo basadas en la valoración del legado histórico propio. Coincidimos con Arocena y Senker (2003) en que Latinoamérica es pobre porque han desaprovechado las ventajas tecnológicas existentes, haciendo esfuerzos desmesurados por importar tecnologías foráneas antes que construir sobre bases propias (Herrera. 2009:9).

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Em primeiro lugar, pode-se examinar a forma de Herrera se apropriar do passado indígena por meio da expressão “tecnologias tradicionais” que se imbrica com a visão de História do autor. Com efeito, mais além de saber se há um elo entre essas populações e nós, somos nós, no presente, que reivindicamos o passado dos conquistados e exterminados como “nosso”, ou seja, dos latino-americanos. Temos, portanto, que esse botim de guerra é reinterpretado como uma bandeira de reivindicação nacionalista que, na lógica do modelo que reprisa o modelo de vilão dos livros de ensino de história, condena aqueles que, de fato sendo os nossos “antepassados”, beneficiaram-se da empresa colonial como da independentista. Isto não resulta coerente com a ideia de “valoração do

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legado histórico próprio” que, neste caso, está ligado, como no caso dos países da região, à exploração e apropriação das terras e recursos por parte dos filhos (e seus filhos, etc.) dos imigrantes europeus, asiáticos, africanos e americanos neste continente. Eles são parte do legado histórico. Porém, no esquema tradicional da História, instrumentalizado no conceito racial e cultural dominante e homogeneizante, usado por ambos os membros dos polos ideológicos e políticos tradicionais, instrumentalizado como eixo da noção de “América Latina”, exprimido comumente em termos como “criollo”, “tropical”, “latino”, “mestiço”, eles tornam-se os outros, os diferentes, invasores, imigrantes e importadores de tradições e tecnologias “forâneas”. Em segundo lugar, a justificativa de que a pobreza na região existe pelo fato do desaproveitamento das vantagens tecnológicas existentes também deriva desta particular perspectiva histórica adotada pelo autor. Nessa ótica, os indígenas continuam a ser considerados como seres quase mitológicos, cuja cultura sábia, nativa e natural sempre é fonte de inspiração para o resgate desse tóxico mundo moderno, por um lado; de outro, porém, estão de novo sendo condenados a não falar com sua própria voz, nem poder decidir de que forma viver, nem se apropriar de conhecimentos “externos” à sua cultura sem ajuda e condescendência dos especialistas, que parecem sempre ir, pelo contrário, com a imposição de fazerem eles “conservar” sua cultura. O que resulta também curioso, porque Herrera não debate a utilidade das tecnologias estrangeiras que ele usa, ou seja, sobre as ferramentas que lhe permitem gerar conhecimento para explicar e usar o passado no presente. Só critica aquelas evidentes, cuja maldade parece apoiar a visão da tecnologia e do desenvolvimento associadas nos discursos populistas ao imperialismo no presente. Porque, alias, deve resultar de mau gosto constatar que as tecnologias que ele resgata foram produto do trabalho humano organizado e submetido ao poder imperial dos Incas. Os três seguintes capítulos tratam de tópicos concretos, uma recompilação de estudos expostos em forma de crônicas, que exploram concretamente as tecnologias agrícolas e pastoris desenvolvidas pelas diversas ocupações humanas do passado na região andina, bem como seu impacto na paisagem, sua preservação e uso no passado e presente agora propriedade da Bolívia, Equador, Peru, Chile e Argentina. Caracterizam-se esses capítulos porque Herrera não debate a relação entre poder, política e tecnologia no passado pré-hispânico. A representação que Herrera faz do passado indígena se movimenta de forma algo incomoda entre o uso do discurso e olhar tradicional da arqueologia e o tom humanista que ele delineou nos primeiros capítulos. Por um lado, se configura nos padrões da arqueologia processual, estabelecendo a sua base na relação econômica entre população, meio ambiente e adaptação. Mas, pelo outro, no quesito histórico, a tonalidade do discurso está dada tacitamente, no que respeita aos tempos pós-colombianos, pelos estereótipos historiográficos de vítima e algoz, aplicados e reconstruídos sobre o discurso de pesquisas etnohistóricas e arqueológicas cujo tema é o mundo andino, ligado aos tempos imperiais, apenas se contrasta os jogos de poder em tempos pré-colombianos com aqueles da época de contato, dos tempos coloniais e republicanos. Por estar focalizado no presente, Herrera faz uma viagem no tempo, de escala milenar às vezes, às vezes centenária, mas sempre olhando para o “presente etnográfico” (uma etnografia, por sua vez, tipicamente colonialista),

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pois nesse espaço de trabalho, é esse presente o que está em questão no livro. Por sua vez, sem tentar construir um elo de continuidade ou de progressão no sentido da sociologia nonocentista que ele critica, Herrera se desloca também espacialmente pela cordilheira dos Andes, comparando os aportes de diversos grupos humanos às diversas práticas pecuárias ou agrícolas, desde o tempo em que a arqueologia permite entender que, nesses lugares, os grupos humanos começaram a domesticar plantas e animais. A transformação da paisagem é um aspecto importante do texto, pois é o espaço transformado por fatores antrópicos o que, evidentemente, estabelece o elo entre passado e presente. É a propriedade da terra e sua exploração o centro desta história regional. Com efeito, o território e a territorialidade, entidades que definem o lugar dos indígenas e sua cultura no presente como em tempos coloniais e pré-coloniais, é o fator central da noção de soberania, sistema econômico, modos e meios de produção e, portanto, de História, que aparecem como temas recorrentes nos estudos das formas modernas de estado nacional. A história nacional e regional incorporada no sistema legal, como na nossa memória social, reelaborada e reapropriada por diversos campos sociais ao longo desses 200 anos de republicanismo, define aquela palavra usada por Herrera frequentemente, o forâneo, palavra que no presente marca verdadeiras guerras pela propriedade da terra e dos recursos como da própria noção de soberania nacional.

