Revista Arqueologia Pública 7, 2013, Arqueologia e divulgação

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número 7 | 2013

EDITORES Aline Carvalho (LAP/NEPAM/UNICAMP) Pedro Paulo A. Funari (LAP/NEPAM/UNICAMP) COMISSÃO EDITORIAL Ana Piñon (Universidad Complutense de Madrid, Espanha) Andrés Zarankin (UFMG) Erika Marion Robrahn-González (Documento - Patrimônio Cultural, Arqueologia e Antropologia Ltda) Gilson Rambelli (LAAA / NAR / UFS) Lourdes Dominguez (Oficina del Historiador, Havana, Cuba) Lúcio Menezes Ferreira (UFPel) Nanci Vieira Oliveira (UERJ) Charles Orser (Illinois State University, EUA) CONSELHO EDITORIAL Bernd Fahmel Bayer (Universidad Nacional Autónoma de México, México) Gilson Martins (UFMS) José Luiz de Morais (MAE/USP) Laurent Olivier (Université de Paris, França) Martin Hall (Cape Town University, África do Sul) Sian Jones (University of Manchester, Inglaterra) COMISSÃO TÉCNICA Rafael Augusto Nakayama Rufino Franciely da Luz Oliveira Marcos Rogério Pereira Derivaldo Reis de Sousa ESTÁGIO – REVISÃO TEXTUAL Camila Secolin PROJETO GRÁFICO Luiza de Carvalho DIAGRAMAÇÃO Rafael Augusto Nakayama Rufino Franciely da Luz Oliveira Laboratório TERRAMÃE

 



SUM ÁRI O 5

EDITORIAL Aline Carvalho

ARTIGOS 7

O REI MAIA KUKULCÁN E SEUS DISCURSOS DE PROPAGANDA POLÍTICA EM CHICHÉN ITZÁ Alexandre Guida Navarro

20

PRÁTICA ARQUEOLÓGICA E MEMÓRIA SOCIAL: REDES DE SABER E PODER NAS PESQUISAS EM ÁREAS DE EXPANSÃO DE CULTIVO NO INTERIOR PAULISTA Camila Wichers

39

ARQUEOLOGIA E PODER: A LEGITIMAÇÃO DO ESTADO Cláudio Umpierre Carlan

48

A ARQUEOLOGIA AMAZÔNICA E O CONTEÚDO IDEOLÓGICO DE SUAS INTERPRETAÇÕES Denise Maria Cavalcante Gomes

60

PROJETOS EDUCACIONAIS E POLÍTICAS INTERVENTIVAS NO CAMPO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO, CULTURAL E ARQUEOLÓGICO NA REGIÃO DE ARARAQUARA (SP) Robson Rodrigues e Dulcelaine L. Lopes Nishikawa

75

AÇÕES DO PROJETO ARQUEOLOGIA E DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA – DIÁLOGOS E SABERES: SITE E DOCUMENTÁRIO Glória Tega, Vera Regina Toledo Camargo, Maria Beatriz Rocha Ferreira, Pedro Paulo Funari e Aline Vieira de Carvalho

87

ESSAS COISAS NÃO LHES PERTENCEM: RELAÇÕES ENTRE LEGISLAÇÃO ARQUEOLÓGICA, CULTURA MATERIAL E COMUNIDADES  Lúcio Menezes Ferreira

 

107

 

OS SENTIDOS CONTEMPORÂNEOS DAS COISAS DO PASSADO: REFLEXÕES A PARTIR DA AMAZÔNIA Marcia Bezerra



123  

138

PORTOS, PORTAS E PRODUÇÃO: ARQUEOLOGIA DO PODER EM CANANÉIA (SP), SÉCULOS XIX e XX Paulo F. Bava de Camargo PROJETO ARQUEOLOGIA E EDUCAÇÃO: UM OLHAR PARA O PASSADO DA REGIÃO DE POÇOS DE CALDAS Solange Schiavetto, Ana Paula Gilaverte e Diego dos Santos de Andrade

RESENHA 153

NAVARRO, Alexandre Guida. Kakupacal e Kukulcán: iconografia e contexto espacial de dois reis-guerreiros maias em Chichén Itzá. São Luís: Café & Lápis; EDUFMA, 2012, 96 p. Luis Estevam de Oliveira Fernandes e Luis Guilherme Kalil

ENTREVISTA 157

JOSÉ REMESAL RODRÍGUEZ (História Antiga - Universidade de Barcelona) Por: Pedro Fermín Maguire e Isabela Soraia Backx Sanabria

ERRATA 164  

 



ED I TORI AL Ju lh o de 2 0 1 3 Caríssimos colegas, É com um imenso prazer que a equipe do Laboratório de Arqueologia Pública Paulo Duarte (LAP/NEPAM/UNICAMP) apresenta e disponibiliza a sétima edição da Revista de Arqueologia Pública. Este número têm sentidos muito especiais para nós: 1) os textos passaram a ser configurados em um novo formato, iniciando, desta forma, nossa transição para o Sistema Open Journal System (OJS); que permite o gerenciamento de periódicos gratuitos na internet. 2) Para além disso, mantivemos a publicação periódica, gratuita, acessível e com artigos de qualidade. E, por fim, 3) essa edição traz uma seleção de textos que nos remetem diretamente às discussões realizadas na “Primeira Semana de Arqueologia Pública – Arqueologia e Poder”, organizada pelo LAP nos dias 19, 20 e 21 de março deste ano. Sem dúvida alguma, a Semana de Arqueologia foi uma grande experiência para nós: contamos com um público que se deslocou de diferentes regiões do país para participar do evento; e, podemos destacar que cada uma dessas pessoas que nos prestigiaram trouxeram experiências variadas, relacionadas ao conhecimento arqueológico, que se configuraram como cruciais para pensarmos questões teóricas, metodológicas e éticas de nosso próprio campo de atuação. Junto a esse movimento, contamos com palestrantes que com suas exposições e provocações nos permitiram a construção de reflexões acerca de temas plurais, que iam desde os aspectos vinculados à própria noção de Estado, Poder e Arqueologia, chegando ao território das sensibilidades e dos limites de nossa atuação. O evento foi para nós uma conquista. Os artigos que se seguem são, portanto, uma pequena amostra destes três dias intensos e criativos da “Semana de Arqueologia”. Com a leitura das produções dos professores Alexandre Guida Navarro, Camila Wichers, Cláudio Umpierre Carlan, Denise Maria Cavalcante Gomes, Robson Rodrigues, Dulcelaine L. Lopes Nishikawa, Glória Tega, Vera Regina Toledo Camargo, Maria Beatriz Rocha Ferreira, Pedro Paulo Funari, Aline Vieira de Carvalho, Lúcio Menezes Ferreira, Marcia Bezerra, Paulo Bava, Solange  



Schiavetto, Ana Paula Gilaverte e Diego dos Santos de Andrade, nosso leitor poderá ter um pouco da Semana de Arqueologia em suas mãos! Completamos o leque de artigos com a publicação de uma resenha produzida pelos americanistas Luiz E. de Oliveira Fernandes e Luís Guilherme Kalil sobre o livro Kakupacal e Kukulcán: iconografia e contexto espacial de dois reis-guerreiros maias em Chichén Itzá, de Alexandre Guida Navarro, lançado na “Semana de Arqueologia”. E, uma entrevista realizada por Pedro Fermín e Isabela Backx, nossos alunos de pós-graduação, com o professor da Universidade de Barcelona e conferencista da Semana de Arqueologia José Remesal Rodríguez. Aproveito para indicar os “Anais da Primeira Semana de Arqueologia da Unicamp”, também disponibilizado na internet, como um caminho para acessar os textos completos das apresentações feitas no Evento e que não estão presentes nesta edição da Revista. Por fim, desejamos uma boa leitura dos artigos que se seguem e reforçamos os votos para que possamos reunir um número ainda maior de pessoas e debates na “Segunda Semana de Arqueologia da Unicamp”. Esforçaremo-nos para isso!

Boa le it u r a ! Aline Carvalho

 



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O REI MAIA KUKULCÁN E SEUS DISCURSOS DE PROPAGANDA POLÍTICA EM CHICHÉN ITZÁ The Mayan King Kukulcan and his Speeches of Political Propaganda in Chichen Itza Alexandre Guida Navarro1

RESUMO Chichén Itzá foi um populoso centro urbano maia responsável por tributar centenas de cidades, organizar um exército eficaz para os empreendimentos guerreiros e realizar comércio de longa distância com outras cidades maias e de outras etnias. Durante seu auge, no século IX, a cidade foi governada por um rei chamado Kukulcán, que foi responsável pela maioria das construções arquitetônicas da cidade. Tal governo foi marcado por uma eficiente propaganda política que foi planejada segundo um processo cognitivo de representação imagética do governante, cuja principal manifestação deu-se em forma de uma serpente emplumada. Estas imagens serviram de propaganda política para perpetuar a soberania deste rei, além de ser um registro imagético de sua importância na memória coletiva desta cidade maia. Palavras-chave: civilização maia, propaganda política, cultura material ABSTRACT Chichén Itzá was a populated urban center Mayan responsible for taxing hundreds of cities, to organize an army effective for warriors and perform long-distance trade with other Mayan cities and other ethnicities. During its heyday in the ninth century, the city was ruled by a king named Kukulcan, which was responsible for most of the city's architectural constructions. This ruler was marked by an efficient propaganda that was planned according to a cognitive process of his imagery representation, whose main manifestation came in the form of a feathered serpent. These images were used as propaganda to perpetuate the sovereignty of the king, besides being a record imagery of its importance in the collective memory of this Mayan city. Keywords: Mayan Civilization, Political Propaganda, Material Culture RESUMEN Chichén Itzá fue un gran centro urbano maya responsable por tributar cientos de ciudades, organizar un ejército eficaz para y realizar comercio a larga distancia con otras ciudades mayas y otros grupos étnicos. Durante su apogeo en el siglo IX, la ciudad fue gobernada por un rey llamado Kukulcán, que construyó la mayoría de los edificios arquitectónicos de la ciudad. Este gobierno fue marcado por una propaganda eficaz que fue planeada de acuerdo                                                              1

Doutor em Arqueologia pela Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM). Professor Adjunto II da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). E-mail: [email protected]

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con un proceso cognitivo bajo la representación de las imágenes del gobernante, cuya principal manifestación era la serpiente emplumada. Estas imágenes fueron utilizadas como propaganda para perpetuar la soberanía del rey, además de ser un registro importante de las imágenes como memoria colectiva de esta ciudad maya. Palabras clave: civilización maya, propaganda política, cultura material

Introdução: As crônicas

As crônicas escritas pelos missionários espanhóis no século XVI são um conjunto documental etnográfico acerca das comunidades maias que viviam na Península do Iucatã quando do período do contato. Por outro lado, por associação etnológica, muitos costumes indígenas relatados na época da Conquista foram utilizados para explicar o cotidiano maia de períodos anteriores, como o Clássico (300-900 d.C.), sobretudo os aspectos religiosos, muitos dos quais, teriam sobrevivido à época da chegada dos conquistadores. O personagem Kukulcán aparece em várias destas crônicas, como o relato do bispo Diego de Landa em sua célebre obra Relación de las cosas de Yucatán (1566). A etimologia da palavra revela que kuk é “pluma de ave geral” e can, “serpente, cobra” (Dicionário maia Cordemex, p. 420, 1980). Portanto, este personagem está associado à serpente emplumada, um importante símbolo religioso pré-hispânico, que, na versão religiosa do altiplano recebeu o nome de Quetzalcóatl. Qual o seu significado segundo as crônicas? Nestes documentos, uma das associações de Kukulcán refere-se aos assuntos governamentais, e sua relação com a cultura material apareceu pela primeira vez na importante obra do primeiro bispo de Iucatán, frei Diego de Landa, intitulada “Relaciones de las Cosas de Yucatán”, quem em 1566 escreveu que “… é opinião que entre os itzaes que povoaram Chicheniza, reinou um grande senhor chamado Cuculcan, e que mostra ser isso verdade que o edifício principal se chama Cuculcan…” (LANDA, 2003: 94). Fica evidente, deste modo, que na obra de Landa, Kukulcán é um soberano maia. Por outro lado, outros cronistas, como Diego López de Cogolludo (1688) e Bernardo de Lizana (1633) registraram a existência histórica de Kukulcán como um personagem associado à guerra na península do Iucatã. Cogolludo (1688) documenta que “...os itzás de Chichén Itzá veneravam um ídolo que havia sido grande capitão [guerreiro] entre eles, chamando-o de Kukulcan ou serpente emplumada…” (LÓPEZ DE COGOLLUDO, 1971 I: 352). 8   

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Já nas Relaciones Histórico-Geográficas de la Gobernación de Yucatán (1984a) [1560], o nome de Kukulcán aparece citado seis vezes, todas elas apontando o personagem como o introdutor da idolatria no Iucatã. A Relación de Motul (1984: 269-70) narra que: No que toca às adorações tinham conhecimentos de um Deus que criou o céu e a terra e todas as coisas… ao qual tinham edificado templo com sacerdotes, que levavam presentes e esmolas para que eles os oferecessem a Deus, e esta maneira de adoração teve até que veio de fora desta terra um grande senhor com gente chamado Kukulcan, e daqui começaram os da terra idolatrar.

Chichén Itzá e Kukulcán

Chichén Itzá foi centro hegemônico que conquistou militarmente grande parte da Península do Iucatã, foi produtor e distribuidor exclusivo de sal em toda Mesoamérica, controlou grande parte das rotas marítimas maias através da construção de portos, além de ter sido uma cidade responsável por tributar várias cidades maias, além de outras no altiplano mexicano. O seu principal conjunto de edifícios chama-se Grande Nivelação, uma grande área de construção arquitetônica localizada ao norte da cidade (PIÑA CHÁN, 1980; RINGLE et al. 1998; LÓPEZ AUSTIN e LÓPEZ LUJÁN, 1999; COBOS, 2003; SHARER, 2003; BAUDEZ, 2004; RINGLE, 2004; NAVARRO, 2007). Embora a escrita de Chichén Itzá não faça alusão direta ao personagem Kukulcán, por analogia etnológica e iconográfica, é possível perceber que este indivíduo foi representado em alguns edifícios da Grande Nivelação (KROCHOCK, 1988, 1989). Levando em consideração a iconografia com temas associados ao poder real na área maia, além de sua associação com a serpente emplumada, o principal componente simbólico de Kukulcán, alguns pesquisadores têm postulado que este personagem foi plasmado na memória coletiva de Chichén Itzá (COBOS, 2003; NAVARRO, 2007; NAVARRO e FUNARI, 2009). Já que a serpente emplumada é o principal componente iconográfico do personagem, realizamos, através de pesquisa doutoral, um catálogo com a representação destas imagens. Observamos uma considerável variação nos tipos plumários. Em princípio, pensamos que se isso devia ao estilo aplicado pelo pintor, no entanto, essas plumas parecem ser um signo que identifica diferentes conjuntos arquitetônicos dentro da Grande Nivelação. Os exemplares podem ser classificados em: sem plumas, com plumas em forma de gancho, com plumas longas, plumas em forma de espinho e plumas com forma de triângulo isósceles (figuras 1a, 1b, 1c, 1d e 1e; todas desenhadas pelo autor).

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Figura 1a. Serpente sem plumas na serpe Figura 1b. Serpente com plumas longas.

Figura 1c. Serpente com pluma em forma de gancho.

Figura 1d. Serpente com plumas espinho.

Figura 1e. Serpente com plumas em forma de triângulo isósceles.

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em

forma

de

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Catalogado um total de 147 imagens de serpentes com e sem plumas, apenas 10 não estão na Grande Nivelação. Isso significa que 93,19% das imagens de serpente catalogadas aparece nesta esplanada (figura 2).

Figura

2.

Distribuição

espacial

de

serpentes

emplumadas

em

Chichén

Itzá.

Podemos observar que a Grande Nivelação divide-se em dois setores: a Plaza do Castillo é mais aberto, caracterizado principalmente pela presença de estruturas piramidais. Já o Conjunto das Mil Colunas é um espaço caracterizado pela presença de pórticos e colunatas, inexistentes na Plaza anterior. As serpentes emplumadas também são diferentes em cada uma dessas áreas. Na Plaza do Castillo são serpentes com plumas longas, e em forma de gancho penas que estão associadas com o poder do governante, pois aparecem em cenas de nitronização (ver figuras 1b e 1c). Esta imagética está associada ao prestígio de personagens individuais e imbuídas de cenas de propaganda política. Neste sentido, acompanham sempre a imagem de um personagem conhecido como Capitão Serpente, que consideramos ser Kukulcán (MILLER, 1978; NAVARRO e FUNARI 2009). Como salientamos anteriormente, estas cenas são caracterizadas por uma parafernália de objetos usados em cerimônias de entronização do governante.

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Kukulcán aparece com traços guerreiros na Pirâmide El Castillo, sendo que atrás dele aparece uma serpente com plumas longas e barba (figuras 3 e 4). Esta representação possui algumas peculiaridades que nos fazem inferir a importância deste personagem: está registrada no espaço mais exclusivo da pirâmide perto de duas colunas em forma de serpente emplumada que sustentam esta câmara. Além disso, as escadarias norte do edifício foram edificadas à maneira de grandes serpentes emplumadas, cujo efeito ótico que se dá nos equinócios de primavera e outono faz o espectador contemplar uma sombra em forma de corpo de serpente que se projeta em um dos costados do edifício.

Figura 3. El Castillo. Fotografia tirada pelo autor.

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Figura 4. Kukulcán (à esquerda) aparece de frente para outro governante de Chichén Itzá. Em Taube 1992.

Já no Templo Norte, há três representações de um personagem associado à serpente emplumada (figura 4). As imagens dão conta de cenas que retratam um personagem que está sofrendo o processo de entronização. Este indivíduo leva uma serpente emplumada atrás de si. É provável que se trate, portanto, de Kukulcán sendo entronizado; o Templo Norte pôde ter isso o local deste processo ritualístico.

Figura 5. Templo do Norte. Fotografia tirada pelo autor. No Templo Superior dos Jaguares, Kukulcán possivelmente é o destaque na iconografia. Os murais do edifício estão profusamente decorados e existem várias imagens de serpentes emplumadas. O destaque das cenas são as aparições de Kukulcán junto com um personagem associado a um Disco Solar, que, na literatura é conhecido como Kakupacal, outro governante da cidade de Chichén Itzá. Parece que estes dois indivíduos estão fazendo negociações de poder ou estão em rituais que passagem de poder de um soberano para o sucessor (NAVARRO e FUNARI, 2009). Além disso, há que ressaltar que colunas em forma de serpente emplumada também aparecem no vestíbulo do edifício (figuras 6).

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Figura 6. Kukulcán, à esquerda da imagem. Coggins, 1989: 162 Já no Grande Jogo de Pelota de Chichén, o maior da Mesoamérica, com 168 metrps de comprimento por 70 de largura, as serpentes têm plumas longas e são recorrentes na escultura, onde aparecem rematando todo o edifício. No Tzompantli e na Plataforma das Águias e Jaguares as serpentes com plumas longas aparecem nas molduras superiores e alfardas dos edifícios. No primeiro, a iconografia aparece assocaida à cenas de prisioneiros decapitados e cabeças troféu. Além da iconografia, existem algumas evidências arqueológicas que nos levam a inferir que estes personagens que aparecem associados com as serpentes emplumadas fazem alusão direta a Kukulcán. Há que considerar a distribuição espacial dos edifícios onde a imagem está representada: são espaços destinados à elite, são fechados, com acesso exclusivo, e têm alto status social já que são profusamente decorados. Além disso, estão associados a espaços sagrados, como é a quadra do jogo de bola que se localiza em suas proximidades. Ou seja, são espaços destinados à atividade administrativa e rituais em Chichén Itzá. Outro aspecto que deve ser explorado é a natureza destas construções piramidais. Considerando que a iconografia destes edifícios exploram a entronização dos governantes, e, neste caso específico, a de Kukulcán, isso poderia explicar a alta proporção de serpentes de plumas longas e de gancho representadas nestas estruturas. Agora nos reportemos ao outro espaço adjacente, o Grupo das Mil Colunas. Este espaço também foi construído durante a época da Plaza do Castillo, mas se distingue daquela por ser espacial e arquitetonicamnete organizada de forma diferente. Este espaço é 14   

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caracterizado pela construção de conjuntos de colunas, que não existem na Plaza del Castillo, e as imagens da serpente possuem forma de espinho, associados a uma procissão de guerreiros que caminham em fila indiana em direção a uma oferenda no centro da imagem. No Templo dos Guerreiros, por exemplo, a imagem de serpente com plumas em forma de espinho é caracterizada por cenas de guerreiros que navegam no mar e capturam prisioneiros. Estas serpentes aparecem associadas à cenas de sacrifício, onde o sacrificador retira o coração da vítima que está sobre uma pedra sacrificial. A Serpente Emplumada da Subestrutura do Templo dos Guerreiros é notável por duas razões (Figura 1e). Primeiro, por causa do seu tamanho: tinha oito metros de comprimento e foi pintada de amarelo sobre um fundo vermelho na parede leste do edifício. Segundo, a imagem possui uma pata com garras de aves. Estas serpentes também podem ser encontrados nas páginas 3 e 10 do Códice mixteco Nuttall (Figura 7). Segundo Fähmel Beyer (2001: 191), estas serpentes estão relacionadas com o aparecimento de um cometa e estão associadas a maus presságios.

Figura 7. A Serpente Emplumada no Códice Nuttal Em Fähmel Beyer 2001, p. 206.

Segundo Fähmel Beyer (2001: 192-193), para muitos povos mesoamericanos a visão de um cometa foi vista como uma previsão da morte de um príncipe ou rei. De acordo com este investigador, no túmulo 2 de Mitla foi enterrada uma pessoa importante, em cuja antecâmara havia a imagem de um cometa. Embora na Subestrutura do Templo dos Guerrerios não haver nenhuma sepultura, a imagem da serpente com pluma em forma de triângulo isósceles pode estar indicando que a construção original do prédio foi relacionada a

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qualquer evento ou ocorrência relacionada com o presságio de um cometa. Contudo, não há nenhum estudo publicado sobre este tema em Chichén Itzá. De acordo com os estudos de Fähmel Beyer (2001), a representação do Códice Nuttal refere-se à passagem do cometa Halley, no ano de 912 d.C. Se esse fenômeno foi visto por vários grupos na Mesoamérica nesta data e relacionado a maus presságios, faz sentido que a serpente emplumada retratada na parede leste da Subestrutura do Templo dos Guerreiros poderia, também, estar associada a tais eventos. Dado a cronologia da construção da Grande Nivelação, é mais provável que tal evento estivesse assoaciado a uma passagem anterior do cometa, ou seja, 76 anos antes, em 836 AD. Assim, o início da construção desta Subestrutura pode ser datada para esta época, provavelmente. Ainda com relação ao complexo do Templo dos Guerreiros há que se pontuar algo importante. É uma representação de uma serpente emplumada com cornos ou chifres, dando a forma a duas colunas que davam sustentação ao teto do edifício (figura 8). Embora associada a seres míticos, a observação biológica da espécime, faz considerar que é uma cascavel da espécie Crotalus Cerastes, que não existe na península do Iucatã. Esta espécie habita os atuais Estados da Baja Califórnia e Sonora, no México e no sudoeste dos Estados Unidos, nos Estados da Califórnia, Arizona e Nevada (CAMPBELL e LAMAR, 2004 e comunicação pessoal com o Dr. Oscar Flores Villela) (Figura 9). É uma cascavel bastante venenosa. Pode ser que Kukulcán tenha utilizado toda essa variedade de cascavéis como metáfora de poder. Aqui vale ressaltar que a espécie Crotalus Cerastes procede do mesmo lugar onde se obtinha a turquesa, encontrada em oferendas em forma de disco no interior dos Templos dos Guerreiros. Sabemos, por exemplo, que várias cidades da Mesoamérica importaram diversos materiais para fins rituais, como as conchas importadas encontradas no Templo de Quetzalcoatl em Teotihuacan, associadas às atividades rituais (SUGIYAMA et al., 1991). Teria que se investigar a possível relação destes produtos importados, bem como o seu significado, com a obtenção de espécies como Crotalus Cerastes, ou outros animais, em Chichén Itzá.

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Figura 8. Serpente emplumada com chifres. Templos dos Guerreiros. Fotografia autor.

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Figura 9. As Crotalus Cerastes Espécies. Foto tirada www.ontdekkingsreis.org.jpg Considerações Finais

Uma das conclusões da nossa tese é que o nivelamento Grande não é um espaço "monolítico", como geralmente interpretado na literatura. A esplanada é dividida em dois setores principais, com uma diferença óbvia na organização do espaço e também vários elementos arquitetônicos que caracterizam cada um desses setores, que deverá corresponder a diferentes atividades sociais (NAVARRO, 2007). A existência de uma grande quantidade de serpentes emplumadas na Grande Nivelação e sua quase ausência em outros grupos arquitetônicos, como o Complexo das Monjas e Série Inicial, indica que as imagens de serpente emplumada eram um elemento simbólico na construção da Plaza do Castillo e Grupo das Mil Colunas. São a maneira como Kukulcán metaforiza seu poder, o seno da casa real. Referências bibliográficas BAUDEZ, C. Una historia de la religión de los antiguos mayas, UNAM, México, 2004. COBOS, R. The Settlement Patterns of Chichen Itza, Yucatan, Mexico. Ph.D. disertación. Department of Anthropology, Tulane University, 2003. DE LA GARZA, M. Relaciones histórico-geográficas de la Gobernación de Yucatán. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 1984a.

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DE LA GARZA, M. El universo sagrado de la serpiente entre los mayas. México: UNAM, 1984b. DICCIONARIO MAYA CORDEMEX. A. Barrera Vázquez (director). Mérida: Ediciones Cordemex, 1980. KROCHOCK, R. The Hieroglyphic Inscriptions and Iconography of Temple of the Four Lintels and Related Monuments, Chichén Itzá, Yucatán, México. Austin: Texas University, 1988. KROCHOCK, R. Hieroglyphic Inscriptions at Chichen Itza, Yucatán, Mexico: The Temples of the Inicial Series, the One Lintel, the Three Lintels, and the Tour Lintels. Research Reports on Ancient Maya Writing 23. Center for Maya Research, Washington D.C., 1989. LANDA, D. de. Relación de las Cosas de Yucatán. México: CONACULTA, 2003 [1566]. LÓPEZ AUSTIN, A.; LÓPEZ LUJÁN, L. Mito y realidad de Zuyuá. Serpiente emplumada y las transformaciones mesoamericanas del Clásico al Posclásico. México: FCE, 1999. LÓPEZ COGOLLUDO, D. Los tres siglos de la dominación española en Yucatán, o sea Historia de esta provincia, 2 vols. Austria: Akademishe Druck u. Verlagsanstalt, Graz, 1971 [1688]. NAVARRO, A. G. Las serpientes emplumadas de Chichén Itza: distribución en los espacios arquitectónicos e imaginería. Tesis de Doctorado. UNAM, México, 2007. NAVARRO, A. G.; FUNARI, P. P. Un estudio de caso de la Arqueología Histórica: organización espacial y memoria colectiva en Chichén Itzá, pp. 163-186. Arqueología Colonial Latinoamericana. Modelos de estudio (Juan G. Targa e Patricia Fournier orgs.). Oxford: BAR, 2009. Página de internet www.ontdekkingsreis.org.jpg PIÑA CHÁN, R. Chichén Itzá. La ciudad de los brujos del agua. México: FCE, 1980. RINGLE, W. M. On the Political Organization of Chichen Itza. Ancient Mesoamerica 15, pp. 167-218. Cambridge: Cambridge University Press, 2004. RINGLE, W.; GALLARETA NEGRÓN, T.; BEY III, G. The Return of Quetzalcoatl. Evidence for the Spread of a World Religion during the Epiclassic Period. Ancient Mesoamérica 9, pp. 183-232. Cambridge: Cambridge University Press, 1998. SHARER, R. La civilización maya. México: FCE, 2003. TAUBE, K. The Major Gods of Ancient Yucatan. Washington D.C.: Dumbarton Oaks Research Library and Collection, 1992.  

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PRÁTICA ARQUEOLÓGICA E MEMÓRIA SOCIAL: REDES DE SABER E PODER NAS PESQUISAS EM ÁREAS DE EXPANSÃO DE CULTIVO NO INTERIOR PAULISTA Archaeological Practice and Social Memory: networks of knowledge and power in the research of cultivation expansion areas in interior of São Paulo state

Camila A. de Moraes Wichers1

RESUMO Nesse artigo apresento algumas reflexões acerca do cenário atual das pesquisas arqueológicas em áreas de expansão de cultivo de cana de açúcar no Estado de São Paulo. Destaco o número reduzido de pesquisas nessas áreas, sobretudo, aquelas que envolvem etapas de resgate arqueológico e processos de socialização. Como contraponto, apresento o Programa Guarani de Gestão dos Recursos Arqueológicos, que já cadastrou 62 sítios arqueológicos, alguns datados entre os séculos XV e XVII, os quais remetem a discussões sobre a colonização europeia da região e o extermínio dos grupos indígenas, a partir da problematização dos conceitos de memória coletiva, memórias exiladas e passados excluídos. Nesse sentido, a escolha de determinadas posturas teóricas e práticas metodológicas tem possibilitado o questionamento acerca da história “oficial” que excluiu as populações indígenas das memórias locais. Palavras-chave: Arqueologia Preventiva, Musealização da Arqueologia, Memória Social ABSTRACT In this article I present some reflections on the current scenario of archaeological research in sugarcane expansion areas in São Paulo state. I highlight the small number of research in these areas, especially those that involve rescue and socialization processes. As a counterpoint, I present the Guarani Program of Archaeological Resources Management, which has registered 62 archaeological sites, some dating between the fifteenth and seventeenth centuries, referring to discussions about the colonization of the region and the extermination of indigenous groups, problematizating concepts of collective memory, exiled memories and excluded pasts. The choice of certain theoretical positions and methodological practices has made it possible to question the “official” history, which excluded indigenous peoples from local memories. Keywords: Preventive Archaeology, Archaeological Musealization, Social Memory

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Doutora em Museologia pela ULHT/Lisboa e em Arqueologia pelo MAE/USP. Diretoria Técnica da Zanettini Arqueologia. Contato: [email protected]

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RESUMEN En este artículo presento algunas reflexiones sobre la situación actual de la investigación arqueológica en las áreas de expansión del cultivo de la caña en São Paulo. Hago hincapié en el pequeño número de estudios en este ámbito, especialmente los que implican las excavaciones y la socialización de los bienes patrimoniales. Como contrapunto, presento el programa de Gestión de Recursos Arqueológicos Guaraní, que cuenta con 62 sitios arqueológicos registrados, algunos que datan entre los siglos XV y XVII, que se refieren a las discusiones sobre la colonización europea de la región y el exterminio de los grupos indígenas. Presento desde la problematización los conceptos de la memoria colectiva, memorias exiladas y pasados excluidos. En este sentido, la elección de ciertas posiciones teóricas y prácticas metodológicas han permitido cuestionar sobre la historia "oficial" que excluía a los pueblos indígenas de las memorias locales. Palabras clave: Arqueología Preventiva, Musealización de la Arqueología, Memoria Social

Introdução A pesquisa arqueológica é um processo seletivo, orientado a partir de posturas teóricas e colocado em prática a partir de metodologias, configurando práticas de colecionamento (MORAES WICHERS, 2010). Tais práticas, além de gerar coleções, também produzem narrativas, colocando os arqueólogos como construtores e intérpretes do passado (SHANKS & TILLEY, 1988; 1987/1992). Assim, ao trabalhar com questões relacionadas às identidades, memórias, sistemas de dominação (ou ocultamento) de relações sociais e políticas, entre outros, a Arqueologia está inscrita em uma rede de saberes e poderes (BARROS, 2011). Nesse artigo, proponho algumas reflexões acerca das pesquisas em curso no âmbito das áreas de expansão de cultivo de cana de açúcar no Estado de São Paulo, enfatizando a relação entre prática arqueológica e memória social. Mais de 96% da Arqueologia Paulista é desenvolvida no âmbito do licenciamento de empreendimentos e o setor sucroalcooleiro desponta como uma das atividades produtivas que mais crescem no Estado. Contudo, um número reduzido de pesquisas tem sido realizado nessas áreas, sobretudo, no que tange às pesquisas que abrangem etapas de resgate arqueológico e correspondentes processos de socialização. Trago, como exemplo, o Programa Guarani de Gestão dos Recursos Arqueológicos, desenvolvido desde 2007, pela equipe da Zanettini Arqueologia, no norte do Estado. Como contraponto, esse programa já cadastrou 62 sítios arqueológicos, destacando-se a construção de histórias indígenas para essa porção do território paulista. Os processos de musealização 21   

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dessas coleções e narrativas têm possibilitado o questionamento acerca da história “oficial” que excluiu as ocupações indígenas das memórias locais, tendo como embasamento a realidade arqueológica. Nesse sentido, tem sido enfatizado, tanto na pesquisa arqueológica, como nos processos educativos, o conceito de diversidade cultural. Arqueologia Paulista no século XXI: o lugar das pesquisas em áreas de expansão de cultivo de cana de açúcar Os processos de seleção, estudo e preservação do patrimônio arqueológico no Estado de São Paulo têm sido marcados por continuidades e rupturas, avanços e retrocessos. Esses binômios não estão, obviamente, presentes apenas nesse Estado. Contudo, ao retomar a trajetória das pesquisas arqueológicas realizadas em São Paulo, assim como seus respectivos processos de musealização, foi possível identificar uma tensão constante entre os conceitos de desenvolvimento e preservação (MORAES WICHERS, 2011). Esses conceitos entraram, muitas vezes, em rotas irreconciliáveis, marcando a realidade paulista até os dias atuais. Ainda na transição entre os séculos XIX e XX, esse Estado se afirmou como “locomotiva do país”, engendrando um novo modelo de desenvolvimento, pautado tanto na economia cafeeira quanto na industrialização (movimento que também imprimiu marcas nas mentalidades paulistas). No momento atual, o modelo desenvolvimentista adotado no país seguiu fortalecido no Estado de São Paulo. Cabe indagarmos como a prática arqueológica tem lidado com esse contexto. Entre 2003 e 2012, 6.543 portarias de pesquisa arqueológica foram publicadas no Diário Oficial da União2. Destas 1.029 estavam inseridas no Estado de São Paulo, ou seja, cerca de 16% das pesquisas realizadas no Brasil no período abordado. Contudo, entre as portarias emitidas para o referido Estado, apenas 17% mencionam o resgate arqueológico. Embora outras abordagens venham assumindo uma importância crescente nas práticas arqueológicas, visto que fornecem indicadores de observação para conjunto de paisagens e seus elementos, no âmbito do licenciamento ambiental a escavação sistemática, inserida na etapa de resgate arqueológico, ocupa papel de destaque por ser, muitas vezes, a última intervenção possível em um bem arqueológico inserido em uma área a ser diretamente afetada por um empreendimento. Ou seja, no escopo da Arqueologia Preventiva o denominado resgate arqueológico é imperativo. O baixo percentual de portarias que mencionam essa atividade pode estar relacionado a dois fatores: 1) Não estão sendo                                                              2

Excetuando-se as portarias de renovação ou prorrogação de pesquisa.

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detectados sítios arqueológicos; 2) Os sítios detectados não estão sendo resgatados em compasso com o licenciamento. Se esse cenário é preocupante, quando analisada a totalidade de pesquisas no recorte cronológico adotado, o quadro trazido pelas áreas de expansão de cultivo de cana de açúcar é ainda mais desolador. Em 2011, a indústria sucroalcooleira paulista produziu 21 milhões de toneladas de açúcar e 11 milhões de metros cúbicos de etanol, que representam, respectivamente, 58% e 51% do total produzido no Brasil. Entre 2001 e 2011, a produção paulista de açúcar cresceu 121% e a de álcool 82%, impulsionada pelo mercado de biocombustíveis3. Algumas questões se colocam: se cresceu a produção, tivemos um aumento no número de pesquisas relacionadas aos licenciamentos no setor? Como a prática arqueológica tem se dado nessas áreas?

Gráfico 01. Produção de cana de açúcar e pesquisas arqueológicas associadas ao licenciamento de áreas de expansão de cultivo em São Paulo (Fonte: Diário Oficial da União e Unicadata4)

No período analisado, foram emitidas 82 portarias de pesquisa arqueológica para as áreas de expansão de plantio de cana de açúcar no Estado de São Paulo (cerca de 8% das portarias emitidas para o Estado entre 2003 e 2012), sendo que destas, apenas 10 envolviam resgate arqueológico (Gráfico 01). Essas 82 portarias de pesquisa foram emitidas para apenas nove pesquisadores coordenadores, sendo que o primeiro e o segundo lugar no ranking detém 42% e 21% das portarias, respectivamente, evidenciando uma concentração em alguns arqueólogos/equipes, o que também pode significar o predomínio de determinadas posturas teóricas.

                                                            

3

Dados presentes em http://www.investe.sp.gov.br/setores/cana. Acessado em 18 de Março de 2013. Dados presentes em http://www.unicadata.com.br/historico-de-producao-emoagem.php?idMn=31&tipoHistorico=2. Acessado em 18 de Março de 2013. 4

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Os contextos arqueológicos inseridos em áreas de expansão de cana de açúcar apresentam configurações específicas, demandando metodologias adequadas de detecção e resgate das evidências. Isso porque, na maior parte das vezes, estamos diante de terrenos que vêm sendo utilizados para o plantio há décadas, resultando em um registro arqueológico de baixa visibilidade. Para Araújo (2001), a definição de sítios alterados ou destruídos passa pelo fato dos mesmos estarem próximos à superfície, partindo de uma ideia errônea de que apenas sítios enterrados apresentam potencial interpretativo. No entanto, todo sítio enterrado já esteve exposto em superfície e sabe-se que “o princípio de funcionamento do arado e implementos agrícolas consiste basicamente em revolver a terra, não em transportá-la” (ARAÚJO, 2001:118). Obviamente, o avanço da mecanização desses processos, no contexto atual, traz sérios riscos ao patrimônio arqueológico. Mas, no que concerne aos métodos anteriormente empregados, os processos de plantio dificultaram, mas não impossibilitaram a prática arqueológica nas extensas áreas atualmente utilizadas para o plantio de cana de açúcar, conforme exemplo a seguir. Programa Guarani de Gestão dos Recursos Arqueológicos: alguns resultados Bruno (1995, 2005) aponta que, no cenário brasileiro, o abandono das fontes arqueológicas resultou em uma estratigrafia do abandono e na circunscrição de tais vestígios no âmbito das memórias exiladas. Nesse sentido a autora reflete que:

Sobre esses vestígios pré-coloniais acumulam-se várias camadas de interpretações sobre mais de 500 anos de ocupação estrangeira deste território e, apesar de mais de um século de institucionalização da pesquisa e dos acervos, ainda são raras as abordagens que vinculam esses vestígios às nossas tradições e rupturas. Consolidouse uma estratigrafia do abandono que isolou as fontes arqueológicas e as circunscreveu ao terreno das memórias exiladas (BRUNO, 2005: 237-238).

