Revista Arqueologia Pública 9, 2014 Aspectos da vida pública

September 5, 2017 | Autor: P. Funari | Categoria: Arqueologia, Patrimonio Cultural, Cultura Material, Arqueologia Histórica
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número 9 | 2014

EDITORES Aline Carvalho (LAP/NEPAM/UNICAMP) Pedro Paulo A. Funari (LAP/NEPAM/UNICAMP) COMISSÃO EDITORIAL Ana Piñon (Universidad Complutense de Madrid, Espanha) Andrés Zarankin (UFMG) Charles Orser (Illinois State University, EUA) Erika Robrahn-González (Documento Patrimônio Cultural, Arqueologia e Antropologia Ltda) Gilson Rambelli (LAAA / NAR / UFS) Lourdes Dominguez (Oficina del Historiador, Havana, Cuba) Lúcio Menezes Ferreira (UFPel) Nanci Vieira Oliveira (UERJ) CONSELHO EDITORIAL Bernd Fahmel Bayer (Universidad Nacional Autónoma de México, México) Gilson Martins (UFMS) José Luiz de Morais (MAE/USP) Laurent Olivier (Université de Paris, França) Martin Hall (Cape Town University, South Africa) Sian Jones (University of Manchester, Inglaterra) COMISSÃO TÉCNICA Daniel Grecco Pacheco Franciely da Luz Oliveira ESTÁGIO – REVISÃO TEXTUAL Camila Secolin PROJETO GRÁFICO João Batista Ruela DIAGRAMAÇÃO João Batista Ruela ISSN 2237-8294

SUMÁRIO 4

EDITORIAL Pedro Paulo Funari

ARTIGOS 6

ANCESTRAIS, TARTARUGAS E MOISÉS – INTERFACE DIALÓGICA ENTRE ARQUEOLOGIA E ANTROPOLOGIA NA ETNOGRAFIA DOS HUPD’ÄH (RIO NEGRO) Frederic M. C. Pouget e Danilo P. Ramos

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ESTAÇÕES FERROVIÁRIAS EM BAURU (1917-1939): O ECLETISMO E O ART DECO, MARCAS DA REPÚBLICA VELHA E DA ERA DE VARGAS NO INTERIOR DO ESTADO DE SÃO PAULO Fabio Paride Pallotta

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ESTUDO PRÁTICO SOBRE A GEOLOCALIZAÇÃO DE SÍTIOS ARQUEOLÓGICOS NO GOOGLE EARTH Francisco Gerson Amorim de Meneses e Lanna Letícia Goes Silva Oliveira

47

O SIGNO DA PARTICIPAÇÃO: MUSEU E EDUCAÇÃO NA PERSPECTIVA DA SOCIOMUSEOLOGIA Juliana Maria de Siqueira

63

REDOMAS DE VIDRO: RELAÇÕES ENTRE TATO, CULTURA MATERIAL E PRÁTICAS DE INSTITUCIONALIZAÇÃO José Roberto Pellini

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GESTION DEL PATRIMONIO ARQUEOLOGICO EN PUERTO RICO: EL CASO DE LOS PARQUES NACIONALES ARQUEOLÓGICOS PRECOLONIALES Y LA CONSTRUCCIÓN ÉTNICA DE LOS "NEO -TAÍNO" Cristina Burgos Otero e Viviane Pouey Vidal

95

SITUAÇÃO ATUAL DA ATIVIDADE TURÍSTICA EM SÃO CRISTOVÃO (SERGIPE, BRASIL) Paulo Jobim Campos Mello e Jennifer Daiane M. M. Dantas

111

FORTE DE RATHNADRINNA: AMBIENTAIS Mickaela Schwab Muniz

ARQUEOLOGIA

E

IMPLICAÇÕES

ENTREVISTA 123

NEIL A. SILBERMAN Gabriella Rodrigues

RESENHA

130

GODOY, RENATA DE. ASSESSING HERITAGE VALUES: PUBLIC ARCHAEOLOGY IN BRASÍLIA. LAMBERT ACADEMIC PUBLISHING, 2012. Rita Juliana Soares Poloni

SECÃO DE GRADUAÇÃO ARTIGO 136

A CUNHAGEM DE UM MONARCA: MOEDAS COM A IMAGEM DE ALEXANDRE, O GRANDE Thiago do Amaral Biazotto

RESENHA 147

CARLAN, CLAUDIO UMPIERRE. MOEDA E PODER EM ROMA: UM MUNDO EM TRANSFORMAÇÃO, SÃO PAULO, ANNABLUME, 2013 Vítor Bianconi Menini

EDITORIAL Junho de 2014

Aspectos da vida pública

Este volume da Revista de Arqueologia Pública apresenta diversas contribuições no âmbito da vida em sociedade. A Arqueologia Pública amadureceu como parte das transformações da disciplina, desde a década de 1980, em particular, no sentido de aproximar-se das questões sociais e políticas. A criação do Congresso Mundial de Arqueologia, em 1986, foi decisiva não apenas ao romper com o caráter apolítico da ciência, como ao incluir na gestão do órgão – o World Archaeological Congress – os indígenas, as pessoas comuns e os acadêmicos de outras searas. Em pouco tempo, surgiram reflexões que sobre o caráter público da disciplina, em seus múltiplos aspectos, como consubstanciado na criação da revista Public Archaeology, em 2001, quadrimestral que logo se tornou a grande referência na área. Em menos de quinze anos, a publicação da The Oxford Handbook of Public Archaeology representou a consagração, em termos mundiais, da abordagem social e pública da disciplina.

No Brasil, a Arqueologia foi conturbada pela ditadura militar (1964-1985), mas a luta pela liberdade e pelo engajamento social logo produziu resultados, na forma de estudos sobre os excluídos e em prol do respeito à diversidade. A transparência resultante do estado de direito permitiu, ainda, que se multiplicassem as pesquisas com preocupações relacionadas à sociedade contemporânea. Foi neste contexto que a Revista de Arqueologia Pública foi criada, como parte dessa luta por uma disciplina voltada para a reflexão e para a prática crítica da Arqueologia, em contato com a ciência internacional e atenta às questões sociais contemporâneas. Neste número, apresentam-se artigos que abordam os indígenas, o uso da cultura material em contextos oligárquicos, a participação das pessoas na exposição museológica, a relação das pessoas com a cultura material, a gestão do patrimônio e turística, as implicações ambientais da Arqueologia, entre outros temas. São autores estudiosos de renome, mas também alunos

em diversas fases de formação (ensino médio, graduação, pós-graduação). Essa renovação da disciplina, resultado de esforços de tantos, tem na Revista de Arqueologia Pública um instrumento à disposição de todos.

Pedro Paulo A. Funari Editor Responsável

Revista de Arqueologia Pública, n.9, Julho de 2014. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP.

ANCESTRAIS, TARTARUGAS E MOISÉS – INTERFACE DIALÓGICA ENTRE ARQUEOLOGIA E ANTROPOLOGIA NA ETNOGRAFIA DOS HUPD’ÄH (RIO NEGRO) Ancestors, Turtles and Moses – Dialogic Interface Between Archaeology and Antropology in Hupd’äh Ethnography (Rio Negro) Ancestrales, Tortugas y Moisés – Interface Dialógica entre la Arqueología y Antropología en la Etnografía de los Hupd’äh (Rio Negro) Frederic M. C. Pouget 1 Danilo P. Ramos2 RESUMO O artigo visa problematizar a noção de ancestralidade, recurso conceitual comum aos temas de patrimônio e à interpretação arqueológica. Para tanto, utilizamos aportes teóricos da antropologia e da arqueologia em diálogo com a experiência etnográfica junto aos Hupd’äh Maku (Alto Rio Negro). Esse povo parece associar um aspecto de ancestralidade da mitologia bíblica judaica cristã às sua própria noção de ancestralidade. Pretende-se demonstrar como os contextos arqueológicos associados etnograficamente podem complexificar as noções de patrimônio (material e imaterial) e de ancestralidade. Palavras-chave: Ancestralidade; Etnoarqueologia; Hupd’äh, Maku. ABSTRACT Nowadays, the notion of ancestry is very important to archeological and patrimonial debates. This article focus on the Hupd’äh (Alto Rio Negro region) perception of ancestry. With archeological and anthropological approaches, we try to understand the complex appropriation of aspects of the Judaic Cristian biblical mythology made by these people. We try to show that the ethnographical association of archeological contexts could complexify the patrimonial (material and immaterial) and ancestry notions. Keywords: Ancestrality; Ethnoarchaeology; Hupd’äh, Maku RESUMEN Ese trabajo pretende problematizar la noción de ancestralidad, común a los debates arqueológicos y de patrimonio. Para esto, utilizamos aportes teóricos de la antropología y de la arqueología en diálogo con la experiencia etnográfica con los Hupd'äh - Maku (Alto Rio Negro). Ese pueblo indígena mescla percepciones de la mitología judaica cristiana bíblica a sus propias concepciones de ancestralidad. Los contextos arqueológicos, asociados etnográficamente, pueden complejizar las nociones de patrimonio (material e inmaterial) y de ancestralidad.

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Doutorando em História Cultural- IFCH/UNICAMP, Mestre em Arqueologia- MAE/USP, Bacharel em Ciências Sociais- USP. ([email protected]) 2 Doutor em Antropologia Social- USP, Mestre em Antropologia Social- USP, Bacharel em Ciências SociaisUSP. ([email protected])

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Revista de Arqueologia Pública, n.9, Julho de 2014. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP.

Palabras clave: Ancestralidad; Etnoarqueología; Hupd’äh, Maku Introdução

Tendo como base a experiência etnográfica junto aos Hupd’äh na bacia do Alto Rio Negro (AM), visamos explorar o contexto antropológico através do qual a cultura material arqueológica é acionada pela população indígena e integrada em sua matriz cultural. Tal matriz é permeada por diversos processos sociais e históricos que variam desde a compreensão de cultura per se como por pressões sócio-políticas históricas ou até mesmo por contextos ontológicos da cultura material (ALBERTI et al. 2001; POUGET, 2010) decorrente do contato com a sociedade envolvente. Nesse sentido, o intuito desse artigo é problematizar, portanto, uma categoria conceitual que passa despercebida nos escritos de arqueologia: a ancestralidade. Isso não significa que não existam trabalhos de profunda reflexão sobre o tema, mas é comum uma forte generalização das referências temporais baseadas em um olhar deveras etnocêntrico (FAUSTO & HECKENBERGER, 2007; BENJAMIN, 1992; LYDON & RIZVI, 2010). Como veremos, a noção de ancestralidade mostra-se especialmente relevante para o melhor entendimento sobre um “patrimônio” indígena. Muito já fora dito sobre a relação entre patrimônio e comunidades locais nas suas diversas matizes (BEZERRA, 2011; 2013; GONZALEZ, 2007; CANCLINI, 1994), mas buscaremos explorar a temática da ancestralidade como um dos componentes chaves para entender a relação entre patrimônio e alteridades culturais, pois entendemos que tal perspectiva tem sido pouco explorada. Tendo como enfoque alguns exemplos etnográficos e, em especial, a relação que os Hupd’äh desenvolvem com a no o de hi ’ah teh d’äh/, “ancestrais”, procuraremos demonstrar as diversas formas que essa ideia/conceito/noção de ancestralidade acarreta. As viagens aos lugares sagrados feitas junto com interlocutores da comunidade Hupd’äh de Tat dëh/ revelaram práticas e modos de percepção profundamente relacionados àqueles dos momentos ritualísticos das ‘rodas de coca’, encontros noturnos de anciões para narrar mitos e realizar curas e proteções xamânicas. Durante as caminhadas, as interações com animais através da caça e da pesca, com os diversos seres míticos e paisagens demonstraram a necessidade de uma reflexão sobre os modos de percepção do ambiente vinculados a uma noção abrangente de ancestralidade. Isso fora feito tendo como baliza teórica as abordagens relacionalistas de Gow (2001), Ingold (2000) e Houseman e Severi (2009) para enfocar a continuidade histórica que mescla diversos pontos de referência de ancestralidade. A partir

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dessa perspectiva, procuramos interpretar o narrar e o benzer como modos de ação que mobilizam sensorial e experiencialmente os participantes, permitindo a interação com diversos seres e ambientes para a atuação em processos de transformação no mundo.

Ancestralidade

Pode-se dizer que a imagem de um ancestral é algo recorrentemente associado a princípios de descendência nas mais diferentes culturas humanas. A própria palavra derivada do latim ANTECEDERE – “preceder, vir antes”- traz em si essa ideia de descendência. No entanto, é importante ressaltar que esse tom de descendência (ou ascendência) é mais forte em algumas culturas do que outras. Não, necessariamente, outras culturas compartilham da mesma lógica. Por exemplo, Taylor (1998) demonstra essa variabilidade conceitual do tema da ancestralidade entre os Jivaro no Peru amazônico: [...]Par ailleurs, les restes archéologiques qui jonchent l'habitat jivaro ne sont jamais attribués à des ancêtres mais à des êtres mythiques dits iwianch, géants cannibales sans rapport avec l'humanité présente. Les tribus jivaro disparues – qu'on connaît par les archives – n'apparaissent enfin qu'en de brèves et rarissimes épiphanies, sous les espèces de guerriers splendidement vêtus, marchant à l'envers et parlant en sifflant, qui s'évanouissent au moindre soupçon de présence humaine, de témoin contemporain. (TAYLOR, 1998: 03)3.

Na década de 1970 e 1980, os modelos de etnologia africana eram especialmente criticados pelos exemplos ameríndios, principalmente em contraste com as noções de ancestralidade vinculadas ao mundo dos mortos (CARNEIRO DA CUNHA, 1977). Nesse sentido, explorando os contrastes apontados por Pierre Clastres em relação ao mundo andino, Philippe Erikson (2007) enfoca as matizes de significado que o termo “ancestral” adquire nas máscaras do grupo Matis (Pano), na bacia amazônica: In the light of new fieldwork material, my aim in the following pages is to provide a closer definition of what “ancestral” means in this Amazonian context. More precisely, I intend to show that the mariwin achieve the paradoxical feat of embodying values associated with ancestrality while nonetheless being denied the status of kin, since discourses and practices connected to them ostensibly reject the idea of filiation per se (2007: 219).

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Por outro lado, os restos arqueológicos encontrados no habitat dos jivaros nunca são atribuídos aos seus ancestrais, mas a entidades míticas conhecidas como iwianch, gigantes canibais sem nenhuma relação com a humanidade presente. As tribos jivaro desparecidas – que conhecemos pelos arquivos- aparecem enfim em breves e raríssimas epifanias, são uma espécie de guerreiros maravilhosamente vestidos, que caminham ao contrário e falam assoviando, e que desaparecem na mínima desconfiança de presença humana contemporânea (trad. nossa).

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Para além do debate antropológico, não podemos desconsiderar que a arqueologia se baseia fortemente em certas noções de ancestralidade e que isso tem gerado conflitos. Antes de prosseguir, é importante pontuar que esse artigo segue a percepção da importância do contato da arqueologia com comunidades tradicionais. Numa abordagem reflexiva, esse contato é a porta de entrada para novos horizontes epistemológicos (GNECCO Y AYALA, 2011). Sem desqualificar tal ciência enquanto disciplina, essa abertura enriquece o seu repertório (PYBURN, 2005). Bezerra aponta esta relação tensa a respeito de patrimônio: Ou seja, o paradoxo está no fato de que o conceito de patrimônio (sítios e objetos arqueológicos) é fortemente alicerçado na materialidade e na sua duração no tempo. Constitui, portanto, uma perspectiva histórica, que desconsidera a dinâmica e a lógica memorial de construção do passado pelos indígenas (BEZERRA, 2012: 77).

É justamente essa perspectiva histórica da disciplina arqueológica, fortemente calcada na noção de ancestralidade, que se torna a base das epistemes (ALBERTI, BENJAMIN et al., 2011) do dado arqueológico. A relação de ancestralidade é um dos principais

debates

na

arqueologia,

principalmente

quando

nos

referíamos

à

continuidade/descontinuidade étnica na história indígena (EREMITES DE OLIVEIRA, 2007; NEVES, 1998). Tal debate se encontra especialmente aprofundado na reflexão da etnoarqueologia enquanto campo de pesquisa arqueológica/antropológica, como demonstra Silva (2009) ao traçar o panorama histórico da questão. Nas palavras de Silva (2009): A etnoarqueologia deixa de ser uma abordagem arqueológica voltada, exclusivamente, à compreensão das populações no passado, para se transformar em uma possibilidade de entender as populações do presente em termos de suas relações com a natureza e a sobrenatureza (SILVA, 2009: 35).

No entanto, o tema da ancestralidade, neste aspecto, toma sua forma mais explicita quando observamos os contextos pós-processuais da etnoarqueologia. Pode-se dizer que observar não só um contexto ontológico da disciplina arqueológica (POUGET, 2010), como também seu contexto de análise etnográfico junto à ‘cultura material’ vem mostrando-se cada vez mais relevante para as pesquisas nessa área.

O contexto etnográfico Os Hupd’äh ha itam a regi o do Alto Rio Negro (AM) na fronteira entre o Brasil e a Colômbia. Suas comunidades situam-se às margens de igarapés da área interfluvial dos rios Tiquié e Papuri, afluentes da margem esquerda do rio Uaupés. Os dados demográficos mais

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atuais estimam a população num total de 1.500 indivíduos distribuídos em aproximadamente 35 aldeias (ATHIAS, 2006; EPPS, 2005). A alta mobilidade e circulação pelo território são aspectos fundamentais do modo de vida hup relacionados ao vasto conhecimento que possuem sobre os caminhos, igarapés, animais e vegetação local.

Fig. 1: Localização dos povos falantes de línguas da família Nadahup (Maku) e da comunidade de Taracuá Igarapé onde se realiza a maior parte das atividades de pesquisa. Fonte: EPPS, Petience. A grammar of Hup. Dissertation. 2005.

A estrutura social hup tem nos cl s agn ticos seus segmentos e de diferencia o. riados pelo her i cultural

sicos de constitui o

’eg-T h , os “ancestrais”, Hi ’ah-T h-d’äh ,

deram origem aos hoje aproximadamente 20 clãs patrilineares, exogâmicos e de descendência unilinear. Cada clã possui um conjunto específico de nomes, mitos e cantos através dos quais são narrados os eventos de criação e se constitui um senso de pertencimento e identidade. O contato iniciou-se com as frentes de colonização desde o século XVIII, mas foi apenas nas décadas de 60 e 70 do século XX que os missionários salesianos iniciaram atividades mais intensas visando à envangeliza o e à escolariza o dos Hupd’äh. Trabalhando já há décadas com os Tukano, os padres salesianos pretendiam intervir nas relações assimétricas entre esses povos. Nos últimos anos, as atividades das equipes de saúde, de indigenistas, e de missionários pentecostais vêm somando-se à ação dos salesianos que ainda mantêm suas ações em uma aldeia hup e na região do Alto Rio Negro como um todo.

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As viagens realizadas aos morros e lugares sagrados em 2012/2013 tiveram como motivação inicial a elaboração de um ‘mapa dos caminhos’ que englobariam os antigos assentamentos, caminhos míticos, pisos ecológicos de caça e coleta e marcadores de narrativas êmicas. Foram visitados ao todo oito morros sagrados, duas cachoeiras, cinco moradas antigas e inúmeros espaços que marcam a história dos ancestrais e heróis míticos hup. Foram descritas as técnicas de caça, pesca, as relações jocosas entre os viajantes, a percepção dos espaços, da orientação e do tempo. Em especial, a observação de fragmentos cerâmicos nesses sítios foi interpretada pelos Hupd’äh como restos dos instrumentos de cozinha de ‘ancestrais’. Em língua hup, a palavra hi ’ah teh d’äh , “gente do nascimento”, revela uma acepção própria da noção de ancestralidade. Muitos dos caminhos não eram percorridos há décadas. Por isso, foi admirável o interesse de muitos jovens em participarem das caminhadas com adultos e senhores hup. Essas caminhadas conjuntas deram a oportunidade para entender um pouco melhor uma ‘educação da atenção’ (INGOLD, 2000) através da qual os mais velhos revelam aos mais novos sentidos que estão no mundo, o que se complementa com a noção de ancestralidade. Nesse sentido: a descrição da viagem à Serra Grande pode ser vista como fundamental. O percurso e banhos rituais realizados no alto da serra ligam-se às práticas xamânicas e aos encontros noturnos para o consumo de coca, as ‘rodas de coca’, que conjuntamente constituem modos de percepção de ancestralidade. A viagem a essa serra demora aproximadamente uma semana para os moradores de Taracuá-Igarapé. Deve ser feita pelo menos duas vezes por cada pessoa para que se banhem nos lagos sagrados que há no topo do morro. Ao longo das últimas décadas, a prática, também fundamental para a iniciação xamânica, tornou-se menos frequente. Assim, a escalada e chegada ao topo para os banhos foram ações reveladoras sobre uma série de aspectos do modo como os Hupd’äh experienciam o mundo. Para melhor compreender esses modos de ação associados pela viagem aos morros sagrados é necess rio explorar o contexto ritualístico das ‘rodas de coca’.

Rodas de Coca

Ao pôr do sol, quando o som do pilão começa a ecoar pela aldeia, é possível acompanhar os passos dos senhores hup que vão caminhando vagarosamente, saudando-se e sentando-se em seus bancos para formar as rodas de coca. Enquanto a fumaça dos cigarros tateia os ares noturnos, o pó verde da coca vai sendo derramado nas bocas. Em meio às conversas, histórias começam a ser contadas, encantamentos são ensinados e andanças pelos

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caminhos da mata são comentadas. Murmurando palavras para cigarros ou cuias, alguns dos participantes executam ações xamânicas para curar ou proteger pessoas. Os encontros noturnos podem ser vistos como um modo de ação que permite aos participantes constituírem percursos de observação a partir de seus próprios movimentos em meio às palavras sopradas dos encantamentos, às narrativas míticas e aos passos trilhados pelos caminhos que atravessam a floresta (INGOLD, 2000; GOW, 2001). Os encontros noturnos vêm sendo tomados como performances, contextos que associam os fazeres míticos e xamânicos a partir de uma forma relacional particular que articula distintas formas de mobilidade e de interação4. Ao longo da pesquisa, percebeu-se que os modos de ação articulados pelas rodas ocorrem por meio da mobilidade específica das viagens. Essas viagens são tanto as caminhadas para banhos e ingestão de água das serras, tidas como moradas de ‘ancestrais’, quanto os deslocamentos da pessoa ao benzer ou sonhar para as casas cósmicas do céu, do rio, da terra, onde habitam ‘ancestrais’ e seres como o Trovão, as Gentes-Onça, as Gentes-Cobra, dentre outros. Contando sobre os ‘ancestrais’, viajando rumo às serras ou aos planos-casa, os senhores hup atuam na passagem entre contextos, na transição entre estados, na transformação de pessoas e de perspectivas. Nesse sentido, a abordagem processual de Turner (1967) ajuda a perceber como nesses deslocamentos ao longo do mundo ocorrem transições e metamorfoses entre (betwixt and beetween) tempos e espaços. Apenas dessa maneira é possível atentar à configuração de uma memória ritual que se dá na recordação e no esquecimento, entendidos como atos de percepção das mudanças criadas, experienciadas, sofridas, desejadas e temidas ao longo da vida das pessoas hup (SEVERI, 1996; GOW, 2001). As rodas situam processos de educação da atenção em que o contar e benzer são vistos como atos de mostrar sentidos que então no mundo e que consolidam a longa hist ria de intera ões dos Hupd’äh com os diversos seres: ‘ancestrais’, espíritos, animais, pessoas de outras etnias e, mais recentemente, Brancos com quem cohabitam. A atenção aos gestos do preparo da coca, às posturas corporais, aos atos de palavra, aos modos de deslocar-se em benzimento ou pelos caminhos que revelam a memória ritual 4

As breves observações feitas pelos pesquisadores do Noroeste Amazônico sobre as práticas da coca até o trabalho de Hugh-Jones (1995) explicitam certa invisibilidade desse modo de sociabilidade na literatura etnológica. No entanto, as rodas de coca situam, noite após noite, uma dinâmica constante de interações por meio da articulação característica de relações (HOUSEMAN & SEVERI, 2009: 182). Ao acompanhar o narrar, o benzer e o sonhar como uma sequência articulada de modos de ação dos encontros noturnos abre-se a possibilidade de seguir a organização da ação performática nela mesma (idem: 208) através não da exegese total de um ritual, mas das múltiplas condensações rituais que associam esses modos de relação.

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como um processo de engajamento perceptual com o ambiente para interações reflexivas (INGOLD, 2000). Os lugares Sagrados – o caminho das nuvens

Às vésperas de nossa viagem às serras para pescar e visitar os lugares sagrados, a chuva insistia em cair. Parecia mais forte a cada dia. No final da tarde, as tempestades invadiam a aldeia com suas águas, ventos fortes e relâmpagos que dificultavam a realização das rodas de coca e adiavam nossa caminhada. Foi, então, que uma massa de nuvens negras formou-se no céu quando estávamos sentados em roda. Com toda a força de suas águas e ventos, a tempestade vinha em direção da aldeia. Os estrondos dos trovões e a claridade dos relâmpagos assustavam a todos. Ponciano parou de falar. Começou a soprar um cigarro. Os lábios pronunciavam palavras silenciosas. Num dado momento, acendeu o fumo e se levantou. Tragou. Fechou sua mão direita e levou-a para perto da boca. Os olhos parados nas nuvens negras que se aproximavam. Um sopro vindo do peito lançou a fumaça para fora do corpo. Ao mesmo tempo, Ponciano arremessou com força sua mão e seu braço para longe e fez com que a tempestade rumasse por outro caminho para a

h ’et- oh-Moy/, a “ asa-da- a eceira”.

epois, o enzedor sentou-se novamente. Retomou seu lugar à roda. me como se realiza esse

ueria contar-

h i’id , “ enzimento da chuva”, que faz com que as nuvens se

afastem para outro caminho no céu e não despejem suas águas, raios e trovões sobre a aldeia. B1 S



’ / - Benzimento para cercar a chuva/ inverno

Você fala o nome de Mu’se’ , aquele da í lia. Você se levanta e a re os ra os como ele fez para abrir o Mar Vermelho. Como ele, você afasta as águas para as cabeceiras. B2 S



’ / - Benzimento para cercar a chuva/ inverno

Lê-se a tartaruga vermelha e sua canoa. A tartaruga preta e sua canoa. Fala-se para ela colocar todas as suas coisas em sua casa, dentro de sua canoa, e ir nadando até a cabeceira. Seu nado, o movimento de suas nadadeiras vai separando a água. Como Moisés quando separou as águas. Isso vai cercando a água também. Fala-se para suas /dëh hup h h/, para suas coisas/armas. Fala-se para sua /h y ’ah/, sua tesoura da origem. Então, conforme ela vai nadando ela afasta a água da chuva e cerca.

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As nuvens afastaram-se logo depois que ele realizou o ato de benzimento e recebeu o olhar de aprovação e reconhecimento de seus companheiros. Em seguida, sentou-se e começou a contar os encantamentos. Em pé com o corpo voltado para as nuvens que se aproximavam, o velho Ponciano evocava as ações de Moisés e das tartarugas. Seus gestos fizeram com que a fumaça que saía de sua boca fosse lançada em direção às nuvens. Ao jogar seu ra o, fez com que elas rumassem para a “ asa-da- a eceira”. Na relação que se estabelece com as nuvens ocorre uma interação entre uma fumaça terrestre e uma fumaça celeste. O benzedor imitava o nado da tartaruga abrindo os braços e espalhando o ar à sua frente. Moisés abriu o Mar Vermelho. Estendeu a mão e Javé fez soprar um vento oriental muito forte que perdurou a noite inteira e dividiu as águas em duas. Lançando o braço à frente, Ponciano imitava o ancestral dos Brancos. A coluna de nuvens que acompanhava o “povo de deus” retirou-se da frente deles e colocou-se atr s. Assim, o “povo de deus” pôde seguir, atravessando o Mar Vermelho com os “pés enxutos”. ontinuaram pelo caminho indicado por Javé, que os levaria ao Monte Sinai e à Terra Prometida, onde corre leite e mel. Pela manhã, quando os soldados egípcios atravessavam o mar aberto, Javé fez as colunas de água desabar sobre eles, aniquilando-os completamente (Ex. 3,14; 4,33; 1990a). Para que pudéssemos viajar para os morros e para as Moradas Antigas, o xamã alterou o rumo das nuvens da tempestade para a cabeceira, fazendo com que os caminhos alagados secassem.