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As técnicas agrícolas e pecuárias são a joia do livro. Elas aparecem reconstruídas a partir dos dados obtidos por múltiplas pesquisas arqueológicas e historiográficas, associadas discursivamente sobre um esquema temporal amplo, que culmina em um “hoje” em construção. Presenciamos por meio da narrativa de Herrera a recuperação de conhecimento do mundo, na forma do universo físico andino transformado, transformações que perduraram no tempo, ou como uma série de ensaios com seres vivos em relação com problemáticas e respostas, descritas nos termos próprios do economicismo característico da teoria ecologista processual, às condições da paisagem, do clima e das próprias tradições dos grupos humanos andinos, muitas das quais parecem perdurar hoje em dia. Uma das técnicas mais interessantes é a presença de canais de irrigação e de montículos de terra feitos nas beiras dos rios com o propósito de controlar as enchentes ou/e aproveitá-las. Pouco ou nada é dito no texto sobre o quanto de trabalho humano envolve a técnica, ou como se envolvia a população na manutenção dos diversos sistemas de irrigação. O que é mostrado são as vantagens decorrentes do seu uso. Com respeito ao uso de sementes ou da criação de mamíferos também não se fornecem explicações sobre as relações de poder, ou de conhecimento envolvidas no seu uso, os problemas derivados da criação de animais ou do consumo de produtos alimentícios. Por um lado, o autor não parece reparar na ironia, mesmo que leve, de criticar a importação de tecnologias estrangeiras nas Américas, por meio de ferramentas teóricas e práticas desenvolvidas no mesmo espaço que dá lugar às críticas ao mundo moderno. Com efeito, sejam elas ideias e práticas ligadas às escolas processuais ou não, à arqueologia social de Lumbreras, à teoria do Amartya Sem ou aos ensaios de Eduardo Galeano, é evidente que as teorias,

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desenvolvidas fora da região, na Europa e nos Estados Unidos ou na Índia, a Arqueologia, a Economia, e a Historiografia, entre algumas das disciplinas utilizadas por Herrera, resultam, quando adaptadas às condições locais, uma chave útil para “ter acesso” ao passado e recuperá-lo para as populações carentes do presente. Pelo outro, os americanos antigos e modernos deste livro não são olhados como seres humanos, mas como representações idealizadas deles, seja como os vilões iludidos que acreditam na salvação e progresso da humanidade com ajuda das máquinas, ou de vítimas cujo conhecimento, diferente dos vilões criticados, nada tem a ver com as estruturas de poder e jogos políticos da época, carecem de defeitos e interesses, elementos que quiçá não aparecem porque não podem ser observados no registro arqueológico. Mesmo se tratando do território do império Inca, cabe anotar que o olhar arqueológico e histórico característico do texto retrata os habitantes da América précolombiana como bons selvagens. Com efeito, tanto os destinatários do texto como os representados nele, não aparecem mais do que como vítimas da História em uma representação que sequer conta com o toque paródico dos americanos do Candido de Voltaire (cf. 1759). Assim, o arqueólogo, sempre com boas intenções, apresenta-se como administrador do passado, como interlocutor válido dos excluídos. A proposta não parte, como vemos, das comunidades que precisam solucionar, evidentemente, suas necessidades, nem são elas as que exigem que as tecnologias sejam as mesmas que aquelas dos seus “antepassados”. Quem estabelece o valor e a utilidade econômica do passado, e que passado recuperar, é o arqueólogo. O arqueólogo define quem somos nós e quem somos “nós” e quem os outros são, não por meio da definição de “forâneo”, mas pelo recurso e escolha ideológica do discurso histórico e econômico e, aliás, pela similitude de se apropriar do conhecimento indígena, prática que na atualidade acontece por parte de grandes empresas dedicadas a patentear sustâncias químicas úteis para diversas manufaturas. Faltou também o estudo de como e com a ajuda de quais tecnologias modernas também poderiam colaborar na dissolução dessas desigualdades apontadas por Herrera.

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BIBLIOGRAFIA BINFORD, Lewis. 1980. Willow smoke and dog’s tails. Hunther-gatherer settlement systems and archeological site formation. American Antiquity. Vol. 45. No. 1 BINFORD, Lewis. 1983. Em busca do passado: a descodificação do registro arqueológico. Europa-América. Portugal. TRIGGER, Bruce G. 1992. Historia del Pensamiento Arquelógico. Ed. Crítica. Barcelona. VOLTAIRE. 1759 (2012). Candide ou L’Optimisme. E-Book. Archive.org.

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RESENHA GONÇALVES, Cristiane Souza. Restauração arquitetônica: a experiência do SPHAN em São Paulo 1936-1975. São Paulo: Annablume, 2008.

Tami Coelho Ocar

E-mail: [email protected]

Graduanda em História pela Universidade Estadual de Campinas e colaboradora do Laboratório de Arqueologia Pública Paulo Duarte – NEPAM/Unicamp.