Parto da hipótese de que no norte de São Paulo, mais que esquecidas ou abandonadas, as fontes arqueológicas foram reiteradamente desprezadas, resultando em um cenário onde a reflexão elaborada por Bruno (1995, 2005) torna-se crucial. No cenário contemporâneo, o número reduzido de pesquisas, a despeito da expansão das áreas de cultivo, e o número ainda menor de resgates, mascarados por uma visão pretensamente científica de que essas áreas são de baixo potencial arqueológico e com sítios “destruídos”, reforçam visões estereotipadas das histórias desse território. O Programa Guarani de Gestão dos Recursos Arqueológicos (ZANETTINI ARQUEOLOGIA, 2007, 2008, 2009, 2011), está associado ao licenciamento de áreas de 24   

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expansão de cultivo de cana de açúcar, no norte do Estado de São Paulo, envolvendo os municípios indicados na Figura 1. Quando começamos a desenvolver o Programa 5 nos pautamos na hipótese de que essas extensas áreas poderiam trazer informações inéditas para a realidade arqueológica paulista, desde que aplicadas metodologias adequadas, tanto no que concerne à identificação dos sítios quanto ao seu resgate. Ademais, essas áreas estavam inseridas em porções do Estado pouquíssimo conhecidas do ponto de vista da Arqueologia, o que só aumentava a relevância científica e social do programa. Por outro lado, da minha parte, esse programa surgia como oportunidade para a construção de um trabalho que, associado às estratégias de musealização, colaborasse para a reversibilidade dos olhares acerca dos passados excluídos da região, tomando o conceito de Mackenzie & Stone (1990), já aplicado ao interior paulista por Rodrigues & Schiavetto (1999). Para tanto, os contextos arqueológicos tinham que ser identificados, analisados, interpretados e socializados com as comunidades envolvidas.

Figura 1. Mapa dos sítios arqueológicos cadastrados no Estado de São Paulo (MORAES WICHERS, 2011). As cores mais fortes significam um maior número de sítios registrados. Os municípios do programa Guarani estão indicados pelos círculos vermelhos.

A partir da integração de abordagens oportunísticas e probabilísticas nas consecutivas etapas de campo, efetuadas entre os anos de 2007 e 2010, foram identificados 62 sítios arqueológicos.6 Esses sítios estão inseridos em 12 municípios do norte paulista, sendo                                                             

5

Uso a terceira pessoa do plural, enfatizando o trabalho em equipe realizado no âmbito desse Programa. Dentre os 62 sítios arqueológicos, temos: 14 sítios líticos, quiçá, relacionados aos contextos cronológicos mais recuados; 43 sítios lito-cerâmicos, dentre os quais, àqueles datados revelam o predomínio de sítios situados entre os séculos XV e XVII; 01 sítio arqueológico histórico associado ao século XX e 04 sítios onde temos contextos líticos e cerâmicos indígenas e vestígios posteriores, relacionados ao século XX. No 6

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que, dentre esses, apenas dois municípios possuíam um patrimônio arqueológico detectado anteriormente: Olímpia e Guaíra, com dois e seis sítios cadastrados, respectivamente. Dessa forma, esse programa representou um incremento de 700% no patrimônio arqueológico reconhecido para a região. Convém explicitar que, dentre os 62 sítios, 35 foram resgatados até o momento 7 . A detecção de uma estrutura funerária 8 no sítio Olímpia IV apontou, efetivamente, o potencial das pesquisas em áreas de cana. No que concerne à interpretação desses contextos, essa imensa região, delimitada ao norte pelo rio Grande, ao sul pelo rio Tietê, a oeste pelo rio Paraná e a leste pelo rio Pardo, é compreendida como um extenso corredor de influências de grupos indígenas diversificados, Tupis do Interior, Guaranis vindos do Sul, Jês Centrais e Meridionais, segundo dados etnográficos apresentados por Marcel Mano (2006).

Gráfico 02. Cronologia dos sítios arqueológicos pesquisados no programa (Marinheiro, Olímpia IV, Olímpia VII, Colina I, Ribeirão das Pitangueiras, Rio Grande, Guaraci, Rio Cachoeirinha II, Fazenda da Mata), comparados aos sítios datados no norte paulista (Organização: Marcel Lopes).

As reflexões aqui pontuadas estão baseadas, sobretudo, na análise dos sítios arqueológicos resgatados até o momento, sobretudo, aqueles associados aos grupos                                                                                                                                                                                            presente texto são enfatizados os resultados associados às ocupações situadas cronologicamente entre os séculos XV e XVII. 7 As etapas de resgate arqueológico foram desenvolvidas entre os anos de 2008 e 2012 e deverão ter continuidade no ano de 2013. 8 O tipo de enterramento não foi identificado, embora o crânio articulado à mandíbula e a clavícula em posição anatômica indiquem a presença de conexão e de uma possível deposição funerária primária. O NMI (número mínimo de indivíduos) é 1 (um), tratando-se de enterramento possivelmente simples. A face estava voltada para o norte e a orientação do eixo crânio-bacia não foi determinada. A estrutura funerária como um todo – materiais ósseos e dentários, recipiente cerâmico e tembetá – encontrava-se inserida na Unidade de Escavação 7. Os remanescentes ósseos e dentários, com adorno associado, encontravam-se distribuídos numa área de 60x10cm, com cota crânio de 53cm. Foi enviado para datação por AMS, no Laboratório Beta Analytic (Flórida, USA), 1 molar desarticulado do maxilar superior, coletado em campo, junto ao crânio. O resultado da datação foi de 390 +/- 40 BP (Beta – 241017/ A.M.S.), apontando para uma ocupação Tupi recente da região em estudo (PIEDADE & SILVA, 2008 Apud ZANETTINI ARQUEOLOGIA, 2008: 151). 

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indígenas que ocuparam essa região entre os séculos XV e XVII. As pesquisas realizadas evidenciaram contextos extremamente híbridos que podem ser agrupados, de forma geral, em três conjuntos: 1) Contextos Tupi que podem de forma genérica ser associados à tradição arqueológica Tupiguarani, mas que revelam características diferenciadas que não os enquadram nas subtradições apontadas por Brochado (1984), apontando para estilos regionais específicos de grupos Tupi do interior (MORAES, 2007: 2) Contextos Jê que se assemelham a sítios da tradição Aratu, mas que não se enquadram nas características apontadas pela literatura (ROBRAHN-GONZÁLEZ, 1996; FERNANDES, 2001) e ainda 3) Contextos Jê que mesclam características das Tradições Aratu/Uru. A compreensão dessas ocupações, demanda a caracterização da variabilidade artefatual em tela, dos estilos tecnológicos e das redes de interação cultural subjacentes. Defendo que a classificação desses contextos a partir de uma visão normativa de cultura acaba perpetuando uma visão estática e empobrecedora das populações indígenas, com resultados diretos nos processos de comunicação museológica. Como apresento a seguir, essa tarefa é árdua, mas extremamente significativa para uma descolonização da Arqueologia Paulista. Pesquisa arqueológica e memória social: o Programa de Educação Patrimonial

A concepção do programa partiu de uma articulação constante entre pesquisa arqueológica e musealização, integrando a dupla antropofagia do patrimônio arqueológico e assumindo as seguintes premissas: Primeira premissa: acredito que os processos de socialização do patrimônio arqueológico devem articulá-lo a outros segmentos patrimoniais. Lembro que o patrimônio cultural é uma seleção de bens e valores de uma cultura, que formam parte da propriedade simbólica de determinados grupos (MERILLAS, 2003: 20). Ao ampliarmos o leque de referências patrimoniais estamos objetivando a construção de um diálogo efetivo com a sociedade, favorecendo processos de apropriação/construção/desconstrução do conhecimento gerado pela pesquisa arqueológica. Segunda premissa: tomo a disciplina Museológica (BRUNO, 2000), em particular os princípios da Sociomuseologia (MORAES WICHERS, 2010), como aporte teórico e metodológico no desenvolvimento das ações, dialogando também com a metodologia da Educação Patrimonial. Ao abordar a metodologia da Educação Patrimonial busquei, em trabalho anterior (MORAES WICHERS, 2011), compreender a estratigrafia da relação entre 27   

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patrimônio, educação e museus retrocedendo à primeira metade do século XX. Entendo essa abordagem histórica como fundamental para compreensão de como essa metodologia foi antropofagizada (CHAGAS, 2004), transformando-se em um campo autônomo, repleto de possibilidades no cenário contemporâneo. A concepção do programa partiu da compreensão de que processos museológicos potencializam a relação entre homem (sociedade) e objeto (patrimônio) para além dos cenários museológicos institucionalizados. Ainda que o programa não esteja sendo desenvolvido no seio de uma instituição museológica, a ação educativa centrada no patrimônio é um processo de natureza museológica. Ademais, me situo no âmbito da teoria construtivista que associa uma visão idealista do conhecimento ao papel ativo do indivíduo na aprendizagem, afirmando ainda a educação como prática política, aspecto particular ao pensamento freireano (FREIRE, 1987). O programa foi organizado em três etapas: levantamento das realidades locais, multiplicação do conhecimento e avaliação do processo, inseridas em uma engrenagem metodológica na qual os processos de avaliação ocupam lugar de destaque, posto que esses processos possibilitam a retroalimentação do programa, de caráter continuado.9 O levantamento das realidades locais foi realizado sempre de forma concomitante ao próprio trabalho de Arqueologia. Nesse sentido, a coordenação integrada do programa de gestão e de educação patrimonial possibilitou uma visão integral do processo, permitindo uma reflexão profunda acerca da interface Arqueologia - Museologia. O programa foi direcionado, prioritariamente à educação formal, 10 por meio do trabalho com educadores, compreendidos como “agentes da educação da memória” (BRUNO, 2006) e multiplicadores por excelência do programa. Najjar (2011), a respeito das críticas dirigidas aos programas de Educação Patrimonial que atuam apenas com a educação formal, salienta que dialogar somente com a                                                              9

As ações aqui descritas foram desenvolvidas entre 2008 e 2010. A partir de então, ocorreram apenas ações pontuais na região, sendo que o programa deverá ser retomado, em maior profundidade, ao longo de 2013. 10 Além das ações voltadas para o público escolar aqui abordado, foram realizadas: palestras em cursos técnicos, sinalização de sítios arqueológicos, participações na Feira do Folclore de Olímpia e ações preliminares com trabalhadores do corte de cana. No que concerne ao último público mencionado, entendo que um espaço próprio de diálogo deve ser criado com esses sujeitos, para além, por exemplo, de palestras inseridas nos diálogos de saúde e segurança, ou ainda, conversas realizadas nos ônibus que fazem o transporte desses trabalhadores – caminhos que nos recusamos a percorrer. O que vemos é a inserção da Arqueologia nas ‘brechas’ de um dia já bastante cansativo. Outra questão de suma importância é como estabelecer uma ponte com o cotidiano desses sujeitos. Nesse sentido, partir do cotidiano de trabalho é um caminho. Do contrário: qual o significado de despejarmos “nosso conhecimento” sobre essas pessoas? Temos esse direito? Um programa de levantamento de histórias de vida, pautado nas memórias individuais, foi concebido para o trabalho com esse público, tendo sido realizadas as primeiras oficinas no ano de 2011, as quais foram conduzidas por Louise Prado Alfonso. Pretendemos dar continuidade a essa proposta ao longo desse ano.

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escola é uma perspectiva estreita, mas não dialogar é mais estreito ainda. O educador aponta a relação Arqueologia, Cidadania e Escola como uma “trama a ser tecida”, onde a Educação Patrimonial pode alargar os processos de cidadania social. Ainda na etapa de levantamento, foi realizada a concepção do material didático de apoio, composto por caderno de apoio ao multiplicador, caderno para público infanto juvenil e kit de réplicas arqueológicas. Por sua vez, a etapa de multiplicação envolveu a realização de oficinas organizadas em dois eixos estruturantes: 1) O método científico da Arqueologia possibilita o entendimento de como se dá a construção do conhecimento científico, tornando-se uma poderosa ferramenta pedagógica; 2) O conhecimento que a Arqueologia constrói pode possibilitar uma melhor compreensão do passado regional, enfatizando a diversidade cultural do território. Durantes as etapas de 2009 e 2010, aqui analisadas, foram envolvidos 324 educadores nas oficinas realizadas, conforme demonstra a Tabela 1.

Município Olímpia Colina Tanabi Pedranópolis Barretos

Tabela 1. Educadores envolvidos no programa Ano Nº de Oficinas Total de educadores 2009 2 77 2010 2 47 2010 4 63 2010 1 20 2010 4 127

Nas oficinas foi recorrente a negação das diversas ocupações indígenas desse território, e o desconhecimento do fato do Estado de São Paulo apresentar diversas terras indígenas, prevalecendo uma visão de um “índio homogêneo que pertence ao passado”. Uma simples consulta aos sites de prefeituras dos municípios abordados deixa clara essa visão: Em meados do século passado, entre os aventureiros da exploração e conquista das terras virgens e incultas, estava o mineiro Antônio Joaquim Miguel dos Santos, que 11 perpetrou o devassamento pioneiro da terra que hoje habitamos[...] Os intrépidos exploradores deste sertão até então desconhecido foram, dentre outros, os companheiros do célebre Anhanguera e alguns outros aventureiros [...], à procura das terras devolutas, vieram os criadores de gado buscando melhores condições para 12 a criação e desenvolvimento de seus rebanhos .

                                                            

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Dados presentes em http://www.olimpia.sp.gov.br/index.php?abre=olimpia=sp=historia=de=olimpia Acessado em 18 de Março de 2013. 12 Dados presentes em http://www.barretos.sp.gov.br/site-migracaodafamiliabarreto Acessado em 18 de Março de 2013.

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A figura do colonizador é correntemente destacada como alguém que imbuído de coragem chega a uma região com “terras devolutas”, sem menção aos grupos indígenas que ocupavam essas terras, resultando em uma idealização de um passado sem conflitos. Não estou advogando aqui a existência de uma memória coletiva homogênea, uma vez que a substância da memória é tanto individual quanto social, como adverte Marilena Chauí: “o grupo retém e reforça as lembranças, mas o recordador, ao trabalhá-las, vai paulatinamente individualizando a memória comunitária” (CHAUÍ, 1987: XXX). A mesma autora, dialogando ainda com a obra seminal de Ecléa Bosi (1987), fala da opressão da memória, cuja ação mais sinistra seria a da “história oficial celebrativa cujo triunfalismo é a vitória do vencedor a pisotear a tradição dos vencidos” (CHAUÍ, 1987: XIX). Ora, a história do interior paulista tem sido contada a partir da apologia dos bandeirantes e cafeicultores, revelando a permanência secular do discurso da exclusão (FUNARI, 2006).

Marly

Rodrigues, ao analisar a instituição do patrimônio em São Paulo, aponta: Do conjunto de bens tombados no Estado de São Paulo, fazem parte poucas memórias de negros, de imigrantes e de trabalhadores. Os remanescentes de sedes de fazenda e ricas mansões urbanas sombreiam os de senzala, dos cortiços e dos bairros operários. Desse modo o patrimônio paulista se apresenta não apenas como perpetuador da memória, mas também do esquecimento oficial. A exclusão atinge não apenas os excluídos, mas remete toda a sociedade à idealização do passado como um tempo desprovido de contradições e diferenças. Além disso, não permite a reflexão sobre as relações hoje vigentes na sociedade, dessa forma reafirmando igualdades idealizadas e camuflando conflitos [...] (RODRIGUES, 1999: 151).

Incluímos ainda a essa assertiva, as memórias relativas aos grupos indígenas. Funari (2006), ao analisar a obra de Marly Rodrigues (1999), aponta que neste modelo normativo, a diferença aparece como desvio de norma, uma idealização do passado, cujos trechos apresentados das prefeituras de Olímpia e Barretos continuam a perpetuar. Para Santos (2003/2012), as representações coletivas podem ser responsáveis por processos de inclusão ou exclusão social. Assim, “a memória também é responsável pela imposição de coerções, exclusões e toda a sorte de controle social” (SANTOS, 2003/2012: 35). A mesma autora evidencia que é necessário aceitarmos que existem diversas formas de lidar com o passado e que todas elas envolvem interesses, poder e exclusões. Essa breve digressão sobre a questão da memória social teve como objetivo pontuar um momento importante do Programa de Educação Patrimonial, quando optamos por problematizar as memórias em tela, enfatizando alguns dentre os resultados das pesquisas. Assim, os sítios arqueológicos estudados, datados entre os séculos XV e XVII, foram utilizados como mote para discussões acerca da colonização da região e extermínio dos 30   

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grupos indígenas, a partir da problematização dos conceitos de memória coletiva, memórias subterrâneas, memórias exiladas e passados excluídos (HALBWACHS, 1968/2006; POLLACK, 1989, 1992; BRUNO, 1995, 2000; SCHIAVETTO & RODRIGUES, 1999; SANTOS, 2003/2012). Essa discussão só se tornou possível devido à prática arqueológica que, desde o início das pesquisas, se pautou na construção de um discurso a privilegiar o conceito de diversidade cultural, no qual o passado é projetado como diferença, conflito e resistência. Postura diametralmente oposta àquela que classifica as áreas em questão como destituídas de interesse arqueológico, ou ainda, àquela que classifica a cultura material sob o manto de tradições arqueológicas homogêneas. Não detalharei aqui cada uma das oficinas realizadas13, me atendo a um aspecto de importância fulcral, pouco abordado nos programas de educação patrimonial: a avaliação. O que significou o envolvimento dos educadores? Quais os efetivos resultados quando falamos de memória e esquecimento? A avaliação constitui-se em atividade essencial a qualquer ação educativa, contudo, ainda é pouco praticada em programas de educação patrimonial. Para Almeida (2006) a meta principal da avaliação é produzir informações de qualidade para a tomada de decisões, seja em um museu ou em outras instituições culturais e educacionais. Acredito que a avaliação da ação educativa em epígrafe poderá ser inspiradora de mudanças nas próximas etapas do programa, assim como a retroalimentação da prática arqueológica e museológica da equipe envolvida. O programa envolveu três eixos de avaliação: 1) Avaliação durante as oficinas - as primeiras impressões dos agentes multiplicadores: ao final das oficinas foi apresentada para os professores uma “Ficha de Avaliação da Oficina”, formada por quatro indicadores quantitativos e quatro qualitativos; 2) Depois da multiplicação - encontro de avaliação do processo educativo: a “Oficina de Formação de Multiplicadores” foi seguida do desenvolvimento de projetos pedagógicos em sala de aula e de um último encontro, com o objetivo de trocar experiências a respeito do processo. Nesse encontro, os professores apresentaram os projetos desenvolvidos, discutiram as potencialidades e fragilidades do programa e entregaram um relatório com o projeto realizado. Os projetos pedagógicos foram desenvolvidos de forma individual, em grupo ou por escola, totalizando 98 projetos. Nesse sentido optamos por deixar que cada educador escolhesse se desenvolveria sozinho ou em grupo a proposta. Da mesma forma, não houve                                                             

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Cf. MORAES WICHERS, 2011; ZANETTINI ARQUEOLOGIA, 2011.

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uma especificação sobre a forma de entrega do relatório mencionado, uma vez que optamos por conduzir o processo de forma mais aberta, plural e democrática. Em Olímpia, merece destaque o fato de que uma exposição dos trabalhos realizados foi montada na Secretaria de Educação, sendo uma ação desenvolvida a partir dos cartazes, réplicas de objetos arqueológicos, maquetes, enfim, produtos das atividades realizadas em sala de aula. Por meio dos relatórios entregues pudemos analisar as metodologias empregadas14 e as temáticas mais frequentes nos projetos desenvolvidos, expressas no gráfico a seguir:

Gráfico 03. Porcentagem das temáticas abordadas pelos educadores nos projetos pedagógicos

3) Para além dos agentes multiplicadores - os trabalhos produzidos pelos alunos: uma terceira análise efetuada refere-se aos trabalhos realizados pelos alunos, os quais foram anexados aos relatórios encaminhados pelos educadores. Foi possível ter acesso a mais de 400 trabalhos, envolvendo linguagem visual e escrita. Essa análise possibilitou o acesso aos conteúdos e mensagens que chegaram do outro lado do eixo de comunicação, uma vez que tivemos contato direto apenas com os educadores e não com os alunos. Diante da lacuna observada na bibliografia pertinente, o método apresentado pelo projeto do Conselho de Museus, Arquivos e Bibliotecas da Grã-Bretanha, denominado Learning Impact Research Project foi utilizado, a partir de cinco resultados: conhecimento e compreensão; habilidades; atitudes e valores; prazer, inspiração, criatividade; ação, comportamento, progresso (ver Figura 2).

                                                             14

Leitura do material com os alunos, realização das atividades propostas no material, produção de textos, produção de cartazes, atividades com artes plásticas, atividades com música, atividades com materiais audiovisuais, pesquisas na Internet, entrevistas com familiares e membros da comunidade, visita a bens patrimoniais, visita a museus, confecção de maquetes, oficinas de produção cerâmica, sítio arqueológico simulado, montagem de exposições e teatralização. Destacamos que grande parte das abordagens mencionadas não estava presentes no material de apoio didático, tendo sido concebidas pelos próprios educadores.

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Figura 2. Produção de aluno, imagem da atividade desenvolvida (visita ao Museu do Folclore de Olímpia) e Ficha de análise correspondente aos GLO - Resultados Genéricos de Aprendizagem.

Considerações finais O Estado de São Paulo ocupa lugar de destaque no mercado sucroalcooleiro, sendo responsável por metade da produção nacional. Contudo, as pesquisas arqueológicas não têm “acompanhado” o avanço das safras.

Dentre as pesquisas realizadas, pouquíssimas têm

envolvido a escavação sistemática desses contextos (resgate), sendo necessário averiguar essa situação. Vemos que tais contextos continuam sendo pontuados como áreas de baixo potencial arqueológico e/ou como sítios arqueológicos destruídos. Amarras teóricometodológicas e ideológicas, via de regra, tem empobrecido o potencial dessas áreas para a pesquisa, bem como a função política e social do discurso arqueológico nesses contextos. Conforme mencionado, os contextos sociais em tela são marcados pela negação das ocupações indígenas desse território e/ou por sua homogeneização em visões estereotipadas. Trazer à tona discussões arqueológicas contemporâneas, como por exemplo, o questionamento da ideia de que as tradições arqueológicas encerram culturas homogêneas, torna-se extremamente difícil em contextos onde essas populações foram desprezadas, excluídas e apagadas da memória social. Mas, esse é um esforço urgente. Os resultados do programa de pesquisa trouxeram à tona dados bastante concretos com relação à ocupação indígena desse território, sobretudo, entre os séculos XV e XVII. Esse foi o principal dado arqueológico utilizado no processo de musealização e nesse sentido a Arqueologia foi utilizada como uma ferramenta política poderosa.

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O principal elemento para o efetivo desenvolvimento do Programa de Educação Patrimonial, aqui entendido como processo de musealização, tem sido o protagonismo dos educadores, aqui entendidos como multiplicadores e agentes da educação da memória. Foram envolvidos 334 educadores, os quais possibilitaram o desenvolvimento do programa para um público escolar de mais de 6000 alunos. A efetiva parceria estabelecida na Oficina foi à mola propulsora para que os projetos pedagógicos fossem desenvolvidos, tendo como pano de fundo os conteúdos debatidos, mas indo além. As estratégias metodológicas foram bastante ampliadas em relação às sugestões e propostas do programa. Foram esses protagonistas que potencializaram o uso do patrimônio arqueológico de forma que o ‘trabalho morto’ que nele foi investido fosse transformado em suporte de novos investimentos simbólicos (DURHAM, 1984: 34) Como afirma Grazzi (2009), a escola ainda apresenta conteúdos estagnados e estereotipados referentes à imagem-identidade do indígena brasileiro. Defendo que a temática indígena, trabalhada pelo viés da Arqueologia coloca-se como ponto fundamental para a formação de cidadãos e para a inclusão social. Acredito que o programa colaborou para um primeiro movimento de mudança em relação a esses passados excluídos, atuando para a reversibilidade dos olhares acerca dessas populações. Não obstante, foram apenas os primeiros passos de uma longa caminhada, dados os desafios evidenciados. É importante salientar que todo o tempo atuamos como mediadores e tivemos que certamente negociar com nossos interlocutores. Por um lado, objetivávamos trabalhar com as memórias exiladas e com os passados indígenas excluídos. Por outro lado, a premissa de que temos que inserir nos discursos patrimoniais as diferentes visões dos sujeitos envolvidos trazia desafios constantes. O exemplo da Festa do Peão de Barretos, trabalhado de forma notável nos projetos pedagógicos mostra essa negociação. Há que se incluir as diferentes visões acerca do patrimônio, mas sem esquecer que essas visões por vezes excluíram importantes partes da história, como o extermínio das sociedades indígenas. No programa trazido à baila, o fazer museológico esteve organicamente integrado ao fazer arqueológico, partindo dos mesmos posicionamentos teóricos, políticos e éticos. Tais proposições englobam as construções de histórias indígenas para o interior paulista, problematizando os passados excluídos e inserindo na agenda da Arqueologia Paulista questões concernentes à memória social.

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Agradecimentos À equipe da Zanettini Arqueologia que atua nesse projeto, em especial: Paulo Zanettini, pelas observações ao trabalho; Luana Antoneto Alberto pelas pesquisas de campo; Marcel Lopes pelas análises e discussões acerca dos artefatos; Louise Prado Alfonso, pela atuação no programa de Educação Patrimonial.

À equipe do Grupo de Estudos

Arqueológicos (GEA)/ Museu de Arqueologia e Paleontologia de Araraquara (MAPA) que tem realizado os procedimentos curatoriais e analíticos dos acervos. Por fim, às comunidades de Olímpia, Barretos, Colina, Tanabi e Pedranópolis por terem recebido o Programa de Educação Patrimonial e me possibilitado uma leitura crítica do mesmo. Referências bibliográficas

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ARQUEOLOGIA E PODER: A LEGITIMAÇÃO DO ESTADO Archaeology and Power: the state legitimation Cláudio Umpierre Carlan1

RESUMO O artigo começa por discutir questões políticas relacionadas com o mundo romano nos séculos III e IV d.C. O trabalho enfatiza a importância de usar uma variedade de fontes históricas, como iconográfica, arqueológica e artística. Palavras-chave: Arqueologia, Moeda, Roma ABSTRACT The paper begins by discussing political issues relating to the Roman world in the 3rd. c. AD and in the beginning of the 4th c. The paper emphasizes the importance of using a variety of historical sources, such as iconographic, archaeological, and art historical. Keywords: Archaeology, Coin, Rome RESUMEN El artículo comienza por discutir cuestiones de política relacionadas con el mundo romano en los siglos III y IV d.C. El trabajo hace hincapié en la importancia del uso de una variedad de fuentes históricas, como iconográfica, arqueológica, histórica y artística. Palabras clave: Arqueología, Moneda, Roma Introdução

Em Roma, a propaganda estava intimamente ligada às cunhagens monetárias. As moedas não apenas são instrumentos importantes para estabelecer a datação dos documentos que chegaram até nós sem seu contexto original, como são de grande valia na compreensão dessas mensagens simbólicas descritas no corpo monetário. O reverso monetário dessas peças, conhecido vulgarmente como coroa, mostra determinada imagem, representando uma divindade (Virtude, Júpiter, Hércules, a própria                                                              1

Pós Doutorando em Arqueologia do NEPAM/UNICAMP, professor adjunto 3 de História Antiga da Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL-MG), pesquisador associado ao grupo de pesquisa Arqueologia Histórica da UNICAMP. E-mail: [email protected]

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cidade de Roma, a VRBS...), uma construção (campo militar, portões de uma fortaleza), o exército (dois legionários montando guarda), cenas de batalha (imperador derrotando seus inimigos), casamentos, uniões dinásticas, tentativa de legitimar um determinado poder. Podendo vir acompanhado de legendas que podem identificar, ou não, a imagem. Já nos anversos monetários (cara), temos em destaque o busto do imperador diademado (com diadema imperial), laureado (coroa de louros) ou encouraçado (com armadura, couraça, uniformes militares). A perfeição dos detalhes nos mostra a importância e o cuidado do artesão em confeccionar essas imagens. Pois, num mundo no qual não existiam meios de informação comparáveis aos nossos, o analfabetismo se estendia a numerosas camadas da população, a moeda é um objeto palpável, que abre todas as portas e proporciona bem-estar. Nela, pode-se contemplar o busto do soberano, enquanto os reversos mostram suas virtudes e a prosperidade da época: Felicitas Temporvm, Restitvtio Orbis, Victoria e Pax Avgvsta... são slogans, propaganda (ROLDÁN HERVÁS, 1975: 166). A moeda, como documento, pode informar sobre os mais variados aspectos de uma sociedade. Tanto político e estatal, como jurídico, militar, religioso, mitológico, estético, artístico. Nesse texto, daremos um destaque maior a questão política, como os imperadores procuravam legitimar seu governo, através das representações monetárias. Roma e a legitimação política.

O desenvolvimento do retrato individual é geralmente considerado como uma das principais realizações da arte romana. Esse ponto de vista é, talvez, um tanto paradoxal, já que os artistas que produziram a maioria dos retratos conservados eram, de fato, gregos. Porém, trabalhavam sob patrocínio de romanos abastados e a sua obra é uma resposta às necessidades romanas e um reflexo dos gostos dessa sociedade. A característica distintiva desse estilo de retrato é um extremo realismo, com particular realce para os aspectos pouco atraentes dos indivíduos representados. As origens desse estilo verista são difíceis de determinar, mas não há dúvida que agradava muito aos romanos, que gostavam de se ver como um povo forte, honesto e nada fantasioso. Essa característica foi utilizada nas cunhagens monetárias. Diferente dos gregos, os chamados “inventores” da moeda (segundo Heródoto na Lígia, século VII a. C.), que representavam deuses e personagens ligados à mitologia (dando 40   

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um aspecto sagrado à moeda), os romanos seguiam padrão diferente, adotando uma certa veracidade em seus retratos. Para conhecermos melhor o mundo romano, Funari afirma que dispomos de diversas fontes de informações como: documentos escritos, objetos, pinturas, esculturas, edifícios, moedas, entre outros (FUNARI, 2002: 78). Nesse sentido, daremos um destaque maior as amoedações, pois além de oferecer um bem estar econômico, mostra também os seus aspectos icônicos. Analisando os anversos e reversos monetários como imagens fabricadas, elas imitam aquilo a que se referem. Qualquer signo, mesmo o iconográfico gravado segundo processos físicos ou naturais, é construído segundo regras determinadas que implicam convenções sociais. Ela circula de fato nos três níveis, sendo simultaneamente ícone, índice e símbolo convencional. Os povos que habitavam o vasto império romano tinham conhecimento de que o busto representado naquela diminuta peça de bronze, prata ou ouro era do seu governante. A moeda foi introduzida em Roma durante a República, na qual, as famílias senatoriais cunhavam suas próprias peças (podemos chamar de uma produção particular). Mas, foi com Augusto (63 a. C. – 14 d. C.) que os aspectos artísticos, não apenas das peças, mas também da arquitetura, são associados a uma propaganda política/ideológica, cuja função era de legitimar o poder do governante (ZANKER, 1992: 86). No início do século IV, Diocleciano e os demais membros da tetrarquia (295 – 305) realizam uma reforma monetária e uma nova amoedação, os dupondii (CAYON, 1985: 45). Essa moeda de bronze de diâmetro superior a 2,5mm, pesando mais de 8g, é identificada, no reverso à representação de Júpiter seminu com os ombros cobertos, nas peças de Diocleciano, ou Hércules com a pele do leão nas de Maximiano, entregando para o imperador o globo, encimado pela Vitória com uma coroa de louros pronto para coroá-lo, como se as divindades protetoras de Roma estivessem abençoando os novos governantes. Fortalecendo assim a legitimação do poder imperial.

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Acervo do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro. Foto: Cláudio Umpierre Carlan, maio de 2005.

Descrição da Moeda

Anverso: MAXIMIANVS NOB CAES Reverso: SACRA. MONET. AVGG. ET CAESS. NOSTR

Busto de Maximiano, à direita, na legenda, descrevemos o título da família imperial romana, usado no século IV, Nobilíssimo César. No reverso, a deusa Juno, com cornucópia, símbolo da abundância e balança, justiça. Trata-se de uma divindade protetora, comum desde período de Augusto, século I a. C. Como uns dos obetivos da tetrarquia era retorno aos tempos do principado, a partir do governo de Diocleciano, essa mensagem será cada vez mais comum. Os tetrarcas mandaram gravar essa inscrição no mármore do Senado, em Roma. Outro detalhe significativo foi o banho de prata na peça e o exergo ou linha de terra, PT, que identifica a casa monetária. Nesse caso, primeira casa da moeda de Trier Ou Tréveres, atual Alemanha. Tanto o exergo, quanto o banho de prata, foram iniciativas de Diocleciano e Maximiano, durante a reforma monetária no início do século IV (CARLAN, 2012: 56). O banho de prata nas moedas de bronze foi muito utilizado durante a escassez do metal, na Antiguidade Tardia. Apesar de prejudicar a conservação da moeda, por causa da oxidação, alguns exemplares conseguiram manter uma tênue camada de prata, realçando as representações de anverso e reverso. Numismática e o Estado

O artista, nesse caso o artesão, tem a tendência de interpretar o que foi gravado. Com o desenvolvimento do colecionismo do século XVIII, as escavações em Herculano e Pompéia 42   

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(Winckelmann já dizia que a sociedade perfeita, a Clássica, tinha de ser imitada), o gosto pela Antiguidade e o aumento do material disponível nos museus, ajudaram na criação das primeiras sociedades numismáticas do século XIX. Algo mais que um meio de comunicação, ou de exposição dos grandes mistérios da mitologia, religião, poder. A revolução da imagem como meio de comunicação inicia outros caminhos. A exposição pública passa ser contemplada em salões e museus. Sendo a moeda um objeto fabricado pela mão do homem, o metal utilizado para fabricação das peças, como também as gravuras e legendas, traz à luz a História Política e das Artes. Já a circulação monetária, auxiliada por um trabalho metodológico de conhecimento das técnicas de análise, é de ajuda fundamental para o estudo da História Econômica. Nas amoedações mais antigas, seu trabalho chega a ser artesanal. Certas emissões possuem características próprias (como nas moedas cunhadas por Constantino e Constâncio II, por exemplo). Uma mesma série (variantes) pode aparentar diferenças voluntárias ou involuntárias (CORVISIER, 1997: 162), denominadas incidentes das batidas.

Acervo do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro. Foto: Cláudio Umpierre Carlan, setembro de 1997.

Descrição da Moeda

Anverso: FL IVL CONSTANTIVS NOB C Reverso: PROVIDENTIA CAESS / SNNΓ

No anverso, busto de Constâncio II, filho e herdeiro político de Constantino I, o grande. Na legenda, seu nome (Flavio Júlio Constâncio) e título (Nobilíssimo César), abreviado como era costume em Roma, nos monumentos e amoedações. Face voltada para a esquerda, com diadema, indicando sua ascensão como César.

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Identificamos no reverso, a representação de uma construção, fortaleza ou muralhas de uma cidade, com duas torres, e uma estrela logo acima. No exergo ou linha de terra, o local de cunhagem, segunda casa monetária de Nicomédia. A estrela remete ao período de Augusto, no qual Suetônio descreve como uma mensagem de Júlio César, reconhecendo sobrinho-neto como seu sucessor e herdeiro. Segundo Cohen, seria parte de um campo militar aberto (COHEN, 1888: 117). Gomes Marques acrescenta que, tanto as peças de Constâncio II como a de seu pai, Constantino, são as que melhor representam os temas que envolvem as construções (MARQUES, 1982: 137). Nesse sentido, notamos as torres circulares, comum nos portões principais das muralhas a partir do século IV e V. Denominação, AE3, estado de conservação belo (B), diâmetro de 1.9 mm, peso de 3,70g, alto reverso 12 horas. Existem outras peças com representações referentes a esse tema cunhadas na Siscia, Roma, Antioquia, Heracleia, Nicomédia, Cizico (CARLAN, 2012: 72). Esses incidentes conhecidos porque na época da cunhagem, a peça escapava do controle dos artesãos. Pode-se dizer que a pancada do martelo foi fraca na tentativa de reduplicar a moeda, ou até mesmo o desinteresse dos responsáveis, pois poderiam estar precisando que aquela peça entrasse logo em circulação. Em Roma, a moeda unificava todo um território que estava submetido a um mesmo poder político. Mais que a língua e a religião, era um dos poucos instrumentos que permanecia imutável de uma parte a outra do Império. As variações correspondiam às oficinas monetárias e ao chefe do governo. É possível considerá-la como uma transmissora de uma ideologia e do poder político. Nesse sentido, as amoedações emitiam mensagens do poder de um soberano emissor. Pelo metal precioso, ou não, em que estava lavrada, ela veiculava também a ideologia comum a uma civilização, nesse caso a cristã ocidental ou a orientação política de um governante. As suas legendas, tipos, refletiam a estrutura mental de um povo ou de vários povos, como também retratavam o fato vivido.

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Considerações finais

Um setor importante das necessidades humanas, satisfeitas mediante as diferentes artes decorativas, corresponde às que se orientam para expressão de uma hierarquia ou a satisfação dos sinais externos do cerimonial prescrito numa determinada circunstância. Em muitos momentos ao longo da História, essas interiorizações foram consideradas de elementos imprescindíveis para detonar respeito e acatamento para a autoridade constituída, seja de um caráter religioso ou de qualquer outra índole. Os símbolos que habitam a numismática estão dotados sempre de uma clara organização hieroglífica, pois procedem do fato de que essas imagens difundidas se articulam sempre com o idioma figurado, no qual o poder se expressa secularmente. Trata-se, segundo Flor, do surgimento de representações de águias, leões, como também de torres, cruzes (FLOR: 1995, 183), da fênix, de imperadores ou de personagens pertencentes a uma elite político-econômica, que representam a órbita de ação do poder, chegando ao ponto em que a numismática pode ser definida “como um monumento oficial a serviço do Estado” (FLOR, 1995: 186). Lembramos ainda que, como afirma Cassirer, “[...] em lugar de definir o homem como um animal rationale, deveríamos defini-lo como um animal symbolicum (CASSIRER, 1977: 70). O poder não pode ser apreendido pelo estudo do conflito, da luta e da resistência, a não ser em suas manifestações mais restritas. O poder não é característico de uma classe ou de uma elite dominante, nem pode ser atribuído a uma delas. Para Foucault o poder é uma estratégia atribuída às funções. O poder não se origina nem na política, nem na economia, e não é ali que se encontram suas bases. Ele existe como uma rede infinitamente complexa de micropoderes, de relações de poder que permeiam todos os aspectos sociais. O poder não se reprime, mas também cria. Dentre todos esses aspectos, o mais polêmico de todos é a constatação que o poder cria a verdade e, portanto, a sua própria legitimação. Cabe aos historiadores identificar essa produção da verdade como uma função do poder (HUNT, 1995: 46). Segundo Funari: “[...] Não se trata, assim, de acreditar no que diz o documento, mas de buscar o que está por trás do que lemos, de perceber quais as intenções e os interesses que explicam a opinião emitida pelo autor, esse nosso foco de atenção” (1993: 86).

