Revista Arqueologia Pública 8, 2013

September 5, 2017 | Autor: P. Funari | Categoria: Arqueologia, Patrimonio Cultural, Arqueologia Histórica
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número 8 | 2013

EDITORES Aline Carvalho (LAP/NEPAM/UNICAMP) Pedro Paulo A. Funari (LAP/NEPAM/UNICAMP) COMISSÃO EDITORIAL Ana Piñon (Universidad Complutense de Madrid, Espanha) Andrés Zarankin (UFMG) Charles Orser (Illinois State University, EUA) Erika Robrahn-González (Documento Patrimônio Cultural, Arqueologia e Antropologia Ltda) Gilson Rambelli (LAAA / NAR / UFS) Lourdes Dominguez (Oficina del Historiador, Havana, Cuba) Lúcio Menezes Ferreira (UFPel) Nanci Vieira Oliveira (UERJ) CONSELHO EDITORIAL Bernd Fahmel Bayer (Universidad Nacional Autónoma de México, México) Gilson Martins (UFMS) José Luiz de Morais (MAE/USP) Laurent Olivier (Université de Paris, França) Martin Hall (Cape Town University, South Africa) Sian Jones (University of Manchester, Inglaterra) COMISSÃO TÉCNICA Derivaldo Reis de Sousa Franciely da Luz Oliveira Marcos Rogério Pereira ESTÁGIO – REVISÃO TEXTUAL Camila Secolin PROJETO GRÁFICO João Batista Ruela Luiza de Carvalho DIAGRAMAÇÃO João Batista Ruela ISSN 2237-8294

SUMÁRIO 4

EDITORIAL Aline Carvalho

ARTIGOS 7

OS SENTIDOS DA CULTURA MATERIAL NO COTIDIANO E NA MEMÓRIA DAS FAMÍLIAS DA COMUNIDADE QUILOMBOLA DE CINCO CHAGAS DO MATAPI Clarisse Callegari Jacques

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ESTUDOS SOBRE O IMAGINÁRIO NA ATMOSFERA DE QUILOMBOS ARQUEOLÓGICOS Cláudio Baptista Carle

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O PAPEL DA ARQUEOLOGIA NOS CONFLITOS DECORRENTES DE OCUPAÇÕES IRREGULARES NO SAMBAQUI DA PANAQUATIRA – SÃO JOSÉ DE RIBAMAR – MA Arkley Marques Bandeira

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“TRÁFICO” DE MATERIAL ARQUEOLÓGICO, TURISMO E COMUNIDADES RIBEIRINHAS: EXPERIÊNCIAS DE UMA ARQUEOLOGIA PARTICIPATIVA EM PARINTINS, AMAZONAS Helena Pinto Lima, Bruno Marcos Moraes e Maria Tereza Vieira Parente

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OFICINA LÍTICA DE POLIMENTO NO NOROESTE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO Nanci Vieira de Oliveira

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ESTUDIO DE IMPACTO ARQUEOLÓGICO EN PUNTA PEREIRA (COLONIAURUGUAY): METODOLOGÍA APLICADA Y PRINCIPALES RESULTADOS PARA EL CONOCIMIENTO DE LA PREHISTORIA REGIONAL. Irina Capdepont, Laura del Puerto e Hugo Inda

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A CÉSAR O QUE É DE CÉSAR: O PATRIMÔNIO ARQUEOLÓGICO NAS ORGANIZAÇÕES FORMAIS DO BRASIL Alejandra Saladino, Carlos Alberto Santos Costa e Elizabete de Castro Mendonça

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A ARQUEOLOGIA HISTÓRICA NO MUSEU PARAENSE EMÍLIO GOELDI Helder Bruno Palheta Ângelo

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PIXAÇÕES SOB A ÓTICA DA ARQUEOLOGIA URBANA Rafael de Abreu Souza

ENTREVISTA 157

GABINO LA ROSA CORZO (Arqueólogo e Cientista Histórico - Universidad de La Habana) Carola Sepúlveda

RESENHA 162

HENDERSON, Hope; BERNAL, Sebastián Fajardo (comp.). Reproducción social y creación de desigualdades – discusiones desde la antropologia y la arqueologia suramericanas. 1ª Ed. Cordoba: Encuentro Grupo Editor, 2012. 232 p. Bruno Sanches Ranzani da Silva

SEÇÃO DE GRADUAÇÃO ARTIGO 174

GEOGRAFIA E ARQUEOLOGIA: UMA VISÃO DO CONCEITO DE RUGOSIDADES DE MILTON SANTOS Anderson Sabino e Robson Simões

RESENHA 189

ANTÚNEZ, Carlos Arredondo; HERNÁNDEZ, Odlanyer de Lara; RODRÍGUEZ, Bóris Tápanes. Esclavos y cimarrones en Cuba: arqueologia histórica en la Cueva El Grillete. Buenos Aires: Instituto Superior del Profesorado Dr. Joaquín V. González – Centro de Investigaciones Precolombinas, 2012. 180p. Vitor Gomes Monteiro

EDITORIAL Dezembro de 2013 Caros Colegas,

É com imensa satisfação que apresentamos o oitavo número da Revista de Arqueologia Pública. Como sempre, esperamos que vocês encontrem no espaço desta Revista uma plataforma para a elaboração de discussões e reflexões acerca de temas vinculados ao grande e aberto campo da Arqueologia Pública. Neste número, em especial, reunimos uma sequência de artigos que transitam por diferentes recortes temporais e espaciais, mas, em comum, trabalham com leituras sobre a cultura material, e produções de memórias a partir destas materialidades.É claro que as posições dos autores aqui reunidos são bastante variadas e não representam, de forma alguma, posturas consonantes sobre as temáticas mencionadas. Acreditamos, todavia, que possibilitar as divergências, discordâncias, acordos e negociações – representadas nesses artigos – é um dos pilares de nossa publicação. Assim, na seção de artigos, os leitores encontrarão produções textuais que se debruçam sobre temáticas vinculadas às memórias quilombolas, ribeirinhas e suas relação com a cultura material; reflexões acerca dos diálogos entre memórias, cultura material e instituições patrimoniais ou museológicas no Brasil; debates acerca da caracterização e estudos de impacto em sítios pré-coloniais tanto no Brasil como no Uruguai; reflexões acerca de atividades turísticas e outras formas de ocupação/uso de sítios arqueológicos e, por fim, algumas leituras acerca da arqueologia urbana no Brasil. Neste número, também publicamos um artigo produzido por alunos de graduação que lançou-se ao desafio de pensar possíveis entrelaçamentos entre a arqueologia e a geografia, partindo de conceitos elaborados por Milton Santos. Ainda neste contexto de pluralidades, disponibilizamos uma entrevista realizada pela doutoranda da Faculdade de Educação (FE-UNICAMP) Carola Sepúlveda – especialistas nas memórias da poetiza chilena Gabriela Mistral – com o arqueólogo cubano Gabino La Rosa Corzo. De forma bastante delicada, La Rosa Corzo expõe suas memórias acerca de sua própria formação e traça reflexões sobre o campo da arqueologia tanto em Cuba como no Brasil. Escolhemos publicar o texto em espanhol; língua na qual entrevistado e entrevistadora se sentem absolutamente em “casa”.

No campo das resenhas, publicamos o texto produzido por Bruno Sanches Ranzani da Silva acerca da obra organizada pelos pesquisadores Hope Henderson e Sebastián Fajardo Bernal. O livro resenhado – Reproducción social y creación de desigualdades – discusiones desde la antropologia y la arqueologia suramericanas (Ed. Cordoba: Encuentro Grupo Editor, 2012) –traz as reflexões de uma série de autores atuantes no continente americano sobre os diálogos entre arqueologia e antropologia, e, em especial, sobre temas como agência, estrutura, poder, produção, reprodução, colonialismo e desigualdade. Para finalizar esse editorial, gostaríamos de agradecer à todos aqueles que contribuem quase que cotidianamente para a produção semestral da Revista de Arqueologia Pública: alunos e pesquisadores vinculados ao Laboratório de Arqueologia Pública Paulo Duarte (Lap/Nepam/Unicamp), equipe de informática da Coordenadoria de Centros e Núcleos da Unicamp (Cocen), pareceristas anônimos de diferentes instituições de pesquisa nacionais e internacionais, e, claro, aos autores que submetem seus textos a esta Revista. Desejamos uma excelente leitura e ressaltamos que estamos sempre abertos ao diálogo!

Aline Carvalho

Revista de Arqueologia Pública, n.8, Dezembro 2013. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP.

OS SENTIDOS DA CULTURA MATERIAL NO COTIDIANO E NA MEMÓRIA DAS FAMÍLIAS DA COMUNIDADE QUILOMBOLA DE CINCO CHAGAS DO MATAPI The meanings of material culture in daily activities and memory in the Comunidade Quilombola de Cinco Chagas do Matapi families Clarisse Callegari Jacques1

RESUMO Neste artigo, busco discutir a temática da relação da cultura material com a memória e a oralidade a partir de vivências e experiências que tive até agora na comunidade quilombola do Estado do Amapá, chamada Cinco Chagas do Matapi. Destaco o papel da cultura material como mediadora de relações de alteridade, e a participação e o diálogo como aspectos metodológicos importantes da etnografia que contribuem para a prática de uma arqueologia mais reflexiva. Através de vestígios arqueológicos e de atividades atuais da comunidade, é possível estudar os diferentes sentidos da cultura material, entendida como ativa, e capaz de evocar lembranças e imagens de um passado não distante. É com a oralidade que os sentidos da memória, da paisagem e da cultura material se misturam e constituem a história e a identidade da comunidade de Cinco Chagas do Matapi. Palavras-chave: cultura material, memória, quilombolas. ABSTRACT In this article I intend to discuss the theme of the relation between material culture, memory and oral speech through daily experiences I´ve had until now in an african-descendent community in Amapá State (Brasil), called “Cinco Chagas do Matapi”. Material culture plays an important role as a mediator in alterity relations, and participation and dialogue are important ethnographic methodologies that contribute to a more reflexive practice of archaeology. From archaeological remains and recent community activities it is possible to study material culture´s different meanings, as active and capable of evoquing memories and images of a not distant past. It is through oral speech that the senses of memory, landscape and material culture intermixes and constitutes the history of ´Cinco Chagas do Matapi´ community. Key-words: material culture, memory, African-descendants. RESUMEN Este trabajo trata de analizar el tema de la relación de la cultura material de la memoria y la oralidad de las experiencias y vivencias que he tenido hasta ahora en la comunidad de marrón en el estado de Amapá, llamado las Cinco Llagas Matapi. Destacar el papel de la cultura material como mediadora de las relaciones de alteridad, y la participación y el diálogo como los aspectos metodológicos importantes de etnografía que contribuyen a la práctica de la arqueología más reflexiva. A través de actividades arqueológicas y actuales de la comunidad, es posible estudiar los distintos significados de la cultura material, entendida como activa y 1

Doutoranda PPGA/UFPA/CAPES. E-mail: [email protected]

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capaz de evocar recuerdos e imágenes de un pasado no muy lejos. Es con ese sentido de la memoria oral, el paisaje y la cultura material se mezclan y forman la historia y la identidad de la comunidad de las Cinco Llagas Matapi. Palabras Clave: cultura material, memoria, cimarrones Introdução

A Arqueologia tem se deparado com situações cada vez mais desafiadoras durante seu trabalho de campo. Nos contextos onde os vestígios materiais estão localizados em áreas ocupadas atualmente por comunidades, pequenas vilas e fazendas, dizem respeito não só à vida das pessoas que os produziram e utilizaram no passado, mas possuem significados para diferentes pessoas que entram em contato hoje com esses vestígios. No caso da pesquisa que venho desenvolvendo 2 na Comunidade Quilombola de Cinco Chagas do Matapi, Estado do Amapá, foi encontrada pelos membros desta comunidade uma botija de cerâmica enterrada no meio de uma plantação de mandioca. O interesse da comunidade em querer saber mais sobre esta vasilha me instigou a desenvolver uma pesquisa que levasse em conta a relação destas pessoas com os vestígios arqueológicos neste local. Assim, até agora foram realizadas várias visitas à comunidade de Cinco Chagas, sendo que durante uma delas foi escavada esta vasilha a pedido do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) através de um projeto de resgate emergencial3. Neste artigo, busco discutir a temática da relação da cultura material com a memória e a oralidade4. Neste sentido, parto de vivências que tive até agora na comunidade e destaco que a cultura material teve um papel importante como mediadora de relações de alteridade. Em um primeiro momento discuto uma abordagem teórica acerca dos estudos sobre cultura material, e busco apresentar os vestígios materiais como cultura material ativa, ligada às pessoas e às suas experiências de vida. Em seguida, exploro o potencial da materialidade dos vestígios arqueológicos enquanto evocadores de memórias e histórias a partir de encontros com os moradores de Cinco Chagas. Em um último momento, reflito sobre o papel central da 2 Atualmente, venho desenvolvendo pesquisa de doutorado no Programa de Pós Graduação em Antropologia na Universidade Federal do Pará (PPGA/UFPA/CAPES). 3 Uma vez identificada a boca desta vasilha na roça de mandioca, o IPHAN, em visita a comunidade, solicitou a realização de um projeto de resgate arqueológico para evitar que este vestígio seguisse sofrendo com as ações do tempo. Assim, foi desenvolvido pelo IPHAN um projeto de resgate pontual desta vasilha no qual atuei como coordenadora responsável tendo em vista meu interesse de realizar pesquisas na área. Os resultados desta atividade foram apresentados em forma de relatório a este órgão (JACQUES, 2011). 4 As ideias principais deste artigo foram desenvolvidas no trabalho final da disciplina ´Cultura Material´ ministrada pela Profa. Dra. Marcia Bezerra no PPGA/UFPA e apresentadas no I Congresso Pan-Amazônico e VII Encontro da Região Norte de História Oral realizado em Belém em 2011.

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oralidade na pesquisa, que está me direcionando a lembranças, conhecimentos e fazeres próprios das famílias que vivem nesta comunidade e que, por sua vez, dizem respeito a sua história e ao seu patrimônio. A história da comunidade, presente na memória e contada através da oralidade, se manifesta através da cultura material.

Os vestígios materiais e as experiências de vida das pessoas da Comunidade de Cinco Chagas A Comunidade Quilombola de Cinco Chagas do Matapi pertence ao município de Santana, Amapá, e está localizada nas margens do Rio Matapi a 19 quilômetros da cidade de Macapá. Atualmente, a principal atividade das famílias que moram ali é a produção da farinha e sua venda na feira da cidade de Santana, para onde se deslocam periodicamente de barco. A atividade de revolver a terra para plantar e colher a mandioca tem feito com que as pessoas entrem em contato com fragmentos de vasilhas de cerâmica e alguns eventuais instrumentos de pedra polida diariamente. Foi a descoberta de uma botija inteira que chamou atenção, fazendo com que as pessoas entrassem em contato com a Prefeitura de Santana e o IPHAN para preservar esta vasilha e conhecer mais sobre a sua história. O fato de as pessoas terem interesse neste artefato (na minha visão de arqueóloga) me fez visitar a região com o técnico do IPHAN em outubro de 2009 e começar a pensar em um projeto de arqueologia. Enquanto arqueóloga entendi, naquele momento, aquele lugar como um sítio arqueológico com vestígios materiais de vasilhas cerâmicas indígenas ocupado atualmente por uma comunidade quilombola que está interessada em conhecer mais sobre estes artefatos. Os membros de Cinco Chagas, por sua vez, entendem a botija enterrada como parte da sua história, como uma descoberta que deve ser preservada para que pessoas de outros lugares possam visitar. Ainda, segundo o relato de alguns moradores, outras comunidades do Rio Matapi possuem escolas, postos de saúde e igreja, mas não apresentam uma situação como aquela, de aparecimento de uma botija enterrada no solo. É interessante pensarmos nesta informação contextualizando o momento em que esta comunidade se encontra, tendo optado pelo pedido de reconhecimento da Comunidade de Cinco Chagas como comunidade remanescente de quilombo frente ao Estado. As comunidades tradicionais, incluindo-se nestas as comunidades quilombolas, enquanto grupos familiares com percepções do mundo próprias, uso comum de recursos e apropriação privada de bens de forma consensual (ALMEIDA, 2004), possuem também um entendimento próprio sobre o seu patrimônio, onde o passado e o presente estão relacionados.

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Neste sentido, o tradicional não se refere somente ao contexto histórico do grupo, mas aos saberes e fazeres atuais. As comunidades possuem especificidades próprias, a ver com a sua história, seu autorreconhecimento e as suas atividades quotidianas. Assim, no caso de Cinco Chagas, além da vasilha enterrada estar associada à história e à identidade das famílias, é um elemento importante enquanto especificidade ou diferencial de legitimidade desta comunidade. Estas são duas visões, uma visão minha e a outra um entendimento que tive em um primeiro momento sobre uma mesma situação, na primeira saída de campo. Com o tempo, tive a oportunidade de visitá-los outras vezes e me convenci que existem ainda muitas outras versões, visões e entendimentos desta história, deste lugar e desta botija enterrada. Além disso, ainda com um olhar de arqueóloga, percebi que alguns dos fragmentos identificados nas roças visitadas dizem respeito a cacos de vasilhas de grupos quilombola e não só de indígenas, conforme algumas pessoas da comunidade já haviam me chamado a atenção. A riqueza da relação da cultura material com as pessoas, as sensações, interpretações, desejos, esperanças, memórias, fascínio que permeia este contato faz com que, neste projeto, a cultura material seja estudada como agente, como ativa e não somente um produto de uma atividade humana. Neste sentido, Miller (1987) destaca que frequentemente os artefatos são associados à sua função, o que muitas vezes determina o nome pelo qual são chamados. Pensar somente nesta perspectiva é limitar o entendimento da cultura material; o autor propõe que o crucial é a relação social do objeto com as pessoas. Pensando esta proposta não só para artefatos, mas para coisas em geral, pois nós nos cercamos delas (CSIKSENTMIHALYI, 1993:25), é estudar a forma como as pessoas entendem e se relacionam com o mundo à sua volta (THOMAS, 1996). Para Tilley (2008), a cultura material pensada em relação à sua materialidade traz a tona uma questão ambígua. Por um lado a matéria é propriedade interessante da cultura material, pois pode proporcionar sensações relacionadas às características como textura, cor e cheiro, que as palavras não conseguem expressar. Por outro lado, a cultura material representa relações sociais e simbolismos que fazem parte do mundo das ideias, e não do material. Sendo assim, o autor propõe o uso do termo objetificação como um conceito que possibilita uma forma de entendimento das relações entre sujeitos e objetos que não são vistos como diferentes; ou seja, as ideias, valores e relações sociais são criadas junto com o processo que faz com que as coisas passem a existir. A objetificação, assim, é um processo que aproxima as pessoas e as coisas, sendo estabelecidos vínculos como os de identidade e memória, que fazem do objeto também um agente. Neste sentido, de entender os objetos enquanto ativos, Gell (1992) ressalta que os

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efeitos que os objetos de arte provocam nas pessoas são o seu poder, uma mágica que liga o mundo material ao campo das ideias (e sentimentos). Pode-se pensar também em uma comunicação (GLASSIE, 1999), que está presente tanto na criação como no consumo de um artefato. Falar de objetos que ‘encantam’, termo usado por GELL (1992: 222), é tocar também no que fascina um arqueólogo. Todavia, prender-se somente em um mundo material, já admirado e analisado pelo pesquisador, é limitar a pesquisa ao sentido da visualidade e ao mundo das coisas. Esta discussão coloca em cena o conceito de ‘cultura material’, que não é entendido neste trabalho somente como coisas palpáveis, mas também é visto no sentido do próprio conceito de objetificação colocado por Tilley (2008), e pode estar representado por uma paisagem ou uma imagem trazida pela memória de um lugar. É desta forma que proponho pensar a cultura material relacionada à Comunidade Quilombola de Cinco Chagas do Matapi. Como foi relatado acima, o primeiro objeto que caracterizou este local como sítio arqueológico foi a vasilha inteira, também chamada de “igaçaba” ou “botija”. Associadas à esta vasilha estão histórias que remetem ao imaginário e ao passado da comunidade. Vários moradores relataram suas diferentes experiências com esta vasilha. Contaram, por exemplo, da surpresa dela ter sido encontrada em um determinado ponto, e de ter permanecido neste mesmo local. Os relatos sobre como ela foi descoberta sempre são associados a uma história passada de geração para geração, que fala de vasilhas com ouro no seu interior e que aparecem nos sonhos das pessoas em lugares diferentes, desaparecendo em certas circunstâncias para reaparecer em outros locais. Do ponto de vista arqueológico, após uma escavação emergencial feita a pedido do IPHAN do Amapá (JACQUES, 2011), constatamos que havia outras duas vasilhas de dimensões menores depositadas junto a esta botija maior, encontrada pela comunidade. O contexto estratigráfico interpretado a partir da escavação indicou a abertura de uma fossa para a deposição destes artefatos. Com a informação de que havia um pequeno pratinho com um pó branco dentro da vasilha maior, e com a descoberta de outros pratos dentro das duas outras vasilhas associadas à principal, interpretei esta deposição como fazendo parte de um contexto funerário associado a uma ocupação indígena 5 . Estes relatos dos moradores locais e as informações da arqueologia contam a história de vida desta vasilha.

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As características de decoração plástica presentes na superfície das vasilhas cerâmicas escavadas indicam uma semelhança com as características da cerâmica da Fase Mazagão, estudada por Meggers e Evans (1957) e associadas a uma ocupação indígena.