Modos de ação correlacionados Um profeta

ergue

o

braço

divide o mar

afasta as nuvens para a retaguarda

A

Nada

separa

tartaruga

as águas

afasta as nuvens para a cabeceira

Um benzedor

lança

o

braço

sopra a fumaça

afasta as nuvens para a cabeceira

Fig. 2: Quadro comparativo de ações

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As ações do benzedor, do profeta e da tartaruga geram mudanças num dado ambiente com o qual se relacionam. De modo muito interessante, a viagem de Moisés e seu povo rumo à Terra Prometida parece ser uma transformação da viagem da tartaruga com destino à Casada-Cabeceira. Soprando esses modos de ação para o cigarro, o deslocamento da fumaça e o movimento corporal alteram o destino da tempestade. A chamada tartaruga-da-amazônia (podocnemis expansa) é considerada a maior tartaruga de água doce da América do Sul, chegando a medir 70 cm e a pesar 25 kg. Sua coloração varia entre o marrom, o verde e o cinza-oliva. Ela habita as áreas de floresta alagada durante as cheias e migra no período das secas para os corpos de água principais (rios, lagos, paranás, ressacas), em busca de praias para desovar. A /mih-pög/ que encontramos nessa Casa-de-Pedra estava possivelmente abrigando-se na caverna. Protegida de seus predadores nessa morada hup ancestral, a tartaruga estava no mesmo lugar para onde o xamã havia orientado seu deslocamento, a cabeceira de um rio. Na linguagem dos benzimentos, as nadadeiras da tartaruga são ao mesmo tempo remos, /h y’- ’ah , e tesouras l minas, hey’ ’ah . Para a tartaruga convergem percepções simultâneas sobre a mobilidade e a permanência que a tornam uma espécie de ser movediço na acepção que Deleuze e Guattari (1995) dão ao termo. Partindo da reflexão de Ingold (2000: 127), entendemos que na prática dos benzimentos haja a articulação entre um modo totêmico, com a ênfase em aspectos da morfologia e anatomia, e a um modo anímico, com a ênfase no movimento, postura e comportamento dos seres. Desse modo, a tartaruga que tem em seu casco um abrigo e uma canoa pode ser vista como um ser especialmente interessante por condensar em si, em seu corpo, a morada e o meio de transporte. De modo singular, ela está dentro e fora de sua casa, em sua morada e nos caminhos a todo instante. Enquanto o anfíbio navega em sua casa, os Hupd'äh caminham sobre uma canoa. O Povo de Deus, por sua vez, viaja sem casa rumo à Terra Prometida e atravessa o Mar Vermelho sem canoa, com os pés enxutos.

As Analogias Ancestrais

Pensando com Carneiro da Cunha (1998), B1 pode ser tomada como uma tradução xamânica de B2, possivelmente ela orada ap s a consolida o dos “povoados-miss o” como a aldeia de Taracuá-Igarapé e da participação nas missas, das escolas salesianas, dos batismos que foram situando os Hupd’äh num processo de evangeliza o j em curso com outros povos da região. Como o Povo de Israel, eles viajavam para terras distantes, para longe das

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cabeceiras, das /Paç-Moy , “ asas-de-Pedra”, pr ximas às quais seus ancestrais procuraram sempre constituir suas moradas. De acordo com Reid (1979), antes de 1890 e até 1950, os Hupd’äh viviam na regi o das cabeceiras dos igarapés ao longo dos quais se encontram as aldeias atuais, situadas em reas mais pr ximas aos grandes rios. Entretanto, a violência posta em pr tica com o “ oom da orracha” (1890 a 1900) e com a atua o dos representantes governamentais (Manducas)5 teria levado os Tukanos a deixarem a área ribeirinha para fixarem-se em aldeamentos nas áreas florestais, a algumas horas de caminhada. Segundo Reid (1979), esse deslocamento populacional tukano levou as comunidades hup a afastarem-se para áreas ainda mais próximas às cabeceiras. Como visto, durante a viagem à Serra Grande, os espaços da morte povoam a região trazendo lembranças dos confrontos e das vítimas. Os representantes governamentais, os exploradores de borracha e mesmo os Tukanos muitas vezes atacavam as aldeias hup para assassinar e escravizar pessoas (REID, 1979: 25 – 26). Nos ano 40, ocorreu a aproximação dos salesianos, muitas vezes mediada pelos Tukanos. Os mission rios alizavam seu “projeto civilizat rio” no aprendizado do português, na moradia em casas nucleares e na conversão cristã, além de condenarem a ação dos exploradores de borracha. À luz da analogia bíblica, esse movimento migratório para as cabeceiras assemelhase ao Êxodo, uma fuga da perseguição dos soldados egípcios. O paralelo entre os percursos e os sentidos dos deslocamentos desses vários agentes dos encantamentos torna-se interessante para entender o processo histórico que levou à constituição da grande aldeia de Taracu garapé, Tat-Dëh/. Surpreendentemente, o Êxodo até o Mar Vermelho e a migra o dos Hupd’äh para as imedi Na leitura xamânica hup do texto bíblico, Moisés desloca as nuvens para trás, para as cabeceiras, distanciando-as do Mar Vermelho assim como as nascentes estão do rio Tiquié. No mesmo eixo, a viagem que faríamos aos lugares sagrados, o percurso da tartaruga em B2 e o afastamento das nuvens estabelecemiríamos abrir as trilhas fechadas pela floresta e pelo tempo. Nossa jornada aos “lugares sagrados” constituir-se-ia ao mesmo tempo de atos de relembra dos mentores que visitariam os lugares onde cresceram e conviveram com seus pais e avós, e de percursos de observação

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Wright (2005: 213) comenta que Manuel Al uquerque, o “Manduca”, fora um rasileiro mesti o que ocupou o posto de subprefeito de São Gabriel obtido no auge do boom da borracha. Com a ajuda dos irmãos, ele controlava o trabalho indígena por meio da violência e terror.

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ao longo dos quais os jovens conheceriam histórias e seres através de seus próprios movimentos e ações e por meio das indicações e narrativas dos mais velhos. Atentos às histórias e à convivência com os antepassados nesses lugares, movíamonos de um lugar a outro dentro de uma região de memórias. Segundo Ingold (2000): Likewise, every ‘somewhere’ is not a location in space, ut a position on a path of movement, one of the matrix of paths comprising the region as a whole. In short, whereas everywhere-as-space is the world as it is imagined from a point of view above and beyond, everywhere-as-region is the world as it is experienced by an inhabitant journeying from place to place along a way of life (INGOLD, 2000: 227).

A cada passo, os caminhos fechados iam tornando-se caminhos vividos, ou como formula Ingold (2000), percursos de observação nos quais nos posicionávamos pelo itinerário contínuo de nossos movimentos. Atentos ao entorno, os jovens ouviam seus guias e os sons da mata voltavam-se para olhar atentamente quaisquer plantas, animais, paisagens mostradas pelos mais velhos. Percebendo o ambiente a partir de todos os lugares, os saberes iam sendo gerados em campos de prática que faziam convergir eventos da viagem xamânica das “rodas de coca” com situações ocorridas durante o percurso (Ingold, 2000: 226). O caminho do “povo de deus”

Segundo Athias (1995) (2006), foi apenas nas décadas de 60 e 70 que os missionários salesianos iniciaram atividades mais intensas para evangelizar e transformar o que entendiam ser o “modo tradicional de vida” dos Hupd'äh. Reid (1979: 28) sustenta que, no final dos anos 40 e ao longo dos anos 50, iniciou-se o processo migratório que levou as aldeias hup a afastar-se da região das cabeceiras (inter-flúvios) e começarem a fixar-se nas áreas próximas aos grandes rios e às aldeias tukano e desano. Ao mesmo tempo, suponho que a atenção para as histórias dos ancestrais dos Brancos, num contexto marcado pela ação missionária e pelas orações e histórias bíblicas, tenha sido fundamental para muitos da geração de Ponciano. A bíblia e o velho testamento trazem outros ancestrais, outros poderes, outros ambientes e outros tipos de ação característicos dos Brancos. A exegese do benzimento (B1) é também uma hermenêutica do texto bíblico, feita por pessoas que observam os missionários, seus ancestrais e suas ações. Imitando-os, mobilizam para si poderes desses Outros e ampliam suas possibilidades de ação no ambiente ribeirinho que passaram a habitar. De forma semelhante, o convívio com os padres e as freiras permite a compreensão de aspectos do modo de vida e comportamento dos Brancos. A aversão ao “rou o” faz, por

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exemplo, com que ao rou ar os Hupd’äh afastem os mission rios e riam deles. O casamento das noviças indígenas causa a ira do padre e permite que as moças retornem às suas vidas conjugais. O riso evidencia o aparente poder de subversão da ação missionária que os antigos hup possuíam, sendo capazes de atrair e afastar os religiosos como quem afasta as nuvens de uma tempestade. As ações do benzimento parecem correlacionar agências de seres que ocupam lugares estruturais semelhantes. Observando e imitando a ação de Moisés, Ponciano realiza uma hermenêutica do texto bíblico e, ao mesmo tempo, faz com que o ancestral dos Brancos, abrindo o Mar Vermelho, afaste as nuvens negras para trás, para a retaguarda, para a Casa-daa eceira, para que o “povo hup” possa caminhar rumo aos “lugares sagrados”. Os caminhos antigos, as Casas-de-Pedra e as Moradas Antigas parecem apontar, como já afirmava Reid (1979), para uma existência social e convívio de longa duração nessas regiões. Há semelhança entre os itiner rios dos ‘ancestrais’ e àqueles dos pais e av s dos viajantes hup. A identificação de tantos assentamentos, lugares sagrados, artefatos, a reabertura de caminhos antigos, somadas às descrições das práticas rituais nas Casas-dePedra, revelam as cabeceiras como pontos de referência para os padrões de mobilidade hup. Os caminhos dos antigos eram tam ém os caminhos dos ‘ancestrais’ que mudavam periodicamente suas moradas dos arredores de um morro ao outro.

Considerações finais

Os atos de relembrar do xamã constituíam-se, portanto, como percursos de observação, como caminhos vividos que mesclavam seus movimentos àqueles dos ‘ancestrais’. É no percurso entre as rodas de coca, os caminhos sagrados e as Casas-de-Pedra, movendo-se com o corpo, com a pessoa-sopro ou com a roupa, que múltiplas condensações rituais ocorrem a partir do modo como os viajantes se posicionam num campo de rastros deixados pelos ancestrais, presas, feras, Brancos, etc. (DELEUZE & GUATTARI, 1995: 60). Assim, a tartaruga é nódulo de representação com a qualidade de ‘ser movediço’ na acepção que Deleuze e Guattari (1995) dão ao termo, que seria o elemento aglutinador de novos elementos de ancestralidade (como Moisés) na ordem cosmológica. Tal nódulo aglutinador, portanto, também fornece sentido êmico incorporando a narrativa bíblica na visão de mundo Hupd’äh. Retomando a discussão inicial sobre patrimônio, Coelho de Souza (2010) faz a seguinte consideração sobre o aspecto temporal, em especial o da ancestralidade, baseado no

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contexto etnográfico dos Piro – com o qual podemos fazer um paralelo com o contexto Hupd’äh apresentado acima:

Se a memória dos cuidados entre pessoas é o que constitui as relações de parentesco e a sociabilidade piro (GOW, 1991), o cultivo de uma tal memória após a morte é terrivelmente perigoso, e os Piro, como virtualmente todos os ameríndios, procedem a um esforço deliberado de esquecimento dos que morreram, do qual a destruição ostensiva dos pertences dos mortos é um dos aspectos mais evidentes. E, no entanto, os ensinamentos, os “costumes dos antigos”, continuam sendo mantidos vivos. Como? Como conhecimento — inscrito no corpo — dos vivos (COELHO DE SOUZA, 2010: 154).

Assim, temos além dos já clássicos embates entre diversas noções de patrimônio (Revista do Patrimônio, 2012, N34-IPHAN) há uma maior aproximação com a crítica do ‘tradicionalismo’ vinculado ao patrimônio, assim explicada por Garcia anclini:

Para radicalizar essa dessubstancialização do conceito de patrimônio nacional é necessário questionar essa hipótese central do tradicionalismo, segundo o qual a identidade cultural se apoia em um patrimônio constituído através de dois movimentos: a ocupação de um território e a formação de coleções (2006: 190).

Portanto, ter em conta os aspectos ocidentais de patrimônio e ancestralidade, faz parte de uma prática não só teórica de uma arqueologia, como também de valorização prática de referenciais nativos. Isso incentiva o interesse das populações locais sobre o tema de patrimônio, ampliando a sua definição - ele se torna histórico e apoiado em múltiplas visões de mundo. É nesse sentido que Gnecco e Ayala (2011: 26) fazem a seguinte afirmação: “Se o desentendimento indígena por ‘coisas arqueológicas’ n o é um ponto de partida e sim um assunto que pede para ser interpretado, também o é o desdém dos arqueólogos por outras histórias contadas, que merece atenção analítica”. Assim, a abordagem Hupd’äh sobre ancestralidade demonstra o interesse sobre o patrimônio

arqueológico,

associando-o

a

explicações

cosmológicas

e

ontológicas

extremamente complexas. E tal conciliação de interpretações – científica e êmica – deve ser feita levando em consideração a crítica da autoimagem de ciência arqueológica. A complexifica o da no o de ‘ancestral’ é apenas um dos caminhos possíveis nessa busca pelo diálogo entre categorias acadêmicas e ontologias ameríndias. Muitos outros caminhos se farão presentes se refletirmos colaborativamente – pesquisadores e interlocutores - para própria construção das epistemes e dos modos de percepção e ação.

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ESTAÇÕES FERROVIÁRIAS EM BAURU (1917-1939): O ECLETISMO E O ART DECO, MARCAS DA REPÚBLICA VELHA E DA ERA DE VARGAS NO INTERIOR DO ESTADO DE SÃO PAULO Railway Stations of Bauru (1917-1939): The Eclecticism and Art Deco, Marks from the Old Republic and from the Vargas Era, in the Interior of São Paulo State Estaciones de Ferrocarriles em Bauru (1917-1939): El Eclecticismo y el Art Deco, Huellas de La República Vieja y de La Era Vargas en el Interior Del Estado de São Paulo Fabio Paride Pallotta1

A “gare” de Bauru. As palavras do professor Rocha Lima sobre a Estação da Noroeste: Já comentamos o que representa para esta zona a promessa que o professor Dr. Rocha Lima, diretor do Instituto Biológico, formulou quando aqui esteve há poucos dias: uma secção daquelle importante departamento seria installada em Baurú para atender toda a região. Há uma referência porém, na entrevista que nos concedeu que merece comentário especial. Homem que tem viajado largamente pela Europa e por outros continentes s. s. disse que só na Itália e Alemanha paizes que têm renascido para o seu antigo explendor, viu estações ferroviárias do porte da que esta sem conclusão em Baurú. Deve desvanecer-nos, o confronto de tão illustre brasileiro lembremo-nos do antigo director da Noroeste, o engenheiro Alfredo de Castilho, sem a sua iniciativa da qual a grandiosa “Gare” continuaria a ser, não se sabe até quando aquilo que fora muitos e muitos annos, desde o tempo da extincta companhia: - um simples e simpático projeto2.

RESUMO O presente trabalho tem como objetivo apresentar os estilos arquitetônicos das Estações de Ferro de Bauru, entre 1917 e 1939, como marcos simbólicos do poderio das oligarquias cafeeiras da República Velha (1889-1930) e da Era Vargas (1930-1945) com seu estilo Eclético e Art Deco, respectivamente. Palavras-chave: Estações Ferroviárias, República Velha, Era Vargas. ABSTRACT This paper aims to present the architectural style of the Stations Iron from Bauru between 1917 and 1939 as landmarks, symbols of the power of coffee oligarchies of the Old Republic (1889-1930) and the Vargas Era (1930-1945) with his Eclectic style and Art Deco respectively. Keywords: Railway Stations, the Old Republic, Vargas Era. 1

Mestre em História e Sociedade pela Faculdade de Ciência e Letras – Campus Unesp Assis – São Paulo; Docente do Curso de História da Universidade Sagrado Coração – Patrimônio Cultural; Pesquisador do Grupo de Pesquisa Gênero, Sexualidade e Sociedades (Cnpq/Usc); Membro do Codepac-Bauru (Conselho de Defesa do Patrimônio Cultural de Bauru). E-mail: [email protected]. 2

Correio da Noroeste, ano VII, nº 2123, 01/06/1938, p.1.

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RESUMEN Este trabajo tiene como objetivo presentar el estilo arquitectónico de las Estaciones de Ferrocarril de Bauru entre 1917 y 1939 como puntos de referencia, como símbolos del poder de las oligarquías cafetaleras de la República Vieja (1889-1930) y la Era Vargas (1930-1945) con su estilo Ecléctico y Art Deco, respectivamente. Palabras clave: Estaciones de Ferrocarril, Republica Vieja, Era de Vargas.

Introdução A cidade de Bauru surgiu a partir da expansão das lavouras de café, pelo Oeste Paulista, mas só desenvolveu-se com a chegada das ferrovias paulistas: a Companhia Estrada de Ferro Sorocabana-EFS, em 1905, a Companhia de Estradas de Ferro Noroeste do BrasilEFNOB, também em 1905 e a Companhia de Estradas de Ferro Paulista-Cia. Paulista, em 1910. Apesar da importância das estradas de ferro na modernização da cidade de Bauru, elas não possuíam estações de embarque e desembarque adequadas para servir a população e para transportar as mercadorias a contento, como relatou o Correio de Bauru de 1925:

As primeiras impressões de quem visita Bauru Não são das melhores, as impressões que da cidade, no seu exterior formulam á primeira vista, os nossos forasteiros. Isto quando eles desembarcam em qualquer das tentações férreas locaes. A Sorocabana possue acanhado barracão de tijolos. Sua plataforma estreitíssima, suja, offerece sério perigo aos que nella aguardam os trens em dias de movimento intenso, que não são raros. Este movimento redunda em largos proventos que a estrada offerece, na parte que respeita a venda de passagens em Baurú. A Noroeste nos serve em um segundo barracão extenso, e este de madeira com defficientes acomodações deante do movimen to diário de viajantes que ali facilmente se observa. Estação provisória em vias de substituição como adeante falaremos (Correio de Bauru, anno X, nº 1184, 10/12/1925, p.1).

Na cidade de Bauru, no início do século XX, as estações eram pequenas e de arquitetura ferroviária tradicional, distante dos anseios das elites que pretendiam que o principal ponto de chegada à cidade fosse semelhante às imagens idealizadas de um “cartão de visitas”: (...) sem grandes variações e com raras exceções, os modelos europeus. As estações de passagem e os terminais ferroviários apresentaram as mesmas características construtivas e plásticas das européias, isto é, as estruturas metálicas (quando existiam) se justapunham aos maciços de alvenaria, sem integração plástica (GUEDES, 2003).

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Mas não eram apenas as estações que causavam mal estar entre os habitantes da cidade: a própria existência e administração das ferrovias estavam sob cerradas críticas, pois a EFNOB, que nascia em Bauru, contava com a sua administração lotada no Rio de Janeiro, à época, Capital Federal da República. Para tentar resolver esta situação, foi escolhido como administrador da EFNOB o engenheiro Arlindo Gomes Ribeiro da Luz (NEVES, 1958: 140), ou Arlindo Luz como ficou conhecido na cidade de Bauru. Ele trouxe para Bauru todo o pessoal da administração da EFNOB, que devido ao fato de terem se deslocado do Rio de Janeiro para o interior do Estado de São Paulo começaram a ser chamados de “Os Cariocas”, trazendo novas sociabilidades às quais a sociedade bauruense não estava acostumada. Além disso, construiu e inaugurou um novo complexo de oficinas que pela sua dimensão e complexidade só foi alcançado pela indústria automobilística no ABC paulista quarenta anos depois:

(...) Inauguradas no início dos anos 1920, junto a um setor de expansão urbana, afastado do núcleo central, as oficinas e rotunda (utilizada para manobrar as locomotivas) demonstram claramente pela escala e porte a transferência da sede da N.O.B. para a cidade de Bauru, efetivada em 1918, juntamente com a encampação da ferrovia pela União (...). As instalações das oficinas, se comparadas a dimensão da cidade, na época com 15 mil habitantes expressavam que o conjunto pertencia não a escala local, e sim a uma estrada de ferro de mais de 1200 km, que interligava estados e países (...). Para atender as imensas necessidades da ferrovia foi construída uma verdadeira cidade industrial, que centralizava suas principais atividades (...) era clara a divisão de trabalho bem como o processo de montagem, que ao nosso ver, só passa a ser igualado nesta proporção, em nosso país, com a vinda das indústrias automobilísticas para o ABC paulista quarenta anos depois (...) (GHIRARDELLO, 2001: 04).

Novas estações e estilos: exercício de poder e mando

O engenheiro Arlindo Luz, além das monumentais Oficinas, começou a realizar diversas melhorias na EFNOB com a compra de trilhos de melhor qualidade da Bélgica: “Melhoramentos na Noroeste - Chegaram os novos trilhos belgas que serão colocados por obra e engenho do snr. Arlindo Luz que traçou um programa de reconstrução da Estrada” (O Bauru, anno XV, nº 723, 28/07/1921, p.1).

O diretor da EFNOB, em prestação de contas de sua administração para o Ministro da Viação, J. Pires do Rio relatou as condições em que encontrou a Estrada de Ferro Noroeste do Brasil em Relatório referente ao ano de 1921. Declarava o engenheiro:

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Revista de Arqueologia Pública, n.9, Julho de 2014. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP. Exmo. Sr. Ministro: Ao assumir V. Exa. a pasta da Viação e Obras Publicas a Noroeste achava-se ainda absolutamente desapparelhada para attender a seus objectivos. Linha sem dormentes de Baurú até Porto sperança; trilhos fraquíssimos e em extremo gastos no trecho da antiga Baurú-Itapura; estações quase todas provisórias, de madeira já apodrecida, sem áreas para abrigar as mercadorias desembarcadas ou a embarcar; material de tracção e de transporte insufficente e em mau estado de conservação; falta de officinas e de abrigos para o material rodante; ausência de ponte sobre o Rio Paraná, determinando o estrangulamento do trafego entre São Paulo e Matto Grosso; pontes provisórias sobre innumeras travessias, em muitas das quaes os trilhos são lançados sobre simples fogueiras de dormentes (...) (...) falta de disciplina em grande parte do pessoal cujos quadros se achavam em phase de reorganização e adaptação conseqüentes à incorporação da linha Baurú-Itapura, encampada em 1918, à ItapuraCorumba, já de propriedade do Governo e por ella administrada; tudo influía para os serviços de trafego, apezar dos esforços da administração se fizessem com graves irregularidades, sem pontualidade e sem segurança, ameaçando de ruína a grande fortuna particular empenhada na exploração industrial de uma das mais férteis regiões da nossa pátria (ESTRADA DE FERRO NOROESTE DO BRASIL. Relatório referente ao exercício de 1921. Bauru, p.3).

Além de tentar colocar ordem na questão administrativa, Arlindo Luz recebeu a incumbência de construir uma nova estação ferroviária “à altura” da cidade e da EFNOB, estrada de ferro estratégica, para integração com o Mato Grosso, diferente das demais estradas de ferro paulistas que tinham como principal atividade estarem a serviço do café. O projeto foi elaborado de acordo com o estilo arquitetônico eclético que fora adotado nas remodelações das cidades, ocorridas no Brasil em fins do século XIX e início do século XX, com o advento da República. O Brasil havia mudado de regime político e com ele foi adotado outro estilo arquitetônico, o eclético que, se não oficial, rompeu com os antigos ditames construtivos. O estilo arquitetônico eclético, apesar de usar muitos elementos decorativos, era um estilo construtivo aceito pelas pessoas de então: portas e janelas mais bem enquadradas e vedadas; o uso de banheiros com pias, bidês e vasos sanitários, condição possível pela criação de rede de água e esgoto nas cidades, que passavam a adotar tanto um urbanismo incipiente, quanto novas formas de higiene (REIS FILHO, 2002). De acordo com Reis Filho, na arquitetura ferroviária o eclético se mostrava pelas peças de ferro fundido que compunham a gare de embarque com grande trabalho artístico de decoração e os elementos já mencionados:

(...) Os agentes sociais dessas transformações, membros das camadas sociais urbanas em ascensão, atuariam sob influência do positivismo e do ecletismo arquitetônico. Essas camadas iriam construir e utilizar uma arquitetura mais atualizada e tecnicamente elaborada, sem o auxílio do trabalho escravo (REIS FILHO, 2002: 145).

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A população ficou entusiasmada com a possibilidade da construção da estação ferroviária da EFNOB que deveria ser grande e vistosa para “abrilhantar” as elites locais. O projeto da nova estação da EFNOB, bem como das plantas, foram aprovadas na seguinte ordem: 29 de junho de 1922, planta baixa; 19 de agosto, fachada principal e no dia 19 de setembro a fachada lateral. Estas datas foram encontradas nas respectivas plantas com assinatura de Arlindo Luz, diretor-engenheiro da Noroeste e Olavo F. de Oliveira, engenheiro responsável pela seção técnica da Vª Divisão responsável pelas obras novas.

. Fig. 1: Fachada principal da nova estação da Noroeste em Bauru. ESTRADA DE FERRO NOROESTE DO BRASIL Relatório da Diretoria referente ao exercício de 1921. Projeto da administração do diretor-engenheiro Arlindo Luz de 1922, nunca construída. Planta avulsa.

Fig. 2: Planta Baixa da nova estação da Noroeste em Bauru. ESTRADA DE FERRO NOROESTE DO BRASIL Relatório da Diretoria referente ao exercício de 1921. Projeto da administração do diretor-engenheiro Arlindo Luz de 1922, nunca construída. Planta avulsa.

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Fig. 3: Corte Lateral da nova estação da Noroeste em Bauru. ESTRADA DE FERRO NOROESTE DO BRASIL Relatório da Diretoria referente ao exercício de 1921. Projeto da administração do diretor-engenheiro Arlindo Luz de 1922, nunca construída. Planta avulsa.

O projeto da nova estação da EFNOB nunca saiu do papel. Provavelmente, devido ao momento político pelo qual o Brasil passava naquele instante, com o início das Revoltas Tenentistas, que indicavam a insatisfação das classes médias urbanas com a República Velha. Paralelamente, o Modernismo Brasileiro também indicava a insatisfação presente nas artes, literatura, pintura, escultura ainda que grande parte dos modernistas fosse das elites letradas dos cafeicultores de São Paulo. Apesar do abandono do projeto de estação da Republica Velha, Bauru não perdia a esperança de que a cidade ganhasse sua nova estação ferroviária: Nova Estação No dia 7 do corrente (novembro) o snr. Presidente da República assignou o decreto aprovando o projecto para a construção da Nova Estação da Estrada Noroeste nesta cidade, construcção esta que será iniciada brevemente. É um edifício magnífico e que muito vira embelezar a nossa cidade. Agora que a Noroeste vae iniciar esta grande obra, esperamos que as Estradas Sorocabana e Paulista se resolvam também a construir as suas estações fazendo com que desappareçam os actuais barracões (O Bauru , anno XVI, nº 852, 09/11/1922, p.2 )3.

Através da Revolução de 1930, assume o poder Getúlio Dornelles Vargas, com novas propostas para o Brasil. Dentro do espírito de racionalizar e melhorar a administração pública no país criou a Sociedade de Melhoramentos, responsável pela modernização e investimentos nas ferrovias do estado de São Paulo, em especial a EFNOB. Com essa nova 3

Vale lembrar que a nova estação só foi construída muito mais tarde e o engenheiro diretor Arlindo Luz, como dito anteriormente, ficou decepcionado com a desatenção para com a sua administração. Outra frustração da administração Luz foi a não construção da ponte sobre o Rio Paraná, eleita como questão de honra de sua passagem pela Noroeste, anunciada e também não construída. Devido a essas manifestações de falta de prestígio político junto ao Ministério da Viação e Obras Públicas, Arlindo Luz requereu a sua exoneração.

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característica, foi dado início a construção da nova Estação Central, que não seria mais só da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, mas reuniria todas as ferrovias paulistas que possuíam linhas-tronco na cidade. Além da EFNOB, a Estação Central seria formada pela Companhia de Estradas de Ferro Sorocabana e pela Companhia de Estradas de Ferro Paulista. Ao centro estaria a EFNOB, no lado direito a Cia. Paulista e no lado esquerdo, a Estrada de Ferro Sorocabana. O estilo adotado foi o Art Deco4, que deveria deixar claro que o Poder Público era exercido por novos arranjos políticos com Getúlio Vargas, no Executivo Federal. Sua atuação política se dava pela aproximação junto aos cidadãos em ocasiões especiais, marcando presença, ocupando espaços e mostrando sua autoridade, deixando claro a sua capacidade de atuar em várias instâncias da economia, da política, bem como exercer poder simbólico, que nesse caso, se mostrava pela construção da tão almejada Estação Central (REVEL, 1990: 104)5. Em 1938, portanto já no período do Estado Novo, Getúlio Vargas fez uma visita à Bauru. Foi acompanhado do interventor de São Paulo, Adhemar de Barros, antigo político do Partido Republicano Paulista e, à época, membro dos quadros do Estado Novo Varguista. Na cidade, Vargas passou em revista à construção da Estação Central, fez contatos políticos e em especial deixou claro que, apesar do aspecto festivo, a ditadura do Estado Novo era uma realidade e tinha o apoio de uma grande parte do exército: Baurú recebe amanhã (20 de julho) a visita do chefe da Nação. Em companhia do sr. Getúlio Vargas e de sua esposa e filha vêm a sra. e o sr. Adhemar de Barros, interventor federal em São Paulo, o interventor fluminense comandante Amaral Peixoto, o General José Pinto, chefe da Casa Militar da Presidência e outras altas personalidades – A viagem será feita em aviões que voarão directamente do Rio até Baurú, iniciando-se aqui a excursão presidencial pelo nosso Estado (Correio da Noroeste, anno VIII, nº 2154, 19/07/1938, p.1).