Formada pela Universidade Federal do Espírito Santo, a arquiteta Cristiane Souza Gonçalves se especializou em Patrimônio Arquitetônico: Teoria e Projeto pela PUC – Campinas, no ano de 1999. Em 2004 fez seu mestrado em Arquitetura e Urbanismo, pela FAU - USP, sob a orientação da Profa. Dra. Maria Lucia Bressan Pinheiro. Tornou-se doutora em 2010, também sob a tutela de Bressan Pinheiro, seguindo o mesmo programa. Atuou como colaboradora da Kruchin arquitetura desde 1999. Atualmente trabalha na Coordenação-geral de Pesquisa e Documentação do IPHAN. A publicação de “Restauração arquitetônica: a experiência do SPHAN em São Paulo 1936-1975” é fruto de sua dissertação de mestrado. Neste livro a autora analisa o trajeto de algumas das intervenções de restauro realizadas pelo SPHAN – Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – durante o período compreendido entre 1937 e 1975, época em que a diretoria do órgão paulista estava a cargo do engenheiro arquiteto Luis Saia, sucessor de Mário de Andrade. Para isso, a ela se utiliza de quatro exemplos de intervenções: na década de 30 foi selecionada a Igreja de São Miguel Paulista - tombada em 1938 pelo IPHAN, na década de 40 foi a restauração do Sítio e Capela de Santo Antônio - tombados em 1941 pelo IPHAN; a Casa de Câmara e Cadeia na década de 50 - tombada em 1955 pelo IPHAN.; e por fim, na década de 60, ela escolheu tratar sobre a Fazenda Pau D’Alho - tombada em 1968 pelo IPHAN. Gonçalves divide seu livro em duas partes, sendo que primeiramente ela trata desde os primeiros sentimentos de preocupação quanto à defesa do patrimônio cultural brasileiro, que começaram a surgir no século XVIII; até o nascimento do SPHAN, então sob a tutela de Mário de Andrade, mostrando através de cartas e documentos como se deu a criação de um órgão de proteção ao patrimônio cultural nacional e, no geral, como sucederam as primeiras ações em defesa desses bens nacionais. Ela então analisa a fase heroica de Luis Saia em São Paulo, para finalmente poder tratar, na segunda parte, as obras escolhidas por ela. O estudo de cada bem foi dividido em duas etapas: preliminar – investigações, prospecções e pesquisas históricas, sendo essas documentais e orais, em torno do bem –; e executiva – que consiste em projeto, plano de obras e procedimentos de trabalho.

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Ela começa tratando sobre a restauração da Igreja de São Miguel Paulista (1939 – 1941). Construída no século XVII, foi considerada por Mário de Andrade um documento importante da arquitetura paulista e “uma das relíquias históricas do Estado” por ser uma das poucas igrejas com alpendre frontal. Juntamente com o Convento de Embú, a intervenção à igreja inauguraria o modo que Luis Saia utilizaria para restaurar os bens de sua época de direção do SPHAN: a ideia de retomar o “original” através de métodos tradicionais paulistas. No caso da Igreja de São Miguel essa técnica foi utilizada apenas no corredor lateral, porém é o “ponto de partida” desse modo de restauro utilizado por Saia, que pretendia manter as paredes de taipa, retirando inclusive o apoio delas, feito de alvenaria de tijolos e que lá estava desde uma reforma anterior. Para substituir os tijolos ele inaugura um procedimento: decide inserir uma estrutura de concreto armado para reforçar as paredes de taipa. A partir daí o SPHAN passa a utilizar amplamente esse método de intervenção, dentro e fora de São Paulo. A autora salienta que a escolha do concreto deu-se, sobretudo, por uma questão de mostrar a modernidade. Porém, apesar do desejo de Luis Saia de que a Igreja se mantivesse “original”, ela nunca voltaria a ser o que era, pois qualquer intervenção que se fizesse – ou que se faça – estaria repleta de conceitos contemporâneos, tanto materiais quanto morais. Após tratar da Igreja de São Miguel Paulista, Cristiane Souza Gonçalves aborda outra intervenção que também empregou novas técnicas de trabalho: a restauração da casa-sede e capela do Sítio Santo Antônio, que se deu entre os anos de 1940 a 1947. Esse conjunto, localizado em São Roque, encantou Mário de Andrade, por sua “monumentalidade paulista”, seu valor artístico e, sobretudo, histórico– o complexo foi construído por volta de 1681. Encontrada em ruínas, o seu processo de restauro foi um desafio para os técnicos do SPHAN. As principais intervenções foram: demolição da casa do Barão, que ficava ao lado da casa-grande; reconstituição do alpendre frontal da capela e a reconstrução da ala esquerda à casa-grande. O concreto armado foi também amplamente utilizado nessa intervenção, tanto nas vigas e pilares, utilizados como esqueleto nas consolidações de taipa já existente, quanto na ala da casa-grande, sendo que para essa reconstrução foi utilizado o concreto ciclópico, que apresenta semelhanças com a taipa, tanto em relação à execução quanto ao aspecto final. Outra novidade que marcou essa intervenção foi a elaboração de uma maquete de estudos da capela. A terceira restauração escolhida foi a da Casa de Câmara e Cadeia de Atibaia (1958 – 1961), que na década de 50 sofria a iminência de ser demolida. A autora destaca que é pequena a quantidade de documentos sobre esse bem, se comparado aos outros prédios estudados, o que pode ser explicado pela pressa que se teve em tombá-lo, pois o SPHAN não teve tanto tempo para fazer uma pesquisa minuciosa a cerca do edifício - tendo em vista que o prédio estava prestes a ser demolido -, e isso acabou por acelerar a burocracia interna para seu tombamento. Logo, sem essa pesquisa, foram necessárias prospecções no local para que se pudesse reformar, sendo que as escavações poderiam levar a considerações errôneas sobre a arquitetura do bem. Para que isso fosse resolvido da melhor maneira, Luis Saia conduzia as prospecções a partir de suas proposições de restauro, tornando assim, a restauração numa reconstrução, pois, devido à ausência documental, Saia acabou por transformar a Câmara e Cadeia em um prédio de aparência colonial, mandando inclusive demolir a torre