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Agradecimentos A Pedro Paulo Abreu Funari, José Remesal-Rodríguez, aos colegas e amigos do LAP – UNICAMP, pela oportuidade de trocarmos ideias; Maria Beatriz Florenzano, Ciro Flamarion Cardoso, Vera Lúcia Tostes, Eiane Rose Nery, Rejane Maria Lobo Vieira, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal Superior (CAPES). As responsabilidades pelas ideias restringem-se ao autor. Fontes Numismáticas Moedas de Bronze dos seguintes Imperadores: Maximiano e Constâncio II; pertencentes ao acervo do Museu Histórico Nacional/Rio de Janeiro: Medalheiro de Número 3; Lotes Números: 11 ao 37, dando um total de 1888 peças. Referências bibliográficas CARLAN, Cláudio Umpierre. Moeda, Política e Propaganda: as moedas de Constâncio II. Santos: Artefato Cultura, 2012. CARLAN, Cláudio Umpierre. FUNARI, Pedro Paulo Abreu. Moedas: a numismática e o estudo da História. São Paulo: Annablume, 2012. CASSIRE, E. Antropologia Filosófica. Ensaio sobre o Homem. São Paulo: Mestre Jou, 1977. CAYON, Juan. Compendio de las Monedas Del Império Romano. V.2. Madrid: Imprenta Fareso, 1985. COHEN, Hernry. Description Historique des Monnaies.Frappés Sous L’Empiere Romain. Communément Appelées Médailles Impériales. Deuxième Edition. Tome Septième e Huitième. Paris: Rollim e Feuardent, Éditeurs, 1880-1892. CORVISIER, Jean-Nicolas. Sources et Methodes em Histoire Ancienne. Pr. Edition. Paris: Presses Universitaires de France, 1997. DEPEYROT, G. Economie et Numismatique (284-491). Paris: Errance, 1987. FLOR, Fernando R. de La. Emblemas Lectures de La Imagem Simbólica. Madrid: Alianza Editorial, 1995. FUNARI, Pedro Paulo Abreu. Grécia e Roma. Vida Pública e vida privada. Cultura, pensamento e mitologia. Amor e sexualidade. 2ª.ed. São Paulo: Contexto, 2002. FUNARI, Pedro Paulo Abreu. Roma Vida Pública e Vida Privada. 4ª.ed. São Paulo: Atual, 1993. HUNT, Lynn. A Nova História Cultural. São Paulo: Martins Fontes, 1992. 46   

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A ARQUEOLOGIA AMAZÔNICA E IDEOLOGIA: UMA SÍNTESE DE SUAS INTERPRETAÇÕES Amazonian Archaeology and Ideology: a synthesis of its interpretation Denise Maria Cavalcante Gomes1

RESUMO Este artigo discute três posições existentes acerca do desenvolvimento cultural na Amazônia pré-colonial. Seu objetivo é enfatizar o conteúdo ideológico de cada uma delas, demonstrando que a interpretação arqueológica está sempre associada a determinados contextos sociopolíticos. Por outro lado, o artigo apresenta uma reflexão sobre o possível impacto social destas interpretações e os usos políticos da Arqueologia por parte de populações indígenas e ribeirinhas na Amazônia e em outros contextos da América Latina. Palavras-chave: Arqueologia Amazônica, Interpretações, Usos políticos ABSTRACT This article discusses three positions on cultural development of pre-colonial Amazonia. Its goal is to emphasize the ideological character of each one, demonstrating that the archaeological interpretation is always associated to specific sociopolitical contexts. On the other hand, the article presents a reflection on the possibilities of social impact of these interpretations and the political uses of Archaeology by indigenous and riverine populations in Amazonia and in other contexts in Latin America. Keywords: Amazonian Archaeology, Interpretations, Political Uses RESUMEN Este artículo discute tres posiciones existentes acerca del desarrollo cultural de la Amazonia pre-colonial. Su objetivo es dar énfasis en el contenido ideológico de cada uno de ellas, demostrando que la interpretación arqueológica siempre se asocia con determinados contextos sociopolíticos. Por otra parte, el artículo presenta una reflexión sobre el posible impacto social de estas interpretaciones y los usos políticos de la arqueología por pueblos indígenas y mestizos en la Amazonía e en otros contextos de América Latina. Palabras clave: Arqueología Amazónica, Interpretaciones, Usos Políticos

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Introdução

A Arqueologia amazônica tem reunido interpretações irreconciliáveis sobre seu passado pré-colonial. Restrições impostas pelo meio ambiente foram apontadas como fatores limitantes ao desenvolvimento cultural das sociedades pré-coloniais tardias na Amazônia, mantendo-as num nível semelhante aos grupos indígenas contemporâneos (MEGGERS, 1954, 1971). Num outro extremo, este discurso foi negado e a existência de sociedades complexas, hierarquizadas e politicamente centralizadas foi reconhecida com grande alarde (Roosevelt 1980, 1987, 1991, 1992, 1999). Críticas a este modelo foram formuladas (GOMES, 2007). Estas diferentes visões foram vistas como produto de contextos históricos particulares. Entretanto, a contribuição da Arqueologia crítica nos permite ir além e reconhecer o conteúdo ideológico das interpretações existentes, bem como identificar as tendências divergentes como parte desta mesma lógica que se inscreve não só no mundo acadêmico, mas na prática arqueológica e em sua relação com o público. No final da década de 1980, Michael Shanks e Christopher Tilley sugeriram que a Arqueologia era uma disciplina afeita ao estudo das relações de poder. Esta representava uma crítica contundente ao abandono da concepção humanística da disciplina, dedicada ao resgate do passado e de sua relevância no presente, para ser reconfigurada como ciência positivista nos moldes das ciências físicas e naturais. Os autores não só denunciavam a ilusão propagada pela New Archaeology com suas leis gerais e a falsa noção de neutralidade científica, mas enfatizavam o caráter ideológico da prática arqueológica fortemente associada aos processos sociais do presente e aos valores capitalistas. Por outro lado, os mesmos autores apontaram que a Arqueologia poderia ser concebida como uma forma de ação política e social, com potencial de emancipação (TILLEY, 1989:105). Isto implicava em reconhecer o passado não como algo fixo e imóvel, mas passível de ser reinterpretado e reconstruído no contexto da ordem social presente. Aos arqueólogos se colocava o desafio de desvendar os modos pelos quais os estudos de cultura material poderiam ser usados para legitimar estratégias de poder e práticas ideológicas tanto no passado como no presente, conferindo à Arqueologia um papel crítico no âmbito de sua interface com o público. Mais de vinte anos depois que estas ideias desafiaram as concepções teóricas e metodológicas voltadas à construção de uma ciência arqueológica objetiva, é possível concluir que a disciplina evoluiu em múltiplas direções. Se nos países capitalistas de ponta as abordagens cientificistas ainda são dominantes em termos de produção do conhecimento, suas 49   

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minorias têm se valido das contribuições da Arqueologia para estabelecer conexões relevantes para a construção de identidades, algumas vezes facilitando negociações políticas. Na América Latina a paisagem sociopolítica é diversificada, mas não menos interessante. De um lado a Arqueologia se tornou negócio, no contexto do licenciamento ambiental nos países em desenvolvimento, sendo que as conexões com o público se dão muitas vezes numa esfera formalizada mediada pela legislação. De outro lado, em países tais como o Brasil e a Colômbia, as populações indígenas têm atitudes distintas e muitas vezes ambíguas com relação à Arqueologia e ao seu potencial político. É neste contexto que as diferentes interpretações sobre a ocupação pré-colonial da Amazônia devem ser historicamente consideradas e a prática arqueológica reavaliada. A Amazônia como o Paraíso Ilusório

Nos anos 1950, a partir de pesquisas pioneiras realizadas na Ilha de Marajó a arqueóloga Betty Meggers formulou uma interpretação que define a Amazônia pré-colonial como recipiente de influências culturais exógenas, além de ser uma região imprópria ao desenvolvimento cultural, devido às limitações impostas pelo meio ambiente. O principal fator que segundo a autora teria impedido o surgimento de grandes concentrações populacionais e de assentamentos estáveis na Amazônia foi apontado como sendo a pobreza dos solos (MEGGERS, 1954). Confrontada com as evidências materiais de grandes construções artificiais (tesos), diferenças de padrões de enterramento e cerâmicas elaboradas, presentes na Ilha de Marajó, Meggers interpreta os indícios de uma organização social do mesmo nível encontrado no Circum-Caribe, como produto de uma migração vinda dos Andes, mas que, incapaz de se manter nesse ambiente, teria então decaído para um padrão típico de floresta tropical (Meggers, 1954:809). Anos depois, a autora descreveu as sociedades pré-coloniais amazônicas como tendo baixa densidade populacional, subsistência baseada na caça, pesca e horticultura de raízes, uma organização social igualitária centrada no parentesco, chefes com autoridade limitada e divisão do trabalho em torno de diferenças de sexo e idade (MEGGERS, 1987 [1971]. Como influências teóricas que orientaram a formulação deste modelo é possível citar o neo-evolucionismo e a ecologia cultural a partir de Steward – organizador do Handbook of South American Indians, além do enfoque materialista de Leslie White. Até o final da década de 1970 esta interpretação, que sofreu pequenas modificações com a adição de novos fatores 50   

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limitantes (imprevisibilidade das várzeas, instabilidade climática e os efeitos do El Niño) (MEGGERS, 1994) foi compartilhada por ecólogos culturais e por antropólogos, além de contribuir para a cristalização de uma imagem da Amazônia povoada por sociedades simples e igualitárias, semelhantes às conhecidas pela etnografia (VIVEIROS DE CASTRO, 1996a). Argumentos degeneracionistas foram evocados por Noelli e Ferreira (2007: 1251) para explicar as teses de Meggers. Entretanto, o que nos parece mais relevante é o contexto histórico identificado pelos autores como solo de geração de suas ideias, associado à Guerra Fria, que no período de 1954 a 1964 contrapôs a superioridade cultural e política dos E.U.A. à inferioridade dos países subdesenvolvidos. A Era da Complexidade Social na Amazônia

Na década de 1980 uma interpretação radicalmente oposta, formulada por Roosevelt (1980, 1987) se coloca sobre o desenvolvimento cultural da Amazônia. A autora reconhece a existência de sociedades pré-coloniais tais como Marajó e Santarém que apresentavam uma organização hierarquizada de chefes e assentamentos, distribuídos em grandes territórios, com centralização política, numa situação comparável à das civilizações Minóica e Micênica, ou à das formações estatais do Vale do Indus e da África. Sítios extensos, densamente habitados e com uma estrutura interna multifuncional foram interpretados como verdadeiros centros urbanos – cidades. Comparações entre a área dos sítios e suas populações indicariam que vários destes assentamentos teriam chegado mesmo a abrigar dezenas de milhares de pessoas (ROOSEVELT, 1992: 82). Em termos ecológicos, Roosevelt argumentou que uma estratégia de subsistência baseada na introdução do cultivo intensivo do milho possibilitou o fornecimento de proteínas, capaz de proporcionar um grande crescimento populacional na região das várzeas do Orinoco. Foram estas as condições que favoreceram a emergência de organizações sociais complexas, do tipo cacicado. Nas áreas de várzeas amazônicas, o cultivo intensivo do milho e da mandioca, associado à caça e pesca, foi apontado como uma estratégia mista de subsistência, que teria sido a base do desenvolvimento local de outras sociedades pré-coloniais tardias em áreas mais férteis da Amazônia, a exemplo de Marajó e Santarém. A leitura de fontes etno-históricas, de informações esparsas sobre os primeiros levantamentos arqueológicos realizados por pioneiros no início da década de 1920 e análises de coleções museológicas serviram de base para a constituição do modelo de Roosevelt. Para a autora, alguns cacicados se formaram a partir da guerra de conquista de territórios e de 51   

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pessoas que foram escravizadas. Como parte desta lógica, a iconografia cerâmica dos artefatos cerimoniais de Santarém foi descrita como sendo baseada na representação de animais de caráter guerreiro, que consistiam numa metáfora para afirmar esta essência do cacicado local, a julgar pela predominância de jaguares, jacarés, serpentes e aves de rapina (ROOSEVELT, 1996: 29; 1999: 13). A proposição deste modelo interpretativo que eleva as sociedades pré-coloniais amazônicas à condição de sociedades complexas, hierarquizadas e centralizadas não se dá de forma isolada. A emergência da complexidade social foi um tema debatido nas décadas passadas pela Arqueologia e Antropologia em diferentes regiões das Américas, não sendo restrito às sociedades situadas num estágio evolutivo intermediário entre as tribos e os estados, mas passível de ser abordado mesmo entre grupos de caçadores coletores, cujas evidências arqueológicas de trabalhos coletivos foram interpretadas como indicadores da existência de uma esfera individualizada de poder, que se concentrava na figura de um chefe. O contexto histórico de discussão da emergência da complexidade social é o de transição das décadas de 1980 e 1990. Segundo Latour (1994:13), o ano de 1989, data da queda do muro de Berlim, simboliza a derrota do socialismo e por sua vez “o triunfo do liberalismo, do capitalismo, das democracias ocidentais sobre as vãs esperanças do marxismo...”. Neste terreno se destacam os valores individualistas, a livre iniciativa e o sucesso pessoal, que separa os indivíduos entre vencedores e perdedores, em detrimento de ideais comunitários e de formas gestão política igualitárias, o que permite inferir sobre as influências destas concepções nas intepretações arqueológicas. No que tange à Arqueologia amazônica, o modelo de Roosevelt foi amplamente aceito pela comunidade arqueológica, servindo de base para as pesquisas das gerações que se formaram nas décadas de 1990 e 2000. Evidências arqueológicas de grandes assentamentos e de trabalhos coletivos tais como terraplanagem, construção de montículos, estradas, caminhos, geoglifos e campos elevados para a agricultura têm sido interpretadas como o correlato da existência destas sociedades. Além disso, a complexidade social passou a orientar diferentes linhas de pesquisa (paelobotânica, ecologia histórica, estudos de terra preta arqueológica etc.) que se dedicam a demonstrar o potencial do ambiente amazônico para sustentar grandes populações. Alguns autores defendem o surgimento de uma terceira linha de interpretação sobre a Amazônia pré-colonial, que considera o ambiente amazônico como uma construção social, na qual o homem é visto como um agente capaz de transformar a paisagem e manipular recursos, o que colocou em evidência diversos aspectos, dentre eles a formação das florestas e a gênese 52   

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dos solos antropogênicos de terra preta, cujas consequências estariam diretamente relacionadas ao aumento populacional. (WOODS, DENEVAN e REBELLATO, 2013: 2). Entretanto, esta nos parece mais uma variação do discurso sobre complexidade na Amazônia, sendo partilhada por autores tais como Heckenberger, Neves e Petersen (1999) e Erickson (2008) do que propriamente uma interpretação diferenciada. Outra Noção de Poder na Amazônia

Críticas ao modelo de Roosevelt surgem somente em meados da primeira década dos anos 2000. Gomes (2007: 189) tem como principal argumento a insuficiência de um arcabouço conceitual utilizado por Roosevelt, baseado em relatos etno-históricos, teorias sócio-evolutivas e evidências materiais incompletas, que tende a definir a chefia e o poder político amazônico de modo etnocêntrico e a promover uma excessiva distância entre as sociedades indígenas do passado e as do presente.

A autora estabelece um diálogo da

Arqueologia com a Etnologia indígena, abordando aspectos intangíveis da cultura, a exemplo da ideologia, inferida a partir da análise da iconografia cerâmica de artefatos da cultura Santarém e de seus conteúdos sócio-cosmológicos, o que aproxima as formações sociais précoloniais tardias e as sociedades indígenas contemporâneas em termos simbólicos. Desde então a iconografia destes artefatos cerimoniais, ao invés de uma metáfora do poder guerreiro dos cacicados expansionistas, conforme proposto por Roosevelt, vem sendo interpretada por Gomes (2007; 2010; 2012) por meio do reconhecimento de temas que se organizam a partir do xamanismo, relativos à estrutura do cosmos, à mitologia indígena e às relações simbólicas com os animais envolvendo processos de metamorfose ou transformação interespecífica. Os significados destes símbolos foram sugeridos a partir da leitura de diversas etnografias amazônicas e da adoção do conceito antropológico de “perspectivismo ameríndio”, formulado por Viveiros de Castro (1996b; 2002) para caracterizar a especificidade de regimes cosmológicos pan-amazônicos. De modo complementar, estatuetas masculinas tridimensionais, que em sua maioria representam de maneira naturalista chefes e xamãs, a julgar pelos adornos corporais e atributos tais como os maracás segurados por eles. De toda forma, são sempre homens corpulentos sentados, algumas vezes em bancos, numa atitude hierática demonstrando a proeminência destas figuras. São, portanto, representações que aludem ao poder e prestígio dos xamãs. A partir deste enfoque foi possível estabelecer conexões desses artefatos com a esfera política dessa sociedade pré-colonial amazônica. O que está em evidência não são 53   

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somente índices do poder individual simbolizado pelas estatuetas masculinas, mas também outra forma de política indissociável da organização cosmológica, que não se restringe apenas à esfera sociopolítica, mas envolve a interação dos homens e seres não humanos numa interação cosmopolítica (SZTUTMAN, 2012:27). Este, portanto, é um modo distinto de pensar especificidade destas sociedades do passado pré-colonial amazônico que se distancia de modelos etnocêntricos, uma vez que estabelece conexões com as comunidades indígenas contemporâneas e suas cosmologias. Como contexto de geração destas ideias, além da própria aproximação com a Etnologia indígena, do envolvimento da autora em pesquisas arqueológicas participativas com comunidades ribeirinhas que partilham destas cosmologias historicamente transformadas, é produtivo situar as influências mais amplas. Entretanto, é difícil proceder a uma análise sem o devido distanciamento histórico. De modo geral, pode ser apontado o processo de redemocratização que tem início na década de 1980 em vários países da América Latina, a força do movimento ambientalista, sobretudo na Amazônia, a emergência política de grupos indígenas, ao lado de governos populares eleitos majoritariamente por indígenas e mestiços. Arqueologia e seus Usos Políticos

O discurso arqueológico tradicional, linear, cronológico e evolucionista – este último especialmente relevante no caso da Arqueologia Amazônica – não parece produzir grande impacto nas populações indígenas e ribeirinhas interessadas em construir suas identidades e voltadas à resolução de problemas concretos à sua existência. Para estas, muitas vezes, é irrelevante saber que determinadas populações do passado foram mais simples ou mais complexas. As hipóteses de complexidade social, que destacam a existência de formações regionais com hierarquia e centralização política, têm seduzido as classes médias e em especial a mídia, que se reconhecem neste modelo. No que tange às demandas territoriais e políticas destas mesmas populações junto ao Estado, o potencial da Arqueologia é ainda marginal, especialmente tendo em vista o fato que correlações identitárias essencialistas podem ser estabelecidas com a cultura material, não necessariamente vindo a confirmar as expectativas das comunidades. Segundo, Gnecco (2011: 60) nas últimas décadas houve uma mudança de atitude na Colômbia com relação às conexões ancestrais em termos materiais e grupos tais como os Guambianos, passaram a valorizar os processos arqueológicos quando estes consideram que os objetos materiais podem servir para reforçar sua mobilização social. Outros grupos 54   

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rejeitam qualquer negociação com a Arqueologia, seja porque não se reconhecem nos discursos dos arqueólogos ou ainda numa história povoada de artefatos fragmentados deixados por seus ancestrais. Para o autor, estes últimos representam a maior parte dos grupos indígenas do terceiro mundo, imersos em políticas multiculturais especialmente em países onde o nacionalismo foi mais forte (Idem, 2011: 62). Na Amazônia brasileira, algumas poucas experiências no campo da pesquisa participativa coincidem com as observações do referido autor, demonstrando atitudes diversificadas frente à Arqueologia. De um lado, conexões positivas foram reconhecidas como sendo passíveis de ser estabelecidas nos processos de luta por soberania territorial (SILVA ET. AL. 2010:790), ou de negociações envolvendo o destino de bens arqueológicos (GRENN, GREEN e NEVES, 2011: 196), embora também tenha sido evidenciada a indiferença com que populações ribeirinhas olham para a disciplina (GOMES, 2011: 307308). Este último caso pode ser exemplificado por meio da situação de emergência indígena de populações ribeirinhas do Baixo Tapajós, que vem construindo suas identidades em duas diferentes direções – grupos que negam uma herança indígena ao lado de grupos que se esforçam em recompor historicamente sua conexão com as antigas populações da região. A Arqueologia tem sido não só ignorada por ambos os grupos, mas considerada potencialmente perigosa e causadora de empecilhos, tendo em vista a constituição de territórios indígenas almejados por lideranças e comunidades locais. Argumentos construídos por parte da Antropologia que considera a fluidez das identidades e da própria presença indígena numa profundidade temporal muito menor do que a Arqueologia tem obtido maior aceitação. Pesquisas participativas realizadas na comunidade de Parauá, na região de Santarém entre 2001 e 2003, ilustram a indiferença com relação à Arqueologia por parte da comunidade local formada majoritariamente por grupos contrários à emergência indígena (GOMES, 2006; 2011). Nem o discurso sobre as hipóteses de existência de sociedades complexas e hierarquizadas lideradas pelos antigos Tapajós foi capaz de seduzir os comunitários, que não concebiam tamanho esforço e trabalho em torno de cacos cerâmicos. Com a criação recente de uma universidade federal em Santarém (UFOPA) uma parcela destes grupos inclusive lideranças indígenas tem tido acesso ao trabalho arqueológico, o que tem servido para desmistificar algumas crenças negativas. Por outro lado, atividades ligadas ao licenciamento ambiental na área do campus da UFOPA, bem como cursos sobre arte pré-colonial das sociedades do baixo Amazonas, ministrados na Universidade com a presença de alunos oriundos das classes médias locais e das comunidades ribeirinhas, além de 55   

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professores de ensino fundamental e lideranças indígenas têm demonstrado maior aceitação do discurso arqueológico na medida em que este se constrói a partir de referências cosmológicas partilhadas por eles. Desse modo, as interpretações propostas acerca dos artefatos cerimoniais da cultura Santarém, que enfatizam as conexões com o xamanismo, com a mitologia e as noções de transformação dos seres que povoam o cosmos (GOMES, 2007; 2010; 2012), não só fazem sentido para este público, familiarizado em grande medida com tal repertório, mas parecem constituir o elo de ligação mais próximo entre a Arqueologia e seu potencial político. Considerações Finais

Conforme exposto, o debate sobre o desenvolvimento cultural na Amazônia esteve por décadas assentado em interpretações acadêmicas sobre o potencial do meio ambiente. Num dos extremos estava o modelo que descrevia o ambiente amazônico como impróprio ao surgimento de grandes populações e de organizações mais complexas, no outro a tese contrária apontando diferentes evidências que revelavam a capacidade humana de manejar o meio ambiente e com isso produzir condições favoráveis a fim de sustentar grandes populações, governadas por chefias hierárquicas e centralizadas. Entretanto, estas interpretações por várias razões não são suficientes para mobilizar politicamente populações indígenas e ribeirinhas. A experiência na América Latina e em outras partes do mundo tem demonstrado que somente por meio da adoção de uma prática arqueológica participativa este último objetivo pode ser alcançado. A condução de pesquisas colaborativas implica em grande medida reconsiderar a disciplina em termos metodológicos e teóricos, além de muitas vezes questionar os discursos oficiais, tendo em vista o uso político da Arqueologia em prol das comunidades. De fato, esta pode se configurar como uma ferramenta capaz de evocar significados históricos importantes, muitas vezes construídos ou reelaborados pelas próprias populações indígenas, o que requer grande abertura por parte dos arqueólogos e o distanciamento das práticas mais tradicionais. Embora de alcance regional, as interpretações propostas acerca da iconografia dos artefatos cerimoniais da cultura Santarém, baseadas nas cosmologias amazônicas, na ideia de transformação interespecífica e em noções de poder construídas a partir do conceito de cosmopolítica, encontra ressonância nas referências culturais das populações locais. Especialmente os grupos ribeirinhos do interior, que estão envolvidos tanto na construção de suas identidades quanto em solicitações de demarcação de territórios, estes reconhecem na 56   

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mitologia e nas práticas xamânicas os elementos discursivos apontados pela Arqueologia. Portanto, este se coloca como um caminho promissor para o estabelecimento de conexões de natureza política com a Arqueologia. De acordo com Londoño (2011), entre grupos indígenas colombianos uma das formas de apropriação da Arqueologia é por meio da construção de um discurso muitas vezes distante da lógica dos arqueólogos, que a partir dos objetos leva em conta eventos míticos e por vezes ritualiza o registro arqueológico. Nos exemplos aqui discutidos tanto na Colômbia quanto na Amazônia certamente se encontram modos alternativos da prática arqueológica, do estabelecimento de conexões com o público e de sua expressão política, capazes de conferir poder aos grupos indígenas e populações tradicionais. Referências Bibliográficas ERICKSON, C. 2008. “The Historical Ecology of a Domesticated Landscape. In: SILVERMAN, H. & ISBELL, W. (eds.), Handbook of South American Archaeology, New York, Springer, p. 157-83. GNECCO, C. 2011. “Native Histories and Archaeologists”, in GNECCO, C. e AYALA, P. Indigenous Peoples and Archaeology in Latin America, Walnut Creek, Left Coast Press, Inc., p. 53-66. GOMES, D. M. C. 2006. “Amazonian Archaeology and Local Identities”. In: EDGEWORTH, M. (ed.), Ethnographies of Archaeological Practive: Cultural Encounters, Material Transformations, Walnut Creek, Altamira Press, p. 148-160. _________. 2007. The Diversity of Social Forms in Pre-Colonial Amazonia, Revista de Arqueologia Americana, 25: 189-225. _________. 2010. “Os contextos e os significados da arte cerâmica dos Tapajó”. In: PEREIRA, E. e GUAPINDAIA, V. (Orgs.), Arqueologia Amazônica, v. 1, Belém, Museu Paraense Emílio Goeldi, SECULT, IPHAN, p. 213-234. __________. 2011. “Archaeology and Caboclo Populations in Amazonia: Regimes of Historical Transformation and the Dilemmas of Self-Representation. In: GNECCO, C. e AYALA, P. Indigenous Peoples and Archaeology in Latin America, Walnut Creek, Left Coast Press, Inc., p. 295-314. __________. 2012. O Perspectivismo Ameríndio e a Ideia de uma Estética Americana, Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi – Ciências Humanas, v.7, n.1, p. 133-159. GREEN, L., GREEN, D. R. e NEVES, E. G. 2011. “Indigenous Knowledge and archaeological Science: The Challenges of Public Archaeology in the Área Indigena do Uaçá, In: GNECCO, C. e AYALA, P. Indigenous Peoples and Archaeology in Latin America, Walnut Creek, Left Coast Press, Inc., p. 179-200. 57   

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PROJETOS EDUCACIONAIS E POLÍTICAS INTERVENTIVAS NO CAMPO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO, CULTURAL E ARQUEOLÓGICO NA REGIÃO DE ARARAQUARA (SP)

Educational projects and interventional policies in the field of historical, cultural and archaeological heritage in the region of Araraquara, SP Robson Rodrigues1 Dulcelaine L. Lopes Nishikawa2 RESUMO A presente comunicação tem por objetivo apresentar aspectos da atuação e do desenvolvimento de programas de preservação do patrimônio histórico, cultural e arqueológico na região de Araraquara (SP). Dentre as ações do grupo de pesquisa GEA/CEIMAM/Fundação Araporã, está a estruturação e a organização de um plano museal para o Museu de Arqueologia e Paleontologia de Araraquara, a criação de um programa educacional continuado, a valorização e afirmação do patrimônio cultural regional e a inserção social. As nossas atividades, a partir do ano de 2008, estruturaram-se na linha de uma proposta de ação educativa voltada para o desenvolvimento da Educação Patrimonial e Ambiental, por meio do Patrimônio Arqueológico Regional. Em nossa perspectiva, ao se dar ênfase em programas educacionais, criamos condições para que a sociedade possa se apropriar do conhecimento arqueológico regional. Acreditamos, ainda, que ao se desenvolver trabalhos nessa perspectiva, criam-se condições para que a sociedade se torne forte parceira na reafirmação dos valores culturais, na promoção de ecossistemas naturais e do desenvolvimento sustentável. Compreendemos que é na salvaguarda do patrimônio cultural, utilizando-se, para tanto, a metodologia da pesquisa-ação e outras abordagens participativas, que poderemos construir um diálogo com as sociedades democráticas, pois é pelo exercício da cidadania que os conhecimentos, as inovações e as práticas são orientadas. Palavras-chave: Educação Patrimonial, estruturação, Desenvolvimento sustentável ABSTRACT This communication aims to present aspects of the performance and development of programs for the preservation of historical, cultural and archaeological heritage in the region of Araraquara(SP).Among the activities of the research group GEA / CEIMAM / Araporã Foundation, is the structuring and organization of a museal plan to the Museum of Archaeology and Paleontology of Araraquara, the creation of a continued educational program, appreciation and affirmation of regional cultural heritage and social inclusion. Our activities, from the year 2008, were structured along the lines of a proposed educational                                                             

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Doutor em Arqueologia pelo MAE/USP e Pós-Doutor em Antropologia pelo CEIMAM/FCL/UNESP. GEA/CEIMAM/Fundação Araporã. Presidente da Fundação Araporã. [email protected] 2 Mestre em Engenharia Ambiental pelo CRHEA/USP e Doutora em Sociologia pela FCL/UNESP. GEA/CEIMAM/Fundação Araporã. [email protected]

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activity focused on the development of the Environmental and Heritage Education through the Regional Archaeological Heritage. In our perspective, the emphasizing on educational programs, create conditions for society to appropriate the regional archaeological know ledge. We also believe that developing works in such perspectives, conditions are created, so that society becomes a strong partner in the reaffirmation of cultural values, in the promotion of natural ecosystems and the sustainable development. We understand that it is the safeguarding of cultural heritage, using for this purpose, the methodology of action research and other participatory approaches, we can build a dialogue with democratic societies, it is with the exercise of citizenship that knowledge, innovations and practices are guided. Keywords: Heritage Education, structuring, Sustainable Development RESUMEN La presente comunicación tiene como objetivo presentar los aspectos de la actuación y del desarrollo de los programas para la preservación del patrimonio histórico, cultural y arqueológico en la región de Araraquara (SP). Entre las acciones del grupo de investigación GEA / CEIMAM / Fundación Araporã, está la estructuración y organización de un plan de museo para el Museo de Arqueología y Paleontología de Araraquara, la creación de un programa de educación continua, la valorización y afirmación del patrimonio cultural y regional y la inserción social. Nuestras actividades, a partir del año 2008, se han estructurado de acuerdo con una propuesta de acción educativa para el desarrollo de la Educación Patrimonial y Ambiental a través del Patrimonio Arqueológico Regional. Desde nuestra perspectiva, el énfasis en los programas educacionales crea las condiciones para que la sociedad se apropie del conocimiento arqueológico regional. También creemos que el desarrollo de trabajos desde la perspectiva propuesta, se crean las condiciones para que la sociedad se convierta en asociada fuerte en la reafirmación de los valores culturales, en la promoción de los ecosistemas naturales y el desarrollo sostenible. Entendemos que es en la protección del patrimonio cultural, utilizando para ello la metodología de investigaciónacción y otros enfoques participativos, que se puede construir un diálogo con las sociedades democráticas, pues es por las prácticas ciudadanas que los conocimientos, las innovaciones y las prácticas son guiadas. Palabras clave: Educación Patrimonial, estructuración, desarrollo sostenible

Introdução O presente artigo tem por objetivo apresentar aspectos da atuação e do desenvolvimento de programas de preservação do patrimônio histórico, cultural e arqueológico na região de Araraquara, estado de São Paulo. Dentre as ações do Grupo de Estudos Arqueológicos da Fundação Araporã, está a estruturação e a organização de um plano museal para o Museu de Arqueologia e Paleontologia de Araraquara, a criação de um programa educacional continuado, a valorização e afirmação do patrimônio cultural regional e a inserção social. 61   

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O processo de institucionalização do patrimônio arqueológico no município de Araraquara iniciou-se no ano de 1999 com a introdução de ideias a respeito do tema a partir de uma proposta de apoio institucional para projetos científicos na área de Arqueologia, desenvolvidos na região, em conjunto com estudos de impacto ambiental para licenciamento de empreendimentos, numa parceria com o Museu Histórico e Pedagógico “Voluntários da Pátria”. Em síntese, a ideia é a de que todo material seja ele gráfico, textual ou de objetos, resultante do trabalho de campo de arqueólogos, fique sob a guarda do Museu que atesta os endossos para pesquisa junto ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), órgão do Ministério da Cultura responsável pela preservação do patrimônio cultural brasileiro. Ao longo deste período e a partir de inserções junto ao poder público local e sociedade, as propostas de projetos estruturais na área de Arqueologia avançaram. Vários espaços públicos de diálogo com a comunidade local e organizados no município foram sendo ocupados. Seminários e semanas de discussão sobre o patrimônio cultural, criação da coordenadoria de patrimônio histórico no contexto da Secretaria de Cultura, audiências públicas para estruturação do Plano Diretor, onde foram definidas as áreas de interesse arqueológico e paleontológico, introdução do tema na criação do Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico e Cultural do Município de Araraquara, são alguns exemplos que contaram com a inserção do tema arqueológico em suas reflexões. Entendemos que a parceria com o gestor federal de preservação do patrimônio, o IPHAN e instituições voltadas à preservação do patrimônio arqueológico e estruturadas no âmbito municipal permitem maior controle da comunidade local, na preservação de seu patrimônio, já que possibilita um envolvimento direto dos interesses individuais com os temas abordados coletivamente, facilitando assim, a mobilização de diferentes segmentos organizados no município. A partir da sensibilização da municipalidade, aprovação do projeto estrutural pelo governo federal e efetivação do repasse de recursos para a prefeitura municipal de Araraquara, foram constituídos os dois espaços físicos para a salvaguarda, preservação, conservação, restauro, pesquisa dos acervos patrimoniais e destinados às atividades ligadas ao desenvolvimento da Arqueologia brasileira, tendo sido inaugurados no final de 2008. O primeiro espaço se trata de um museu municipal denominado Museu de Arqueologia e Paleontologia de Araraquara (MAPA) e que se localiza no centro da cidade. Este espaço está diretamente ligado à história de Araraquara, na medida em que após um 62   

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projeto de revitalização e modernização arquitetônica do antigo conservatório musical do maestro José Tescari, construção da década de 1880, passou a integrar o complexo de museus do município. Em suas dependências conta com os ambientes da reserva técnica para abrigar o acervo arqueológico, composto por peças cerâmicas, material lítico, material ósseo, adornos corporais, entre outros e o acervo paleontológico, composto por lajes areníticas e fósseis com vestígios de diversos animais e insetos; laboratório para análise de coleções; área de exposição permanente e temporária; sala para apresentações diversas com recurso multimídia, setor administrativo e espaços de apoio aos visitantes. Apesar de ter sido inaugurado em 2008, somente em 28 de novembro de 2011 foi promulgada a Lei no. 7.575 instituindo o MAPA como uma unidade museológica subordinada à Secretaria Municipal de Cultura, por meio da Coordenadoria Executiva do Patrimônio Histórico e Cultural e dando outras providências. Durante as oficinas participativas realizadas para construção do Plano Museal para o museu ficou definido como missão e os valores que:

O Museu de Arqueologia e Paleontologia de Araraquara (MAPA) tem como missão realizar pesquisas de excelência nas áreas de Arqueologia, Paleontologia e Museologia. Sediado no município de Araraquara, o MAPA tem como território de intervenção o interior paulista, configurando-se em um pólo de construção de conhecimento, formação e preservação do patrimônio. Inserido em uma região caracterizada por vestígios arqueológicos e paleontológicos significativos, mas que ainda carece de instituições que abordem esse patrimônio de forma dinâmica e contemporânea, o MAPA tem importante papel na descentralização das pesquisas científicas no estado de São Paulo. Organizado com base no tripé “pesquisa, ensino e extensão”, o museu assume objetivos intrinsecamente relacionados à sua função social: preservar os vestígios arqueológicos e paleontológicos do interior paulista para as futuras gerações, promover o uso qualificado desse patrimônio, socializar o conhecimento disponível acerca do patrimônio cultural regional e possibilitar oportunidades de aprendizado para estudantes nas áreas de Arqueologia, Paleontologia e Museologia (RELATÓRIO DA OFICINA, 2011).