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BRESLER, H. O Art Decoratif Moderno na França. In: 1º Seminário Internacional Art Deco na América Latina. Rio de Janeiro: Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. Em Art Deco (diminutivo de Art Decoratif, termo que passou a ser usado a partir de 1925, em comemoração à exposição de Art Decoratif em Paris) de caráter monumental. Reunia todas as ferrovias existentes na cidade, com uma justaposição espacial. Esse estilo arquitetônico nasceu na exposição Internacional de Artes decorativas e Industriais Modernas de 1925 em Paris (Exposition Internationale dês Arts Decoratifs et Industriels Modernes) como uma reação aos excessos cometidos pelo Art Nouveau. Sua proposta era purificar e liberar os edifícios da exuberância do Art Nouveau, passando a ter fachadas planas eliminando desenhos simbólicos, linhas contorcidas inspiradas na flora, jogos de curvas, tudo em nome da higiene, da economia e da modernização. 5

REVEL, J. A invenção da sociedade. In: Coleção Memória e Sociedade. (...) o conhecimento do território é a produção do território (...) p. 104; (...) A viagem de Estado oferece assim um recurso que jamais será esquecido. A sua formula será afinada pouco a pouco, a montagem mais elaborada, as intenções mais complexas, mas é a mesma estratégia de constituição e de legitimação do poder soberano pelo território que irá a partir daí atravessar os séculos. (..) p. 106.

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O exército marcou presença na administração da EFNOB através do major Américo Marinho Lutz, militar do exército, escolhido para administrar a EFNOB por ter a confiança dos seus companheiros de farda e de Getúlio Vargas. Essa confiança ficou patente em discurso proferido pelo administrador castrense em comemoração ao seu primeiro ano de administração, quando foi agraciado com um banquete com centenas de talheres, mostra de seu prestígio político. A Política dos Banquetes era prática comum para demonstrar a concordância com a política desenvolvida pelo homenageado e mostrar seu prestígio entre seus pares: O DISCURSO DO MAJOR MARINHO LUTZ Agradecendo a homenagem prestada á sua pessoa o major Marinho Lutz, director da E. F. Noroeste pronunciou o seguinte discurso: “Senhores. Aceitando e agradecendo esta homenagem, não o faço, entretanto, somente em meu nome, senão também, em nome da Noroeste, que tenho a honra de dirigir e de todos que nella mourejam diariamente no cumprimento do dever. (...) No exercício desta funcção que me confiou o Governo da República, não respondo somente pelos actos de simples administrador, sugeito, na concepção geral, á prestação de contas do ponto de vista monetário. Si, por um lado, estou na obrigação de dar conta do patrimônio que me foi entregue, por outro pesa-me sobre os ombros o dever de honrar os galões que me foram confiados pelo Exército Nacional. De uma como de outra, posso dar contas ao Governo e aos meus companheiros de farda aqui presentes com a consciência do dever cumprido. (...) [Folha do Povo, anno 5, nº 501, 24/04/1939, p.2 (grifos meus)].

Na nova Estação Central, o Art Deco deveria demonstrar, com sua monumentalidade e pureza de formas, a supremacia e dominação do Estado Varguista sobre o Estado de São Paulo, dominando os espaços territoriais, em especial aqueles mais recentemente ocupados, como a região Noroeste.

Fig. 4: Croqui da nova Estação Central de Bauru. ESTRADA DE FERRO NOROESTE DO BRASIL Relatório da Diretoria referente ao exercício de 1933. Recebeu as três ferrovias paulistas mais importantes, com evidente destaque para a EFNOB que ficou ao centro da construção, dominando a entrada para o embarque de passageiros e o controle do tempo através do relógio. À direita, a administração da Cia. Paulista e a esquerda a Estrada de Ferro Sorocabana. As três com uma gare de embarque e desembarque comum.

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Com 10.756m2 de área construída, incluindo a Gare (área de embarque e desembarque), seus arcos de sustentação do teto foram feitos de concreto armado, tecnologia já dominada pela engenharia nacional desde a década de 1920, mas nunca usada em obra ferroviária de tal envergadura. Esta técnica construtiva substituiu o uso de estruturas metálicas de preponderância estrangeira como o proposto no projeto eclético da EFNOB de 1922, do diretor engenheiro Arlindo Luz. O Art Deco não foi a linguagem arquitetônica “oficial” do varguismo, mas da forma como foi usada na construção da Estação Central, este estilo arquitetônico “(...) assim será visto. Quando monumental representará o poder central: sólido e poderoso... Refletirá o novo e a mudança, mesmo que o novo signifique uma reciclagem do velho e a mudança se dê apenas nas camadas de superfície” (GHIRARDELLO, 2002: 08). Eis que se materializou a Estação Central, “um gigantesco prédio, com grandioso visual... assumindo concretamente a expressão máxima de posse do lugar e do seu imaginário” (POSSAS, 2001: 150).

Fig. 5: Estação Central em Art Deco em construção. Bebedouro animal com um círculo vermelho. ESTRADA DE FERRO NOROESTE DO BRASIL Relatório da Diretoria referente ao exercício de 1935. À esquerda o bebedouro para cavalos (destacado pelo círculo vermelho).

Apesar da audácia do projeto e da execução da Estação Central, ficou na fotografia oficial da sua construção, uma marca sobre a realidade urbana de Bauru, à época: apesar dos

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avanços materiais e da modernização trazidas pelas ferrovias, a cidade ainda era umbilicalmente ligada à realidade rural e agrícola como ficou claro na presença de um bebedouro para cavalos à esquerda da fotografia.

Considerações finais

Em uma cidade agrícola e dependente do café como Bauru, a ferrovia representou um impulso modernizante que modificou a cidade, suas sociabilidades, suas representações. Dentro dessas mudanças, gozar de um serviço ferroviário de qualidade era fundamental. As estações, peças chave nessa intrincada equação atormentavam a todos pela sua rusticidade e descompromisso com o funcional, com a prestação de um serviço de qualidade. A população e as elites da cidade ressentiam-se do seu aspecto acanhado, além de não cumprirem a contento com sua finalidade: transportar as pessoas com conforto e segurança e enviar mercadorias com presteza e eficiência. Os projetos das estações ferroviárias de Bauru, para substituírem as estações existentes e precárias, foram desenvolvidos a partir dos moldes da República Velha (18891930) pelo engenheiro diretor Arlindo Luz, no estilo eclético, que a todos contentaria, mas não foi executado, provavelmente pela situação política institucional que o país vivia, mas deixou claro sua inspiração no sentido da modernização conservadora. Sem execução da estação em estilo eclético, representando os ideais do Partido Republicano Paulista, Bauru entrou na era Vargas (1930-1945) com a execução da estação ferroviária, conhecida como Estação Central, em estilo Art Deco que deveria impressionar e deixar um recado claro de quais eram os novos caminhos a seguir, sendo abandonado o modelo anterior, mas não as alianças anteriores. Os reclamos da imprensa a respeito das antigas estações cessaram a partir do início das obras da nova Estação Central. A construção em si ocupou pouco espaço na imprensa, embora fosse lembrada devido às formas arrojadas para a época: por ser monumental e por seu simbolismo. Deve-se lembrar de que aquela construção, fora de escala para cidade, impressionava as elites comerciais que esperavam a normalização do fluxo de mercadorias necessárias para continuar construindo o progresso material da cidade de Bauru. Seu processo construtivo e as soluções arquitetônicas de concreto armado da engenharia nacional fugiam do ferro fundido tradicional da arquitetura ferroviária do período eclético anterior. A Estação Central de Bauru “resolveu” a questão das estações ferroviárias da cidade naquele momento, e demonstrou com sua audácia do projeto e nas soluções construtivas qual

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era a sua finalidade simbólica para a qual tinha sido erigida: a marca do poder da nova orientação política do país naquele momento.

Referências bibliográficas BRESLER, H. O Art Decoratif Moderno na França. In: 1º Seminário Internacional Art Deco na América Latina. Rio de Janeiro: Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. 1997. CORREIO DE BAURU, anno X, Nº 1184, 10/12/1925, P.1. CORREIO DA NOROESTE, anno VII, nº 2123, 01/06/1938. CORREIO DA NOROESTE, anno VIII, nº 2154, 19/07/1938, p.1. ESTRADA DE FERRO NOROESTE DO BRASIL. Relatório referente ao exercício de 1921. Bauru, p.3. ESTRADA DE FERRO NOROESTE DO BRASIL Relatório da Diretoria referente ao exercício de 1933. Bauru, p. 15. ESTRADA DE FERRO NOROESTE DO BRASIL Relatório da Diretoria referente ao exercício de 1935. Bauru, p. 12. FOLHA DO POVO, anno 5, nº 501, 24/04/1939, p.2 (grifos meus). GHIRARDELLO, N. “A arquitetura e o urbanismo na Revolução de 1930”. In: Seminário – O pensamento da direita no Brasil: perspectivas e ideologia, mídia e cultura. Unesp- Marília, Faculdade de Filosofia e Ciências. 13 de agosto de 2002 (b). _______________ Nos trilhos do passado, o conjunto da NOB em Bauru. In: 5º Seminário Nacional e 1º Encontro Latino Americano de Preservação e Revitalização Ferroviária. Unimep. 15 a 18 de Agosto de 2001. GUEDES, E. A. Parecer no processo de tombamento das estações ferroviárias de Tibiriçá, Val de Palmas e Curuçá. Processo nº 30300/03. Bauru: 2003. NEVES, C. História da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil. Bauru, São Paulo: Tilibra, 1958. POSSAS L. M. V. Mulheres, trens e trilhos: modernidade no sertão paulista. Bauru: EDUSC, 2001. O BAURU, anno XV, nº 723, 28/07/1921, p.1. O BAURU, anno XVI, nº 852, 09/11/1922, p.2. REIS FILHO, N.G. Quadro da arquitetura no Brasil. São Paulo, Perspectiva, 2002.

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ESTUDO PRÁTICO SOBRE A GEOLOCALIZAÇÃO DE SÍTIOS ARQUEOLÓGICOS NO GOOGLE EARTH Practical study on geolocation archaeological sites in google earth Estudio práctico sobre geolocalización sitios arqueológicos en google earth Francisco Gerson Amorim de Meneses1 Lanna Letícia Goes Silva Oliveira2

RESUMO A arqueologia computacional é uma área para a qual se destinam algoritmos e aplicações utilizados para prover técnicas para auxiliar os arqueólogos. Neste estudo, tratamos do software Google Earth, sua interface permite diversos tipos de visualização da superfície, além de controlar a altura com que se deseja observar os objetos de interesse. Esse recurso pode ser comparado com um ramo da arqueologia chamado arqueologia aérea, campo responsável pela prospecção de sítios arqueológicos a partir da vista aérea. Demonstraremos, neste trabalho, um recurso computacional que permite localizar sítios arqueológicos no Google Earth. Realizamos prévia visita de campo, a fim de obter as coordenadas geoespaciais do sítio através de GPS. A partir daí, criamos um arquivo computacional que, ao ser executado, mostra no globo digital do Google Earth os pontos onde foram coletados os dados de localização, bem como os dados descritivos e fotográficos do sítio em questão. Palavras-chave: Arqueologia, Google Earth, GPS

ABSTRACT The computational archeology is an area to which algorithms and applications are intended to provide techniques used to assist archaeologists. In this study, we use the Google Earth software, its interface allows various types of display surface, in addition to controlling the height at which you wish to observe the objects of interest. This feature can be compared with a branch of archeology called aerial archeology field responsible for the prospecting of archaeological sites from the aerial view. We will demonstrate in this paper, a computational resource that enables you to locate archaeological sites in Google Earth. We conducted preliminary field visit in order to obtain the geospatial coordinates of the site via GPS. From there, we created a computer file that, when run, displays digital globe in Google Earth where the points were collected location data, as well as descriptive data and photographs of the site in question. Palavras-chave: Arquaeology, Google Earth, GPS 1

Professor do Ensino Básico Técnico e Tecnológico Instituto Federal do Piauí – Campus Parnaíba-PI Mestre em Ciência da Computação E-mail: [email protected] 2

Aluna do Ensino Médio Integrado ao Técnico - Curso Desenvolvimento de Software Instituto Federal do Piauí – Campus Parnaíba-PI Bolsista do Programa de Bolsas de Iniciação Científica – PIBIC/PIBICjr Instituto Federal do Piauí – Campus Parnaíba-PI E-mail: [email protected]

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RESUMEN La arqueología computacional es un área a la que algoritmos y aplicaciones están destinadas a proporcionar técnicas utilizadas para ayudar a arqueólogos. En este estudio, tratamos el software Google Earth, su interfaz permite a los distintos tipos de superficie de la pantalla, además de controlar la altura a la que desea observar los objetos de interés. Esta característica puede ser comparada con una rama de la arqueología denominada campo arqueología aérea responsable de la prospección de los yacimientos arqueológicos de la vista aérea. Vamos a demostrar en este trabajo, un recurso computacional que permite localizar los sitios arqueológicos en Google Earth. Hemos llevado a cabo la visita de campo preliminar con el fin de obtener las coordenadas geoespaciales de la página a través de GPS. A partir de ahí, creamos un archivo informático que, cuando se ejecuta, muestra mundo digital en Google Earth, donde se recogieron los puntos de los datos de localización, así como los datos y fotografías del sitio en cuestión descriptivos. Palavras-chave: Arqueología, Google Earth, GPS Introdução

O termo computacional associado a alguma área do conhecimento, por exemplo, Biologia Computacional ou Economia Computacional, explicita a utilização de métodos computacionais imprescindíveis para que se atinjam determinadas conclusões nas esferas científicas. No que se refere à Arqueologia, não ocorre de forma diferente. Os recursos computacionais também se destinam a viabilizar as pesquisas. Partindo desse princípio, este trabalho voltou-se para a criação de um mecanismo computacional auxiliar do trabalho arqueológico. Por objetivo principal, elegemos a identificação, a partir do software Google Earth, dos locais onde existam sítios arqueológicos. Para viabilizar a proposta, realizou-se, inicialmente, uma pesquisa de campo no município de Piracuruca - PI, por meio da qual, seis sítios foram catalogados e georeferenciados. A partir de então, foi criado um recurso computacional que permite o encapsulamento e propagação das informações referentes a esses sítios em um arquivo de computador que, ao ser executado, mostra essas informações no software Google Earth. Realizamos, neste artigo, uma abordagem acerca da Arqueologia Computacional, bem como da Arqueologia Aérea e sua importância na descoberta de sítios arqueológicos de difícil visualização por terra; uma apresentação do software Google Earth, plataforma pela qual funcionará o recurso computacional implementado por nosso trabalho, além de uma descrição da Localização Geoespacial no Google Earth através do Sistema de Posicionamento Global (GPS) e do arquivo computacional KMZ, através do qual as informações sobre os

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sítios arqueológicos serão disponibilizadas. Finalmente, apresentaremos proposta resultante de nosso estudo, a saber, um recurso computacional desenvolvido e a demonstração de sua aplicação.

Arqueologia computacional

É notório, na atualidade, o crescente envolvimento e utilização de ferramentas computacionais em pesquisas nas mais diversas áreas. Nessa perspectiva, a arqueologia computacional surge no universo científico como uma área para a qual se destinam algoritmos e aplicações específicas. Na prática, a computação na arqueologia abrange um variado escopo de pesquisas, dentre as quais importa mencionar, A exploração de sítios arqueológicos, registo da evolução de escavações, estudo e análise de locais, edifícios, artefatos, obras de arte e relíquias, reconstituição e restauro de objetos, troca de informação entre especialistas, formação e, ainda, a divulgação ao grande público, quer em museus quer através da Internet. Os recursos de modelagem 3D permitem, por exemplo, a visualização de artefatos sob todos os ângulos, a comparação de formas, a visualização imersiva de locais arqueológicos antes e depois de reconstituição ou, ainda, a extração de contornos e/ou desenho de linhas, tão importantes no estudo arqueológico. A modelação, 3D ou 2D, é, também, um precioso auxiliar na reconstituição e restauro de artefatos, pinturas, locais arqueológicos e paisagens (BOAVIDA, F., Arqueologia Computacional, Disponível em: Acesso em jun. 2012).

Aspectos importantes da pesquisa arqueológica auxiliada por computadores estão relacionados à possibilidade de se realizar estudos sem um contato direto com a peça, arte rupestre ou artefato, evitando, assim, um possível desgaste provocado pela manipulação. É também relevante o fato de que, ao digitalizar esses dados e imagens, pode-se disponibilizálos através de mídias ou internet, para que mais pesquisadores tenham acesso e possam enriquecer os estudos. A esse respeito, Boavida (2011) afirma que: Entre a multiplicidade de tecnologias utilizadas na arqueologia computacional, destacam-se a tomografia computorizada, os scanners 3D (quer com base em dados sísmicos – tal como se faz na prospecção de petróleo – quer com base em técnicas óticas) a computação gráfica, as ferramentas matemáticas, os sistemas de informação geográfica e os sistemas de posicionamento (BOAVIDA, F., Arqueologia Computacional, Disponível em: . Acesso em jun. 2012).

Importante ressaltar que, a despeito do emprego de todo esse aparato tecnológico, a pesquisa não pode prescindir do conhecimento científico profissional dos arqueólogos. Assim

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como na relação com as demais ciências, a computação é uma atividade utilizada como um meio para se chegar a resultados mais rápidos e consistentes a partir da visão e parâmetros observados pelo profissional da área a ser pesquisada. Seguindo, então, esse parâmetro, voltamo-nos para a utilização de técnicas de localização geoespacial através de coordenadas obtidas por GPS, para serem utilizadas no software Google Earth, visando à automatização da localização de sítios arqueológicos, provendo informações sobre os mesmos e facilitando, assim, a pesquisa in loco.

Arqueologia aérea

Para um arqueólogo, identificar uma área onde existe um possível sítio arqueológico soterrado é muito difícil, principalmente ao nível do solo. É justamente nesse ponto que entra a arqueologia aérea, que possui uma ferramenta fundamental: a vista aérea (Figura 1).

Fig. 1: Visão aérea de um possível sítio arqueológico observado a partir dos desenhos que indicam uma intervenção na superfície3.

A arqueologia aérea é um método de exploração que utiliza o avião para a busca de sítios arqueológicos. Uma vista aérea oferece a perspectiva necessária para uma boa compreensão da paisagem e de certos fenômenos que, por vezes, são de difícil – e até mesmo impossível – visão ao nível do solo. O termo arqueologia aérea é utilizado para descrever os diferentes processos relativos à descoberta e ao registro de sítios arqueológicos no ar. Essas atividades incluem a 3

DASSIÉ, J., Aerial archaeology, Disponível em : . Acesso em fev. 2013.

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produção real de fotografias e de mapeamento e interpretação de sítios arqueológicos visíveis em fotos aéreas. O levantamento aéreo é uma das ferramentas mais importantes para a descoberta de sítios arqueológicos. Muitos locais previamente desconhecidos são descobertos e fotografados através do reconhecimento aéreo. Conforme descreve Jacques Dassié (2011): Pelo distanciamento e facilidade de posicionamento, ela permite identificar melhor esses traços divisórios no terreno. São as formas geométricas constituídas por esse processo que saltam os olhos dos exploradores e indicam os locais onde é provável que exista um sítio arqueológico (DASSIÉ, J., O Passado Visto do Céu, Revista História Viva – Especial Grandes Temas, nº 31, 2011. p. 34-37)..

Segundo Pavam (2011), “imagens aéreas capturadas por avião ou satélite permitem identificar vestígios de cidades, invisíveis nas explorações por terra”. Destaca-se, entretanto, que a prospecção aérea, por mais bem sucedida que seja, em nada diminui a importância do trabalho arqueológico de campo. Isso porque os sítios arqueológicos serão examinados e os seus planos serão publicados. Desse modo, mais fácil será – com bases nos resultados disponíveis – entender muitos sinais que ainda não foram explicados diretamente nas observações durante o voo, ou mais tarde em imagens. Há, ainda, casos nos quais pode ocorrer a impossibilidade de teste e confirmação das observações arqueológicas na superfície. Nesses, os estudos são limitados por uma variedade de razões. Além disso, existem sítios que são visíveis em fotografias aéreas, mas que não são localizadas na superfície, assim como, por outro lado, muitas posições descobertas por métodos tradicionais, por vezes não se tornam percebidas a partir da visão aérea. Hoje, porém, dada a crescente evolução da computação e a popularização da internet, cada vez mais interativa, é possível simular uma visão aérea a partir de mapas virtuais utilizando softwares destinados a esse fim. E a Arqueologia, assim como uma série de outras ciências, tem se beneficiado dessas aplicações computacionais. Um exemplo delas é o software Google Earth (Figura 2), o qual possibilita a identificação geoespacial, inclusive de sítios arqueológicos, o que facilita o acesso ao local e permite ao arqueólogo a análise espacial do entorno do sítio para que se identifiquem possíveis vestígios de locais onde existam sítios soterrados. Schann et. al. (2007) relatando sobre as descobertas de geoglifos no estado do Acre – Brasil, diz que “...a maior parte dos geoglifos foi localizada com o Google Earth”. Um dado importante é que, segundo uma reportagem da Revista NewsCientist por Zurkeman (2011), “Quase dois mil potenciais sítios arqueológicos foram descobertos na

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Arábia Saudita a partir de uma cadeira de escritório em Perth, Austrália, graças a imagens satélite de alta resolução do Google Earth”. Daí se percebe o quanto a ferramenta pode ser útil na pesquisa arqueológica.

Google Earth

O Google Earth é um software gratuito que pode ser copiado da internet a partir do endereço e instalado no computador. É desenvolvido e distribuído pela empresa americana Google e tem por função apresentar um modelo tridimensional do globo terrestre, construído a partir de mosaico de imagens de satélite obtidas de fontes diversas, imagens aéreas (fotografadas de aeronaves) e GIS (Sistema de Informação Geográfica) 3D. O computador no qual for utilizado o software deve estar conectado à internet.

Fig. 2: Tela principal do Google Earth, com destaque para um geoglifo no estado do Acre – Brasil.

O software, cuja tela principal é apresentada na Figura 2, pode ser usado como um gerador de mapas bidimensionais e imagens de satélite ou, também, como um simulador das diversas paisagens presentes no Planeta Terra. Com isso, é possível identificar lugares, construções, cidades, paisagens, entre outros elementos. De acordo com Brandalize (2007): O Google Earth mostra a Terra como se o observador estivesse em uma plataforma elevada da superfície como um avião ou um satélite. A projeção usada para alcançar este objetivo é chamada de Perspectiva Geral. O ponto perspectivo para a projeção Perspectiva Geral está localizado a uma distância finita. Assim, esta projeção representa a terra como se o observador estivesse situado acima da superfície, normalmente de centenas a milhares de quilômetros acima dela (BRANDALIZE, A.

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em:

O modelo representativo de informação no Google Earth é o Globo virtual, conhecido também como Globo Digital, ou seja, um modelo 3D simulado por programas computacionais para representação da terra, que dá ao usuário a habilidade de se mover livremente pelo ambiente virtual, mudando o ângulo de visão e posição. Um aspecto muito relevante do software é a possibilidade de o usuário interagir com o mapa virtual da superfície terrestre de forma a calcular distâncias, traçar caminhos e adicionar marcadores sob os locais identificados como interessantes pelo utilizador. Esses marcadores também podem ser adicionados a partir de dados geoespaciais coletados de GPS, dando, portanto, a localização exata do ponto de interesse, inclusive com a possibilidade da inserção de conteúdos descritivos e gráficos detalhando algumas particularidades desse local.

Localização geoespacial

O Google Earth utiliza uma tecnologia sofisticada para oferecer aos utilizadores dados geográficos completos, permitindo visualizar e ter acesso a informações geoespaciais através

da

internet.

O

software

utiliza

o

sistema

de

coordenadas

geográfico

(latitude/longitude). De acordo com IBGE (1999): A Latitude é o arco contado sobre o meridiano do lugar e que vai do Equador até o lugar considerado, quando medida no sentido do polo Norte é chamada de Latitude Norte ou Positiva, quando medida no sentido Sul é chamada de Latitude Sul ou Negativa. A Longitude é o arco contado sobre o Equador e que vai de Greenwich até o meridiano do referido lugar, pode ser contada no sentido Oeste, quando é chamada Longitude Oeste de Greenwich (W Gr.) ou Negativa, se contada no sentido Este, é chamada Longitude Este de Greenwich (E Gr.) ou Positiva (IBGE, Noções

Básicas de Cartografia, Manuais Técnicos em Geociências, nº 8, p. 33, 1999). .

O sistema de coordenadas utilizado pelo Google Earth permite representar uma superfície esférica em uma superfície plana, através do plano cartesiano. Desse modo, os objetos da Terra podem ser localizados o mais corretamente possível. Para localizar um ponto, são determinados dois eixos perpendiculares, usualmente os eixos vertical e horizontal (latitude (x¹), longitude (y¹)) determinando a localização de qualquer ponto no plano (P(x¹, y¹)). Tal representação pode ser vista na Figura 3.

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Fig. 3: Representação das coordenadas cartesianas.

Tem-se, pois, que, para localizar qualquer posição na Terra, basta saber a latitude e a longitude. E, para isso, existe o Sistema de Posicionamento Global (GPS), isto é, um sistema de posicionamento geográfico que mostra as coordenadas de um lugar na terra, desde que se tenha um receptor de sinais de GPS. O Google Earth possui uma ferramenta que importa os dados do GPS para o programa, interpretando as coordenadas e indicando exatamente aquele ponto na terra. Podese importar dados GPS diretamente do aparelho ou através da interação direta do usuário, marcando os pontos no mapa através das coordenadas geográficas coletadas em uma pesquisa de campo por exemplo. A partir disso, as informações sobre os pontos podem ser empacotadas, disponibilizadas e executadas através da internet em forma de arquivo.

Arquivos KMZ

Um arquivo KMZ é utilizado para armazenar informações sobre a localização de determinados pontos no globo digital, além disso, muitas informações como textos e imagens podem vir agregadas. Ao ser executado, esse arquivo abrirá o Google Earth e, imediatamente, serão visualizadas as informações de acordo com o que foi programado. Esses arquivos são muito similares aos arquivos ZIP (arquivos compactados). Eles permitem que você empacote vários conteúdos, comprimindo-os para tornar o download mais rápido. Arquivos KMZ são autocontidos, o que torna certo o fato de que todos os dados e recursos são embalados juntos, mantendo a estrutura original de arquivos e pastas. Nesse trabalho, o arquivo KMZ a ser disponibilizado conterá as informações geoespaciais dos sítios arqueológicos catalogados no município de Bom Princípio-PI. O

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arquivo será executado a partir do Google Earth, partindo da visualização dos sítios, outras informações textuais e fotográficas serão agregadas, proporcionando ao arqueólogo e pesquisador da área um indicador que orientará as visitas.

Solução proposta

Inicialmente, devem ser coletadas as informações para catalogação do sítio, a saber: nome, dados geoespaciais a partir de GPS, fotografia e demais informações relevantes. De posse dessas informações, dá-se o processo de localização desses sítios no Google Earth através dos dados geoespaciais coletados na visita. Para tanto, são inseridas as coordenadas latitude e longitude e adicionadas às imagens e demais informações sobre o sítio, etapa na qual é necessário um conhecimento, mesmo que básico em programação de computadores, na Figura 4 destaque para: 1 – dados geoespaciais, 2 – informações textuais e fotográficas sobre o sítio, 3 - marcador.

Fig. 4: Inserção do marcador com os dados de latitude e longitude.

Após a inserção dos dados referentes a um determinado sítio, localiza-se o marcador na tela e clica-se sobre ele. Em seguida, observamos uma janela com informações sobre o sítio (Figura 5).

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Fig. 5: Janela com informações textuais e fotográficas vistas a partir do clique sobre o marcador do sítio.

Logo após serem colocadas todas as informações sobre os sítios arqueológicos, partimos, então, para a criação do arquivo KMZ. Deve-se clicar no menu arquivo / salvar / salvar lugar como, escolher o formato e colocar um nome para o arquivo (Figura 6). De posse desse arquivo, será possível disponibilizá-lo através da internet para outros pesquisadores e interessados. Importante salientar que o arquivo pode ser editado e agregado outros sítios e informações.

Fig. 6: Registro da criação do arquivo KMZ.

Para executar o arquivo é necessário ter o Google Earth instalado e conectado à internet, na Figura 7 vemos o menu onde podemos navegar entre os sítios.

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Fig. 7: Em destaque, o menu de navegação dos marcadores que representam a localização dos sítios.

Considerações finais

Conforme demonstramos, o Google Earth é um software que em muito pode auxiliar os arqueólogos. Seu globo digital interativo pode perfeitamente ser usado como alternativa à arqueologia aérea e, além do mais, trata-se de uma ferramenta que pode prover uma série de recursos por meio das quais é possível interagir das mais diversas formas com a superfície terrestre, inclusive marcando pontos de interesse visualmente ou pontualmente a partir de dados geoespaciais obtidos via GPS. O posicionamento desses locais que, no contexto deste trabalho são sítios arqueológicos, além de outras informações descritivas e fotográficas, podem ser empacotados em um arquivo e distribuídos para a comunidade de pesquisadores arqueólogos. Tem-se, portanto, um recurso de grande utilidade porque agiliza e orienta o trabalho do pesquisador ao se deslocar até o sítio.