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Ao conviver em Cinco Chagas neste período, percebi que ao longo de toda a área onde estão as casas, foram encontrados fragmentos de vasilhas cerâmicas que, uma vez vistos pelas crianças sob a ótica da arqueologia, passaram a encontrá-los ainda mais e a relatar onde se localizavam. O olhar destas crianças, não tão “treinado” (ou poderia dizer “direcionado” ao que eu já conhecia em publicações sobre o tema) quanto o meu, me fez perceber outros fragmentos com características um pouco diferentes das que eu estava acostumada, e que me remeteram às decorações e formatos das “louças” de cerâmica feitas atualmente pela Comunidade Quilombola do Maruanum e expostas para venda na Casa do Artesão em Macapá. Tive a oportunidade de visitar esta outra comunidade, localizada no Rio Maruanum (braço do Rio Matapi) em outro momento, o que me remeteu novamente a um olhar científico arqueológico (com o natural encanto pelos artefatos) preocupado em diferenciar as características dos fragmentos associados a grupos indígenas pretéritos comparando-os com os já vistos em coleções e publicações de arqueologia, das características da “louça” quilombola6. As pessoas de Cinco Chagas com quem conversei sobre o assunto, contam de uma época em que eram compradas vasilhas no Maruanum para guardar água e torrar café, e quando questionei sobre o que achavam dessas diferenças de coloração e decoração nos fragmentos, algumas opinaram que certas vasilhas eram muito antigas, feitas por índios. Adentrar uma discussão sobre a associação destes fragmentos a uma identidade quilombola ou indígena não é o objetivo neste momento, visto que é uma questão delicada e nada simples. O interessante, para esta pesquisa, é perceber como está sendo a relação das pessoas com estes fragmentos e levar em consideração também que a visão da comunidade (e a minha também) tem mudado conforme nos encontramos e ainda poderá mudar. Até agora foi possível constatar que a vasilha inteira é muito importante para essas pessoas, mas não pode ser entendida como o único patrimônio material. Como eles mesmos chamaram a atenção desde o início, a produção de farinha é uma atividade que envolve saberes, técnicas e instrumentos de trabalho também ricos em memória e identidade. Dentro da abordagem aqui proposta para entender os vestígios arqueológicos presentes nesta comunidade e a forma como as pessoas se relacionam com eles, a memória tem um papel importante. É ela que, muitas vezes, reporta as pessoas ao passado, traz à tona imagens e lembranças, confortos e saudades de momentos que são recriados e reinterpretados através da narrativa oral.

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Trabalho nada fácil ao qual este projeto não está dedicado.

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Memórias e histórias na Casa de Farinha

Dentre muitos objetos e objetificações relacionadas à vida diária das famílias de Cinco Chagas, e pensados enquanto cultura material ativa, gostaria de destacar os relacionados à atividade de produção de farinha, que dizem respeito desde os cacos de cerâmica e pés de mandioca até os raspadores de mandioca, forno, farinha e outros objetos utilitários e da memória. Cada núcleo familiar planta a mandioca nas suas terras, sendo que pode haver pessoas que vêm de fora e passam um período trabalhando a partir de um acordo com o proprietário. As áreas plantadas estão tanto junto das casas, que por sua vez se localizam ao longo da margem do rio Matapi, como também podem estar mais afastadas. Enquanto em uma parte do terreno são plantadas as mudas, em outra é revolvida a terra e em uma terceira é feita a colheita de mandioca, de forma que essa seja produzida ao longo de todo o ano. A partir da lida e da intimidade com a terra através da plantação, um dos moradores mais antigos da comunidade me indicou as fronteiras das roças onde param de aparecer fragmentos de cerâmica e de terra mais escura, indicativos para o arqueólogo de locais antigamente ocupados. Todas as famílias usam a Casa de Farinha, inclusive ao mesmo tempo, em um processo contínuo que envolve descascar, deixar de molho, ralar, tirar o tucupi e a goma7, espremer a massa, torrar a massa e, ao mesmo tempo, deixar sentar a goma e ferver o tucupi. Enquanto uns estão descascando, outros lidam com outra etapa da produção ao ralar e, ao mesmo tempo, outra família já está no final do processo de torrar e ferver o tucupi. A dinâmica da casa de farinha envolve a circulação de corpos e coisas, como se fosse uma dança onde os corpos se movem sem se tocar, as crianças vêm e vão, ajudando em alguns processos, as mulheres descascando, lavando a mandioca e fervendo o tucupi, e os homens descascando, torrando, ralando e carregando as sacas de massa da mandioca ralada em um processo harmonioso. Para espremer a massa da mandioca, a comunidade construiu uma prensa de madeira que acelera o processo antes feito com o tipiti8. Cada um possui uma preferência de instrumento usado para descascar, seja uma faca menor, maior ou um raspador de metal próprio para isso e argumentam sobre qual é o mais prático e eficiente. As sacas com 7

O tucupi e a goma são resultados do processamento da mandioca brava. Depois de descascada e de ficar de molho, a mandioca é ralada e “lavada” com água. Deste líquido sai o tucupi e a goma, o primeiro é fervido e temperado, e a goma é usada para fazer tapioca. 8 Estrutura cilíndrica feita de trançado de fibra de talo da palmeira do buriti para espremer a massa da mandioca, separando o líquido da massa, que será torrada posteriormente.

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a farinha pronta são amontoadas em um canto, parecendo todas iguais aos meus olhos, mas pertencem a produções familiares diferentes. Pensando um pouco nestas sensações e percepções que envolvem esta atividade de produção, destaco as ideias de Spence (2007), que propõe a percepção multisensorial para mostrar como os diferentes sentidos influenciam a percepção do tato. Ao dar-se conta da substância dos objetos, são usados outros sentidos, ou seja, como propõe o autor, nem tudo que acontece em contato com a superfície da pele tem a ver com o toque. O descascar a mandioca implica em consistências de pedaços da mandioca ainda com casca indicadas pelo olhar, mas retiradas com golpes de intensidades diferentes para deixar a raiz livre de reentrâncias de ramificações. No processo de lavagem, ao mexer a massa ralada com água é possível sentir concentrações diferentes e definir a quantidade de tucupi que vai estar presente em cada produção de farinha; pois isso vai mudar o seu gosto. Na torragem, a cor, o deslizar da pá no forno, a granulometria na farinha – às vezes peneirada para ficar mais fina – e provar o ponto certo são percepções essenciais. Enquanto visitante frequente, converso com as pessoas que me explicam o processo e me deixam a par das suas vidas e ficam, ao mesmo tempo, a par da minha. Ao transitar na Casa de Farinha, me deparo com áreas mais quentes, onde é fervido o tucupi e torrada a mandioca, e passo pela fumaça do forno e o vapor da mandioca sendo torrada para chegar onde a água lava a massa e o suco escorre para recipientes onde a goma vai sentar. São cheiros diferentes em cada processo, e o aroma do tucupi fervido com alho e alfavaca predomina na Casa de Farinha, objetificando todo este processo e todos os saberes nele envolvidos. Estas impressões e experiências que tive em campo me levam a pensar no potencial da cultura material enquanto mediadora da relação entre pesquisador e interlocutor. Através dela, a participação e o diálogo também acontecem. A participação acontece no sentido de compartilhamento, no qual o trabalho de campo refere-se a um mundo que compartilhamos com outras pessoas e com outros olhares e sensibilidades, mas com uma mesma convivência (LIMA e SARRÓ, 2006:20). O diálogo é uma relação de alteridade que compartilha o mesmo tempo (FABIAN, 2002) e que implica em uma troca de saberes através da cultura material. Para Carlos R. Brandão (2007) a pesquisa é uma vivência, uma relação interpessoal e de subjetividade, e o envolvimento pessoal e o contexto da pesquisa são dados que fazem parte da prática de campo. A mandioca, em suas diferentes versões, seguindo o gosto de cada um, retoma diferentes significados e relaciona a história do lugar com a biografia particular de cada

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pessoa, assim como associa os fragmentos cerâmicos ao cotidiano da comunidade. Retomando as ideias de Gosden (2005), as coisas de origens e históricos diferentes se juntam para formar um modo de vida com ocorrência e lógica. Na minha ideia inicial, mandioca e fragmentos de cerâmica nada tinham em comum; com o tempo, se tornaram parte de uma mesma história. No meio da cultura material e das histórias, estão as memórias. Estas memórias dizem respeito tanto ao indivíduo como ao coletivo, referindo-se, respectivamente, como ressalta Pollak (1992: 2), aos acontecimentos vividos pessoalmente e os vividos pelo grupo ao qual a pessoa sente pertencer. A primeira não pode ser dissociada da segunda, pois, como coloca Bosi (2004:54), ao refletir sobre os estudos de Halbwachs, a memória do indivíduo está relacionada ao da sua família e com outros contextos nos quais está presente um coletivo como, por exemplo, a Igreja, o trabalho, a escola, que são os grupos de convívio e de referência do sujeito. As diferentes formas de fazer farinha, de perceber a cultura material à sua volta nos remetem a uma história pessoal cheia de detalhes e experiências do indivíduo. Cada um com uma história de vida, cada um se inserindo nas histórias e nas práticas do grupo a partir das suas memórias particulares. Ao mesmo tempo, essas memórias são “herdadas”, como sugere Pollak (1992: 4), e vêm de um contexto compartilhado com outros sujeitos. A ligação entre o indivíduo e o coletivo é intensa e frequente, e pude perceber isso, principalmente, nos relatos sobre os diferentes entendimentos sobre a presença da “igaçaba” ou “botija” enterrada na roça da comunidade. O local onde ela apareceu é importante, mas o que parece ser crucial é a pessoa que a encontra, para quem a botija apareceu em sonho. A forma como me contaram que ela apareceu, como ela foi procurada por esta pessoa e os fenômenos associados ao ponto onde ela se encontrava como ruídos de passos e luzes fortes à noite, variam. A memória, neste sentido, é entendida como uma construção (POLLAK, 1992; BOSI, 2004) que tem a ver com a percepção das pessoas sobre as histórias contadas, suas interpretações e experiências com a cultura material. Ulpiano Menezes (1998), em publicação intitulada “Memória e Cultura Material: Documentos Pessoais no Espaço Público” refere-se ao papel da cultura material nos processos de rememoração ainda sendo abordado pelos pesquisadores de forma tímida o que tende a ser ainda uma prática se tomarmos como importante a influência dos mesmos nas vidas das pessoas. A história do aparecimento da botija é um exemplo: mostra que as relações das pessoas com a cultura material são múltiplas e ricas, suscetíveis a novas interpretações e repassadas através da oralidade.

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A Casa de Farinha enquanto cultura material possui suas representações. Seus materiais construtivos, como o telhado feito manualmente com a sobreposição de galhos com folhas longas envolvem também saberes específicos. A origem destes materiais de construção e o destino do produto da Casa de Farinha, bem como a circulação de coisas e pessoas, me remete à ideia de Gonçalves (2007) de que acompanhar o deslocamento dos materiais é entender a dinâmica social. Um dos objetivos dessa comunidade é reformar a Casa de Farinha, considerada “feia” por muitos; precisa ser reformado seu telhado e seu piso, principalmente. Dentre muitos outros, é patrimônio deste local. Como coloca Gosden (2005), devemos olhar a genealogia dos objetos e também as práticas que eles encorajam e permitem. Seguindo esta perspectiva, as pessoas e a cultura material estão entrelaçadas e são entendidas sempre uma em relação à outra. Enquanto figura na paisagem, possui destaque como um lugar importante economicamente falando, um lugar para ser mostrado aos que vêm de fora, um lugar de reuniões e um lugar de convívio diário. Para Thomas (1996), a existência humana implica em estar em algum lugar (ideia que o autor desenvolve a partir do pensamento de Heidegger); este autor discute paisagem, corpo e lugar na arqueologia. A percepção do espaço perpassa a experiência do corpo, a noção de distância, por exemplo, é orientada no mundo de acordo com a maneira que as pessoas entendem o corpo e o que faz parte dele varia de sociedade para sociedade. Falar de espaços e lugares implica também em refletir sobre a visualidade enquanto cultura material. Não se trata de uma casa de farinha qualquer, é um lugar com objetos que fazem sentido para aquelas pessoas, que contam sobre a sua história, que suscitam encontros e estimulam histórias contadas através da oralidade. A prensa foi feita na comunidade e substitui o tipiti, que somente uma pessoa sabe fazer e que vende, às vezes, para outras comunidades. O ato de descascar mandioca tem a ver com o de contar histórias; assim como os momentos de silêncio na casa de farinha direcionam as pessoas aos seus pensamentos e às suas lembranças pessoais. Os vestígios arqueológicos, como cultura material ativa, estão relacionados com a mandioca e objetificam atividades diárias das famílias como o plantio, a colheita e a convivência na casa de farinha. São diversos tipos de cultura material que criam memórias; os cacos agora também lembram a arqueóloga “pesquisadora”, que aparece ocasionalmente e que anda pela área tirando fotos.

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A oralidade remete a paisagens e a memórias criadas

Ao pensar corpo e espaço e a constituição de paisagens, não podemos deixar de considerar a memória. O corpo enquanto veículo que, estando em um lugar (THOMAS, 1996), permite ao ser humano sentir, ver e mais tarde lembrar através da construção de uma imagem na mente de uma situação, de um lugar. Para Pollak (1992) esses “lugares da memória” estão ligados à lembrança. Esta imagem que vem à mente, criada pela pessoa que viveu uma experiência, pode ser também entendida como cultura material. Pensando a visualidade como fator importante para se entender a cultura material, gostaria de retomar outras experiências que tive em campo e que, refletindo agora, me instigou a pensar a paisagem e a imagem enquanto cultura material. Como visitei a comunidade em momentos diferentes do ano, na época da chuva e na época da seca, uma das pessoas com quem tive maior contato sempre brincou comigo apresentando o terreno como “limpo” na época da seca, pois a vegetação não cresce tanto, e “sujo” no inverno (época de chuva), fazendo com que as pessoas andem somente nas trilhas de uma casa para outra. No inverno, “tudo fica sujo, com mato”, e dá mais trabalho para as pessoas, que têm que “roçar” na volta das casas com maior frequência. São duas paisagens diferentes, e estas paisagens estão relacionadas a uma estética e ao próprio corpo que circula neste espaço. Além disso, nestes momentos diferentes, os objetos que compõe a paisagem variam, algumas coisas ficam visíveis e outras não, ou umas menos e outras mais. Na época da chuva, a superfície fica mais encoberta, mais difícil também para visualizar os fragmentos de cerâmica. Na época em que a vasilha ainda não havia sido escavada, a família proprietária do terreno ficava mais descansada na época de chuva, pois a área onde a vasilha se encontrava ficava mais ‘suja’ e, assim, chamava menos atenção e não corria tanto o risco de pessoas desavisadas irem mexer. Neste sentido, se pensarmos em patrimônio relacionado à ideia de herança – no sentido de cuidar, valorizar e transmitir – e construção, pois é um termo criado a partir do nosso olhar (JORGE, 2000: 125), o termo objetificação é um conceito interessante para se pensar os vestígios arqueológicos, os objetos ligados ao cotidiano da comunidade e a imagem de lugares. Estes, ao mesmo tempo, referem-se à história, à memória e à experiência social dos núcleos familiares que constituem a comunidade. Isso, por sua vez, indica a necessidade de problematizarmos o conceito de patrimônio arqueológico, que se torna mais amplo e que inclui as noções próprias da comunidade sobre o que é importante para eles. Neste sentido, a

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arqueologia colabora buscando a construção conjunta do conhecimento e do patrimônio dos lugares através de práticas de pesquisa participativas. Um lugar que apareceu durante as conversas com os moradores da comunidade de Cinco Chagas foi o “lugar dos antigos”, onde a primeira família ocupou a região, em uma área mais distante das margens do rio Matapi. Tive a oportunidade de visitar este local, onde uma das moradoras da comunidade me acompanhou com seu filho. Foi difícil identificar a trilha para chegar lá, segundo ela, apesar de ser muito perto das outras casas. Isso aconteceu porque o mato já havia tomado conta, o que sempre acontece em época de chuvas. Neste local não há roça. Aos meus olhos, ao visitar o local, vi uma mata com árvores frutíferas e terreno disforme, e me perdi facilmente na orientação do espaço. Conforme caminhávamos no terreno, a moradora da comunidade procurava na paisagem atual os lugares da sua memória (POLLAK, 1992), sempre acompanhada de seu filho. Seguindo ela, tentei imaginar como poderia ter sido este lugar, como era a casa, como era a roça, como era o lugar de torrar farinha... De repente ela chama atenção para uma bacabeira9, e em um ponto inclinado do terreno encontra na sua lembrança a antiga casa. A partir deste momento ela segue fazendo a leitura daquela paisagem através de uma volta no tempo (considerando esta lembrança também como uma construção, como chama a atenção ROCHA e ECKERT, 2000), às suas memórias e, ao mesmo tempo em que nos conta onde costumava ficar cada coisa, relata para seu filho como era o seu bisavô, e de como ela costumava cuidar dele. Identificamos o antigo poço, encontramos alguns restos da antiga estrutura de madeira da casa e ela chamou a atenção à quantidade de coisas que ainda deveriam estar aparecendo ali naquele lugar, se o mato não tivesse avançado. Ao mesmo tempo em que se lembra dos momentos, explica como era a vida naquela época, e se emociona retomando sentimentos pessoais; o filho, quieto, escuta pacientemente. Já determinados a voltar para casa, nos deparamos com os restos do antigo forno feito com latas emendadas, onde era torrado o café e a farinha. Ela pede que eu tire uma foto do filho segurando este objeto, orgulhosa de mostrar para ele como vivia seu bisavô. Terminamos a visita colhendo uma jaca madura, que seria apreciada juntamente com as lembranças do lugar. Miller (1987) coloca que existe uma relação próxima entre a materialidade do objeto e a materialidade do espaço, sendo que os objetos podem se referir a relações sociais e, neste caso, também ao passado. Com certeza a imagem que eu via e que ela via eram diferentes, a dela uma paisagem da memória, e a minha uma tentativa de transformar o que eu estava 9

Palmeira com fruto a partir do qual é tirado vinho e que é muito consumido pelas comunidades ribeirinhas no Amapá e na Amazônia.

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vendo e o que estava sendo narrado em uma cena à minha frente. Conforme caminhávamos neste espaço, as árvores e os vestígios iam puxando a lembrança de situações do passado, iam retomando a história da comunidade, iam ressignificando a paisagem. Entendendo a memória como “espaço de construção de conhecimento” (ECKERT e ROCHA, 2000: 2), é ver o passado não “(...) necessariamente antagônico ao presente, ao contrário, eles superpõem-se ritmicamente e, num processo ondulatório, ao ponto da sua consolidação, deixam a descoberto a matéria de suas lembranças” (ROCHA e ECKERT, 2000: 13). A partir das experiências que vivi até agora em Cinco Chagas do Matapi, percebi a possibilidade da história ser contada através de narrativas orais tendo os lugares, os momentos e os objetos papéis de contextos que desencadeiam a memória. Em especial, uma vez que pesquiso a relação dos vestígios arqueológicos com as pessoas nesta comunidade, a cultura material evoca e cria memória, imagens, momentos passados, sentimentos. As coisas que nos cercam possuem a capacidade de sintetizar uma história através do seu poder de evocar a memória e instigar a narrativa.

Considerações finais

Uma pesquisa que leve em consideração abordagens metodológicas como a participação, a dialogia e a problematização sobre a relação de alteridade são perspectivas do campo da antropologia que podem auxiliar o arqueólogo a desenvolver uma prática de pesquisa mais reflexiva e ética (SMITH, 2004; SHANKS e HODDER, 1998). Além disso, a cultura material, enquanto mediadora de relações sociais, apresenta um potencial enorme enquanto abordagem teórica e metodológica para problematizar a alteridade. Os vestígios arqueológicos, enquanto parte do patrimônio de Cinco Chagas, estão relacionados com a sua luta pelo reconhecimento enquanto comunidade quilombola. As narrativas, através de imagens da memória das famílias, estão vinculadas a um sentimento de pertencimento e associam as experiências e identidades sociais manifestas a um território (MARIN e CASTRO, 1999: 76). Imbricadas nas demandas por melhorias sociais e reconhecimento frente ao Estado estão as relações estabelecidas pelas pessoas com a história particular das comunidades e com a materialidade. Os arqueólogos, em suas pesquisas de campo, têm muito a aprender com a oralidade, que mostra alguns sentidos da cultura material; esta, por sua vez, diz respeito às pessoas hoje, e não só a um passado distante. Ainda, os artefatos e vestígios, associados a outros objetos e imagens, remetem a uma identidade própria das pessoas do local, que tem a ver com os seus

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saberes e fazeres, suas casas, suas histórias e suas visões de mundo. Desta forma, não é mais possível ir a campo e não escutar as pessoas, e não deixar a oralidade nos levar para diferentes lugares através das imagens e nos mostrar diferentes perspectivas da cultura material.

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ESTUDOS SOBRE O IMAGINÁRIO NA ATMOSFERA DE QUILOMBOS ARQUEOLÓGICOS Studies on the imaginary in the atmosphere of Quilombo archaeological Cláudio Baptista Carle1

RESUMO Estudo sobre os diversos imaginários nas pesquisas de quilombos arqueológicos brasileiros, realizadas no Rio Grande do Sul, nos últimos anos, considerando seus aspectos colaborativos entre ciências e cientistas. Palavras-chave: Arqueologia, quilombos, imaginário ABSTRACT Study of the various figures in the Brazilian archaeological research Quilombo, held in Rio Grande do Sul, in recent years, considering its collaborative aspects of science and scientists. Keywords: Archaeology, quilombos, imaginary RESUMEN Investigación sobre los diversos imaginarios en los estudios arqueológicos en “quilombos” (sitios cimarrones) brasileños, celebradas en Rio Grande do Sul, en los últimos años, teniendo en cuenta sus aspectos de colaboración de la ciencia y de los científicos. Palabras clave: arqueología, Quilombo, imaginario Introdução

Gitibá Faustino (1991: 102) diz que o Brasil é o segundo país do mundo em população negra, sendo que o primeiro seria a Nigéria; me pergunto onde isso influi na arqueologia? A resposta está na imagem (DURAND, 1997) arqueológica sobre vestígios de afro-americanos. A atmosfera, o imaginário acadêmico, é de colaboração entre pesquisadores envolvidos na investigação do tema. “O imaginário é determinado pela ideia de fazer parte de algo” (SILVA, 2012). É sobre imaginário, esta atmosfera ou aura que o texto discorre.