O segundo espaço destinado à Arqueologia e ao patrimônio histórico cultural é o Centro de Conservação e Recuperação de Acervos Diversos (CECRAD). Este espaço foi idealizado para o desenvolvimento de ações de conservação e preservação de acervos patrimoniais e, como o MAPA, também teve a aprovação da lei de criação, anos após sua inauguração. Neste sentido, o CECRAD foi instituído pela Lei no. 7.732 de 24 de maio de 2012 como uma unidade laboratorial subordinada à Gerência de Museus da Secretaria Municipal de Cultura. Este espaço foi idealizado para o desenvolvimento de ações de conservação, triagem, 63   

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curadoria, restauro e preservação de acervos patrimoniais. Em suas dependências conta com ambientes para reserva técnica, laboratório para análise de coleções, sala de processamento de dados, depósito de materiais, ferramentas, reserva técnica temporária, espaço para limpeza e higienização dos acervos. Entendemos, no entanto, que, apenas a existência de um espaço físico, não garante uma relação de valorização do patrimônio cultural regional, especialmente no que compete à Arqueologia. Sendo assim, entre os nossos desafios está a construção de um museu que tenha como princípio a inserção da questão indígena: não de forma generalizante, mas como parte constituinte de um processo histórico do interior paulista. Ao proceder a uma avaliação mais ampla do cenário social local, entendemos que o MAPA cumpre com sua missão, pois consegue se comunicar com a sociedade local. No entanto, no que compete a função social ainda estamos num processo de construção que tem sido feita dentro de princípios norteadores da sociomuseologia. A partir dessa perspectiva, busca-se a adequação das estruturas museológicas a partir da compreensão de que existe uma diversidade social e que é preciso se comunicar com diferentes grupos sociais. Os museus, na perspectiva da sociomuseologia, devem ter maior interação social, o que garante outra dinâmica dos espaços museais em relação à comunidade envolvente. A busca pela sociomuselogia se dá pelo fato de acreditarmos que os espaços do museu têm que assumir um caráter multidisciplinar e principalmente consolidar os museus como estruturas sustentáveis; tanto no âmbito social, quanto econômico, garantindo assim, igualdade de oportunidades e de inclusão social. Concordamos com Lisboa e Müller (2011) quando afirmam que o mero fato de o museu abrir suas portas por um determinado período do dia, não dá conta de justificar sua despesa que na maioria das vezes não garante o seu caráter público. Já os programas educacionais criam essa aproximação. Ações educativas conferem valor não só ao próprio museu, como também potencializam as obras pertencentes ao acervo, dando vazão ao caráter conhecido dentro das teorias da restauração como sendo o ato metodológico do reconhecimento da obra ou do objeto, na sua consistência física e na sua dúplice polaridade: estética e histórica. Segundo os autores supracitados, a instituição museológica detém sob sua tutela e responsabilidade um determinado conjunto de acervos museológicos, que devem estar disponíveis a toda comunidade, por intermédio de estratégias de acessibilidade e espaços que proporcionem interação das obras com a população em geral, além disso, ações educativas serão necessárias para a sociabilização dos acervos perante os grupos sociais envolvidos. 64   

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A nossa proposta é a de que o Museu de Arqueologia e Paleontologia de Araraquara promova a interação com os diferentes grupos da sociedade, sempre pautado no tempo atual, ou seja, procurar referenciar o presente, visando à construção coletiva de uma perspectiva de futuro. Cientes do fato de que essa relação precisa ser construída de forma horizontalizada, passamos a buscar o fortalecimento do espaço museal a partir de programas educacionais que possibilitem a sensibilização dos munícipes. A aposta nessa perspectiva se dá porque compreendemos que só assim haverá uma real valorização dos bens patrimoniais. Os cidadãos ao reconhecerem os bens materiais, imateriais e ambientais, como parte da identidade coletiva, passam a contribuir para o aprimoramento da gestão do patrimônio local, pois os reivindicam como parte daquilo que pertence a sua cultura. As ações educativas se apresentam como sendo de fundamental importância, pois consolidam uma ação social que reflete nas políticas públicas de preservação em desenvolvimento no país. A Concepção de Educação patrimonial no âmbito do MAPA

O Programa de Educação que está sendo desenvolvido no Museu de Arqueologia e Paleontologia de Araraquara pela Fundação Araporã tem fortalecido a relação com o patrimônio histórico, cultural e arqueológico regional, pois procura dialogar com a sociedade envolvente, na medida em que traz ao conhecimento do público a existência de uma Arqueologia na região, rompendo com a ideia de que é necessário ir a lugares longínquos para saber e vivenciar uma experiência arqueológica, pois este fazer arqueológico está presente no cotidiano social local. Desde o início dos trabalhos a busca se deu pela criação de uma relação de identidade com a cultura existente na região. Para isso, focamos as ações com os grupos educacionais, formais e não formais, e na inserção social como um todo. O carro chefe para as ações educativas são os sítios arqueológicos, pois são espaços que oferecem elementos para a construção do conhecimento tanto no que diz respeito aos aspectos da cultura material, quanto imaterial e também ambiental, dando elementos para ampla reflexão a respeito de como se constrói uma pesquisa científica. Dentre as possibilidades de análise podemos ressaltar, por exemplo, escolha da área para implantação dos sítios arqueológicos, pois, por meio dessa ideia, podemos entender os motivos de caráter ambiental utilizados pelos seres humanos no passado para realizarem suas escolhas, pois estes locais evidenciam aspectos de uso, ocupação e transformação dessas áreas no que cabem aos aspectos físicos, bióticos e socioeconômicos. 65   

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O que temos observado é que esses espaços tem se apresentado como profícuos do ponto de vista educacional, pois apresentam uma multiplicidade de conhecimentos e também permitem uma análise transversal, possibilitando uma efetiva construção de identidade sociocultural com esses materiais arqueológicos encontrados na região, adicionando diferentes elementos na compreensão da história pré-colonial que rompam com os estereótipos ou ideias construídas erroneamente sobre as populações indígenas, tanto no que compete à relação homem-natureza, quanto à concepção de que essas populações não teriam evoluído. Colocando em evidência essa temática no cotidiano da educação, entendemos ser possível construir uma memória regional das populações indígenas e perceber as suas contribuições para a sociedade atual. Temos observado que o conhecimento adquirido por meio dos vestígios arqueológicos, quando trabalhado de forma adequada, pode fazer com que o patrimônio arqueológico passe a ser reconhecido pela população como parte de sua identidade e, consequentemente, valorizado, podendo gerar desdobramentos preservacionistas. Entre nossos objetivos está principalmente a apropriação cidadã dos bens patrimoniais, para que assim, estes cidadãos possam efetivamente ter o livre acesso aos diversos contextos e conhecimentos gerados a respeito da produção cultural e ambiental existentes no âmbito regional. O ser humano, enquanto produtor de cultura, precisa entender que faz parte de um universo mais amplo e a sua produção cultural está diretamente relacionada à forma com a qual ele construiu sua relação com a natureza na sua trajetória histórica, ou seja, desde períodos pré-coloniais até o presente momento. Para atingir esses objetivos educacionais no âmbito museal, nos apoiamos na sociomuseologia e na pesquisa-ação, pois são possibilidades analíticas e metodológicas que permitem uma interação com as bases comunitárias. Temos, portanto, na perspectiva educacional, um estimulador de ações e de conscientização patrimonial embasado nos objetos culturais, pois esses são fragmentos de memória e trazem traços de momentos de gerações passadas que poderão ser utilizados para dinamizar as atividades educacionais propostas. Ao se pensar uma proposta de Educação Patrimonial no contexto museológico é preciso ter clareza de que a construção de uma identidade sociocultural com o passado só será possível se estimularmos a imaginação do público acerca de outras épocas e identificar as formas de se pensar as situações sociais existentes. Para atingir esse objetivo, no entanto, é preciso respeitar as particularidades do Patrimônio histórico cultural de cada localidade. Sendo assim, um eixo de sustentação para a formação dessa identidade é promover a interação 66   

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entre história, memória e cultura, para que as informações e os objetos possam ser ressignificados. Entendemos, tal como Le Goff (2003), que a História não é a ciência do passado. Considerá-la passado é um absurdo e observar o passado como objeto desta ciência também o é. Na concepção do autor, a História é a ciência dos homens no tempo, onde as relações do passado e do presente são tecidas em meio a valores ao longo da história. O autor supracitado considera também que a História não só permite compreender o presente pelo passado (atitude tradicional), mas também compreender o passado pelo presente, perspectiva esta vantajosa, segundo o autor, pois o passado é uma construção e uma reinterpretação constante e também o futuro é parte integrante e significativa da história. Assim, se confirma resolutamente o caráter científico e abstrato do trabalho histórico, não aceitando que seja creditado somente à cronologia. Diante da importância da visão histórica e qual o seu papel na construção da identidade sociocultural, fica visível um importante desafio: como desenvolver uma proposta de museologia que seja atenta à necessidade de comunicação com a sociedade e a transforme? Para Leite (2011) ao citar Moussouri (2007), o desafio passa pela necessidade dos educadores de museus tornarem as experiências museais mais memoráveis. A acessibilidade das coleções/exposições e a capacidade dos museus delinearem e cumprirem suas missões (seu foco) deve ser revisada, para que este, enquanto instituição, seja capaz de compreender seu papel eminentemente social e educacional. Sendo assim, esta perspectiva pressupõe novos métodos didáticos de aprendizado, como a utilização de maneiras ativas que colocam o público no centro da ação pedagógica, contribuindo, assim, para o desenvolvimento, construção progressiva e durável do sentimento de pertencimento e valorização do patrimônio cultural. Leite (2011) explica, ainda, que Moussouri considera que os desafios correntes passam por perceber a natureza do aprendizado que emerge das experiências museais: como elas ocorrem, como se desenvolvem e, portanto, como podem ser otimizadas. Baseada na teoria de aprendizagem sociocultural de Vygotsky, ao afirmar que as pessoas aprendem umas com as outras, mais do que individualmente, por isso o foco dos museus deve ser o de se instituir como lócus de aprendizagem. Portanto, sabe-se que o que as pessoas aprendem em museus não é o ponto chave, mas sim como se dá esse aprendizado. Para Moussouri (2007, apud LEITE, 2011), o espectador, no museu, independente da temática do mesmo, vive fundamentalmente uma experiência de constituição identitária a partir do reconhecimento e/ou estranhamento daquilo que é visto. Nesse aspecto, 67   

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apresentando sempre a diversidade étnica e cultural que compõe nossa sociedade, este processo estimula o conhecimento e rompe com os preconceitos, pois permite que os indivíduos passem a respeitar a diversidade existente no nosso entorno. Aqui, é importante comentar, também, que em nosso processo educacional temos trabalhado com oficinas lúdicas na construção de novas propostas educativas. O motivo para tal escolha se dá pelo fato de que as oficinas se apresentam como facilitadoras da assimilação dos conhecimentos abstratos por meio de ações mais concretas. Segundo Maurício (2008) a ludicidade é importante no processo ensinoaprendizagem. O “brincar” como um processo facilitador da aprendizagem gera uma melhoria no desenvolvimento humano no que tange ao crescimento pessoal, social, cultural e motor, além da comunicação, expressão e construção de pensamento quando as ações educativas são acompanhadas de oficinas lúdicas. Esta situação ocorre porque o ato de brincar e jogar torna o indivíduo capaz de pensar, imaginar, interpretar e criar, aspectos estes, que propiciam autonomia, iniciativa, concentração e análise crítica para levantar hipóteses acerca dos fatos, bem como nos ensinam a respeitar regras e vivenciar conflitos competitivos. Maurício (2008) menciona ainda que a ludicidade reflete a expressão mais genuína do ser; é o espaço de todo ser para o exercício da relação afetiva com o mundo, com as pessoas e objetos. Por meio das atividades lúdicas, o indivíduo forma conceitos, seleciona ideias, estabelece relações lógicas, integra percepções e se socializa. A ligação das atividades lúdicas com a aprendizagem proporciona o estabelecimento de relações cognitivas, simbólicas e produções culturais. O lúdico possui dois fatores motivacionais, o prazer e o ambiente espontâneo. As tarefas lúdicas demandam um interesse intrínseco do indivíduo, pois este canaliza sua energia para cumprir com os objetivos propostos, produzindo um sentimento eufórico e de entusiasmo. Dallabona e Mendes (2004), ainda comentam que as atividades lúdicas são peçaschave para desenvolver a solidariedade e empatia, como também, para introduzir novos conceitos para a posse e para o consumo. Em nossa atuação educativa, diagnosticamos essa possibilidade quando desenvolvemos as oficinas. Observamos que elas são facilitadores na obtenção da anuência dos públicos, independente da faixa etária e tem sido um forte aliado na construção de um diálogo promissor acerca do patrimônio histórico, cultural e arqueológico. A questão ambiental também tem se apresentado como um elemento fundamental nas nossas ações, pois age como um elemento de interação.

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Consideramos que o ser humano é um ser de ação e relação e não pode ser percebido fora de suas relações com os outros e com o mundo. Entendemos que ele é capaz de se transformar e de transformar a sua realidade. Dentro desta visão, a característica metodológica inerente aos processos pedagógicos para a abordagem da Educação Patrimonial e Ambiental está baseada principalmente na participação. Participar se aprende exercendo o direito da cidadania e o exercício desse direito se dá nas mais variadas formas e níveis. Sendo assim, ao propormos o desenvolvimento das oficinas de Educação Patrimonial e Ambiental por meio da valorização dos aspectos da cultura indígena, por exemplo, não partimos de uma visão idílica de que esses sujeitos não impactam a natureza. Contudo, entendemos que vivem em interação com a mesma devido à necessidade de preservar e manter a sua própria existência. Este processo acontece pelo fato de se ter uma ideia de que é necessário preservar e manejar as áreas ambientais em que vivem. Esse é um dos princípios básicos da ecologia: a inter-relação. Quando temos a percepção de que somos parte da natureza, podemos nos considerar sensibilizados e conscientes do nosso papel educacional de sermos multiplicadores. A tarefa educacional esta associada à da redescoberta dos valores pessoais e da busca de novas concepções que tornem a sociedade humana mais justa e solidária. Assim sendo, um dos principais objetivos da Educação Patrimonial e Ambiental desenvolvidos por nós (RODRIGUES e NISHIKAWA, 2012) consiste em permitir que as pessoas compreendam as complexas relações que se encontram no meio ambiente e os resultados desfavoráveis ao próprio ser humano, fruto de suas intervenções. O que se espera é que essa ação educativa leve à promoção de uma ação reflexiva e prudente acerca dos aspectos culturais e ambientais, favorecendo a construção de uma participação responsável nas decisões de melhoria da qualidade do meio natural, social e cultural. Nosso pressuposto teórico ao desenvolver ações educativas está pautado na teoria filosófica de Paulo Freire (1997). O autor defende a ideia de que a educação está associada a uma forma de ler o mundo. E nesse mundo todos os sujeitos produzem conhecimento e, portanto, geram cultura. Sendo assim, a educação não é a mera reprodução do conhecimento. Para o autor a educação é um ato político. Este processo de construção educacional tem que ser coletivo como afirmamos ao longo deste texto, pois como bem define Freire (1987), não se deve fazer uma política cultural, sem conceber como estratégia todos os sujeitos envolvidos. O conceito de educação popular consiste em um esforço de mobilização, organização e capacitação dos sujeitos (FREIRE, 1970/1987). E acreditamos que esse também deva ser o papel do arqueólogo69   

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educador. Para Paulo Freire “era preciso ler o mundo para poder transformá-lo” (apud, GADOTTI, 2002). Por esta razão, sua teoria passa por uma visão crítica e não pela mera reprodução técnica. Perpassa pela idéia de que é preciso valorizar o conhecimento dos sujeitos, assim como a sua produção cultural. E isso possibilitará uma relação de pertencimento e identidade com os bens patrimoniais e culturais e a consciência de seus direitos, como sua inserção crítica na realidade. Na medida em que os sujeitos vão se organizando, produzem uma forma cada vez mais justa de pensar. Este sistema se dá por meio da problematização de seu mundo e da análise crítica de sua prática, que possibilitará aos sujeitos da ação atuar cada vez mais seguramente no mundo, contribuindo, assim, para que estes se assumam como seres do seu fazer, ou seja, que desenvolvem uma práxis. Vale dizer que, como sujeitos, ao transformar o mundo com seu trabalho, criam um novo mundo. Este, elaborado pela transformação do anterior, se constitui em algo de seu domínio. É o mundo da cultura que se prolonga no mundo da história (FREIRE, 1997). Entre os princípios filosóficos de Freire, está a utilização de temas geradores e conteúdos programáticos que possibilitem entender e discutir as relações homens-mundo (FREIRE, 1987). Entendemos que a proposta do autor se adequa a nossa prática pedagógica, pois utilizamos a construção material da cultura, e definida pela Arqueologia, para entendimento das diferentes sociedades. Este sistema nos possibilita melhor compreensão da materialidade, pois fornece elementos para a compreensão do ser humano enquanto produtor de cultura. Essa criação e recriação da cultura se dá em interação com a natureza por meio do trabalho, ou seja, da sua produção material na transformação do meio. Nesse sentido, propomos a compreensão da relação do homem na natureza e com a natureza, por meio da cultura material, rompendo com uma visão dicotômica de compreensão para se transformar em uma visão dialética. Ao propor essa reflexão espera-se atingir um primeiro conceito, o mais básico de todos na humanidade: o da produção de cultura por meio do trabalho. Essa produção está diretamente associada à subsistência, pois, desde os primórdios do surgimento e desenvolvimento do homem na terra, este tema se constitui como fundamental para a própria existência humana. Nesse sentido, passamos a explorar a ação da produção humana não só como uma necessidade, mas também como uma construção do conhecimento do homem em relação à natureza. Entendemos que é na natureza que o homem explora as possibilidades das matérias primas para solucionar as suas necessidades primárias, mas, ao desenvolver as condições 70   

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objetivas para descobrir e criar, aprimorando, assim, a sua produção do conhecimento, gera um conjunto de elementos diversificados que identificamos como sendo a produção cultural de um determinado grupo social humano. O entendimento de que uma rocha é melhor para lascar do que a outra, de que o barro existente próximo à cabeceira de um determinado rio é melhor para fazer a cerâmica, segundo Freire (1989), é possível de acontecer porque o homem em relação com o mundo, fez desse pensar a base para a construção do seu conhecimento, submetendo-se, portanto, por meio do trabalho, a um processo de transformação constante. Ou seja, ao manusear as matérias primas oriundas da natureza, confeccionou sua roupa, seus utensílios, seus instrumentos de trabalho, de caça, de coleta e de pesca. Paulo Freire (1989) propõe de maneira simples, mas objetiva, que essa relação não pode ser de dominação do homem pelo homem, mas sim, uma relação entre sujeitos da ação. Igualmente responsáveis e cooperadores entre si; e não só entre si, mas também, com a natureza. Quando pensamos a Educação Patrimonial esse deve ser um princípio presente nas nossas ações, pois o que se pretende é romper com a concepção de que as sociedades précoloniais são inferiores a nossa. E que a produção da cultura material e simbólica dessa sociedade seja incipiente. Portanto, essa ação permite mostrar às pessoas de uma maneira geral que a produção material por meio do trabalho existiu desde as sociedades pré-coloniais, com os mesmos objetivos que nós temos hoje quando pensamos a produção de materiais para a nossa comodidade. A nossa perspectiva é interdisciplinar, pois compreendemos que para se desenvolver uma proposta de Educação Patrimonial que avalie também elementos da Educação Ambiental (RODRIGUES e NISHIKAWA, 2012) só é possível por meio de uma compreensão dos diversos campos do conhecimento. Nesse sentido, fazemos a leitura à luz de algumas áreas do conhecimento da Arqueologia da Paisagem, a partir dos estudos de Morais (2000), que nos auxilia na compreensão das questões ambientais. E no que compete aos aspectos da Educação Patrimonial a referência é o trabalho desenvolvido por Bezerra (2002). A Arqueologia da paisagem vai introduzir no debate arqueológico fatores que serão de fundamental importância, pois trazem informações importantes no que correspondem às escolhas para as implantações dos sítios arqueológicos, evidenciando uma complexidade a ser analisada já que permite agregar uma valorização ambiental aos sítios arqueológicos, trazendo um apontamento para os estudiosos de meio ambiente a observação dos aspectos intrassítios em associação com os aspectos inter-sítios.

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Essa leitura é importante à medida que torna possível entender que mesmo entre as populações pretéritas à escolha dessas ou daquelas áreas para a implantação de seus aldeamentos eram definidos por características físicas, bióticas e geográficas que melhor se adaptassem às necessidades do grupo. Esse procedimento de escolha do uso e ocupação do espaço confirma a relação primeira entre homem-natureza. O conhecimento adquirido por intermédio da informação histórica, antropológica, geográfica e ambiental pode proporcionar aos educadores e alunos a ampliação de seu universo do saber à medida que proporciona o entendimento de como eram estabelecidas as relações que os indivíduos tinham com o Meio Ambiente, evidenciando a possibilidade de uma ação educativa não só no que compete aos aspectos do meio, mas também no que compete ao reconhecimento da necessidade de preservação do patrimônio arqueológico, no entendimento de que há necessidade de se construir uma identidade associando sociedade, meio ambiente e patrimônio arqueológico. Considerações Finais

Na perspectiva apresentada, ao darmos ênfase nos programas educacionais, criamos condições para que a sociedade possa se apropriar do conhecimento arqueológico regional. Acreditamos, ainda, que ao se desenvolver trabalhos nessa perspectiva, criam-se condições para que a sociedade se torne forte parceira na reafirmação dos valores culturais, na promoção de ecossistemas naturais e do desenvolvimento sustentável. Compreendemos que é na salvaguarda do patrimônio cultural, utilizando-se, para tanto, a metodologia da pesquisa-ação e outras abordagens participativas, que poderemos construir um diálogo com as sociedades democráticas, pois é pelo exercício da cidadania que os conhecimentos, as inovações e as práticas são orientadas. A concepção que aqui defendemos é a de que a ação do educador patrimonial perpassa por uma visão crítica e o arqueólogo que se pretende educador precisa desenvolver ao mesmo tempo a pesquisa arqueológica associada a um comprometimento com a sociedade, nunca perdendo de vista que o objetivo é proporcionar aos diversos públicos, múltiplos olhares acerca da história das populações humanas que habitaram a região. Entre os princípios norteadores da nossa ação está o de tornar o espaço do museu um local que a sociedade se sinta representada, pois ao desenvolvermos ações educativas no âmbito do museu, concomitantemente, nossa intervenção procura trazer os grupos envolvidos como coprodutores dos resultados apresentados nos trabalhos expostos. Nesse sentido, 72   

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acreditamos que essa prática pode fortalecer uma relação de pertencimento com o espaço museal e criar uma identidade com os bens patrimoniais existentes no local. Temos como resultados bons indicadores e opiniões dos públicos envolvidos, que avaliam positivamente o desenvolvimento das atividades educativas como tendo a possibilidade de compreensão dos conteúdos apresentados nas exposições de longa duração nas áreas de Arqueologia e Paleontologia do Museu de Arqueologia e Paleontologia de Araraquara. Nesse sentido, estamos trabalhando para proporcionar uma vivência educacional diferente da educação “bancária”, como define Freire (1987), na construção de possibilidade dos educandos realizarem uma interpretação dos conteúdos e não uma simples assimilação ou absorção. Referências bibliográficas BEZERRA, M, de A, 2003. O australopiteco corcunda. As crianças e a Arqueologia em um Projeto de Arqueologia Pública na Escola. TESE defendida, na Universidade de São Paulo, Programa de Pós-Graduação em Arqueologia MAE/USP-SP: 180 p. DALLABONA, Sandra Regina. MENDES, Sueli Maria Schimitt. O lúdico na educação infantil: jogar, brincar, uma forma de educador. In: Revista de divulgação técnico-científica Vol. 1 n. 4 - jan.-mar./2004. Disponível em: http://www.icpg.com.br/artigos/rev04-16.pdf acessado em jan.2013. Acessado em 02/01/2013 FREIRE, P. A. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. 5ª ed., Rio de Janeiro, Paz e Terra. 1981.149 p. ________. Pedagogia da Indignação: cartas pedagógicas e outros escritos, Ed. Da UNESP, 2000. ________. Pedagogia do Oprimido. 17ª Ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987. ________. Pedagogia Educação e Mudança. Tradução de Moacir Gadotti e Lilian Martin, Rio de Janeiro: 18ªed. Paz e terra, 1979. ________. Educação Como Prática da Liberdade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1967 (19 ed., 1989). GADOTTI, M. Pedagogia da terra. Editora Peirópolis, São Paulo 2002. LE GOFF, J. (2003). História e memória. Campinas, SP: Ed. UNICAMP. LEITE, Maria Isabel. Museus e público infantil - alguns casos e várias reflexões. Revista eletrônica EducaMuseu, ano I, nº1-agosto de 2011. 73   

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LEITE, Nívea. O ensino da Pré-História nas escolas de 1o e 2o graus. IN: KERN, Arno Alvarez. ANAIS, 8a Reunião científica da SAB – Sociedade de Arqueologia Brasileira. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996. LUPORINI, T.J. “Lugares da memória” no Estado do Paraná: demandas e políticas pela preservação do patrimônio cultural. Disponível em http://www.revistas2.uepg.br/index.php/olhardeprofessor/article/view/1340/984 Acesso em dez. de 2012. LISBOA, P.F, MÜLLER, M, C. A educação patrimonial como projeto de desenvolvimento regional no pampa rio-grandense. Disponível em< http://www.pablolisboa.com/artigoEDUCACAO-Patrimonial-LISBOA-maio2011.pdf >. Acesso em 02/02/2013. MAURICIO, Juliana Tavares. Aprender brincando: o lúdico na aprendizagem. 2008. Disponível em: http://www.pedagogia.com.br/artigos/importanciadabrinquedoteca1/index.php?pagina=9. Acessado em 05/02/2013. MORAES WICHERS, C. A. Patrimônio Arqueológico Paulista: proposições e provocações museológicas. Tese de doutorado apresentada ao programa de Pós-graduação do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo, SP, 2011. MORAIS, J. L, 2000. Tópicos de arqueologia da paisagem. Revista do Museu de Arqueologia, Universidade de São Paulo- nº. 10, ISSN 0103-9709. 03-30. RODRIGUES, R e NISHIKAWA, D. L. L. Reflexões a respeito da educação patrimonial e ambiental a partir da arqueologia desenvolvida na região de Araraquara/SP. Disponível em http://www.ambiente-augm.ufscar.br/uploads/A3-093.pdf Acesso, 20/10/2012. Acessado em 10/02/2013.

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AÇÕES DO PROJETO ARQUEOLOGIA E DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA – DIÁLOGOS E SABERES: SITE E DOCUMENTÁRIO Actions of the Archeology and Scientific Diffusion Project – Dialogs and Knowledge: Site and Documentary

Glória Tega1 Vera Regina Toledo Camargo2 Aline Vieira de Carvalho3 Pedro Paulo Funari4 Maria Beatriz Rocha Ferreira5 RESUMO O artigo apresenta as ações correspondentes à construção de um site e quatro minidocumentários, partes do projeto “Arqueologia e Divulgação Científica: Diálogos e Saberes”, desenvolvido pelo Laboratório de Arqueologia Pública Paulo Duarte e pelo Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (labjor), ambos da Unicamp, financiado pela Petrobrás por meio do Edital SAB 2011, “Programa de Apoio à Difusão do Conhecimento Arqueológico”, da Sociedade de Arqueologia Brasileira. O objetivo do projeto é apresentar ao público as diferentes vertentes e práticas da ciência arqueológica, de forma a estimular a reflexão, interação e a compreensão desta ciência; bem como, incentivar a disseminação de informações científicas geradas pelos arqueólogos, fornecendo a eles subsídios que facilitem suas relações com os meios de comunicação de massa. Palavras-chave: Divulgação Científica, Arqueologia e Comunicação ABSTRACT This paper presents the corresponding actions to the construction of a website and four short documentaries, part of the project “Archeology and Scientific Diffusion: Dialogs and Knowledge”, developed by the Paulo Duarte Public Archeology Laboratory and by the Advanced Studies in Journalism Laboratory (Labjor), both from Unicamp, financed by                                                              1

Jornalista (PUC-Campinas), especialista em Divulgação Científica (USP), mestre em Divulgação Científica e Cultural (UNICAMP), colaboradora do Laboratório de Arqueologia Pública (LAP/UNICAMP). [email protected] 2 Doutora em Comunicação, com pos-doc em Multimidia/Unicamp. Pesquisadora do Labjor/Unicamp,Professora credenciada no Programa de Mestrado em Divulgação Cientifica e Cultura (IEL-Labjor-Unicamp). [email protected] 3 Coordenadora associada do Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais (NEPAM) e coordenadora do Laboratório de Arqueologia Pública Paulo Duarte (LAP/NEPAM/UNICAMP). [email protected] 4 Professor Titular Departamento de História, IFCH, Unicamp; Laboratório de Arqueologia Pública Paulo Duarte (LAP/Nepam/Unicamp). [email protected] 5 Livre Docente pela Faculdade de Educação Física da UNICAMP, Programa CAPES/Professor Nacional Visitante Sênior na Faculdade de Educação da Universidade Federal da Grande Dourados - Mato Grosso do Sul. Brasil. [email protected]

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Petrobrás through the “Program of Support and Diffusion of Archeological Knowledge”, from the Brazilian Archeology Society. The aims of the project is to present to the public the various aspects and practices of the archeological science, to stimulate the reflection, interaction and comprehension of this science; as well as promote the diffusion of scientific information produced/generated by archeologists, providing them resources to improve their relationship with the means of mass media. Keywords: Scientific Propagation, Archeology and Communication RESUMEN Este artículo presenta las acciones correspondientes a la construcción de un website y cuatro mini-documentales, partes del proyecto “Arqueología y Divulgación Científica: Diálogos y Saberes”, desarrollado por lo Laboratorio de Arqueología Pública Paulo Duarte y por lo Laboratorio de Estudios Avanzados en Periodismo, financiado por la Petrobrás por medios del Edicto SAB 2011, “Programa de Apoyo a la Difusión del Conocimiento Arqueológico”, de la Sociedad de Arqueología Brasileña. El objetivo del proyecto es dar a conocer al público las diferentes vertientes y prácticas de la ciencia arqueológica, con el fin de estimular la reflexión, interpretación y comprensión de esta ciencia; así como, para fomentar la difusión de la información científica generada por los arqueólogos, ofreciéndoles subsidios que faciliten sus relaciones con los medios de comunicación de masas. Palabras clave: Divulgación Científica, Arqueología y Comunicación Introdução

O Projeto “Arqueologia e Divulgação Científica: Diálogos e Saberes” está sendo desenvolvido pela Universidade Estadual de Campinas- UNICAMP (Brasil) 6 . É um dos projetos aprovados pelo Edital da SAB - Sociedade de Arqueologia Brasileira de 2011 contando com o financiamento da Petrobrás (Petróleo Brasileiro S/A), através do “Programa de Apoio à Difusão do Conhecimento Arqueológico”. Por meio do diálogo entre Arqueologia Pública e Divulgação Científica, uma série de ações está sendo realizada visando estreitar relações entre arqueólogos e os veículos midiáticos. A mediação entre a Arqueologia Pública e a Sociedade é justamente a ação principal do projeto. “Mediatização” é o termo utilizado por Muniz Sodré (2001) para caracterizar a vinculação das instituições com os meios de comunicação e o estabelecimento da produção de bens simbólicos ou culturais e, consequentemente, estabelecer o “elo” com a sociedade. O que                                                              6

Importante ressaltar a colaboração do Setor administrativo, com as secretárias Marli Lima Silva, Maria de Fátima Rodrigues Moreira, Débora Viccari Campos, para a execução do projeto.

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se compreende por bens simbólicos ou culturais passa necessariamente através das ações, atitudes e planejamento dos meios de comunicação. Um filme, um livro, uma fotografia ou uma obra de arte podem assumir o papel de produto cultural. Diante desta premissa, construiu-se a partir de um projeto varias ações para difundir o conhecimento sobre a arqueologia. O projeto: Arqueologia e Divulgação Científica

A ciência arqueológica ainda é pouco conhecida pelas pessoas e mesmo entre os mais diferentes públicos ela costuma confundir-se com outras, como a Paleontologia ou a Geologia, para citar apenas duas delas. O linguista Carlos Vogt, em “A Espiral da Cultura Científica”, defende a divulgação científica como caminho para a “conquista” da ciência e tecnologia: Como é possível realizar essa conquista sem estar envolvido diretamente no processo de produção, de difusão ou de ensino e aprendizagem da ciência? A resposta é "Pela divulgação científica", isto é, pela participação ativa do cidadão nesse amplo e dinâmico processo cultural em que a ciência e a tecnologia entram cada vez mais em nosso cotidiano, da mesma forma que a ficção, a poesia e arte fazem parte do imaginário social e simbólico de nossa realidade e de nossos sonhos, multiplicando em nossa existência única, e provisória, a infinitude de vidas e vivências que vivemos sem jamais tê-las vivido (VOGT, 2003).

Dessa maneira, o projeto procura superar a falta de material adequado e elabora produtos e ações de Divulgação Cientifica, a partir dos conceitos centrais da Arqueologia e com exemplos concretos resultantes da atuação dos órgãos envolvidos nesta proposta, como o Laboratório de Arqueologia Pública “Paulo Duarte”, do Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais – NEPAM (http://www.nepam.unicamp.br/nepam/lap), criado em 2007, e o Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo Labjor - do Núcleo de Desenvolvimento da Criatividade

Nudecri,

http://labjor.unicamp.br/,

criado

em

1994.

São

instituições

especializadas nos dois aspectos centrais do projeto proposto, enfatizando os conceitos da Ciência Arqueológica e sua Divulgação Cientifica. A equipe constituída de profissionais oriundos de diversas áreas possuem experiência, em particular, com conceitos arqueológicos e com a divulgação científica, na forma de livros, cartilhas, filmes, documentários e outros materiais e a trajetória e as atividades acadêmicas ligadas às duas vertentes. instituições

mencionadas

localizam-se

na

77   

Universidade

Estadual

Todas de

as

Campinas,

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www.unicamp.br/, uma autarquia, autônoma criada 1962, voltada para a aérea educacional, subordinada ao governo estadual no que se refere a subsídios para a sua operação. A proposta do projeto é aproximar o conhecimento científico, gerado pela Arqueologia Pública, e proporcionar uma articulação com as bases da Divulgação Científica. Não se almeja atribuir à sociedade um conhecimento enciclopédico sobre quais são seus patrimônios, datas de fundação, autores, características físicas, entre outros dados. Ao contrário, este projeto objetiva, democraticamente, construir diálogos e compreensões entre a sociedade e seus patrimônios. Estes diálogos devem ser constituídos para “permitir a realização de conexões entre a vida cotidiana das pessoas com o processo histórico relatado. Devem providenciar instrumentos para a reflexão” (VARGAS e SANOJA, 1990: 53). Assim, cada grupo social torna-se capaz de atribuir significados ao próprio patrimônio e ao bem público como um todo. Têm-se um cidadão crítico pronto para refletir sobre questões como a preservação dos patrimônios e, principalmente, sobre a transformação - tanto de seu entorno, como da sociedade - e também a compreensão desta área de conhecimento. Desse modo, a linguagem adotada para tal não atingiria esse objetivo se fosse a mesma utilizada pela comunidade científica, sendo, então, a divulgação científica, uma estratégia para possibilitar o diálogo e o entendimento entre estes dois universos, a ciência e o público. Muito mais do que isso, aqui se pretendeu realizar um trabalho de divulgação científica como uma tarefa muito maior que simplesmente uma “tradução” da linguagem especializada dos arqueólogos, mas sim o objetivo é permitir o debate sobre o conhecimento arqueológico a partir de pressupostos teóricos da divulgação cientifica, utilizando métodos jornalísticos como meios para chegar a uma nova “formulação discursiva”, ou seja, “uma ação comunicativa que parte de um ‘outro’ discurso (o científico) e se dirige para ‘outro’ destinatário (o público não iniciado na temática da arqueologia)” (ZAMBONI, 1997: 11). Assim, procurando uma efetiva aproximação do público com a Arqueologia, a estrutura discursiva das peças foi pensada de acordo com que Zamboni chama de “reversão da superestrutura do texto científico”, ou seja, “as conclusões das pesquisas e as potenciais aplicações de seus resultados no cotidiano das pessoas ganham posição de destaque” (ZAMBONI, 1997: 161). Na área da Comunicação a metodologia adotada para o desenvolvimento da pesquisa foi a Educomunicação. Esse é o nome dado ao campo de reflexão/ação que une as áreas de Educação e Comunicação Social. Objetiva a leitura crítica dos meios; a produção coletiva de 78   

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materiais e suportes de comunicação. A produção coletiva de comunicação traz para um diálogo as várias vozes, quer do cientista, quer do jornalista, sendo este também um dos focos da área da Divulgação Científica. Nosso objetivo é produzir conteúdos que possam ser acessíveis a qualquer pessoa, para isso utilizaremos as mídias sociais como uma das possibilidades de pensar a interação e a disseminação da informação. As faces da Arqueologia que está presente no imaginário das pessoas demonstram que o cidadão pensa que o achado mais antigo, do artefato mais raro ou que essa ciência seria feita em locais remotos, muito longe da realidade da maioria das pessoas. Desmistificar aquela ideia descrita pelos arqueólogos Marcus Brittain e Timothy Clack, de que esse cientista é sempre “o aventureiro, o escavador, o descobridor e o caçador de tesouros” (CLACK & BRITTAIN, 2007: 15). Caminhar no sentido contrário de que as “arqueologias que mais se destacam são aquelas que detêm a chave para o mistério insolúvel, para a verdade escondida por trás das mais antigas, majestosas e esplêndidas maravilhas do passado.” (CLACK & BRITTAIN, 2007: 15). Nesse viés, trabalharemos a Arqueologia como uma ciência social que estuda, sem limites cronológicos, as sociedades humanas por meio de sua cultura material e imaterial, buscando compreender as relações sociais e as transformações na sociedade (FUNARI, 2003: 15). Esse será um desafio possível graças ao trabalho conjunto de arqueólogos, jornalistas e antropólogos, visando à junção de conhecimento arqueológico, linguagem jornalística e imagem, pois, “a televisão joga pesado no momento que ela combina a utilização simultânea de dois sentidos do ser humano, a visão e audição (...)” (PATERNOSTRO, 1999: 35). A contribuição da veiculação da informação caminha em direção à Divulgação Científica e Cultural tem duas funções importantes. Primeiramente é um dos mecanismos que pode auxiliar o pesquisador na veiculação, assimilação e disseminação da sua pesquisa, e por outro lado a sociedade tem a possibilidade de acesso à informação. Neste sentido não estamos nos referindo somente à aquisição do conhecimento, mas também ao acesso, à formação e à participação crítica, de modo que a população tenha uma visão critica de todo o processo envolvido desde a produção do conhecimento científico assim como a circulação da informação e sua disseminação. Para atender os objetivos proposto para o projeto, a primeira ação foi a construção do site

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O site A construção de um portal 7 com as qualificações e características planejadas se justifica porque, em um estudo sobre as redes sociais, verificou-se que estão ganhando cada vez mais espaço no Brasil, que se configura como o país que apresenta maior crescimento, atualmente, no que toca a usuários de Internet. Segundo comScore (NASDAQ:SCOR) de setembro 2011, relativamente, este crescimento é maior até mesmo que o dos Estados Unidos. Com o aumento da interatividade, segurança e velocidade, aliado à redução dos preços cobrados pelo acesso à rede, a Internet deixou de ser um mero instrumento de pesquisa. Em junho de 2011, 114,5 milhões de pessoas visitaram um site da rede social, segundo a comScore, Inc (NASDAQ:SCOR) setembro de 2011. O site está estruturado para ser ao mesmo tempo um repositório, um banco de dados, uma central de atendimento, dar visibilidade ao projeto, divulgando as ações e as investigações, projetos de pesquisa realizados. Tem o propósito de aproximar cientistas do público, e trazer o tema arqueologia para as redes sociais, pod cast, entre outros, assim como os eventos e notícias sobre o tema. O site foi planejado para ter conteúdos que possam dialogar com estudantes, público adulto, quer especialista ou não, além de jornalistas que podem obter no site subsídios para a elaboração de pautas com o tema Arqueologia. Os quatro minidocumentários também estarão disponíveis no site, assim como haverá a possibilidade de interface com o Facebook, Livretos e Revistas Eletrônicas. Posteriormente a realização de todo o projeto, o conteúdo do site será disponibilizado à Sociedade de Arqueologia Brasileira para que o use da maneira que convier tendo, inclusive, a possibilidade de ser inserido na página web da SAB. 1 - Home 2 - O Projeto 3 - Membros 4- Publicações 5- Links 6- Notícias 7- Eventos 8- ABC da Arqueologia: contento Glossário e áreas de pesquisa.                                                             

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O projeto do site foi executado por Marcos Rogério Pereira, especialista em Tecnologia da Informação e Comunicação (Unicamp), mestrando em Divulgação Científica e Cultural (Labjor – UNICAMP), e contou com a colaboração de Camila Delmondes, jornalista e mestranda em Divulgação Científica e Cultural (LABJOR/UNICAMP).

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Esse último item contém, além da definição de termos científicos específicos da Arqueologia, textos sobre Arqueologia Histórica, Pré-histórica, Clássica, da Escravidão, de Gênero, Pública, Subaquática e Etnoarqueologia, acompanhadas da indicação de grupos de pesquisas de cada área no Brasil. Essa disponibilização dos grupos de pesquisa visa facilitar o contato dos jornalistas com os pesquisadores, evitando que um arqueólogo seja, por ventura, solicitado a falar de um tema que foge de seu escopo de pesquisa. Vale ressaltar que todo o conteúdo do site fez parte de uma construção coletiva, na qual os textos e seus objetivos foram discutidos em parceria com os alunos do Laboratório de Arqueologia Pública da Unicamp, Matheus Reis, Guilherme Legnaioli Vassão, Bárbara Kosin Tasso, Gabriel Carlos de Souza Santos, Rafael Hakim Patiri (todos graduandos em História pela Unicamp), Marina Fontolan (mestranda em História, UNICAMP) e Gabriella Barbosa Rodrigues (doutoranda em Arqueologia pela Universidade de Heidelberg, Alemanha); e do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da Unicamp, Maria Clara Guimarães e Alex Gomes de Oliveira. Os minidocumentários

Quanto aos minidocumentários, o objetivo é que eles suscitem a curiosidade dos espectadores pensando que:

a TV pode ‘abrir o apetite’ dos receptores da mensagem e estimular a investigação, a busca diversificada da informação, uma vez que seu público, tendo tomado conhecimento da dimensão de um fato, pode não se ter satisfeito de forma total. É diante desse raciocínio que podemos entender um poder motivador na TV enquanto meio de informação. (PATERNOSTRO, 1999, p.35).

Elaborado com a colaboração fundamental da aluna de mestrado do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da Unicamp, Cristiane Delfina Duarte, está intrinsecamente envolvida com a elaboração do roteiro e edição dos documentários. O conjunto de quatro minidocumentários, cada um com a duração de 3 a 5 minutos, foi elaborado para que, ao mesmo tempo, cada um faça sentido se veiculados separadamente ou juntos. Eles serão disponibilizados em DVD gratuitamente para mídias e escolas e, também, no site do projeto, sendo que cada um deles abordará:

PRIMEIRO DOCUMENTÁRIO Título: PROSPECTAR - descobrindo a arqueologia

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O objetivo deste é mostrar O que é arqueologia - Percorreremos então, de forma resumida, os assuntos relacionados à arqueologia: história, técnicas e discussões.

SEGUNDO DOCUMENTÁRIO Título: SONDAR- Arqueologia: Passado e presente O objetivo deste é apresentar as Trajetórias e campos conceituais da Arqueologia Trataremos de assuntos curiosos as descobertas importantes (erros, perda de material, política, as ações e trajetórias da arqueologia no Brasil).

TERCEIRO DOCUMENTÁRIO Título: ESCAVAR - Patrimônio Arqueológico O objetivo deste é apresentar as Técnicas de investigação, imagens sobre a Arqueologia subaquática e imagens que ilustrem a arqueologia

histórica e as

diferentes técnicas de preparação

QUARTO DOCUMENTÁRIO Título: GERIR – Ser Arqueólogo Quero ser arqueólogo Se no “ser Arqueólogo” é importante mostrar as atividades práticas, como o trabalho de campo e as peças de museu.

Alguns locais já filmados e que estarão presentes no documentário

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Sítio do Alcaiá (Ilha Grande/RJ) (já gravado): a arqueóloga do Museu Nacional Maria Cristina Tenório forneceu algumas explicações durante prospecções e escavações no sítio do Acaiá – processo em campo da Arqueologia- e formação de sítios arqueológicos. Além disso, durante esse campo, foi realizada uma etapa de Arqueologia Subaquática, a qual foi filmada e fotografada.

-

Museu de Arqueologia e Paleontologia de Araraquara e Museu de Lins: o intuito é entrevistar visitantes e responsáveis pelos museus, para retratarmos o aspecto social que envolve a Arqueologia depois do sítio arqueológico ser estudado.