Referências bibliográficas

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O SIGNO DA PARTICIPAÇÃO: MUSEU E EDUCAÇÃO NA PERSPECTIVA DA SOCIOMUSEOLOGIA The sign of participation: museum and education from the perspective of Sociomuseology El signo de la participación: museo y educación desde la perspectiva de la Sociomuseologia Juliana Maria de Siqueira1 RESUMO O artigo aborda a consolidação da Museologia como campo disciplinar transversal das ciências sociais, num contexto histórico em que se atribui uma função social aos museus e do qual deriva uma nova visão museológica, a Sociomuseologia. Sob esse prisma, exploramos os desafios para a consolidação teórico-prática da educação museal, a partir da análise de uma experiência concreta, desenvolvida no Museu da Imagem e do Som de Campinas, entre os anos de 2007 e 2012, nos bairros Gênesis, Jardim Nilópolis e São Quirino, Leste da cidade. Palavras-chave: Educação museal, participação, sociomuseologia. ABSTRACT This article addresses the consolidation of Museology as a cross-disciplinary field of social sciences, in a historical context that assigns a social role to museums and gives birth to a new museological conception: Sociomuseology. From this perspective, it explores the challenges to theoretical and practical consolidation of museum education, departing from the analysis of a concrete experience, performed by Campinas Museum of Image and Sound, SP, Brazil, between 2007 and 2012, in the neighborhoods of Gênesis, JardimNilópolis and São Quirino. Keywords: Museum education, participation, sociomuseology. RESUMEN Este artículo aborda la consolidación de la Museologia como campo interdisciplinario de las ciencias sociales, en un contexto histórico donde se confiere una función social a los museos y del cual deriva una nueva visión museológica, la Sociomuseologia. Desde esta perspectiva, exploramos los desafíos a la consolidación teórica y práctica de la educación museal,basado en el análisis de una experiencia concreta, desarrollada en Museo de la Imagen y Sonido de Campinas, SP, Brasil, entre los años de 2007 y 2012, en la región Leste de la ciudad. Palabras clave: Educación museal,participación, sociomuseologia.

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Especialista Cultural no Museu da Imagem e do Som de Campinas. Graduada em Comunicação Social pela UFMG (1996), MBA em Marketing de Serviços pela ESPM (2003), Especialista em Multimeios pela Unicamp (2001) e Mestre em Ciências da Comunicação pela ECA-USP (2009). E-mail: [email protected].

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Introdução

O presente artigo é fruto da necessidade de sistematizar e analisar, teoricamente, o trabalho educativo desenvolvido no Museu da Imagem e do Som de Campinas (MIS), instigada pelas leituras e debates a respeito do patrimônio e das transformações em sua definição. A discussão vem contextualizar o terreno no qual se fundamentamessas ações, a Sociomuseologia, e identificar os requisitos teóricos e metodológicos que ela desenha para a Educação Museal. Reconhecendo que se trata de uma área de estudos recente, não completamente estruturada, busca-se levantar campos acadêmicos, teorias e conceitos que, sendo capazes de dialogar satisfatoriamente com a Sociomuseologia, possam fornecer categorias-chave para produção e avaliação de ações educativas em museus. O exame de uma situação concreta, desenvolvida pelo MIS entre 2007 e 2012, na região dos bairros São Quirino, Jardim Nilópolis e Gênesis, permitirá compreender a necessidade de deslocar práticas e processos museais tradicionais para situar, no centro do fazer, a participação social e o desenvolvimento local, por meio da produção e gestão do patrimônio de uma comunidade.

1. Museus na contemporaneidade: a museologia social e seus princípios Embora a existência dos museus – como instituições dedicadas à preservação do patrimônio público nacional – remonte ao início do período contemporâneo (JULIÃO, 2006), foi apenas nos anos 1990 que a Museologia consolidou-se como um campo disciplinar específico das ciências sociais (SCHEINER, 2012). A trajetória dessa estruturação encontra seus antecedentes em fins do século XIX, com a profissionalização do trabalho do museu, o desenvolvimento de abordagens científicas para a conservação (GRANATO & CAMPOS, 2013), a criação das primeiras associações profissionais, o surgimento de publicações e manuais e dos programas pioneiros de formação museográfica. (PEREIRA, 2004 e 2010) Até então, tratavase de compreender os problemas da preservação de coleções e aprimorar os processos internos a ela pertinentes – perspectiva que caracteriza uma abordagem tradicional dos museus. Na primeira metade do século XX, as atenções voltaram-se para a democratização da instituição, entendida como sua abertura ao público em geral e o desenvolvimento de seu papel educativo, ainda que numa perspectiva de elevação cultural dos visitantes. (PEREIRA, 2004) A criação do Comitê Internacional de Museus (ICOM), em 1946, desempenhou importante papel na clivagem desse processo, por congregar instituições e profissionais e promover amplo debate em seus encontros e conferências, ensejando a emergência de uma nova-

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noção do trabalho museológico, com foco na sociedade e seu desenvolvimento e ênfase nas dimensões locais/ regionais do patrimônio e na participação comunitária. Merecem destaque, como marcos que contribuem para a formulação dessa abordagem social, o Seminário Regional da Unesco sobre a Função Educativa dos Museus (Rio de Janeiro, 1958), a 8ª e a 9ª Conferências Gerais do ICOM, realizadas em Munique (1968) e Paris/Grenoble (1971), a MesaRedonda de Santiago do Chile (1972), o I Atelier Internacional da NovaMuseologia, ocorrido em Quebec, o Seminário de Oaxtepec (ambos em 1984) e o Seminário de Caracas (1992). Não nos cabe reconstituir o percurso pelo qual a concepção de museu transforma-se gradativamente, dando origem ao movimento da Nova Museologia, considerando-se que o argumento já foi satisfatoriamente explorado por Primo (1999), Santos (2002), Pereira (2004, 2010), Scheiner (2012) e outros. Mas é preciso ressaltar que não se trata, aqui, de um movimento de cúpula alheio às bases sociais e que as mobilizações de caráter artístico-cultural desde o final dos anos 60 foram cruciais na revisão da relação museu-sociedade (SANTOS, 2002). Ainda no âmbito do ICOM, devemos ressaltar a criação, em 1976, do Comitê Internacional para a Museologia (ICOFOM), reunindo os principais estudiosos que, desde os anos 60, dedicavam-se ao debate sobre o campo museológico e estimulando a elaboração de documentos de trabalho que fundamentam a museologia não apenas como atividade prática, mas como ciência com objeto e metodologia próprios. Segundo Scheiner (2012:16), “ao final dos anos 1980, já se confirmava a existência de uma teoria da Museologia e definia-se para ela um lugar de fala no universo acadêmico”. Os latino-americanos não estavam ausentes do movimento e, sobretudo a partir dos anos 1990, forneceram subsídios ao desenvolvimento da Teoria Museológica. Naquela década de intensa produção científica, formularam-se os termos e conceitos básicos do campo, inaugurando-se programas de formação universitária e revisando-se a estrutura curricular dos já existentes. Em Portugal, Mário Moutinho (1993) concebeu a Museologia Social como o esforço de adequação das estruturas museológicas aos condicionamentos da sociedade contemporânea, definindo-a, mais tarde (2007), como uma área multidisciplinar de ensino, investigação e atuação que articula a Museologia às Ciências Humanas e a reconhece como recurso para o desenvolvimento sustentável da humanidade, baseado na igualdade de oportunidades e inclusão social e econômica. Na virada do milênio, a Museologia estaria plenamente consolidada como transdisciplina dedicada à administração da memória e do uso da herança patrimonial (MENESES apud BRUNO, 1996), e ao estudo da relação específica entre o homem e a realidade, da qual alguns objetos são deslocados (musealizados) para serem preservados e utilizados com fins de conhecimento, sendo-lhes atribuídas novas significações. Nessa relação, o real é tomado em

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sua totalidade material e imaterial, natural e cultural, e o passado posto a serviço do presente. Bruno (1996) e Santos (1996) reconstituem o percurso histórico pelo qual as definições do campo e do objeto da Museologia foram se configurando e é imperativo reconhecer ali a influência da Nova Museologia – a princípio, uma via alternativa às práticas e concepções tradicionais. Pereira (2004) ressalta que esse reconhecimento, ou mesmo a convergência entre as duas correntes museológicas não foi imediato ou isento de conflitos e demonstra que apenas a partir de Caracas (1992), iniciou-se um esforço em direção ao consenso e à compreensão partilhada sobre a substância e finalidade do campo. Embora, no debate teórico, haja um empenho para se integrar a vertente social ao campo geral da Museologia, esmaecendo os contrastes entre ambos, bem como discursos que esbatem as resistências e conflitos históricos (cf. críticas de PEREIRA, 2004), e se preconize que mesmo museus tradicionais tenham importância para as comunidades a que servem e possam atuar segundo os pressupostos do museu integral (SCHEINER, 2012), é necessário adotar postura criteriosa na interpretação e aplicação dos princípios museológicos pelos quais se opta. Santos (2008) evidenciaas armadilhas ocultas no apagamento de fronteiras e definições. Muitos discursos que assimilaram o conceito de desenvolvimento, por exemplo, trazem abordagens que vão dos matizes mais revolucionários aos conservadores, passando pelos meramente adaptativos. Moutinho (apud SANTOS, 2008) também alerta que não é fácil para as instituições abrirem mão de seu poder, o que gera ambiguidades e confrontos, muitas vezes, difíceis de solucionar, e cria domínios que permanecem insensíveis às mudanças sociais. A distinção entre orientações do pensamento e da prática museológica e o posicionamento consciente no campo da Sociomuseologia – embora não constituam valor per se, imperativo, tampouco panaceia (SANTOS, 2002) – significam a assunção de uma postura ético-política libertária e implicam a adoção de pressupostos epistemológicos, teóricos e metodológicos coerentes – ainda que, ou, por isso mesmo, plurais. Considerando que os profissionais de museus lidam em seu cotidiano com realidades complexas e contraditórias às quais devem se adaptar, e reconhecendo que a Sociomuseologia não prescreve receitas ou modelo ideal, mas incentiva a criação diversa, dentro do possível (SANTOS, 2002), seus princípios serviriam de parâmetros para a construção e avaliação de políticas, programas e projetos museológicos. Sob seu prisma, pois, emergem as seguintes categorias de produção e leitura da realidade museal: (Cf. MOUTINHO, 2007; SANTOS, 2002 e SANTOS, 2008) O museu integral/ integrado à comunidade– O museu é agente social e político. Não mais coletor passivo de objetos a organizar em tipologias, ele interfere na totalidade do meio social ao identificar e pautar, com a comunidade, temas de seu interesse atual, evidenci-

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ando problemas e potencialidades de solução e atuando como instrumento dinâmico de mudança social. A comunidade, aqui, é definida por dois critérios básicos: interação social e senso de pertencimento (VARINE apud SANTOS, 2008). O desenvolvimento comunitário/ local como objetivo da ação museológica – A incorporação da noção de desenvolvimento, emersa das esferas políticas e econômicas, (PEREIRA, 2009) aos debates a respeito de museus e patrimônio, exigiu esforços para conciliá-la com a atitude de preservação. Sinteticamente, os ajustes dizem respeito à inclusão das comunidades nos trabalhos de preservação e interpretação do patrimônio e à compreensão de que estas não são um fim em si mesmas, mas um meio, e que seu foco não deve ser o objeto, mas a significação por meio da qual ele se torna herança, posta a serviço do presente. A participação como meio de atingir o desenvolvimento – Entendida como cooperação e coprodução de processos museais pela comunidade, desde o debate e a tomada de decisões até a efetiva atuação no trabalho museológico (SANTOS, 2002), ela mobiliza conceitos e práticas como protagonismo cultural e autogestão. Supõe considerar os sujeitos sociais ativos e implica horizontalidade e igualdade entre especialistas do museu e comunidade, que percebe e exerce sua capacidade de auto-organização para gerir seu tempo e seu futuro. A ação em um território – A prática museal é baseada em ações sobre o território de uma comunidade e a totalidade do seu patrimônio, não na formação de coleções. Isso permite interpretar as relações do ser humano com seu ambiente e a influência da herança cultural e natural na identidade dos indivíduos e grupos. (SANTOS, 2002) O patrimônio global (natural, cultural, material, imaterial)– Meio fundamental de desenvolvimento, deve ser gerenciado no interesse de todos. A memória coletiva, no museu, é ponto de partida para a transformação da realidade. A educação libertária – Como apropriação permanente do patrimônio e como socialização da preservação, é a essência mesma do processo museológico. A dimensão comunicativa – O museu, como fórum, é ponto de encontro e convivência democrática, plural e diversa, campo vivo de ação/ performance/ agenciamento. Espaço de construção de experiência por meio do diálogo e exercício da comunicação, lugar de reconhecimento e recriação de identidades e culturas de múltiplos grupos humanos. No Brasil, a atual Política Nacional de Museus (PNM), definida e implementada pelo Ministério da Cultura (MinC) por meio do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), – resultante de amplo processo participativo de consulta à comunidade museal – assume orientação claramente Sociomuseológica. De acordo com o documento convocatório para a discussão da política, lançado em 2003, os museus têm papel fundamental na valorização do patrimônio cultu-

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ral (tomado em perspectiva ampla) como “dispositivo estratégico de aprimoramento dos processos democráticos”. Eles são entendidos como “processos a serviço da sociedade e do seu desenvolvimento”, “comprometidos com a gestão democrática e participativa”, cujo objetivo é “propiciar a ampliação do campo das possibilidades de construção identitária e a percepção crítica acerca da realidade cultural brasileira” (MINISTÉRIO da Cultura, 2003:8). A respeito da reverberação dessas propostas no II e III Fóruns Nacionais de Museus, ocorridos em 2006 e 2008, o MinC declarou que seu foco de atenção foram as “novas experiências museais e a centralidade da museologia social”(MINISTÉRIO da Cultura, 2010: 12). Desnecessário sublinhar em que contexto político irrompe o processo de construção da PNM. Mas, vale à pena relembrar os desafios sociais a que ela se dirige, e em cuja direção lança os museus, como agentes estratégicos no seu enfrentamento: superação da histórica desigualdade social e dos quadros de extrema pobreza, reconhecimento da pluralidade cultural brasileira, promoção dos direitos humanos e de políticas afirmativas de combate ao preconceito e de valorização das identidades das minorias (em termos de poder) étnicas, de gênero e orientação sexual, solução dos problemas decorrentes do processo de urbanização acelerada e sem planejamento, melhoria do nível educacional, oferta de oportunidades aos jovens para construção de projetos de vida, proteção à biodiversidade, fortalecimento da democracia participativa, entre outros. Ao se reconhecer a prioridade dessas questões e a capacidade dos museus contribuírem para as transformações necessárias,optando pelo engajamento nessa perspectiva e assumindo os compromissos sociais, éticos e políticos nela implicados, deve-se levar em conta que a prática profissional configura-se como exercício de criação coletiva, que exige permanente formação e reflexividade. É preciso buscar, na práxis, sistematizar as experiências concretas desenvolvidas e confrontá-las criticamente a categorias teóricas coerentes com esta abordagem. Desse exame crítico, podem resultar contribuições ao avanço do campo museológico, tanto na sua epistemologia quanto na sua prática. Particularmente, interessa, neste artigo, explorar algumas implicações desses pressupostos sobre a estruturação teóricometodológica da Educação Museal.

2. Desafios para a estruturação teórico-metodológica da educação museal

A relação entre museus e educação é bastante longa, visto que, desde seus mitos de origem, o mouseiom guardava uma ligação com o saber. Studart (2004) propõe compreender essa relação, que ela denomina pedagogia museal, a partir de três elementos de igual importância: a função educativa dos museus, isto é, aquilo que lhe compete como instituição (o

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porquê e para quê se educa); as ações educativas efetivamente empreendidas; e a Educação Museal ou Patrimonial, área do conhecimento da Museologia que fundamenta a prática. Vimos que a função educativa é elemento crucial na abordagem Sociomuseológica e, nesse sentido, encontra-se suficientemente fundamentada no campo teórico. Mas, a discussão a seu respeito antecede em muito ao advento da Nova Museologia. Uma visão histórica bastante aprofundada sobre as transformações no seu entendimento é construída por Pereira (2010), que identifica e discute cinco dimensões que a constituem: a educacional contemplativa, a cívica, a democrática, a escolarizada e a socioeducativa. É no terreno das ações concretas e seus fundamentos que falta mais ampla discussão. Em 2006, Cabral (2007) realizou levantamento junto a 192 dos quase dois mil museus brasileiros que havia então (hoje são mais de três mil segundo o Ibram) e constatou que 82% promoviam algum tipo de ação educativa (a maioria, visitas escolares e do público em geral). Grande parte dessas instituições estava localizada nas capitais dos estados e menos de 60% realizavam avaliações sobre suas ações. Segundo dados recentes do Cadastro Nacional de Museus (IBRAM, 2011), apenas 48,1% dos museus possuem setor educativo constituído; 80,6% promovem visitas guiadas, sendo a maior parte (76,4%) realizada com agendamento, e pouco mais da metade (50,2%) realizam atividades sistemáticas com a comunidade. Embora apresentem indícios sobre o tipo de ações empreendidas, as pesquisas não fornecem dados qualitativos sobre como se desempenham essas atividades, seu caráter e fundamentos. Ainda hoje, investigações dessa natureza apresentam escopos limitados em relação à abrangência geográfica e às tipologias de museus, não sendo possível compreender o “estado da arte” das ações educativas no Brasil. Estudiosos apontam queapenas recentemente a atividade obteve valorização e, por muito tempo, enfrentou circunstâncias adversas como formação não específica de mediadores, persistência do preconceito, insuficiência de publicações e divulgação sobre o tema e descompasso entre discursos e práticas (BARBOSA, 2009 e LEITE, 2005). Mas, se o que se produz no dia-a-dia de boa parte dos museus permanece distante de reflexão e exame crítico, constata-seque ações educativas de destaque, dos mais bem estruturados museus ou dos ecomuseuscom história consolidada e vínculos com universidades, estão fartamente documentadas e relatadas. Também a criação da Rede de Educadores em Museus (REM), no Rio de Janeiro, em 2003, sob o estímulo do Ibram, foi impulso valioso para a organização dos profissionais e o intercâmbio de experiências, a formação continuada, o mapeamento de ações e o desenvolvimento de pesquisas e parcerias. A REM multiplicou-se por outros estados e Distrito Federal, em caráter independente, mas com apoio do Ibram: Distrito Federal, Ceará e Pernambuco (2008), Mato Grosso e Paraíba (2009), Rio Grande do Sul, San-

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ta Catarina e Goiás (2010) e Bahia (2011). Na cidade de São Paulo, em 2013, foi lançado, pelo Museu da Língua Portuguesa, o Centro de Referência de Educação em Museus. Aos poucos, foi-se desenhando a necessidade de se criar uma política pública para o setor. Em 2005, o IPHAN promoveu o primeiro Encontro Nacional de Educação Patrimonial, em São Cristóvão, SE. Segundo Lima (2008), o evento proporcionou uma síntese do processo de desenvolvimento de ações educativas. Outro momento importante, segundo a pesquisadora, foi a realização do I Fórum Latino-Americano de Educação Patrimonial, pelo Laboratório de Educação Patrimonial e Arqueologia da Universidade Federal de Pelotas e o Instituto de Memória e Patrimônio, durante a Semana Nacional de Museus, de 2008. Ela concluiu, com base em seus levantamentos, que era urgente a necessidade de avaliação dos objetivos e pressupostos das atividades educativas museais em curso no Brasil, sendo preocupante o seu quadro. Em 2010, o I Encontro de Educadores do Instituto Brasileiro de Museus resultou na Carta de Petrópolis, que oferece subsídios para a criação de uma política nacional de Educação Museal. Em julho de 2011, durante o II Encontro Nacional de Educação Patrimonial, ocorrido em Ouro Preto, o tema voltou a ser debatido. Nesses dois últimos, além de questões práticas, como formação de profissionais, legislação, articulação, fomento e gestão, propugnou-se o estabelecimento de amplo debate e aprofundamento de conceitos e referenciais teóricometodológicos, por meio do incentivo à pesquisa acadêmica nos seus diferentes níveis. Em outubro de 2012, o Ibram lançou uma plataforma na Internet de consulta pública visando à construção de diretrizes para as ações educativas e a formulação da Política Nacional de Educação Museal (PNEM). Até abril de 2013, 708 usuários cadastrados, dos quais 263 são profissionais de museus, opinaram em fóruns virtuais sobre nove eixos temáticos. Em janeiro de 2014, foi divulgado o documento preliminar com as propostas apresentadas, para discussão e votação em plenária no Encontro Nacional do PNEM, previsto para novembro deste ano. No que diz respeito ao estabelecimento da Educação Museal como campo científico, existem trabalhos em três vertentes que se distinguem segundo as tipologias de museus: a arte/educação, a educação patrimonial e a comunicação da ciência (SIQUEIRA, 2010). Embora tais campos possam contribuir significativamente para a presente reflexão, não abordam exclusivamente a educação em museus. Nesse sentido, a primeira investigação que trata da especificidade da constituição da educação museal, baseada na hipótese de que ela possui características que a singularizam e se mantêm à revelia das diferentes tipologias institucionais foi empreendida por Martins (2011), na FE-USP, sob orientação de Martha Marandino. No entanto, os desafios específicos colocados pela Sociomuseologia à consolidação desse campo permanecem inexplorados. Acima de tudo, faltam estudos que deem conta da

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especificidade da educação museal fundada não nas coleções ou objetos de museus, não nas visitas guiadas e atividades intramuros, mas no encontro com um patrimônio vivo, global de uma comunidade, presente em um território, e que compreenda o museu não como instituição, mas como processo. Evidentemente, as questões relacionadas a esse problema não poderão ser suficientemente debatidas no âmbito deste trabalho, mas é possível verificar aqui a viabilidade de investigá-las a partir do exame de ações educativas empreendidas por um museu, que se caracterizem como práticas de Sociomuseologia. Eis o que se propõe a seguir.

3. Experimentando conceitos: o MIS Campinas na região do Ribeirão das Anhumas

Vasconcellos (2012) retrata o processo de criação do MIS Campinas, em 1975, como resultante de forças distintas e conflitantes – de um lado, a atitude colecionista conservadora e a necessidade de preservação dos registros oficiais da Prefeitura e, de outro, a intenção moderna de disseminar a produção e fruição do audiovisual. Assim, na sua prática museológica, desde sempre conviveram elementos da museologia tradicional e da abordagem social. Nessa vertente, enquadram-se diversos programas e projetos desenvolvidos ao longo dos anos, como o cinema de arte e cineclube, a exibição de cinema nas escolas, atividades itinerantes, leitura crítica de TV, história oral e o incentivo à produção do audiovisual pelo cidadão comum. É dessa linhagem que surgiu, em 2003, o projeto Pedagogia da Imagem. Destinado, inicialmente, à formação de professores para o uso do vídeo em sala de aula, foi gradualmente se expandindo e diversificando seus públicos e atividades. Tornou-se um programa voltado à apropriação crítica e dialógica do audiovisual, baseada em quatro eixos: conhecimento da história e da linguagem; experimentação da criação; formação de circuitos de fruição cultural nas periferias e incentivo à cultura de acervo (SIQUEIRA, 2009). Sempre em transformação, o programa mantém-se fiel aos princípios da educação dialógica de Paulo Freire e à ideia de que o audiovisual é um potente instrumento de libertação, na medida em que, ao dominá-lo, o educando conquista um novo olhar, pelo qual descobre em seu ambiente (o bairro da periferia) sentidos múltiplos, feitos não só de carências, mas também de memórias, saberes e belezas, e em si, a potência para a criação. Esse empowerment é base da transformação social – ou do desenvolvimento, cujas direções e conteúdos são dados pelos sujeitos em formação e não só pelos educadores – que também se educam e aprendem. Em dez anos de atividades, o programa contribuiu para democratizar o perfil de acervos e programações culturais e o estabelecimento de novas relações com públicos que não frequentavam ou desconheciam o museu.

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Foi em 2007 que se iniciou a relaçãodo MIS com a região do ribeirão das Anhumas. No Leste de Campinas, esta compreende os bairros São Quirino, Nilópolis, Novo Horizonte e Cafezinho e, mais especificamente, a Rua Moscou e o núcleo Gênesis, bem à sua margem. Os bairros e núcleos originaram-se do loteamento e sucessivas ocupações da antiga Fazenda São Quirino, a partir dos anos 70, quando a cidade experimentou um crescimento urbano acelerado, recebendo migrantes de várias partes do país. As favelas ali formadas predominantemente por trabalhadores domésticos, da indústria e da construção civil permaneceram por décadas sem regularização e, portanto, ao largo das políticas públicas de infraestrutura e saneamento. Anualmente, os frágeis barracos eram tomados por enchentes, agravando a situação de vulnerabilidade das famílias. Pouco a pouco, a ausência do poder público abriu espaço para a atuação do tráfico de drogas, tornando a região conhecida não apenas pelos baixos índices de desenvolvimento humano, como também pela violência, gerando estigma social. Em 2007, omuseurecebera em doação acervos e equipamentos resultantes do projeto “Recuperação ambiental, participação e poder público: uma experiência em Campinas” (TORRES e COSTA, 2006) e, como contrapartida, comprometeu-se a produzir exposição e vídeo com os arquivos de áudio e imagem da coleção. Neles, quatro lideranças da Rua Moscou contavam suas memórias de vida e luta. Migrantes, suas lembranças eram marcadas por diferentes relações com o ambiente e outros rios. Histórias de batalhas por direitos sociais, contra injustiças e preconceitos, e saberes profundos sobre o meio ambiente, e como recuperálo por meio da mobilização. Os depoimentos deixavam claro: não estavam eles à margem da sociedade, eram sujeitos ativos em busca de ser mais (FREIRE, 1987). O vídeo resultante, intitulado 3x4: Retratos da vida à margem de um rio foi lançado no MIS, junto com a exposição fotográfica Projeto Anhumas, durante a Semana do Meio Ambiente, na presença da comunidade, que os recebeu com entusiasmo. Em seguida, a mostra percorreu os bairros, sendo exibida entre 2007 e 2008, gerando debates e ações educativas locais. A ação permitiu aos moradores refletir sobre os problemas ambientais da comunidade, ao mesmo tempo em que demonstrava seu potencial de transformação, pela valorização das identidades locais (migrantes, trabalhadores), seus saberes e a história coletiva, simbolizados pelas lideranças. Durante o evento no MIS, estavam presentes duas professoras da EMEI Recanto da Alegria, localizada noGênesis. Participantes do curso de formação Pedagogia da Imagem, elas se propuseram a atuar, junto ao museu, na integração entre escola e comunidade, abrindo a dinâmica educativa aos saberes e memórias coletivos. Ao longo do ano, conquistou-se o apoio da equipe gestora, com base no princípio básico do projeto político-pedagógico escolar de

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integrar-se ao entorno – palavra que, em si, denuncia o que está de fora. Foi necessário vencer preconceitos, medos e concepções restritas sobre a função da escola infantil. Superada essa etapa, realizou-se a primeira ação voltada para a comunidade, com o objetivo de promover o aprendizado audiovisual, tendo os moradores como protagonistas, autores das imagens e discursos. Escolheu-se a fotografia como linguagem introdutória. Foi oferecida uma oficina de fotografia digital, à qual acorreram pessoas de 10 a 60 anos, com perfis variados. A metodologia desenvolvida alternava encontros de aprendizado sobre o uso do equipamento e a linguagem, e passeios fotográficos pelo bairro, cujos roteiros e pontos de interesse eram definidos pelos participantes. Durante os percursos, amizades se formavam, histórias e casos eram compartilhados, saberes locais revelados. Ao final, os aprendizes atuaram como curadores da exposição fotográfica, intitulada Recantos, selecionando 40 imagens e criando seus títulos. A abertura à população deu-se na EMEI, em fins de 2008. No ano seguinte, em março, seria inaugurada no MIS, e um vídeo homônimo foi produzido para registro da experiência. Das fotografias produzidas, 700 foram doadas ao acervo do museu, preenchendo duas lacunas: a de registros contemporâneos da periferia da cidade e a do olhar não oficial e não elitizado. Em seguida, a exposição percorreu o bairro, sendo montada nos equipamentos comunitários, da Assistência Social e ONGs dedicadas a crianças e adolescentes. Em 2009, o objetivo era desenvolver uma oficina de vídeo, mas as diretrizes da Secretaria de Educação exigiram mudança de planos. Por determinação da escola, as professoras deveriam trabalhar exclusivamente em projetos da brinquedoteca escolar. Uma das educadoras deixou o grupo. As possibilidades de trabalho na brinquedoteca eram limitadas e optou-se, então, por transformá-la, incorporando a ela dimensões imateriais – os saberes e memórias sobre brincadeiras, brinquedos, histórias e cantigas de infância, compartilhadas por familiares das crianças e membros da comunidade. O objetivo era produzir e lançar um vídeo e realizar uma oficina em um Dia de Brincadeiras, ao final do ano. Foram identificados colaboradores com a ajuda do Centro de Assistência Social (CRAS) e, com o apoio de estagiários de História e Ciências Sociais da Unicamp, gravaram-se os depoimentos. O vídeo editado – Infância: memórias e brincadeiras – é uma breve síntese do muito que a comunidade apresentou. Bem mais que lembranças de brincadeiras, os depoimentos revelaram concepções sobre a infância, a educação, trabalho infantil e direitos, vestígios de uma cultura popular caipira, em choque e hibridação com a cultura de massa e consumo – elementos extremamente potentes para serem discutidos no âmbito da escola. A exibição do vídeo, ao final do ano, foi realizada na EMEI, em condições precárias. O Dia de Brincadeiras não se realizou e a parceria dava sinais de esgotamento. Nos anos seguintes, 2010 e 2011, o MIS trabalhou com o CRAS, que enviou duas

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profissionais ao curso Pedagogia da Imagem. A comunidade também passava por transformações, com a urbanização promovida pelo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). As concepções e possibilidades de trabalho, no entanto, eram mais limitadas e optou-se, enfim, pela realização de exibições e debates dos vídeos e montagem das exposições disponíveis. Em 2012, o MIS tentou realizar um novo vídeo com os protagonistas do 3x4. Das quatro personagens, apenas uma senhora cedeu seu depoimento. Foram feitas imagens do bairro e coleta de informações junto à assistente social. Ficou claro que a urbanização interferiu significativamente na dinâmica local. De um lado, valorizando os imóveis próximos e higienizando e padronizando as moradias. De outro, alterando modos de vida e convivência e desarticulando lideranças. Percebeu-se que o processo havia se dado de cima para baixo, sem consideração por aspectos socioculturais e históricos. Em todo caso, o CRAS propôs ao MIS realizar nova oficina fotográfica, com o objetivo de registrar a atual fisionomia do bairro. Um grupo de adolescentes que se profissionalizam em uma ONG da região interessou-se pelo projeto e empregou-se a metodologia anteriormente desenvolvida. A exposição Gênesis: percursos da criação foi inaugurada em 2012 no CRAS, com debate público sobre meio ambiente, as transformações locais e o processo educativo. Em 2013, foi levada ao MIS e aberta na Semana do Meio Ambiente. A experiência demonstrou que, a despeito das dificuldades de articulação, a participação e mobilização em torno do patrimônio global, tendo o audiovisual como instrumento de registro e exercício do protagonismo cultural, é via poderosa para se estimular o desenvolvimento local. Isso porque a comunidade ainda possui problemas a enfrentar, tanto quanto riquezas – ambientais, culturais, materiais e imateriais – a serem exploradas, a fim de se tornarem herança, recurso para o presente. E essa linguagem, tão contemporânea, articula, confronta, confere visibilidade e amplitude aos discursos da população. Para o MIS, essa trajetória de cinco anos, se não conta a história linear de um caso de sucesso, ensina novas formas de conceber práticas como a identificação, seleção, interpretação, preservação e comunicação do patrimônio. Ao compartilhar a autoria do processo museológico com a comunidade, partindo do pressuposto de que ela possui legitimidade para tal, o museu deixa de ser a instituição pré-existente, enclausurada, e se torna criação viva e singular, como se a ação educativa possibilitasse a atualização de virtualidades e potências latentes, sendo o ato pelo qual, mutuamente, se significam e configuram três faces de uma mesma realidade: comunidade, museu e patrimônio. Mediar, aqui, não é se colocar no meio dessa relação, como especialista que regula e valida sentidos: é abrir fissuras e construir pontes através das quais o outro possa contaminar o museu e transformá-loem novo. Se os gestores das polí-

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ticas públicas compreendessem a força desse ato na busca de soluções para os problemas urbanos, os museus-processo seriam mais frequentemente convocados a dar sua contribuição.