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LAMINA e PPGA (ICH) – GEPIEM (FAE) – UFPel , Doutor em História- Area de Concentração em Arqueologia (PUCRS). [email protected]

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Segui ideias convergentes que implicam em uma ação colaborativa. Aura instauradora (DURAND, 1997: 19) da arqueologia sobre afro-americanos é inteira, torna-se um imperialismo de imagens na ambiência social, “fantasias adversas”, “recalcamento” de regimes de imagens fixadas em um “momento histórico” (DURAND, 1997: 390). O imaginário revela as ações e as formas de entender o ser no mundo. A aura, imaginário, é instauradora das formas de pensar, sentir e agir. Gilbert Durand, no universo simbólico dos textos, neste caso sobre afro-americanos no sul do Brasil, indica que há uma troca incessante entre as pulsões subjetivas (biopsíquicas) e as intimações objetivas (cósmico-sócio-culturais) que se processa no trajeto antropológico. Que há um dinamismo equilibrador entre pensadores, as grandes imagens tradicionais e as míticas. Mitos que penetram nas orientações mais profundas (DURAND, 1997: 13) da sociedade científica. Há uma instauração do pensar sobre os afro-americanos. Esperava encontrar uma construção colaborativa, imaginada e apresentada nos textos de forma utópica, mas verifiquei ideias individuais de cunho político sobre os vestígios de afro-americanos. É uma visão recalcada. Nenhum lugar é deixado à «Imaginação criadora», ao Imaginário poético. É talvez daí que data a catástrofe que separou o Oriente e o Ocidente em nível do pensamento, o pensamento visionário e o pensamento racional, desde Guillaume d’Auvergne até Descartes, passando por São Tomás de Aquino. O imaginário tornase aqui no Ocidente cada vez mais recalcado na insignificação ornamental, estética, e, na véspera do século romântico, o divórcio está consumido. (DURAND, 2004: 10)

A visão de recalcamento ocidental (sistema imaginal instalado), expresso nas ciências humanas, é fixada pela imagem científica redutora (cartesiana) que se desenvolve no Brasil. Estamos então frente a um recalcamento da ciência ocidental, também na arqueologia brasileira. Investigo este recalcamento nos estudos sobre quilombos e vestígios de afroamericanos. “O imaginário é a marca digital simbólica do indivíduo ou do grupo na matéria do vivido. Como reservatório, o imaginário é essa impressão digital do ser no mundo” (SILVA, 2012). Sofri, como arqueólogo, este processo de impregnação simbólica. Esta marca simbólica aparece desde o início do século; percebo-a a partir das discussões travadas com Klaus Hilbert, Arno Kern e Moacyr Flores. Surge então este texto, no limiar entre o cartesianismo e os estudos sobre o imaginário. As “práticas de fronteira são marcadas não somente por relações de 'boa vizinhança', mas também pelo litígio” (GOMES, 2000: 7). O

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litígio em foco é a possibilidade de compreender a aura que se estabeleceu nos estudos sobre os afro-americanos no RS. Na arqueologia brasileira, vemos que a reprodução de velhos modelos, sem uma discussão teórica maior, ainda é persistente. “Uma ciência atinge sua maturidade quando ela conhece seus limites” (KERN, 2002: 116). Não há estes limites e os trabalhos são individualistas, feitos por um cientista que quer se entender múltiplo e que pretende dominar tudo. Um imaginário de regime diurno e com esquema postural heróico (DURAND, 1997: 115-121), um super-homem das ciências. Sigfried Laet coloca o problema da arqueologia na origem, na vinculação com outras disciplinas, perdendo o seu veio condutor, expressando desejos de estudos, na maioria das vezes, individuais, da História da Arte, das Ciências Naturais e da História propriamente dita, perdendo sua constituição própria (LAET, 1959: 14-24). Para Schmitz (1982: 53) a Arqueologia no Brasil procura reconstruir o modo de vida - a tecnologia, a cultura, a sociedade - de populações passadas ou etapas das atuais populações para as quais outras documentações são nulas ou ineficientes, não possuindo problemas, nem teorias exclusivas, partilhando estas com outras ciências. É uma síntese, uma especialização destacada de outras ciências, mas a arqueologia brasileira, na sua aura (imaginário), se pensa total. “O imaginário, para mim, é essa aura, é da ordem da aura: uma atmosfera. O espírito positivista não pode aceitar como vetor de ação algo tão impalpável, apresentado como atmosfera, admitido como aura” (SILVA, 2012). O imaginário é uma sensação que é vivida e não uma ordem de coisas mensuráveis que podem ser quantificadas. Imbuído também por esta sensação, busco entender a atmosfera do estudo arqueológico sobre áreas com vestígios de afro-americanos.

Atmosfera para compreender os quilombos arqueológicos

Há um reservatório, um motor que agrega imagens, sentimentos, lembranças, experiências, visões do real que realizam o imaginado, leituras da vida individual e grupal que sedimentam um modo de ver em objetos, como espaços, objetos móveis, estruturas. Ali estão registradas as formas de ser, de agir, de sentir e de pensar o futuro ao se estar no mundo. O imaginário “emana do real, estrutura-se como ideal e retorna ao real como elemento propulsor” e como forma nas ações humanas que constituem os sítios que ocupa (SILVA, 2012; DURAND, 2004).

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Estudar sítios arqueológicos históricos tem sido estudar a história dos seus formadores (LIMA, 1985: 88). Esta é a atmosfera da arqueologia histórica no Brasil. “O cientista não pode eliminar inteiramente o seu imaginário para atuar em condições absolutas de objetividade e de neutralidade. A ciência também tem a sua aura. O cientista também se move numa atmosfera” (SILVA, 2012). A atmosfera da “história do negro” e da “arqueologia da escravidão” (como se pensa o estudo sobre afro-americanos) marca os estudos. Assim, entender a atmosfera da história é entender o imaginário que envolve os estudos arqueológicos até o presente. O estudo sobre os afro-americanos é marcado pelo “branqueamento”, constituindo uma atmosfera de segregação racial historiográfica no país (SANTOS, 1991: 81-82), refletindo nos sentidos comuns (MAFFESOLI, 1994) da população diretamente envolvida e em seus movimentos organizados. Efeito que marca as posições, os ideologemas, que são a materialização de valores e de funções ideológicas de um determinado meio social, sendo psíquico e social; por consequência, ideológico, constituindo a materialidade da “ideologia” no cotidiano da vida social (DURAND, 1997: 118). Na historiografia refletida na arqueologia (LIMA, 1985) aparecem estes ideologemas. Escravos realizavam os assassinatos dos proprietários (MOREIRA, 1995), Luis Gama – filho de escravo rebelde – afirmava “que o escravo que matava o seu senhor praticava um ato de legítima defesa” (MOURA, 1987: 80). A confusão ideológica, ideologemas racistas e a atmosfera científica se conflitam. O Movimento Negro, na região meridional do RS, ao entender que o cientista trata os escravos como agressivos, inquiriu historiadores que escreveram sobre isso, a exemplo da obra de Roger da Silva intitulada Muzungas: Consumo e manuseio de químicas por escravos e libertos no Rio Grande do Sul (1828-1888) (Pelotas: EDUCAT, 2001) que foi levada à investigação como uma obra racista, por dizer que os afroamericanos envenenavam seus senhores no período da escravidão. Neste caso, o historiadorautor é afro-americano e seu texto traz os registros históricos e não promove racismo de forma alguma. Insurreições e revoltas também aparecem como formas de oposição à escravidão (SANTOS, 1991: 79; MAESTRI, 1979: 53 e 94; GOMES et al, 1995: 28). Percebe-se contradição na escrita histórica, aura dos estudos arqueológicos (FUNARI, 1996), em relação à percepção dos envolvidos. Mariano Santos – ex-escravo, afirmava que os escravos se suicidavam, apenas esperando a morte de sede, de fome ou de enfermidade, “o dia que Deus chamava” (MAESTRI, 1988: 31). A morte, na atmosfera historiográfica, é colocada como perda mercantil, de força produtiva, que podia assumir proporções endêmicas (MAESTRI, 1979:

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47). A aura econômica amplia a atmosfera das pesquisas. Na urbanização, fugitivos passavam por livres “de cor”, procuravam a proteção de um liberto ou de um senhor de escravos, “acoutando-se”, fato punível por lei (MAESTRI, 1979). Sant-Hilaire (apud MAESTRI, 1979: 80-89) notava que os mais valentes soldados de Artigas eram escravos fugitivos. Presos, os fujões “continuavam causando prejuízos, pois pagos os captores” (desde 1574) as fugas continuavam, aumentando as despesas com os que permaneciam e com os que eram caçados (MAESTRI, 1984: 73-74). A fuga é uma constante. “A maneira mais simples, segura e rápida de um cativo libertar-se era a fuga” (MAESTRI, 1984: 73). Aferida simplicidade é reveladora de uma naturalidade na fuga que não expressa o fato. No Jornal O Mensageiro, Farroupilha que pregava a república e a futura libertação de escravos, nas suas 37 tiragens, em 11 anúncios condena a fuga de escravos. As fugas podiam posteriormente levar à formação de “mocambos” e “quilombos” (SANTOS, 1991: 75; GOMES et al, 1995: 33). As Irmandades, fenômenos urbanos ligados aos “terreiros” e “batuques”, frequentados por escravos, libertos e livres pobres (MAESTRI, 1984: 54), eram importantes no apoio às fugas (GOMES et al, 1995: 29). A imagem criada por estes estudos é econômica, uma atmosfera econômica para a escravidão e para a fuga. As fugas são evidenciadas na historiografia no estudo sobre quilombos. No RS, surgem diversos pequenos quilombos. Quilombos estes que vão além da definição inicial: “toda a habitação de negros fugidos que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados nem se achem pilões neles” (Rei de Portugal ao Conselho Ultramarino, datada de 2 de dezembro de 1740, apud MOURA, 1987: 16). Formam grupos armados, com lideranças na fuga e que se perpetuavam. Segmentos pobres ou perseguidos convergiam aos quilombos. O texto arqueológico, dos lugares (sítios e paisagem) e dos objetos, cria um sentido, uma atmosfera, para compreender os quilombolas. Atmosfera não respeita as ideias criadas pelos próprios grupos a partir de suas realidades para gerar os lugares. A arqueologia segue este caminho, guiado por seu “trajeto” (DURAND, 1997) enquanto ciência. A arqueologia de afro-americanos no Brasil está intimamente ligada à História e à história da ciência, gerando sua atmosfera. Marcando este “trajeto”, Gustaf Oscar Montelius (1843-1921) cria formas de classificação, para coleções estudadas (TRIGGER, 1992: 150), elege variações de forma e decoração, que foram usadas na seriação dos difusionistas no Brasil. Cultura (da Agricultura, um único tipo de cultivo), como organizações humanas (1780), conceito que indica que uma sociedade obedece a padrões definidos, identificáveis,

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como no plantio, visíveis nos artefatos e nos níveis de estratificação diferente de um sítio. Olof Rygh (1866) interpreta pontas de flechas e lanças como “cultura y de un pueblo” da Idade da Pedra (1871), “dos culturas de la Edad de la Piedra y dos pueblos de la Edad de la Piedra” (MEINANDER apud TRIGGER, 1992: 157). A cultura aplicada nas ciências sociais e aos artefatos arqueológicos cria separações culturais por métodos classificatórios e comparativos, nas aproximações e nas diferenças de produção de bens. Gustaf Kossinna (1858-1931), estudando as “tribus” formadoras da “raça germânica” de origem “indo-européia”, em detrimento de outras, divide os vestígios arqueológicos por raças e identifica os povos criativos em contraposição aos povos passivos (TRIGGER, 1992: 159-160). Kossinna busca comprovar a superioridade racial alemã que na dispersão sofria diminuição de suas capacidades criativas. Os amadores, na arqueologia brasileira (cf. André PROUS, 1991), com certeza entraram em contato com os vestígios de afro-americanos, mas não os reconhecem. No Brasil, quilombos foram classificados como áreas de cultura européia ou como áreas de povos não evoluídos, primitivos. O “Branqueamento” criado por arqueólogos amadores se perpetua. A história e a arqueologia, racistas, mascararam a cultura dos afro-americanos maculando-a (SANTOS, 1991: 141). A atmosfera criada por Jonh Myres (1911) e Arthur Evans (1869), onde a cultura material dos conquistados (passivos) era adotada pelos conquistadores (ativos), se perpetua (TRIGGER, 1992: 162). “A sociedade escravista almejava um cativo que se autoconcebesse como propriedade de outrem ou um negro neutralizado pelo respeito e medo ao amo” (MAESTRI, 1984: 70). A atmosfera onde o afro é inferior, já na arqueologia histórica, o percebe como escravo, ou seja, na sua condição sócio-econômica imposta e não como ente humano. A “arqueologia da escravidão” é um exemplo dessa atmosfera. A atmosfera modelada pelos textos do PRONAPA toma o lugar dos amadores, fundamentada na ideia de que as culturas tinham um pólo inicial de origem e deste é que se desenvolviam para o resto do mundo (TRIGGER, 1992: 145). A única área de origem possível era colocada no Velho Mundo; dispersos desta por migração ou por difusão, criam blocos ou áreas culturais similares e adjacentes. Franz Boas (1858-1942), baseado em Fredrich Ratzel (1844-1901), incorpora a difusão à capacidade de invenção local. Invenções simples, com única origem, gerando a difusão e as alterações regionais, conforme sua dispersão a partir do centro de origem. A aura de que os africanos vieram pela mão dos europeus sem cultura própria e alterada pela ação daquela cultura superior (TRIGGER, 1992: 159).

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Nos Estados Unidos, os estudos etnográficos das cronologias das culturas, de Kidder (1885-1963), dos métodos taxionômicos de classificação (tipificações são feitas e ramificações encontradas), alicerçadas por esquemas dendríticos de interpretação, com as sequências etnográficas, as tipologias e as seriações, formulam, ao final, tradições arqueológicas e culturas (TRIGGER, 1992: 178-183). No Brasil, a Arqueologia HistóricoCultural, do Smithsonian Instituition (Betty Meggers e Cliford Evans), e a arqueologia amadora brasileira sofrem a influência de um modelo que mescla ideias de Childe (1961) e Montelius (TRIGGER, 1992: 177). Há uma atmosfera de cientificidade na arqueologia. Meggers e Evans propõem “horizontalidades” e “verticalidades” de maneira difusionista de expansão cultural (1958). A metodologia vertical de um sítio, estratigráfica, classificatória e a seriação do material, intercaladas com as relações comerciais e a datação absoluta realizavam entre sítios o sentido de fases dentro de tradições, fruto de pequenas escavações nos sítios. Este modelo determina-se pelos objetos, perdendo a complexidade do todo. Objetos de afro-americanos viram fases, a exemplo da fase Monjolo (JACOBUS, 1996), da Tradição Neo-brasileira do PRONAPA (1965-1970). Eurico Miller, em Santo Antônio da Patrulha (RS), no vale do Rio dos Sinos, investigava níveis estratigráficos como níveis cronológicos. Vale-se de características diagnósticas típicas para afirmar ocupações, tais como a cerâmica, a habitação, a iconografia, entre outras. As transformações culturais derivam de intervenção externas: contatos culturais, comércio e migrações. A informação contida no artefato dá segurança ao arqueólogo. Há fragilidade científica na orientação indutiva, examinando os materiais empíricos recolhidos, ordenando-os, classificando-os, eventualmente comparando-os, realizando generalizações subjetivas (TRIGGER, 1992: 195). Ford (1938) valora os tipos dentro das culturas, correlaciona às diferenças temporais e especiais. A técnica de Mortimer Wheeler (1890-1976) é mais usada para o campo na escavação e no registro tridimensional. David Clarke (1968) cria o tratamento sistemático à tipologia arqueológica em todos os níveis (TRIGGER, 1992: 192-196). Na mesma época, vemos Mortimer Wheeler (1961: 27) criticar escavações que não deram importância às estratigrafias, buscando apenas estruturas arquitetônicas, o que se atmosfera na arqueologia histórica preocupada em comprovar um pensamento modelar em detrimento do universo subjetivo dos humanos envolvidos nestes sítios. Estas técnicas tornam-se fundamentais. “Es acientífico excavar sin plan ni problemas previos a cuya resolución puedan contribuir los dados, pero si se supiera lo que hay en el suelo antes de la excavación no habría razón para excavar” (WATSON; LEBLANC; & REDMAN, 1974: 34).

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O Histórico-Culturalismo manteve-se até hoje sem renovação de técnicas nem implementação completa de seus pressupostos. Nas inúmeras conversas com Klaus Hilbert, entendi que a análise baseada em fósseis diretores, sistemas classificatórios e seriações geram uma

redução

interpretativa.

Reduções

parciais,

evolucionismos,

funcionalismos,

estruturalismos e outros criaram a aura arqueológica desta época (final da segunda guerra até os anos 80, no Brasil). Hilbert diz que a descoberta do C14 rompe com a negação das antiguidades e dos períodos pré-cerâmicos. Isto justificava uma colocação de José Joaquim Justiniano Proenza Brochado (informação pessoal, em dezembro de 1992, Curso de Mestrado) de que Betty Meggers não estudava o lítico e preocupava-se muito mais com a cerâmica. Hilbert (2006) explica esta imagem por um “tripé” - objeto, tempo e espaço identificando fases e tradições, fórmulas fechadas. A superioridade cultural, a assimilação, o abandono total da cultura, a vantagem de uma sobre as outras dava aos quilombos os aspectos de organização social, de produção de bens superados em sua origem africana pela superioridade da cultura européia. Quando trabalhei pela primeira vez com esta ideia, achava ser uma mera hipótese, mas não, isso é um pensamento que vigora ainda hoje no meio acadêmico. Escutei de uma antropóloga, que há anos trabalha com quilombos: “não devemos africanizar os quilombos”; logo depois indicou sua “origem italiana”. Ela falava da aculturação dos quilombos. “Por mais que deseje, o cientista não pode eliminar inteiramente o seu imaginário para atuar em condições absolutas de objetividade e de neutralidade” (SILVA, 2012). A fala desta antropóloga é a atmosfera da cultura europeia como superior. Repetidas vezes, vimos na história e seu reflexo na arqueologia o que nos escreve Joseph Hörmeyer (1986: 78), em 1850, preparando a propaganda para a entrada de alemães: “certo é que um escravo é castigado também aqui, mas assim como um pai castiga seu filho renitente”. Cristina Nery e Gilian Lopes (1988: 534-535) refutam a ideia de castigos brandos, pois nos escravos domésticos (1860-1880), cujas exigências eram menores, a taxa de aleijados e doentes era grande. A ideia de castigos sugere que existia esta necessidade e, portanto, explicita a imagem de inferioridade de época e atual, que se mantém entre pesquisadores e reflete no senso comum. A escravidão, para alguns, impediu o desenvolvimento de eficientes formas produtivas, mantendo a sociedade em uma estrutura fechada, pois “sendo o escravo a base fundamental da estrutura, qualquer mudança estrutural, partindo da cúpula do sistema, previa o fim da condição de ser escravo como último ato, ou seja, o último recurso” (SANTOS, 1991: 72). Louis Conty (apud MAESTRI, 1984: 66) acredita que a charqueada gaúcha

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produziu menos que a uruguaia e a argentina, pois usava escravos em vez de assalariados. É evidente o eurocentrismo na história, refletindo-se na arqueologia. Ocorre uma renovação na aura, com o marxismo na arqueologia, por ilustrar as lutas sociais e evidenciar a ação dos campesinos e trabalhadores. As ideias nacionalistas e evolucionistas agregam-se ao método de Mortimer Wheeler, dando base à arqueologia marxista na América Latina (TRIGGER, 1992: 170-172). A aura eurocêntrica está mantida. É visível no universo antropológico de Darcy Ribeiro, no “O Processo Civilizatório” (1968), cujo prólogo é de Betty J. Meggers (RIBEIRO, 2001: 15), líder do PRONAPA. Meggers enfatizava que: “o mundo atravessa hoje um estado de sublevação. Guerras, rebeliões, golpes, guerrilhas, greves e outras manifestações de tensão comparecem diariamente nos jornais”. Escreve que nos Estados Unidos estavam enfrentando “conflitos dos guetos negros”, os quais “estão se tornando tão inevitáveis quanto os dias quentes de verão e agora ameaçam destruir porções apreciáveis de nossas principais cidades”. Indica já esta sublevação negra como um empecilho ao bom desenvolvimento. “Os conflitos raciais explodem por todos os lados. As enormes diferenças no acesso às vantagens econômicas e educativas não apenas criam problemas específicos, como difundem seus efeitos dilacerados através de toda a ordem social” (RIBEIRO, 2001: 15). Há uma dubiedade neste discurso, pois ao evocar o fim dos conflitos, explica-os pelo meio em que os afro-americanos vivem. Uma atmosfera típica das explicações marxistas na antropologia e na arqueologia brasileira. Publiquei este livro com muito medo. (...) Meu medo devia ter aumentado quando um conhecido intelectual marxista, ledor de importante editora, deu um parecer arrasador sobre O Processo Civilizatório. (...) Mas surgiram vozes de alento (...) Entre eles, a mais competente arqueóloga que conheço: Betty Meggers (Prefácio à quarta edição venezuelana, RIBEIRO, 2001: 23).

A imagem marxista invadiu a historiografia; há exemplo das obras de Fernando Henrique Cardoso (1962) e Jacob Gorender (1980), tendo como um dos principais seguidores no RS o historiador Mário Maestri. Basendo-se nesses, considerava o escravo como regulador social, pois quanto mais longe da condição de escravo um cidadão se encontrava, mais alto estaria na escala social. Era regulador de propriedade e a propriedade teria valor na cidadania de época; acredita que estes senhores não podiam imaginar sua vida sem seus escravos, sem seu trabalho. Identifica, segundo suas pesquisas, inúmeros casos de escravos valerem mais que uma propriedade, funcionando também como moeda internacional-comercial (MAESTRI, 1984: 25) e como indexador da economia interna (SANTOS, 1991: 71-72).