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Empresa Zanettini Arqueologia: mostrar como é o processo arqueológico no laboratório: o que é feito com a peça depois que ela chega do campo. 82 

 

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Fundação do Homem Americano e Parque Nacional da Serra da Capivara: As imagens captadas nesses locais serão importantes para a descrição de processos de conservação “in loco”; aspectos sociais da Arqueologia e turismo arqueológico.

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Universidade Federal do Piauí (Teresina - PI): As imagens captadas apresentam os anseios de estudantes de arqueologia e professores.

-

Universidade Federal de Sergipe (Aracajú – SE): O material será utilizado para contar os anseios de estudantes de arqueologia e professores. As gravações ocorrerão durante a II Reunião da Sociedade de Arqueologia Brasileira (SAB) - Núcleo Regional Nordeste, ocorrida entre os dias 15 e 20 de outubro de 2012, ocasião na qual foi entrevistado, entre outros, o Prof. Dr. Gilson Rambelli, presidente da SAB.

Acessibilidade e Democratização O projeto “Arqueologia e Divulgação Científica: diálogos e saberes” está alicerçado na informação a ser transmitida através da escrita, imagem e som. E para atender a população com deficiência auditiva, visual e mental escolhemos a transmissão audiovisual utilizando a subtitulação por meio de legenda oculta; a janela com intérprete de LIBRAS – Língua Brasileira de Sinais; e a audiodescrição. A Libras é um sistema linguístico importante para a população com deficiência auditiva. Esta linguagem é mais comum no meio urbano, em palestras, filmes, televisão e na comunicação entre as pessoas. Os sinais representam figurações de movimentos com a mão, combinados com partes do corpo e locais no espaço. Estas figurações compõem as unidades básicas da língua. Nos minidocumentários serão inseridas janelas optativas de comunicação em Libras. A subtitulação por meio de legenda oculta é fundamental de ser incluída nos vídeos, uma vez que nem todas as pessoas com deficiência auditiva dominam a Língua Brasileira de Sinais – Libras. Mesmo porque a lei da Libras – n. 10.436 (2002) não substitui o português escrito, conforme o Art. 4, parágrafo único: “A Língua Brasileira de Sinais - Libras não poderá substituir a modalidade escrita da língua portuguesa." A Libras é mais uma opção a ser utilizada na acessibilidade. A audiodescrição é um dos mais recentes recursos de acessibilidade sonora que propicia novas dimensões de entendimento para pessoas com deficiência visual, pessoas com deficiência intelectual e também idosos, em diferentes situações, tais como eventos culturais, educacionais, esportivos e científicos, campanhas, museus, sites arqueológicos, shows entre 83   

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outras. Este recurso propicia a inclusão de pessoas que não tinham acesso à informação visual ou com nível baixo de compreensão intelectual num mundo visual e com informações rápidas. Estas pessoas poderão se inteirar e interpretar melhor o que passa ao redor delas, através da descrição de objetos, pessoas, expressões faciais e corporais de personagens, entre outros aspectos. A audiodescrição é feita, em geral, entre as cenas, nos momentos não sonoros. Em alguns locais, como nos museus, nos sites, nos cinemas, nos teatros é fornecido um rádio/trasmissor para a pessoa poder optar pela utilização deste recurso e, na televisão, a opção é feita através da tecla SAP. Em outros recursos audiovisuais, como sites, programas de rádio, DVDs, as pessoas também terão opção para escolha.

Entrevista com Paulo Zanettini, São Paulo/SP.

Gravações em sítios arqueológicos localizados em um canavial, interior de São Paulo.

Gravação com Cristina Tenório, Sítio do Acaiá Ilha Gande/RJ.

Entrevista com Rosana Najjar, diretora do Centro Nacional de Arqueologia (CNA/IPHAN).

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Parque Nacional da Serra da Capivara/PI

Gravações na SAB NE, Universidade Federal de Sergipe, Aracajú/ SE.

Museu de Lins/SP.

Gravações no Museu de Arqueologia e Paleontologia de Araraquara/SP.

Conclusão Por meio da trajetória apresentada que relata as ações do projeto, verificou-se um caminho interessante e que já está tendo grandes repercussões junto ao público. De um lado, os estudantes de arqueologia têm a possibilidade de vivenciar como deve ser realizada a Divulgação Científica e de outro, os estudantes da área de comunicação têm a possibilidade de conhecer a área da arqueologia. E o grande encontro destas duas áreas traz ganhos para todos os envolvidos no projeto. Outro diferencial importante é que a construção de todo o material de divulgação foi uma construção coletiva e baseada na metodologia da Educomunicação. O projeto tem o término previsto para dezembro de 2013 e serão apresentados os dados desta pesquisa em encontros e seminários com o intuito de divulgar as ações do projeto e sensibilizar todos os pesquisadores da importância de divulgação científica que possa proporcionar uma melhor compreensão da arqueologia por parte de toda a

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sociedade.

Para

mais

entendimento

destas

ações,

viste

o

site

do

projeto:

www.nepam.unicamp.br/arqueologiaedivulgacao Referências bibliográficas CLACK, Timothy e BRITTAIN, Marcus. Archaeology and the Media. Walnut Creek, California. Left Coast Press, 2007. FRANCO, E.P.C e SILVA, M.C.C.C. Audiodescrição: Breve Passeio Histórico. In MOTTA, L.M.V. e ROMEU FILHO, P. (orgs): Audiodescrição: Transformando Imagens em Palavras. Secretaria dos Direitos da Pessoa com Deficiência do Estado de São Paulo, 2010. FUNARI, Pedro Paulo. Arqueologia. São Paulo: Contexto, 2003. SODRÉ, Muniz. Antropológica do espelho – uma teoria da comunicação linear e em rede. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001. NASDAQ: SCOR-comScore, publicado em setembro de 2011. PATERNOSTRO, Vera Íris. O Texto na TV: Manual de Telejornalismo. São Paulo, SP: Campus, 1999. ROMEU FILHO, P. Políticas públicas de acessibilidade para pessoas com deficiência. In: MOTTA, L.M.V. e ROMEU FILHO, P. (orgs): Audiodescrição: Transformando Imagens em Palavras. Secretaria dos Direitos da Pessoa com Deficiência do Estado de São Paulo, 2010. VARGAS, I.; Sanoja, M. Education and the political manipulation of History in Venezuela, in: R.MacKenzie & P.Stone (eds), The Excluded Past, London, Unwin, 1990: 50-60. VOGT, Carlos. A espiral da cultura científica. In: Revista ComCiência, 2003. Disponível em http://www.comciencia.br/reportagens/cultura/cultura01.html Acessado em 22/11/2011. ZAMBONI, Lílian Márcia Simões. Heterogeneidade e subjetividade no discurso da divulgação científica. Tese de Doutorado em Linguística. Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem. Programa de Pós-Graduação em Linguística, Campinas, 1997.

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ESSAS COISAS NÃO LHES PERTENCEM: RELAÇÕES ENTRE LEGISLAÇÃO ARQUEOLÓGICA, CULTURA MATERIAL E COMUNIDADES These Things do not Belong to You: Relationships between Archaeological Legislation, Material Culture, and Communities Lúcio Menezes Ferreira1

RESUMO A conferência trata das relações entre legislação arqueológica, cultura material e comunidades. Apresenta-se, inicialmente, um esboço histórico das legislações sobre patrimônio cultural no Ocidente e seus usos contemporâneos; em seguida, mostra como práticas arqueológicas alternativas, a exemplo da arqueologia comunitária, lidam com esse problema. Argumenta-se que essa discussão é bastante pertinente ao momento atual, especialmente o brasileiro, assoberbado pela arqueologia de contrato. Traz-se essa questão à baila na última parte da conferência, a modo de conclusão. Palavras-chave: Legislação arqueológica, comunidades, cultura material. ABSTRACT The conference deals with the relationship between archaeological legislations, material culture, and communities. In first place it presents a historical sketch of the heritage legislation in the West and its contemporary uses. Second, it shows how alternative archaeological practices, such as the archeology community, deal with these problems. This whole discussion is quite relevant currently, especially in Brazil, overwhelmed by contract archeology. It rises up this issue in the latter part of the conference. Keywords: Archaeological legislation, communities, material culture. RESUMEN La conferencia analiza las relaciones entre legislación arqueológica, cultura material y comunidades. Presenta inicialmente un dibujo histórico de las legislaciones sobre patrimonio cultural en el Occidente y sus usos contemporáneos. A continuación, discute como practicas arqueológicas alternativas, como la arqueología comunitaria, examina esto problema. Esta discusión general, que será hecha en la última parte de la conferencia, es muy relevante actualmente, especialmente en Brasil, que se encuentra abrumado por la arqueología de contrato. Palabras clave: legislación arqueológica, comunidades, cultura material.                                                              1

Laboratório Multidisciplinar de Investigação Arqueológica/UFPel; CNPq

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  O que une os indivíduos não é cimento Norbert Elias. A Sociedade dos Indivíduos, 1939

O tema dessa mesa redonda – cultura material e comunidades – permite múltiplas abordagens, a partir de áreas disciplinares as mais diversas. Seria impossível condensá-las numa única conferência. Porém, uma das questões centrais, pontuada, sob diferentes matizes, no livro organizado pelo antropólogo Arjun Appadurai (1988), refere-se a como as coisas têm vida social e entranham-se nas cosmologias das comunidades. Os estudos sobre a materialidade discutem, ainda, os modos pelos quais as coisas e as sociedades se co-produzem e como a cultura material serviu e serve como lastro para o governo, nacional ou colonial, das comunidades (BUCHLI, 2007; GOSDEN, 2004; THOMAS, 1991; GIVEN, 2004). Outra influente abordagem é a do sociólogo Bruno Latour. Rompendo o dualismo sujeito-objeto, ele incentiva uma interpretação simétrica entre humanos e não humanos e enfatiza a ação social das coisas sobre ambos (LATOUR, 2008). Em suma, nos últimos anos, descobrimos que a cultura material é animada. É viva e pulsante. As coisas têm anima; são estruturantes e influem nossos comportamentos (GOSDEN, 2005). Elas circunscrevem memórias sociais, fixam calendários, inspiram celebrações (JONES, 2007). Comunidades e coisas se emaranham (HODDER, 2012). Contudo, há uma classe de coisas que não pertence plenamente às comunidades. Continuam exercendo ação social sobre elas, mas não lhes pertencem inteiramente. Melhor dizendo: a rigor, sim, as coisas estão ali e as comunidades lhes conferem uso. Mas reina sobre elas uma ambivalência fundamental. As coisas estão no local. Todos as vêem. As comunidades podem tocá-las. Podem significá-las, associá-las afetivamente à memória da ancestralidade, torná-las marcos do direito à posse da terra e, portanto, da luta pela cidadania. No entanto, mesmo estando no local, essa classe de coisas gravita no global, na categoria difusa do universal, do pertencente à Nação ou a toda a humanidade. Refiro-me à classe das coisas arqueológicas. Pesam sobre elas sanções legislativas variadas, desde os níveis municipais, até os nacionais e internacionais. Normalmente, coisas arqueológicas e comunidades são enfeixadas pela retórica pedagógica dos nacionalismos, disseminando-se pervasivamente a Nação para cada um de seus membros (DissemiNation, conforme o criativo neologismo de Homi Bhabha 1990). Ambas são atadas pela liga pegajosa da “comunidade imaginada” (ANDERSEN, 1983): nenhum indivíduo de uma nação, por menor que ela seja, conhece todas as coisas arqueológicas com as quais se compôs sua

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identidade nacional; e tampouco saberá ou sequer ouvirá falar dos outros membros de sua nação. As legislações arqueológicas têm o poder de arregimentar as coisas que definem identidades nacionais, a despeito, quase sempre, dos desejos e deliberações das comunidades locais. Aquele sítio e todas as suas coisas estão ali, na comunidade; ela pode pisá-lo, manipular as coisas que formam o “registro arqueológico”; pode usá-lo como fonte de recurso alimentício ou materialização do sagrado (FOURMILE, 1989). Porém, a legislação, ao lado de arqueólogos e arqueólogas, podem auferir-lhes valor nacional ou universal. E, por mais que arqueólogos e arqueólogas possam consultar as comunidades e considerar-lhes as demandas, a legislação, como expressão de poder da soberania de uma nação ou do estatuto do universal, diz às comunidades que, com efeito, aquelas coisas estão ali, mas é como se não estivessem. Não são, a rigor, de ninguém, mas de todos que vivem numa nação ou de toda a humanidade; elas pertencem a todos “nós”, mesmo àqueles que nunca as viram e jamais as verão. Os estudos contemporâneos sobre cultura material, com seus enunciados sobre a vida social e estruturante das coisas, raramente se detém sobre essa ambivalência fundamental das legislações arqueológicas. É comum que os mesmos falem das coisas como semióforos; dissertem sobre suas ressemantizações, mapeando os cambiantes significados que elas adquirem em seus deslocamentos por diferentes contextos institucionais, culturais e políticos. Descreve-se a longa biografia das coisas: seu renascimento durante as escavações (até então as coisas estavam enterradas e mortas), sua trajetória nos laboratórios, sua filiação a um táxon e disposição numa coleção, até seu posterior aprisionamento nas vitrines dos museus. Entretanto, o primeiro aprisionamento das coisas é decretado pelas legislações arqueológicas. Elas se assenhoram das coisas, modelando-as na fôrma das categorias nacional e universal. É verdade, também, que as comunidades pressionam legisladores, arqueólogos e gestores do patrimônio cultural para descentralizar o manejo, a salvaguarda e o uso da cultura material; pode-se indicar, nas últimas décadas, uma série de mudanças nas legislações patrimoniais e códigos de ética da pesquisa arqueológica graças à ação combativa de movimentos civis (SCHOFIELD e JOHNSON, 2006). Contudo, como argumentarei mais adiante, todas essas mudanças foram cooptadas em favor, principalmente, da comodificação da cultura material, da liberação das obras de engenharia e do turismo globalizado. A arqueologia de contrato, aqui, tem seu papel bem demarcado: ela é uma realidade de transação (FOUCAULT, 2008) entre as coisas e o mundo liberal, uma estratégia nos jogos de 89   

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poder que permitem a neo-colonização das coisas pelo mercado. Ela possibilita que o mercado se justifique em linguagem patrimonial. Assim, hoje, as coisas arqueológicas são revestidas não apenas pelas tintas do nacionalismo ou pelas cores do estatuto do universal; elas são, também, fontes de legitimação do mercado. Por essa razão, proponho à discussão, nessa mesa redonda, o tema das relações entre legislação arqueológica, cultura material e comunidades. Inicialmente, farei um esboço histórico das legislações sobre patrimônio cultural no Ocidente e demarcarei seus efeitos contemporâneos; em seguida, delinearei como práticas arqueológicas alternativas, a exemplo da arqueologia comunitária, lidam com esse problema. Toda essa discussão é bastante pertinente para o momento atual, especialmente o brasileiro, assoberbado pela arqueologia de contrato. Trarei essa questão à baila na última parte conferência, a modo de conclusão. As Coisas nas Malhas da Legislação Arqueológica As relações entre as coisas e as legislações arqueológicas, no Ocidente, têm uma longa história de genealogias e apropriações articuladas ao processo de formação da ideia de patrimônio cultural. Quando emergiu na modernidade, o patrimônio cultural foi, sobretudo, criação das instituições jurídicas do Estado. Para parafrasear o antropólogo Victor Turner (2005), o patrimônio cultural surgiu como momento de passagem: ao desintegrar as comunidades tradicionais, o Estado moderno inventou o patrimônio cultural, proscrevendo ou assenhorando-se de símbolos antigos. Os métodos sangrentos de criação dos Estados modernos, a partir do Renascimento, acompanharam-se da definição do bom gosto, da eleição dos estilos transmissíveis: o reconhecimento de um cânone de mestres e a delimitação de um corpus artístico a preservar-se. Instituíram-se, sobretudo nos nascentes Estados da península itálica, legislações de proteção e conservação do patrimônio. Uma das mais célebres é o decreto de 1601, por meio do qual o grão-duque Ferdinando de Médici listou dezoito pintores do passado cujas obras não se poderiam vender no exterior (GOMBRICH, 1992). Iniciou-se assim, no Ocidente, o processo histórico que tornou o patrimônio como categoria de pensamento e ação social. Ao eleger um cânone, concebia-se uma maneira de compreender o mundo e de nele atuar. Daí a mescla entre Estado e cânone, entre as formas jurídicas de governabilidade e a arte. Pensava-se e constituía-se o Estado não só pela força do Direito e da conquista, mas, também, como obra de arte, resultado da criação consciente embasada em manifestos e técnicas (BURCKHARDT, 2012). Assim, o vocabulário político

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da modernidade codificou-se, desde o seu nascimento, em prescrições sobre os usos do passado (SKINNER, 1996). Passou-se a selecionar e institucionalizar a herança que os mortos legaram aos vivos (uma das manifestações filosóficas disso é o espanto de Comte com a superpopulação dos cemitérios!). As sociedades do presente dispuseram as regras legais do culto ao passado. O estudo do passado, inicialmente por meio da filologia, da arqueologia e da história (e isso, pelo menos, desde Vico), torna-se princípio epistemológico, índice da organização política do presente e brasa da imaginação utópica, das projeções futuras da sociedade (HORKHEIMER, 1970). Essa “virada epistemológica” radicalizou-se no século XVIII, o “século das revoluções”: a atualidade é interrogada filtrando-se o passado, selecionando-se porções dele para circunscrever-se a singularidade de uma trajetória histórica, um “nós” que remeteria a uma configuração cultural singular (FOUCAULT, 1996). Deu-se azo à noção de cidadania como inextricavelmente atada à história, às coisas, ao território e à língua. Explico-me: desde o século XVIII, num processo que só fez acentuarse progressivamente a partir do século XIX, o indivíduo, o cidadão do mundo liberal, é impensável fora da rede social que o liga às tradições nacionais declinadas pelo Estado (ELIAS, 1994). Daí a proliferação de leis que asseguram destino específico às coisas arqueológicas: elas são restauradas, preservadas, exibidas nos museus e nas praças públicas. A legislação patrimonial – como de praxe na constituição histórica moderna da jurisprudência – apóia-se, para tanto, num conjunto de expertises e ciências: convocam-se museólogos, antropólogos, arqueólogos, historiadores, conservadores e arquitetos para assinar o veredicto patrimonial. Nada disso nos é estranho. Em nossas sociedades, as práticas judiciárias, articulandose a várias ciências, instituíram o inquérito e o exame como forma de chegar-se à verdade e fundar uma técnica de gestão, uma modalidade de administração estatal da economia e da política (FOUCAULT, 2002). O que chamamos de patrimônio cultural não escapou a esses procedimentos do exame e do inquérito: as ciências, tradicionalmente, foram chamadas para fundar uma razão jurídica sobre o passado, administrar o legado cultural e dizer aos indivíduos quais são, e quais não são, suas filiações identitárias. Em nossas sociedades há, ainda hoje, um estatuto jurídico das identidades sociais, para cujo funcionamento ativa-se a patrimonialização das coisas. Para dizê-lo com um trocadilho: desde o século XVIII, nenhum governo governa sem patrimônio cultural (FERREIRA, 2009a).

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Assim é que, passadas mais de uma década do século XXI, dispomos de uma pletora legislativa regulando as coisas arqueológicas. Internamente, no Brasil, temos os Planos Diretores ligados às Secretarias de Cultura dos municípios; temos ainda, em nível federal, as resoluções do IPHAN, particularmente a Portaria nº. 230 (de 17 de dezembro de 2002), que normatiza as fases de obtenção de licença ambiental para as obras de engenharia que impactem ou destruam o patrimônio arqueológico; finalmente, na esfera transnacional, temos a atuação, dentre outros organismos, da UNESCO e, também, as várias Cartas Internacionais, emanadas de Convenções a partir das quais são publicados documentos que norteiam os procedimentos técnicos e éticos para a pesquisa, conservação e proteção das coisas arqueológicas. Eis, assim, que as coisas arqueológicas estão cercadas pela retórica legislativa da preservação. Mas quais são, propriamente, os tropos que povoam essa imaginação legislativa? Tomemos o exemplo da UNESCO. A linguagem patrimonial da instituição, não obstante a incorporação

da

noção

de

diversidade

cultural,

francamente

reforça

valores

predominantemente ocidentais. Isso se clarifica no endosso da ideia de herança cultural mundial e universal: ela invasivamente reconfigura projetos coloniais, ao mapear territórios margeados por fronteiras nacionais (MESKELL, 2002). É inegável, contudo, que muitas comunidades, fortalecendo-se em movimentos civis, impulsionaram a reformulação das legislações arqueológicas. É o caso, por exemplo, dos aborígenes australianos e dos indígenas norte-americanos, os quais, junto a arqueólogos e arqueólogas engajados, garantiram o direito de gestão de seu próprio patrimônio e de repatriação arqueológica (SIMPSON, 2001; COLLEY, 2002; FERREIRA, 2009a). Acrescente-se, ainda, que sem os movimentos civis não haveria crítica ao cânone ocidental e ao logocentrismo da retórica patrimonial, as legislações arqueológicas e os códigos de ética de pesquisa permaneceriam estacionados e várias disciplinas, como a arqueologia da escravidão, não emergiriam (FERREIRA, 2009b). Contudo, pergunto-me se, a esta altura dos acontecimentos mundiais, essas legislações e códigos de ética não estão sendo constantemente capturadas pelo mercado e pelas práticas nacionalistas. Coisas e monumentos, em vários quadrantes do mundo, vêm sendo prodigamente enlaçadas nas malhas dos “novos” e “velhos” nacionalismos, tanto no Leste Europeu, como no Oriente Médio, Japão e China (KOHL et al, 2007). Mesmo o discurso do multiculturalismo é, nesse processo, apetecedor, especialmente na América Latina. Ainda que as diversas legislações arqueológicas, modelos de gestão do patrimônio e, inclusive, as constituições modernas, incorporem o conceito de multiculturalismo, fazem-no 92   

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para homogeneizar as diferenças e impedi-las de dialogar; evocam-no para recriar narrativas nacionalistas e colonialistas (GUTHRIE, 2010; ARMSTRONG-FUMERO, 2009; GNECCO, 2009). É que nossas sociedades, mesmo admitindo e celebrando suas culturas plurais, não dispensaram a “tirania burocrática”, com seu correlato princípio da autoridade centralizada na Lei para gerir os indivíduos e suas identidades (CERTEAU, 1993). Ao enredarem as coisas, as legislações arqueológicas e seu recente apelo multicultural parecem confeccionar “mordaças sonoras” (SARTRE, 1979) para os grupos subalternos. As legislações arqueológicas têm sido hábeis para atuar como aparelhos de captura (DELEUZE e GUATTARI, 1980), absorvendo a fala dos grupos subalternos no intuito de burocratizá-las e dar-lhes pretensa entonação democrática. Elas declinam os verbos da partilha das coisas, de sua gestão comunitária, mas somente para melhor agenciá-las e represar a diversidade cultural que elas comportam. Onde essas artimanhas são mais visíveis? Exatamente na exegese dos juristas ingleses do patrimônio, aqueles que, na linha de John Henry Merryman (2000), John Carman (2005) e Derek Gillman (2010), tratam o patrimônio arqueológico como herança de toda a humanidade, como recurso cultural a ser administrado em fóruns internacionais e explorado como dividendo turístico. Esvaziam, assim, a pluralidade de representações que as comunidades conferem às coisas, amalgamando-as. É notório que essa vertente jurídica de análise se enfeixa aos interesses do mercado turístico. O que interessa ao turismo nacional e internacional que alimenta cartões de crédito, redes de hotéis e companhias aéreas, é, obviamente, o consumo. E o pretexto do consumo é a fruição do chamado patrimônio universal. Ora, a relação entre turismo e arqueologia surgiu ao largo dos séculos XIX e XX, junto com a industrialização, o colonialismo e a construção de identidades nacionais (CHAMBERS, 2000). Porém, desde o final do século XX, a importância do turismo arqueológico (não só o arqueológico, obviamente) aumentou consideravelmente como indústria global, tornando-se justificativa para o desenvolvimento econômico em todo o mundo. Reitera, nesse processo, o que já fazia no século XIX: o uso e abuso das coisas arqueológicas para estruturar identidades nacionais e, agora, neocoloniais. Introduziu, entretanto, uma inovação: a participação das comunidades locais nas escavações arqueológicas e na gestão do patrimônio (BARAM, 2007). A comodificação das coisas arqueológicas para o turismo, além de reinscrever as identidades nacionais nos novos registros proporcionados pelas viagens internacionais, acomoda confortavelmente as interpretações e cosmologias das comunidades. Como Silberman (2002) mostra para o caso 93   

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do Peru, a participação das comunidades, invocadas sob o signo da multivocalidade e do multiculturalismo, assegura a autenticidade da indústria turística. Em nosso contexto mais imediato, a América do Sul, as coisas arqueológicas, como espetáculos do turismo global, se conjugam com os processos de expropriação de terras em favor de hotéis multinacionais e redes de serviço (BELLI e SLAVUTSKY, 2010; RIVOLTA et al, 2010). Às comunidades restam, quase sempre, as sobras da economia turística: a venda de artesanatos e empregos subalternos, mas nunca a gestão comunitária dos negócios e, tampouco, a condução efetiva dos chamados projetos de desenvolvimento auto-sustentável. Reconfiguram-se, desse modo, as heranças do colonialismo no que elas têm de mais notável: a apropriação das histórias nativas e a expropriação de terras. O turismo arqueológico instila, ainda, um paradoxo. O turista mergulha na ambivalência das políticas de representação e gestão do patrimônio cultural. De um lado, ele é submetido às retóricas locais do patrimônio arqueológico, com suas noções de identidade regional e nacional. Submetem-no, portanto, ao patrimônio como lugar, isto é, à identidade enquanto sinônimo de território compartido, ainda que, para o gosto do turista, tal identidade possa ter talhe exótico (e, para as indústrias turísticas, tanto melhor que ela o tenha). De outro, seguindo-se os enunciados do antropólogo Marc Augé (2007), o turismo arqueológico, com sua retórica do universal, da identidade partilhada pelas realizações culturais de toda a humanidade, é acionado como não-lugar. Como nos supermercados, rodovias, shoppings e aeroportos, o turismo arqueológico intenta uniformizar práticas culturais. O turista é apresentado ao Mesmo, ao reconhecível, e o turismo arqueológico é encenado como espetáculo de consumo frugal do mundo globalizado. Contornando o Problema

Assim é que as coisas arqueológicas são colhidas pelas malhas das práticas nacionalistas e do turismo global. Esse processo incrementou-se a partir dos anos 1990, com o avanço do neoliberalismo e o recrudescimento das guerras em escala global. Não por acaso, já no final dos anos 1990, uma obra apontava que a arqueologia estava sob fogo (MESKELL, 1998). Contudo, o uso das coisas arqueológicas como alegoria nacionalista e comodificação vem sendo combatido pelas comunidades locais. Cada vez mais, nas sociedades contemporâneas, as comunidades se engajam num movimento de descolonização da arqueologia em seus territórios (SMITH e WOBST, 2005). Assim, nas últimas duas décadas, 94   

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emergiram campos disciplinares que remodelaram o trabalho arqueológico junto às comunidades. Grosso modo, no-los conceituam como arqueologia pública (MERRIMAN, 2004), arqueologia colaborativa (COLWELL-CHANTHAPHONH e FERGUSON, 2008; MACDAVID, 2004) e arqueologia comunitária (MARSHALL, 2002; TULLY, 2007). Nas camadas que os constituem, lançam-se nesses campos as sementes da democratização do conhecimento arqueológico (SHACKEL, 2001; HOLTORF, 2006); perspectivam suas paisagens como uma “arqueologia vista de baixo” (“archaeology from below”) (FAULKNER, 2000); descrevem-nos, ainda, como novas teorizações sobre as relações entre o presente e o passado, a pesquisa arqueológica e o público (SIMPSON e WILLIAM, 2008). Não há, propriamente, uma ontologia que coalesça as propriedades desses campos. Pode-se falar, porém, de dois elementos metodológicos comuns, muito presentes na literatura. O primeiro é a etnografia arqueológica. Grosso modo, são três os objetivos da etnografia arqueológica: entender as cosmologias e representações das comunidades sobre as coisas arqueológicas e suas narrativas sobre o passado; analisar as políticas de negociação de identidades e os conflitos que caracterizam as comunidades; promover um espaço intercultural, de diálogo permanente entre a equipe de arqueologia e a comunidade, abrindo-se oportunidades para a educação mútua e comparações entre os discursos arqueológicos e locais (HAMILAKIS e ANAGNOSTOPOULOS, 2009). Não se trata, portanto, de educação patrimonial, ao modo como ela vem sendo majoritariamente feita no Brasil (FERREIRA, 2010a; FERREIRA e SANCHES, 2011). Na etnografia arqueológica, o primeiro a educar-se é o arqueólogo. Procura-se, pois, contrabalançar o desnível de poder entre a arqueologia e as comunidades. Não é o arqueólogo que educa, unilateralmente, a comunidade, mas, sim, é ele quem aprende com ela: no trabalho etnográfico, ele dialoga sobre os anseios identitários da comunidade; descobre (descobrir na dupla acepção de inventariar e inventar) a pluralidade de significados que as comunidades atribuem aos artefatos e sítios arqueológicos. A etnografia arqueológica, assim, tem fundamento simultaneamente político e epistemológico. Ela provoca a pensar a diversidade cultural como relação indestrinçável entre o presente e o passado e, ainda, sobre as tecnologias de governo promovidas pela ativação do patrimônio cultural. O segundo elemento metodológico comum nesses campos arqueológicos é a integração das comunidades em todas as etapas da pesquisa arqueológica: desde a formulação do projeto de pesquisa, elaborado em consonância com as demandas das comunidades, até a prospecção, sondagem, escavação de sítios arqueológicos, curadoria e análise da cultura 95   

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material em laboratório. Trata-se de instrumentalizar as comunidades para manejar seu patrimônio arqueológico. As políticas de representação do patrimônio arqueológico, suas formas de extroversão, exploração e administração são, também, decididas conjuntamente entre as comunidades e os arqueólogos. As comunidades, nessa linha, não são mais “informantes”, guias locais para a procura de sítios ou “peões” nas escavações. A tentativa é nivelar as relações de poder entre arqueólogos e comunidades e descentralizar a autoridade da instituição arqueológica. O arqueólogo torna-se colaborador da comunidade. Ele tenta esmaecer, nesse quadro metodológico, sua imagem tradicional: o estrangeiro, aliado da administração colonial ou do Estado nacional, que se apropria das coisas arqueológicas locais e define, em via de mão única, a “diversidade cultural da humanidade”. Ao contrário: aqui, como em qualquer reflexão antropológica, a cosmologia do arqueólogo contrasta-se com a cosmologia da comunidade; o arqueólogo, nesse contraponto, não apenas se reinventa culturalmente; descobre, no mesmo passo, a pluralidade de significados que repousa sobre os artefatos, os monumentos e a paisagem. De Volta às Malhas

Esses campos arqueológicos, portanto, visam à gestão e interpretação partilhada das coisas arqueológicas e a promover a diversidade cultural. Mas, talvez, hoje eles estejam, na maioria dos casos, apenas contornando o problema. Como já apontei, as legislações arqueológicas continuam a prender as coisas em suas malhas e salvaguardando o nacionalismo e o turismo global (APPADURAI, 2002). Ao dizê-lo, não estou afirmando que o trabalho arqueológico com as comunidades, bem como a ativação das diversas legislações arqueológicas, é parte de um plano maquiavélico, sobre o qual existe um acordo consensual por parte de elites, governos e mercado turístico global. Tampouco estou argumentando que arqueólogos e arqueólogas são agentes acríticos e ingênuos ante a comodificação, nacionalização e colonização das coisas arqueológicas. Finalmente, não estou minorando a atuação incisiva dos movimentos civis em prol de todas as mudanças que, pelo menos desde os anos 1960, efetuaram-se nas legislações arqueológicas, códigos de ética das pesquisas, instauração do ponto de vista nativo na história, descolonização metodológica da arqueologia e da antropologia, dentre outras cruciais e decisivas transformações.

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Porém, parece-me que há, hoje, uma acentuada tendência a que o trabalho arqueológico com as comunidades, ou a arqueologia pública (terminologia sob a qual se englobam, equivocadamente, diferentes disciplinas arqueológicas, como a arqueologia comunitária e a arqueologia colaborativa), não seja infenso ao nacionalismo, ao colonialismo e ao mercado. Mais uma vez, esclareço meu argumento de modo antitético. Sem dúvidas, a arqueologia pode trazer benefícios públicos (LITTLE, 2002). E, efetivamente, trata-se de uma “virada epistemológica” quando, como se fora no teatro de Augusto Boal, o público se torna poeta e protagonista da cena, e a mão-de-obra anônima que empunha os instrumentos de escavação não são apenas negras (SHEPERD, 2009). Para limitarmo-nos geograficamente, protagonizar as comunidades e viabilizar a institucionalização de projetos de arqueologia colaborativa, no Brasil, seria fundamental diante do atual contexto de luta das comunidades indígenas e quilombolas pela terra. Lamentavelmente, são poucos, entre nós, os trabalhos nessa linha (Cf. p. ex: SILVA, 2011; EREMITES DE OLIVEIRA E PEREIRA, 2012; BEZERRA, 2012; FUNARI e BEZERRA, 2012; FUNARI e CARVALHO, 2012), enquanto, em meio à Era do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC), latifundiários, articulados ou não às bancadas do Congresso Nacional, se organizam (quando não agem violentamente) contra a demarcação de terras indígenas e quilombolas, conforme cotidianamente vemos em nossas cidades. Mas, observam-se, no Brasil e alhures, as coisas arqueológicas, sob o beneplácito e ordenação da legislação patrimonial, legitimando os chamados planos de crescimento econômico ou projetos de desenvolvimento. A prática contemporânea que engendra tal legitimação é a arqueologia de contrato. Ela surgiu, historicamente, como realidade de transação entre as coisas arqueológicas e o liberalismo. E, hoje, a arqueologia de contrato vem fazendo um uso muito peculiar da arqueologia pública. Vale-se da disciplina, numa clara distorção de sua epistemologia e objetivos, como estratégia de marketing, como publicidade. Os projetos de desenvolvimento podem destruir os sítios, mas a arqueologia de contrato, aliada a essa versão sorrateira de arqueologia pública, diz-nos: “aqui estamos nós para preservar o passado para o futuro e educar a comunidade”! Eis que as empresas e governos, agora, conjugam destruição desenvolvimentista com preservação do passado. Quando não agem cinicamente, vendo a arqueologia como algo a tolerar-se (não se pode parar a obra devido a esses “caquinhos”!) ou pura e simplesmente como óbice ao andamento preciso do cronograma das obras. Mas a tônica majoritária, com raríssimas exceções, é ditada pela propaganda. 97   

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Presumo que todos nós já vimos, no Brasil e no exterior, folhetos e prospectos de propaganda (quando não expressos em artigos e congressos científicos) apresentando a arqueologia de contrato como arqueologia pública. No Brasil, especialmente, ao que se nomeava como educação patrimonial costuma-se classificar, agora, como arqueologia pública, como se esta se limitasse à pedagogia patrimonial. Frisemos os códigos desse marketing acadêmico. Em primeiro lugar, nos manuais, cartilhas, folhetos e prospectos de “arqueologia pública” estampam-se os signos das empresas e instituições do governo que pagaram pelo trabalho arqueológico. É algo similar à propaganda das empresas “ecológicas” de cosméticos, como a Natura: exploremos prodigamente os recursos naturais, pois, afinal, “trabalhamos pela consciência da sustentabilidade e temos, hoje, vinte projetos para a melhoria da educação brasileira” (Cf. o sítio Natura Ekos e Instituto Natura). Os signos da propaganda ilustram, em segundo lugar, a empresa de arqueologia de contrato que ganhou a licitação para executar o trabalho. Vende-se o produto, muitas vezes, exibindo-se orgulhosamente fotos representando a “ciência em ação”, onde os princípios metodológicos da arqueologia comunitária são artificialmente cenografados: mostra-se a comunidade trabalhando em todas as etapas da pesquisa arqueológica. Contudo, a verdade é que não se consulta previamente a comunidade para elaborar-se o “projeto de pesquisa”, assim como não se delibera com ela acerca dos impactos econômicos e ambientais que as obras de engenharia ocasionarão. Em suma, segue-se tranquilamente a “melhor” tradição autocrática do Estado brasileiro: a imposição de projetos sem consulta à sociedade civil. Legendas e textos das fotos falam em “despertar vocações arqueológicas e patrimoniais”, em “garantia do direito à cultura e à memória” (como se as comunidades não tivessem cultura e memória!), em educação de jovens e adultos, em “empoderamento”, em preparar os professores locais para os temas arqueológicos (quase sempre reduzidos à préhistória), em fomentar o artesanato local com motivos arqueológicos, e assim por diante. O que não se fala é que os membros da comunidade tornam-se os antigos “peões” dos trabalhos arqueológicos. Talvez numa escala ainda mais exploradora, uma vez que as comunidades, quase sempre, não são remuneradas, ou apenas lhes pagam, como se diz no Brasil, parcas “diárias”. É quase o gift do contato: “dê-me suas coisas e paisagem, dou-lhe em troca educação, cultura arqueológica, ressignificação de sua memória e desenvolvimento”. Aqui, a ironia do arqueólogo social latino-americano Felipe Bate sobre a arqueologia pública é perfeitamente cabível: ela pode ser entendida como um discurso “altamente progresista y democrático, sumado a un paternalismo conmovedor” (BATE, 1998:12). 98   

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Como já disse Chris Gosden (2001), a arqueologia institucionalizou-se, na modernidade, como produto da filosofia liberal. Não nos libertamos inteiramente desse processo. Isso é evidente na própria aparição, nos Estados Unidos, da conjunção entre arqueologia de contrato e arqueologia pública. O termo arqueologia pública é cunhado, pela primeira vez, na obra homônima do Charles McGimsey (1972). O que impeliu MacGimsey a escrevê-la foi a legislação patrimonial que surgiu nos Estados Unidos dos anos 1960, designada como Cultural Resource Management (CRM). McGimsey estava preocupado, como tantos outros arqueólogos e arqueólogas, com a destruição acelerada de sítios arqueológicos conduzida pelos projetos capitalistas de desenvolvimento. Porém, nessa preocupação não repousa somente a boa consciência romântica da preservação, ou o chamado iluminista do público para a conservação dos “recursos culturais”. Ao contrário. Rapidamente a CRM e a arqueologia pública puseram-se a serviço das empresas capitalistas e do governo, viabilizando obras de engenharia e os negócios turísticos. Aqui nasceu, bem nutrida e vigorosa, a arqueologia de contrato e sua aliança com a arqueologia pública. Decerto que a arqueologia processual, que emergiu nesse mesmo contexto, se beneficiou grandemente com recursos para a pesquisa. Contudo, como recentemente argumentou Patty Jo Watson (2008), uma das lídimas representantes da arqueologia processual, mais de 90% da arqueologia praticada nos Estados Unidos, hoje, é feita por contrato, ligando-se à CRM e à arqueologia pública. Trigger (1984), em artigo clássico, já argumentava, em meados dos anos 1980, que o processualismo, com sua busca por regularidades transculturais e sujeição das culturas a sistemas, era expressão do imperialismo e nacionalismo dos Estados Unidos. O cerne da argumentação de Trigger é que a arqueologia se esteia em meio ao sistema mundial, na acepção de Immanuel Wallerstein. Equivale a dizer: durante a guerra fria, uma fração da arqueologia mundial institucionalizava-se na esfera do liberalismo. Assim, esse vínculo contemporâneo entre arqueologia de contrato e “arqueologia pública” consubstancia-se no mercado, reproduzindo desigualdades sociais com retóricas patrimoniais. A questão não é apenas liberar as obras desenvolvimentistas, conquanto isso seja fundamental para o funcionamento do mercado. Trata-se, também, de acolher as comunidades, e todas as suas coisas arqueológicas, como peças publicitárias. Trata-se, ainda, de veicular a imagem de que a destruição também constrói. Destrói, mas preserva a pluralidade cultural. Devasta positivamente, inventariando paisagens, costumes e coisas nos

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arquivos, onde ulteriores consultas sobre a diversidade que nos caracteriza historicamente poderão ser feitas. Nesses arquivos, o passado estará registrado para benefício do futuro. As coisas arqueológicas, assim, são comodificadas e atuam no mundo liberal. Elas enredam-se nas tramas do discurso liberal sobre a pluralidade cultural, o qual, depois de 1989, açambarca as diferenças e a diversidade em sua ideia de indivíduo e liberdade (Bauman 1998). Contudo, há mais. Os laços entre arqueologia de contrato e “arqueologia pública” remoçam velhos nacionalismos e colonialismos. Nesse ponto, permitam-me narrar uma experiência pessoal. Em maio do ano passado, tive a oportunidade de participar, como convidado, do congresso Archéologie de l’esclavage colonial, ocorrido no Musée du quai Branly, em Paris. O congresso foi organizado pelo Institut National de Recherches Archéologiques Préventives (INRAP), ligado ao Ministério da Cultura e Comunicação da França. Esse instituto é responsável pela arqueologia de contrato que se faz na França. O INRAP, portanto, centraliza, via Estado, os trabalhos em arqueologia de contrato. Trata-se de uma forma de gestão e execução de arqueologia de contrato muito distinta do que se convencionou como o “modelo brasileiro” (Para outros exemplos, Cf. FERREIRA e SANCHES, 2011), mas afeito às práticas do “homem cordial” descrito por Sérgio Buarque de Holanda, isto é, propenso a não discernir e misturar as áreas de atuação do público e do privado. Pois bem, surpreendeu-me constatar, nos folhetos de propaganda do INRAP, três slogans correlatos. O primeiro: “nós escavamos sua história”; presumo que, de tão evidente, são dispensáveis maiores comentários sobre o tom nacionalista desse slogan. O segundo slogan relacionava-se à Guiana Francesa, cuja entonação era mais ou menos assim: “descobertas do passado francês na Guiana”. A modulação colonialista desse slogan é também bastante evidente, mas me atrevo a comentar que, quando tantos arqueólogos e arqueólogas se esmeram em refinar abordagens pós-coloniais e a descolonização da arqueologia, não deixa de ser espantoso ler sentença tão colonialista. O terceiro slogan, por sua vez, é bastante recorrente na arqueologia de contrato que se faz mundo afora. Dizia algo do gênero: “o crescente número de sítios escavados pelo INRAP na França”. Acompanhava esse slogan dados quantitativos, representando-se, em mapas de distribuição, o número vertiginoso de sítios escavados pelo INRAP. Moral da história: antes da arqueologia de contrato, antes do INRAP, não conhecíamos esse número de sítios arqueológicos. Cabe-nos perguntar se dados numéricos sobre a quantidade crescente de sítios arqueológicos registrados e escavados resultam, verdadeiramente, em conhecimento. A meu ver, tal procedimento evidencia que a legislação arqueológica, ao agenciar as coisas, 100   

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recoloca-as, via associação entre arqueologia de contrato e essa modalidade desvirtuada de arqueologia pública, nas malhas dos discursos nacionalistas e colonialistas, além de assegurar os interesses do mercado e as políticas liberais. No Brasil, segundo os últimos dados, 98% das portarias emitidas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) são destinadas à arqueologia de contrato (ZANETTINI, 2009; WICHERS, 2010; TEGA, 2012). Na Argentina, bem como em outros países sul-americanos, a arqueologia de contrato já vai se posicionando firmemente no cenário acadêmico. A justificativa para essa inserção pervasiva, particularmente no Brasil, assemelha-se ao terceiro slogan do INRAP. No nosso caso, desatrelada, para o bem ou para o mal, de usos nacionalistas. Mas, nessa Era do PAC, a arqueologia de contrato, autenticandose agora como “arqueologia pública”, agencia as coisas arqueológicas e recapitula o colonialismo interno acionado pela arqueologia brasileira dos séculos XIX e início do XX (FERREIRA, 2010b): aliena as histórias nativas e lidima a expropriação de terras. Concluo lembrando o que disse David Lowenthal (2005) num debate com Henry Merryman: as leis patrimoniais raramente funcionam, pois a cultura material, além de estruturante, se vivifica conforme os contextos e as cosmologias das comunidades. É verdade. Porém, deve-se considerar, nas pesquisas que fazemos sobre a agência da cultura material, que as legislações arqueológicas aprisionam as coisas; e, hoje, são crescentemente alegorizadas como emblemas de bandeiras nacionalistas e colonialistas, atrações do turismo global e suportes do mercado liberal. Agradecimentos Aos amigos do LÂMINA (ICH/UFPel). Ao CNPq, pelo apoio. Aos amigos Aline Vieira de Carvalho e Pedro Paulo Funari, por me convidarem para integrar essa mesaredonda. A Márcia Bezerra, que partilhou comigo a mesa-redonda e com quem sempre aprendo muito. Aos alunos e alunas dos cursos de arqueologia no Brasil, nossa “comunidade imaginada”. Não conheço pessoalmente a maioria deles. Mas escrevi essa conferência pensando neles, sem proselitismo paternal e evitando “educá-los para o patrimônio”. Referências bibliográficas ANDERSEN, B. 1983. Imagined Communities: Reflections on the Origin and the Spread of Nationalism. London: Verso.