4. Caminhos a trilhar: a educação museal produzindo um novo museu?

No bojo do desenvolvimento da Política Nacional Setorial de Museus, a discussão sobre a Educação Museal coloca-se como estratégica. Trata-se de um campo de reflexão e ação social de desenvolvimento recente e que reclama o estabelecimento de fundamentos epistemológicos, teóricos e metodológicos coerentes, conforme evidencia o empenho coletivo para a construção do Plano Nacional de Educação Museal, encabeçado pelo Ibram, em 2013. E, quando contextualizada no campo da Sociomuseologia, exige esforços ainda maiores para o deslocamento de conceitos oriundos da museologia tradicional. A experiência educativa do MIS Campinas, nesse sentido, foi um laboratório no qual puderam ser testadas algumas dessas possibilidades. Em primeiro lugar, seu ponto de partida não foram as coleções preexistentes de fotos, equipamentos e filmes, tampouco o Palácio que lhe serve como sede. Ao contrário, iniciou-se no encontro com a comunidade, em seu território concreto, os bairros, estabelecendo-se um diálogo cujo foco era revelar seu patrimônioglobal. Nesse deslocamento, o MIS não perdeu sua identidade – ao contrário: buscou integrar sua missão (a preservação do audiovisual) aos objetivos e interesses locais de desenvolvimento por meio das oficinas e mostras.A educação museal, vista como processo de apropriação, ao conjugar a aprendizagem do audiovisual com a criação reflexiva sobre a realidade mesma dos sujeitos envolvidos, configurou-se, pois, libertária, uma vez que resultou na identificaçãoe projeção de potencialidades existentes para a ação. Para que a transformação se torne efetiva, porém, é necessário o envolvimento e a mobilização de inúmeros agentes, quer da comunidade,quer do poder público ou do terceiro setor.Assim, a educação museal, no contexto da Sociomuseologia, não pode ser efetivada de maneira isolada pela instituição, mas na tessitura de redes. Além disso, em cada comunidade ela se dará de maneira diferente. No caso do MIS, na medida em que novos registros eram produzidos (na ação educativa, pelos próprios educandos), a definição mesma de patrimônio audiovisual tornou-se alargada, tanto em termos conceituais (quem o produz/ de que trata/ quais os meios) quanto em termos práticos, pela ampliação e diversificação das coleções do museu. Ao expô-los, lado a lado com os demais, o MIS configura-se como fórum, permitindo novas conexões e interpretações de seu acervo.

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Portanto, ao se assumir o conceito de patrimônio de maneira ampla e diversa, um desafio se impõe, imediatamente, aos museus que se posicionam no campo da Museologia Social: o de recorrer a uma concepção de museu como processo e adotar um modelo museológico menos centrado na instituição e mais afeito à rede e ao fluxo – um museu que se redefina de maneira plural em cada ponto de conexão onde a educação promova a sua apropriação, de acordo com os significados de que o patrimônio ali se reveste. Que o museu assuma essa configuração fluida não depende de sua tipologia, mas da sua capacidade de tecer relações dialógicas, de cogestão e de mediação com as diferentes comunidades que constituem essa rede. Assim, a identidade do museu-processo e sua função/significação social não são dadas pelos seus acervos, mas pela natureza específica das operações por meio das quais se promove, participativamente, o reconhecimento e a salvaguarda do patrimônio de uma comunidade. Aí reside a sua singularidade – seu modo particular de identificar, organizar, contextualizar e reconstruir referências sociais para os elementos culturais, das identidades e memórias coletivas, bem como de colocá-las em diálogo, como fórum, no espaço público. Nesse caminho, a educação deixa de ser elo final entre funçõesmuseais desempenhadas por especialistas e o público, para tornar-se a essência do museu, criado e apropriado colaborativamente. Deslocam-se, então, práticas e processos museológicos tradicionais, como o inventário, a preservação, a curadoria e a mediação, cuja centralidade não está mais nos objetos, mas nos sujeitos que participam, se desenvolvem e se libertam em comunhão.

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REDOMAS DE VIDRO: RELAÇÕES ENTRE TATO, CULTURA MATERIAL E PRÁTICAS DE INSTITUCIONALIZAÇÃO Glass Cases: The Relationships Between Touch, Material Culture and Institutionalization’s Practices Cajas de Vidrio: Relaciones Entre Tato, Cultura Material y lãs Prácticas de Institucionalizacion Dr. José Roberto Pellini1 RESUMO Uma pergunta costuma me atormentar, dada sua aparente obviedade: porque não podemos tocar os objetos em museus? Podemos ver, podemos olhar, mas não podemos interagir com a cultura material institucionalizada. Por quê? Embora a resposta mais óbvia seja a de que o toque pode resultar na destruição dos objetos, acredito que haja algo mais profundo envolto nessa questão, que é a construção do tato como o sentido do inculto, do selvagem. Nesse sentido, tocar ou não tocar estabelece um jogo de autoridade que define o Eu e o Outro. Ao mesmo tempo, ao se excluir a possibilidade da interação corporal com os objetos, limita-se o entendimento do público e perpetua-se um modelo específico de entender o mundo. Palavras-chave: Toque, Cultura Material, Arqueologia Sensorial. ABSTRACT A question often torments me due to its apparent obviousness: why cannot we touch objects in museums? We can see, we can look at, but we cannot interact with institutionalized material culture. Why? Whilethe most obvious answer is that touching can result in destruction of objects, I believe there is something deeper involved in this matter, which is the construction of the sense of touch as the sense of uneducated, wild men. To touch or not to touch establishes politics of authority that defines the Self and the Other. At the same time, when the possibility of bodily interaction with the objects is excluded, public understanding is limited and a specific model of understanding the world is perpetuated. Keywords: Touch, Material Culture, Sensorial Archaeology. RESUMEN Unapreguntaque me atormenta, dada suaparenteobviedad: porqué no podemostocar los objetos en los museos? Podemosmirar, pero no podemosinteractuar con la cultura material institucionalizada.¿Porqué? Aunque la respuestamásobviaesque el contactopuederesultar en la destrucción de objetos, creoque hay 1

Laboratório de Arqueologia Sensorial. Departamento de Arqueologia da Universidade Federal de Sergipe. E-mail: [email protected]

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algomásprofundoenvuelto en esteasunto, quees la construcción del sentido del tactocomoinculto, salvaje. Tocar o no tocarestableceunjuego de poderquesirveparaidentificar el yo y el otro. Palabras clave: Tacto, Cultura Material, ArqueologíaSensorial

Uma morte lenta e agonizante Um dia desses, minha esposa Carol me chamou para ir com ela a um museu. Antes mesmo que ela terminasse o convite, instintivamente disse não. A rapidez e a convicção com que eu respondi a surpreenderam, e, confesso, a mim também. Como não havia espaço para dúvida, acabamos indo à praia em vez de irmos ao museu. O dia estava lindo, com céu azul, calorzinho suportável e o mar claro à nossa frente. Mesmo assim, me sentia incomodado. Entre um mergulho e outro, fiquei remoendo o porquê de eu ter respondido tão rapidamente com um não ao convite para o museu. Acabei chegando à conclusão de que sou como criança: para entender as coisas, preciso tocar, sentir e cheirar, e a ideia de passar uma tarde ensolarada dentro de um museu, andando de lá para cá, olhando para objetos enjaulados em redomas de vidro, sem poder tocar e interagir com nada,soava como uma morte lenta e agonizante. Boa parte desse sentimento se deve a minha última visita a um museu. Foi em 2013,em Istambul, quando Carole eufomos ao Palácio Topkapi, antiga residência do sultanato otomano, visitar uma exposição de armas islâmicas medievais. O palácio é muito bonito, a infraestrutura exuberante, mas o passeio foi entediante. Andamos durante horas por entre as antigas salas do palácio, olhando cada uma das vitrines como observadores passivos. Chegou um momento em que não aguentávamos mais, tudo parecia igual, distanciado, uma sucessão infinita de objetos estáticos. Era difícil estabelecer alguma conexão entre os objetos e as pessoas que os utilizaram no passado. O próprio arranjo das luzes criava uma atmosfera de sacralidade em torno das peças que só fazia aumentar o distanciamento psicológico frente aos objetos. Talvez se pudéssemos sentir o peso do escudo, ver de perto o brilho da lâmina da espada, a textura da cota de malha, poderíamos mais facilmente nos envolver e assim criar uma relação mais intimista coma Cultura Material. Mesmo hoje, tentando lembrar detalhes da exposição, sinto certa dificuldade. Memórias são evocadas materialmente por meio de horizontes sensuais encarnados, como cheiro, sabor, textura e cor, ou seja, memórias são construídas a partir de nosso engajamento corpóreo com a Cultura Material, e nosso

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envolvimento com a exposição foi inexistente (JONES, 2001). Gell (1998) nos lembra de que a eficácia dos objetos não está apenas em seu aspecto visual, o qualcria um efeito imediato, mas temporário. A maneira pela qualos objetos são mantidos na memória depende diretamente de como se dá o processo de interação com a Cultura Material, e tanto eu quanto Carol, assim como os demais espectadores não interagimos, não experimentamos, não vivenciamos a exposição. Lembro-me do palácio, dos jardins, dos grandes salões e até de alguns detalhes das arquitraves, mas não me lembro dos objetos expostos. Objetos foram feitos para serem experimentados, assim como casas foram feitas para serem habitadas, vestimentas foram criadas para serem vestidas, facas foram feitas para cortar, parafusar e mesmo travar a porta que insiste em bater com o vento. Mas, em museus, não podemos tocar ou experimentar os objetos. Podemos ver, podemos olhar, podemos contemplar, mas não podemos interagir com a Cultura Material institucionalizada. Entretanto, nem sempre foi assim. Entre os séculos XVI e XVII, as primeiras coleções privadas e mesmo públicas permitiam o acesso aos objetos (PYE, 2007; CHATTERJEE, 2008). Às pessoas era permitidotocar, ouvir, sentir e mesmo experimentar com o paladar os objetos (CLASSEN & HOWES, 2006). Classen (2007) nos fala do exemplo de Samuel Pepys que, em seus diários, relata ter beijado o cadáver exposto da rainha Katherine, mulher de Henrique V, em 1669, quando visitava a Abadia de Westminster. O próprio Pepys relata em seus diários que, ao visitar um pintor holandêsde nome Everelst, que havia chegado recentemente a Londres, sentiu-se “forçado de novo e de novo a colocar o dedo para sentir se meus olhos estavam enganados ou não” (MOSHENSKA, 2011: 27). Pepys se sentia livre e confortável em tocar a pintura, mas não relata a reação de Everelst ao toque da pintura, o que talvez indique que não era nenhum absurdo o que ele estava fazendo, principalmente se considerarmos otrompe l’oeil, um estilo artístico que, ao enganar o observador, praticamente o convida ao toque (SLUIJTER, 2000). Embora hoje possa nos parecer um grande absurdo, há evidências de a prática do toque ter sido um procedimento corrente e usual. Por exemplo, em 1694, a viajante e exploradora Cecilia Finnes, ao relatar sua visita ao Asmolean Museum, nos fala de um bastão que lhe chamou a atenção: “por mais que parecesse pesado e sólido ao olhar, ao tocá-lo percebo que é leve como uma pluma” (1949: 33). Como ressalta Foster (2013), ao segurar o objeto, Finnes sublinha um aspecto essencial da prática dos museus antigos, a interação com as peças expostas. O acesso tátil aos objetos fornecia um meio

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direto para a aquisição de conhecimento que sobrepunha o risco potencial de danificar ou mesmo de roubar tais objetos. Como salienta Classen (2007),o exame tátil dos objetos permitia um conhecimento encorpado da natureza da Cultura Material. Ao tocar, ao interagir com os objetos, o visitante se unia a eles, criava uma relação de intimidade, de proximidade que permitia não apenas a criação de memórias, mas a possibilidade do devaneio criativo (BACHELARD, 1998). O toque também fornecia a possibilidade de atestar a verdade do mundo. Benedetto Varchi, em 1549, em seu DueLezione, defendiaque, devido ao fato de podermos tocar nas esculturas, elas se tornavam uma espécie de arte mais verdadeira do que a pintura, já que pelo toque, podemos verificar a existência externa dos objetos. Barkan (1999) nos mostra que o escultor florentino Lorenzo Ghiberti, ao retirar uma estátua dos esgotos de Roma no século XVI, inspeciona os danos na escultura não com os olhos, mas com as mãos, pois o toque poderia revelar sutilezas que os olhos não poderiam alcançar. O poeta inglês Sir John Davies expressa claramente, em seu poema Nosce Teipsum, de 1599, a ideia do tato como fonte do aprendizado do mundo. Pelo toque, as primeiras qualidades puras nós aprendemos. Que vivificam todas as coisas, quentes, frias, úmidas e secas. Pelo toque, o duro, o macio, o áspero e o liso nós discernimos. Pelo toque o doce prazer e a dor aguda nós tentamos. (DAVIES, Nosce Teipsum apud WOLF, 2004:19). Sei que há toda uma questão associada à preservação e à conservação na ideia do toque de objetos institucionalizados. Esse é um debate cada vez mais acalorado dentro das humanidades (DAY, 2013). Mas creio que essa é só a ponta do iceberg. Acho que há algo mais profundo, mais velado no não tocar que é a caracterização do ser enquanto um ser educado, civilizado. Tocar e não tocar estabelece um jogo de poder, de autoridade, que qualifica o Eu e o Outro. Nós, no ocidente, aprendemos que não é educado tocar, seja um objeto em um museu ou uma pessoa na rua. Quantas vezes você ouviu sua mãe lhe dizer: “Não toque nisso, é falta de educação!”? Aprendemos desde crianças que o toque é o mais baixo dos sentidos. Quando crescemos e viramos cientistas, aprendemos que a ciência não se faz com o toque, pois o toque vem acompanhado do Eu, vem acompanhado da subjetividade, e a ciência deve ser distanciada, neutra e objetiva. Essa ideia, entretanto, não é nova no Ocidente. A noção do tato como um sentido menor é uma construção que encontra suas raízes no pensamento aristotélico e, sendo assim, para entendermos como o tato foi excluído da

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experiência dos museus, da experiência da arte, da Arqueologia, enfim, do nosso dia a dia, precisamos primeiramente voltar à Grécia Antiga e a Aristóteles.

Tocando a História

Segundo Aristóteles, a alma era composta de três faculdades: a Faculdade Nutritiva, a Faculdade Perceptiva e a Faculdade Cognitiva. A Faculdade Nutritiva é a primeira e mais básica de todas as faculdades da alma, sendo associada às capacidades dos seres vivos de se alimentar. Tanto homens quanto plantas e animais apresentam a Faculdade Nutritiva, já que, para sobreviverem, todos precisam se alimentar. Ligada à Faculdade Nutritiva está a Faculdade Perceptiva, que teria como função informar à alma as coisas do mundo. A Faculdade Perceptiva é o que separa as plantas dos animais, já que as plantas apresentam apenas a Faculdade Nutritiva. Assim, podemos falar que a faculdade Perceptiva é a primeira e mais básica característica dos animais. Além disso, aqueles seres que apresentam a Faculdade Perceptiva apresentam também a Faculdade Desiderativa, ou seja, o desejo, pois a percepção induz o apetite e a vontade. Na Faculdade Perceptiva, o tato representa o aspecto mais essencial. Para Everson (2007), isso se dá porque a racionalidade aristotélica dá à Faculdade Perceptiva uma função prática, ou seja, de perceber o alimento em seu entorno. Os animais precisam identificar seu alimento no mundo e como nem todos os animais podem se mover em direção ao alimento percebido, o tato se configura como a primeira e mais básica das sensações. Ele está presente em todos os animais como aspecto primário da sensação (ARISTÓTELES, De Anima, 414b15). Nesse sentido, enquanto a faculdade da nutrição é a faculdade da alma que primeiramente caracteriza um ser vivo, o tato é o sentido que inicialmente caracteriza os animais, ou seja, o que diferencia os animais dos demais seres vivos é justamente o tato. Aqui, está um ponto importante e que será fundamental na significação do tato nos períodos subsequentes da história. Sendo assim, guardemos esta informação:

a)

O tato como elemento definidor da vida animal

Segundo o filósofo, as sensações não são produzidas pelo órgão sensorial, mas sim pela ação de um intermediário. Dessa maneira, ao percepcionarmos, o objeto da percepção move o intermediário que, por sua vez, age diretamente no órgão sensorial,

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causando a sensação. O intermediário da visão é o transparente, o da audição é o ar, o do olfato é uma substância indefinida. São Thomas de Aquino, ao comentar o De Anima, atribui ao vapor a ação de intermediário do olfato. Já no caso do paladar e do tato, o intermediário é o corpo. A diferença entre o paladar e o tato e os demais sentidos é que, enquanto a visão, a audição e o olfato ocorrem à distância, no caso do tato e do paladar a sensação ocorre simultaneamente à ação do intermediário. Sendo assim, podemos dizer que é através do corpo que todas as sensações do tangível são geradas. Esse é um segundo aspecto importante na caracterização posterior do tato, ou seja, a identificação do tato com o corpo. Guardemos também esta informação:

b)

O tato associado às coisas da carne, do corpo, ao carnal

Com os primeiros pensadores cristãos, os sentidos deixam a arena puramente prática para assumirem uma posição moral. O problema é que, ao assumir tal conotação, os sentidos entraram em conflito com a razão. De acordo com Santo Agostinho, o pecado original nada mais é do que a permanente rebelião do desejo contra a razão. Segundo Kupper (2008), a ideia do pecado original representa a categórica exclusão da possibilidade de a humanidade agir moralmente através de sua própria racionalidade. Sendo assim, a ideia do pecado original significa a fraqueza da razão e do julgamento racional. A questão é que tanto os desejos quanto a razão, na filosofia cristã medieval, nascem dos sentidos. Segundo Spiegel (2008), como os sentidos não podiam ser deixados de lado, já que eles eram considerados o meio através do qual os seres encorpados adquirem informação do mundo, sendo necessários para a autopreservação, aquilo que preservava a vida resultava inexoravelmente na destruição metafísica do ser. Controlar os sentidos a fim de evitar as tentações representava limitar as possibilidades de conhecimento do mundo. Dessa maneira, para os cristãos na Idade Média, os sentidos funcionavam como a base para a manutenção da vida, ao mesmo tempo em que funcionavam como a principal causa da morte espiritual (SPIEGEL, 2008). Essa fundamental incoerência na doutrina dos sentidos é bem atestada no texto medieval Arcipreste de Talavera, de Afonso Martinez Toledo, publicado em 1438, onde se contrapõem a descrição e a dura denúncia dos prazeres dos sentidos. Para Santo Agostinho, os órgãos sensoriais não eram maus por natureza, mas se tornavam maus e propensos ao pecado quando o sentido interno (sensus interioris) falhava em controlá-

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los. Se na doutrina aristotélica a razão comanda os desejos, na doutrina cristã dos sentidos é o desejo que comanda a razão. Essa relação entre a razão e o desejo, que Spiegel (2008) chama de histérica, vai conduzir ao repúdio generalizado dos sentidos na cristandade ocidental. Os exercícios espirituais de Santo Inácio de Loiola, assim como o desenvolvimento das práticas ascéticas, são o exemplo mais claro desta política de contenção e controle das impressões sensoriais. De modo geral, a desconfiança cristã com os sentidos fez com eles fossem concebidos como portas que permitiam a tentação, o vício e o espírito maligno. Para Santo Agostinho, dentre todos os sentidos, o mais perigoso era o tato, visto que ele afetava o corpo como um todo. O toque do corpo de uma mulher contra o corpo do homem era tido como a forma de sensibilidade mais avassaladora e perigosa à sensibilidade masculina: A palavra luxúria (libido) usualmente sugere à mente a excitação do órgão de geração. E esta luxuria não somente toma o corpo todo e os membros externos, mas faz ele mesmo sentir dentro e assim move-se o conjunto da alma humana com uma paixão (voluptas) na qual a emoção mental é misturada com o apetite carnal, sendo o prazer resultante, o maior prazer de todos os prazeres corporais. (SANTO AGOSTINHO, A Cidade de Deus, XVI). Mesmo Aristóteles já havia ressaltado a ligação dos prazeres carnais com o tato. Aqui, temos o terceiro aspecto importante da significação do tato no mundo ocidental, ou seja, sua associação com as tentações carnais. Já sabemos que o tato era concebido como o sentido que nos define como animais. Sabemos também que o tato está ligado ao corpo. Agora sabemos que, por sua ligação com o corpo, o tato era tido como o sentido da luxúria, do vício e das tentações, ou seja:

c)

O tato como porta para o pecado e para a luxúria

Com o advento do projeto modernista no ocidente, os sentidos foram perdendo sua conotação moral para se tornarem cada vez mais marcadores sociais. Em O Processo Civilizatório, Norbert Elias (1994) defende que o principal aspecto da modernidade é a disciplina do Eu. Essa busca pela disciplina do corpo ajudou a interiorizar o tato e relegá-lo ao domínio afetivo no início da Modernidade. Enquanto na Idade Média alimentar-se com as mãos reafirmava relações comunais, criando uma ideia de igualdade social ao não permitir individualismo,no oitocentos desenvolvia-se a

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ideia de manter a mão consigo mesmo (CLASSEN, 2012). O homem da corte passa a ser controlado, disciplinado, com toque preciso e coreografado, tal como a noção europeia de civilização, de cultura, requeria. Assim, a supressão não só do tato, mas de todos os outros chamados sentidos inferiores: paladar e olfato. Galileu nos oferece uma evidência marcante acerca dos debates em curso nas elites europeias no que diz respeito à relevância do tato para a experiência da beleza. Em uma carta datada de 26 de junho de 1612, dirigida a seu amigo, o pintor Lodovico Cigoli, Galileu vai direto ao ponto: “podemos ser capazes de tocar estátuas, mas isto não é certamente o modo de apreensão para os quais elas se destinam” (MOSHENSKA, 2011: 26). Galileu reforçava assim a ideia aristotélica que excluía o tato da experiência do belo. As hierarquias raciais surgidas no século XVIII demostram claramente essa ideia. O naturalista Lorenz Oken, por exemplo, defendia uma hierarquia racial dos sentidos, onde os africanos apareciam associados ao tato, os australianos e melanésios ao paladar, os nativos americanos ao olfato, os asiáticos à audição e os brancos europeus apareciam associados à visão (HOWES, 2009). Dias (2004) demostrou, a partir da análise dos Proceedings da Societé d´Anthropologie de Paris, entre os anos de 1859 e 1890, como, através da medição das capacidades sensoriais dos indivíduos, buscou-se na realidade dar cientificidade aos pressupostos que viam nos povos primitivos maior acuidade tátil, olfativa e gustativa, e no homem branco europeu maior acuidade auditiva e, sobretudo, visual. Como o tato era associado diretamente com o corpo e não com a mente, o corpo avantajado de muitos indígenas confirmava o estereótipo da acuidade tátil dos “selvagens”. Partia-se, assim, de uma hierarquização sensorial para uma hierarquização social, com os brancos europeus no topo da escala e os negros e indígenas na parte inferior. Este é o quarto aspecto a destacar na construção do tato no Ocidente:

d)

O tato associado ao “selvagem, ao inculto, ao não civilizado”

Nas ciências, Kant e Descartes passam a defender que o tato não permitia o pensamento reflexivo. Para os filósofos, ao utilizarmos a visão, não somos obrigados a estabelecer um contato físico com o percepto. Nós não interferimos no objeto e o objeto não sofre alteração ao ser percebido e, como não há relação causal na visão, o ganho é a objetividade (JONAS, 1966). Já quando utilizamos o tato, há uma necessidade tácita de contato, o que causa mudança tanto no percepto quanto no observador. Ao tocar um

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objeto, nós alteramos o objeto e o objeto nos altera: basta pensar que, no mínimo, há uma alteração na temperatura tanto na superfície do objeto quanto na ponta dos dedos. No tato, nós não temos uma clara separação entre a função teórica da informação e seu condutor prático. Dessa maneira, a visão passa a representar o sentido da razão, enquanto o tato passa a representar o sentido da subjetividade. Este é justamente o último aspecto que caracteriza o tato no ocidente:

e)

O tato como veículo da subjetividade

A partir dessas cinco construções, ou seja, do tato como sentido animal, como representante do corpo, como porta para o pecado, como símbolo do selvagem e como fonte da subjetividade, podemos entender como o tato foi sendo paulatinamente construído e adquiriu significado de um reflexo de nosso lado animal, irracional e brutal. Nesse contexto, o tato passou a representar, na modernidade, um símbolo de tudo que era tido como lamentável na alma e na conduta humana. O ápice dessa construção veio em 1844, com a escritora e crítica de arte Anna Jameson. Ao comentar sobre o público que frequentava os museus europeus, a autora escreveu:

Nós podemos lembrar os indolentes e vadios que ao invés de se moverem entre as belezas e maravilhas com reverência e graça, escoravam-se sobre elas como se tivessem o direito de estarem lá, falando, flertando, tocando os objetos e mesmo as pinturas! (HERMANN, 1972: 126).

A escritora articulava com sua fala um conceito específico de classe e utilizava a estética sensorial para construir a ideia do outro, do inculto. Segundo a autora, somente plebeus e incultos tocam obras de arte. O novo regime sensorial defendido por ela, com a visão sendo considerada o sentido superior, e o tato o inferior, afastava as pessoas da vivência do mundo e dos objetos, passando, assim, a representar um regime de exclusão social. Dessa maneira, uma forma distinta de ver e perceber o mundo ganhava sua ascendência pública definitiva. Tinha início, assim,o Império da Visão. Tocar os objetos passava a ser considerado um exemplo de ignorância, de falta de educação. Os objetos, nesse cenário, deixam a arena da experimentação e passam à arena da observação.

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Olhe, mas não toque!!!

A construção do tato como símbolo do ignorante, do selvagem, foi acompanhada por uma série de mudanças sociais, políticas e ideológicas que resultaram na mudança das práticas de exibição. Enquanto os sentidos menores eram reprovados, visão e audição ganhavam cada vez mais proeminência nas práticas sociais no Ocidente, e as instituições culturais como os museus, bibliotecas e parques se tornavam veículos para o exercício dessas novas formas de poder (BENNETT, 1995; THOMAS, 2009). As galerias se transformam em locais tanto para a observação quanto para a regulação social. Dentro desse espaço politizado, ordenado, o corpo do visitante poderia ser moldado de acordo com os novos códigos de conduta social a partir da implementação de regras de comportamento elaboradas por meio de restrições relacionadas à vestimenta, alimentação e proibição do toque. (DAY, 2013). Não tocar, não comer, não falar em voz alta, vestir-se adequadamente definiam o Eu e o Outro. A mudança das políticas de engajamento corporal com a Cultura Material para as políticas de distanciamento colocou os museus arqueológicos e etnográficos em uma posição desvantajosa em relação à apresentação de uma narrativa sensorial e encorpada do passado. Muitos museus modernos têm tentado quebrar essa barreira (MORGAN, 2011), buscando novas estratégias para permitir um maior envolvimento do público. Mas a prática geral continua perpetuando a visão como principal meio de apreensão do passado, colocando o visitante em uma posição de espectador passivo, com pouca ou nenhuma participação (CLASSEN & HOWES, 2006). Apesar de os cientistas sociais hoje estarem, em sua maioria, conscientes da construção problemática da visão como sentido da razão, esse sentido permanece nosso instrumento epistemológico e ontológico mais penetrante (OUZMAN, 2005). Segundo Thomas (2009), a emergência durante o século 18 da visão como sentido principal no ocidente não representa apenas a emergência de uma preferência cultural por um sentido específico, mas uma situação na qual uma concepção particular e restrita de visão se torna o modo aprovado de apreender a realidade e produzir regimes de verdades. Muito da Arqueologia e das práticas de institucionalização da Cultura Material levam a forma de um testemunho de apropriação, onde testemunho implica mais do que olhar, significando o estabelecimento de uma relação psicológica na qual o observador é superior ao objeto da observação. É nesse ponto que começa nossa autoridade como cientistas.