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Gilbert Durand (2004: 15) diz que “não nos habituaram a ler (...) através de um contexto de remitologização”. A atmosfera do “herdeiro glorioso das Luzes” é que guia este momento da ciência, tanto no positivismo como no materialismo Pelo menos não são nossas teorias eruditas das ciências sociais do século XIX que procuraram desmitificar nossa quietude progressista! Entretanto... Entretanto Saint Simon, Auguste Comte, principalmente, querem fundar, e fundam (no Rio de Janeiro, esta instituição ainda existe...), uma religião nova com sua liturgia, seu temporal, e mesmo seu santoral! E, no entanto... Sabe-se lá por que Karl Marx deixou crescer uma barba tão bonita, a mais bela barba da história moderna? Simplesmente pela sua admiração por um busto helenístico de Júpiter (o qual ele sempre guardou, em Londres, a forma na ante-sala do seu escritório), ele mesmo se sonhando como sendo o Olimpiano fundador dos novos tempos. Teogonia é o primeiro modelo de um certo progressismo: após a idade dos Titãs, após o reino de Cronos, de repente advém a idade das Luzes olimpianas, a idade da ordem jupiteriana... É exatamente com este Zeus do Olimpo que Karl Marx quis conscientemente, muito conscientemente, parecer... Então, clima estranho este do século XIX, aonde o progressismo vai em direção do avanço tecnológico triunfante até nossa própria época, mas onde os construtores de ideologias totalmente míticas (no sentido bem pejorativo como entendiam os positivismos, quer dizer inverificáveis, utópicas, fantasmáticas...) assombram a ascetização racionalista. (DURAND, 2004: 15)

A mítica higienizante do materialismo onde a mão-de-obra afro-americana ocupou todas as instâncias da produção no RS, africanos/escravos como uma abstração. Homogeinização de diferentes grupos linguísticos, que divididos em dialetos e tribos não formam uma unidade, impedidos de permanecer reunidos (SANTOS, 1991: 75). Homogeinização como classe ou cultura, uma mítica positivista/materialista. Os escravos do Brasil meridional foram utilizados no campo, mas em concentração nas charqueadas. Os escravos eram então estenuados por uma jornada de trabalho de 16 horas diárias, apanhando e sendo muitas vezes embebedados para continuar seu trabalho, parando pelo esgotamento ou pela enfermidade (MAESTRI, 1984: 46). A carne salgada barateava o antigo transporte do gado vivo, a produção intensa, competitiva com as saladeiras argentinas e uruguaias que, depois de 1825, passaram a usar assalariados (CORSETTI, 1985: 91). Os sítios de afro-americanos nesta mítica mantêm o “modo de produção” ou um “modelo de subsistência” no “modo de produção capitalista” implementado, relegando ao universo materialista a mítica dos quilombos. A atmosfera em que há a modelação marxista, entendendo o capital industrial como motor da mudança, cria um apelo às relações de poder mecanicamente. O viajante Nicolau Dreys (apud MAESTRI, 1979: 42) considerou a charqueada um estabelecimento penitenciário. No espaço urbano, esta “classe” teria melhorias da vida; e no campo e charqueadas, os escravos estavam mais angustiados (MAESTRI, 1990: 697-698; MAESTRI, 1984: 63).

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Afirma-se que o escravo na cidade se protege entre os seus, os escravos de ganho conquistam a liberdade pela compra de alforrias (MAESTRI, 1990: 699-701-703-705; ISCM, 1994: 51). A circulação livre, jogos, liberdades, eram punidos severamente (MAESTRI, 1990: 699-700) subverte a imagem de classes diferentes entre os escravos ou mesmo do escravo como classe (MOREIRA, 1995: 54). Esta é uma mítica atual nos estudos arqueológicos sobre o negro (CARLE, 2005). As alforrias geravam inúmeras contradições. Roberto dos Santos, ao catalogar uma série de inventários, encontrou um fato curioso em que um escravo possuía escravo (SANTOS, 1991: 112). A pureza ingênua marxista na arqueologia embasada na estratigrafia (TRIGGER, 1992: 186-195) é contra esta imagem. Esta arqueologia evidencia os sítios relacionados a assentamentos de afro-americanos, fruto de discussões internas da ciência no sentido dos limites de seu objeto de estudo em conflito com a história e com a antropologia, principalmente, mas que suscitou na definição da própria ciência como uma disciplina em construção (KERN, 2002: 118). A arqueologia é um estudo da cultura material no seu relacionamento direto com o comportamento humano (KERN, 1996: 7). Ela se ocupa também do ambiente em que gênio (ou gênero humano) se desenvolveu e no qual o homem ainda vive (RAHTZ, 1989: 9). Este mundo pré-determinado por modelos é o mundo da ciência moderna que se arvora a dar sentido à vida pelos modelos (SILVA, 2012). Wheeler (1961: 78) sugeriu que se realizassem escavações em área, com sondagens preliminares para a verificação de estratigrafia. A escavação em área seria possibilitada, para o autor, sem a perda do referencial da estratigrafia, realizando um quadriculamento que manteria “bermas” laterais (paredes em quadrículas) para a visualização estratigráfica e bem como a circulação de operários, com carrinhos e baldes de terra (1961: 80). O método permite uma distinção de diacronia e sincronia, sendo possível detectar os níveis de alteração dos comportamentos dos sítios e, por conseguinte, dos indivíduos que ali se estabeleceram durante o processo de formação dos mesmos. Soluciona problemas nos sítios tais como a composição por uma série de estruturas arqueológicas e arquitetônicas diferenciais à malha arqueológica; a escavação é feita conforme as questões levantadas previamente, pois escavar não é fazer arqueologia, a arqueologia é interpretação. Uma arqueologia hermenêutica. Esta atmosfera atinge os arqueólogos brasileiros. Salete Neme (1988: 31-44) faz uma espécie de arqueologia antropológica com base marxista. O contato visto como “fricção interétnica” ocasionada por duas formas de viver em atração, onde culturas distintas não se exterminaram, mas permitiram uma transformação

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cultural. Nos assentamentos de afro-americanos teríamos no mínimo duas culturas em contato. Uma que liga profundamente o indivíduo à natureza, de maneira mais fixa - “sociedades primitivas” -, e outra de característica mercantilista ligada a um sistema colonial. Funari (1996) inicia uma nova atmosfera mais ligada à própria ideia dos quilombolas sobre suas organizações. As estruturas defendiam a população e sua economia. A ideia econômica ocidental é base permanente desta atmosfera da historiografia e não usufruímos de muitos textos divergentes na arqueologia. O universo da praticidade econômica e política na formação dos quilombos invade a cena de forma mesmo a criar uma atmosfera “primitiva” na constituição dos quilombos, mas não numa análise simbólica de seus criadores. As armas mais comuns eram arcos, flechas, lanças e armas de fogo tomadas das expedições punitivas ou compradas (MOURA, 1987: 1855). É a atmosfera de uma utopia ocidental. A multiplicação dos quilombos constrói um espaço social de autonomia política consciente (SANTOS, 1991: 79). As atividades contra os quilombos eram problemas políticos (MAESTRI, 1979: 72 - 86). O discurso é reproduzido nos textos arqueológicos (ALLEN, 2006). O trabalho arqueológico é usado para referendar o discurso (CARVALHO e PORTO, 2007 [2012]). A Nova Arqueologia desloca a atenção do artefato para os sistemas sócio-culturais que afirmam tê-los produzido e utilizado (processo cultural). Realiza por indagações sobre articulações do homem com o meio. Cientificidade é almejada, os métodos hipotéticodedutivos, a experimentação e a formulação de modelos e leis científicas (MENEZES, 1983), ou seja, a mítica agora transforma vida em mecânica abstrata. Já na atmosfera dos arqueólogos antropológicos (HODDER, 1988: 203) há uma visualização das sociedades conhecidas hoje, com encargos aparentemente antigos, que foram mantidos por uma (con)tradição interna a própria teoria. Os arqueólogos buscam no material seus usos e funções, pensando no todo cultural, inferindo a vontade ou não do artesão, expressa nos traços reconhecidos pelo observador, o qual deveria reconhecer a totalidade dos componentes para identificar uma ação ou momento do acontecimento histórico. A Etnoarqueologia, baseada na etnohistória e etnografia, toma assento mítico na ciência. “A utilização de dados etnográficos na pesquisa arqueológica não é nenhuma novidade, e sempre houve quem tenha recomendado tal procedimento” (MILLER, 1981: 82293). Tom Miller (1981/82) refere que etnoarqueologia se faz com Analogia, em dois níveis: o primeiro, a “analogia etnográfica”, que seria formalista, e o segundo de uma “abordagem histórica direta”. A abordagem histórica direta examinaria o “comportamento de grupos contemporâneos em termos da probabilidade de se poder entender o mesmo comportamento

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diretamente até os períodos pré-históricos” (MILLER, 1981/82: 294). O projeto de pesquisa arqueológica sobre a República de Palmares, Pedro A. Funari (Unicamp), Charles Orser Jr. (Illinois State University) e Michael Rowlands (University College London), estudam a cultura material do afro-americano, pela arqueologia entendendo a existência de uma cultura africana em liberdade, nos quilombos (FUNARI, 1996). Este trabalho, por relacionar os conhecimentos dos afro-americanos diretamente envolvidos, realizou uma amplificação na atmosfera arqueológica de forma inimaginável até então. Há uma aproximação às generalizações empíricas testáveis, conduzindo à teoria. Remontável da generalização à teoria, da teoria à implicação testável, e desta ao teste de proposição. Nos assentamentos negros, considero esta abordagem válida, no sentido de que este grupo foi documentado no passado. Tal modelo foi viável mesmo com uma documentação etnohistórica e etnográfica que estava defasada. O uso da etnografia pela arqueologia gera alguns problemas. A antropologia tende hoje a se colocar em outro nível de relação com seu objeto de estudo. “A única etnografia da qual o antropólogo social tem um conhecimento íntimo é a que deriva de sua própria experiência de vida” (BRANDÃO, 1982: 13). O arqueólogo, que se vale das descrições antropológicas e de viajantes, interpreta com cautela estas fontes, no sentido de perceber onde está uma descrição com menor subjetividade e onde a subjetividade do autor impera (é outra atmosfera a ser estudada). A arqueologia “pós-processual” (TRIGGER, 1992: 351) realiza uma leitura da cultura material através da dicotomia entre materialismo e ideologia, pensando variabilidade na análise do poder; isto se faz por intermédio da cultura material que margeia os grupos, servindo também para o controle da análise. Busca também verificar a dicotomia entre processo e estrutura, onde a permanência pode ser observável através de dados reais, mas não objetivos. Caracteriza-se por um antagonismo entre subjetividade e objetividade do observador (arqueólogo) na interpretação de dados. Esta não estaria confinada, então, a um relativismo. Cabe dizer que no estudo sobre o imaginário “essencialmente motriz e sedimentação estratigráfica, como num terreno com vestígios arqueológicos separados por camadas temporais” há uma consolidação do ente humano simbólico. “O homem é homem por construir imaginários que o impulsionam no processo infindável de humanização. A superstição é um exemplo de racionalização imaginária” (SILVA, 2008, [2012]: 05).

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Considerações finais

O imaginário social estrutura-se principalmente por contágio: aceitação do modelo do outro (lógica tribal), disseminação (igualdade na diferença) e imitação (distinção do todo por difusão de uma parte). No imaginário há sempre desvio. No desvio há potencialidade de canonização. O imaginário explica o “eu” (parte) no “outro” (todo). Mostra como se permanece individual no grupo e grupal na cultura. (SILVA, 2012).

As aspirações à universalidade, “não são mensuráveis, embora perceptíveis”, a mítica agora é o “que cada cultura engendra para si mesma”. A cultura é “um dado objetivo”. A atmosfera, o imaginário, são formas abstratas de um concreto vivido. “A objetividade da cultura diluiu-se nas águas pesadas da atmosfera imaginal”. “O espiritual incide” sobre a cultura material. “O imaginário toma forma material e deforma o espiritual. Dá-lhe carne e sangue”. (SILVA, 2008 [2012]: 05). Atmosfera criada pela própria ciência que é reservatório, um motor que agrega imagens, segue um trajeto criador da atmosfera que se representa nela como um todo. Podemos verificar que de uma atmosfera básica eurocêntrica e sem valorizar outras manifestações, avançou-se para um modelamento da arqueologia brasileira, uma arqueologia científica. Neste processo, o marxismo foi crucial, mas não rompeu com a mítica do progresso. A mistura destas diversas atmosferas hoje criou uma arqueologia de quilombos esquizóide, mas uma nova atmosfera está se constituindo nos estudos de sítios de afro-americanos. Uma série de mitos constitui este Trajeto (DURAND, 1997); cria-se um mundo de modelos pré-determinados e segue-se ideologemas de superioridade cultural. A base principal destes mitos e ideologemas é o evolucionismo. A ciência da cultura material é entendida pelos seus usos e funções na interlocução com o meio. O materialismo histórico (e com isso uma aura econômica) toma a frente das ideias e chegamos a uma arqueologia modelada, numa atmosfera de cientificidade eurocêntrica. Os movimentos sociais (assim como a própria arqueologia social) bebem dos mesmos ideais marxistas e invadem o campo da ciência. As lutas políticas tomam assento na atmosfera que se poderia pensar em conflito entre pesquisadores e comunidade, mas que em realidade falam a mesma língua. Espera-se que futuramente uma nova aura se instale; a que reconhece a existência de uma cultura africana nos sítios de negros no Brasil. Resposta é compreender a atmosfera dos seus sujeitos – os negros. No texto que produzi (CARLE, 2005), trouxe de Rederam (1973), Unidade Sociológica desenvolvida por Funari (1988) associada à Arqueologia Histórica (ORSER,

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1992), para o meu estudo dos afro-americanos no Delta do Jacuí e Rio dos Sinos; segui ideias de Ian Hodder (1988: 179-202), estudando o conteúdo étnico. Apresentei minha Tese como simbólico-religiosa, mas estava no campo do imaginário e não sabia. Klaus Hilbert poderia então dizer que se não está no registro arqueológico, não está na arqueologia, pois só trabalhamos com o que podemos ver e interpretar. O que não pode ser lido hoje não é passível de ser argumentado. E se não podemos argumentar hoje o que não vemos, não podemos condenar os arqueólogos do passado pela impossibilidade de terem visto. O aprendizado anterior, com os professores citados, marca o meu trabalho. Hoje, consolidada a “colaboração” numa relação entre as ciências da Antropologia, Arqueologia, História (SCHWARTCZ, 2000: 11), conservação e restauro e museologia. O trabalho que desenvolvemos no LAMINA (Laboratório Multidisciplinar de Investigação Arqueológica), em conjunto com colegas da museologia (Diego Ribeiro e Pedro Sanches), da Conservação e Restauro (Jaime Mujica), da Arqueologia (Lúcio Ferreira e Aluísio Gomes Alves), da Antropologia (Rogério Rosa), entre outros, nos possibilita isso nos estudos de sítios de negros. Portanto, nossa civilização ocidental tinha sido muito desmitificante e iconoclasta. O mito era relegado e tolerado como o «um por cento» do pensamento pragmático. Bom, sob nossos olhos, em uma aceleração constante, esta visão do mundo, esta concepção do ser, do real (Wesenschau), está desaparecendo. Não somente mitos eclipsados recobrem os mitos de ontem e fundam o epistema de hoje, mas ainda os sábios na ponta dos saberes da natureza ou do homem tomam consciência da relatividade constitutiva das verdades científicas, e da realidade perene do mito. O mito não é mais um fantasma gratuito que subordinamos ao perceptivo e ao racional. É uma res real, que podemos manipular para o melhor como para o pior. (DURAND, 2004: 20)

Referências bibliográficas ALLEN, Scott J. “As vozes do passado e do presente: arqueologia, política cultural e público na Serra da Barriga”. CLIO – Série Arqueologia. V. 20 (1), (pp. 81-101), 2006. BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Diário de campo – antropologia como alegoria. São Paulo: Brasiliense, 1982. CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e escravidão no Brasil Meridional. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1962. CARLE, Cláudio B. A organização espacial dos assentamentos de ocupação tradicional de africanos e descendentes no Rio Grande do Sul, nos séculos XVIII e XIX. Tese de doutorado, PUCRS, Porto Alegre, 2005.

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O PAPEL DA ARQUEOLOGIA NOS CONFLITOS DECORRENTES DE OCUPAÇÕES IRREGULARES NO SAMBAQUI DA PANAQUATIRA – SÃO JOSÉ DE RIBAMAR – MA The role of Archaeology in dispute arising out of occupations of irregular in Panaquatira Shellmound - São José de Ribamar - MA Arkley Marques Bandeira1

RESUMO Este artigo discorre sobre a gestão dos conflitos decorrentes da invasão do Loteamento Costa Atlântica, onde se situa o Sambaqui do Panaquatira, município de São José de Ribamar, Ilha de São Luís – MA. Em 2008, a Superintendência do IPHAN no Maranhão foi informada sobre a existência de habitações irregulares sobre o Sambaqui da Panaquatira. No processo de investigação, múltiplos atores participaram da negociação em torno da proteção e preservação deste sítio arqueológico, a exemplo dos proprietários do Loteamento, Prefeitura de São José de Ribamar, Advocacia Geral da União, Ministério Púbico Federal, Justiça Federal, Polícia Federal, além do IPHAN – MA. Os desdobramentos resultaram na preservação do sítio arqueológico e o comprometimento da não reocupação da área do Sambaqui, bem como outros avanços. Palavras-chave: Sambaqui da Panaquatira – Conflito – Posseiros ABSTRACT This article discusses the management of conflicts arising from the invasion of Allotment Atlantic Coast, where lies the Sambaqui da Panaquatira, São José de Ribamar, Island of São Luís - MA. In 2008 the Superintendent of IPHAN Maranhão was informed about the existence of irregular housing on the Sambaqui da Panaquatira. In the research process multiple actors participated in the negotiations around the protection and preservation of this archaeological site, like the owners of Allotment, at São Jos de Ribamar, Attorney General's Office, Federal Ministry Pubic, Federal Court, Federal Police, beyond IPHAN - MA. The developments resulted in the preservation of archaeological and commitment not reoccupation Sambaqui area, as well as other advances. Keywords: Panaquatira Shellmound- Conflict - Squatters RESUMEN En este artículo se analiza la gestión de los conflictos derivados de la invasión de la área del Costa Atlántica, donde se encuentra el Concheiro Panaquatira, en São José de Ribamar, Isla São Luís - MA. En 2008 se informó a la Superintendencia de IPHAN Maranhão sobre la existencia de viviendas irregulares en lo Concheiro Panaquatira. En el proceso de investigación múltiples actores participaron en las negociaciones en torno a la protección y conservación de la zona arqueológica, al igual que los propietarios, Subdivisión de la Ciudad de San José de Ribamar, Procuraduría General de la Nación, Ministerio Público Federal, 1

Doutor em Arqueologia pelo Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo. Coordenador da Casa da Memória do Ecomuseu do Sítio do Físico, São Luís – MA. Email: [email protected]

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Tribunal Federal, la Policía Federal, así como IPHAN - MA. Los acontecimientos dieron lugar a la preservación del patrimonio arqueológico y el compromiso de no volver a ocupar la zona del Concheiro, así como otros avances. Palabras clave: Concheiro del Panaquatira - Conflicto - Ocupantes

Introdução

A inserção de uma arqueologia concebida como uma forma de ação social e política no presente (TILLEY, 1998) e o reconhecimento de que esta não está livre de seus laços sociais e políticos e que os arqueólogos sempre trabalharam pressionados por questões colocadas pela própria conjuntura e sociedade (UCKO, 1995) desmistificou o conceito de objetividade ou neutralidade científica para a disciplina. Este artigo partilha dos pressupostos da Arqueologia Pública quando aborda o papel da gestão de conflitos em torno da preservação do patrimônio arqueológico, tendo em vista a crescente expansão urbana da Ilha de São Luís - MA em direção à linha costeira o que ocasionou a ocupação irregular do Sambaqui da Panaquatira. O sambaqui da Panaquatira foi identificado em 2006 e registrado no Cadastro Nacional de Sítios Arqueológicos - CNSA – IPHAN (cadastro MA 00113) por Arkley M. Bandeira em 2009. O sítio foi intensamente investigado entre os anos de 2010 e 2012, cujos resultados foram apresentados na Tese de Doutorado deste arqueólogo (BANDEIRA, 2013). No início da pesquisa, foi percebido o aumento gradativo de ocupações no entorno do sítio arqueológico. Tais ocupações situavam-se na área do Loteamento Costa Atlântica, cujas habitações eram rapidamente construídas com materiais perecíveis, a exemplo de madeira, palha e papelão. Este fato foi comunicado de imediato a Superintendência do IPHAN do Maranhão, que realizou a primeira vistoria na área em 2008. Constatado o dano eminente ao sítio arqueológico, foi proposto um grupo de trabalho para acompanhar a situação e propor alternativas para proteção e preservação do Sambaqui da Panaquatira. No decurso de cinco anos de atividades relacionadas a este fato, o patrimônio arqueológico foi apropriado por diferentes atores na condução do processo de implantação do Loteamento Costa Atlântica e os desdobramentos advindos das ocupações irregulares. Esta situação colocou frente a frente os legítimos proprietários, os posseiros e as autoridades.

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Este artigo narra o desencadeamento dos fatos relacionados com a ocupação irregular do Sambaqui da Panaquatira e os desdobramentos dos conflitos resultantes, tendo como cerne a integridade do sítio para o usufruto das atuais e futuras gerações.

A arqueologia do Sambaqui da Panaquatira

O Sambaqui da Panaquatira está localizado no povoado de mesmo nome, na praia da Ponta Verde, no município de São José de Ribamar, baía de São José, na desembocadura do rio Itapecuru, em área estuarina, caracterizada por um rico ecossistema de mangue. Este município, juntamente com São Luís, Raposa e Paço do Lumiar compõe a Ilha de São Luís. O Sambaqui da Panaquatira apresentou em sua zona central a UTM 23M 0606517/9720231 (Longitude O 44° 2' 31'' e Latitude S 2° 31' 51”), com elevação de 34m acima do nível do mar. A extensão efetiva da área com ocorrência de material arqueológico, totalizando 349,80 hectares.