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OS SENTIDOS CONTEMPORÂNEOS DAS COISAS DO PASSADO: REFLEXÕES A PARTIR DA AMAZÔNIA1 The Contemporary Senses of the Things of the Past: reflections from Amazon Marcia Bezerra2

RESUMO O texto trata da relação entre as comunidades locais na Amazônia e o patrimônio arqueológico, considerando a percepção tátil como elemento importante no reconhecimento e na apropriação das coisas do passado. Com base no mapeamento desses casos em distintas localidades, proponho a reflexão sobre a potencialidade das pesquisas acerca dos sentidos que permeiam tais relações e a sua contribuição para a legitimação dos discursos nativos sobre o passado e para a gestão dos bens arqueológicos. O artigo apresenta as primeiras considerações de um estudo recém-iniciado e voltado para o entendimento dos usos contemporâneos das coisas do passado. Palavras-chave: arqueologia pública, sentidos, Amazônia ABSTRACT The paper considers the relationships between the local communities and the archaeological heritage, in Amazon, regarding the haptic perception as an important element to the recognition and appropriation of things of the past. Based on the survey of these cases in different places, I propose a reflection on the promising researches concerning the senses that pervade these relationships and their contribution to legitimate native discourses about the past and to enhance archaeological resource management. The paper presents the first thoughts of a recently initiated study towards the understanding of contemporary uses of things of the past. Keywords: public archaeology, senses, Amazon RESUMEN El texto trata de la relación entre las comunidades locales en la Amazonia y el patrimonio arqueológico, teniendo en cuenta la percepción táctil como un elemento importante en el reconocimiento y la apropiación de las cosas pasadas. En base a la cartografía de estos casos en diferentes lugares, propongo una reflexión sobre el potencial de las investigaciones sobre los sentimientos que subyacen en este tipo de relaciones y su contribución a la legitimación de los discursos indígenas sobre el pasado y para el tratamiento de los restos arqueológicos. El                                                              1

Uma versão desse texto foi apresentada no 7th World Archaeological Congress, na Jordânia, em Janeiro de 2013. A pesquisa é resultante de projetos de Arqueologia Pública, na Ilha do Marajó, e de Educação Patrimonial, em várias localidades na Amazônia. 2 Doutora em Arqueologia/USP Iphan/UFPA/CNPq, e-mail: [email protected]

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artículo presenta las primeras consideraciones de un estudio recientemente iniciada y dirigida a la comprensión de los usos contemporáneos de las cosas del pasado. Palabras clave: arqueología pública, los sentidos, Amazonia Introdução

As reflexões oriundas das pesquisas sobre as relações de distintas comunidades locais com o patrimônio arqueológico têm tido impacto direto no reconhecimento das narrativas nativas sobre o passado e na gestão desses bens. No entanto, apesar do expressivo volume de estudos sobre o tema (EBBIT, 2010; FERREIRA, FERREIRA, ROTMAN, 2011; FUNARI, BEZERRA, 2012; GNECCO, AYALA, 2010; HERRERA, LANE, 2006; LONDOÑO, 2003; MIRE, 2007; NAJJAR, 2001; OKAMURA, MATSUDA, 2011; PYBURN, 2009; SILVA, 2002), há pontos importantes que ainda merecem ser examinados. Dentre eles, enfatizo, neste artigo, o imbricamento sensorial (CLASSEN, 2005; HODDER, 2012; THOMAS, 1991;) das pessoas com as coisas do passado - um tema pouco contemplado, particularmente pelos arqueólogos. Um dos aspectos não muito explorados, e que configura quase uma interdição, é o uso contemporâneo dos bens arqueológicos. Refiro-me, aqui, aos artefatos e aos sítios apropriados como materializações (BELL, GEISMAR, 2009) destacadas da categoria “patrimônio”, mas enganchadas nas paisagens cotidianas dessas comunidades. Cito como exemplos a prática do futebol em uma área das ruínas do sítio de Sacsayhuaman, em Cuzco, Peru, narrada por um arqueólogo, ele mesmo participante do jogo com moradores locais (STANCHI, 2001); e o uso de machados polidos – do período pré-colonial – como pesos de porta na Amazônia, entre outros. Tais situações denotam uma riqueza de elementos fundamentais para o entendimento das percepções sobre a cultura material. Pensar sobre esses casos contribui para a consolidação do campo da arqueologia sensorial e amplia o escopo de discussões para as sensibilidades contemporâneas sobre as coisas3 do passado. É nessa perspectiva que venho, nos últimos anos, mapeando os distintos usos contemporâneos das coisas arqueológicas, o que me levou a propor, em trabalhos anteriores                                                             

3

Tal como já discutido em trabalhos anteriores (ver BEZERRA, 2012), adoto o termo “coisa” a partir de Bell e Geismar (2009). Segundo os autores, o termo “coisa” desconstrói a habitual naturalização da cultura material como uma categoria que “obscurece as distinções locais”. Compreendo que essa noção permite, então, pensar sobre essas relações para além da categoria “patrimônio” inventada pelo Estado.

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(BEZERRA, 2012), a consideração de tais práticas como resultantes de formas particulares de fruição com o passado. É sempre importante ressaltar que não estou sustentando a ideia de que os atos de vandalismos e/ou saques aos sítios arqueológicos são legítimos, no entanto, sugiro a observação das apropriações locais do que denominamos por “patrimônio arqueológico”, a partir do que Castañeda (2008: 40) conceitua como “instalação etnográfica” - um lugar onde a confluência de distintas visões de mundo e a subversão das relações verticalizadas entre pesquisadores e comunidades moradoras do entorno de sítios arqueológicos instauram um locus para a construção de outras interpretações sobre as coisas do passado. Tendo por base a proposição de Castañeda e a premissa de que as apropriações contemporâneas da cultura material constituem uma forma singular de fruição com o passado (BEZERRA, 2012), discuto a importância de se considerar o domínio sensorial dessas percepções, particularmente a sua natureza tátil (PYE, 2007). Assim, a partir de estudos de caso na Amazônia, proponho a reflexão sobre: 1) a desvalorização do potencial das pesquisas sobre os sentidos na compreensão das práticas culturais; 2) os paradoxos do discurso da Arqueologia contemporânea; e 3) a instrumentalização do patrimônio no campo da preservação. Os exemplos aqui tratados mostram que o deslocamento do olhar sobre o patrimônio – da norma da preservação para a forma de fruição – e da própria categoria “patrimônio” para “coisas” contribui para o avanço dos debates sobre a simetria nas relações entre arqueólogos e comunidades locais. O estudo dos sentidos

O estudo dos sistemas sensoriais como caminho para entender a cultura não é novidade no campo da Antropologia. Pesquisadores como Classen (1997, 2005), Gosden, Edwards e Phillips (2006) têm dado intrigantes e criativas interpretações sobre os “objetos sensíveis” e seu papel em distintas ordens sensoriais. No contexto amazônico, a ordem do sensível foi, exaustivamente, discutida por Viveiros de Castro (1996) ao tratar do perspectivismo ameríndio. Nessa perspectiva, o mundo é constituído por distintas categorias de seres – humanos e não-humanos. Cada uma vê a si mesma como humana e as demais como não-humanas. Nas cosmologias ameríndias geradoras dessas elaborações, no início, todos os seres eram humanos e, posteriormente, por “atos tecnológicos” (VAN VELTHEM, 2003:90), foram se diferenciando: tornaram-se humanos, 109   

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plantas, animais e artefatos. Contudo, se para Viveiros de Castro, os objetos têm lugar secundário nessa dinâmica, para Santos-Granero (2009), as coisas são centrais para a vida humana e a reprodução, têm uma “vida oculta”. A fecunda produção de conhecimentos sobre o tema na Amazônia levou Santos-Granero a propor a existência de uma epistemologia ameríndia da cultura material4. No campo da Arqueologia, as contribuições que contemplam a dimensão do sensível, na Amazônia, ainda são incipientes. Os estudos conduzidos por Barreto (2008), Gomes (2012) e Schaan (2004), entre outros, resultaram em interpretações sobre o registro arqueológico pré-colonial, que de forma direta, ou indireta, se beneficiaram das discussões sobre a ordem do sensível. As reflexões propostas por Machado (2012) no âmbito das relações entre pessoas e plantas na Ilha Caviana também contribuem para as discussões sobre o domínio sensível das paisagens para as populações ribeirinhas. Para a discussão aqui apresentada, dou destaque ao trabalho atualmente desenvolvido por Cabral (2011) com indígenas Wayãpi, no Amapá, e que preconiza certa “arqueologia do sensível”. No entanto, as ativas e cotidianas relações que as comunidades locais da região têm com as coisas do passado implicam a necessidade de se pensar sobre a lógica de construção de outras epistemes. Na Amazônia é frequente observar que as casas se assentam sobre os sítios arqueológicos. Urnas funerárias e outros vasilhames servem como armazenadores de água e/ou farinha. Os moradores aproveitam os sítios de terra preta para fazer suas roças. As crianças, por sua vez, brincam com fragmentos de cerâmica, guardam objetos encontrados na beira de rios, igarapés, nas ruas de terra e formam pequenas coleções (RAVAGNANI, 2011). Há ainda registro do uso de cacos de cerâmica como conservadores de umidade em vasos de plantas e até uma garrafa de grés aproveitada como vaso de flores (MORAES, 2012). Mas o que esses exemplos têm a nos dizer?

                                                            

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Em trabalho anterior discuti a perspectiva indígena sobre os objetos etnográficos que compõem os acervos de museus, considerando a dimensão sensível dessas relações (BEZERRA, MACHADO, 2011).

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Figura 1: Adriana, de Capanema, e Mariele, de Rurópolis, brincam no quintal de suas casas: dois sítios de terra preta. O primeiro no Rio dos Cacos; o segundo, em Água Azul, na beira da Transamazônica, ambos no estado do Pará. Foto: Marcia Bezerra.

Em recente congresso realizado no Brasil, Zarankín, ao discutir os aspectos sensoriais da prática arqueológica, perguntou: “(...) Qual arqueólogo que nunca pensou nos sentimentos e pensamentos dos grupos que estuda?” (ZARANKIN, 2012). Seguindo a reflexão do colega, questiono: “Qual arqueólogo pensa nos sentimentos e pensamentos dos grupos com os quais lida durante as pesquisas de campo?”. A resposta pode parecer óbvia. Afinal, nas últimas décadas, acompanhamos o significativo aumento de artigos, livros, fóruns e workshops destinados a refletir sobre as inúmeras adjetivações das arqueologias contemporâneas: arqueologia ação (SABLOFF, 2008), colaborativa (MCDAVID, 2002), participativa (PYBURN, 2009), indígena (GNECCO,

AYALA,

2010),

com

descendentes

(COLWEL-CHANTHAPHONH,

FERGUSON, 2008), comunitária (MARSHALL, 2002) e simétrica (CABRAL, 2011), entre outras. Contudo, se por um lado todas essas “arqueologias” compartilham preocupações sobre a descolonização da prática arqueológica e a simetrização dos discursos nativos e científicos acerca do passado, por outro elas não contemplam a experiência sensorial e o imbricamento das pessoas e das coisas [arqueológicas] (HODDER, 2012; THOMAS, 1991), mas que têm papel fundamental no reconhecimento das múltiplas elaborações sobre o passado. Os debates sobre a dimensão sensória na Arqueologia não são novos (HAMILAKIS, PLUCIENNIK, TARLOW 2002; HURCOMBE, 2007; JONES, MACGREGOR, 2002; MACGREGOR 1999; OUZMAN, 2001, entre outros) e há uma recente efervescência sobre o tema (DAY, 2013; FAHLANDER, KJELLSTRÖM, 2010; SKEATES, 2010). A coletânea 111   

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editada por Fahlander & Kjellström, em 2010, revela os desafios da pesquisa sobre o universo perceptual no passado, mas aponta caminhos teóricos e metodológicos para se adensar as interpretações sobre a visão, a audição, o olfato, o paladar e o tato, a partir do registro arqueológico. As pesquisas de MacGregor (1999), Hurcombe (2007) e Ouzman (2001) demonstram, de forma particular, a importância da percepção tátil no estudo de coleções líticas, cerâmicas e até da arte rupestre, respectivamente. É interessante notar que, não obstante o fato de que a arqueologia lida, inexoravelmente, com a concretude, a dimensão tátil do fazer arqueologia tem atraído poucos pesquisadores, o que vai ao encontro das críticas de Classen (1997, 2005), Edwards, Gosden e Phillips, (2006), Howes (1991) e Stoller (1989) sobre os primeiros estudos no campo da antropologia dos sentidos. Segundo os autores, há uma primazia da visão em relação aos demais sentidos. Como salienta Stoller (op.cit.: 7), é preciso “abrir seus [dos antropólogos] sentidos para os mundos de outros”5, de modo que se possa “(...) revelar as distinções e interrelações do significado sensório e prático para uma cultura” (CLASSEN, 1997: 401). Classen (2005: 277) afirma que os visitantes em um museu, por exemplo, desejam tocar os objetos para “verificar sua natureza e experienciá-los intimamente”. Isso porque o toque aproxima o sujeito do objeto, ao contrário da visão que implica sempre certa distância para que o observador possa ver o observado. O imbricamento de “quem toca” e do “que é tocado” aniquila “não apenas o espaço, mas também o tempo” (op.cit.: 277). Assim como os visitantes de museus observados por Classen (2005), os moradores do entorno de sítios arqueológicos também desejam examinar os objetos, não apenas visualmente, mas, sobretudo, por meio da experiência tátil. Esse desejo, no entanto, revela mais do que uma mera curiosidade pelo objeto; o toque é um elemento significativo no processo de exploração e (re) conhecimento do mundo. As mãos que seguram os cacos

As metáforas sensoriais elaboradas por membros das comunidades com as quais tenho convivido na Amazônia nos dão a medida da importância de mapear as relações sensíveis que eles estabelecem com suas paisagens. Imagens como “o poço tem sentimento”, “os restos mortais da igreja”, “o cabelo do mar”, “a água morta” ou “escutar a terra” e “mexer

                                                            

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A tradução é minha. Todos os demais trechos em língua inglesa serão, igualmente, traduzidos.

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no olho do poço para brotar água”, entre outras, demonstram o reconhecimento do ãnima nas coisas6 e a relação com o domínio dos sentidos. É assim que D. Darlete, agricultora e moradora da Transamazônica7, descreve uma tigela de cerâmica (MORAES, 2010):

(...)... achou panelinha assim... de barro mesmo... lá é de barro mesmo... porque hoje vão fazer... tem no torno é bem pulida... a gente vê que ela é feita no manual... porque tem lugar que a gente vê assim a marca dos dedos assim... onde passa assim oh... os fundim do dedo sabe... e a boca não é tão redonda... é meia torta... não é dado um acabamento igual feito mesmo... uma coisa feito assim... mesmo no grosso sabe?

A descrição da peça é acompanhada pelos dedos de D. Darlete que esquadrinham a cerâmica para reconhecer a sua forma, percorrer suas reentrâncias e assim compreender aquele fragmento naturalizado pelo olhar, mas “estranhado”, “destacado” pelo toque. Esse ato se repete em inúmeras ocasiões. Outra agricultora, Maria de Jesus, diz “(...) caco de pote tão bonitinho, assim riscadinho” (MORAES, 2010), mostrando a decoração incisa com a ponta dos dedos. Já Valtinho, professor em Primavera 8 , e colecionador de objetos variados e, principalmente, de machados polidos, descreve o sistema sensorial acionado por ele – visão e tato - para identificar um machado polido encontrado nas proximidades de um sítio arqueológico:

Tá, o primeiro detalhe que eu percebo forma, olha só, o outro rapaz falou, foi a água, a chuva, mas ali onde ele achou não tem nenhum rio, não foi no rio, e outro detalhe é que eu acho também é que tá muito amoladinho, entendeu, e outro detalhe que eu percebo também, é pelo formato assim e tem um pequeno sulco que talvez seja pra colocar pedaço de pau pra amarrar e fazer a armação o que tá bem claro, bem evidente ali, essa aqui também tem, só que ela é, ela tem também aqui ó (Valtinho, Primavera).

Além de vários desses exemplos, observei, ao longo dos anos, a prática do esfregamento dos fragmentos, principalmente os de cerâmica, mas também os líticos. Esse ato tátil ativa a imaginação – e a memória – sobre experiências contemporâneas e sobre histórias do passado, mas também aponta para o que Ingold (2008: 3) chama de “engajamento                                                             

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(para uma discussão sobre a ‘alma das coisas’ ver LIMA FILHO, SILVEIRA, 2005) Projeto de Educação Patrimonial, coordenado por M. Bezerra, e desenvolvido no âmbito do “Programa de Arqueologia Preventiva Rodovia BR-163 (trecho guarantã do norte ao entroncamento da BR-230) e Rodovia BR-230 (trecho Miritituba-Rurópolis) DNIT/UFPA”, coordenado por Denise P. Schaan. 8 Projeto de Educação Patrimonial, coordenado por M. Bezerra, e desenvolvido no âmbito do “Projeto Primavera - Prospecção Arqueológica e Educação Patrimonial na Área de Implantação da Fábrica de Cimento da Votorantim - Município de Primavera/PA Votorantim/Archaeo”, coordenado por Suzana Hirooka. 7

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ativo e exploratório da pessoa inteira (...)” num dado ambiente, ou seja, não apenas os órgãos dos sentidos como domínios em si, mas imbricados em uma teia técnico-simbólica.

  Figura 2: Esquadrinhando o Passado. Fotos: Marcia Bezerra, Monica Bezerra e Luis Ravagnani.

Ingold (2000) tem sido um dos principais críticos do campo da antropologia dos sentidos. Segundo ele, existe uma lacuna entre a “prática perceptual” e a “imaginação sensória” (op.cit.: 3) que tal proposição teórica não teria conseguido resolver a contento. Um de seus principais argumentos recai sobre o que ele considera um exagerado relativismo nas interpretações. Para ele, “(...) a antropologia dos sentidos (...) [deveria] se restituir aos mundos virtuais do sentido as praticidades de nossa maneira sensória de perceber o mundo.” (op.cit.: 2) Embora reconheça essas divergências, entendo que seja proveitoso para a discussão lançar mão de elementos presentes em ambas as perspectivas. Voltando à fruição tátil, considero importante pensar sobre essas práticas como percepções que ocorrem de “forma imediata” e, por isso, mais “grosseira”, como afirma Kant (2006: 155), ao discorrer sobre a “faculdade do conhecer”. A narrativa de S. Zuza, agricultor da cidade de Primavera, sugere essa percepção. Diz ele: “(...) acho que isso nasce na terra mesmo (...)”, referindo-se a um objeto de cerâmica. A relação com a terra é crucial para essas comunidades. O principal meio de subsistência é a agricultura, seguido pela pesca, o que implica uma experiência cotidiana e tátil com a terra e o que nela for encontrado. O reconhecimento tátil das coisas faz parte das práticas agrícolas. As mãos e os dedos operam como instrumentos de exploração, de verificação, de construção de conhecimento. Assim, se por um lado os fragmentos de cerâmica ou de lítico são naturalizados em suas paisagens cotidianas, por outro, eles são “estranhados” no processo de esfregamento de suas superfícies.

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  Figura 3: Sr. Zuza e o “jabuti”. Primavera, Pará. Foto: Marcia Bezerra.

As relações dessas comunidades com as coisas do passado são ativadas pela sensibilidade tátil, que é constituída por uma gama de conhecimentos empíricos sobre o ambiente, mas também pela “imaginação sensória” (INGOLD, 2008) sobre ele. Assim, tocar um objeto arqueológico significa incorporá-lo ao seu universo de conhecimento, a partir de uma lógica de raciocínio própria. Esses fragmentos – que para nós são partes de um todo representado por um objeto - constituem partes de outro todo: as paisagens vividas por essas pessoas. São também elementos com os quais têm uma relação metonímica, pois engendram uma teia de experiências e sentidos na qual estão imersos e imbricados. Essa lógica também pode ser pensada no âmbito do trabalho do arqueólogo. No cotidiano da pesquisa arqueológica, nosso sistema sensorial é ativado a todo o momento como parte integrante do processo de identificação, análise e classificação de distintos materiais. MacGregor (2006: 155) afirma que “a classificação e o entendimento de alguns objetos podem ser mais dependentes de suas qualidades táteis do que visuais”. Todavia, quando se depara com o outro, a práxis da arqueologia, e da ciência em geral, vai de encontro a essa ideia. A interdição da percepção tátil do outro, do “nãoarqueólogo”, em relação aos objetos, restringe a experiência sensorial, uma vez que apenas a visão é autorizada. Isso demonstra um descompasso da arqueologia contemporânea: por um lado os debates reforçam o discurso de descolonização das práticas; por outro, promovem a desvalorização e mesmo a supressão das formas sensoriais de fruição com o passado. Ou seja, a retórica da simetria dissimula as práticas de interdição. 115   

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Os discursos sobre preservação e conservação do patrimônio também são domínios, por excelência, dessas idiossincrasias. Os especialistas – arqueólogos, museólogos, restauradores, conservadores – têm o benefício da fruição com os objetos, os que se encontram fora desse restrito grupo são orientados a não tocar nas coisas do passado. E, mais do que isso, têm sua percepção sensorial disciplinada pela retórica patrimonial e as suas epistemologias aniquiladas pelo discurso da ciência. Canclini (2003: 160) ao discutir sobre as funções do patrimônio argumenta que esses bens, ao serem tomados, a priori, como prestigiosos e duradouros dons recebidos do passado, são considerados inquestionáveis e, por isso, passíveis apenas de atos que promovam a sua preservação, conservação e difusão. Para o autor, é essa perspectiva que faz do patrimônio “(...) o lugar onde melhor sobrevive hoje a ideologia dos setores oligárquicos, quer dizer, o tradicionalismo substancial” que impede que os vários grupos interessados no patrimônio encenem os seus distintos modos de fruição com o passado. Chauí (1981), por sua vez, ao refletir sobre o papel da ciência, afirma que o seu distanciamento da sociedade e a natureza privada do conhecimento por ela produzido, instalam o que ela denomina “discurso competente”, segundo o qual:

(...) não é qualquer um que pode dizer qualquer coisa a qualquer outro em qualquer ocasião e em qualquer lugar. Com esta regra, ele produz sua contraface: os incompetentes sociais (...) (CHAUÍ, 1981: 2).

O discurso da competência recrudesce a autoridade do pesquisador e, no caso da Arqueologia, contribui para o arruinamento de outras lógicas de conhecimento e para a instrumentalização do patrimônio. Londoño (2003: 4) ao tratar da exclusão de outros sentidos da materialidade, no caso da prática campesina da “guaquería”9, afirma que os grupos envolvidos nessas práticas têm suas formas particulares de lidar com a materialidade pré-hispânica, com base em outras lógicas e outros pesos. Para o autor, o “puritanismo jurídico” aplicado ao patrimônio impossibilita a democratização dos discursos sobre o passado. É nessa mesma perspectiva que Smith (2007: 2) lança mão da noção de “tecnologia de governo”, desenvolvida por Rose e Miller (1992: 175) em referência ao conjunto de programas, técnicas, aparatos, documentos e procedimentos pelos quais “as autoridades                                                             

9

Prática de saque aos sítios arqueológicos. Nas palavras de Londoño (2003:6) “La guaquería, en efecto, es uma forma cultural, socialmente estabelecida, por médio de la cual ciertos indivíduos se representan a sí mismos la existência de lo que para los arqueólogos y los juristas constituye el registro arqueológico.” O autor não pretende dizer que o Estado não deva salvaguardar o patrimônio arqueológico.

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procuram incorporar e efetuar as ambições governamentais.” Smith propõe pensar o patrimônio arqueológico como “tecnologia de governo”, um aparato constituído pela autoridade disciplinar e pela ideia de expertise. O não reconhecimento das práticas de fruição com o passado, e suas coisas, legitima a posição de privilégio da Arqueologia no mundo ocidental e reforça a sua condição de “tecnologia de governo”. De forma circular, esses dois fatores contribuem para a depreciação das perspectivas nativas sobre a interpretação do registro arqueológico, a gestão e a conservação10 (BEZERRA, MACHADO, 2011) do repertório material que compõe os sítios arqueológicos. Considerações finais Os singulares exemplos de fruição com a cultura material na Amazônia contribuem para os estudos sobre as percepções que as comunidades moradoras do entorno de sítios arqueológicos têm do que se convencionou chamar “patrimônio arqueológico”. Pensar nessas relações a partir de sua dimensão sensorial revela as complexas nuances dessas elaborações e ainda aponta um caminho fértil para se rever as ações de preservação e refletir sobre as práticas disciplinares, considerando as dissonâncias sensíveis do discurso da Arqueologia contemporânea. Com essas reflexões iniciais sobre as relações sensoriais entre as pessoas de hoje e as coisas do passado, pretendi mostrar que o entendimento das formas de apropriação do que denominamos “patrimônio arqueológico” não pode prescindir do mapeamento dos modos perceptuais de fruição. Além disso, ressaltei que a opção pela produção do campo da Antropologia dos Sentidos pode enriquecer os estudos sobre o reconhecimento de sistemas sensoriais distintos em contextos arqueológicos. Em seguida, indiquei alguns exemplos nos quais moradores de pequenas localidades na Amazônia narram suas experiências táteis com os objetos arqueológicos. Por fim, concluí que ambos os discursos da ciência e do patrimônio disciplinam, interditam e ordenam as percepções sensoriais do outro, instaurando paisagens de poder (Lima Filho; Silveira, 2005) que afetam a legitimidade dos sentidos contemporâneos das coisas do passado na Amazônia.

                                                             10

Para discussão sobre as práticas descolonizantes na preservação e conservação de bens culturais ver Sully (2009). 

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PORTOS, PORTAS E PRODUÇÃO: ARQUEOLOGIA DO PODER EM CANANÉIA (SP), SÉCULOS XIX e XX

Harbors, doors and production: the Archaeology of Power in Cananéia (São Paulo State), 19th and 20th centuries Paulo F. Bava de Camargo1 RESUMO O objetivo deste artigo é mostrar que, até mesmo em uma localidade periférica a um dos subcentros do capitalismo contemporâneo, ou seja, em Cananéia, distante aproximadamente 300 milhas náuticas do Rio de Janeiro, antiga capital do Brasil, a distribuição das estruturas, edificações e equipamentos no tecido urbano de uma cidade portuária, com especial atenção às casas comerciais, espelhou as modificações das formas de controle da produção e da circulação de mercadorias ocorridas a partir da dispersão do modo de produção capitalista pelo mundo. Palavras-chave: Arqueologia do Capitalismo, Arqueologia Urbana, Cananéia ABSTRACT The aim of this article is to show that, even in places on the edges of contemporary capitalist sub centers, like Cananéia, distant approximately 300 nautical miles from Rio de Janeiro, ancient capital of Brazil, the spatial distribution of structures, buildings and equipment in the urban net of a harbor city, with special attention to the commercial houses, mirrored the modifications of the forms of control over production and circulation of commodities that have occurred since the spread of the capitalist mode of production throughout the world. Keywords: Archaeology of Capitalism, Urban Archaeology, Cananéia RESUMEN El objetivo de este artículo es mencionar que, incluso en una localidad periférica de uno de los subcentros del capitalismo contemporáneo – en Cananéia, con distancia aproximada de 300 millas náuticas del Rio de Janeiro, antigua capital del Brasil – la distribución de las estructuras, edificaciones y equipamientos en el tejido urbano de una ciudad portuaria, con especial atención a las tiendas comerciales, reflejó las modificaciones de las formas de control de la producción y de la circulación de mercancías realizadas a partir de la dispersión del modo de producción capitalista por el mundo. Palabras claves: Arqueología del Capitalismo, Arqueología Urbana, Cananéia                                                              1

Pesquisador Colaborador (Pós-Doutorado) – Departamento de História/ Instituto de Filosofia e Ciências Humanas/ Universidade Estadual de Campinas (DH/ IFCH/ UNICAMP). Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) - [email protected]

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Introdução Este artigo está embasado em um capítulo de minha tese de doutoramento2, na qual continuei a desenvolver um tema trabalhado desde o Mestrado (2002): a História do estabelecimento das formas de controle do vale do Ribeira paulista que poderia ser construída a partir da Arqueologia das paisagens marítimas dessa região. De início, no Mestrado, abordei as edificações, estruturas e equipamentos de defesa militar como o objeto principal da pesquisa, tendo em vista que a materialização do poder absolutista se dava de forma explícita e direta, infligindo o medo do dano físico – ou o próprio dano físico – àquele que ameaçasse o domínio da coroa lusitana. Já no Doutorado, examinando as formas de controle desenvolvidas a partir do Segundo reinado, despontaram as paisagens portuárias como os alvos primordiais para o entendimento desse poder, fundamentalmente econômico e de contornos mais difusos, mas tão ou mais centralizador quanto no período colonial e no Primeiro reinado. Se, no caso do poder absolutista, tem-se, principalmente – mas não exclusivamente – armas e fortificações, coisas localizadas e pontuais que serão apropriadas como bens de interesse arqueológico, com relação à Arqueologia do poder capitalista há um conjunto de coisas dispersas pelo espaço, construindo paisagens que não parecem, à primeira vista, edificações, estruturas e equipamentos destinados à regulação da produção 3 . Como consequência, fez-se necessária uma Arqueologia tanto das ruínas e jazimentos, locus normal da prática arqueológica, quanto de alguns bens que ainda estavam em uso, pois, em verdade, o espaço do capital é o nosso espaço, goste-se ou não disso. Esse foi o primeiro problema dessa abordagem: tratar objetivamente paisagens com múltiplas apropriações. Ou seja, enxergaram-se, a partir da Arqueologia, elementos materiais que pertenciam ao mundo dos viventes e que possuíam significados diversos e dinâmicos. Remete-se, especificamente, ao fato paradoxal das paisagens portuárias de Cananéia serem determinadas por seu uso atual, mas, também, por serem apropriadas como patrimônio histórico. Assim, se por um lado, edificações, estruturas e equipamentos antigos são usados, desgastados, destruídos, reconstruídos e transformados por aqueles que veem neles um valor funcional, por outro, esses mesmos bens são esvaziados de funcionalidade primária e                                                              2

Intitulada Arqueologia de uma cidade portuária: Cananéia, séculos XIX-XX. Defendida em 2009, no MAEUSP, foi desenvolvida sob a orientação de Maria Cristina M. Scatamacchia. O autor contou com bolsa do CNPq. 3 Embora o conceito possa ser abrangente, no caso aqui abordado deve-se entender produção como a fabricação de mercadorias.

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transfigurados em monumentos que aludem ao antigo, situado este sempre em um passado colonial e escravista por decreto. Exemplos dessa situação são o monumento a Martim Afonso e o porto Bacharel. O primeiro está na praça principal de Cananéia: foi erguido há mais de 80 anos, com canhões ingleses do final do século XVIII, mas faz alusão à chegada de Martim Afonso, em 1531. Neste caso, é clara a exaltação do ato fundador colonial com objetos que nada têm a ver com o evento em si, apropriados para a homenagem pelo simples fato de serem antigos e/ou representarem o poder metropolitano/europeu. Com relação ao porto Bacharel, essa associação não é tão explícita. Ele ganhou essa denominação em alusão ao bacharel ibérico que teria sido degredado naquela porção do litoral, entre o final do século XV e início do XVI, transformando-se em um potentado local. O uso dessa porção do espaço portuário de Cananéia é, sem dúvida, bastante antigo, remetendo ao período pré-colonial, mas é também fato que a estrutura que hoje lá se encontra, e onde funciona o porto da balsa para a Ilha Comprida, foi construída no final da década de 1920. O segundo problema está na percepção do território do capital e de seus marcos físicos de construção das paisagens. O capital globalizado e o sistema mundo por ele definido são totalizantes, levando à mercantilização de todas as relações humanas, mas a descontinuidade do espaço físico do planeta e as fronteiras políticas dos Estados Nacionais determinam a conformação de subsistemas ou a dispersão de etapas da produção em regiões distantes dos centros (WALLERSTEIN, 2007). Em termos concretos, para a Arqueologia do Capitalismo, seus objetos de pesquisa estão dispersos por um vasto e descontínuo território4. Evidente que não podemos deixar de perceber a nossa própria materialidade com relação às pesquisas desses contextos: há que se ter tempo para estudar todos os aspectos relativos a um meio de produção e a disponibilidade de recursos financeiros para isso. Como decorrência desta última colocação, constituem-se os espaços portuários como um dos loci privilegiados para o entendimento da produção capitalista a partir da Arqueologia, pois neles há a possibilidade de serem encontrados, com relativa proximidade espacial, contextos arqueológicos que abrangem várias etapas da produção de mercadorias: fabricação e/ou processamento, transporte, comercialização e consumo. Pensando em específico no espaço portuário que envolve a cidade de Cananéia, lá podem ser pesquisados                                                             

4

Como exemplo pode-se citar aqueles estudos de Arqueologia ferroviária (notadamente os de contrato, muitos ainda inéditos) que tratam os caminhos de ferro como um meio de produção capitalista (e não como mero patrimônio da era industrial): a pesquisa do bem, na sua totalidade funcional e simbólica, envolveria a análise de edificações, estruturas e equipamentos dispersos por dezenas ou centenas de quilômetros.