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sineira e remover os revestimentos externos, frutos de uma reforma passada. Isso se deu por que ele afirmava que a construção era de taipa, e sendo de taipa não era passível de tais liberdades de reforma, o que acabou por gerar uma série de discussões sobre o material – tijolo ou taipa - que poderia ter sido utilizado para a construção da Casa de Câmara e Cadeia de Atibaia. Apenas no ano 2004 foram feitas prospecções mais profundas que identificaram os materiais: parede externa de tijolos, com um vão no meio preenchido com pedras, cacos de cerâmica e terra; parede interna, da antiga cela posterior, em taipa de pilão; e parede interna do pavimento superior, junto à escada, de pau-a-pique. A autora afirma que havia um sentimento de negação quanto à possibilidade de ter-se utilizado tijolos para a construção do prédio, pois “reconhecer a presença dos tijolos seria enfraquecer a ideia do monumento colonial que se queria restaurar” (2008: 153). Essa repulsa ao modelo eclético não era exclusivamente paulista, mas sim permeava, no geral, os trabalhos da diretoria em todo território nacional. Assim, diferente dos outros dois exemplos de intervenções já citados, a importância e a escolha dessa “reconstrução” se deu, sobretudo, pelo modelo estruturador que permeava as ações do SPHAN, e não tanto por conta das análises técnicas. Como último monumento escolhido, Gonçalves discorre sobre a intervenção feita à Fazenda Pau D’Alho (1969 – 1975). Localizada no Vale do Paraíba, essa construção típica das primeiras residências cafeeiras causou uma forte impressão na direção da regional, fosse por sua monumentalidade, pela paisagem ou até mesmo pela qualidade de seu conjunto arquitetônico; e, apesar de ter sido inventariada em 1942, só passou por uma intervenção após o seu tombamento, em 1968. Infelizmente a fazenda sofreu uma forte deterioração durante esses 30 anos em que “aguardou” para ser tombada. Dentre os principais danos que a fazenda sofreu durante esse longo período de negligência estavam o desaparecimento da tulha e da roda d’água, que em 1942 já apresentavam apenas as fundações, e a deterioração quase completa da senzala, casa do administrador e depósitos. Logo, as ações básicas realizadas na Fazenda Pau D’Alho foram as “reconstruções” das dependências desaparecidas e a consolidação dos segmentos que, de forma precária, ainda se mostravam visíveis. Foi novamente utilizado o concreto ciclópico para a reconstituição dos locais que originalmente haviam sido construídos em pedra argamassada como os embasamentos da casa sede, tulha, roda d’água e a escada de acesso a senzala. Já para as estruturas de pau-a-pique - utilizado praticamente de forma integral nas vedações - optou-se por uma reconstituição através de materiais similares, sendo o preenchimento do núcleo feito com tijolos dispostos em “espelho” e argamassa de cimento. A autora afirma que é impossível distinguir as estruturas originais das reconstituídas após os acabamentos de revestimento e pintura, apesar das intervenções terem sido feitas com materiais diferentes dos utilizados na construção do prédio, pois estas acabavam por ter o mesmo tratamento que era utilizado nas estruturas remanescentes. Por fim a autora destaca quatro noções que ela considera fundamentais para uma discussão mais atenta, a fim de identificar as características da diretoria de Luis Saia no SPHAN, em relação aos processos das quatro intervenções estudadas. São elas: noção de unidade estilística; diferenciação dos materiais utilizados nas intervenções; a visão modernista e as ações do SPHAN; e, por último os procedimentos específicos de trabalho da regional paulista. No primeiro