Fig.1 e 2: Inserção geográfica do Sambaqui da Panaquatira, com a demarcação da área de interesse.

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Histórico processual do Sambaqui da Panaquatira

Em 22 de setembro de 2008 foi aberto o Processo IPHAN n.º 01494.000464/200830, para vistoriar o Sambaqui da Panaquatira, tendo em vista as denúncias feitas sobre a existência de habitações irregulares na área do sítio arqueológico, retirada irregular de terra preta e utilização das conchas para pavimentação de estradas. A presença de pessoas na área do sítio e seu entorno estava causando impactos graves ao patrimônio arqueológico, por uma gama de atividades antrópicas: construção de moradias e colocação de cercas nos terrenos, que causaram impactos aos horizontes arqueológicos subsuperficiais; extração de terra preta e conchas para jardinagem que expuseram significativa quantidade de material arqueológico; desmatamentos e queimadas para plantação de roças que contaminaram o material arqueológico; criação de gado que pisotearam os vestígios em superfície, bem como a implantação de redes elétricas e estradas que atraíram posseiros para a região. A permanência desta situação poderia comprometer a investigação arqueológica que estava sendo realizada no sítio arqueológico 2 e impactar irreversivelmente o Sambaqui, inclusive, colocando em risco a integridade dos pesquisadores, que necessitavam diariamente presenciar os conflitos entre os proprietários e posseiros. Naquele momento, toda a área do Sambaqui, bem como seu entorno faziam parte do Loteamento Costa Atlântica, administrado pela Oliveira Empreendimentos Imobiliários, da Sra. Benedita Conceição Morais e Sr. Paulo Roberto Oliveira, que representavam os proprietários, Srs. Felíntro Elísio Cutrim e Edmundo Elísio Cutrim. A vistoria averiguou a procedência das denúncias e constatou os danos causados ao sítio arqueológico em virtude das ocupações irregulares e a extração de terra preta: “os dados arqueológicos perdidos pelo processo de separação da terra-preta do material arqueológico têm prejudicado o avanço de uma pesquisa que tem chamado a atenção da comunidade científica brasileira” (IT nº 260/2008 DT 3ª SR/IPHAN, 2008: 03).

2

A pesquisa realizada neste sítio é vinculada ao projeto Sambaquis do Maranhão, autorizada pela Portaria IPHAN nº. 16/12, Processo nº 01494.000593/2008-28. Este projeto substituiu o antigo projeto acadêmico Os sambaquis do Bacanga, Panaquatira e Paço do Lumiar na Ilha de São Luís - Maranhão: um estudo acerca da paisagem arqueológica, cultura material, padrão de assentamento e subsistência, vinculado ao Programa de Pós-graduação de Arqueologia, Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo. Os resultados das atividades foram incorporados no doutorado deste autor. A portaria de pesquisa foi publicada no D. O. U. n. 245, em 17/12/2008.

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A sugestão do técnico nesta mesma peça foi “o despacho de cópia desta informação técnica a prefeitura e a câmara dos vereadores de São José de Ribamar, com o objetivo de ciência do que está acontecendo na área e com uma proposta de busca de uma solução conjunta...” (IT nº 260/2008 DT 3ª SR/IPHAN, 2008: 04). Constatado e confirmado o impacto ao sítio arqueológico pelo IPHAN, o passo seguinte foi conhecer os responsáveis pelas ocupações, tendo em vista a existência de proprietários e posseiros ocupando lotes no sítio, sem moradores vivendo nas habitações já construídas. Esta situação foi dificultada pelo fato do loteamento não ter sido totalmente vendido, sendo que muitos dos atuais proprietários não tomaram posse dos terrenos e não realizaram o cercamento de suas áreas, favorecendo a ocupação das mesmas por posseiros. Na vistoria ficou evidenciada a disputa de terra e o conflito decorrente de interesses entre os proprietários e posseiros no uso e ocupação dos lotes que estão localizados no Sambaqui da Panaquatira: É preciso salientar que a área, uma vez se encontra em disputa, apresenta grandes riscos à preservação do sítio Panaquatira – Itapari devido às tensões em torno do direito ao usufruto dos seus recursos, assim como a continuidade e aceleração das atividades de exploração de terra preta não está descartada (IT nº 07/2009 DT/IPHAN/3ª SR, 2009: 65).

A tentativa de contatar o Sr. Anderson Herbert Soarez, proprietário da área onde se situa o sítio arqueológico foi frustrada na quarta vistoria realizada pelo IPHAN, no entanto, o técnico da instituição conseguiu conversar com algumas lideranças dos posseiros. Uma delas foi a Sra. Joana que confirmou a formação de uma comunidade no local para ocupar a área (IT nº 08/2009 DT/IPHAN/3ª SR, 2009: 70). Em 20 de janeiro de 2009 o Gabinete do IPHAN – MA encaminhou o processo ao Juiz da 1ª Vara da Comarca de São José de Ribamar, o Sr. Marcio Castro Brandão, para que intercedesse “junto ao proprietário da área em conflito para que a retirada dos invasores e suas respectivas construções não seja feita com o uso de tratores, uma vez que os mesmos poderão destruir o sítio arqueológico protegido” (Ofício nº. 19/2009. 3ª SR/IPHAN, 2009: 83). Aparecem no processo os representantes legais do Loteamento Costa Atlântica, a Sra. Benedita Conceição Morais e o Sr. Paulo Roberto Oliveira, representantes dos proprietários, Srs. Felíntro Elísio Cutrim e Edmundo Elísio Cutrim:

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O Sr. Oliveira afirmou a execução da decisão do juiz de expulsão dos invasores da área ocupada na próxima semana, requerendo a participação do IPHAN na determinação de quais áreas não deverão ser atingidas pelas ações dos tratores que derrubarão as estruturas edificadas, assim como a presença do arqueólogo da instituição para acompanhar tudo (IT nº 64/2009 DT/IPHAN/3ª SR, 2009: 85).

Em 27 de fevereiro de 2009 foi realizada reunião de nivelamento com acordo amigável entre os proprietários do Loteamento Costa Atlântica, IPHAN e este arqueólogo para a proteção e fiscalização do Sambaqui da Panaquatira, quando da reintegração de posse dos lotes ocupados irregularmente aos seus devidos donos. O referido acordo também endossou o entendimento entre os coordenadores do projeto de pesquisa Sambaquis do Maranhão e os representantes do Loteamento Costa Atlântica para cessão permanente dos lotes 11, 12, 13 e 14 da quadra 92 para a pesquisa arqueológica. Em paralelo foi acordada a realização de oficinas de educação patrimonial e construção de um museu de sítio para expor os vestígios coletados e envolver o público na preservação do sítio arqueológico com visitas in loco (IT nº 79/2009 DT/IPHAN/3ª SR, 2009: 88). O entendimento entre as partes legítimas no processo foi firmado em Ofício n. 36, protocolado no IPHAN em 27 de fevereiro de 2009, no qual o procurador legal dos proprietários, Sr. Carlos Amorim, reserva os referidos lotes para pesquisa arqueológica, em área de 1.800m2, confirmando que não haverá danos aos mesmos na reintegração de posse, já que a área será preservada mesmo com implantação do loteamento. Neste intervalo o Juiz da 1ª Vara da Comarca de São José de Ribamar, Sr. Juiz Marcio Castro Brandão, fez valer a execução da reintegração de posse em favor dos Srs. Felíntro Elísio Cutrim e Edmundo Elísio Cutrim, em face aos esbulhos cometidos por um grupo de posseiros no Loteamento Costa Atlântica, inclusive na área do Sambaqui do Bacanga (Justiça Estadual, Processo n.1842/08: 2008: 101). Em 06 de março de 2009 foi realizada a reintegração de posse executada pelo Comandante do 6º BDPM, Major Alexandre Francisco dos Santos, 1º Tenente Neivando Ferreira Leite e pelo Comandante da Operação, Capitão José Maria Padro. Foi acordado entre as partes que as estruturas que estavam sobre o Sambaqui da Panaquatira não seriam mexidas na reintegração de posse, tendo em vista o agravamento do impacto. Neste caso, as edificações seriam mantidas para posterior retirada pelos arqueólogos, quando da retomada das escavações no sítio.

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A repercussão da reintegração de posse foi sentida na Imprensa, que noticiou o conflito entre as partes e abordou pela primeira vez a existência do Sambaqui da Panaquatira na área em litígio: Um documento do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) informou que parte do local é um sítio arqueológico, e por isso deve ser preservado. Funcionários do órgão estiveram no início da manhã na ocupação, a fim de demarcar a área onde antes era um cemitério indígena, para que não fosse atingida por máquinas e tratores (JORNAL PEQUENO, 2009).

Interessante pontuar, que apesar do processo n. 1842/08 não mencionar a proteção do patrimônio arqueológico, a intensa participação do IPHAN – MA e dos coordenadores do Projeto Sambaquis do Maranhão nas negociações para proteção do Panaquatira surtiram efeito e o foco foi deslocado da posse versus propriedade legal para a permissão ou não da ocupação em área do sítio arqueológico: O advogado dos ocupantes, Pedro Jarbas, afirmou que recorreu da decisão expedida pelo juiz Márcio Castro Brandão e entrou com um pedido na Justiça Federal, no intuito de tentar provar que não apenas uma parte, mas quase toda a área faz parte do sítio arqueológico, e que, portanto, se não pode ser habitada, também não poderá ser comercializada. "Neste momento a decisão mais correta e sensata a fazer é desocupar a área, afinal, isso foi determinado judicialmente. No entanto, no futuro a história pode ser outra, pois hoje eles desocupam a área, mas em outro momento podem retornar, caso a decisão seja favorável a eles", relatou (JORNAL PEQUENO, 2009).

Fig.3 e 4: Edificações sendo demolidas na reintegração de posse na área do Sambaqui. Fotos: Jornal Pequeno, 2009.

Passados seis meses da reintegração de posse, novas ocupações irregulares foram observadas na área do Loteamento Costa Atlântica, inclusive, com maior intensidade e organização. Se as primeiras ocupações eram espontâneas e feitas com materiais perecíveis,

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neste segundo momento as edificações eram de alvenaria e estavam espalhadas por uma área bem maior. Com vistas a interromper as novas ocupações, uma segunda reintegração de posse foi autorizada pela Justiça Estadual, conforme Ofício n. 583/2009, do 6º Batalhão Metropolitano do Governo do Maranhão, em 14 de outubro de 2009. Para tanto foi agendada uma audiência prévia entre as partes, inclusive o IPHAN – MA e os coordenadores do Projeto Sambaquis do Maranhão, para compatibilizar a ação policial e a preservação do Sambaqui da Panaquatira. O resultado da reintegração de posse ficou exposto na narrativa do técnico do IPHAN que acompanhou a ação: A área da invasão não afetou os horizontes arqueológicos do Sambaqui da Panaquatira. A propósito, a estrutura mais próxima do referido sítio arqueológico encontra-se a cerca de 500 metros de perímetro. E nem as atividades de execução da liminar da reintegração de posse provocaram qualquer dano ao patrimônio arqueológico nacional. Na oportunidade foi fixada a placa de identificação do sítio arqueológico em questão, como forma de orientar os ocupantes e transeuntes da área (IT nº 351/2009 DT/IPHAN/3ª SR, 2009: 133).

A incompetência da Justiça Estadual em julgar assuntos referentes o patrimônio arqueológico brasileiro, já que se trata de bem difuso e coletivo da esfera da União demandou a entrada do Ministério Público Federal, através da Procuradoria da República, conforme Ofício nº 406/2010 – ASS/PR/MA, de 12 de maio de 2010: Tramita nesta Procuradoria da República o Procedimento Administrativo em epígrafe, instaurado com a finalidade de apurar suposta ameaça ao patrimônio ambiental e arqueológico, decorrente de esbulho praticado por uma quadrilha atuante no município de São José de Ribamar, objeto de Ação de Reintegração de Posse n. 1842/2008, que tramita na justiça daquela comarca. Diante do exposto, com vistas à apuração dos fatos em toda a sua extensão, com base no art. 129, VI, da CF/88, e do art. 8º, II, da Lei Complementar n.º 75/93, requisito a Vossa Senhoria nova vistoria in loco, devendo indicar eventuais responsáveis pela possível degradação do patrimônio arqueológico, bem como adotar as medidas inerentes ao exercício do poder de polícia, no prazo de 20 (vinte) dias (MPF, Procedimento Administrativo nº 1.19.000.000245/2010-90: 2010: 150).

A partir deste documento o processo foi transferido para esfera federal, fato que desagradou os proprietários do terreno, tendo em vista todo o retrabalho de mobilização e nova tramitação do julgamento. Além disso, os custos processuais e de reintegração de posse são bem maiores na esfera federal, do que na estadual. Em atendimento à solicitação do Procurador da República, Sr. Alexandre Soares, o IPHAN promoveu novas vistorias e avaliações complementares para avaliar o estado atual das ocupações em relação à integridade do Sambaqui da Panaquatira: “apesar da expansão da

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notória ocupação da área do condomínio Costa Atlântica, essa não ultrapassou a faixa de 500m de distância do referido sambaqui, não caracterizando dano ao patrimônio nacional” (IT nº 235/2010 CT/ Sup/MA: 2010: 152). Devido o contexto apresentado o MPF informou ao IPHAN – MA que os autos do Procedimento Administrativo nº 1.19.000.000245/2010-90, que tratou dos danos ao Sambaqui da Panaquatira seria enviado à “4ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal, para fins de arquivamento, sendo facultado a Vossa Senhoria apresentar razões contrárias à medida, caso entenda necessário, no prazo de 10 (dez) dias” (MPF – Ofício n. 937/2010 – ASS/PR/MA: 2010: 155). Quando o IPHAN estava prestes a encerrar as atividades no Sambaqui do Panaquatira, uma nova denúncia foi feita pela Sra. Alice Silveira Ribeiro, proprietária de lotes no Condomínio Costa Atlântica e representante da recém-fundada Associação dos Proprietários de Lotes do Loteamento Costa Atlântica – APROLCAI, conforme Certidão do MPF, de 06 de julho de 2010. Neste mesmo período, outro fato agravou o conflito existente na área do Sambaqui do Panaquatira: um cidadão que fazia a vigilância da área para APROLCAI foi torturado e brutalmente assassinado na casa de apoio dos proprietários, em área próxima ao sítio arqueológico. Diante da situação, o IPHAN – MA novamente se manifestou em favor da proteção e preservação do sítio, ratificando as conclusões observadas na vistoria feita por este arqueólogo, que apontou edificações de alvenaria na área do Sambaqui da Panaquatira, o aumento do número de áreas cercadas, além de ações decorrentes dos moradores na área, a exemplo de queimadas, plantio, extração de terra preta e a presença de animais pastando.

Fig.5 e 6: Casas de alvenaria e permanência da extração de terra preta. Fotos: Arkley Bandeira, 2011.

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Cabe citar que os ocupantes deliberadamente optaram por não ocuparem as áreas com conchas e cerâmicas para não terem problemas com as autoridades. Provavelmente, os posseiros foram aconselhados a se manterem sempre em áreas não caracterizadas como sítio arqueológico, ou seja, sem conchas.

Desdobramentos: avanços e retrocessos Confirmada a permanência dos danos ao Sambaqui da Panaquatira partiu-se para proposição de medidas a curto, médio e longo prazo, tendo em vista a proteção, preservação, pesquisa e socialização deste sítio. Para tanto, o IPHAN – MA convocou os principais responsáveis pela proteção do patrimônio arqueológico, bem como os representantes da APROLCAI e este arqueólogo para uma gestão compartilhada do problema: Venho pelo presente solicitar as presenças de Vossa Senhoria na sede do IPHAN no dia 05 de janeiro de 2011, às 15 horas, para reunião junto com os representantes da empresa Oliveira Empreendimentos Imobiliários Ltda, Advocacia Geral da União, Procuradoria Federal, Polícia Federal e representantes do IPHAN, com o objetivo de discutir a proteção do sítio arqueológico Sambaqui da Panaquatira (Ofício IPHAN nº. 680/2010 GAB/IPHAN/MA: 2010: 176).

Os desdobramentos da reunião apontaram para uma gestão compartilhada em torno da proteção, preservação e socialização do Sambaqui da Panaquatira. Neste espaço foi construída uma agenda, que definiu ações prioritárias para os envolvidos:

 IPHAN – MA: gestão de todo o processo e a comunicação entre os parceiros, bem como o envolvimento da Prefeitura de São José de Ribamar;

 Advocacia Geral da União: acompanhamento dos tramites jurídicos no MPF, representando juridicamente o IPHAN;

 Ministério Público Federal: fiscalização das políticas de proteção ao sítio arqueológico;

 Polícia Federal: apoio nas ações de fiscalização e estudos complementares no Sambaqui;

 Prefeitura Municipal de São José de Ribamar: apoio político e administrativo aos parceiros no estudo e divulgação do sítio;

 Projeto Sambaquis do Maranhão: realização de estudos técnicos para delimitação e avaliação arqueológica do sítio;

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 APROLCAI: mobilização dos proprietários em torno da preservação e proteção do Sambaqui da Panaquatira. Além disso, foi acordado que as medidas mais urgentes seriam a delimitação do Sambaqui da Panaquatira para colocação de uma cerca, sinalização, remoção de todas as habitações irregulares na área do sítio; vigilância constante e ações de socialização do patrimônio arqueológico. Um episódio importante na gestão do Sambaqui da Panaquatira e do patrimônio arqueológico de São José de Ribamar foi a reunião com o Prefeito do município, Sr. Gil Cutrim, em 14 de janeiro de 2011, que contou com a presença das principiais autoridades envolvidas e resultou em uma visita ao sítio arqueológico.

Fig.7 e 8: Autoridades na Prefeitura de São José de Ribamar, em reunião do grupo de trabalho e visitação ao Sambaqui da Panaquatira. Fotos: ASSCOM PMSJR, 2011.

Nesta reunião ficou firmada a delimitação da área do Sambaqui da Panaquatira para colocação de uma cerca e a construção de um museu em São José de Ribamar para socializar o conhecimento produzido na região e para guarda do acervo arqueológico no próprio município: Kátia Bogéa informou que uma das primeiras medidas a serem adotadas será delimitar toda a área do sítio arqueológico. A superintendente do IPHAN disse acreditar que, em função da riqueza história encontrada no local, o governo federal não medirá esforços para financiar a construção do Museu (ASSCOM PMSJR: 2011: 1).

Em 07 de fevereiro de 2011 foi protocolado no IPHAN o relatório com o Levantamento Topográfico e da delimitação da área para colocação de cerca e o Laudo do estado de conservação do Sambaqui da Panaquatira, São José de Ribamar – MA, de autoria do Geógrafo Bernardo Costa Ferreira e do Arqueólogo Arkley Marques Bandeira,

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respectivamente. Esta ação foi voluntária e contou com o apoio da Prefeitura Municipal de São José de Ribamar.

Fig. 9, 10 e 11: Atividade de delimitação do Sambaqui da Panaquatira, com a definição da área a ser cercada. Fotos: Arkley Bandeira, 2011.

Sobre o museu a ser construído foi informado que: A ideia de construir o Museu da Arqueologia em São José de Ribamar nasceu devido ao fato do município abrigar um importante sítio arqueológico, localizado no polo turístico de Panaquatira. O sítio arqueológico Sambaqui de Panaquatira começou a ser estudado na década de 60 pelo arqueólogo paraense Mário Simões. Mas foi através de estudos recentes realizados pelo arqueólogo Arkley Bandeira que foram descobertos vestígios de um povo que habitou o lugar a, pelo menos, seis mil anos Antes de Cristo. Tudo indica que os habitantes formavam uma comunidade organizada de pescadores. A riqueza história deste local é muito vasta. O Museu, além de todo material que ainda está sendo descoberto no Sambaqui Panaquatira, também abrigará peças de outros sítios arqueológicos da Grande Ilha, por exemplo”, explicou Bandeira(ASSCOM PMSJR: 2011: 1).

Em 16 de fevereiro de 2011, a Polícia Federal abriu inquérito policial para apurar possível crime ambiental no Sítio Arqueológico Panaquatira e solicitou ao IPHAN – MA informações acerca dos possíveis responsáveis pelos danos ao patrimônio arqueológico (Ofício n.º 35/2011 GAB/DEPOM/DREX/SR/DPF/MA: 2011: 191).

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Fig. 12 e 13: Fiscalização da Polícia Federal no Sambaqui da Panaquatira, com cobertura da imprensa. Fotos: Arkley Bandeira, 2011.

Por sua parte, a APROLCAI realizou em 17 de abril de 2011 um mutirão de ações para preparação da terceira reintegração de posse e ocupação imediata dos lotes pelos seus proprietários de direito. Na ocasião foi aberto um espaço para o IPHAN e este arqueólogo realizarem esclarecimentos sobre a importância do Sambaqui da Panaquatira e as responsabilidades dos moradores legais para com a sua proteção e preservação (Ofício APROLCAI n.º 5/2011). Diante dos fatos apresentados o MPF instaurou Inquérito Civil Público a pedido do IPHAN – MA para apurar os novos riscos ocorrentes ao Sambaqui da Panaquatira, tendo em vista a permanência das ocupações irregulares na área deste sítio, inclusive com adensamento populacional e aumento do trânsito de pessoas na área de interesse cultural. Para tanto, solicitou esclarecimentos acerca da suficiência das medidas de proteção adotadas (Ofício n.º689/2011 – ASS/MP/MA: 2011: 239). Em cumprimento ao acordo firmado entre os envolvidos com a gestão do Sambaqui da Panaquatira, o IPHAN contratou a empresa Ferreira Junior Engenharia Ltda para realização da cerca do Sambaqui. Em 16 de novembro de 2011 iniciaram-se as obras de construção da cerca para o perímetro delimitado pela topografia.

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Fig. 14, 15 e 16: Cerca do Sambaqui da Panaquatira e placa de sinalização do sítio. Fotos: Arkley Bandeira, 2012.