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naufrágios, estruturas portuárias, estaleiros, engenhos de pilar arroz, fábricas de processamento de pescado, casas comerciais e lixeiras domésticas/comunitárias, todos eles coisas que representam o modo de produção capitalista tal como ele vem se desenvolvendo naquela região e que, em última instância, é a forma de poder que substitui a força (física, bélica) das armas como o mantenedor primaz (não o único) do controle sobre o território e a população, a partir de meados do século XIX5. Com relação ao primeiro problema, a paradoxal monumentalização do antigo e seu uso utilitário atual como situações de turvação da pesquisa arqueológica, foi preciso estudar as etapas de construção das edificações, estruturas e equipamentos, monumentalizados ou ainda em uso, para entender o processo de formação das paisagens marítimas ao longo do oitocentos e do novecentos. E, além de focar nas estruturas portuárias propriamente ditas, aquelas situadas à beira ou dentro d’água, a pesquisa procurou abordar também outros bens que pudessem complementar ou oferecer o contraponto para a contextualização dessas paisagens. Com isso, tentou-se tanto abarcar o maior número de coisas possível daquele espaço portuário quanto buscar informações em fontes aparentemente secundárias, visando à percepção dos discursos, das aparências e das realidades. As principais edificações, estruturas e equipamentos abordados com esse intuito na pesquisa de doutorado foram o sítio de naufrágio do vapor Conde d’Áquila (1858), os prédios da Câmara Municipal, as indústrias (numa ampla acepção da palavra) e as casas comerciais (independente do produto que comercializavam). Para este artigo, resolvi abordar em detalhes as casas comerciais e sua relação com a evolução portuária de Cananéia, pois: 1) uma das características do modo de produção capitalista no vale do Ribeira é a ênfase na atividade comercial6, servindo as localidades da região tanto como entrepostos da produção de arroz (principal produto da região no período em foco) como distribuidores de bens industrializados; 2) as casas comerciais são edificações do espaço portuário de Cananéia, mas                                                              5

A ideia principal, assegurar o poder sem o uso (inicial) de edificações, estruturas e equipamentos que ameacem fisicamente as pessoas (com a morte, em geral), mas sim de bens que simbolizem a coerção moral imposta pelo liberalismo republicano, tem inspiração nas interpretações propostas por Mark Leone e Silas Hurry (1998) sobre, dentre outros sítios, o planejamento urbano das cidades de Saint Mary City (arruinada), Annapolis e Baltimore, ao redor da baía de Chesapeake, no estado de Maryland (EUA). 6 Em realidade, a importância do comércio seria mais abrangente: a crise do sistema colonial e a constituição da “economia mercantil-escravista cafeeira nacional” reforçaram o caráter mercantil da economia do Estado Nacional brasileiro que surgira no oitocentos (MELLO, 2009:45-49). Contudo, o comércio, assim como a produção industrial tem, de certa forma, um papel diminuído na dinâmica do processo histórico, pois ele é visto como uma atividade inteiramente dependente da grande lavoura. No caso específico de São Paulo, há sensíveis lacunas de estudos históricos sobre a importância dos diferentes grupos de interesse na economia paulista do oitocentos e início do novecentos. As elites acabam sendo tratadas como uma grande camada homogênea, mero reflexo da produção da grande propriedade rural (PERISSINOTTO, 1997). Na Arqueologia, não se deixa de seguir essa tendência, penso eu.

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não estão inequivocamente associadas ao mar – estão em terra firme, às vezes, algo distante do meio líquido – o que leva ao motivo 3) demonstrar que o território do capital é descontínuo e que, portanto, não só os naufrágios (submersos) ou as estruturas portuárias (interface terra/água) podem explicar as atividades portuárias; por fim, 4) o estudo das casas comerciais, a partir da Arqueologia, exige a adoção de perspectivas teóricas e metodológicas que não necessariamente envolvem a escavação, mas que demandam o uso de informações provenientes de edificações, estruturas e equipamentos ainda em uso e que não são comumente associadas ao domínio da Arqueologia. Os portos da cidade de Cananéia Será analisada, em exclusivo, uma parcela do imenso espaço portuário7 de Cananéia e da zona estuarino-lagunar que a envolve, a saber, aquela que está contígua à zona urbana mais antiga, onde, portanto, ainda hoje ocorre a maior parte das atividades comerciais do município/região. Retome-se, pois, o caso do porto Bacharel. A designação original, porto ‘do’ Bacharel, foi legada à estrutura em 1931 (ALMEIDA, 1964:502). Ele é tido como “o” porto ancestral de Cananéia, mas a realidade é mais complexa: embora esse porto esteja no centro da cidade e seja utilizado há muito tempo, isso de acordo com os vestígios nele localizados em 20078, sua forma atual se originou a partir da união de outros dois cais de alvenaria de pedra: o do Mercado, construído em data incerta (séculos XVIII-XIX), e o Municipal ou Grande, concluído em 1889 (ALMEIDA, 1961:480). O primeiro definiu o limite sul do novo porto; o segundo, os limites norte e leste, o que formou o polígono regular ainda hoje visível, embora parcialmente encamisado por concreto armado. E, onde atualmente estão os flutuantes da balsa, foram construídas, logo após a conclusão do cais de pedra, no fim da década de 1920 (1927-1929), duas pontes de madeira para facilitar o embarque e desembarque em navios maiores. Foi também nessa década que se criou uma rampa pavimentada ao sul do porto, a qual passou a formar um sistema de circulação em conjunto com a rampa norte, mais antiga e parte da estrutura do cais Municipal.                                                             

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Entende-se espaço portuário como sendo um local de contato entre a embarcação e a terra, não importando se há estruturas específicas para a aportagem, ou se a embarcação será varada, ou se haverá transbordo (BLOT, 2003:32-33). Ou seja, o conceito se refere a uma sucessão de paisagens e não a um equipamento específico (um cais de pedra, por exemplo). 8 Em prospecção realizada no aterro do porto, em 2007, foi encontrada cerâmica com decoração corrugada, possivelmente indígena, além de faiança ibérica. Também foi identificada uma rampa de embarque e desembarque, pavimentada com uma argamassa de terra e conchas (BAVA-de-CAMARGO, 2009:111-122).

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O porto do Bacharel representa, portanto, a etapa final de concentração do fluxo portuário. Depois disso, o movimento de navios foi diminuindo de forma drástica até 1942, quando se tem notícia da entrada do último vapor de cabotagem no porto de Cananéia (ALMEIDA, 1961:476). Após essa data, o transporte de e para Cananéia ficou condicionado ao modal rodoviário e hidroferroviário, modificando a estrutura de circulação de mercadorias e, como consequência, o controle sobre ela. A etapa inicial de concentração das atividades portuárias se deu com a construção do cais Municipal, mas, naquela época, 1885-1889 (BAVA-de-CAMARGO, 2009:86-87), havia outros portos, no núcleo urbano, com importante papel para a circulação de pessoas e mercadorias9. A construção do cais Municipal ocorreu diante da necessidade de melhorar as condições de atracação dos navios a vapor presentes no espaço portuário de Cananéia desde a década de 1850, como nos revela o sítio arqueológico de naufrágio do Conde d’Áquila, navio afundado em 1858, a poucos metros da costa (RAMBELLI, 2003). Antes do cais Municipal, os navios a vapor, assim como diversas outras embarcações, eram fundeados próximos à praia e ao barranco onde hoje está o cais de saneamento e passeio público da Avenida Beira Mar (AVÉ-LALLEMANT, 1980:310). Não havia um local específico para embarque e, portanto, não havia concentração das atividades portuárias. E antes do advento da navegação a vapor, a principal área de fundeio ficava à sombra do morro São João, em frente à foz do rio Olaria. Abrigada dos ventos do quadrante sul, tendo lenha e água em quantidade e com boa profundidade para embarcações de menor porte, tais como lanchas e sumacas – aquelas que efetivamente tocavam o porto de Cananéia antes da segunda metade do século XIX – a área ficava próxima ao estaleiro do capitão-mor Joaquim José da Costa, no local onde hoje está instalada a base do Instituto Oceanográfico da USP, submetida à prospecção em 2007 (BAVA-de-CAMARGO, 2009; 2008). Como não havia um atracadouro específico, nem uma embarcação de grande capacidade que polarizasse todo o transporte de mercadorias, o fluxo portuário era pulverizado pela costa do núcleo urbano, nas margens do rio Olaria e do riacho Ipiranga10 que cortava a povoação no sentido norte sul.                                                             

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Como o porto do Rosário, bastante profundo e estabelecido no término/ início do caminho que levava ao outro lado da ilha, ao Itapitangui, à estação telegráfica e à colônia Cananéia (BAVA-de-CAMARGO, 2009:90). 10 Segundo A. P. de Almeida, no riacho Ipiranga, também conhecido como a “piranga”, teria se situado o “porto dos Bugres”, nome popular dado a um ancestral embarcadouro (1964:443-444). O mesmo autor conta que, às margens do riacho haviam sido encontrados cabos náuticos que seriam bastante antigos.

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Enfim, reportando novamente à tese, uma das conclusões às quais se chegou foi de que esse papel de primazia do porto do Bacharel representa o final de um processo econômico, hoje cristalizado como um destino manifesto, sacralizado e naturalizado em razão da exaltação à figura do Bacharel quinhentista. O que ocorreu foi o deslocamento do centro das atividades portuárias, a partir de meados do século XIX, e até meados do século XX, das faldas do morro São João para o porto do Bacharel, em função das mudanças impostas pela cabotagem a vapor e da necessidade de controle daquela época. Tanto é assim que, hoje, o porto Bacharel não é mais o centro das atividades náuticas da região. Continua sendo importante, pois a balsa para Ilha Comprida funciona nele. Mas, a pesca comercial, a qual tem necessidades portuárias específicas e que é atualmente a maior indústria de Cananéia, saiu do antigo cais do Mercado e migrou para a foz do rio Olaria, à sombra do morro São João, tal como faziam as antigas embarcações a vela e as canoas, tornando aquela área um polo de concentração de riqueza e de controle sobre a produção, tendo diversas empresas e a Ceagesp se instalado lá. Já o pólo de concentração das atividades de turismo náutico, outro componente da produção contemporânea de Cananéia, situa-se atualmente no píer da Prefeitura, em lado diametralmente oposto às atividades de pesca, em frente à edilidade e mais próximo das pousadas (para mais referências ver BAVA-de-CAMARGO, 2009: 63-79). O que se vê, então, é uma relação de determinação entre as funções portuárias e o core da atividade que necessita daquela edificação, estrutura ou equipamento, razão esta que ajuda a estruturar a continuidade deste trabalho. A dinâmica das casas comerciais a partir da evolução de suas fachadas

A premissa para esta parte do estudo é bastante simples: se foi observada uma gradual concentração das atividades portuárias na estrutura do porto do Bacharel, haveria a possibilidade de enxergar esse processo de concentração em outras edificações, estruturas e bens do espaço marítimo. Para identificar isso, realizou-se um levantamento das edificações, entes e feições urbanas atuais, o qual foi correlacionado a plantas, mapas e fotografias antigas 11 , permitindo estabelecer uma escala cronológica e espacial para a evolução das fachadas. Essas informações sobre Cananéia foram então inseridas em uma carta analítica, a qual permitiu o entendimento da evolução da cidade.                                                              11

Fotos datadas entre 1906 e 1936, do acervo do projeto “Museu de Rua”, desenvolvido nos anos 80 pelo Condephaat e hoje sob os cuidados do escritório de Julio Abe Wakahara.

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A metodologia para a realização desse tipo de levantamento em estudos arqueológicos tem origem na Arqueologia Extensiva. Está-se, assim, trabalhando com uma interface entre a Arquitetura, História, Geografia e Arqueologia, na qual todas as informações são incorporadas a uma mesma base de dados, sem privilégio do registro arqueológico (ruínas, jazimentos) sobre as demais fontes de informação (JIMÉNEZ PUERTAS, 2006). E como identificar quais edificações teriam sido construídas ou reformadas para serem casas comerciais? Baseando-se num padrão estabelecido pelo Condephaat 12 quando iniciou suas atividades na região, c. 1970 (ROCHA FILHO, 2005). De maneira geral, edificações cujas envasaduras das fachadas eram todas portas teriam servido como casas comerciais, de serviços ou industriais (pois essas atividades ocasionavam grande circulação de pessoas e de mercadorias volumosas). Este seria o caso das edificações térreas. As edificações com mais de um piso, cujo primeiro andar só apresentasse portas, seriam consideradas de uso misto, com morada em cima e comércio embaixo. Todavia, estabeleceuse uma variação nesse padrão: também foram consideradas de uso misto edificações térreas que apresentassem mais de uma porta nas fachadas, pois assim os pequenos negócios também seriam registrados. Para excluir as fachadas do comércio contemporâneo da base de dados, só foram registradas as edificações construídas com alvenaria de pedra, ação que permitiu a avaliação do período desejado (c.1880-1930). Isso foi possível porque edificações inteiramente de alvenaria de tijolo eram pouco comuns até a década de 1920, quando se instalou na cidade uma olaria para a produção de tijolos em grande escala (ALMEIDA, 1965:470), provavelmente em razão da demanda por tijolos gerada pela serraria e fábrica de barris. O resultado dessa análise pode ser visto na Prancha 1 (em anexo), na qual estão evidenciadas as edificações que tinham funções comerciais e industriais na década de 1920 e aquelas que haviam deixado de ser comerciais até aquela década 13 . Assim, foi possível perceber alguns locais de concentração das edificações das estruturas produtivas, totalizando 9 áreas, em verde. A Área 1 é a principal. A ela voltar-se-á mais adiante. Note-se, em primeiro lugar, aquelas que não são o foco central desta análise: as Áreas 3, 4 e 5 não estariam, em princípio,                                                              12

Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico, órgão da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo. 13 A percepção dessa mudança foi possível graças à comparação entre as fotos do acervo do Museu de Rua. Algumas delas foram tiradas de ângulos muito semelhantes, por vários anos seguidos. Assim, comparando as sequências de fotos foi possível perceber que algumas das edificações que tinham mais de uma porta em suas fachadas, antes dos anos 20 ou no começo dos anos 20, possuíam apenas uma porta no final daquela década ou começo da seguinte. 

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diretamente relacionadas ao meio marítimo, mas sim à circulação terrestre e ao adensamento urbano. A Área 3 estaria associada não a um porto, mas a uma área de convergência de caminhos terrestres: o caminho mais antigo, que seguia do porto do Rosário, passava pelo cemitério e chegava do outro lado da ilha; e a estrada, caminho novo estabelecido ao longo da linha telegráfica, eixo da atual Avenida Independência. Essa concentração de pequenas casas comerciais, armazéns e botequins, que talvez não estivesse diretamente relacionada à comercialização da produção do arroz, ficavam em encruzilhada “seca”, próxima de bairros tais como o Acaraú e Rocio. Há algumas edificações dispersas pela altura da Rua Tristão Lobo com a Rua Pedro Correa, as quais foram aglutinadas na Área 4. Esse fato não pode ser explicado pela proximidade da área com os portos marítimos, mas pela densidade de edificações da rua, afinal, seria bastante cômodo para os moradores disporem de comércio nas proximidades de suas casas e não só em áreas relativamente distantes. Já a Área 5 poderia eventualmente estar associada ao uso do riacho Ipiranga como via de deslocamento das mercadorias em canoas, na maré alta, mas isso é muito difícil de definir sem escavações específicas ou levantamentos minuciosos em arquivos. Com relação às áreas fabris isoladas do núcleo urbano principal – Áreas 2, 8 e 9 – todas estavam relacionadas às atividades de processamento de madeira. As Áreas 8 e 9 eram estaleiros: a 8 representa dois estaleiros de embarcações pesqueiras e de carga e a 9, no sopé do morro São João, era referente ao estaleiro desativado do capitão mor Joaquim José da Costa. A Área 2 foi definida no local da serraria e fábrica de barris, empreitada iniciada nos anos 1920 (1923), com capital de investidores de fora de Cananéia, píer de embarque privativo com grua manual para carga e descarga e produção destinada a outras praças, inclusive a Argentina (barris para armazenamento de vinho, segundo SANTOS, 1952:71). Retornando à Área 1, é interessante notar que, mesmo nessa região, no coração do núcleo urbano original, muitas das casas com fachadas comerciais já não mais cumpriam essas funções na década de 1920, tais como as que estão na extremidade norte do flanco leste da Rua Bandeirante, além daquelas que estão na esquina da Rua Pero Lopes (Área 1C). Parece que, na verdade, o comércio, na Área 1, estava com uma dinâmica reduzida, muito embora as obras portuárias e o fluxo de embarcações demonstrassem seguir na direção contrária.

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O que parece ter ocorrido nessa época é a redução da quantidade de casas comerciais e a concentração dos negócios entre os dois engenhos a vapor da cidade14, as duas edificações que estão pintadas em vermelho e roxo: uma na Rua Bandeirante, outra na Avenida Beira Mar. Esses empreendimentos fabris estavam ambos próximos do cais Municipal, com nítidas vantagens para o engenho do norte, antes de 1929: enquanto esse estava a 60 m do cais, o do sul estava a 90 m. Entretanto, com a construção da rampa sul do porto do Bacharel e a união entre o cais do Mercado e o Municipal, entre 1927-1929, ambos os engenhos ficaram equidistantes do porto principal, uma relação espacial que não parece nada casual. Há que se ter em mente que, o transporte entre os engenhos e o cais era feito por carregadores descalços, os quais recebiam por saca conduzida (SANTOS, 1952). Assim, antes do porto do Bacharel, o engenho do sul teria que dispor de 33% mais carregadores para conduzir ao cais a mesma quantidade de carga que seria transportada, no mesmo espaço de tempo, a partir do engenho do norte. Outro fator que pode ter contribuído para o fechamento de casas comerciais nos anos 1920, a despeito de outros indicadores apontarem para uma maior dinâmica na economia, foi o fato de que esses engenhos urbanos de descascar arroz eram movidos a vapor; portanto, tinham grande capacidade de processamento. Anteriormente à existência dos engenhos a vapor no núcleo urbano, o arroz produzido tanto pelos grandes quanto pelos pequenos produtores era beneficiado em engenhos distantes da vila, movidos à água. Cada engenheiro – designação dada ao dono do engenho – poderia eventualmente escolher a representação comercial na sede do município que mais lucro lhe propiciasse, o que garantiria a existência de certo número de casas comerciais. Não sendo o beneficiamento do arroz concentrado, não seria provável a existência de uma comercialização também concentrada e haveria mais espaço para a aferição de lucro com a comercialização do produto. Com o advento dos engenhos a vapor no distrito sede, a produção do arroz passa a ser beneficiada muito próxima ao local do embarque, dispensando o serviço dos engenheiros rurais, que também atuavam como concentradores da produção dos locais mais distantes (PETRONE, 1966). Embora as relações entre produtores e beneficiadores de arroz ainda seja pouco compreendida, é certo que a eliminação de intermediários garantiria maiores lucros para as duas pontas do processo – lavradores e agentes comerciais do centro urbano.                                                             

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Não é possível precisar quando surgiram os primeiros engenhos movidos a vapor em Cananéia. Segundo o que se depreende de M. H. Santos (1952), isso teria ocorrido entre os últimos anos do século XIX e os primeiros do século XX.

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Deve-se notar, entretanto, que com a eliminação de alguns dos intermediários na cadeia produtiva, haveria uma tendência de contato direto entre lavradores e os engenheiros do centro urbano, praticamente eliminando as possibilidades de negócios para pequenos comerciantes. Reflexo dessa concentração em curso ou uma das causas dela é a retificação e consolidação do talude da fachada marítima de Cananéia, ocorrida em concomitância com a construção do porto do Bacharel, na década de 1920. Nessa época, o talude existente na atual Avenida Beira Mar, antiga Rua Dr. Alcoforado, começou a ser revestido com uma muralha de pedra, dando origem ao cais de saneamento ainda hoje visível na orla. Essa muralha dificultou ou praticamente eliminou as possibilidades de carga e descarga de mercadorias na vasta fachada marítima, condicionando essas operações, a partir das canoas, à varação das mesmas nas proximidades do porto do Bacharel ou a uma viela diante do engenho do sul. Não é possível determinar se essas canoas de carga conseguiriam adentrar pela foz do rio Olaria, a esta época parcialmente obstruída pelos pilares da ponte antiga. Assim, o saneamento da orla de Cananéia levou a uma concentração também das remessas de arroz a partir dos produtores. Até o final da década de 1920, a chegada do produto ao núcleo urbano era dispersa, pois cada agricultor trazia a sua produção ou a de um coletivo de produtores (PETRONE, 1966) em grandes e robustas canoas de carga, as quais encostavam nos barrancos, praias ou adentravam pelos cursos d’água; só a exportação da mercadoria era concentrada nos vapores marítimos e, em menor escala, nos fluviais. Como eram os próprios agricultores que deveriam levar seu produto até os negócios, a proximidade entre o porto e o comércio era bastante necessária. Assim, o comerciante precisava estar o mais próximo possível da área de descarga das canoas. Como todo o talude da Beira Mar era propício para a varação de canoas, dependendo da maré, não havia motivo para a concentração de casas de comércio. Já com a construção do cais de saneamento, essa relação se tornou mais complicada, pois o cais bloqueava o acesso dos agricultores/canoeiros às ruas, podendo ser essa uma das explicações do porque das edificações da Subárea 1C terem deixado de ter funções comerciais, nos anos 20, uma vez que ficaram com o acesso muito mais difícil ao mar. Finalmente, há as indicações de edificações que foram estruturas produtivas, mas que, na década de 1920, não podiam ser consideradas ativas (Áreas 6 e 7). Essas áreas se localizavam próximas às extremidades da Rua Capitão Ernesto Martins Simões, na margem norte do rio Olaria, a leste e a oeste do riacho Ipiranga. A implantação dessas casas comerciais pode explicar-se pela utilização do riacho Ipiranga e do rio Olaria como vias de comunicação com o mar. No caso da Área 7, ela 133   

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também teria comunicação direta com o mar, através da baixada que hoje é ocupada pela Ceagesp. Nessa última área há um controle visual bastante eficaz do fluxo portuário proveniente do rio Olaria e das embarcações que fundeiam à sombra do morro São João. Na Área 7, a câmara municipal teria ocupado a maior das casas antes de 1860 (ALMEIDA, 1965:465); estava ela localizada diante daquele que havia sido o principal fundeadouro de embarcações antes do início da navegação a vapor. Assim, é de se supor que a câmara só tenha mudado para o local onde ela hoje se encontra em razão de uma drástica mudança no padrão de aportagens. Esta, só aconteceu com o predomínio da cabotagem a vapor. Além do deslocamento das atividades portuárias para o talude da atual Avenida Beira Mar e a posterior mudança delas para o cais Municipal, outro fator que pode explicar a desaparição dessas zonas comerciais é o assoreamento dos cursos d’água doce/salobra, bem como da fachada marítima contígua à desembocadura do rio Olaria. Embora faltem dados geofísicos/oceanográficos, esse acúmulo de sedimentos, principalmente na Área 7, pode ter sido causado por uma das fases construtivas da ponte sobre o rio Olaria e pela construção do próprio cais Municipal, ambas obras que teriam afetado a dinâmica sedimentar marítima na costa contígua à cidade. Considerações finais

Essa discussão está longe de ser encerrada, pois a centelha que desencadeou a concentração dos meios de produção e, consequentemente, do controle sobre esses meios de produção, na segunda metade do século XIX, mantém-se viva na nossa sociedade. Seria tema bastante profícuo o entendimento das transformações da base da economia de Cananéia e do vale do Ribeira, a partir da segunda metade do século XX, pois, a despeito do discurso generalizado da pobreza da região, a Cananéia do arroz se transformou na da pesca e do turismo... e há gente ganhando dinheiro com isso; o grande problema continua sendo a distribuição da riqueza. Essas atividades, hoje levadas a cabo em grande escala, necessitaram de capitais externos e do capital local acumulado com a rizicultura, tendo-se valido, também, da estrutura portuária preexistente como um dos meios de produção. Assim, quando se diz que a cabotagem a vapor encerrou na década de 1940, isso não significa que as paisagens desse espaço portuário tenham entrado em decadência e se cristalizado como monumentos históricos: elas foram, são e serão reapropriadas e modificadas pelo transporte hidroferroviário (também não mais existente), pelas atividades pesqueiras, pelo discurso 134   

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historicista e pelo turismo náutico. E, embora a fruição dessas paisagens flúvio-marítimas tenha sido universalizada pela ideia de democratização e pluralização da sociedade contemporânea, elas continuam a ser paisagens de concentração de capital, controle e exclusão social. Talvez potencializadas, até: basta uma volta pela orla da cidade, desde o morro São João até o extremo norte da Avenida Beira Mar, com uma pergunta em mente – “em quais pontos da costa eu poderia embarcar ou desembarcar livremente?” – para se perceber que o acesso real ao mar é muito menor do que o imaginado. Referências bibliográficas ALMEIDA, Antonio P. Memória Histórica de Cananéia (X). Revista de História, São Paulo (FFLC-USP), vol. 31, nº. XX, p. 453-477, 1965. ____. Memória Histórica de Cananéia (VII). Revista de História, São Paulo (FFLCUSP), vol. 28, nº. 58, p.483-504, 1964. ____. Memória Histórica de Cananéia (V). Revista de História, São Paulo (FFLC-USP), vol. 25, nº. 51, p.192-217, 1962. ____. Memória Histórica de Cananéia (II). Revista de História, São Paulo (FFLC-USP), vol. 22, nº. 46, p.191-237, 1961. ____. Memória Histórica de Cananéia (II). Revista de História, São Paulo (FFLC-USP), vol. 22, nº. 45, p.475-520, 1961. ____. História da navegação no litoral paulista. Revista do Arquivo Municipal, São Paulo, ano XIX, vol. CLIII, novembro, 1952. AVÉ-LALLEMANT, Robert. Viagens pelas províncias de Santa Catarina, Paraná e São Paulo (1858). B. Horizonte/ S. Paulo: Itatiaia/ Edusp, 1980. BAVA-de-CAMARGO, Paulo F. Arqueologia de uma cidade portuária: Cananéia, séculos XIX-XX. São Paulo, 2009. Tese (Doutorado em Arqueologia) – Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, 2009. _______. Prospecção arqueológica na base costeira do Instituto Oceanográfico da USP em Cananéia, estado de São Paulo. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 18, 2008. P.323-330. _______. Arqueologia das fortificações oitocentistas da planície costeira Cananéia/ Iguape, SP. São Paulo, 2002. Dissertação (Mestrado em Arqueologia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, 2002.

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PROJETO ARQUEOLOGIA E EDUCAÇÃO: UM OLHAR PARA O PASSADO DA REGIÃO DE POÇOS DE CALDAS Archaeology and Education Project: A look at the past of Poços de Caldas area Solange Nunes de Oliveira Schiavetto1 Ana Paula Gilaverte2 Diego dos Santos de Andrade3

RESUMO O artigo tem como intuito apresentar as principais ações de Projeto de Pesquisa sobre Arqueologia e Educação Patrimonial realizado na região sudoeste de Minas Gerais. O projeto tem como finalidade realizar pesquisas arqueológicas em Poços de Caldas e adjacências. Busca-se, a partir de metodologias advindas dos pensamentos arqueológico e antropológico, discutir as possibilidades de apreender a formação multicultural das populações humanas que hoje vivem na área foco da pesquisa. A produção material humana de tempos pretéritos, da História à Pré-História, é foco de nosso interesse, na medida em que possibilita aos investigadores produzir discursos que questionem a visão de um passado monocultural e de uma evolução unilinear da sociedade. Palavras-chave: Arqueologia Pública, Educação Patrimonial, Multiculturalismo ABSTRACT The article has as an intention to show the major actions of the Research Project about Archaeology and Patrimonial Education accomplished in Southern Minas Gerais. The project has as a purpose to achieve archaeological researches in Poços de Caldas and adjacencies. It seeks, from the methodology that comes from the archeological and anthropological thoughts, to discuss the possibilities of learning the multicultural formation of human populations that currently live in the research focused area. The human material production of ancient times, from History to Prehistory, is our main interest, as it makes it possible for the investigators to produce speeches that question the sight of a one-culture past and of a one-line evolution of society. Keywords: Public archaeology, patrimonial education, multiculturalism                                                              1

Núcleo de Estudos e Pesquisas em Memória, Cultura e Educação/FAE/UEMG – Pós-doutoranda e Pesquisadora Colaboradora do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas/UNICAMP – Bolsista do CNPq. Email: [email protected] 2 Professora de História da rede pública de ensino de Poços de Caldas– Ensino Médio – mestranda em Educação UFSCAR – E-mail: [email protected] 3 Professor de História da rede Pública de Ensino de Poços de Caldas – Ensino Fundamental. E-mail: [email protected]  

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RESUMEN Este artículo tiene como objetivo presentar las principales acciones del Proyecto de Investigación en Arqueología y Patrimonio de Educación celebrada en la región sur de Minas Gerais. El objetivo del proyecto es realizar una investigación arqueológica en Poços de Caldas y alrededores. Apunta, metodologías que surgen de los pensamientos arqueológicos y antropológicos, discutir las posibilidades de comprensión de la formación multicultural de las poblaciones humanas que viven ahora en el foco de la investigación. La producción de materiales de épocas pasadas humanos, desde la Prehistoria a la Historia, es el foco de nuestro interés, ya que permite a los investigadores producir discursos que cuestionan la visión monocultural de un pasado y una evolución unilineal de la sociedad. Palabras clave: Arqueología Pública, Educación Patrimonial, Multiculturalismo Introdução

Desde 2008 a Universidade do Estado de Minas Gerais/UEMG/Poços de Caldas tem desenvolvido discussões sobre as culturas do passado da região de Poços de Caldas. Tais atividades têm sido realizadas no contexto da sua Faculdade de Educação, Núcleo de Estudos e Pesquisas em Memória, Cultura e Educação, linha de pesquisa Memória, Cultura e Prática Docente. Gestado junto à criação do referido Núcleo de Pesquisa, o projeto “Arqueologia e Educação: um olhar para o passado da região de Poços de Caldas/MG” passou, desde o seu nascimento, por inúmeras modificações. Em linhas gerais, tem como intuito realizar pesquisas arqueológicas na região de Poços de Caldas. Os pesquisadores engajados nas questões propostas pelo projeto têm realizado discussões com alunos e colaboradores de outras instituições sobre a história oficial da região de Poços de Caldas (FERREIRA, 1996; LEMOS, 1904; MEGALE, 1990; MOURÃO, 1951; PRADO, 2000). É primordial compreender que em tal história não há a preocupação em evidenciar passados múltiplos. Pautada pelos escritos de memorialistas que, na maioria das vezes, evidenciam um passado unilateral, este discurso histórico tradicional não abre espaço para compreender as identidades indígenas e africanas, para ficarmos em apenas dois exemplos, como protagonistas no processo de formação cultural da área foco da pesquisa. As discussões dos primeiros anos da pesquisa renderam ao grupo a percepção de que é preciso buscar outras vias para abordar o passado. Ouvir as vozes das fontes orais e materiais tornou-se um caminho a ser seguido (CAVALCANTE, 2011). Para a realização dos objetivos propostos pelo projeto, procuramos, primeiramente, compreender o histórico da Arqueologia e sua inserção nas questões sociais. Os pesquisadores 139   

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e alunos inseridos nas discussões do projeto são levados a ponderar sobre o quanto a Arqueologia pode contribuir para abordar questões relativas à diversidade cultural (FUNARI, 1995b e 2001; FUNARI & SCHIAVETTO, 2006; SCHIAVETTO, 2005 e 2007). A partir do histórico do pensamento arqueológico, podemos compreender como novas abordagens foram agregadas ao fazer arqueológico e de qual maneira os seus profissionais começaram a perceber que outros tipos de fontes poderiam ser agregados na construção dos passados. Ainda mais importante, podemos notar que o arqueólogo passou a ter a percepção de que o passado não encerra uma verdade escondida a ser desvendada por métodos rígidos de análise. A ideia de que os pesquisadores extraem do passado apenas discursos passou a fazer sentido para a maioria dos arqueólogos no Brasil e no mundo (FUNARI, 1994 e 1995a; OLIVEIRA, 2005). Desta forma, podemos argumentar que as metodologias utilizadas em nossas pesquisas no presente projeto agregam elementos da história (História Oral) e da Antropologia (discussões teóricas sobre identidade, etnografia/trabalho de campo), buscando produzir um fazer arqueológico pautado em múltiplas visões. Com o advento de novas abordagens em Arqueologia o arqueólogo passou a perceber a importância de repensar a sua posição como cientista que produz discursos sobre as identidades dos agrupamentos humanos. Esta ciência também deu uma guinada em suas concepções sobre o papel social do arqueólogo, o que fez brotar, aos poucos, a consciência de que o cientista que lida com a cultura material do passado deve voltar os seus olhos ao presente. Desta forma, uma Arqueologia caracterizada como “Pública” tem como intuito, na atualidade, suscitar a reflexão do papel social do arqueólogo, sobretudo deste inserido em processos educativos (ALMEIDA, 2005; CURY, 2006; FUNARI & PELEGRINI, 2006). É nesta vertente da Arqueologia Pública que nosso trabalho se insere. Neste artigo descreveremos os trabalhos realizados em 2012, com o auxílio da Lei Municipal de Incentivo à Cultura de Poços de Caldas e o incentivo da Alcoa Alumínio S.A. O projeto conta, atualmente, com dois pesquisadores colaboradores da Fundação Araporã, dois professores de História da rede pública de ensino de Poços de Caldas, uma aluna bolsista e uma aluna voluntária. Em 2012, centramos atenção nas terras pertencentes aos municípios de Poços de Caldas, Botelhos e Caldas. Tais municípios são importantes para as atividades do projeto por revelarem, em sua história oficial, mesmo que de forma distorcida ou insuficiente, a presença de povos culturalmente diversificados na região: africanos e indígenas. No primeiro momento da pesquisa, centramos atenção em Caldas, por termos coletado informações orais sugerindo a presença de sítios arqueológicos na região. 140   

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O município de Caldas está localizado na Região Sul de Minas Gerais, é um dos mais antigos entre os pertencentes ao Planalto do Alto Rio Pardo, sendo Poços de Caldas a maior cidade desta micro região. Caldas tornou-se freguesia em 1813, com o nome de Rio Verde das Caldas. Poços de Caldas era considerada parte de Caldas até o final do século XIX, recebia a denominação de Caldas, sendo chamada de Campos das Caldas em fins do século XVIII (PIMENTA, 1998). As publicações caldenses evidenciam que a região da Pedra Branca, onde se localiza o município, passou a ser ocupada pela frente colonial com o declínio da atividade mineradora em Vila Rica, São João Del Rey e arredores, devido a busca de terras para a atividade agropecuária. (MEGALE, 1990; PIMENTA, 1998) A fazenda dos Bugres foi comprada por volta de 1780, iniciando-se pouco depois o povoamento que daria origem ao arraial. O nome da fazenda é uma referência a potes de barro e outros objetos encontrados na localidade que indicavam que aquela região havia sido habitada por indígenas em períodos anteriores. Relatos afirmavam que os objetos deveriam ter sido dos indígenas “tapuias”. Os artefatos estavam localizados próximo ao ribeirão que ganhou a mesma nomenclatura: “Ribeirão dos Bugres”. Na tradição oral, o município de Caldas era ocupado por “bugres e tapuias” no período da chegada dos colonizadores. Algumas pessoas afirmam ainda a existência em Caldas de indivíduos que descendiam dos grupos nativos. Todavia, os livros sobre a história da cidade não corroboram a oralidade dos caldenses mais velhos, parcela considerável de moradores da zona rural. Os escritos sobre a história do município afirmam a existência do indígena somente até a ocupação e o início do povoamento, tendo estes sido expulsos logo no contato com os bandeirantes (MEGALE, 1990, PIMENTA, 1998). Nestas obras, não é trabalhada a permanência do nativo no período de formação do arraial, nem mesmo a possibilidade desta continuidade e o respectivo cruzamento destes com brancos e negros. O livro mais difundido sobre a história do município, de autoria de Reinaldo Pimenta, cita os “índios tapuias” como primeiros habitantes da região. Segundo Pimenta, havia um acampamento de uma pobre tribo de bugres nas proximidades de onde seria construído o arraial. Prossegue afirmando que “a conquista da região aos seus primitivos donos, o patrício caiapó, sucedeu ao recuo das populações indígenas, tangidas rumo a oeste pela 'onda civilizatória'” (PIMENTA, 1998:12). O indígena não é citado depois da segunda página dos livros da história do 141   

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município, fato também recorrente nas obras sobre a história de outras cidades, analisadas por arqueólogos e historiadores quando em busca de informações sobre o elemento indígena no passado das mesmas, ainda que a tradição oral e o material arqueológico apontem o contrário (FUNARI, 2001; CAVALCANTE, 2011; SCHIAVETTO & SOUZA, 2008). No tocante à população negra, Reinaldo Pimenta também não se ateve a importância desta na construção de Caldas, seja no aspecto político, cultural ou econômico. Sua obra tem foco nos “desbravadores”, no colonizador, no fazendeiro. Se a população indígena desaparece na segunda página de seu livro, para a população negra o autor foi bem mais econômico. Embora não apareçam nos livros, os negros enriqueceram não apenas a economia local, mas, sobretudo, a cultura. Não apenas em citações pontuais e evidentes, como nas festas, sendo exemplo a congada (que inclusive conta com a entrada dos Caiapós), na religiosidade, na cultura material ou na linguagem, de fato, em todo aspecto social e cultural, seria impossível abordar Caldas e Poços de Caldas sem destacar a importância da população negra. No que tange aos indígenas, a possível escassez de fontes poderia ser uma explicação para sua ausência na história local. É evidente a primazia das fontes escritas, muitas vezes adotadas com exclusividade por biógrafos, historiadores e jornalistas. Mesmo sabendo-se da importância de outras fontes, elas acabam não sendo utilizadas de modo satisfatório. A história de diversos municípios é contada apenas pelas fontes documentais. Poços de Caldas e região não fogem a esta regra. Assim, sendo esta a “história dos vencedores”, não há registros escritos referentes à população indígena ou negra no município de Caldas. Pode-se considerar outra questão: este ocultamento aconteceria para se evitar trazer ao presente discussões relativas a confrontos, tomada de terras e/ou violência? Questão esta que pode ser aprofundada, porém sem respostas até o momento. Neste sentido, está enunciado um silêncio que carece de pesquisas e acreditamos que as investigações arqueológicas podem trazer elementos importantes na constituição históricocultural de Poços de Caldas e adjacências. Ação educativa: atividade inaugural do projeto

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O desenvolvimento do projeto possibilitou a realização de Ações Educativas em escolas públicas e na universidade (UEMG/Poços de Caldas). A primeira parte das Ações Educativas foi realizada em maio de 2012, nas dependências da Universidade do Estado de Minas Gerais, Autarquia Municipal de Ensino de Poços de Caldas. O evento inaugurou, para as atividades de 2012, os trabalhos do projeto de pesquisa “Arqueologia e Educação”. Para o referido evento contamos com a presença de dois pesquisadores da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquisa Filho”, UNESP/Campus de Araraquara. O Prof. Dr. Robson Antonio Rodrigues, arqueólogo, membro do Centro de Estudos Indígenas Miguel Angel Menéndez – UNESP/Araraquara e da Fundação Araporã, que proferiu a palestra “A pesquisa arqueológica no contexto brasileiro”. A Profa. Dra. Dulcelaine Lopes Nishikawa, socióloga, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UNESP/Araraquara, que ministrou a oficina “Educação Patrimonial”. O evento contou com a presença de alunos de quatro turmas do curso de Pedagogia da UEMG, uma turma de alunos da Educação de Jovens e Adultos da Escola Pio XII, alunos do cursinho Educafro, além de participantes interessados na temática arqueológica e patrimonial. Dentre os participantes havia professores de História e Geografia das redes pública e privada da educação em Poços de Caldas. O evento totalizou 169 participantes. Houve a possibilidade de participação das duas atividades (palestra e oficina), pois o palestrante e a oficineira fizeram suas apresentações duas vezes, a fim de abarcar todo o público interessado no evento. Houve certificação de 4 h/a de participação das atividades, que se iniciaram às 19:00h e finalizaram às 22:30h. O professor Robson e a professora Dulcelaine participaram no mesmo dia do Jornal do Meio Dia na TV Plan, no qual discorreram sobre pesquisas arqueológicas, Educação Patrimonial, e a importância das pesquisas voltadas para a região de Poços de Caldas. A participação foi um convite do jornalista e âncora do Jornal do Meio Dia, Roberto Tereziano. A palestra e a oficina conduziram os participantes a uma reflexão sobre o fazer arqueológico e a possibilidade de apreensão do patrimônio cultural de Poços de Caldas, com um olhar para o material arqueológico já documentado na região. Etapas de levantamento arqueológico

Os levantamentos realizados estão levando em consideração as informações orais já obtidas desde 2008, além de coletar mais informações nas cidades vizinhas a Poços de Caldas. 143   

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As etapas já realizadas apontaram para um grande potencial arqueológico da área escolhida para a pesquisa. A primeira etapa de campo contou com duas frentes de trabalho: busca por informações orais e caminhamentos em áreas pré-selecionadas a partir de estudo das cartas topográficas. Primeira etapa de levantamento arqueológico