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ponto a autora afirma que o pensamento violletiano teve forte influência na regional paulista do SPHAN. Como exemplo disso temos o Sítio Santo Antonio, onde se recuperou o conjunto do século XVII – refazendo a ala desaparecida da sede - e suprimiu-se o que era posterior – a casa do Barão, feita no século XIX. Outro componente vital do pensamento de Viollet-le-duc e que foi aplicado pelo SPHAN é a busca pelos “modelos abstratos”, que se deu através de um estudo sobre a arquitetura do período colonial, a fim de se recuperar aquilo que estava perdido. Essas pesquisas trouxeram maior entendimento sobre o tema da produção arquitetônica colonial paulista. Apesar disso Gonçalves afirma que apenas esses estudos não foram o suficiente para conhecer historicamente como era o edifício em si, mas sim apenas a arquitetura tradicional, fazendo com que o prédio restaurado, por fim, se distanciasse da sua realidade histórica. Além de Viollet-le-Duc, tivemos também Camilo Boito, teórico do século XIX, influenciando a regional paulista do SPHAN, através de seu pensamento de mínima intervenção à obra, a fim de garantir sua integridade e autenticidade. Como exemplo disso tem a Igreja de São Miguel Paulista – onde foram reparados os elementos internos não artísticos e consolidadas as taipas. Na parte de diferenciação dos materiais utilizados nas intervenções, Cristiane Souza Gonçalves discorre sobre o uso intensivo do concreto armado por parte de Luis Saia, que pode ser explicado tanto pela teoria de Boito – em que ele afirma que o material para restauração deveria ser diferente do material original, para que se pudesse distinguir a intervenção realizada da obra já existente, evitando, assim, a perda de autenticidade do documento (2008: 194) - quanto pode ser explicado também pelo pensamento violletiano, o qual explica que nas restaurações deve-se substituir a parte retirada por um material mais resistente, afim de que a vida-útil do monumento seja mais longa, e também que se desse um melhor acabamento. Com isso temos o embate entre a caracterização do original para o restauro versus a unidade de conjunto. No final as diferenciações, restritas apenas nas estruturas dos prédios, foram “encobertas” pela unidade formal e estilística colonial, que se deu através de camadas de revestimento e pintura. Logo, a primeira vista, nem se percebe que houve uma intervenção. Com isso, a autora chega ao terceiro ponto: a visão “modernista”, que através dessas restaurações feitas de concreto e baseadas em Viollet-le-Duc e Boito, conduziriam a produção arquitetônica a partir daquele momento. O uso do concreto armado, a valorização do traço geométrico e o resgate ao modelo colonial foram as principais ações modernistas do SPHAN. Enfim, Gonçalves destaca alguns procedimentos específicos utilizados nas quatro intervenções estudadas e que passariam a constituir um modo de trabalho singular da regional paulista. Ela ressalta, em primeiro lugar, o fato de que as etapas de projeto e pesquisa não foram claramente definidas, sendo ambas realizadas totalmente e preliminarmente ao início das obras. Isso é absolutamente justificável, pois a restauração do patrimônio arquitetônico, dada através do SPHAN, era então um pioneirismo no Brasil. Apesar disso os trabalhos seguiram uma sequência de procedimentos específicos, sendo que estes se repetiriam a cada obra iniciada pelo SPHAN. Essa aproximação da diretoria do órgão com Viollet-leDuc, através da tentativa de estabelecer uma sequência de trabalho, também é um ponto crucial na metodologia da regional paulista. Outro procedimento - possivelmente inaugurado pela regional – foi a utilização de concreto armado na estrutura das obras. Por fim, ela ressalta que essa época do SPHAN trata-se de um período de pioneirismo na história da arquitetura brasileira, principalmente

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pelo fato de não ter-se cumprido uma metodologia específica de trabalho, dadas as dificuldades das condições da época, do acesso aos arquivos documentais e, portanto, uma dificuldade maior para intervir às edificações. Durante todo o livro a autora faz um percurso minucioso através de seu recorte histórico escolhido. Descrevendo detalhes dos edifícios e suas técnicas de restauro, se utiliza muitíssimo bem de diversos tipos de fontes, sobretudo de fotos, plantas, cartas, arquivos e entrevistas. Para se aprofundar melhor em questões físicas da arquitetura ela utiliza-se de obras básicas, como Restauração, de Violet-le-Duc; e Os Restauradores, de Camilo Boito; até bibliografias mais específicas da arquitetura paulista, como por exemplo, Evolução urbana de São Luis do Paraitinga, do próprio Luis Saia; e Construções de taipa – alguns aspectos de seu emprego e da sua técnica, monografia de Carlos Borges Schmidt. Com muita habilidade ela mantém um diálogo entre o leitor e o SPHAN do início do século XX, sempre citando os documentos em que pesquisou, sobretudo as cartas trocadas entre Luis Saia e seus colegas - que mostram muito bem o pensamento moderno da época – e fontes iconográficas. Isso além das ótimas plantas do edifício, onde nos é mostrado um “antes e depois”, o que facilita muito o entendimento das construções e as intervenções sofridas. Na última parte Gonçalves faz uma comparação interessante, colocando duas fotos de cada prédio, uma tirada antes da intervenção – pelo SPHAN -, e outra foto mais atual. Assim ela nos mostra que existem muitas diferenças entre o antigo e o que passou por intervenção, por mais que Luis Saia desejasse manter o original. Esta obra é excelente e indispensável para qualquer pessoa que deseja obter alguma formação em patrimônio histórico e cultural, sobretudo quanto às intervenções e modelos de restaurações dos primórdios do SPHAN.

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E N T R E V I S TA Patrimônio cultural e processos educativos: uma conversa com Elizabete Tamanini Elizabete Tamanini Entrevistada

Professora da Universidade da Região de Joinville. Atualmente dedica-se ao pós-doutorado na UNICAMP.

E-mail: [email protected]

Gabriela Berthou de Almeida – Mestranda em História pela Unicamp. E-mail: [email protected]

Entrevistadores

Rúbia Caroline Sousa de Moraes – Graduanda em História pela Unicamp. Email: [email protected] Victor S. Menezes – Graduando em História pela Unicamp. E-mail: [email protected]

RESUMO

Na presente entrevista o leitor encontrará discussões sobre Patrimônio cultural, bem como acerca dos processos educativos realizados em museus ou em parceria com os mesmos. O texto aborda também a trajetória e os projetos desenvolvidos por Elizabete Tamanini. Palavras chave: Educação; Museus; Patrimônio Cultural.

INTRODUÇÃO

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Elizabete Tamanini é doutora em Educação pela Unicamp, com enfoque nas áreas de Sociedade e Cultura. Atua há mais de 25 anos em programas de educação não formal em museus e espaços culturais. Atuou como gerente de Patrimônio cultural na Fundação Cultural de Joinville/SC de 2009 a 2011, onde estabeleceu como prioridade a criação de políticas públicas para a cultura e a educação patrimonial. Possuí experiência e pesquisas nas áreas de educação/ formação, educação popular, educação e direitos humanos e educação e Patrimônio Cultural, com foco em processos não formais. Implantou o programa de educação do Museu Arqueológico de Joinville, recebendo por esta ação o prêmio Rodrigo de Mello Franco do Ministério da Cultura. Atualmente é professora da Universidade da Região de Joinville (UNIVILLE) e dedica-se ao pós-doutorado na Unicamp. Na entrevista que se segue, Tamanini se posiciona acerca das possibilidades de atuação das instituições vinculadas ao Patrimônio cultural, sobretudo os museus, nos processos educativos. Além disso, a entrevistada expõe sua opinião sobre as perspectivas atuais para os projetos relacionados à educação, que envolvem Patrimônio, cultura material e Arqueologia.