Em 09 de janeiro de 2012, a Procuradoria Federal solicitou o ingresso do IPHAN na relação processual, como assistente dos autores, tendo em vista a existência do Sambaqui da Panaquatira. Por se tratar de matéria de interesse federal, já que o patrimônio arqueológico é tratado na esfera da União e sendo competência do IPHAN zelar pela proteção e preservação do patrimônio arqueológico, o interesse da Autarquia estaria justificado. A partir deste momento todo o processo passou a tramitar na esfera federal (PARECER PF/IPHAN/MA n.º 3/2012: 2012: 271). Para tanto, foram realizadas Notificações Extrajudiciais em 05 de janeiro de 20123, para os posseiros que possuíam propriedades na área cercada, pois uma nova reintegração de posse foi solicitada pelos proprietários, desta vez tramitando na 8ª Vara da Justiça Federal do Maranhão, conforme Processo n.º 18192 – 85.2011.04.01.3700 (Ofício n.º203/2012/8ª VARA/SECVA/JF/MA: 2012: 285). 3

Assinaram as notificações extrajudiciais a Sra. Zilmar Silva e o Sr. Raimundo Lion Meireles, ambos com edificações na área do Sambaqui da Panaquatira. O Sr. Biné, apontado pelos ocupantes como o responsável pelas invasões também foi notificado, apesar de sua propriedade situar-se na área externa ao perímetro cercado. Ele recusou assinar o documento.

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Fig. 17 e 18: Entrega das notificações extrajudiciais para os posseiros em área do Sambaqui. Fotos: Arkley Bandeira, 2012.

Tendo em vista a solicitação do Sr. Juiz da 8ª Vara para delimitação da área a ser desocupada é fato que algumas porções do sítio ficaram de fora da cerca, por se tratarem de porções descontínuas do Sambaqui da Panaquatira. Esta situação foi notificada ao IPHAN e em 17 de abril de 2012 solicitou a este arqueólogo um Parecer Especializado, com base nos estudos que vêm sendo realizados no Sambaqui da Panaquatira, que seja suficiente para proteção deste sítio (Ofício n.º 208/2012 GAB/IPHAN/MA: 2012: 291). Tendo em vista a ampliação da área a ser protegida no sítio arqueológico para além do perímetro cercado, uma nova rodada de estudo foi solicitada à Justiça Federal para tratar dos casos onde o Sambaqui da Panaquatira localiza-se em área dos proprietários legalmente constituídos e onde o sítio está inacessível pela existência de muros e cercas. O último documento anexado ao processo foi o Memorando da Procuradoria Federal do IPHAN, emitido em 04 de setembro de 2012, que tratou da Ação da Reintegração de Posse, solicitando a manifestação da Autarquia, enquanto os autores do processo se manifestassem em relação aos documentos solicitados pelo Juiz da 8ª Vara da Justiça Federal (Memorando n. 113/2012 – Procuradoria Federal/MA/IPHAN: 2012: 306). Com relação às ações de socialização propostas pelo IPHAN – MA, foi realizado um grande evento para divulgar ao público local e regional a importância da proteção, preservação, conhecimento e divulgação do patrimônio arqueológico, em especial o maranhense. A estratégia foi aliar todos os atores envolvidos com a pesquisa arqueológica na organização do Seminário Nacional Arqueologia e Sociedade: construindo diálogos e parcerias para preservação do patrimônio arqueológico do Maranhão.

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O evento aconteceu entre os dias 17 e 20 de agosto de 2011, no auditório central da Universidade Federal do Maranhão e reuniu mais de 400 participantes de distintas regiões do país e do exterior.

Fig.19 e 20: Mesas Redondas para discutir a produção da arqueologia maranhense sobre a ótica interdisciplinar, com ênfase no projeto acadêmico Sambaquis do Maranhão. Foto: IPHAN, 2011.

Além disso, foi organizada no local do evento a Exposição Maranhão Arqueológico, que contou com mais de 850 visitantes nos três dias de funcionamento.

Fig.21: Exposição Maranhão arqueológico antes da abertura oficial. Foto: IPHAN, 2011.

Fig.22: Visitantes apreciam a Exposição Maranhão. Foto: IPHAN, 2011.

Os desdobramentos do Seminário refletiram-se na divulgação do patrimônio pelo Departamento de Jornalismo da TV Mirante, afiliada da Rede Globo, que produziu a série de reportagem Arqueologia: marcas do passado, veiculada entre 16 e 20 de agosto de 2011, nas duas edições diárias do JM TV, enfocando o patrimônio arqueológico maranhense.

Considerações finais

Este artigo sintetizou com brevidade o histórico processual surgido de denúncias de destruição e delapidação do Sambaqui da Panaquatira por ocupações irregulares e extração de terra preta e concha.

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O desenrolar do processo envolveu múltiplos atores, com interesses e anseios diferenciados, mas que se uniram em torno da preservação deste sítio arqueológico. Ao longo de mais de cinco anos de processo todos os entes da administração pública brasileira, foram envolvidos direta ou indiretamente na gestão dos conflitos decorrentes, primeiramente entre os proprietários e posseiros; e da competência jurídica para julgar o processo: esfera estadual ou federal. Além disso, alguns órgãos que inicialmente acompanharam timidamente o desenrolar dos fatos, em algum momento se fizeram presentes na luta pela proteção e preservação do Sambaqui da Panaquatira. Não é exagero afirmar que apesar de parcela significativa do Sambaqui ter sido afetada por atividades antrópicas, muitos avanços foram alcançados, tendo em vista a ação coordenada para uma gestão compartilhada para a proteção, preservação, pesquisa e socialização do bem cultural. O primeiro avanço foi o envolvimento de distintas esferas do poder no processo do Sambaqui da Panaquatira, situação que reacendeu o pacto pela gestão compartilhada dos conflitos na sociedade presente e chamou a atenção para a situação do patrimônio arqueológico maranhense. Outro avanço se deu com a mobilização tanto dos proprietários, como dos posseiros, em torno da preservação e proteção do Sambaqui da Panaquatira. Esta ação relativamente simples evitou que novas edificações fossem construídas na área do sítio delimitada para proteção e preservação. Em relação à produção e socialização do conhecimento, as pesquisas arqueológicas no Sambaqui do Panaquatira resultaram em duas teses de doutorado já defendidas e uma terceira em etapa de conclusão4. No aspecto de divulgação, o Seminário Nacional Arqueologia e Sociedade: construindo diálogos e parcerias para preservação do patrimônio arqueológico do Maranhão e toda a programação do evento colocou a Arqueologia Maranhense no mapa da pesquisa científica do Brasil, apontando as potencialidades e desafios na proteção, preservação, pesquisa e socialização do patrimônio cultural regional. 4

Ocupações humanas pré-coloniais na Ilha de São Luís – MA: inserção dos sítios arqueológicos na paisagem, cronologia e cultura material cerâmica, de autoria de Arkley Marques Bandeira; e Bacanga, Panaquatira e Paço do Lumiar: estudo das indústrias líticas presentes em sambaquis na Ilha de São Luís, Maranhão, por cadeias operatórias e sistema tecnológico, de autoria de Abrahão Sanderson Nunes F. da Silva, defendidas no PPG – MAE – USP. A tese em finalização é de autoria de Renato Akio Ikeoka, com o título Análise de cerâmicas arqueológicas do Sambaqui do Bacanga e Panaquatira (MA) por EDXRF Portátil, a ser defendida no Laboratório de Física da Universidade Estadual de Londrina.

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Para não falar apenas dos aspectos positivos, muitas ações se perderam pelo caminho e necessitam de mais atenção para o seu fortalecimento, é o caso do Museu de Arqueologia de São José de Ribamar. A permanência da mesma estrutura governativa permitirá que nova rodada de negociação foque o tema da socialização do patrimônio arqueológico no próprio município e a responsabilidade da municipalidade em conduzir este processo. Outro ponto a ser enfrentado é a vigilância da área cercada pela polícia. Apesar das constantes vistorias feitas pelo IPHAN e os participantes do Projeto Sambaquis do Maranhão terem constatado que a área cercada permanece íntegra e sem ocupação, que a sinalização e a cerca não foram depredadas, faz-se necessária ações periódicas de monitoramento da área. O caso apresentado é um exemplo típico do papel político e social da arqueologia no enfrentamento das agendas mais atuais da contemporaneidade. O papel da disciplina na condução do processo e como aliada dos agentes de preservação e proteção do bem arqueológico se desdobrou em ações até então inexistentes para o Estado do Maranhão. O comprometimento da arqueologia resultou no fortalecimento dos laços institucionais em torno do patrimônio cultural, através da ação participativa de distintas vozes. Os fatos narrados neste artigo não estão encerrados. No fluxo e refluxo das ações institucionais e civis, muitos avanços estão por vir e a arqueologia tem o seu papel de fomentadora desses processos, pois como bem lembra Tilley, uma arqueologia apolítica é um mito acadêmico perigoso. Toda arqueologia é política (TILLEY, 1998).

Referências bibliográficas ASSOCIAÇÃO DOS PROPRIETÁRIOS DO LOTEAMENTO CONSTA ATLÂNTICA APROLCAI. Ofício APROLCAI n.º 5/2011. BANDEIRA, Arkley Marques. Laudo do estado de conservação do Sambaqui da Panaquatira, São José de Ribamar – MA. São Luís, 2011. ____________. Ocupações humanas pré-coloniais na Ilha de São Luís – MA: inserção dos sítios arqueológicos na paisagem, cronologia e cultura material cerâmica. Tese de Doutorado. 2013. Tese. Programa de Pós-graduação em Arqueologia. Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2013. FERREIRA. Bernardo Costa. Levantamento Topográfico e de delimitação da área do Sambaqui da Panaquatira para colocação de cerca. São Luís, 2011. IPHAN. IT nº 260/2008 DT 3ª SR/IPHAN, 2008: 03. _______. IT nº 05/2009 DT/IPHAN/3ª SR, 2009: 57. _______. IT nº 07/2009 DT/IPHAN/3ª SR, 2009: 65.

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_______. IT nº 08/2009 DT/IPHAN/3ª SR, 2009: 70. _______. Ofício nº. 19/2009. 3ª SR/IPHAN, 2009: 83. _______. IT nº 64/2009 DT/IPHAN/3ª SR, 2009: 85. _______. IT nº 79/2009 DT/IPHAN/3ª SR, 2009: 88. _______. IT nº 96/2009 DT/IPHAN/3ª SR, 2009: 118. _______. IT nº 351/2009 DT/IPHAN/3ª SR, 2009: 133. _______. IT nº 235/2010 CT/ Sup/MA: 2010: 152. _______. Ofício IPHAN nº. 680/2010 GAB/IPHAN/MA: 2010: 176. _______. Ofícios 177 e 178/2011/GAB/IPHAN/MA: 2011: 220. _______. Ofício n.º 208/2012 GAB/IPHAN/MA: 2012: 291. _______. PARECER PF/IPHAN/MA n.º 3/2012: 2012: 271. _______. Memorando n. 113/2012 – Procuradoria Federal/MA/IPHAN: 2012: 306. JORNAL PEQUENO, São Luís, Edição. Online, 2009. JUSTIÇA FEDERAL. Ofício n.º203/2012/8ª VARA/SECVA/JF/MA: 2012: 285. _______. Ofício n.º203/2012/8ª VARA/SECVA/JF/MA: 2012: 289/290). MARANHÃO. Justiça Estadual do Maranhão, Processo n.1842/08: 2008: 101. MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. Ofício nº 406/2010 – ASS/PR/MA, 2010. ________. Ofício n. 937/2010 – ASS/PR/MA: 2010: 155. ________. Ofício n.º689/2011 – ASS/MP/MA: 2011: 239. POLÍCIA FEDERAL. Ofício n.º 35/2011 GAB/DEPOM/DREX/SR/DPF/MA: 2011: 191. PREFEITURA MUNICIPAL DE SÃO JOSÉ DE RIBAMAR. ASSCOM PMSJR: 2011: 1. SANDERSON, Abrahão Nunes F. da Silva. Bacanga, Panaquatira e Paço do Lumiar: estudo das indústrias líticas presentes em sambaquis na Ilha de São Luís, Maranhão, por cadeias operatórias e sistema tecnológico. Tese. Programa de Pós-graduação em Arqueologia. Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2013. TILLEY, Christopher. “Archaeology as socio-political action in the present” In: Reader in Archaeology post-processual e cognitive approaches. David S. Whitley. New York e London: Routledge, 1998, p. 305-330.

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UCKO, Peter (ed.).Theory in Archaeology a world perspective. New York e London: TAG Routledge, 1995.

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“TRÁFICO” DE MATERIAL ARQUEOLÓGICO, TURISMO E COMUNIDADES RIBEIRINHAS: EXPERIÊNCIAS DE UMA ARQUEOLOGIA PARTICIPATIVA EM PARINTINS, AMAZONAS "Traffic” of Archaeological Materials, Tourism and Riverine Communities: Participatory Archaeology Experiences in Parintins, Amazonas State, Brazil Helena Pinto Lima1 Bruno Marcos Moraes2 Maria Tereza Vieira Parente3

RESUMO O presente artigo formaliza uma discussão iniciada durante o I SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE GESTÃO DO PATRIMÔNIO ARQUEOLÓGICO PANAMAZÔNICO, levado a cabo na cidade de Manaus/AM, novembro de 2007. Nessa importante ocasião foram discutidos e delineados os parâmetros para a gestão do patrimônio arqueológico amazônico. O tema deste artigo foi tratado na mesa “tráfico de material arqueológico”. Apresentaremos um projeto de pesquisa desenvolvido em parceria com a Superintendência Estadual do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) no Amazonas, que se mostrou uma experiência bem sucedida, e que pode ser utilizada para se (re)pensar as dezenas de situações semelhantes que ocorrem no interior da Amazônia e quiçá, em outras localidades do país. Palavras chave: Tráfico de bens arqueológicos, Turismo, Arqueologia Participativa. ABSTRACT This paper formalizes a discussion started during the I INTERNATIONAL SEMINAR ON MANAGEMENT OF ARCHAEOLOGICAL HERITAGE PAN-AMAZON, carried out in the city of Manaus, Amazonas, in November 2007. On this important occasion were discussed and outlined the parameters for the management of the archaeological heritage of the Amazon. The theme of this article was treated on the table "trafficking in archaeological material”. We will present a research project developed in partnership with the State Superintendent of the Institute of Historical and Artistic Heritage (IPHAN) in Amazonas, which proved a successful experiment, which can be used to (re)consider the dozens of similar situations occurring in the Amazon region and perhaps in other parts of the country. Keywords: Trafficking of archaeological, Tourism, Archaeology Participatory. RESUMEN 1

Museu Paraense Emílio Goeldi Av. Perimetral 1901, Terra Firme Belém/PA. Cep: 66070-530 [email protected] 2 PPG-Ciências do Ambiente e Sustentabilidade na Amazônica/Universidade Federal do Amazonas [email protected] 3 Programa de Pós-Graduação em Arqueologia do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (mestrado inconcluso) [email protected]

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En este trabajo se formaliza una discusión iniciada durante el I Seminario Internacional de Gestión del Patrimonio Arqueológico PAN AMAZÓNICO, llevado a cabo en la ciudad de Manaus /AM, noviembre de 2007. En esta importante ocasión se discutieron y expusieron los parámetros para la gestión del patrimonio arqueológico del Amazonas. El tema de este artículo se trató en la mesa "tráfico de material arqueológico". En este artículo se presenta un proyecto de investigación desarrollado en colaboración con la Superintendencia Estatal del Instituto del Patrimonio Histórico y Artístico Nacional (IPHAN) en Amazonas, que resultó ser una experiencia exitosa, y que puede ser utilizado para (re)pensar en las muchas de situaciones similares que se producen en el Amazonas y tal vez en otras partes del país. Palabras clave: Tráfico de arqueológico, Turismo, Arqueología Participativa. 1. Introdução: o Projeto Baixo Amazonas

Este artigo visa apresentar as ações, resultados e reflexões oriundas das pesquisas arqueológicas empreendidas entre os anos de 2004 e 2008 no município de Parintins/AM, sob a égide do Projeto Baixo Amazonas. A região representa um campo reconhecidamente fértil para estudos arqueológicos ao suscitar questões científicas de relevância para o entendimento da ocupação humana na Amazônia, bem como para a construção de uma história – e préhistória – em âmbito local e regional. Além disso, trabalhos educativos desenvolvidos junto às pesquisas arqueológicas em muito têm contribuído para uma reconfiguração dos debates e ações a esse respeito. Sabe-se que vários foram os grupos indígenas que habitaram a região, e o resultado dessas ocupações é visível através da presença de inúmeros sítios arqueológicos encontrados por todo o município, a maioria deles localizados na zona rural, sob as comunidades que hoje os habitam. O próprio nome que leva o município de Parintins se dá em função de um dos grupos indígenas que ocupou a área, os Parintins ou Parintintins (SANT’ANNA NERY, 1899:229). Parintins ocupa uma região estratégica em termos de comunicação e recursos. Observada de uma perspectiva geográfica macro-regional, ali há a confluência de uma série de rios de importância regional de médio e grande porte, tal como o Trombetas, Nhamundá, Paraná do Ramos e o Andirá. Trata-se de uma intrincada rede aquática de rios, lagos e furos, que intercomunicam os corpos d’água mais robustos. Situada à ilha de Tupinambarana, na margem direita do rio Amazonas, e ocupando um planalto escarpado, a cidade de Parintins é sede do município mais a leste do atual Estado do Amazonas, fazendo divisa com o estado do Pará (figura 1). Outra menção importante é a toponímia da ilha, local onde Pedro Teixeira deparou-se com grupos Tupinambás, em meados do séc. XVII (UGARTE 2010).

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Fig.1: Mapa de localização do município de Parintins, Amazonas.

Nas últimas décadas, o reconhecimento nacional e internacional da riqueza natural, cultural e arqueológica do município de Parintins tem levado a um forte crescimento do turismo na região. No entanto, este rápido e desordenado crescimento, aliado ao considerável hiato existente entre a legislação brasileira quanto ao patrimônio arqueológico e a sociedade, levou Parintins a se tornar foco de preocupação com a evasão de peças arqueológicas, o que tem gerado sérias preocupações quanto a esse patrimônio. O Projeto Baixo Amazonas surgiu como uma iniciativa conjunta entre IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e PAC – Projeto Amazônia Central (MAE-USP), tendo inicialmente o objetivo geral de empreender levantamentos arqueológicos com vistas à localização, georeferenciamento e cadastramento de sítios e coleções arqueológicas em doze municípios do médio e baixo Amazonas4, no Estado do Amazonas. Estes trabalhos resultaram em uma avaliação dos sítios arqueológicos e do potencial científico das áreas visitadas, apontando sugestões e medidas a serem tomadas pelo IPHAN em curto,

4 O trabalho teve um caráter de diagnóstico preliminar nos municípios de Nhamundá, Parintins, Barreirinha, Boa Vista do Ramos, Maués, Urucará, Urucurituba, São Sebastião do Uatumã, Itapiranga, Silves, Itacoatiara e Manaus.

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médio e longo prazo (LIMA e SILVA, 2005). No município de Parintins foram identificados cinco sítios arqueológicos, descritos no mesmo texto (idem, p. 26-38). Em função de frequentes denúncias encaminhadas ao IPHAN que colocavam a comercialização de peças arqueológicas como maior causa de sua crescente evasão, o PBA intensificou as ações em Parintins para melhor entender e lidar com essa situação. Para isso, inicialmente, empreendemos um levantamento arqueológico na área do município e procuramos fomentar o interesse local acerca da arqueologia e das questões patrimoniais a ela associadas, dialogando com diversas clivagens da população local (professores, alunos, trabalhadores rurais, comunidade acadêmica etc). Como continuidade do mesmo Projeto Baixo Amazonas, as ações arqueológicas em Parintins se concentraram no sítio Santa Rita (AM-PT-01), que foi intensamente pesquisado entre os anos de 2007 e 2008 através de uma etapa de delimitação e escavação. Simultaneamente, foi elaborado e executado um programa de Educação Patrimonial cujas ações centraram-se na rede de comunidades associada à sede Santa Rita. Seu objetivo principal foi promover a preservação do patrimônio arqueológico e dos processos socioculturais de produção da diversidade no presente. Assim, trabalharemos com dois eixos principais: (a) o das usuais preocupações com a garantia de que as potenciais histórias e diversidades condensadas nos estratos arqueológicos sejam interpretadas cientificamente e de que sua divulgação seja efetiva e (b) o dos conhecimentos e práticas locais que embasam outras teorias e orientam outras posturas frente ao registro arqueológico, utilizando como via de acesso as relações que os moradores das comunidades estabelecem entre si e com seu ambiente natural e cultural a partir dos artefatos arqueológicos. Vale ressaltar que a incorporação da problemática da educação às pesquisas em arqueologia encontra espaço privilegiado no centro do atual contexto de valorização da diversidade. Afinal é através dela que diferentes estratégias vêm sendo elaboradas para reverter os graus de destruição dos sítios arqueológicos e promover a valorização da diversidade sociocultural, bem como fortalecer laços de cidadania e relações de pertencimento. É certo que tal movimento vem se desdobrando através de processos que dialogam – e por vezes se sobrepõem – como por conta de movimentos próprios à disciplina (arqueologia pública), por insumos promovidos pela legislação (educação patrimonial) ou, até mesmo, por seu diálogo com outros campos do saber (musealização da arqueologia) e do mercado (turismo, desenvolvimento local, licenciamento ambiental etc.). Nesse sentido, como apontado por Carneiro, o tema da “arqueologia pública” no Brasil geralmente mescla distintos “referenciais teóricos e metodológicos, uma vez que o movimento de aproximação do

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patrimônio arqueológico junto à sociedade iniciou-se no âmbito de outros campos do conhecimento, como a museologia e a educação patrimonial” (Carneiro, 2008) – quadro que tem avançado com a publicação de diversos trabalhos acadêmicos5. Já no que se refere à educação patrimonial, se há algum tempo tratava-se fundamentalmente de ações realizadas no âmbito dos museus e mais restritas aos sítios e monumentos do período colonial (SCHAANS, 2007), nos últimos tempos, temos assistido a um crescimento de experiências educacionais que partem da diversidade de fontes patrimoniais para estimular públicos a se apropriarem de referências históricas como forma de valorização de sua herança cultural6. A esse respeito, como observado por Bruno, é importante destacar “que a legislação ambiental, em franco desenvolvimento nos últimos anos, contribuiu de forma expressiva para a valorização da pesquisa arqueológica, impulsionando, inclusive, o desdobramento da legislação patrimonial, com vistas ao fortalecimento da ação educativa e do tratamento curatorial dos acervos” (BRUNO, 2005: 239). Em termos mais concretos, é preciso lembrar que o principal marco legislativo que impulsionou o deslocamento e o crescimento em questão foi a Portaria nº 230 do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN, 2002) que trata da divulgação do conhecimento científico produzido e da implementação de atividades de educação patrimonial no contexto de processos de licenciamento ambiental (CADARELLI, 2007; SCHAAN, 2007; LIMA, 2007; MENESES, 2007; BRUNO, 2005).