Para a primeira etapa de campo (caminhadas), selecionamos uma área contida na carta do IBGE de Caldas (escala 1:50.000), próxima ao perímetro urbano do referido município. Caldas está em área banhada pelo Rio Verde, tributário do rio Pardo. O Ribeirão dos Bugres, por sua vez afluente do Rio Verde, também banha as terras de Caldas. Foi nestes dois rios (Rio Verde e Ribeirão dos Bugres) que iniciamos os nossos trabalhos de levantamento de campo. Seguindo de Poços de Caldas a Caldas, pela BR 459, passa-se pela ponte do Rio Verde, que está na confluência deste rio com o Ribeirão dos Bugres. Este foi um dos pontos de referência para o nosso caminhamento na área. Elegemos, para nossas caminhadas, as áreas da margem direita do rio Verde e esquerda do Ribeirão dos Bugres. No Ribeirão dos Bugres, partindo da entrada do município de Caldas até a foz deste rio há cerca de 4 km. No Rio Verde, desde o seu encontro com o Ribeirão dos Bugres até uma ponte que o atravessa na estrada que vai para Pocinhos há cerca de 5 km. Nesta região há pequenos sítios e fazendas. No momento de nossas pesquisas, muitas propriedades estavam com o solo utilizado para pastagem, o que dificultou a visualização do solo para encontrar possíveis vestígios de material arqueológico. Porém, realizamos caminhamentos e observação do solo em áreas nas quais a terra estava exposta. Quando encontrávamos solo de difícil visualização, optávamos pelas conversas com os moradores a fim de averiguarmos se vestígios arqueológicos já foram encontrados na região. O material arqueológico é bem conhecido dos moradores, sobretudo os mais antigos. Mesmo que na maioria das vezes não saibam da relevância patrimonial de tais vestígios, sabem que são objetos que representam um passado que muitos dos seus familiares testemunharam. É fácil encontrar casos que as pessoas tenham em casa algum material arqueológico encontrado durante os trabalhos na lavoura ou em momentos de construção. Além disso, muito da história local reside na memória das pessoas ou em escritos oficiais, como livros de memorialistas ou documentos. Desta forma, o material arqueológico encontrado auxilia na criação de um quadro pretérito que faz sentido para as pessoas, na 144   

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medida em que elas se sentem ligadas àquelas peças e suas histórias. Uma das histórias que coletamos no Sítio São Bartolomeu, margem esquerda do Ribeirão dos Bugres, foi que há 58 anos,quando o sítio era uma fazenda maior, próximo a um córrego, os filhos do fazendeiro encontraram um pote de barro com alça. Um dos filhos do fazendeiro, hoje proprietário de uma parte das terras, o referido Sítio São Bartolomeu, levou parte da equipe até o local onde encontraram o pote. No entanto, não foi possível visualizar o solo, pois, hoje, a propriedade é, em sua maioria, área de pastagem. Mesmo não tendo encontrado vestígios de material arqueológico no local, a história é interessante, pois atesta que a região foi habitada por diferentes culturas no passado e que os vestígios de tais habitações podem ainda ser encontrados. O levantamento próximo à margem esquerda do Ribeirão dos Bugres rendeu alguns achados isolados (ocorrências arqueológicas) que podem não representar antigas ocupações, mas evidenciam o potencial arqueológico da área que escolhemos para iniciar a pesquisa. A vistoria na área que antes era a Fazenda do Ribeirão dos Bugres, local onde há informações orais de que antigamente havia um “cemitério indígena”, evidenciou algumas ocorrências de fragmentos de potes. No entanto, a conversa com os atuais moradores das pequenas propriedades do local não revelou algo significativo para nossas pesquisas. Na margem direita do Rio Verde iniciamos as atividades com observação de perfil. Realizamos caminhadas ao longo de sua margem procurando pontos onde houvesse fácil acesso às pequenas propriedades e aos locais com terra arada ou com cultivo que facilitasse a visualização do solo. Utilizando esta metodologia de abordagem, chegamos a um sítio arqueológico. O sítio está implantado em área que hoje é dividida por duas propriedades. Uma delas é a Fazenda Rio Verde, a outra é de propriedade de uma família em Caldas, da qual pegamos as informações para futuros contatos. No momento da descoberta do sítio, uma das partes estava sendo utilizada para plantação de batata doce e na outra havia girassol. O sítio caracteriza-se por uma variedade muito grande de fragmentos de cerâmica, louça e material construtivo mais recente. Há, pelo menos duas, concentrações bem visíveis de material arqueológico. Somente escavações aliadas a um resgate da memória e da história do local pode nos revelar mais detalhes sobre o sítio. No entanto, alguns elementos do material cerâmico nos levam a crer que se trata de uma ocupação recente, ligada ao período histórico, com influências da cultura africana e indígena. Em nossa primeira visita ao local do sítio arqueológico, na ocasião de sua descoberta, encontramos um cachimbo modelado em cerâmica. Após algumas buscas por material bibliográfico e conversas com especialistas em 145   

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cachimbos arqueológicos, constatamos que se trata de um cachimbo africano, e não indígena. Porém, no local, encontramos bordas de potes com decoração e pintura geralmente associadas aos indígenas. O sítio arqueológico será por nós registrado junto ao Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Pretendemos elaborar um projeto de escavação e ações educativas para prosseguirmos as pesquisas a partir do segundo semestre de 2013. A descoberta deste sítio sugeriu a busca por trabalhos arqueológicos que abordem cachimbos africanos e indígenas. As pesquisas realizadas sobre cachimbos encontrados em sítios arqueológicos brasileiros referem-se ao período pré-contato em geral associados a algumas tribos indígenas como os tupis – guarani e os kaiapós. No período colonial, os cachimbos estão associados a escravos, ex-escravos e a elite brasileira. Há, também, cachimbos do período Neobrasileiro que agregam elementos africanos e indígenas. A utilização do cachimbo tanto indígena quanto africano aponta para o aspecto do uso cotidiano, cerimonial e no período colonial como forma de contestação social entre os escravos. Os cachimbos pré-coloniais indígenas utilizados em cerimônias assumiam a conotação do sagrado em rituais de cura e rituais funerários, em danças e cantos, (FACCIO, 2009; MARQUES, 2009). No cotidiano, eram utilizados para o cultivo do cará e milho, no cozimento de certos tipos de alimentos como carne, pescado e galinha (MARQUES, 2009). Entre os guaranis, os cachimbos conhecidos como petynguá eram utilizados em rituais de saudação, nas cerimônias de nominação de crianças, nas festas dedicadas ao milho novo, nas terapias de cura e para a recepção de visitantes. Em geral, eram confeccionados em antiplástico com argila tendo decoração incisa com motivos diagonais; de madeira ou taquara. Relatos de viajantes do período colonial, como André Thevet e Jean de Lery atestam o uso do cachimbo entre as tribos indígenas, “os índios recebiam o “espírito da santidade” ao sorver o fumo, e, da mesma maneira, ao incorporar sua fumaça através de sopros do Cariba” (MARQUES, 2009:16). No período colonial, o “ato de fumar” e o uso do cachimbo permitiam aos escravos, urbanos ou rurais, uma fuga da rotina de trabalho e representava uma estratégia de resistência à dominação imposta. O seu uso se tornou tão peculiar, que virou um traço marcante na cultura negra: “o escravo e o seu cachimbo” (AGOSTINI, 2009). A prática de fumar era amplamente difundida entre homens e mulheres, existindo casas de comércio, secos e molhados que tinham entre seus produtos a venda de artigos exclusivos para fumo e a importação de canudos vindos da África para este fim. Os elementos decorativos apresentados em alguns cachimbos africanos sugerem a 146   

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interligação da representatividade de traços de identidade étnica. Alguns autores apontam que as decorações encontradas nestes cachimbos podem estar associadas às escarificações: marcas tribais de iniciação ou pertença a uma comunidade (AGOSTINI, 2008). Em analogia, estas escarificações remeteriam à cultura “mãe” a África. No período do tráfico negreiro, após a captura na África, negros de etnias diversas eram entregues ao contrabando de escravos sendo vendidos no Brasil. Pela convivência com outros grupos étnicos, teria ocorrido uma nova ressignificação e a formação de novos elos culturais entre grupos negros que antes eram rivais e que se uniram por terem em comum o branco/dominador como o inimigo e a ordem estabelecida a ser rompida. Alguns cachimbos encontrados em sítios arqueológicos que apontam para o período Neobrasileiro identificam traços indígenas e africanos, apontando o local como refúgio de quilombolas no qual não concentravam apenas negros, mas também, como afirmam fontes bibliográficas, congregavam indígenas, ex-escravos e brancos pobres, todos os que não estavam inclusos na ordem estabelecida. Apesar de o cachimbo encontrado ser apenas um dos diversos elementos a serem dignos de estudo aprofundado no sítio, ele pode nos apontar o caminho que devemos seguir para termos uma melhor compreensão do rico panorama histórico-cultural que contribuiu para a formação do que hoje é o município de Caldas. A compreensão dos elementos culturais do sítio arqueológico encontrado também possibilitará inserir a história da região em um contexto mais amplo, no qual foram formadas culturas diversificas no sul e sudoeste do Estado de Minas Gerais. Segunda etapa do levantamento arqueológico

A segunda etapa de campo do projeto foi iniciada com o objetivo de averiguar algumas informações orais sobre prováveis locais de sítio arqueológico. Fomos à São Pedro de Caldas, no Bairro Botafogo, buscar informações sobre o que as pessoas da região chamam de “ocas de índios”. Trata-se de abrigos sob rocha, locais prováveis de se encontrar vestígios indígenas por se constituírem, no passado, em acampamentos sazonais para caça. Na Fazenda São Pedro há vários abrigos sob rocha. Fizemos vistoria em três abrigos e não encontramos vestígios arqueológicos. Porém, como é região de potencial arqueológico, cheia de abrigos e próxima ao rio Pardo, intensificaremos o levantamento e a coleta de informações orais em etapas futuras. Realizamos caminhamentos na margem direita do Rio Pardo, margeando a rodovia 147   

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MG 28 (BR 146), sentido Botelhos. Nesta margem, caminhamos cerca de 6 quilômetros, entramos em algumas propriedades e fizemos observação do solo. Não encontramos vestígios de material arqueológico e a conversa com os moradores da região não revelou pontos importantes a serem vistoriados. Outra equipe foi até São Gonçalo de Botelhos, distrito do município de Botelhos, a fim de vistoriar uma área com informações sobre alguns abrigos. Havia informações sobre uma lâmina de machado encontrada há algumas décadas. A vistoria no local revelou algumas ocorrências arqueológicas em dois abrigos. Trata-se de fragmentos de quartzo lascado. Nesta etapa também fomos a Santana de Caldas a fim de chegarmos mais próximos da confluência do Rio Verde com o Rio Pardo. Desta forma, fizemos vistoria neste local, na margem esquerda do rio Pardo. Observamos as margens direita e esquerda do rio Verde, mas não encontramos vestígios arqueológicos e também não coletamos informações relevantes para a pesquisa arqueológica. Terceira etapa de levantamento arqueológico

A terceira e última etapa de campo de 2012 foi idealizada levando em consideração a necessidade de intensificação das caminhadas e da busca de informação oral mais próximo ao Rio Pardo. Consideramos que seria interessante dar prosseguimento à vistoria na área contida na carta topográfica de Caldas (Escala 1:50.000), entre a confluência do rio Pardo e do rio Verde, subindo o primeiro rio até área próxima à ponte do bairro Botafogo. Tal ponte está na estrada que liga Caldas e São Pedro de Caldas. Botafogo é um bairro pertencente a São Pedro de Caldas. Nesta terceira etapa de campo, ao analisarmos a carta topográfica e fotos aéreas, elegemos a margem direita deste trecho do rio Pardo para caminhadas. Além das caminhadas, realizamos entrevistas com moradores do Bairro Botafogo e visitamos as obras da Pardo Energia S.A. Conversamos com o engenheiro responsável pelas obras de uma Pequena Central Geradora (CGH) que está sendo construída no rio Pardo, próximo ao Bairro Botafogo. Ele nos informou que as vistorias ambientais foram realizadas pela A.S. Ambiental. Tais relatórios são importantes, uma vez que contemplam os laudos arqueológicos. No momento oportuno, entraremos em contato com o setor de meio Ambiente da empresa a fim de ter acesso aos pareceres e relatórios da instalação da CGH Pardo. Nesta etapa da pesquisa, encontramos um fragmento polido, possivelmente uma mão de pilão. O fragmento foi encontrado na margem direita do rio Pardo, na confluência com o 148   

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córrego São Pedro. As vistorias na margem direita do rio Pardo também renderam o achado de outra ocorrência arqueológica. As ocorrências arqueológicas, embora não configurem uma ocupação humana passível de escavação e pesquisa mais detalhada, são importantes indicadores do potencial arqueológico da região. No caso do fragmento da mão de pilão e dos cacos de cerâmica, em especial, sugerem a presença no entorno de populações sedentarizadas, que praticavam agricultura. Desta forma, os resultados do trabalho de campo somados às informações orais coletadas evidenciam um grande potencial arqueológico para a região de Poços de Caldas. Tais pesquisas são de grande importância para ações patrimoniais em âmbito escolar e extraescolar. Ações educativas em escolas públicas em Poços de Caldas

Como parte do desenvolvimento das pesquisas, foram realizadas ações educativas em duas escolas públicas de Poços de Caldas. A atividade teve como finalidade divulgar os trabalhos que estão sendo realizados e, sobretudo, levar para as escolas reflexões sobre a Arqueologia e suas contribuições para uma melhor compreensão das identidades locais e suas histórias. Uma parte da equipe do projeto, composta pela pesquisadora Dra. Dulcelaine Lopes Nishikawa, coordenadora das atividades nas escolas, três alunas do curso de Pedagogia da UEMG, uma aluna de Ciências Sociais da UNESP/Araraquara e uma professora de História do Ensino Médio, realizou, em duas escolas, uma oficina de sensibilização cultural. O objetivo foi levar aos alunos um pouco da História Cultural de Poços de Caldas e um contato com o material arqueológico (lítico lascado, lítico polido e cerâmica). A equipe ressaltou aos alunos a possibilidade de encontrar na região vestígios arqueológicos que contem a História a partir de um outro ponto de vista, não pautado pelas fontes oficiais e pelos livros didáticos. Os resultados das Ações Educativas foram apresentados pela coordenadora das atividades, em forma de relatório, e nortearão nossas investidas futuras em escolas de Poços de Caldas e região. Primeiros resultados

Os trabalhos realizados em 2012 evidenciaram a necessidade de se fazer estudos sistemáticos sobre a Arqueologia da região e a história local. Há muitos trabalhos 149   

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historiográficos de memorialistas sobre Poços de Caldas e Caldas, dois importantes municípios do sudoeste de Minas Gerais. Porém, em todos eles a herança indígena e africana na constituição cultural da região é pouco relevante. Acreditamos que as pesquisas arqueológicas auxiliarão em uma reconstrução discursiva multicultural, em vez de monocultural. Tal reconstrução é crucial para repensarmos ações educativas que suplantem a forma tradicional de encararmos as histórias locais, que devem ser contadas sempre no plural. A descoberta de ocorrências arqueológicas isoladas e de um sítio arqueológico em Caldas é um importante passo para pesquisas arqueológicas futuras. O relatório dos trabalhos efetuados será encaminhado ao IPHAN, a fim de cadastrar o sítio arqueológico encontrado em Caldas. Solicitaremos permissão para realizar escavações neste sítio. Solicitaremos verba para órgãos de fomento à pesquisa a fim de realizar os trabalhos de escavação. Ainda, a continuidade do projeto visa realizar mais etapas de levantamento nas áreas que não pudemos vistoriar e, ao mesmo tempo, continuar a busca por informações orais. Realizaremos estudos dirigidos para as temáticas da Arqueologia de Minas Gerais e das regiões sul e sudoeste, sobretudo, buscando trabalhos arqueológicos que descrevam os contextos de interação entre indígenas, africanos e colonizadores europeus. As ações educativas nas escolas terão continuidade também em 2013 e buscarão ampliar o número de escolas atendidas pela iniciativa do projeto, inclusive com alunos do Ensino Fundamental e Médio sendo contemplados com bolsa BIC Júnior. Referências bibliográficas AGOSTINI, Camila. Cultura material e a experiência africana no sudeste oitocentista: cachimbos de escravos em imagens, histórias, estilos e listagens. Revista Topoi, v.10. n.18, jan-jun. 2009, p.39-47. AGOSTINI, Camilla. Resistência Cultural e Reconstrução de Identidades: Um Olhar Sobre a Cultura Material de Escravos do Século XIX. Revista de História Regional, (3): 2, 2008, pp.113-137. ALMEIDA, Paulo Araújo. Arqueologia em Conceição dos Ouros-MG. Gráfica e Editora Amaral – Pouso Alegre/MG, 2005. CAVALCANTE, Thiago L. V. Etno-história e história indígena: questões sobre conceitos, métodos e relevância da pesquisa. História (São Paulo) v. 30, n. 1, p. 349-371, jan/jun 2011. CURY, Marília X. Para saber o que o público pensa sobre Arqueologia. In: Revista Arqueologia Pública, NEE/UNICAMP, pág. 31-48:2006. 150   

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Material cerâmico encontrado em sítio arqueológico em Caldas/MG. Foto: Solange Schiavetto.

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RESEN H A NAVARRO, Alexandre Guida. Kakupacal e Kukulcán: iconografia e contexto espacial de dois reis-guerreiros maias em Chichén Itzá. São Luís: Café & Lápis; EDUFMA, 2012, 96 p.

Luiz Estevam de Oliveira Fernandes1 Luis Guilherme Assis Kalil2

O México tem mais de 32 mil sítios arqueológicos catalogados. Dentre eles, Chichén Itzá é um dos três mais visitados. Patrimônio Cultural da Humanidade, foi eleita em 2007 uma das novas Sete Maravilhas do Mundo. A antiga cidade maia, por situar-se a meros 200 km de Cancún, principal destino turístico do país, recebe milhares de turistas por ano, que, por sua vez, atraem algumas centenas de “guias locais”, vendedores de artesanato “maia” e toda sorte de pessoas tentando ganhar a vida à custa dos visitantes, quase sempre boquiabertos diante da magnificência do local. O interesse dos turistas, inclusive brasileiros (cerca de 130 mil visitaram o país em média anual, desde 2010), entretanto, não encontra equivalente entre os nossos pesquisadores. Chichén Itzá permanece ainda pouco estudada em nosso país. Por isso, a obra de Alexandre Guida Navarro já seria de suma importância. Uma publicação acadêmica escrita em português por um especialista que passou anos estudando in loco a grande cidade maia já representaria um avanço pelo simples motivo de chamar a atenção para o tema e o período. Prefaciado pelo arqueólogo e historiador Pedro Paulo Funari, Kakupacal e Kukulcán é um desdobramento das reflexões apresentadas no doutorado de Navarro, defendido na Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM). No livro, o especialista apresenta sua hipótese de trabalho logo nas primeiras páginas. A partir da constatação de que os dois                                                             

1

Professor Adjunto do departamento de História do Instituto de Ciências Humanas e Sociais (ICHS) da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), pesquisador do Núcleo de Estudos de História da Historiografia e Modernidade, e líder do Grupo de Estudos “História das Américas: fontes e historiografia”, ambos do CNPq. 2 Doutorando do programa de História Cultural do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pesquisador do Grupo de Estudos “História das Américas: fontes e historiografia”, do CNPq.

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personagens-guerreiros do título estão representados apenas na iconografia do conjunto arquitetônico conhecido como “Grande Nivelação”, e não em toda a cidade de Chichén Itzá, o autor busca demonstrar como as representações de Kakupacal e Kukulcán fazem referência, na realidade, não apenas a deuses do panteão maia, mas a dois indivíduos reais, os Capitães Serpente e Disco Solar, dois guerreiros que teriam governado a cidade durante algum momento do Clássico Terminal (800-1000 d.C.): “nossa hipótese é que a construção da Grande Nivelação está estritamente relacionada com as realizações políticas destes guerreirosgovernantes como um espaço de legitimação de poder através da construção de arquitetura monumental” (p. 14). Nesse sentido, Navarro expõe o conceito central de seu trabalho, o de humanização do espaço: “partimos do pressuposto de que os espaços arquitetônicos representam uma visão simbólica da composição social dos grupos humanos em relação com sua própria identidade, do meio que o rodeia e seu esforço para humanizá-la” (p. 14). Partindo de tal premissa, demonstra como a região da Grande Nivelação tem uma arquitetura com símbolos e representações em formas de imagens bastante distintas da do restante do sítio arqueológico. Em um estudo essencialmente de distribuição espacial e de análise iconográfica, o autor argumenta que a construção deste complexo arquitetônico foi feita dentro de um complexo programa de estratégia política que envolvia propaganda proselitista dos governantes, direcionada aos habitantes da cidade e àqueles que a visitavam (p. 31). Nos capítulos do livro, à maneira de um cuidadoso relatório de campo, o estudioso expõe-nos seus objetivos, a bibliografia existente sobre o tema, a metodologia que embasou seu trabalho, os dados obtidos e sua interpretação. Por meio do texto, ficamos sabendo de pelo menos três mensagens simbólicas expressas através da cultura material estudada: um esquema cognitivo de códigos e regras culturais, para demonstrar a ideia de transição de poder; que estas regras envolviam certo grau de controle pelos indivíduos ou grupos que aludiam a um controle do comportamento (por parte dos governantes da cidade); e que o espaço é uma forma de comunicação de diferentes naturezas e serve para a manifestação de aspectos específicos, como o culto a Kukulcán. Tais associações, entre arquitetura e poder, são pensadas a partir de Michel Foucault e Gilles Deleuze. Sendo assim, Navarro conclui que as mudanças políticas ocorridas em Chichén Itzá estão relacionadas com os complexos arquitetônicos construídos no período bem como com o calendário maia: “Pensamos que Kakupacal foi um importante governante de Chichén Itzá quando a cidade alcançou seu poder construindo o setor sul do centro urbano. O 154   

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seu governo coincide com um fim de ciclo maia ou Katún Ahau (período de 20 anos), que é quando o grupo no poder é substituído por outro [...] Esta evidência calendárica demonstra que houve uma mudança de governo na cidade, que culmina com o controle da cidade por parte de um novo grupo social, que parece ser o Capitão Serpente”. Além disso, o arqueólogo insinua que estas mudanças representam transformações ainda mais profundas dentro de Chichén Itzá. Abrindo caminho para novas pesquisas, afirma que as imagens dos capitães captaria o momento de transformação social entre uma sociedade de cacicado (o setor sul do sítio) em direção à formação de um Estado (a Grande Nivelação) e da própria sociedade maia (p. 76). Além da demonstração de sua tese principal, o livro também fornece um panorama sobre a civilização maia e qual o papel de Chichén Itzá no emaranhado de cidades-estados da época (cf. Capítulo 1). Dessa forma, ficamos sabendo que, entre os anos 800 e 900 d.C., a cidade controlava a rota de sal em toda a área maia, além das rotas marinhas e impostos, bem como servia de centro de peregrinação, “cujos vários edifícios foram usados para o culto de divindades como Kukulcán, a serpente emplumada, e Chaac, o deus da chuva” (p. 16). Também encontramos no livro uma ampla revisão bibliográfica sobre os maias (cf. Capitulo 2) além de várias fotografias, mapas, desenhos e um glossário de termos arquitetônicos que se tornam fundamentais para a compreensão da obra por parte dos leitores não especializados que procuram uma primeira leitura sobre os maias. Como ressalva a esta importante publicação, apontamos o fato do autor não explicar mais detidamente quais foram os critérios adotados por ele para selecionar as representações das ruínas de Chichén Itzá que seriam utilizadas em sua pesquisa. Navarro afirma que, devido à deterioração de algumas edificações, optou por utilizar desenhos feitos por estudiosos que visitaram a cidade no século XIX: “Utilizamos, portanto, aquelas que acreditamos serem mais fieis à pintura mural original” (p. 38). Porém, não ficam claros para o leitor que elementos levaram o autor a fazer afirmações como a de que alguns desenhos “são muito importantes pois estão livres de todo o excesso artístico e fantasioso que prevalecia nessa época” (p. 18). Processo semelhante ocorre em outro momento da obra. Ao descrever seu trabalho de campo, Navarro afirma que ignorou representações que poderiam ser consideradas como alusões ao Capitão Disco Solar por não estarem com os símbolos recorrentes (capa de jaguar, toucados elaborados, associação com Chaac) (p. 38). Contudo, páginas depois, analisa nova imagem do Capitão sem um de seus símbolos, mas cuja ligação com a divindade não é questionada: “O Capitão Disco Solar está desprovido de seu disco e parece estar representado, 155   

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metaforicamente, pelos raios de sol” (p. 47). Seria interessante que houvesse, especialmente para o leitor leigo, uma explicação mais detalhada dos papeis exercidos por estes símbolos dentro das imagens e os possíveis significados de suas ausências ou substituições. Há, também, pouca análise da relação entre relatos coloniais sobre os maias (citados, em vários momentos, como base de sua interpretação de etno-história) e a cultura material estudada. O autor chega a citar passagens de autores como Diego de Landa e outros, mas numa sequência que reforça seu caráter ilustrativo. Para além disso, o livro torna-se uma bem vinda literatura sobre uma cidade tão visitada e, ao mesmo tempo, tão pouco conhecida.

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EN TREVI STA José Remesal Rodríguez Professor do Departamento de Pré-história, História Antiga e Arqueologia da Universidade de Barcelona. É especialista em história econômica e social de Roma, tendo estudado a produção e o comércio de alimentos. Aprofundou-se na análise da produção de azeite e o controle exercido por Roma sobre este, estudando também a história do crescimento da importância da região Baetica, do Sul da Península Ibérica. Tal importância aparece nos trabalhos que realizou em conjunto com José M. Blázquez no Monte Testaccio. Entrevistadores Pedro Fermín Maguire (Mestrando em História Cultural pelo IFCH/UNICAMP) Isabela Soraia Backx Sanabria (Doutoranda em História Cultural pelo IFCH/UNICAMP)

Introdução

Durante a I Semana de Arqueologia do LAP, o professor José Remesal apresentou na UNICAMP alguns dos resultados de suas últimas escavações arqueológicas. Dentre eles, apontou diversas reflexões sobre o desenvolvimento da região Baetica, que passou de uma posição periférica para um lugar mais central no contexto das relações econômicas romanas antigas. Além disso, discursou sobre a importância das ciências e das disciplinas científicas nessas relações econômicas, já nos séculos XIX e XX, tendo ressaltado o papel da Arqueologia em diferentes regiões do mundo. Pensando também no século XXI e nas relações de poder, apresentou algumas das maneiras pelas quais os países podem apresentar-se perante o mundo e intervir na economia mundial. Por último, o professor compartilhou suas impressões sobre o trabalho de pesquisadores brasileiros e o desenvolvimento das pesquisas científicas no país. Entrevista 157   

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Entrevistadores: Para as perguntas que farei vou basear-me em recomendações e questões que foram sugeridas a mim pelos companheiros do curso de pós-graduação em História cultural. Alguns alunos da linha de Subjetividade, Gênero e Cultura Material, que estudam a antiguidade romana, conhecem seu trabalho principalmente pelas escavações no Testaccio. Então a primeira pergunta é: como e por que o Testaccio constituiu um exemplo de um momento no processo de integração econômica de Roma? José Remesal: O imperador Augusto criou um sistema de subvenção de alimentação em Roma, ou, melhor dizendo, deu continuidade a ele. Neste sentido, se viu na obrigação de garantir que em Roma não houvesse fome. Que houvesse paz social e não existissem conflitos por causa da fome. Para isso, utilizou os produtos das províncias, particularmente o cereal do Egito e o azeite da Baetica. Nesse sentido, a produção de azeite da Baetica se desenvolveu de maneira impressionante, e a Roma chegaram milhões de ânforas da Baetica contendo azeite durante três séculos, de modo a abastecer a cidade de Roma. Isso permitiu que as elites econômicas da província da Baetica, os que moravam no Sul da Espanha, se integrassem no poder e, de fato, o primeiro imperador provincial foi Trajano, um Baetico, não é? E: Então o senhor mencionou a questão da fome como problema político para as elites Romanas. Hoje em dia, em países como o Brasil, o problema da fome foi colocado como questão política nos termos de se acabar com ele. Em outros países, desde 2008 ou 2009 houve várias rebeliões, motins e episódios de instabilidade política associados à questão da fome, o que gerou também uma maior preocupação entre as elites políticas desses países. Houve problemas de abastecimento no Norte da África e o primeiro ministro britânico chegou a questionar os modos sobre como esses problemas poderiam ser resolvidos. O senhor acha possível que a fome volte a ser uma questão política não só em países até agora considerados periféricos, mas também nos países da Europa? Na União Europeia? J.R.: Supomos que a fome não, mas sim o problema da distribuição de alimentos, que continua sendo um elemento político importante na Europa. Na União Europeia, por exemplo, temos um problema básico que foi resolvido com a ideia de a Europa exportar produtos elaborados e receber matérias primas e alimentos. Isso gera problemas na Europa, por exemplo, para os agricultores espanhóis, o problema da importação de tomates, ou de laranjas do Marrocos. Para os agricultores franceses é um problema a exportação do morango 158   

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espanhol para a Europa. É claro que há um elemento econômico importante por detrás disso, o qual está presente, de uma forma ou outra, nos governos do primeiro e terceiro mundo. No caso do primeiro mundo é mais o problema da distribuição e do controle da produção. No caso do terceiro mundo, como já sabemos, é um problema efetivo de fome. No caso do Brasil, o pouco que eu conheço é o problema das grandes monoculturas, de produtos destinados à exportação, como a cana ou a soja que, naturalmente, ao impedir a diversidade de produtos, podem criar num determinado momento a ausência de produtos básicos. E.: Neste salto que demos estamos desconsiderando muitíssimas diferenças fundamentais quando falamos em economia. Parece que empregamos uma palavra de origem grega para designar alguma coisa que talvez seja atualmente muito diferente daquilo que significava na antiguidade. J. R.: Na antiguidade, a economia, a princípio, significava a administração da casa, uma coisa muito pequena. No mundo Romano o significado era o mesmo, ou seja, como um proprietário gerenciava sua casa e atingia o auto abastecimento. Naturalmente, aqueles que possuíam maiores propriedades produziam excedentes que não consumiam e, consequentemente, os vendiam. Como em qualquer momento histórico. Nesse sentido, a economia hoje tem um significado muito maior do que no mundo grego, mas continua sendo o conceito que utilizamos para definir as relações de produção e de consumo, de transporte e de benefícios sobre mercadorias. E.: Mas os mercados da antiguidade eram muito diferentes? J. R.: Bom, depende do momento histórico. No caso que eu estudo do Império Romano, poderíamos dizer que era uma espécie de mercado unificando tudo aquilo que era propriedade ou território do Império Romano. O que interessava a Roma, como qualquer criador de um império, era aproveitar os recursos dos outros para garantir o próprio bem estar. Podemos dizer disso do Império Romano, do Império Espanhol, do inglês, ou qualquer outro. E.: Então não era tão diferente do que constitui hoje a economia mundial ou a União Europeia?

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J. R.: Não, a maior diferença era a dificuldade de transportar grandes quantidades de produtos a grandes distancias, os Romanos nesse caso tinham mais dificuldade. Somente podia ser transportado em massa aquilo que podia ser transportado por mar ou por via fluvial. E.: Como eu já havia mencionado que seu trabalho aqui interessa bastante aos pesquisadores Brasileiros da antiguidade, eu queria perguntar-lhe como o senhor avalia as contribuições dos pesquisadores brasileiros para o conhecimento de períodos como a antiguidade romana, como o trabalho desenvolvido pelo professor Pedro Paulo Funari e por outras pessoas. J. R.: Bom, o que eu observo entre os brasileiros é uma grande diversidade na abordagem de temas, talvez pela influência da Antropologia – à qual a Arqueologia está mais vinculada aqui – e, sobretudo, pelas ideias que podemos chamar de “presencialistas” ou “momentualistas”, a pesquisa que se faz aqui é sempre desde uma formação e de teorias muito recentes. A minha crítica consiste em que muitas vezes aquilo que parece uma teoria muito recente já existe há cem anos. Um historiador deve estudar não apenas um momento ou a percepção do mundo antigo num determinado momento, mas primeiro conhecer o mundo antigo e depois, talvez, estudar sua percepção desde o momento em que sabemos que existe a história antiga como ciência, não é? E.: Vou mudar um pouco de tema, pois soube que recentemente, no ano de 2011 ou 2012, o senhor participou da edição de um livro sobre perdedores na antiguidade. A primeira pergunta é mais genérica e se trata de compreender se os romanos perdiam de uma maneira diferente da qual perdemos hoje. J. R.: Não, era igual. O vencedor sempre impôs sua lei e o perdedor sempre se viu perdedor. E.: No prólogo, na introdução a esse livro, o senhor faz referência a um estudo acerca das características estereotipadas sobre os perdedores, as quais estão presentes nas crônicas que deles fazem os vencedores. Entre elas aparecem a soberbia do perdedor e a sua molície. Parece que a molície designa uma espécie de tendência à debilidade ou a uma vida excessivamente fácil, alguma coisa parecida com a preguiça. Como hoje vivemos em um mundo no qual se fala muito, sobretudo no contexto espanhol, de viver acima das possibilidades, isso me faz lembrar um pouco dessa questão da molície. Quando olhamos para 160   

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o próprio passado da Espanha ou mesmo da União Europeia, isso parece ser uma censura não? Isso quer dizer que estamos diante de uma derrota? Isso é um sintoma de que o Norte da Europa está representando o Sul? Está recorrendo a essas representações porque o está derrotando de alguma maneira? J. R.: Não sei. No mundo, o vencedor geralmente precisa procurar uma desculpa para dizer que é superior ao outro. E dizer que ele é superior não apenas militarmente, mas também, por assim dizer, espiritual e emocionalmente. Por isso, ao inimigo sempre são atribuídas as qualidades que o vencedor considera negativas. A molície é um jeito de dizer que você foi vencido porque não tem força, porque não lutou o suficiente. Não acredito que a relação norte-sul na Europa vá nessa direção, mas de alguma maneira isso ocorre. Os centro-europeus consideram que no sul vivemos muito bem, que ficamos olhando para o sol. Hoje em dia, se trata de uma questão econômica sobre quem controla e quem põe a sua força dentro da União Europeia. E.: Extrapolando essa ideia da inferioridade do vencido e pensando em outros exemplos de conquista militar e de outros tipos na história – com os que permeiam a nós e nosso passado latino americano, por exemplo –, na história da conquista da América por vezes também se encontram passagens que sugerem superioridade tecnológica, superioridade organizacional, traição interna... E eu me pergunto se existe alguma possibilidade de contar outra vez as histórias em outros termos que não sejam os dos vencedores. J. R.: Não sei, isso depende da consciência de cada um, da visão de cada geração sobre o fato histórico. O fato histórico de que europeus, quero dizer, portugueses e espanhóis, chegaram num momento no qual o desenvolvimento tecnológico deles não era muito grande, mas era superior ao dos povos que aqui existiam, o que os ajudou a se imporem e exercer a dominação. Como essa dominação será explicada já depende dos conhecimentos que tenhamos e das fontes sobre a ocupação dos espaços. Naturalmente, espanhóis e portugueses sempre tentaram demostrar sua superioridade. Mas a conquista da América é interessante porque nela, pela primeira vez, se fala sobre os direitos humanos. E é quando pensadores ibéricos, como exemplo, Las Casas e Espinoza, começam a discutir o conceito dos direitos humanos, que é tão discutido hoje em dia.

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E.: Para encerrar a entrevista, em sua apresentação sobre o Testaccio, o senhor mencionou a imagem internacional da Espanha e a imagem da Arqueologia espanhola. Isso tem algo a ver com Alcubierre?

Isso seria uma resposta sua a essas representações que se faziam da

Arqueologia espanhola, por exemplo, em Pompeia, como uma Arqueologia destrutiva, brutal e pouco respeitosa? J. R.: Não. Alcubierre começou escavar em Pompeia com os métodos e as ideias que existiam em sua época. Desde aquele momento até hoje, naturalmente, os métodos de escavação mudaram e melhoraram. Hoje, somos críticos com os mais antigos, que fizeram um trabalho no qual não observaram tudo aquilo que nós gostaríamos que tivessem observado. E.: Mas essa imagem internacional da arqueologia espanhola não é necessariamente negativa, ou é? J. R.: Não. Em primeiro lugar, se falamos sobre historiografia, a maioria das pessoas não sabe que Alcubierre escavou em Pompeia. Inclusive no meio arqueológico. É somente uma questão historiográfica. Eu falava mais sobre a ideia da representação atual de um país. Ou seja, como os países hoje pretendem criar uma imagem positiva deles mesmos, estudando as culturas de outros. Nesse sentido, Alemanha, França e Inglaterra tentaram – especialmente Alemanha – criar institutos arqueológicos para estudar diversas culturas e, de alguma maneira, poder opinar sobre a cultura de cada país, de modo que qualquer país, de alguma maneira, precisasse da ciência alemã para conhecer sua origem. É uma relação, talvez, muito elaborada. Mas esse é o jogo hoje. Em vez de jogar com a espada, se joga com a imagem da cultura e da ciência. E.: Sobre a relação entre uns e outros, poderíamos dizer que é uma relação colonial, no sentido de que uns podem fornecer as matérias primas e outros propõem os instrumentos para processar a informação? J. R.: Bom, em algum momento sim. Em outros, depende do desenvolvimento de cada país. Na Turquia, por exemplo, existem arqueólogos muito bons. Eles passaram desse nível de colonizados a intervir eles mesmos direta e ativamente no processo do conhecimento arqueológico. Posso te contar que fui em 1980 ao Iraque. Saddam Hussein convidou muitos arqueólogos espanhóis. Foi na ocasião em que iam cobrir sítios arqueológicos com pântanos, 162   

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e a mensagem que enviaram foi muito clara: queremos que venham ao Iraque os melhores de todo o mundo, que rapidamente ensinem aos iraquianos a conhecer a Arqueologia e as técnicas arqueológicas, para que rapidamente os iraquianos possam estudar e explicar o nosso passado. E.: Com a intenção de formar também as pessoas do local e... J. R.: Sim, a condição para a escavação era a de que deveriam participar da equipe estudantes iraquianos. E.: E depois da Guerra do Iraque esses vínculos se romperam ou foram renovados? A Arqueologia iraquiana conseguiu sobreviver de alguma maneira à guerra? J. R.: É uma questão muito difícil, muito difícil porque a guerra destruiu muita coisa. Você se recorda da destruição dos museus, do roubo de materiais do museu nacional, a contínua exploração do país, seja pelas potências ou pelos especuladores que operam por detrás das grandes potências, ou dos mesmos autóctones iraquianos que negociam antiguidades para conseguir dinheiro. Houve escândalos muito notórios.

Toda a e qu ipe do La bor a t ór io de Ar que ologia Pú blica a gr a de ce a e n t r e vist a con ce dida ...

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ERRATA O que se segue é um complemento do artigo de Martha Helena Loeblein Becker Morales intitulado “Dê ao garoto esta marshalltown dourada”: a Arqueologia na visão de Kent Flannery, que foi publicado na edição 6 (dezembro de 2012) da Revista de Arqueologia Pública. Agradecimentos Este artigo é um primeiro exercício analítico, fruto da tese de doutorado Fragmentos de História: a louça arqueológica do Museu Paranaense, em desenvolvimento no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná. Agradeço a Luís Cláudio Symanski por ter-me apresentado ao texto de Kent Flannery, o qual analiso aqui com base em reflexões teóricas e metodológicas que venho aprofundando desde o mestrado, também em História, pela mesma instituição. Cabem igualmente agradecimentos ao Programa de Bolsas REUNI de Assistência ao Ensino, cujo incentivo financeiro possibilita a permanência nas atividades acadêmicas, sob a orientação da Profa. Renata Garraffoni, a quem também sou grata. Saliento que o conteúdo e as ideias aqui expostas são de minha inteira responsabilidade.

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