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Entrevistadores: Para começar, gostaríamos que a senhora falasse um pouco sobre sua trajetória enquanto educadora e pesquisadora. Quais foram os caminhos que te levaram a trabalhar e elaborar projetos sobre Arqueologia, Patrimônio e Cultura material?

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Elizabete Tamanini: A minha inserção nas questões do Patrimônio Cultural e na Arqueologia Pública com centralidade na Educação nasceu na década de 1980, quando iniciei um estágio no Museu Arqueológico de Sambaqui de Joinville/MASJ. Neste momento eu também atuava como professora da Rede Pública de Ensino, no ensino fundamental. A partir das atividades desenvolvidas no ensino formal e no atendimento educativo do MASJ, comecei a observar as relações estabelecidas entre Escola e o Museu. Aos poucos fui percebendo quanto o MASJ necessitava repensar os seus processos de atendimento aos diferentes públicos e o quanto as escolas deveriam ser preparadas para irem a uma instituição como esta e tirar dela temas significativos para o processo de ensino-aprendizagem. Nesta fase de iniciação profissional eu não tinha argumentos conceituais da Museologia ou da Arqueologia Pública para construir um repertório pedagógico. As reflexões sobre estas temáticas no Brasil ainda eram incipientes e pouco divulgadas. Desse modo, passei a estudar e pesquisar possibilidades de unir as teorias de ensino-aprendizagem da Educação às práticas educativas no MASJ. A partir de então, fui me envolvendo de tal forma no atendimento educativo e passei a elaborar projetos educativos que gerassem reflexões acerca das exposições do museu e a estudar processos de formação dos professores. De 1989 em diante, me aprofundei no estudo dessas temáticas. Ingressei no Mestrado em Educação na Unicamp para estudar justamente a problemática da educação em museus. Desta experiência acadêmica pude aprofundar meus conhecimentos acerca da história e função social dos museus. Desta imersão conceitual surgiram os conceitos de criação e sistematização de um Programa Educativo no MASJ, cujas temáticas presentes eram: a formação de professores, com um projeto de atendimento integrado, que priorizava temáticas trabalhadas na matriz curricular do ensino fundamental. Fiz um levantamento do público visitante mais significativo e estratégico do Museu desde a sua abertura em 1973. Observei que grupos que estavam no terceiro, quinto e sétimo anos do ensino fundamental eram os que visitavam com frequência o MASJ. A partir daí, deu-se a sistematização das temáticas em projetos de atendimento educativo voltados ao ensino formal. Passamos a problematizar as complexidades presentes nas temáticas das exposições do MASJ, vinculando tais questões as matrizes curriculares. O trabalho passava pela compreensão do que era a História do Município de Joinville a partir da cultura material, observando os processos diversos da ocupação do território por diferentes povos, a começar pelos sambaquianos, até as questões da História do Brasil. Assim, questões da história regional passam a configurar as atividades no campo da escola. Para este caso vale uma observação: havia neste período uma lacuna bastante acentuada em relação à produção de estudos regionais e com um agravante nas temáticas de Arqueologia Pré-colonial. Neste sentido, estas intervenções conceituais do museu vieram corroborar para a implantação de novas abordagens teóricas sobre a ocupação territorial na região do litoral norte de Santa Catarina. Com base nestas diversas atividades e experiências pedagógicas ao longo do tempo o MASJ foi estruturando ações educativas que transcenderam o espaço físico e institucional comum. Assim criaram-se projetos educativos em comunidades, escolas, etc; ora aprimorando estas atividades em sítios arqueológicos, ora organizando exposições e cursos de formação de professores. Então, todo o trabalho, toda a minha construção teórica e metodológica dentro do patrimônio cultural, da cultura material e da Arqueologia Pública vincula-se, sobretudo à educação como processo que dialoga com diferentes áreas do conhecimento e que seu

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objetivo final é a compreensão dos processos sociais e a emancipação do ser humano. Entrevistadores: O que você entende por cultura material escolar? Elizabete Tamanini: Cultura material escolar é para mim o conjunto de fontes documentais, que envolve a história de criação da escola enquanto instituição, toda sua organização e estrutura. Inserido nessa perspectiva, o território onde a instituição foi construída, o prédio; a história das aulas, dos cursos, do processo de formação; os registros como matrículas, boletins, diários, livros, bem como o conjunto de artefatos que reúnem os lápis, as carteiras, os quadros, a lousa. Também vale destacar a dimensão da cultura imaterial presente na organização escolar. Desde a organização das aulas, dos recreios e a relação que é construída entre a escola e a comunidade e o sentido dessa escola para aquela comunidade, para os professores e para o Estado ou ente representado. A Escola para a sociedade de um modo geral, é um lugar de referência, sendo um dos primeiros núcleos de constituição de identidades. É a partir dela que o ser humano começa a ter ideia de sociedade, de organização, de amor, de generosidade, de afeto, de partilha, de coletividade e de individualidade. Assim, ela é um espaço que pode nos levar a uma série de informações e relações com o mundo. Neste lugar há um processo de planejar e organizar o conhecimento, constituído secularmente para ser reproduzido ou construído novamente no processo de ensino-aprendizagem. A escola constitui-se em um relevante patrimônio de referência das memórias sociais, sejam aquelas reproduzidas secularmente, ou ainda estas que a cada instante e a cada momento são construídas e ressignificadas pelo cotidiano escolar.