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Mas, a despeito da conveniência analítica, o foco num único sentido ignora dois fatos: em primeiro lugar, que o modelo sensorial, com seus cinco sentidos autônomos, pode não ser o modelo mais apropriado para o entendimento das experiências sensoriais do passado, já que grupos não ocidentais podem valorizar outras modalidades sensoriais, como têm demonstrado as evidências históricas, etnográficas e antropológicas; e, em segundo lugar, que a experiência sensorial é multifacetada e age em conjunto. Pensemos, por exemplo, na cestaria dos povos da etnia Desana, que vivem nas margens do rio Uapésna Amazônia. Segundo Reichel-Dolmatoff(1985) e Classen e Howes (2009), entre os Desana, as cestas, assim como os tapetes de fibra, além do caráter prático utilitário, possuem um valor simbólico que está diretamente associado ao odor e à textura das matérias primas utilizadas para sua confecção, pois os odores e texturas das diferentes fibras utilizadas na criação desses objetos fazem referência direta à mitologia Desana. Ao institucionalizarmos esses objetos em redomas de vidro, não permitindo o acesso do público às relações sensoriais que permeiam a Cultura Material, estamos limitando o entendimento de tais objetos, pois eles precisam ser vivenciados pelo toque e pelo odor para serem entendidos. Outro objeto que se destaca por extensão sensorial é o anel Kula dos Massins de Papua, Nova Guiné. Segundo Howes (2005), odor, sinestesia e audição são aspectos destacados dentro dos modelos sensoriais do grupo dos Massins. Ser buto, ou seja, ser barulhento é um símbolo de status e destaque social entre os Massins. O anel Kula, nesse cenário, é uma materialização dos modelos sensoriais, visto que seus adereços lhe conferem sonoridade, movimento e odor. Se Howes tem razão ao interpretar os anéis Kula como objetos que ganham sua importância pelo som e pela textura, como o arqueólogo, por exemplo, pode compreendê-lo tendo a visão como principal ferramenta analítica? E como o público, que não pode sequer manusear um anel Kula, pode chegar a compreendê-lo em sua plenitude? Não podemos pensar que objetos são apenas textos para serem lidos ou sinais visuais que precisam de codificação: acima de tudo, objetos são formas materiais que pressupõem uma inter-relação corporal sinestésica. Ao não considerar os aspectos associados à experimentação corpórea, sensorial dos objetos, estamos, em grande parte, limitando nosso próprio entendimento da Cultura Material, e, ao mesmo tempo, estamos impedindo que outras vozes possam contribuir diretamente para a formação do conhecimento, tanto do presente quanto do passado. Ao nos tornarmos detentores do

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conhecimento e das verdades do mundo, estamos excluindo sistematicamente aqueles que não compartilham dos mesmos modelos defendidos pela ciência. O que realmente nos dá o direito de determinar o que é ou não um determinado objeto? O que nos dá o direito de dizer que isto ou aquilo pode ser ou não tocado? A ciência? A autoridade científica nos dá o direito de tocar nos objetos, de quebrar fragmentos que não nos interessam, de escavar e modificar uma paisagem, mas ao mesmo tempo essa autoridade científica não permite que populações que vivem às margens daquilo que a ciência chama de patrimônio arqueológico possam tocar, remover, modificar objetos e paisagens, ou que visitantes em museus possam sentir os objetos, ou mesmo que decidam se algo é ou não importante. A ciência nos dá a autoridade de institucionalizar a Cultura Material, de imobilizar um dado objeto em uma redoma de vidro de acordo com os modelos sensoriais ocidentais e científicos, mas tira das pessoas a oportunidade de sentir e tocar os objetos. Ao ressignificarmos os objetos, nomeando-os como artefatos arqueológicos, estamos criando novas histórias sobre esses objetos. Mas essas histórias são narrativas políticas sem vida, sem alma, pois estamos submetendo esses mesmos objetos a discursos desencorpados. A quem atende a sacralização que fazemos do objeto narrado enquanto artefato arqueológico? Ao governo? À sociedade? A essa última com certeza não, pois, frequentemente, excluímos o público em geral de todos os processos de conhecimento, sobretudo aquele que porta alguma deficiência física. O que deve fazer, por exemplo, um deficiente visual em uma exposição museológica? Será que não deveríamos abrir nossas redomas de vidro a fim de permitir o contato físico das pessoas com a materialidade? Afinal de contas, não foi para isso que os objetos foram criados, para serem experimentados? Sei que alguém pode me falar: mas Zé, nem todos os objetos foram criados para serem tocados, experimentados, pois há algumas categorias de objetos que são e foram criadas justamente para serem contemplados a distância. Sei perfeitamente que nem todos os objetos pressupõem o toque ou mesmo um contato corporal mais intenso, mas é por isso que temos que ter muito cuidado e responsabilidade ética ao tirar um objeto de seu contexto e inseri-lo em outro contexto, pois nesse processo de ressignificação, os objetos perdem sua identidade e passam a assumir uma nova personalidade, a de patrimônio. Creio que temos que dar uma oportunidade aos objetos e às pessoas, para que eles possam se entender e se descobrir, sem que tenhamos nós, os auto proclamados “guardiães do patrimônio”, que interferir tão marcadamente nessa relação. Com a quantidade tão infinda de materiais abarrotando

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nossas reservas técnicas, não seria a hora de disponibilizar parte desse material para o toque, assim como para os outros sentidos que não os da visão? Sabem por que não fazemos isso? Porque fomos ensinados a somente acreditar na visão e não nos demais sentidos, principalmente naqueles que chamamos de sentidos inferiores e que, em geral, nem lembramos que temos. Essa educação é tão forte que acreditamos realmente que a visão é o sentido superior, o sentido da razão e o tato o sentido inferior, o sentido do inculto, o sentido do selvagem. Bloch (1991) e Benjamin (1969) tratam a estrutura perceptiva do dia a dia na modernidade como a experiência de um contínuo mítico. Esse contínuo, que na verdade é ideológico, é experimentado de modo particular, subjetivo e culturalmente estabelecido. Dentro desse contínuo, modelos perceptivos são disseminados a fim de manter uma memória pública dominante e eliminar as chamadas memórias discordantes. A força de tal educação se assenta no fato de que, quando experimentamos algo como natural, nós o experimentamos como verdadeiro e é justamente por isso que a estrutura do contínuo é perniciosa. A inconsciência da experiência do contínuo no dia a dia, que Braudel (1980) apresentava como algo quase orgânico, Benjamin (1969) e Bloch (1991) descrevem como uma construção político-social. Esse contínuo, no qual os discursos e as materialidades são politica e culturalmente determinadas, permeia a experiência sensorial mundana do cotidiano e acaba por gerar os processos de lembrança e esquecimento. Museus, nesse sentido, em sua maioria, estão perpetuando uma forma específica de memória que é construída somente e tão somente pela visão, perpetuando uma visão de mundo que pertence ao homem civilizado ocidental. O conhecimento discursivo, visual, é um fetiche de nossa tradição acadêmica, que é incapaz de descrever a maneira pela qual um artesão entendia e trabalhava com seus materiais. É necessário explorar os mecanismos através dos quais a estrutura perceptiva é formada, se quisermos minimamente entender como as pessoas no passado experimentavam a materialidade. Se quisermos realmente entender como as pessoas se engajavam no dia a dia com seu mundo, precisamos reconstruir a história do sensorial dessas pessoas. Temos que colocar de lado a ideia moderna de que os sentidos são apenas receptores de informação e admitir que os sentidos são socialmente construídos. Uma abordagem sensorial da Cultura Material, nesse sentido, tem o potencial para articular subjetividades emergentes que encorpam realidades, imaginação, razão, diferenças e sentido comum. Uma abordagem sensorial da Cultura Material a posiciona como integral ao comportamento humano e não como um aspecto isolado e inerte.

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Como defende Ouzman (2005), uma maior apreciação da Materialidade ou da Cultura Material partindo de seus aspectos sensoriais permite uma reflexão da maneira pela qual aceitamos ou refutamos uma dada informação, pois os sentidos podem desafiar as verdades da visão. É nesse sentido que uma Arqueologia Sensorial pode nos ajudar, ao oferecer abordagens diferenciadas da Cultura Material, pois a construção do próprio patrimônio arqueológico pode, então,basear-se em modelos sensoriais que não o científico e ocidental. A partir daí, assume-se a possibilidade de diversas apropriações sensoriais do patrimônio não apenas pelos cientistas, como também pelo público em geral, chegando mais perto de uma “gestão compartilhada” (BEZERRA, 2011) desse patrimônio, na qual o público tem uma participação ativa. Precisamos quebrar as redomas de vidro e permitir que todos tenham acesso à formação de conhecimento, seja pelo tato, seja pela visão.

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GESTION DEL PATRIMONIO ARQUEOLOGICO EN PUERTO RICO: EL CASO DE LOS PARQUES NACIONALES ARQUEOLÓGICOS PRECOLONIALES Y LA CONSTRUCCIÓN ÉTNICA DE LOS "NEO -TAÍNO" Gestão do Patrimônio Arqueológico em Porto Rico: O Caso dos Parques Nacionais Arqueológicos Pré-coloniais e a Construção Étnica dos “Neo-Taíno” Management of the Patrimonial Archaeological in Puerto Rico: The Case of the National Archaeological Parks Pre-colonial Ethnic and Construction of "Neo-Taíno" Cristina Burgos Otero1 Viviane Pouey Vidal2 RESUMEN Este artículo tiene como objetivo abordar el contexto de los Parques Nacionales Arqueológicos Pre-coloniales de Puerto Rico, denotar las políticas actuales de gestión del patrimonio cultural en el país, así como demonstrar las disputas políticas entre el gobierno y los grupos indígenas. Comenta sobre el desarrollo de la práctica arqueológica, la construcción étnica de lo grupo "NeoTaíno" y sus reivindicaciones sobre los sitios arqueológicos, destacando la utilización de artefactos, monumentos y entierros en la preparación de su discurso étnico y la afirmación de su identidad indígena. Este estudio preliminar también reconoce y destaca la importancia de los estudios etnoarqueologícos para la identificación y comprensión del modo como el "Neo-Taíno" están construyendo y (re)construyendo su memoria indígena. Palabras Clave: Construcción de Étnica; Neo-Taíno; Etnoarqueología y Patrimonio. RESUMO Este artigo visa abordar o contexto dos Parques Nacionais Arqueológicos Pré - coloniais de Porto Rico, denotando as atuais políticas de gestão do patrimônio cultural no país, bem como demonstrar as disputas políticas entre o governo e indígenas. Comenta ainda sobre o desenvolvimento da prática arqueológica, a construção étnica do grupo "Neo-Taíno" e suas reivindicações sobre os sítios arqueológicos, destacando a utilização de artefatos, monumentos e sepultamentos na elaboração do seu discurso étnico e na afirmação de sua identidade indígena. Este estudo preliminar também reconhece e enfatiza a importância de estudos etnoarqueológicos que possibilitem identificar e compreender como os "Neo-Taíno" estão construindo e (re) construindo a sua memória indígena. Palavras-chave: Construção Étnica ; "Neo -Taíno", Etnoarqueología e Patrimônio.

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Antropóloga pela Universidade de Puerto Rico e Doutoranda em Arqueologia na UNICEN, Província de Buenos Aires,Olavarria. 2 Msc em História área de concentração em Arqueologia pela PUC/RS e Doutoranda em Arqueologia na UNICEN, Província de Buenos Aires,Olavarria.

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ABSTRACT This article aims to address the context of the National Parks Archaeological Pre-colonial Puerto Rico, denotes the current policies of cultural heritage management in the country, as well as demonstrates the political disputes between the government and the indigenous groups. Comment on the development of archeology, construction of ethnic groups as "Neo-Taino" and their claims about the archaeological sites, especially the use of objects, monuments and burials in the preparation of ethnicity speech and Indian identity assertion. This preliminary study also recognizes and emphasizes the importance of etnoarqueológicos studies for identifying and understanding as the "Neo-Taíno" are building and (re) constructing their indigenous memory. Keywords: Construction Ethnic; Neo-Taíno; Ethnoarchaeology and Heritage.

1. Introducción

El tema del manejo del patrimonio arqueológico en Puerto Rico (en adelante PR) ha trascendido con una suerte de rezago por parte del desarrollo de las esferas académicas y en el desarrollo de la arqueología como disciplina. Las agencias tanto gubernamentales como federales encargadas de salvaguardar el patrimonio cultural se han caracterizado por una administración altamente criticada, que en los últimos años ha perdido fuerza y credibilidad. Por otra parte, la arqueología que se practica en la isla se comprende en un 90% por intervenciones sobre recursos arqueológicos en riesgo a ser impactados por proyectos de construcción. Esta situación provocó un descontento con el manejo de los recursos culturales en PR, generando una serie de críticas sobre la práctica de la arqueología en la isla (PAGÁN, 2001, 2004; PAGÁN Y RODRÍGUEZ, 2008; RODRÍGUEZ, 2007). El desarrollo de la práctica arqueológica en Puerto Rico ha sido liderado, desde sus inicios a principios del siglo XX, por arqueólogos estadounidenses, quienes se encargaron de construir la cronología del pasado precolombino de PR clasificándolo en categorías históricoculturales. El auge de los trabajos arqueológicos interrumpe la tarea de los etnohistoriadores, que para finales de siglo XIX y principios de siglo XX ya habían comenzado a documentar una reconstrucción del pasado histórico nacional (PAGÁN Y RODRÍGUEZ, 2008). El enfoque consolidado desde la década de los cincuenta por los trabajos de Irving Rouse y colaboradores, se aplica hasta la actualidad. De forma tal que el primer arqueólogo puertorriqueño -y el fundador

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del Instituto de Cultura Puertorriqueña (ICP)-, Ricardo Alegría enmarca su producción dentro de esta corriente. En este contexto, todas estas circunstancias matizan la práctica arqueológica en PR. A ello se suma la situación sociopolítica que atraviesa la isla, en tanto Estado Libre Asociado, (Commonwealth) lo que influye directamente con el desarrollo de la arqueología. Por consiguiente, el panorama de la disciplina se ha visto afectado y/o condicionado por prácticas, narrativas y representaciones culturales de carácter colonial (RODRÍGUEZ, 2009; RODRÍGUEZ PAGÁN, 2008; PAGÁN, 2004); reflejado en la reivindicación de lo “taíno”, es decir nuestro pasado indígena, en la construcción de una identidad nacional. De este modo, se reproduce un discurso que simplifica la historia precolombina a la categoría “taíno”, conocida por los relatos de los cronistas españoles como la población que habitaba la isla durante el periodo de la conquista y colonización española del siglo XV. Dicha categorización se construye en base a la generalización de esta población como arahuaco parlante, encausándola en una descripción sólita de una expresión monocultural. Sin embargo las investigaciones arqueológicas de la última década han arrojado luz sobre la composición cultural y social del Caribe insular que se caracterizó por ser un contexto multicultural desde sus ocupaciones iníciales (RODRÍGUEZ RAMOS, 2005a, 2007; WILSON, 1993; citado por: PAGAN Y RODRIGUEZ, 2008). En variadas ocasiones se ha evidenciado manifestaciones culturales que muestran la interacción circum-caribeña

discutida por algunos autores (e.g.

HOFMAN, BRIGHT, RODRÍGUEZ, 2010), es decir, la relación intercontinental e inter-isla con el Caribe insular. La pluralidad de los habitantes del Caribe insular se interpreta como producto de vínculos inter-sociales mediante relaciones macro-regionales con el área Istmo–Colombiana y regiones continentales adyacentes al Mar Caribe (RODRÍGUEZ, 2007 y 2010). Como resultado podemos apreciar que en la propuesta inicial se reduce una historia de 6.000 años de poblamiento de este territorio a una fracción de tiempo sucedida durante el periodo de contacto europeo. Ha sido labor de los organismos nacionales el de promover este discurso tanto en esferas educativa, profesional, como también en la turística.

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2. La Gestión del Patrimonio

El manejo del patrimonio en Puerto Rico depende tradicionalmente de tres esferas:1) la administración pública, 2) las organizaciones privadas y 3) la academia (e.g. toda institución universitaria tanto privada como pública que a nivel postsecundario lleve a cabo la práctica arqueológica- ya sea en su predio o como investigaciones anexas a algún programa de dicha unidad académica en PR). Con respecto al primer campo se presentan una serie de divergencias que han estructurado la trayectoria que actualmente comprenden lo que son las agencias estatal y federal. Algunos cambios organizativos que han moldeado dichas instituciones se remontan a sus inicios cuando la oficina federal pertenecía al organismo estatal, esta fue creada para responder a una oficina gubernamental; y más adelante fue separada y autonomizada. Actualmente trabaja como un departamento aparte. Como resultado, la jurisdicción de las agencias para la atención de los casos varía de acuerdo a la normativa. Además, con referencia a la representatividad de arqueólogos/as en estas agencias, en ocasiones es escasa, lo que limita la consideración de sugerencias profesionales y especializadas en el desarrollo de los planes de gestión y en la toma de decisiones de la conservación a fin con la variabilidad de los recursos arqueológicos.

2.1. Organizaciones Encargadas del Manejo del Patrimonio Cultural en Puerto Rico

Las instituciones y organizaciones gestoras del patrimonio en PR se han forjado bajo el paraguas de un marco legal, que tiene dos niveles, el estatal (Puerto Rico) y federal (Estados Unidos de Norteamérica). La tarea de manejo, que varía entre la función de la organización administrativa y la territorial dentro de las estructuras jurídicas (BALLART Y TRESSERRAS, 2007), se traduce en el contexto político de PR en federal, estatal y local. A nivel local solo los Municipios Autónomos se rigen por la normativa de los planes de ordenamiento territorial que igualmente responden a la Ley 170, según enmendada en el 1988, “Ley de Procedimiento Administrativo Uniforme del Estado Asociado de Puerto Rico”. En virtud a esta ley, se regulan los permisos adjudicados por la Administración de Reglamentos y Permisos (ARPE), la cual se rige, además, por la reglamentación adscrita al Departamento de Arqueología y Etnohistoria del ICP. Dentro de este Departamento es en el Consejo de Arqueología Terrestre donde se otorgan los permisos que implican la aprobación o denegación de proyectos de construcción basados en

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informes de impacto de sitios arqueológicos (aunque nunca se derogan, más bien se detienen o aplazan los planes construcción de acuerdo al impacto que hayan recibidos los recursos arqueológicos al momento, para así establezca y el tiempo que requiera el trabajo arqueológico). El marco legal a nivel federal se desprende inicialmente del National Historic Preservation Act de 1966, que en la Sección 106 regula las intervenciones de las agencias federales en propiedades históricas. Estas últimas son definidas como “cualquier distrito o sitio, edificio, estructura, artefacto, registro y/o restos prehistóricos o histórico, los cuales también elegibles para su inclusión en el Registro Nacional”. De esta manera incluye los proyectos, actividades o programas con permisos, licencias o financiamiento federal, entre las cuales la Oficina Estatal de Conservación Histórica (en adelante OECH) se especializa en la asesoría y evaluación del cumplimiento de la ley federal. Esta oficina federal, dependiente del Servicio Forestal, se encarga de la protección y preservación de los complejos arquitectónicos y arqueológicos de valor histórico. Mediante el Plan Estatal de Conservación Histórica de Puerto Rico expide informes de reconocimientos de propiedades históricas y atiende las nominaciones del Registro Nacional de Lugares Históricos (adscrito a Washington DC, EEUU). En referencia a la aplicación de las normativas correspondientes a las diferentes agencias involucradas en la protección del patrimonio, por su parte, la legislación federal (National Historic Preservation Act) Ley Nacional de Preservación Histórica expone que el gobierno local puede actuar como la agencia oficial bajo la Sección 106. Se ha comentado que su implementación en algunos casos ha sido perjudicial, ya que en la práctica no ha tenido en cuenta los lineamientos de “las agencias reguladoras nacionales ni considera diversos aspectos de índole social y cultural” (RODRÍGUEZ LÓPEZ, 2009), como tampoco a organizaciones, comunidades adyacentes a los sitios arqueológicos y Consulting parties (partes que deben ser consultadas, según la Sección 106 de ANCH: 36 CFR PART 800) para asegurar que los recursos culturales se tomen en cuenta en los proyectos de “planificación y desarrollo” (CARRILLO, 2007). Por tanto, se añaden otros factores como la comunicación insuficiente entre agencias, las tensiones internas entre miembros y líderes de las comunidades, generando conflictos y perpetuando una inestabilidad organizativa que produce una gestión fragmentada del patrimonio (WENBANSMITH, 1995).

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A escala autonómica se encuentra el Instituto de Cultura Puertorriqueña, organismo gubernamental fundado para el año 1955 respondiendo a la Ley 89 de julio del mismo año, conocida como la “Ley del Instituto de Cultura Puertorriqueña”. En principio fomenta la preservación del patrimonio cultural, mediante la conservación, promoción, estimulo y divulgación de las diferentes esferas de la cultura puertorriqueña. Dentro del cual opera el Consejo de Arqueología Terrestre, como organismo autónomo -creado por la Ley 112 de Arqueología Terrestre, (1988)- pero dependiente en algunos requerimientos de la División de Arqueología y Etnohistoria del ICP (RODRÍGUEZ, 2007). El Consejo tiene como propósito la protección del patrimonio, asistiendo en las evaluaciones de Proyectos de Construcción que impactan yacimientos arqueológicos. Este organismo actúa, además, como única agencia reguladora de proyectos de investigación arqueológicos de Culural Resource Management (RODRÍGUEZ, 2007). Este panorama del manejo de los recursos arqueológicos en PR ha dinamizado discusiones que exponen varias posturas frente a esta compleja situación. Por una parte Carrillo (2007) atribuye el problema al carácter estructural ocasionado por el desarrollo y actual división de las funciones de conservación patrimonial como resultado de este tipo de funcionamiento multi-agencial. Mientras que Yasha Rodríguez (2007), dirigió una investigación donde examina la protección del patrimonio arqueológico, refiriéndose a la destrucción de los sitios, y el efecto de la poca documentación que existe sobre estos. También exploró el marco legal, reconociendo igualmente las limitaciones de dichas normativas sobre el desempeño de la arqueología en Puerto Rico, subordinada a la arqueología de salvamento o al CRM. Como trabajo experimental integró a grupos de la comunidad local donde llevo a cabo su proyecto de investigación en la participación de jornadas de campo arqueológicas. Como resultado obtuvo una respuesta favorable de los participantes, concluyendo en que una mayor concientización de la comunidad incrementarían las posibilidades de preservación del patrimonio arqueológico en las localidades adyacentes a Muntaner, en el municipio de Jayuya, PR. Estas respuestas a la aquejada situación del manejo del patrimonio en PR coinciden en señalar la ineficiencia de la administración pública, combinada al cuerpo legal en que se enmarca, como mayores eslabones de la cadena operativa que se muestra fragmentada en su insuficiente labor protectora.

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Con referencia al campo disciplinar, a pesar de que el año pasado se formalizó el primer posgrado en Arqueología de la isla, ha sido afectado por la ausencia de un ámbito académico desarrollado en PR, por consiguiente la formación de arqueólogos/as se ha efectuado fuera del país. De este modo la participación de la esfera académica en el manejo de los recursos arqueológicos depende de las aportaciones que los profesionales preparados en universidades foráneas puedan contribuir con sus respectivas investigaciones. Lo que genera una separación entre el desenvolvimiento investigativo tanto arqueológico como interdisciplinar con la capacidad de intervenir en estos procesos sobre el manejo y la protección del patrimonio arqueológico. Por consiguiente en la práctica arqueológica se presentan una serie de problemas referentes a la conservación, y la disposición de materiales que ha desembocado en la remoción del material arqueológico del país, encausados en una precariedad del proceso de gestión. Como resultado se ponen en cuestión la implementación de los criterios de preservación, la regularidad del mantenimiento y la calidad de diálogo entre las agencias reguladoras, los arqueólogos, y especialistas en conservación de los recursos arqueológicos.

3. Grupos Indígenas en Puerto Rico y La Etnoarqueología La Etnoarqueología incluye el campo de estudio de la producción, tipología, distribución, consumo, y descarte de la cultura material, con especial referencia a los mecanismos que relacionan variabilidad y la variación al contexto sociocultural y a la inferencia de los mecanismos de procesos del cambio cultura (DAVID, 1992 apud POLITIS, 2002: 67).

En las últimas décadas algunos sectores de la sociedad de Puerto Rico han mostrado su interés sobre el manejo del patrimonio. Entre estos se encuentran una serie de agrupaciones con el fin común de reclamar el legado del pasado precolonial de la isla. Las manifestaciones de estas organizaciones,

mencionadas

como

“neo-taínos”

(RODRÍGUEZ,

2007;

PAGÁN

Y

RODRÍGUEZ, 2008) que demandan la participación y la pertenencia de los bienes culturales, incluida la repatriación de enterramientos ha detonado choques entre el mundo académico y estos grupos de interés. Estas controversias constituyen un factor fluctuante en el manejo del patrimonio arqueológico (HODDER, 1999). El caso de Puerto Rico ha tenido una serie de críticas, por parte de los etnohistoriadores (HASLIP VIERA, 2006; DE LA LUZ, 2006),

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generadas en respuesta a exposiciones de grupos, como la "Taíno Nation", en congresos de Arqueología (SAA 2004, entre otros transcurridos en EEUU). Estas polémicas dan origen a interpretaciones con respecto a los procesos de construcción de identidades como resultado de discusiones relativas a la ley de repatriación conocida como "Native American Grave Protection and Repatriaton Act" (NAGPRA) vigente en EEUU. El resultado de los debates sobre estas y otras temáticas relacionadas a los reclamos de organizaciones indígenas han motivado cambios sobre la metodología y la práctica de la arqueología (SMITH, 2004). En virtud de todo lo expuesto, la práctica arqueológica en PR está guiada por una política pública, que no implica un diálogo entre los desarrollos académicos vinculados con el estudio y preservación del patrimonio arqueológico (tanto vinculados a los desarrollos realizados por cientístas sociales - e.g. arqueología - como técnicos – e.g. conservadores -) y la administración pública. Lo que se interesa dilucidar y conocer a partir de esta investigación

es si las

limitaciones de la práctica arqueológica, promovida por las agencias responsables del manejo de los recursos arqueológicos, responde a una limitación propia del marco legal, tanto nacional como federal, para la administración y manejo del patrimonio, y/o si se debe al ejercicio discrecional que estas entidades gubernamentales hacen de dichas normativas. En este contexto, se comprende la necesidad de futuros estudios etnoarqueologícos con grupos que se "autoreconocen" como descendientes directos de los indígenas "Taíno" precoloniales, o sea, visto por la sociedad como los "Neo-Taínos". Las metodologías de la etnoarqueología permitirán conocer y comprender una mayor dimensión de la construcción simbólica y étnica de estos grupos, bien como su relación de pertenencia con el espacio arqueológico que reivindican al gobierno. Actualmente a pesar de la importancia de las investigaciones etnoarqueologícas poco se ha realizado en PR, específicamente en relación a los grupos "Neo -Taíno", hasta el momento nada se a publicado con este enfoque. De ese modo, en este artículo buscamos conocer más sobre la etnoarqueología con el objetivo de utilizar sus herramientas teóricas y metodológicas a lo largo de los trabajos que están siendo realizados con los indígenas sobre el manejo y preservación del Patrimonio Arqueológico de estos Parques Nacionales. Teniendo en consideración que los actuales Taínos establecieran una relación de pertenencia con este patrimonio y fortifican sus discursos sobre la herencia de sus ancestros en el área. Así buscan en el paisaje arqueológico elementos culturales y simbólicos para integrar a su discurso étnico y político durante el proceso

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de reivindicación de sus derechos sobre la tierra de los parques. En las siguientes imágenes (1 y 2) es posible observar miembros de lo grupo "Neo - Taíno" ocupando los Parques Nacionales de Puerto Rico incurriendo en manifestaciones culturales y reclamando sus derechos sobre la tierra.

Imág. 1 y 2: Blog. The Voice of the Taino People Online. Aceso en 20/10/2013. Ocupación de los Parques Arqueológicos Nacionales de Puerto Rico.