2. A Área de Estudo: a Comunidade Santa Rita e a Região da Valéria

A Comunidade de Santa Rita de Cássia está situada na margem direita do rio Amazonas, na região localmente conhecida como Serra da Valéria, a cerca de 50 km a leste da sede do município de Parintins. Constitui-se como a maior comunidade da região, que engloba ainda outras comunidades menores, ou “colônias”, como Samaria, Bete Semes, São Paulo e Betel (Figura 2). É a única comunidade que permite acesso por via terrestre a partir da Balsa Vila Amazônia-Parintins, numa estrada com 59km de extensão. Por esta razão, Santa 5

Publicações de artigos na Revista Arqueologia Pública (UNICAMP), Revista do MAE, Revista do Emílio Goeldi, e as produções acadêmicas de Márcia Bezerra de Almeida, (2003), Tatiana Costa Fernandes (2008) e Carla Gibertoni Carneiro são alguns exemplos de como as produções que dizem respeito às relações entre arqueologia e educação encontram-se em franco crescimento. 6 Os debates acerca da pertinência em desenvolver ações voltadas para o uso do “patrimônio como fonte primária de conhecimento” (Horta et al. 1999), com vistas à preservação dos ‘bens culturais’ foram trazidas para o Brasil da Inglaterra em meados da década de 1980.

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Rita tornou-se um polo local, sendo a maior comunidade e a que concentra bens e serviços municipais, como é o caso da escola municipal Marcelino Henrique, que aglutina estudantes de todas as outras comunidades, e do antigo posto de saúde, hoje desativado. Santa Rita possui setenta e cinco famílias que habitam casas de madeira, em sua maioria, e alvenaria. Ruas, becos, caminhos e espaços públicos compõem a trafegabilidade no local, que possui, além da escola de ensino infantil, fundamental e médio tecnológico, água encanada, energia elétrica, dois postos de atendimento do INCRA, um em saúde e outro para trabalhos diversos, desativados desde as suas instalações. Tem-se ainda a Sede Social, Igreja, Campo de Futebol, Cemitério e telefone comunitário (COSTA, 2010: 47). A Comunidade reúne aspectos sociais, econômicos e culturais peculiares às ocupações ribeirinhas, como a agricultura familiar tradicional realizada sobre terra preta de índio (COSTA, 2010: 31). A agricultura é uma importante atividade econômica, seja através dos subprodutos da mandioca que são comercializados da Feira do Produtor Rural de Parintins, e também dos chamados quintais produtivos, caracterizados por uma elevada diversidade de espécies, majoritariamente frutíferas (idem: 53-54). Os moradores dessas localidades vivem ainda da pesca e caça, bem como de uma atividade pecuarista em crescimento. A produção de artesanato nos últimos anos tem-se intensificado entre os moradores, principalmente com intensa atividade turística desenvolvida no local. A Comunidade Santa Rita de Cássia de Valeria situa-se no topo aplainado de uma península banhada pelo lago de Valéria, sobre um sítio arqueológico de grandes proporções. O sítio arqueológico que ali se situa foi inicialmente cadastrado como AM-PT-01 (SIMÕES e ARAÚJO-COSTA, 1978), e se caracteriza, em primeiro plano, pela matriz de solo formada pela Terra Preta de Índio – neossolo com alta densidade de material orgânico e outros elementos que a torna especialmente apropriada ao uso agrícola – resultante da ação humana no passado. Muito comuns na Amazônia, locais com este tipo de solo foram e são constantemente preferenciais para habitação e estabelecimento de roçados. Desta forma, as comunidades ribeirinhas estão, via de regra, assentadas sobre sítios arqueológicos. Característica igualmente marcante do sítio arqueológico Santa Rita é sua elevada densidade de cerâmicas. Milhares de fragmentos, bem como muitos vasos inteiros, afloram na superfície da comunidade após cada chuva, seja nos quintais das casas, seja nas vias públicas. Assim sendo, a arqueologia está presente de maneira muito marcante no cotidiano dessas pessoas, que, à sua maneira, sempre deram significação a esses objetos.

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Fig.2: Mapa localizando as comunidades presentes no Lago da Valéria, município de Parintins/AM.

2.1. O Turismo na Região da Valéria

A chamada Serra de Parintins, onde se localiza o lago da Valéria, se situa na fronteira do estado do Pará e é circundada por uma densa vegetação rica em flora e fauna indicando o lugar como o portal turístico da localidade. Em razão de seu elevado potencial paisagístico natural e cultural, Valéria acabou por tornar-se alvo de intensa atividade turística extremamente predatória e desordenada. Esse turismo tem dois públicos principais. Por um lado, a própria cidade de Parintins é referência no âmbito do turismo nacional e internacional. O famoso Festival do Boi de Parintins atrai milhares de pessoas para o município anualmente, que acabam por chegar às comunidades interioranas. No entanto, estes locais têm pouca ou nenhuma estrutura para atender tão intensa demanda.

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Por outro lado, a região de Valéria especificamente é um forte chamariz de outro tipo de turismo, igualmente predatório. Trata-se dos luxuosos cruzeiros internacionais que em acordo com instituições locais (como a Secretaria do Turismo) viajam regularmente pelo rio Amazonas para contemplar seus preciosos – e exóticos a estes olhos – encantos naturais e culturais. Em muitos casos, eles nem chegam à sede municipal, atendo-se a uma rápida observação dos modos de vida do caboclo amazônico e seu ambiente. A intrínseca relação que as comunidades de Valéria desenvolveram com o turismo internacional é expressa, por exemplo, pela iniciativa local de criação de espaços para difundir a cultura e os costumes locais, onde encontram-se locais de venda de artesanato e onde são expostas algumas das peças arqueológicas. Portanto, além do artesanato local, geralmente feito com madeiras, sementes, penas e outros produtos da floresta, estes turistas também acabam entrando em contato com as peças arqueológicas. A esse respeito não são raros os relatos de que turistas os levem como “lembrança de Valéria” ou que os comprem de comunitários. Segundo relatos de alguns comunitários, essa comercialização de peças ocorreu pelo menos durante os últimos 35 anos. Ainda, segundo os mesmos relatos, a primeira vez em que um navio de turistas estrangeiros aportou em Valéria foi em 1971. A maioria dessas embarcações, presença frequente na comunidade hoje, é composta de turistas vindos de todo o mundo, especialmente da Europa e Estados Unidos. Sendo essa região apenas mais um ponto dentro de um itinerário por vezes extenso, a parada é esperada pela maior parte dos viajantes como uma oportunidade de observação da natureza, principalmente espécimes de pássaros – bird watching. Munidos de câmeras com grandes lentes teleobjetivas, eles saem de seu enorme navio em pequenos barcos de transporte, dirigindo-se à comunidade de São Paulo da Valéria, que fica justamente na conjunção do rio Amazonas com o lago de Valéria, sendo por isso carinhosamente apelidada de “a boca da Valéria”. São Paulo da Valéria, comunidade pequena e que fica dispersa em uma estreita área entre o aclive de uma grande elevação montanhosa e o lago de Valéria, recebe então centenas de turistas, e se organiza devidamente para tanto. A recepção dos turistas torna-se um evento importante também para outras comunidades do entorno, que levam seus artesanatos para serem vendidos aos visitantes. Os turistas, por sua vez, saem das embarcações para adentrar a mata em suas observações, tendo a população local como guia, e também para conhecer o modo de vida daqueles que os recebem. É, portanto, dessa interação – na qual a diferença linguística se constitui como principal barreira para a comunicação – entre os turistas e os moradores locais que ocorrem

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situações de “tráfico” de peças arqueológicas. É importante salientar que, na maioria dos casos, a iniciativa da venda parte dos moradores, e não da má-intenção dos visitantes. Este comércio é, na maior parte das vezes, empreendido pelos mais jovens, que desejam arrebanhar alguns dos dólares deixados navio após navio por esses esporádicos turistas. Existiram, de fato, excursões à Valéria e outras regiões da Amazônia feitas com o objetivo claro de comercialização de artefatos arqueológicos, o que nunca foi encarado pelos habitantes de lá como um problema. Entretanto, este tipo de comércio era feito a partir de um número reduzido de pessoas, cujo perfil em muito se difere daqueles turistas que aportam na região em transatlânticos. O ponto a que gostaríamos de chegar é que o que diferencia o comércio esporádico voltado aos turistas e a venda feita a mercadores de peças arqueológicas – estes sim os verdadeiros traficantes – é a intencionalidade investida nas duas práticas e o modo como os agentes da transação se colocam frente à legislação vigente e frente ao patrimônio cultural em questão. É válido pontuar que estas duas formas de evasão de materiais arqueológicos dos sítios da região apresentam distinções bastante pronunciadas quanto ao tipo e quantidade de vestígio comercializado. No caso da venda de “souvenirs” para turistas, as peças vendidas são geralmente de pequenas dimensões, e o volume de material vendido é pouco significativo. Já os negociadores de peças possuem interesse em vasos inteiros, com decoração esteticamente relevante e, de forma geral, um grande número de peças é comercializado. Obviamente, embora a diferença de volume de material arqueológico comerciado em cada um desses eventos seja bastante pronunciada, sua frequência é bastante díspar. Um deles é bastante raro enquanto o outro acontece amiudadamente e de forma constante: todos os anos, ininterruptamente, aportam navios abarrotados de turistas que, eventualmente, poderão comprar e levar consigo estas peças, o que acaba tornando esta prática mais destrutiva do que aquela perpetrada por negociantes de peças. Tal quadro de evasão das peças impunha a necessidade de ações sistemáticas diretas junto às comunidades ribeirinhas situadas nos sítios arqueológicos e em sua área de entorno, especialmente onde tais atividades ocorriam com maior intensidade. Este era o caso do município de Parintins, com seu reconhecido potencial arqueológico, representado pelos levantamentos e estudos anteriores (SIMÕES e ARAÚJO-COSTA, 1978; HILBERT e HILBERT, 1980). Sugeriu-se, naquela ocasião, uma ação efetiva de Educação Patrimonial, o que víamos como alternativa para lidar com o êxodo das peças. Assim, a etapa subsequente do projeto, realizada em 2007, voltou-se para um projeto integrado de pesquisa participativa e educação patrimonial. Como pesquisa participativa, entende-se como a interação entre

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pesquisador e os grupos envolvidos na pesquisa, fazendo-se necessária uma metodologia que favoreça a discussão e integração do conhecimento acadêmico e tradicional. Dessa forma, partiu-se de uma postura não impositiva aos interesses da comunidade, para uma atitude de diálogo e negociação. Este método visa uma forma de desenvolvimento da pesquisa vinculada à abertura da pesquisa à participação da população local em todas as etapas do trabalho: localização de sítios, produção de cartas topográficas, escavação, etc, estimulando assim o olhar comunitário sobre o patrimônio coletivo, sua cultura material, imaterial e meio ambiente para uma perspectiva científica.

Fig.3: Coleção arqueológica presente em casa de moradora da Comunidade Santa Rita de Cássia (Valéria, Parintins/AM) (foto: Mauricio de Paiva, 2007).

3. Delineamento Metodológico: a Pesquisa Participativa

Convencionou-se chamar as bases do trabalho desenvolvido em Parintins como Pesquisa Participativa, ou seja, uma forma de desenvolvimento da pesquisa vinculada à ação ativa da população que se insere no local a ser estudado através da participação destes em todas as etapas do trabalho: localização de sítios, produção de cartas topográficas, escavação, etc. Este método visa estimular o olhar comunitário sobre o patrimônio coletivo, sua cultura material, imaterial e seu ambiente para uma gestão compartilhada do patrimônio arqueológico. A ponderação do conhecimento tradicional sobre o conhecimento arqueológico gerado a partir da pesquisa participativa implica em um íntimo diálogo entre o discurso científico e o

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discurso comunitário na leitura e interpretação do fenômeno arqueológico circunscrito na história e cotidiano dessas populações. A inserção das comunidades no trabalho arqueológico em si foi também um dos resultados positivos da estratégia utilizada. A presença dos comunitários nas etapas de mapeamento topográfico, delimitação e escavações do sítio arqueológico mudou a visão interna sobre o trabalho, conferindo uma maior agilidade e trazendo um resultado mais positivo do que esperávamos. Ficou clara uma demanda pela continuação deste trabalho, dando uma perspectiva de longo prazo às pesquisas ali desenvolvidas.

3.1. Ações do Projeto

As atividades do projeto visaram não apenas mostrar aos moradores das comunidades de Valéria a importância histórica e cultural daquele patrimônio, mas também despertar questões, ligando os objetos à história do lugar e, consequentemente, com seu modus vivendi. O trabalho de Educação Patrimonial foi pensado como uma forma de levar às populações locais as questões arqueológicas sob as quais nos debruçamos, inserindo-as em seu cotidiano de modo que um novo olhar sobre os objetos os guiassem para a preservação de uma forma não-impositiva e espontânea. Com efeito, a pesquisa participativa levada a cabo em Santa Rita rendeu frutos. Durante e após a estadia da equipe na comunidade, foram visíveis algumas mudanças na perspectiva da população em relação ao material arqueológico com o qual mantém contato cotidianamente e, também, com a historicidade do próprio lugar onde vivem. Neste sentido, houve um processo de reflexão acerca da ideia de patrimônio, antes ausente, e a necessidade de sua preservação e apropriação de forma consciente. Assim, aqueles que comercializavam as peças passaram a se ver como guardiões das coleções por eles reunidas. Inicialmente, a chegada de “estranhos” (nós, os arqueólogos) na comunidade gerou certo distanciamento ou descaso por parte dos moradores. Eram comuns relatos de pesquisadores que passavam pela região, realizavam suas pesquisas sem ao menos fazer uma prévia comunicação ao presidente e à comunidade. Estes, tampouco, forneciam explicações sobre os trabalhos efetuados ou seus resultados. A frequência desta prática acabou por criar grande “descrença” nas pessoas quanto a projetos científicos. Menos ainda se acreditava que estes poderiam ser benéficos à comunidade e trazer retornos concretos aos moradores. Cientes de tal perspectiva e imbuídos pelo desejo de contribuir para uma mudança acerca destes elementos, realizamos, logo no primeiro dia, uma reunião com moradores da comunidade

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Santa Rita, a fim de elucidar os objetivos da pesquisa e de nossa estadia. No entanto, poucas pessoas compareceram, e com interesse diminuto. Este quadro foi se modificando lentamente ao passo em que a pesquisa se desenvolvia. Arqueólogos observavam e eram observados o tempo todo. A curiosidade estimulada pelas ações de educação patrimonial, sempre dentro da comunidade, dentro das casas, dentro da escola, aliada à nossa estadia prolongada, de fato morando na comunidade, possibilitaram um processo de conhecimento mútuo. O aprendizado se deu sempre em duas vias em que, por um lado, nós vivenciávamos o cotidiano, dia e noite, da vida na comunidade e, por outro lado, trazíamos à tona discussões sobre a riqueza do patrimônio histórico e cultural daquele local, e a importância de sua preservação. Foram compartilhadas ideias como o que é e como se faz arqueologia, quais são seus objetos e suas finalidades, em conversas formais e informais. Tudo isso foi gerando um crescente aumento de interesse pela arqueologia e pelas atividades que desenvolvíamos ali. A inserção das comunidades no trabalho arqueológico em si foi também um dos resultados positivos da estratégia utilizada. A presença dos comunitários nas etapas de mapeamento topográfico, delimitação e escavações do sítio arqueológico mudou a visão interna sobre o trabalho, conferindo maior agilidade e trazendo um resultado mais positivo do que esperávamos. Ficou claro uma demanda pela continuação deste trabalho, dando uma perspectiva de longo prazo às pesquisas que ali foram desenvolvidas. Ao final, os membros da equipe éramos nós e mais dezenas de pessoas que trabalharam ativamente nas mais diferenciadas tarefas concernentes ao trabalho de campo. Foram realizadas novas etapas de campo entre os anos de 2007 e 2008, quando outras ações foram executadas. Uma delas foi a participação de alguns membros da equipe na tradicional feira de ciências promovida anualmente nas escolas da região. O grupo vencedor da feira de ciências, composto por seis alunos do ensino médio, fez uma apresentação sobre o patrimônio arqueológico local. Como premiação, os membros do grupo foram convidados para uma viagem a Manaus, a conhecerem e participarem de atividades no laboratório de arqueologia. Neste sentido, vimos que era importante que membros da própria comunidade participassem dos desdobramentos da pesquisa arqueológica, pois, findadas as atividades de campo, eles mesmos, criariam canais de comunicação acerca de impressões e aprendizados para o restante da comunidade. Assim, ainda em 2007 foi oferecido um curso a esses estudantes, acompanhados por uma professora e pela gestora da Escola Municipal Marcelino Henrique. O mesmo se deu no anexo laboratorial do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE/USP), localizado em Manaus, onde foram executados os

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primeiros passos dos processos curatoriais dos vestígios coletados na comunidade, e algumas análises cerâmicas com o foco nos mesmos materiais. Outra ação considerada de extrema importância, e que também surtiu interessantes resultados foi a realização de uma oficina de produção cerâmica artesanal, com inspiração arqueológica, aos moradores da comunidade. Além de se configurar como mais uma possibilidade de atividade econômica de produção de artesanato regional, o aprendizado deste ofício pode significar a chave para o fim da saída das peças arqueológicas, já que estas pessoas podem, elas próprias, produzirem réplicas daquele material encontrado sob a comunidade. Mais do que isso, uma oficina de (re)produção de cerâmica, aliada a um sólido trabalho de Educação Patrimonial, pode suscitar questões importantíssimas sobre aqueles que ali viveram antes deles, vinculando a sua história com a do lugar onde vivem.

4. Resultados e discussões

Ao analisar a situação mais de perto, acabamos por concluir que a forma como tal comércio de artefatos arqueológicos se dava não se enquadrava na definição corrente de tráfico, qual seja, “comércio ilegal e clandestino; contrabando”7. Pelo contrário, o que víamos era um total desconhecimento tanto legal quanto da própria ideia de patrimônio por parte dos supostos “traficantes”. As peças arqueológicas eram oferecidas mais por seu valor estético do que por seu valor arqueológico. Por exemplo, através de muitas conversas, percebeu-se que estes objetos não estavam vinculados a um passado – humano ou paisagístico – da comunidade. Antes, eles são entendidos enquanto um dado da “natureza”, assim como a terra, o lago, os peixes. Nenhuma atribuição histórica é (ou era) a eles remetida. Num contexto como este, a ideia de patrimônio não parece encontrar correspondência nas “caretinhas” cerâmicas ou nas terras pretas. Portanto, se o tráfico se caracteriza por ser uma atividade de venda em que há a consciência da ilegalidade da negociação, então a situação em Santa Rita não pode ser enquadrada como tal. Além disso, acreditamos que muitos dos casos de tráfico de material arqueológico no interior da Amazônia funcionem da mesma forma, ou seja, uma das partes desconhece qualquer valor atribuído àqueles objetos que não o estético, e só o negociam devido a este desconhecimento. Encarar tal prática como ilegal para que se aplicassem as medidas cabíveis seria, no mínimo, um erro. Além de não se resolver o problema, criar-se-ia

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Definição extraída dos dicionários da língua portuguesa Aurélio e Delta Larrousse.