Entrevistadores: Você pode nos falar um pouco sobre a suas atividades envolvendo educação patrimonial ou Arqueologia Pública, não sabemos como você prefere denominar esse tipo de atividade.

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Elizabete Tamanini: Eu atuo com Educação e Patrimônio, educação em Museus, Educação Comunitária, Educação Patrimonial e Educação não formal há mais de vinte anos. Atualmente eu não estou inserida em um museu propriamente, mas estou atuando nas discussões de cultura material e educação em interface com o patrimônio público. Em relação à Arqueologia Pública, sejam as ações em contextos pré-colonial ou em outras áreas de intervenção, o uso estratégico e sua aplicação é de extrema relevância para a compreensão dos processos sócio-cultuais especialmente para o mundo contemporâneo. Temos vivenciado no Brasil nestas últimas duas décadas ações significativas onde a Arqueologia deixa de ser uma mera prática de escavação de sítios e elaboração de relatórios técnicos. Há, sobretudo, experiências neste campo cujo objetivo tem sido contribuir para a compreensão da vida e do saber fazer das sociedades. A cultura material é compreendida como tema gerador de coisas/objetos bem mais complexos da existência humana. O desafio posto é intervir em realidades e histórias, tendo em vista, os limites presentes na construção do conhecimento a partir de tais artefatos. Ademais há que se considerar nesta árdua tarefa a responsabilidade de se corroborar com a elaboração de narrativas permanentes sobre povos e culturas. Tema já explorado em críticas e estudos desta área especialmente tratando-se do legado histórico brasileiro. A Educação Patrimonial vem para as minhas discussões como eixo temático, e não como uma metodologia. Eu situo a Educação Patrimonial enquanto proposta de tematização do Patrimônio Cultural a partir da década de oitenta no Brasil. Minha

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concepção teórico-metodológica vem da Educação Popular. A experiência com os Movimentos Socais na década de oitenta me inspirou a refletir para além dos espaços formais de Educação. Assim, fui juntando as reflexões sobre o processo de ensino e aprendizagem dentro de perspectivas sócio-históricas e analisando que os espaços não formais como museus, centros culturais e outros, educam com intencionalidade. Ao caminhar neste campo do Ensino Formal e Não Formal busquei referências nas atividades desenvolvidas em eco-museus, em experiências comunitárias e em museus que ousavam refletir a sua relação discursiva com os diferentes públicos atendidos. Por influência da minha experiência educativa já vivida, eu via a Educação Patrimonial, como uma prática educativa ainda conservadora. Observava que as ações e experiências de inclusão, de educação popular organizada por muitos movimentos populares passavam ao largo das instituições culturais. E observei em meus estudos que grande parte dos museus estiveram ausentes e se furtaram em contribuir com projetos, ações envolvendo as comunidades, os diferentes grupos sociais no debate de sua cultura material, de sua memória e de seu pertencimento. Algo bastante triste, porque a síntese do trabalho destas instituições e o significado de sua existência são estas temáticas acima colocadas. Vale ressaltar que em determinados momentos, por ausência de uma concepção teórico-metodológica para se pensar o processo de ensino-aprendizagem nas instituições museológicas, adotou-se posturas e teorias pedagógicas do ensino formal. Em muitos museus foram criados departamentos escolares, não diferenciando conteúdo curricular formal da experiência acadêmica não formal nestes espaços. A nossa discussão posta nestes últimos dez anos vem alimentada pelo trabalho realizado no campo da Educação Não Formal. E é dentro desta categoria, que a educação em museu, ou em espaços culturais, espaços de memória, se estrutura e compõe uma opção na defesa teóricometodológica de compreender que necessitamos abrir as portas destas instituições para as práticas educativas comunitárias. E também de assumirmos do ponto de vista estratégico que as instituições culturais e em especial os museus são responsáveis, e que esta categoria necessita ser visitada e revisitada em consonância com o processo de ensino aprendizagem e em ação constante de avaliação dos efeitos produzidos por este dialogo. Entrevistadores: Agora direcionando um pouco para o ensino regular: você acredita que esta modalidade de ensino envolvendo patrimônio cultural deve estar inserida no ensino regular? Você tem algum projeto nesse sentido?

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Elizabete Tamanini: A formação que ajudamos a construir em museus e espaços não formais, espaços de memória, centros culturais, enfim com um ensino voltado para problematizar a cultura como elemento fundante, vem ao encontro de todas as pedagogias críticas ou todas as práticas escolares protagonistas. Isso porque partimos da seguinte ideia: nós temos a escola, instituição cuja responsabilidade consiste em trabalhar com o conhecimento construído secularmente, para isso, cria-se as matrizes curriculares e planos políticos pedagógicos. A Escola seleciona os conhecimentos, atribui valoração e significado nesse contexto de matriz curricular, que é uma escolha conceitual teórica e estratégica. Considero que a cultura material e o patrimônio cultural presentes em espaços musealizados, ou com esta intencionalidade, são temas inerentes às matrizes curriculares. Quando se discute moradia, território, alimentação, tecnologias com jovens em distintas faixas etárias, percebe-se que há perspectivas e entendimentos diversos, e a partir disso, realidades sociais distintas. Diante disso, o compartilhamento de atividades com lugares que exploram para além das atividades que as escolas e museus promovem,