En esta perspectiva, observamos el actual proceso de construcción de la identidad étnica de los "Neo -Taínos" y comprendemos la necesidad de ampliar el diálogo entre los estudios de patrimonio y la etnoarqueología. El uso de esta herramienta de investigación posibilitará un significativo avance en el conocimiento sobre el grupo en estudio a partir de una mirada interdisciplinar, entre la arqueología, patrimonio, memoria, etnografía, etnoarqueología y la antropología. Como destaca Politis (2002): En 1991, un profesor de antropología de la Universidad de Bogotá por desconocer la importancia de la etnoarqueología y su especialidad en los estudios actuales con grupos indígenas, "expresó en una reunión de departamento su rechazo hacia la etnoarqueología, pues dijo que no sabía mucho de esta sub-disciplina, pero que no le parecía bién ir a molestar los indios vivos para entender lo que pasaba a los indios muertos "(POLITIS, 2002: 64).

El autor explica también que estas posiciones extremas son incorrectas, debido a que la arqueología como la etnografía, o cualquier otra ciencia antropológica, tiene como uno de sus objetivos principales estudiar la variabilidad de las sociedades humanas y comprender los procesos culturales. Por lo tanto, es del todo correcto estudiar las sociedades actuales para abordar de manera directa y hacer frente a estos fines, o más indirectamente, mediante la identificación de análogos relacionados que sirven para comprender las sociedades del pasado.

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David Kramer (2001) señaló que las múltiples dimensiones de la sociedad humana tienen un papel cada vez mayor en la "Etnoarqueología" moderna. El autor cree que esta subdisciplina opera en la sociedad de los vivos y deben estar sujetas a las mismas normas éticas estrechos de la etnografía contemporánea y no desarrollar cualquier actividad o investigación sin el consentimiento de los actores sociales que se trate (DAVID KRAMER, 2001: 84-89). Gustavo Politis (2002) observa que algunas investigaciones en curso, cuando recurren a los modelos generados por etnoarqueólogos generalmente se restringen a enfoques y aspectos técnico-económicos de las sociedades del pasado. El autor considera que el enfoque etnoarqueologíco tiene significativamente "mayor potencial que ha sido subvalorado, sobre todo en América del Sur, donde la existencia de una gran variedad de sociedades indígenas y la abundante información etnográfica favorece el desarrollo de esta sub-disciplina"(POLITIS, 2002: 64) Al referirse a la etnoarqueología Silva (2002) afirma que la relación entre pasado y presente, la estructura y acontecimiento, el mito y la historia, la tradición y la innovación, es una tarea compleja y desafiante que no más se limita, como en los moldes funcionalistas, a pseudoquestiones, como "La pérdida de la Cultura, aculturación o desintegración cultural progresista" (SILVA, 2002a: 9). Para este autor la etnoarqueología es una sub-disciplina que consiste en la comprensión de los artefactos, estructuras y vestigios de otras sociedades en el pasado a través de la utilización de datos etnográficos y históricos, dentro de un contexto cultural bien definido. También considera que los modelos deben comprobarse a través de metodologías etnoarqueológicas propias. Destaca que: En la creación de estos modelos para entender el pasado, "el diálogo con los miembros de las sociedades indígenas y la analogía etnográfica tradicional son herramientas metodológicas poderosas" (SILVA, 2002a: 10). En este contexto el presente artículo considera indispensable analizar la práctica actual de los "Neo -Taínos" en PR a través de la etnoarqueología la cual posibilita comprender la significación de la dimensión simbólica de sus discursos sobre el patrimonio arqueológico, bien como su relación de pertenencia al área de los parques arqueológicos y la tentativa de construcción de una memoria perdida o la (re)construcción de una memoria "Taíno" no vivida pero, hoy basada y fortificada en informaciones antropológicas, etnográficas y en la cultura material de los Taíno précoloniales. Así buscamos en la etnoarqueología una manera de conocer

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y comprender el modo que los "Neo -Taínos" construyen y (re)construyen su memoria sobre lo patrimonio que reconocen y afirman ser de sus antepasados. Siendo relevante apuntar que muchas veces los grupos que se reconocen como indígenas en PR se apropian de un patrimonio que probablemente no pertenecía a Taíno précoloniales. Pero, debido a la generalización sobre la historia indígena mencionada por los colonizadores españoles que resume toda la ocupación humana precolonial a una sola clase étnica esto ocurre frecuentemente en el país. Así, los "Neo -Taínos" han establecido una "agency" simbólica que los permite interactuar con los monumentos, los enterramientos indígenas y los artefactos fortaleciendo sus discursos para tener el reconocimiento como los “Verdaderos Taínos” y garantizar sus derechos sobre la tierra donde están situados los sitios arqueológicos, o sea, en los Parques Arqueológicos Nacionales. En las siguientes imágenes (3 y 4) se puede observar los monumentos arqueológicos presentes en los Parques Nacionales de PR y (5) una reunión del grupo con vestimentas indígena y adornos que consideran Taínos:

Imág. 3 y 4: Monumentos del Parque Arqueológico de PR. Cristina Burgos /2012. Imág. 5 V: Blog. The Voice of the Taino People Online. Reunión del grupo. Aceso en 20/10/2013.

Estos casos representan un movimiento hacia un supuesto rescate de la vieja manera de ser, las tradiciones reconocido como tribal, por lo "auténtico", sino que aconsejan y apoyan una nueva "Raison d'être" o un nuevo grupo autorizado por las leyes nacionales, indígena" (MOTA, 2008: 23 - apud VIDAL, 2008). Pero, esta ocupación de los sitios arqueológicos en PR en situaciones dificulta hasta el mismo acceso a los sitios, y propicia el saqueo de los hallazgos mediante la apropiación que hacen miembros de estos grupos sobre los recursos arqueológicos considerando de su potestad la protección y uso patrimonial de los mismos. Dichos incidentes

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demuestran la necesidad de un mayor acercamiento entre la ciencia arqueológica, los investigadores, el gobierno y los grupos de interés. En este sentido consideramos de relevancia establecer un mayor diálogo con grupos de interés como el caso de los "Neo -Taíno" para la continuación de esta propuesta de investigación, creemos que el acercamiento de la comunidad “neo-tribal” hace posible el conocer sus discursos y su relación étnica con el patrimonio en estudio. La intención es conseguir un mayor acceso a los grupos para que en una futura publicación sea posible exponer sus diálogos y interpretación sobre lo parque arqueológico. Así como en este ejercicio escrito, actualmente, muchos arqueólogos/as reconocen la utilidad de la analogía en la argumentación para el proceso de interpretación y explicación del registro arqueológico y que consideramos indispensable. Sin embargo, no todos investigadores/as están convencidos/as de la utilidad de la analogía etnográfica y mecanismos que por lo general se utiliza para su aplicación (GOSDEN, 1999: 9). Politis (2002) detalla otro punto que ha generado desconfianza entre los investigadores "es que algunas sociedades indígenas que forman las actuales fuentes de analogía están en contacto con la cultura occidental y, de una forma o de otra integrados en el proceso de globalización" (POLITIS, 2002: 62). Debido a esto, en la mayoría de los casos, es cierto que muchos investigadores creen que las sociedades modernas no pueden servir como una referencia analógica de las sociedades del pasado. Politis señala que esta crítica es, sin duda, injustificada porque la investigación etnoarqueologíca opera en los principios de la argumentación analógica y por lo tanto los elementos de similitud (la fuente y el sujeto) no deben ser iguales. Obviamente, cuanto mayor es la similitud entre la fuente y el sujeto, el análogo de argumento tiene un potencial más alto, pero este grado de similitud en sí no asegura la coherencia la veracidad de los argumentos y declaraciones. Desde el punto de vista étnico, la “Etnoarqueología” ha sido cuestionada tanto por los arqueólogos y antropólogos (POLITIS, 2002).

4. Consideraciones finales

A lo largo de la realización de este trabajo fue posible observar la insipiente situación de las políticas de gestión del patrimonio arqueológico en PR, también las disputas por reconocimientos étnicos por parte de grupos "Neo -Taíno" que buscan rescatar una memoria

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perdida o no vivida, pero (re)significada a través de los elementos paisajísticos y arqueológicos. La generalización de la historia indígena precolonial de PR a una única categoría étnica, o sea, Taíno por los cronistas y etnógrafos contribuye con los inúmeros equívocos que ocurren en el proceso de identificación de lo patrimonio arqueológico. Siendo necesario una revisión y reorganización del andamiaje que constituye la gestión del patrimonio arqueológico, en específico el de carácter precolonial. En este caso, la presente investigación propone expandir la mirada para un estudio que destaque las deficiencias e incongruencias del manejo de los recursos arqueológicos. El mismo permitirá desentrañar el complejo de agentes que han modelado la trayectoria de los Parques Nacionales de carácter precolonial y los respectivos usos patrimoniales adjudicados al momento. Lo que permitirá dilucidar una lectura de los bienes culturales y los métodos necesarios para presentarlos al público, de manera que promueva más eficazmente la interpretación de los mismos. Dicha aportación implicará un diagnóstico de la conservación, preservación, mantenimiento, inventario y estado de las colecciones, manifestados en la atención desigual que presentan las agencias responsables por la salvaguardia del patrimonio. Así, elaborar una base para un plan de gestión fundamentado en las necesidades correspondientes de los recursos arqueológicos precoloniales y asegurar su futuro testimonio para las generaciones venideras. Además de elaborar un plan de manejo para el patrimonio arqueológico de Parques Nacionales de Puerto Rico bajo este carácter, la utilización de las herramientas de la etnoarqueología será indispensable en la continuación de dicho trabajo, bien como contribuirá con las definiciones futuras del proprio plan. La etnoarqueología permitirá también un acercamiento hacia los grupos "Neo-Taíno" permitiendo conocer y comprender más de su cultura y la manera que están interactuando con el contexto arqueológico y construyendo su nueva identidad, bien como los valores simbólicos, religiosos y culturales que agregan a los objetos. En este sentido, consideramos imposible pensar en el patrimonio arqueológico de los Parques Nacionales de PR, sin echar un vistazo a los discursos de las personas que están interactuando y (re)significando estos espacios, como los "Neo-Taínos". Comprendemos también que hacer un plan de manejo del patrimonio que no contemple el diálogo con la comunidad y los grupos indígenas que viven cerca sería dar continuidad a antiguos trabajos arqueológicos que se dedicaban a las excavaciones omitiendo los vínculos de la cultura material con la gente que la

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produjo y olvidando el rol de la sociedad en la valorización de los bienes patrimoniales (ENDERE, 2010). De este modo, en su desarrollo, esta investigación contemplará la sociedad y principalmente los grupos de interés, como el caso de los grupos "Neo-Taíno", como "agentes sociales del patrimonio" que adscriben significados a los parques, construyendo una memoria y una nueva mirada sobre los sitios arqueológicos, incentivando una (re)lectura sobre la historia indígena en el país.

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SITUAÇÃO ATUAL DA ATIVIDADE TURÍSTICA EM SÃO CRISTOVÃO (SERGIPE, BRASIL) Current situation of tourism in São Cristovão (Sergipe, Brasil) Situación actual de la actividad turística en São Cristovão (Sergipe, Brasil) Paulo Jobim Campos Mello 1 Jennifer Daiane M. M. Dantas 2 RESUMO A cidade de São Cristóvão, localizada no estado de Sergipe, região Nordeste do Brasil, foi fundada em 1590 e é a quarta cidade mais antiga do país. Possui um patrimônio edificado de enorme relevância, tendo sido tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico Artístico Nacional (IPHAN), em 1967. O conjunto arquitetônico da Praça São Francisco, seu principal monumento, foi tombado pela UNESCO, em agosto de 2010, como Patrimônio Cultural da Humanidade. No entanto, mesmo passados mais de dois anos da elevação da Praça de São Francisco a patrimônio cultural da humanidade, parece que o processo de turistificação ainda não ocorreu na cidade. O presente trabalho pesquisa junto aos turistas que chegam à cidade qual a percepção que tem do patrimônio histórico, bem como da infraestrutura turística oferecida. Palavras-chave: Patrimônio Cultural; Turismo Cultural; Cidade de São Cristóvão ABSTRACT The city of São Cristóvão, in the state of Sergipe, northeastern Brazil, was founded in 1590 and is the fourth oldest city in the country. It has a built heritage of great importance, having been listed by the National Historical and Artistic Heritage (IPHAN) in 1967. The architectural ensemble of the Plaza San Francisco was listed by UNESCO in August 2010 as a World Heritage Site. However, even after more than two years, it seems that the development of tourism activities has not yet occurred in the city. This paper survey the perception of historical heritage by the tourists that arriving in the city as well as the tourism infrastructure offered. Keywords: Cultural Heritage, Cultural Tourism, City of São Cristóvão RESUMEN La ciudad de São Cristóvão, en el estado de Sergipe, noreste de Brasil, fue fundada en 1590 y es la cuarta ciudad más antigua del país. Tiene un patrimonio histórico y cultural de gran importancia, después de haber sido incluido por el Patrimonio Histórico y Artístico Nacional (IPHAN), en 1967. La Plaza San Francisco, su principal conjunto arquitectónico, fue incluida por la UNESCO, en agosto de 2010, como Patrimonio de la Humanidad. Incluso después de la Plaza San Francisco se ha vuelto patrimonio cultural de la humanidad, parece que el proceso de turistificación todavía aún no se ha sucedido en la ciudad. Este trabajo de investigación se lleva a cabo con los residentes de São Cristóvão, a percibir su identificación 1 2

Professor do Departamento de Arqueologia da Universidade Federal de Sergipe – [email protected] Bacharelado em arqueologia pela Universidade Federal de Sergipe [email protected]

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con la Plaza San Francisco, y su identificación con el turismo. La investigación también se llevó a cabo con los turistas que acuden a la ciudad para ver lo que piensan del patrimonio histórico de la ciudad y de la infraestructura turística que ofrece. Palabras clave: Patrimonio Cultural; Turismo; ciudad de São Cristóvão

Introdução

A região nordeste do Brasil é conhecida por suas belas praias e pela presença do sol na maior parte do ano, atraindo grande número de turistas, não só nacionais, mas também de origem estrangeira. Sergipe, o menor estado da federação, localizado nessa mesma região, tem como ponto forte na atração turística suas praias, além de outros passeios ecológicos, principalmente, pelos rios e serras existentes no estado. É inegável o crescimento das atividades turísticas em todo o mundo. Dentre as modalidades de turismo, aquele denominado cultural, que pode ser definido como “a prática turística que envolva a apreciação ou a vivência de qualquer tipo de manifestação cultural, seja tangível ou intangível, mesmo que não seja a atividade principal praticada pelo viajante no destino” (DIAS, 2006: 40), aparece como uma das estratégias de desenvolvimento sustentável3, na medida em que há preocupação em aliar desenvolvimento econômico com a melhoria da qualidade de vida, saúde, emprego, segurança, preservação do patrimônio e do meio ambiente, bem como o respeito à diversidade. Assim, o turismo cultural pode apresentar-se tanto como um caminho para a obtenção de fundos necessários à preservação da herança cultural, como uma ferramenta para proporcionar o desenvolvimento econômico local e regional. Mesmo na modalidade de turismo cultural, o estado de Sergipe tem muito a oferecer, sendo que dois de seus conjuntos urbanos são protegidos pelo Instituto do Patrimônio Artístico Histórico Nacional (IPHAN): Laranjeiras, não só por seu conjunto arquitetônico (tombado como patrimônio estadual, desde 1971, e federal, desde 1993), mas por todas as festas populares que ali acontecem; e São Cristóvão, que teve a Praça de São Francisco tombada pela UNESCO, em agosto de 2010, como Patrimônio Cultural da Humanidade (sendo que o conjunto urbanístico da cidade já havia sido tombado como patrimônio estadual desde 1938, e federal desde 1967).

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Para uma discussão sobre sustentabilidade e desenvolvimento sustentável nas atividades turísticas, ver Alfonso (2012: 26 ss).

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Pretendemos, no presente trabalho, focar nossos estudos no aproveitamento turístico da cidade de São Cristóvão, uma vez que ela abriga, como já foi dito, um dos poucos patrimônios brasileiros eleitos como patrimônio da humanidade.

A cidade de São Cristóvão

A cidade de São Cristóvão conta, atualmente, com uma população de 78.864 habitantes, sendo que seu núcleo urbano está localizado há 26 km da capital, Aracaju, que é a maior cidade e principal porta de entrada do estado. Seu índice de Desenvolvimento Humano (IDH), em 2010, era de 0,662, o segundo maior do estado, mas que a colocava somente em 2.864º lugar entre as 5564 cidades brasileiras. Se levássemos em conta apenas o componente ‘renda’ (IDH renda = 0,624), sua colocação, dentro do estado, cairia para quarto lugar e, a nível nacional, para 3260º. Não há dúvida, portanto, que o incremento do turismo ajudaria em muito no desenvolvimento da cidade. Apesar de São Cristóvão não contar com praias, seu patrimônio cultural4 é de tal relevância que, sem dúvida, atrairia uma grande quantidade de turistas. Na verdade, como pode ser visto em Cohen (1979), não existe um único tipo de turismo (ou de turista), sendo que o referido autor distingue cinco categorias de experiências turísticas: recreativo, diversionista, experiencial, experimental e existencial, com esses tipos variando de acordo com o objetivo que a experiência tem para o turista dentro do contexto de sua atitude geral para a sociedade e o mundo a sua volta. Acreditamos que mesmo para o recreativo, em que a viagem não é nada além da recreação através do qual o turista se recupera das tensões do seu dia-a-dia, aqueles interessados primordialmente nesse turismo de ‘sol e praia’, não se furtariam a apreciar, também, as belezas culturais da região (BARRETO, 2007, entre outros), principalmente pela proximidade entre Aracaju e São Cristóvão. Sendo a 4ª cidade mais antiga do Brasil, São Cristóvão foi fundada em 1590, por Cristóvão de Barros. O povoado, no início século XVII, teve sua localização modificada por diversas vezes, até ser definitivamente estabelecida às margens do rio Paramopama, afluente do Vaza-Barris. Ainda durante o século XVII, ficou sob ocupação holandesa de 1637 a 1645, sendo inteiramente reconstruída após o conflito. No início do século XVIII foi retomada da 4

Patrimônio cultural pode ser definido como o corpus de signos materiais transmitido do passado para cada cultura e, então, para a humanidade inteira. A ideia de patrimônio foi ampliada para incluir o patrimônio imaterial, abrangendo os sinais e os símbolos passados por transmissão oral, as formas de expressão artística e literária, linguagens, modos de vida, mitos, crenças e rituais, sistemas de valores e conhecimentos tradicionais (JOKILETHO, 2005).

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província da Bahia, e tornou-se sede da capital de Sergipe de 1823 até 1855 quando o governo foi transferido para Aracaju (IBGE, 2009). A parte alta da cidade ainda conserva inúmeras construções de interesse arquitetônico, tendo sido tombada pelo Decreto-lei nº 94 de 22 de junho de 1938, o qual transformou a cidade em patrimônio histórico de interesse Estadual, e mais tarde, em 1967, foi feito pelo IPHAN um tombamento a nível Federal. Além dos casarios e igrejas (Matriz de Nossa Senhora da Vitória, do Carmo, Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos), seu principal conjunto arquitetônico está localizado na Praça São Francisco, tombada pela UNESCO em 2010, como já foi mencionado, como patrimônio da Humanidade.

Foto 1: Foto 1 – Igreja e Convento do Carmo.

Foto 2: Igreja Matriz.

A praça foi apresentada como um exemplo material único do momento histórico em que Portugal e Espanha encontravam-se unidos sob uma única coroa, período denominado de União Ibérica (1580-1640). Como modelo baseado no código filipino de urbanização, a Praça São Francisco possui o espaço quadrado, com suas relações de comprimento e largura ajustadas ao preconizado na Lei IX das Ordenações. Bem como as quatro vias secundárias e principais

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desaguando nos quatro vértices, onde em tudo relembra o que se recomendava para a Praça Maior de uma cidade. Diferentemente dos outros modelos franciscanos edificados no nordeste do Brasil - que têm à frente uma rua ou espaço menor, - o Conjunto Arquitetônico da Praça São Francisco possui, à sua frente, espaço amplo cercado por outros edifícios coloniais (ARAGÃO, 2011: 100). Em volta da praça encontramos a Igreja de São Francisco (fundada em 1567), o Convento de Santa Cruz, a Capela da Ordem Terceira, onde funciona o atual Museu de Arte Sacra; a antiga Santa Casa com a Igreja da Misericórdia (que foi também o Hospital de Caridade e, atualmente, é o Lar Imaculada Conceição, onde também funciona uma pousada), e o Palácio dos Governadores, construção do final do século XVIII (onde, desde 1960, funciona o Museu Histórico de Sergipe).

Foto 3: Igreja e Convento de São Francisco.

Foto 4: Detalhe do Cruzeiro, comum nos conjuntos franciscanos.

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Foto 5: Antiga Santa casa e Igreja de Misericórdia.

Foto 6: Palácio dos Governadores.

A elevação da Praça São Francisco à Patrimônio da Humanidade foi uma vitória de valor incalculável para a população de Sergipe, em geral, e a de São Cristóvão, de maneira particular. Com a autoestima aflorada, o povo sergipano terá de forma mútua a oportunidade de buscar o avivamento de suas raízes histórico-culturais, garantindo suas memórias para que as futuras gerações também possam conhecer e apropriar-se delas. Outro benefício provável para a região será o crescimento econômico, através do aquecimento da economia motivada pelo comércio em geral, inclusive de artesanato e comidas típicas que virá junto ao maior fluxo turístico (grifo nosso) (SANTOS et al., 2010/2011: 73). Ainda de acordo com os mesmos autores, a cidade não estaria preparada, em termos de infraestrutura, para receber esse maior número de visitantes e teria que se preparar rapidamente para isso: No referente à questão da infra-estrutura da cidade, sabemos que ainda é muito precária, a falta de restaurantes, hotéis, pousadas, drogarias, bons serviços de bar e de transporte, são exemplos dessa deficiência. O problema é bastante significativo, necessitando de urgência, pois a cidade que recebia uma quantidade pequena de visitantes ganhou projeção internacional (SANTOS et al., 2010/2011: 73).

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É isso que pretendemos discutir no próximo item: a cidade de São Cristóvão vem recebendo um número de turistas compatível com a sua importância? A cidade preparou-se, em termos de infraestrutura, para receber esses visitantes?

Quem vai à São Cristóvão e qual a percepção do visitante

Para termos uma ideia sobre qual a porcentagem de turistas que, chegando ao Estado de Sergipe, visitam São Cristóvão, e qual a opinião deles sobre a cidade, foi elaborado e distribuído um questionário em três hotéis, de categorias diferentes, na cidade de Aracaju, que é a porta de entrada do estado. A primeira parte do questionário era sobre os dados pessoais do turista: sua origem (estado e cidade); motivo da viagem (passeio, trabalho, outros); companhia durante a viagem (família, amigos, nenhuma); sexo e faixa etária. A segunda parte listava as opções turísticas existentes no Estado e oferecidas pela maioria das agências de viagens: pedia-se ao turista que marcasse os passeios realizados, indicando a ordem de preferência. Por fim, a última parte versava exclusivamente sobre a cidade de São Cristóvão, listando não só os pontos turísticos, mas também a infraestrutura oferecida pela cidade (condições da estrada de acesso, guias turísticos, bares, restaurantes, etc), e pedia ao turista que desse notas (de 1 a 10, sendo 10 quando considerasse o serviço e/ou ponto turístico excelente) para aquelas que utilizou ou visitou; perguntava-se, ainda, se o turista tinha ido à cidade por conta própria ou por meio de uma agência de turismo e, por fim, havia um espaço para comentários. Tivemos um total de 38 questionários respondidos. Quanto à origem dos turistas pudemos perceber que eles vieram de oito estados diferentes: Minas Gerais (8), Rio de Janeiro (7), Bahia (6), São Paulo (5), Mato Grosso do Sul (4), Pernambuco (3), Distrito Federal (2) e de cidades do interior de Sergipe (2), além de um turista que respondeu de forma inelegível esta questão. É possível perceber que, enquanto a grande maioria (52,6%) dos turistas vem da região sudeste (São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais), nenhum veio das regiões Sul ou Norte. A grande maioria (34) estava a passeio, enquanto apenas quatro vieram a trabalho. A viagem com a família também foi a opção da maioria, conforme pode ser visto no gráfico abaixo:

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Revista de Arqueologia Pública, n.9, Julho de 2014. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP. Gráfico 1 – Companhia durante a viagem. 1 5 família amigos nenhuma

10

não repondeu

22

Em relação à faixa etária, temos que a maioria dos turistas (26, ou 68,4%) se encontra entre 31 e 60 anos: Gráfico 2 – Faixa etária. 14 12 10 8 6 4 2 0 até 20

de 21 a 30 de 31 a 40 de 41 a 50 de 51 a 60 de 61 a 70 mais de 70

Com respeito às opções turísticas visitadas, é possível notar que apenas cinco turistas (13,2% do total) foram até São Cristóvão, demonstrando a baixa frequência de visitação da cidade (o mesmo ocorreu com outra importante cidade histórica do estado: a cidade de Laranjeiras foi visitada por apenas 3 turistas, ou seja, 7,9% do total). Os passeios mais procurados foram os de Xingó (24 turistas, ou 63,2%) e Mangue Seco (16 turistas, ou 42,1 %). Em Xingó, a principal atração é o passeio pelos cânions do rio São Francisco (além de haver várias outras opções, como a Rota do Cangaço, a Usina Hidrelétrica de Xingó, etc), enquanto que Mangue Seco é uma conhecida praia, já do lado baiano mas cujo acesso é muito mais próximo e fácil de ser feito através de Aracaju do que de Salvador.

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Revista de Arqueologia Pública, n.9, Julho de 2014. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP. Gráfico 3 – Passeios realizados pelos turistas. 30 24

25 16

20

10 5

15

12

15

10 5 5

1

0

3

3

5 0

Apenas três, dos cinco turistas que visitaram a cidade de São Cristóvão, responderam corretamente a questão que pedia que informassem que lugar de preferência esse passeio ficou em relação aos outros realizados: um colocou a visita à São Cristóvão em terceiro lugar, dentre os três passeios realizados por ele (ficando atrás de Mangue Seco e do City Tour); outro, colocou em segundo lugar dentre os três realizados (ficou atrás da visita ao Museu da Gente Sergipana e na frente do passeio pelo rio Sergipe), e, por fim, outro, colocou em 6º lugar entre os sete pontos visitados (ficando a frente apenas da visita feita à cidade de laranjeiras, e atrás de Mangue Seco, da Foz do Rio São Francisco, de Xingó, do Museu da Gente Sergipana e do Parque Boa Luz). Ou seja, os turistas que se deslocaram até São Cristóvão não se impressionaram muito com o passeio e com o que viram por lá; mas é possível perceber, também, que os passeios ‘ecológicos’ levam grande vantagem sobre os ‘culturais’. Em relação à visita feita à São Cristóvão, quatro foram até lá por conta própria (o outro não respondeu a essa questão), o que pode demonstrar a completa falta de interesse das agências de turismo em levar as pessoas à cidade. Com respeito à opinião dos turistas sobre a infraestrutura oferecida na cidade e aos pontos turísticos lá existentes, pudemos aproveitar quatro dos cinco questionários. A estrada de acesso à cidade recebeu as seguintes notas: 6, 6, 7 e 8; as informações turísticas (mapas, folders, placas e etc): 3, 5 e 6; os guias turísticos, 1, 8 e 10; locais para compras de lembranças e artesanatos, apenas uma nota: 10, o mesmo acontecendo com bares e restaurantes: 1.

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O ‘aspecto geral da cidade’ mereceu as seguintes notas: 7, 8, 8 e 10, um pouco acima ao ‘estado de conservação’: 7, 7, 8, e 8. Já os pontos turísticos obtiveram as melhores notas. A Praça de São Francisco mereceu três notas 10; a Igreja e Convento de São Francisco: 9 e 10, mesmas notas obtidas pela Igreja Matriz. O Museu de Arte Sacra recebeu 8 e 10, enquanto o Museu Histórico apenas uma nota: 10 Apesar dos pontos turísticos receberem notas altas, percebe-se que as notas para a infraestrutura oferecida pela cidade são baixas, principalmente para os quesitos ‘informações turísticas’ e ‘bares/restaurantes’. Ou seja, os turistas parecem gostar do patrimônio histórico que encontram em São Cristóvão, porém as condições oferecidas pela cidade para um bom aproveitamento, por parte do turista, deixam muito a desejar. Para finalizar, três turistas fizeram comentários: um deles elogioso à cidade como um todo, ao guia local e aos museus; outro, apesar de elogiar a cidade ‘uma verdadeira volta ao passado’, e os guias de rua, que ‘foram de suma importância’, lamentava a falta de apoio a esses guias, e também ‘a falta de restaurantes e atividades na cidade, além de pouquíssima divulgação da mesma’. Já o último foi uma reclamação, dizendo que não pode visitar nada, pois ‘era 2ª feira e tudo estava fechado!’. Podemos ter uma ideia do fluxo turístico na cidade de São Cristóvão também através dos dados disponíveis no blog do Museu Histórico, um dos mais importantes da cidade, localizado na Praça São Francisco. Quanto ao número de visitantes, temos os seguintes dados:

Gráfico 4 - Fluxo de visitantes do Museu Histórico, 2005 a 2012, fonte: Museu Histórico de São Cristóvão 16000

13567

14000 12000 10000 6839

8000 6000

7602

8602

5518

4000

1705

2000

0

726

0 2005

2006

2007

2008

2009

2010

2011

2012

Pelo gráfico acima, é possível perceber que o auge da visitação do Museu se deu no ano de 2010, quando a campanha para que a Praça se tornasse Patrimônio da Humanidade

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também se encontrava no seu apogeu. A instituição foi fechada, para restauração do prédio, de abril de 2007 a novembro de 2009, causa da baixa visitação nesse período, como também é possível perceber no gráfico. Se levarmos em conta somente os anos de 2005, 2006, 2011 e 2012, desconsiderando os outros que foram atípicos, é possível notar um crescimento no número de visitações feitas ao museu, conforme é destacado pelo próprio site. Outros dados disponibilizados são referentes principalmente ao ano de 2012. Nesse ano, como já foi visto, o museu foi visitado por 8602 pessoas, sendo que podemos dividi-las em dois grupos: excursões escolares, que contaram com a presença de 4095 alunos (47,6%) e turistas propriamente ditos, 4507 (52,4%), sendo estes últimos oriundos de todos os estados da federação (exceção feita ao estado do Acre, de onde não veio nenhum turista). Em relação aos turistas, que são o foco principal de nosso estudo, 1784 (43,6%) são originários do próprio estado de Sergipe. São Paulo, com 412 visitantes (9,1%), Rio de Janeiro, com 309 (6,9%), e Bahia, com 263 (6,4%) são os estados que mais enviaram turistas para a visitação do museu. Também os dados nos informam a presença de turistas vindos do exterior: foram 74 estrangeiros (o que representa 1,8% do total), vindos de 16 diferentes países: Alemanha (8), Angola (2), Argentina (5), Canadá (4), Bélgica (2), Chile (2), Espanha (2), Estados Unidos (11), França (12), Holanda (1), Inglaterra (7), Itália (6), México (1), Peru (3), Portugal (7) e Suíça (1). Esses números mostram baixa taxa de visitação. Levando-se em conta que o horário de funcionamento do museu é de terça-feira a domingo, ou seja, 6 dias por semana, temos, aproximadamente, um total de 300 dias úteis anuais de funcionamento, o que daria uma média um pouco maior de 15 visitantes por dia; se levarmos em conta apenas os visitantes vindos de outros estados, essa média cai para pouco mais de 9 visitantes por dia.