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outro grave problema social a se sobrepor ao primeiro. Então, ao contrário, tentamos compreender as peculiaridades desta interação, o que nos fez perceber que uma postura não impositiva e de diálogo poderia fazer toda a diferença, ao semear a ideia do valor histórico e cultural que aqueles objetos possuíam. Além disso, a situação de êxodo de peças arqueológicas, conforme anteriormente mencionado, pode ser atribuído não exatamente ao desconhecimento dos preceitos arqueológicos que dizem respeito a uma história local contada através dos objetos, mas sim à própria interpretação da população local sobre o material arqueológico – plenamente inserido em sua vivência cotidiana. A forma pela qual esta situação vinha sendo encarada até então, enquanto um tráfico de fato (uma transação ilegal de cunho econômico), acabou por motivar toda uma série de ações que, apesar da impressão legalista inicial, permitiram que práticas antigas fossem repensadas pela comunidade, que decidiu de forma autônoma abandonar tais práticas. O que se seguiu foi que as peças foram acrescidas de novos significados e passaram a ser valorizadas de outro modo nas comunidades, chegando a aparecer em crescentes coleções organizadas pelos comunitários. Um segundo fator de transformação do registro arqueológico no local é a própria situação do sítio arqueológico, que se encontra numa área habitada sofrendo constantes alterações pelas edificações e pelas atividades cotidianas dos moradores. Tal situação não é preocupante, a nosso ver. Em verdade, a ocupação atual interfere no registro arqueológico da mesma forma como outras ocupações que a precederam o fizeram, em uma continuação inegável da construção deste registro. Assim sendo, não é possível encará-lo enquanto um corpo imutável. Em certo sentido, uma das finalidades da pesquisa arqueológica na Amazônia é o reconhecimento da diversidade cultural do passado. Encarada enquanto estudo do presente, a arqueologia pode demonstrar preocupação não somente com a preservação do patrimônio arqueológico, testemunho de uma história ainda parcamente conhecida, mas também com a própria sócio-diversidade manifestada na atualidade. Ao trazer à tona os resultados das pesquisas arqueológicas, abrem-se precedentes para repensar os modos de construção dessa história, bem como para pensar nas contribuições estratégicas que os povos do passado deixaram e que, por uma série de questões, estamos esquecendo. É importante ressaltar que os sítios arqueológicos – ainda que um legado do passado – constituem parte do presente. Grande parte das comunidades ribeirinhas nesta área da Amazônia ocupa antigas áreas indígenas, de modo que estas populações mantêm um contato direto com os vestígios materiais produzidos por aqueles que os antecederam naquele local. Mais do que isso, estas

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pessoas possuem uma visão própria sobre estes vestígios, reinterpretando-os à luz de seus próprios conceitos e de relações com outros grupos. Não obstante, a visão de mundo impingida por estes moradores aos objetos arqueológicos não necessariamente passa pelas interpretações científicas já consolidadas, não raro colocando-as como representações divergentes, revestindo as ações dos cientistas de um caráter decerto mais “verdadeiro” do que aqueles externados pelas populações locais. O projeto almejou, fundamentalmente, a partir da participação dos comunitários, uma construção do conhecimento arqueológico que levasse em consideração não apenas os critérios científicos, mas também as contribuições do conhecimento local sobre o contexto sistêmico aos quais aqueles materiais, sempre (re)significados, estão inseridos. Para tanto, entendemos como necessária, senão essencial, a inserção dos moradores em todos os passos do trabalho, olhando aqueles “cacos de pote” ou “caretinhas” e se consolidando como agentes históricos. Neste sentido, ao contar com o envolvimento da comunidade ao longo de todas as suas etapas, intenciona-se não somente realizar uma coleta de dados arqueológicos e estabelecer pretensos vínculos culturais entre as populações pretéritas e presentes, mas também fazer com que o conhecimento produzido sirva às pessoas que efetivamente contribuem para que ele exista, agregando à pesquisa diferentes vozes envolvidas no processo de construção do conhecimento.

Fig.4 e 5: Crianças da Comunidade Santa Rita de Cássia (Valéria, Parintins/AM) mostram suas coleções e artefatos (Fotos: Maurício de Paiva, 2007).

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OFICINA LÍTICA DE POLIMENTO NO NOROESTE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO Lithic Polishing Workshop in Northwest of Rio de Janeiro Nanci Vieira de Oliveira1

RESUMO No noroeste do Rio de Janeiro, foi identificado um sítio arqueológico do tipo amolador polidor fixo, localizado na Fazenda Santa Inês, município de Miracema. A identificação deste tipo de sítio arqueológico mostra que no Rio de Janeiro, a sua ocorrência não está restrita às praias e ilhas. Assim, este artigo tem como objetivo apresentar e discutir as características deste sítio arqueológico. Palavras-chave: arqueologia, sítio pré-colonial, polidores ABSTRACT In the northwest of Rio de Janeiro, was identified archaeological site type grinder polisher fixed, located at Fazenda Santa Ines, Miracema municipality. The identification of this type of archaeological site shows that in Rio de Janeiro its occurrence is not restricted to the beaches and islands. Thus, this paper aims to present and discuss the characteristics of this archaeological site. Keywords: archeology, pre-colonial site, polishers RESUMEN En el noroeste de Río de Janeiro, fue identificado sitio arqueológico tipo pulidor amolador fijo en Fazenda Santa Ines, municipio de Miracema. La identificación de este tipo de yacimiento arqueológico muestra que en Río de Janeiro, su ocurrencia no se limita a las playas e islas. Así, el objetivo de este trabajo es presentar y discutir las características de este sitio arqueológico. Palabras clave: arqueología, sitio pre-coloniales, pulidoras Introdução

A maioria dos sítios arqueológicos registrados no Estado do Rio de Janeiro ocorre no litoral, com predominância de sambaquis construídos por populações pescadoras, coletoras e caçadoras. Com menor frequência existem registros de sítios do tipo Amoladores - Polidores

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Doutora em História - UNICAMP, Professora Adjunta de Antropologia e Coordenadora do Laboratório de Antropologia Biológica, Universidade do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected]

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Fixos, que correspondem a locais onde são realizadas atividades especificas, ou seja, amolar e polir seus instrumentos líticos. Embora a maior parte dos registros tenha ocorrido no litoral, em especial em Santa Catarina (TIBURTIUS e BIGARELLA, 1953; ROHR, 1977, 1984; AMARAL, 1995) e Rio de Janeiro (DIAS JUNIOR, 1959; GASPAR e TENÓRIO, 1990; TENÓRIO, 2003; OLIVEIRA e AYROSA, 1991; KNEIP e OLIVEIRA, 2005), estudos posteriores indicam que tais sítios ocorrem em vários locais do Brasil (HERBERTS et al. 2006). Uma das discussões entre arqueólogos é a relação entre os números de polidores – amoladores fixos, de sambaquis e a presença de artefatos polidos nos diferentes sítios arqueológicos. Como não há relações entre as marcas de polimento e amolação de artefatos e identidades étnicas, bem como, os locais de tais práticas específicas geralmente não apresentam os artefatos produzidos, não se pode afirmar que apenas uma única população tenha utilizado tal espaço. A localização deste tipo de sítio ocorre em uma paisagem que reúne as condições necessárias para a produção de artefatos polidos. Assim, a escolha do suporte advém de suas características físicas particulares, ou seja, tamanho, forma e dureza da rocha, areia com determinada qualidade granulométrica e proximidade da água. Através da abrasão da peça a ser trabalhada contra a superfície da rocha é realizado o polimento, com a utilização de areia úmida e, se formam aos poucos depressões planas ou ligeiramente côncavas. Há consenso de que a forma das marcas está relacionada aos objetos fabricados, bem como ao gestual do fabricante. A maioria dos arqueólogos concorda que as marcas resultam da prática da confecção de lâminas de machado. Amaral (1995: 81) sugere a possibilidade dos amoladores e polidores fixos terem sido utilizados também para a confecção de outros artefatos polidos, entre os quais tembetás de quartzo e zoólitos. As formas são descritas como canaletas ou frisos, acanaladas em forma de canoa, circulares e ovais profundas (bacias), circulares e ovais rasas (pratos) e circulares rasas com protuberância no centro (bacia côncavo-convexa). Os frisos podem ser classificados em dois tipos, com depressão em V e com depressão em U. Belem (2012) sugere que os frisos em V seriam utilizados para polir e apontar furadores e agulhas. Os do tipo em U para trabalhar outros tipos de artefatos como bastonetes, arpões e contas de pedra. Em um esforço de compreender a produção destas formas de depressão na confecção de artefatos polidos, alguns arqueólogos têm realizado estudos da formação do registro arqueológico e análises da cadeia operatória, ou seja, o encadeamento de acontecimentos

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culturais e naturais. Tais estudos têm fornecido algumas informações sobre gestos e desgaste da superfície do suporte de rocha. Prous et al. (2002) realizaram as experimentações em um bloco de arenito de forma a estabelecer relações entre hora trabalhada e desgaste, bem como gesto e forma do desgaste. Os autores identificaram diferenças entre alisamento e polimento, em que o primeiro resulta em uma abrasão grosseira das superfícies, com auxílio de areia e, o segundo, pode ser obtido com auxílio de um abrasivo muito fino e resulta em uma superfície brilhante. As experimentações apontam à obtenção de alisamento das faces com gestos circulares e, “após cerca de 30 horas de uso total, tinha-se desenvolvido uma bacia oval de 34 x 24 cm, bem rasa - com 0,9 cm de profundidade” (p. 199), para a obtenção de um polimento fino foi utilizado apenas água. A experimentação de elaboração de machados realizada por Tenório (2003) teve por objetivo obter uma estimativa do desgaste provocado na rocha suporte na fabricação de uma lâmina de machado semelhante às encontradas na Ilha Grande (RJ), o gestual do artesão para determinadas formas (experimentação na areia) e relação entre números de peças produzidas e profundidade do sulco decorrente da abrasão (suporte em granito). A forma acanalada em canoa resultaria de movimentos semicirculares com eixo inclinado para polimentos das faces, formando-se um friso na área central, e o gume na peça trabalhada. A elaboração de 11 lâminas resultou em desgaste de apenas 0,155cm. A partir dos resultados foi estimado que uma depressão com 2,5 cm seria resultado da elaboração de 177 lâminas de machado.

Localização e descrição

O presente estudo surgiu de uma visita à fazenda durante a XIII Jornada Científica do Projeto Jovem Talentos para a Ciência do Estado do Rio de Janeiro, realizada no município de Miracema (RJ), quando foi identificado o local como polidor amolador fixo. A Fazenda Santa Inês está localizada no distrito de Paraíso do Tobias, no município de Miracema, no Km 2 da RJ- 186. A região corresponde a Sub-Bacia Hidrográfica do Rio Pomba, estando o amolador polidor fixo localizado em superfície rochosa de um córrego denominado Ouro Preto, que deságua no Ribeirão do Bonito, tributário do rio Pomba (Figura 1). Em termos geomorfológicos, a região corresponde a unidade de Depressão Interplanáltica do Vale do Rio Pomba, dominada por colinas, morrotes e morros baixos, com Latossolos e Argissolos Vermelho-Amarelos (DANTAS et al., 2005).

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Fig.1: Localização do sítio arqueológico

De acordo com os dados do Departamento de Recursos Minerais do Rio de Janeiro (DRM-RJ), predominam na região de Miracema rochas ortognaisse com composição semelhante ao granito (gnaisses quartzo-feldspáticos), ocorrendo nas proximidades rochas paragnaisses e, nos vales onde há rede de drenagem, os sedimentos quaternários representados por areias, cascalhos e lamas. O amolador polidor fixo tem como suporte uma superfície de gnaisse em uma pequena queda d’água no córrego Ouro Preto. Este córrego nasce em um dos morros baixos do local e se espraia pelo vale que apresenta sedimento arenoso (Figura 2).

Formas dos sulcos

Após a identificação durante uma visita como parte de um evento, foi marcado um retorno ao local para o georreferenciamento do sítio (UTM 801.897/ 7628.986) e registro dos seguintes atributos: forma, dimensões (comprimento, largura e profundidade), presença de frisos ou canaletas. Nesta etapa de campo, também foi realizado levantamento sistemático de superfície em toda a propriedade e, principalmente, no vale do córrego Ouro Preto, tendo por

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objetivo identificar outros polidores amoladores fixos e possíveis evidências materiais indicativas de local de habitação.

Fig.2: Vista do polidor amolador fixo

Foram identificadas 23 marcas, sendo 19 (dezenove) circulares/ovais e 4 (quatro) frisos, apresentando a maioria destas uma abrasão grosseira das superfícies (Figura 3). A superfície rochosa apresenta irregularidades que foram aproveitadas para a retenção de areia e, algumas parecem que foram ampliadas pela execução do alisamento das faces da peça trabalhada (Figura 4). De forma distinta de outros polidores amoladores fixos, algumas destas marcas não chegaram a desbastar totalmente a superfície e se apresentam irregulares (marca inicial). No polidor amolador fixo foram observadas as seguintes formas: circular muito rasa (2), circular/oval rasa sem friso (7), circular/oval com friso (3), circular/oval com profundidade (7) e frisos ou canaletas (4). Em uma das marcas considerada como oval, observamos uma sobreposição de marcas alongadas rasas decorrentes de gestos longitudinais, que poderia estar relacionado ao alisamento de faces ou flancos de um artefato de pequena proporção ( Figura 5 ). A profundidade das marcas apresenta variação de 0,25 a 4 cm, sendo predominante entre 1 e 3 cm. Ficaram definidas como marcas iniciais as que não alcançaram 1 cm de profundidade e as rasas as que não ultrapassaram os 2 cm (Figura 6).

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Fig.3: Conjuntos de marcas

Fig.4: Marcas de polimento

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Fig.5: Sobreposição de marcas

Fig.6: Gráfico

De forma a estabelecer relações entre profundidade das marcas e artefatos produzidos, optamos por utilizar como referência o desgaste obtido na experimentação de Tenório (2003), já que a rocha utilizada apresentava a mesma dureza do suporte de Miracema. De acordo com a autora, a elaboração de onze lâminas de machado decorreu em um desgaste de 0,155 cm em uma base de granito. De acordo com as profundidades das marcas no polidor amolador fixo em Miracema, teríamos desde marcas decorrentes da elaboração de um único artefato polido até as resultantes da elaboração de 25 artefatos. A partir da média das profundidades das

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depressões circulares/ovais, teríamos, aproximadamente, 240 artefatos produzidos neste sítio arqueológico.

Considerações finais

O polidor amolador fixo da fazenda Santa Inês demonstra que no Rio de Janeiro a ocorrência deste tipo de sítio não está restrita às praia e ilhas. Depressões em forma de canoa, comum em sítios litorâneos, foram ausentes neste sítio do Noroeste fluminense. As dimensões das depressões indicam elaboração de artefatos de menores proporções aos produzidos nos demais sítios estudados no Rio de Janeiro e Santa Catarina. A identificação deste sítio arqueológico estimulou o interesse da comunidade local, o que resultou na implantação de um projeto de Educação Patrimonial envolvendo jovens do Ensino Médio, tendo por objetivo a realização de um levantamento do patrimônio histórico e arqueológico. Cabe ressaltar que esta região corresponde as áreas proibidas no período colonial até a segunda metade do século XVIII, também denominada como Sertão dos Puris. Assim, a continuidade das pesquisas na região deverá fornecer subsídios para a compreensão das ocupações humanas pré-coloniais no interior do Rio de Janeiro. O objetivo da Educação Patrimonial é estimular a reflexão junto aos jovens sobre a valorização do patrimônio no contexto urbano e rural, decorrente de uma política de valorização relacionada às representações da elite socioeconômica, em contraposição às culturas relegadas ao esquecimento. Através de palestras e oficinas, os jovens são inseridos na pesquisa e discussões sobre preservação, patrimônio, história indígena na região, vestígios arqueológicos, memória e conhecimentos tradicionais.

Ao mesmo tempo, são eles os

intermediários entre os pesquisadores e representantes da sociedade local, contribuindo nas avaliações da preservação do patrimônio histórico da região, nas entrevistas e levantamentos de locais com características indicativas de potencial arqueológico.

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ESTUDIO DE IMPACTO ARQUEOLÓGICO EN PUNTA PEREIRA (COLONIAURUGUAY): METODOLOGÍA APLICADA Y PRINCIPALES RESULTADOS PARA EL CONOCIMIENTO DE LA PREHISTORIA REGIONAL. Archaeological impact assessment at Punta Pereira (Colonia County, Uruguay): methodological aspects and main results for regional prehistory knowledge. Irina Capdepont1 Laura del Puerto e Hugo Inda2

RESUMO Este trabalho apresenta os resultados obtidos no estudo de avaliação e diagnóstico de impacto arqueológico na zona de Punta Pereira (Departamento de Colonia - Uruguai). Numa primeira etapa, as diferentes áreas da zona de Punta Pereira com potencial arqueológico foram identificadas, localizadas, descritas, documentadas, estudadas e valorizadas. Posteriormente, com o objetivo de mitigar o impacto que seria produzido pelas obras planificadas pela Planta de Celulosa y Energia Elétrica, definiu-se o entorno de proteção de cinco espaços com evidências de atividade humana pré-histórica. Nestes espaços se aplicaram medidas corretoras compensatórias, que incluíram a realização de 12 escavações arqueológicas. Estas etapas de trabalho permitiram registrar ocupações humanas durante o Holoceno que eram desconhecidas até o momento. Palavras-chave: Impacto Arqueológico, Ocupações humanas pré-históricas. ABSTRACT Results from archaeological impact appraisal and diagnose studies performed at Punta Pereira (Colonia county, Uruguay) were presented in this contribution. Several areas with archaeological potential were identified, spatially referenced, described and studied. In order to mitigate the impact of the Cellulose Processing and Electric Energy Plant construction five areas with prehistoric human evidences were defined for further research. In those areas corrective compensatory measures were applied, including 12 archaeological diggings. Results from such activities allowed to unveil human occupations during middle to late Holocene that were previously unknown to regional Archaeology. Keywords: Archaeological Impact, Prehistorical human occupations. RESUMEN Este trabajo presenta los resultados obtenidos en el estudio de evaluación y diagnóstico de impacto arqueológico de la zona de Punta Pereira (Departamento de Colonia - Uruguay). En una primera instancia se identificaron, localizaron, describieron, documentaron, estudiaron y valoraron diferentes áreas de la zona con potencial arqueológico. Posteriormente, con el objetivo de mitigar el impacto a producirse por las obras planificadas por la Planta de Celulosa y Energía Eléctrica, se definió el entorno de protección de cinco áreas con 1 2

Laboratorio de Estudios del Cuaternario (MEC-UNCIEP) [email protected] Centro Universitario Regional Este, Universidad de la República

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evidencias de actividad humana prehistórica. Sobre estas áreas se aplicaron mediadas correctoras compensatorias que incluyeron la realización de 12 excavaciones arqueológicas. Estas instancias de trabajo permitieron registrar ocupaciones humanas durante el Holoceno no conocidas con anterioridad. Palabras clave: Impacto Arqueológico, Ocupaciones humanas prehistóricas Introducción El Patrimonio Arqueológico está constituido por todos los restos físicos tangibles de la acción humana del pasado que contienen información sobre ésta. Es debido a su carácter de bien de interés público, frágil y no renovable, que la Ley de Impacto Ambiental (Nº 16.466 Decreto 435/994) en Uruguay exige la realización de Estudios de Impacto Arqueológico (EIArq) a fines de diagnosticar, prevenir, corregir y/o mitigar los efectos negativos de distintos emprendimientos públicos o privados sobre los bienes arqueológicos. En este contexto, la proyección e implementación de una planta de fabricación de celulosa y generación de energía eléctrica en Punta Pereira, sobre el litoral oeste de Uruguay (Figura 1), constituyó el marco para conjugar el estudio de impacto como iniciativa de investigación para la generación de conocimientos. Dado que el proyecto productivo ya contaba con la habilitación ambiental para la localización de la planta, el Estudio de Impacto Arqueológico se desarrolló principalmente con miras a diagnosticar y mitigar el impacto de las obras proyectadas. Para ello, en una primera instancia se realizó la Evaluación del Impacto con la finalidad de identificar objetos o elementos patrimoniales y definir sus entornos de protección antes del comienzo de las obras. Esta instancia involucró (sensu AMADO et al., 2002) el descubrimiento, localización, descripción, documentación,

estudio,

valoración

y

difusión de los valores culturales allí presentes. Posteriormente, con el objetivo de mitigar el impacto a ser producido por la obra proyectada, se llevaron adelante Fig.1: Ubicación general y específica del área de estudio (Fuente: CAPDEPONT 2012).

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medidas de corrección compensatorias (documentación, prospección y excavación) y paliativas (seguimiento de obra y actuaciones puntuales de recuperación parcial). En este trabajo se presentan los resultados obtenidos de la

prospección arqueológica y de las

excavaciones efectuadas en dos de los cinco espacios con evidencias de ocupación humana en Punta Pereira (M8 y M6).

Actividades de evaluación y diagnóstico

La etapa de Evaluación del Impacto involucró actividades específicas que llevaron a realizar el Diagnóstico Arqueológico del área a ser afectada. En esta etapa se llevó a cabo: Identificación de Afecciones requirió la identificación precisa de los agentes (infraestructura e instalaciones), acciones (actividades concretas que generen impacto), afecciones (modificaciones del medio físico) y momento del impacto (fase del proyecto donde el impacto se hará efectivo). Para el caso de estudio se identificaron tanto afecciones preexistentes como proyectadas, así como los principales agentes, acciones y momento del impacto (Tabla 1). Al inicio de la investigación, en el predio destinado al emprendimiento se identificó la existencia de afecciones preexistentes, de diversa magnitud y con disímil impacto constatado sobre las entidades arqueológicas. Entre ellas se destacan, por su extensión, los movimientos de suelo producto de las actividades extractivas realizadas por la empresa inglesa C.H. Walker & Co. que se instaló en la zona entre 1886 y 1887. La empresa extrajo y exportó arena y conchilla a la ciudad de Buenos Aires, aumentando la extracción hacia 1895. La explotación de áridos fue continuada por la empresa Roselli Importación S.A, cuyas actividades extractivas a partir de 1957, debido a la maquinaria empleada y la escala espacial de la explotación, constituyeron el principal agente de impacto identificado en el área de Punta Pereira (LEZAMA et al., 2007). Dentro de las acciones proyectadas por el plan de obra (EsIA EDARIX S.A, DINAMA Exp 2007/14000/05626) en la Tabla 1 se señalan las de mayor potencial de afección sobre las entidades arqueológicas. En todos los casos las acciones proyectadas involucraron movimientos de suelo, con empleo de maquinaria pesada de alto impacto, siendo las etapas de nivelación del terreno y terraplenado las de mayor impacto potencial (Figura 2).

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Tabla 1. Principales afecciones preexistentes y proyectadas. (Fuente: LEZAMA et al. 2007)

Agentes

Acciones

Afecciones

Actividades

extractivas

Momento

del

Impacto

Preexistente

desde fines del siglo XIX. Caminería Prospección geofísica Acondicionamiento Maquinaria:

Etapa

de

de

acondicionamiento de

terreno

terreno

bulldozers, retroexcavadoras,

Limpieza de vegetación

motoniveladoras,

Nivelación del terreno

Movimiento

cargadores

de suelo

frontales, rodillos Terraplenado vibratorios, patas Macro y micro drenajes de cabra, pisones internos vibratorios. Regulación

inicial

de

red

Primera

fase

constructiva

de

escurrimiento Caminería Segunda

Parquización

constructiva

Instalaciones

90

fase

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Fig.2: Ubicación de la zona de movimiento de suelo proyectado y referencias topográficas del área de emplazamiento. Los terrenos altos (>7m) corresponden a las zonas de desmonte y los terrenos bajos (
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