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podem apresentar outras perspectivas. Isso porque temos outras instituições dialogando, reforçando, realimentando ou até provocando os estudantes a pensarem coisas que vem contradizer o que a escola produz. Deve ser esse então, o papel da construção do conhecimento, do saber. O problema que eu identifico é que nós da área de museus, de educação, nos afastamos dessa responsabilidade de intervir com mais força e compromisso social com as escolas. Há uma imagem dos museus que professores de escolas e alunos têm. Há imagens que educadores e profissionais de museus têm em relação às escolas, aos alunos e professores. É a partir dessas imagens, com todas as contradições que se tem sobre um e sobre o outro, que necessitamos construir um diálogo possível. Entrevistadores: De que maneira essas comunidades, estando elas inseridas ou não no ambiente escolar podem participar do processo de reconhecimento patrimônio cultural enquanto tal? Elizabete Tamanini: Há muito vem se falando da possibilidade de envolver o ensino formal nas atividades desenvolvidas pelos museus. A matriz curricular de uma escola reflete escolhas conceituais históricas, envolve decisão sobre este ou aquele conteúdo. A cultura material presente nos museus também é fruto deste processo de escolha e decisão. Necessitamos neste momento dialogar mais. Os estudos nestas áreas vêm apresentando que já caminhamos com experiências que alcançaram êxito nesta perspectiva. Ressalto também a partir de experiências vivenciadas, ou seja, de uma práxis realizada em muitos museus e escolas. Tendo como base este acúmulo vejo que se os museus tivessem capacidade estrutural financeira e profissional para responder as diferentes provocações contemporâneas, eles certamente estariam contribuindo muito mais com as experiências comunitárias. Estariam preparados cientificamente para promover a formação de opinião, com mentalidades críticas e com decisões sobre patrimônio, conservação e preservação de forma mais participativa. Ainda hoje os museus têm problemas de infraestrutura e permanece enraizado o pensamento dos museus enquanto lugares que cuidam de um passado, de depósitos de objetos, ou como lugares que tornam público curiosidades exóticas. Ainda não conseguimos criar na população de um modo geral a defesa dessa instituição como algo tão importante como uma escola ou um posto de saúde. Há atualmente um movimento para que diversas memórias, diversos patrimônios a partir dessas experiências coletivas possam ser compartilhados, possam ser visibilizados. Neste aspecto a importância da/na formação escolar em parceria com os museus é fundamental para a construção de novas posturas diante da complexa tarefa de educar. Entrevistadores: Você pode nos falar sobre a sua experiência no Museu do Sambaqui de Joinville?

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Elizabete Tamanini: O trabalho de educação desenvolvido no Museu Arqueológico de Sambaqui de Joinville foi uma linda experiência. Aprendi a educar para além dos muros do museu e da escola. Me comprometi profundamente com as práticas educativas e trago comigo o compromisso de educar com amorosidade compreendendo o significado deste desafio posto pelo educador Paulo Freire. Atuei como estagiária, depois como educadora contribuindo com projetos educativos para professores e públicos escolares diversos, com reflexões, artigos e pesquisas afins. O que eu poderia materializar dessa longa experiência é a possibilidade de pensar, refletir e produzir projetos e práticas educativas, que levem em consideração a diversidade e complexidade de diferentes públicos que

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visitam este lugar, desde a criança da educação infantil, ensino fundamental, estudantes de graduação de diversas áreas de conhecimento, assim como pesquisadores de mestrado e doutorado. O que tem de significativo neste processo é a leitura sobre a necessidade da profissionalização, de uma documentação das experiências nesse campo educativo e de um compromisso institucional com a formação continuada dos seus diferentes públicos. Vale sobremaneira um olhar cuidadoso para a escola e para as políticas públicas de formação de professores. Neste campo, é premente a interdisciplinaridade e a construção de compromisso interinstitucional com Universidades e Centros de Pesquisa compartilhando práticas, saberes e pesquisas. Como se sabe o conhecimento é datado, pactuado e só é validado quando compartilhado socialmente. Porém, para além deste movimento institucional, há uma atuação da sociedade e dos sujeitos de forma permanente, ativa, dinâmica. Então, mesmo que estes patrimônios museais sagrados ou não, sejam decretados como referências, como patrimônios culturais ou sociais, o exercício permanente a ser feito é uma constante reflexão sobre o seu significado no presente e no passado. Entrevistadores: Agora, para finalizar: em sua opinião, quais são as perspectivas para os projetos envolvendo Patrimônio, cultura material e Arqueologia, relacionados à educação no Brasil? Elizabete Tamanini: Eu sou professora há quase trinta anos e como apaixonada pela profissão tenho comigo uma perspectiva e uma história voltada ao desejo e à mobilização das pessoas para o saber. Então, olhando esses trinta anos de trabalho, eu sinto que avançamos em relação à legislação, às práticas de proteção, às ações de formação na educação e também na perspectiva das responsabilidades interdisciplinares. Venho construindo experiências pedagógicas com escolas e museus e cada vez mais as comunidades, as instituições, os grupos, as pessoas vêm desejando refletir sobre a sua história, sobre o seu patrimônio, sobre as suas identidades, desejam ser sujeitos, indivíduos, inseridos em uma coletividade. Também neste sentido avaliamos que há uma geração muito nova fazendo parte de estudos universitários, estudantes que têm desejos de mudanças, desejos de contribuir com a criação de novas experiências acadêmicas e sociais. Tendo essas referências como parte da vida dos seres humanos, como parte das experiências humanas em construção, coisas em movimento, como espelhos para a nossa existência.

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