A perspectiva dos moradores e dos trabalhadores da área de cultura de São Cristóvão

Também conseguimos informações através da aplicação de entrevistas a dois grupos distintos: 1) moradores de São Cristóvão, e 2) pessoas que trabalham na área de turismo cultural (em museus, guias de turismo, etc.) em São Cristóvão. Em ambos os grupos tivemos o intuito de perceber seu conhecimento sobre patrimônio cultural e arqueológico 5, sobre as 5

O patrimônio arqueológico pode ser definido como sendo a parte do patrimônio material em respeito aos quais os métodos arqueológicos proporcionam as informações primárias. Compreende todos os vestígios da existência

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condições da cidade em receber turistas, além da percepção deles sobre a Praça São Francisco. Foram entrevistados onze moradores, cujo perfil pode ser visto no quadro a seguir: Quadro 1 – Perfil dos Moradores que Participaram da Pesquisa

Sujeito

Sexo

Idade

Tempo na Cidade

Grau de Instrução

01

Feminino

43 anos

23 anos

Nível médio completo

02

Feminino

36 anos

36 anos

Nível médio completo

03

Feminino

34 anos

34 anos

Nível médio completo

04

Masculino

31 anos

31 anos

Superior completo

05

Feminino

48 anos

48 anos

Nível médio completo

06

Feminino

19 anos

18 anos

Superior completo

07

Masculino

53 anos

53 anos

Pós-graduado

08

Feminino

54 anos

54 anos

Nível médio completo

09

Feminino

24 anos

24 anos

Nível médio completo

10

Feminino

42 anos

22 anos

Nível médio completo

11

Feminino

61 anos

61 anos

Nível médio completo

Quanto ao conhecimento sobre patrimônio cultural e arqueológico, dez dos onze moradores entrevistados já ouviram falar sobre patrimônio cultural; oito sabem o que é patrimônio arqueológico (os três restantes nunca ouviram falar de tal tema). Seis moradores nunca ouviram falar da existência de patrimônio arqueológico em São Cristovão, três afirmaram ter ciência da existência desse tipo de patrimônio na cidade, e dois responderam que não conheciam, mas já ouviram falar. Oito moradores disseram não saber se a cidade está preparada para receber visitas/turistas, enquanto os três restantes afirmaram que a cidade possui estrutura suficiente. Já em relação à Praça São Francisco, dez moradores têm boas lembranças da Praça, enquanto um afirmou ser indiferente à sua existência. Para nove entrevistados, a Praça São Francisco é muito importante, enquanto que para um, ela é pouco importante, e para o outro ela não tem importância nenhuma.

humana, consistindo em lugares relacionados a todas as manifestações de atividades humanas, estruturas abandonadas e restos de todos os tipos (JOKILETHO, 2005).

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Nove moradores sabem que a Praça São Francisco foi elevada a patrimônio mundial, sendo que seis deles afirmaram que, de alguma forma, tiveram participação nesse processo de elevação. Seis moradores perceberam mudanças no fluxo de turistas na cidade depois da elevação da Praça a patrimônio mundial, três não souberam dizer se houve ou não mudança, enquanto que para dois deles não mudou nada. Para sete moradores nada mudou em suas vidas depois da elevação da Praça São Francisco a patrimônio mundial; para três aconteceram algumas mudanças, e um não soube dizer. Foram entrevistados nove trabalhadores da área cultural, cujo perfil pode ser visto no quadro a seguir: Quadro 2 – Perfil dos Trabalhadores que Participaram da Pesquisa

Sujeito

1

2

3

4

5

6

7

8

9

Tempo na

Sexo

Idade

T Feminino

19 anos

19 anos

T Feminino

21 anos

21 anos

T Masculino

39 anos

39 anos

T Feminino

24 anos

24 anos

T Masculino

35 anos

35 anos

T Masculino

20 anos

-

T Feminino

19 anos

02 anos

T Masculino

47 anos

-

T Feminino

49 anos

49 anos

Cidade

Ocupação Estagiaria

Estagiaria

Funcionário MHS Estagiaria

Guia turístico

Mediador

Estagiaria

Artesão

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Profª História

Grau de Instrução Superior Incompleto

Superior Incompleto

Pós graduado

Superior Incompleto

Superior

Superior Incompleto

Ensino médio

Superior

Superior

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Quanto à compreensão sobre o patrimônio cultural e arqueológico, oito entrevistados responderam que o sítio arqueológico ‘representa o passado de um povo’, e um que ele ‘pode ajudar a comunidade’; ninguém respondeu ‘problema’ e ‘nada’. Os mesmos oito responderam que o turismo gera oportunidades de emprego, enquanto um não soube responder; a resposta ‘não gera nada’ não foi marcada por ninguém. Sete responderam que São Cristovão não tem estrutura para o desenvolvimento da atividade turística; um marcou a resposta ‘sim’, que tem, e outro não soube responder. Oito entrevistados indicaram que a elevação da Praça São Francisco à Patrimônio da Humanidade representou um aumento de oportunidades para a cidade, enquanto um mostrou indiferença e a resposta ‘ameaça’ não foi escolhida por ninguém. Os mesmos oito afirmaram que houve um aumento no fluxo de turistas, enquanto que um não soube dizer se houve ou não. Para todos os entrevistados existe a necessidade de novos projetos focados no turismo

Considerações finais

Está claro para vários autores (BARRETO, 2007; YI-DE &CHI-FAN, 2011, ente outros) que uma das partes mais vantajosas de turismo cultural é seu uso como um veículo para o desenvolvimento econômico ou para a regeneração de locais que se encontravam abandonados. Está claro, também, que a cidade de São Cristóvão possui um patrimônio cultural digno de ser visitado e apreciado, tanto que parte dele se tornou Patrimônio da Humanidade. Porém, só esse fato não é suficiente para que os turistas afluam ao local, como pode ser visto pelo fluxo de turistas na cidade. Depois de dois anos da Praça de São Francisco ter sido elevada a Patrimônio da Humanidade, o processo de turistificação ainda não se instaurou na cidade. Toda a esperança de um aumento no afluxo de turistas, tanto nacionais como internacionais, não se concretizou. Quem vai visitar um local que apresente infraestrutura precária, como estrada de acesso mal conservada, sem qualquer tipo de informação sobre o patrimônio (sejam placas de sinalização, sejam folders e/ou mapas) sem contar as questões mais básicas, como bares, restaurantes, lojas de souvenires, ou qualquer outra forma de lazer; pior, quem vai levar os turistas até lá?

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Como pudemos ver em nossa pequena amostra, os poucos turistas que foram até lá, foram por conta própria. Não há um marketing junto às operadoras de turismo para que se aumente a frequência de turistas na cidade. Pelo contrário, há até uma propaganda contra: conforme conversa informal com um funcionário de hotel, o mesmo confidenciou que não indica mais o passeio aos turistas, pois havia muita reclamação, por parte deles, sobre a falta de opções na cidade. Foram veiculadas pela imprensa, nos últimos meses, várias notícias sobre o investimento do governo federal na preservação do patrimônio histórico no estado de Sergipe (ver sites governo-br; projeto monumenta; infonet). Acreditamos que a questão não seja simplesmente essa; como foi visto pelos questionários respondidos, o principal problema encontra-se na infraestrutura da cidade, não nos monumentos. Acreditamos, ainda, que há falta de envolvimento da população com essa questão turística; apesar de ela já estar informada da necessidade de preservação desse patrimônio, ainda não tomou consciência dos benefícios (ou problemas!) que o desenvolvimento turístico pode trazer para toda a comunidade.

Referências bibliográficas ALFONSO, Louise Prado. Arqueologia e Turismo: sustentabilidade e inclusão social. Tese de Doutorado apresentada ao Museu de Arqueologia e Antropologia da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2012. ARAGÃO, Ivan Rego. “Praça São Francisco em São Cristóvão-Sergipe-Brasil: lócus sociocultural e patrimônio da humanidade”. Revista Eletrônica do Programa de PósGraduação em Museologia e Patrimônio – PPG-PMUS Unirio, vol. 4, n. 2. p. 97-109, 2011. BARRETTO, Margarita. Cultura e turismo: discussões contemporâneas. Campinas: Papirus, 2007. COHEN, Erik. “Rethinking the sociology of tourism”. Annals of tourism research. v. 6, n. 1. p. 18-35, 1979. DIAS, Reinaldo. Turismo e patrimônio cultural. São Paulo: Saraiva, 2006. JOKILETHO, Jukka. Definition of cultural heritage. 2005. Disponível http://cif.icomos.org/pdf_docs/Documents%20on%20line/Heritage%20definitions.pdf.

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YI-DE Liu & CHI-FAN Lin. “The Development of Cultural Tourism: A Review of UK Experience”. Tourismos. v. 6, n. 2. p. 363-376, 2011.

http://www.governo-br.com/governo-ja-investiu-r-37-mi-na-preservacao-do-patrimoniohistorico-de-se/ - Governo já investiu R$ 37 mi na preservação do patrimônio histórico de SE. Acesso em 14 de fevereiro de 2013. http://www.infonet.com.br/cidade/ler.asp?id=140065&pagina=1 - São Cristóvão debate Plano para as Cidades Históricas. Acesso em 14 de fevereiro de 2013. http://www.monumenta.gov.br/site/?p=6050 - São Cristóvão – SE recebe monumentos restaurados. Acesso em 14 de fevereiro de 2013.

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FORTE DE RATHNADRINNA: ARQUEOLOGIA E IMPLICAÇÕES AMBIENTAIS Rathnadrinna Fort: Archeology and Environmental Repercussions Fuerte de Rathnadrinna: Arqueología y Repercusiones Ambiaentales Mickaela Schwab Muniz1 RESUMO Em 2009, tiveram início pesquisas arqueológicas inéditas em um forte em Cashel, Tipperary, República da Irlanda, por Richard O’Brien, Heather Gimson e James Bonsall, financiadas pelo Heritage Council e pela Royal Irish Academy. Conhecida como “Cashel of the Kings”, é tida no meio arqueológico como importante local de evidências de ocupação da realeza medieval. As recentes descobertas suscitaram diversas perguntas que envolvem questões ambientais. O presente artigo, a partir de uma revisão bibliográfica, abre-se para respostas embasadas nas escavações anuais passadas e vindouras. Palavras-chave: Forte de Rathnadrinna – Patrimônio - Arqueológico Irlandês – História Ambiental ABSTRACT In 2009, started unpublished archaeological researches in a fort located in Cashel, Tipperary, Republic of Ireland by Richard O'Brien, Heather Gimson and James Bonsall, funded by the Heritage Council and the Royal Irish Academy. Known as "Cashel of the Kings", it is seen by the archaeological society as an important site with evidence of medieval kingship occupation. Recent findings have raised several questions involving environmental issues. This article, based on a literature review, opens up for answers based on annual excavations in past and future. Keywords: Rathnadrinna Fort – Irish Archeological - Heritage – Environment History RESUMEN En 2009 se inició la investigación arqueológica inédita en un fuerte en Cashel, Tipperary, Irlanda, de Richard O'Brien, Heather y James Gimson Bonsall, financiado por el Consejo de Patrimonio y la Academia Real Irlandesa. Conocido como "Cashel de los Reyes", es considerado como un medio importante en el sitio arqueológico con evidencias de ocupación de la realeza medieval. Descubrimientos recientes han planteado varias preguntas sobre temas medioambientales. En este artículo, a partir de una revisión de la literatura, se abre para respuestas con base en excavaciones anuales pasadas y futuras. Palabras clave: Fort Rathnadrinna - Patrimonio - Arqueología irlandesa - Historia Ambiental 1

Pesquisadora – Grupo de Estudos Península Ibérica: da Antiguidade Tardia à Reconquista – Universidade Federal de Alfenas. E-mail: [email protected], sob orientação do Professor Adjunto de História Antiga – Departamento de Ciências Humanas da Universidade Federal de Alfenas, Cláudio Umpierre Carlan. Email: [email protected]

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Introdução

O meio ambiente tem se tornado um tema cada vez mais abordado em nossa civilização, em vista de estarmos num momento histórico de conscientização e de preocupação com nossos recursos naturais. O ser humano parece ter percebido (mais uma vez), que os recursos que exploramos, sem os quais não vivemos, são finitos, necessitando ser preservados e reciclados. A sociedade humana atual pode entrar em colapso por conta da superexploração do meio ambiente, a qual pode ser comparada ao que Diamond (2007: 165) chama de expansão autocatalítica. O comportamento natural do ser humano é o de explorar e explorar, crescer e crescer até o limite, muitas vezes, esquecendo-se de tal limite. “Na expansão autocatalítica da população humana, as vantagens iniciais que as pessoas obtêm (como vantagens tecnológicas) trazem-lhes lucros ou descobertas, que por seu turno estimulam mais gente a buscar lucros e descobertas, que resultam em ainda mais lucros e descobertas, que estimulam ainda mais gente a fazer o mesmo, até que as pessoas tenham ocupado todas as áreas disponíveis com tais vantagens, ponto em que a expansão autocatalítica para de catalisar a si mesma e perde a força” (DIAMOND, 2007: 165). Assim, polinésios, portugueses, espanhóis, vikings e os mais diversos povos sofreram esse tipo de expansão, que nada mais é do que uma sucessão de tentativas e descobertas com obtenção de sucesso, que geravam mais interesse por novas tentativas, até que as opções se esgotavam e o processo de expansão passava a declinar. A expansão dos polinésios, dos portugueses, dos espanhóis e dos vikings começou a declinar quando todas as áreas prontamente acessíveis aos seus navios já haviam sido saqueadas ou colonizadas, e quando os vikings, que voltavam para casa, pararam de trazer histórias de terras além-mar desabitadas ou facilmente pilháveis (DIAMOND, 2007: 165). O mesmo ocorre com os recursos ambientais que possuímos. O ser humano explora toda a capacidade da terra que habita, sem se preocupar com o fato de tudo ser finito. A pesquisa histórica vem revelando que a preocupação intelectual com os problemas “ambientais” esteve presente, ao menos no mundo de

expressão europeia, desde o final

do século XVIII, ocupando um lugar relevante no processo de construção do pensamento moderno (GROVE & PÁDUA, apud RAUMOLIN, 2002: 82). A grande novidade das últimas décadas esteve na difusão desse tipo de debate para uma parcela muito mais ampla da esfera

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pública. O saber acadêmico foi desafiado e estimulado por tal movimento (PÁDUA, 2010: 82). A História Ambiental é um ramo recente do conhecimento e entra em pauta nesta época de conscientização. Como campo historiográfico consciente de si e crescentemente institucionalizado nas academias de diferentes países, começou a estruturar-se no início da década de 1970. A primeira sociedade científica voltada para esse tipo de investigação, a American Society for Environmental History, foi criada em 1977. No entanto, algo bem diferente da simples proposição de influências naturais na história humana já vinha se delineando desde a primeira metade do século XX e, em certa medida, desde o século XIX (PÁDUA, 2010: 81). O pensamento ambiental sofreu amplas transformações ao longo da História. Comentando apenas brevemente sobre a formação desse pensamento – que, aliás, se manterá em constante construção - pode-se verificar contínuas revoluções desde o início da História do ser humano. Primeiro, surgiu o pensamento cronológico bíblico, no qual a Terra teria em média a idade de 6 mil anos. Depois, ocorreu uma mudança, com cientistas como Buffon, que avaliou a idade da Terra em 70 mil anos. Logo depois, houve uma grande revolução oriunda dos geólogos, que em primeira mão, sugeriram milhões de anos para o nosso planeta, tendo-se verificado, depois, que existe há 4,7 bilhões de anos. Desta perspectiva, passamos a observar a Terra com uma História Ambiental que só poderia ser estudada do ponto de vista de uma grande escala de tempo. Entretanto, não há apenas uma abordagem para este tipo de estudo.

De acordo com Pádua (2010: 88), a

revolução cronológica nas ciências naturais produziu grande impacto epistemológico nos historiadores ambientais, que vêm buscando metodologias que permitam investigar a história humana em um marco temporal mais abrangente. Ou seja, a repensar o lugar do ser humano no quadro mais amplo da história do planeta. Não se trata, por certo, de sempre trabalhar na longuíssima duração. Pode-se fazer história ambiental de períodos relativamente curtos, mas sempre tendo em mente, ao menos como pano de fundo, a presença de grandes escalas na constituição dos fenômenos que estão sendo analisados (PÁDUA, 2010: 88). Cada vez menos, então, a História Ambiental pode ser ignorada. Além dessa evolução do pensamento humano, é importante ressaltar que cada vez mais temos um contexto em que homem e natureza estão em contato, seja de forma harmoniosa, seja degradando-a, seja explorando-a. Além disso, é cada vez mais notório que a história humana é diretamente influenciada pelo meio ambiente, assim como a história do meio ambiente é totalmente afetada pelo ser humano. Isso é comentado por Pádua (2010: 95), quando fala dos

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três níveis de leitura histórica dos fatores ecológicos: o primeiro nível trata de “uma história quase imóvel, que é a do homem nas suas relações com o meio que o rodeia, uma história lenta, de lentas transformações, muitas vezes feita de retrocessos, de ciclos sempre recomeçados” (BRAUDEL, 1995: 25), em contraposição à maior velocidade dos movimentos sociais e individuais. O segundo nível diz respeito à constituição socioeconômica das sociedades, em sua inter-relação necessária com determinados espaços geográficos. Por influência direta de Marx, Worster (apud PÁDUA, 2010: 95) utilizou o conceito de “modos de produção”, sendo que a cultura material, os meios tecnológicos, a “segunda natureza” produzida pela ação humana inserem-se nesse nível de análise. Por sua vez, O’Connor (apud PÁDUA, 2010: 95) elaborou uma leitura marxista da história ambiental, chamando a atenção para o conceito de “condições de produção”. O terceiro grande nível mencionado por Worster (apud PÁDUA, 2010: 95) diz respeito às dimensões cognitivas, mentais e culturais da existência humana, incluindo cosmologias, ideologias e valores. O comportamento social dos seres humanos em relação ao mundo natural, assim como a própria estruturação socioeconômica da vida coletiva, passa pelas visões de natureza e dos significados da vida humana. Assim como os meios de comunicação, campanhas e ONGs são importantes na luta pela preservação do meio ambiente, a História Ambiental cumpre seu papel dando-nos o exemplo do que ocorreu no passado, para que possamos corrigir os erros do presente. As histórias sobre o fracasso de sociedades antigas abordadas no livro Colapso são facilmente trazidas ao nosso presente, e com elas pode-se evitar um novo colapso. Maias, anazazis e vikings são povos que entraram em colapso em algum momento da história, em conformidade com o autor de Colapso (DIAMOND, 2007), e o meio ambiente teve participação em tais eventos. Falando sucintamente, tomemos como exemplo o caso dos vikings na Groelândia: A queima de madeira em si não produz temperatura suficientemente alta para se trabalhar o ferro. Em vez disso, a madeira precisava primeiro ser queimada para a formação de carvão, que suporta um fogo de alta temperatura. Medições feitas em diversos países mostram que são necessários cerca de dois quilos de madeira para fazer 500 gramas de carvão. Por causa disso, somado ao baixo conteúdo de ferro da limonita, a extração e a produção de instrumentos de ferro vikings e até mesmo o conserto de instrumentos de ferro consumiam enormes quantidades de madeira, o que se tornou um fator limitador na história da Groenlândia viking, onde havia poucas árvores (DIAMOND, 2007: 168).

O exemplo do colapso dessa população e o estudo desse caso, leva-nos a aplicar medidas adequadas a situações modernas e até mesmo futuras, partindo para uma ação mais sustentável, sem visar apenas o progresso, mas medindo as consequências. Acima de tudo, a

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história ambiental rejeita a premissa convencional de que a experiência humana se desenvolveu sem restrições naturais, de que os humanos são uma espécie distinta e "supernatural", de que as consequências ecológicas dos seus feitos passados podem ser ignoradas (WORSTER, 1991: 199).

História e Arqueologia Ambiental

Após uma breve introdução referente ao foco do estudo do meio ambiente na História, entra-se no contexto do trabalho propriamente dito. Não se visa aqui apenas o estudo histórico e documental, mas também o empírico. A Arqueologia em si pode ser vista como uma forma empírica de abordar a História. Ainda sobre História Ambiental, seu objetivo principal se tornou aprofundar o nosso entendimento de como os seres humanos foram, através dos tempos, afetados pelo seu ambiente natural e, inversamente, como eles afetaram esse ambiente e com quais resultados (WORSTER, 1991: 200). A primeira tentativa de definir esse novo campo foi o ensaio de Roderick Nash (apud WORSTER, 1991: 200) intitulado "The state of environmental history" [A situação da história ambiental]. Nash recomendava que encarássemos toda a paisagem ao nosso redor como um tipo de documento histórico sobre o qual (o ser humano) vem escrevendo a respeito de si mesmo e dos seus ideais (WORSTER, 1991: 200). Pois, então, assim como a História Ambiental vê dessa forma o ambiente que rodeia o Homem, a Arqueologia é sobre vida humana no passado. Sob uma perspectiva arqueológica, as pessoas deixam um registro imperfeito da própria vida em forma de sedimento e solo modificado, contendo porções de detritos inorgânicos e orgânicos (REITZ & SHACKLY, 2012). O ambiente construído expressa a cultura. O seu estudo já progrediu bastante com a História da Arquitetura, da tecnologia, da cidade e da Arqueologia (WORSTER, 1991: 201). Em termos bem simples, portanto, a História Ambiental trata do papel e do lugar da natureza na vida humana. Há um consenso de que "natureza" designa o mundo não-humano, o mundo que nós não criamos originalmente. O "ambiente social", o cenário no qual os humanos interagem uns com os outros na ausência da natureza (WORSTER, 1991). Entretanto, a Arqueologia Ambiental, ou qualquer estudo focado nesse campo não se limita a tais interações. É consenso que o ser humano é completamente inter-relacionado com o ambiente que o cerca. Salvo, talvez, pela ciência moderna, na qual há sempre a tentativa de se criar algo sem a necessidade de recursos naturais, é consenso que a natureza é a mantenedora do ser humano como soberano no planeta.

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Sem recursos naturais não há meio de

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sobrevivência, havendo, portanto, necessidade de ciências que se ocupem de tais interações. Investigar as interações humano-ambiente usa observações contemporâneas de dinâmicas de população e comunidade, aplicadas por uma analogia ecológica a materiais ecológicos (REITZ & SHACKLY, 2012). Como o contexto arqueológico é, por definição, primariamente cultural, é um estudo inevitavelmente interdisciplinar, onde ciências culturais e sociais aliar-se-ão a conceitos puramente biológicos (como estudos de populações, comunidades, interações ecológicas, entre outros). Embora ambientes tenham características intrínsecas, pessoas conferem um adicional de significado a eles. Arqueólogos ambientais examinam essas relações guiados por teorias e práticas retiradas de estudos biológicos, químicos, físicos e sociais. Esse campo eclético enfatiza relações sistêmicas entre pessoas e o meio ambiente a sua volta (REITZ & SHACKLY, 2012). Há, então, a preocupação com a reconstrução desses antigos ambientes, elucidando a significância das comunidades humanas juntamente com eles. Temos que entender a natureza das relações entre homens e a Terra no passado, levando em consideração a fragmentação das informações arqueológicas e os processos de mudança, naturais tanto do ser humano quanto da terra que habita (REITZ & SHACKLY, 2012). A Arqueologia Ambiental é melhor servida com a fusão de perspectivas de diversos campos, e divide três interesses com outras ciências. Um interesse explora relações entre função (propósito) e estrutura (organização, forma). Outro examina traços hereditários (genética, natureza) e padrões comportamentais adquiridos (cultura, educação). O terceiro interesse considera causas, processos e consequências de mudanças e estases através do tempo e do espaço (REITZ & SHACKLY, 2012). Uma das teorias que unificam os estudos de Arqueologia é o Uniformitarismo. Essa teoria, que vem do geólogo escocês James Hutton do final do século XVIII, propõe que processos biogeoquímicos e outros que ocorrem nos dias atuais também ocorriam no passado e produziam os mesmos efeitos. Baseados nessa teoria, arqueólogos ambientais usam proxies (registros indiretos de fenômenos) para acessar fontes de matérias primas, verificar datas de manufatura, e considerar o local desses materiais e sua identidade, assim como uma afiliação temporal e comportamental (contexto) (REITZ & SHACKLY, 2012). Assim é possível localizar campos de batalha, documentar a ascensão e a queda de centros urbanos, e traçar padrões migratórios. Estuda-se iconografia, expressão ritual e história cultural. Mas, o ponto forte da Arqueologia Ambiental é a aplicação de teorias e práticas biológicas, químicas e físicas em questões sobre o passado humano, especialmente sobre as relações entre pessoas e ambientes (REITZ & SHACKLY, 2012). São essas aplicações que serão propostas a partir das escavações em Rathnadrinna.

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O Forte de Rathnadrinna

Por questões de definição, a palavra rath é usada no trabalho de Proudfoot (1970) como um termo arqueológico sem implicações linguísticas, para descrever obras de terraplanagem pequenas, geralmente circulares, que as escavações têm mostrado serem fortes construídos como fazendas fechadas. Cashel, apesar de também ser o nome da cidade onde foi realizada a escavação, é uma palavra igualmente utilizada para se referir a recintos circulares, porém, esses, construídos de pedra, são os interlocutores do rath. A distinção entre rath e cashel é um tanto arbitrária, mas ambos, tanto os bancos de pedra quanto os de terra, se encontram, embora cashels raramente tenham valas, e os bancos devam ter sido construídos de pedra coletadas ou extraídas localmente (PROUDFOOT, 1970: 37-48). Após uma breve definição, é interessante que alguns detalhes sobre os fortes escavados localizados na Irlanda sejam expostos para maiores esclarecimentos e para que, enfim, possa ser introduzido o Forte de Rathnadrinna. A parte essencial do rath ou cashel é a área central fechada, que é, geralmente, circular, embora ocasionalmente exemplos ovais ou retilíneos também possam ocorrer. Alguns exemplos são, talvez, fossos retilíneos medievais de herdades, outros talvez bawns (trincheiras muitas vezes reforçadas com estacas ou cercas para proteger o gado de ataques) de data posterior. A dimensão da área fechada varia, mas na maior parte dos sítios escavados o diâmetro é entre 80 e 200 metros. Recintos cercados por mais de um único banco e vala são relativamente raros, mas muito mais impressionantes na aparência, como o Forte de Dundrum (PROUDFOOT, 1970: 37-48). Rathnadrinna, ou em irlandês Rath na Drinne, que significa “Fort of the Contest” (Forte de Disputas), fica localizado há três quilômetros de Cashel, na região de Munster, na República da Irlanda. Cashel é conhecida como Cashel of the Kings por ter sido escolhida como um centro da realeza, até mesmo antes da Era Medieval. Isso foi feito estrategicamente, já que a região de Cashel fica na divisa entre os antigos reinados de Munster e Leinster. Segundo Richard O’Brien, contudo, as escavações mostram que a ocupação do local data de um período mais antigo, provavelmente da Era do Bronze. Isso se deve aos achados não tradicionais associados a fortes: uma concentração de postes de madeira em disposição similar ao Stonehenge, o que dá uma ideia de uso ritualístico – enquanto que casas, lareiras e poços de lixo estão associados a achados tradicionais. O’Brien acrescenta que a função do local foi mudando ao longo dos séculos, até chegar à época medieval, quando lhe foi atribuída uma “função real”. Alguns destes sítios imponentes têm sido tradicionalmente considerados como residências de chefes menores (PROUDFOOT, 1970: 42).

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Para muitos historiadores medievais, a posse do rei significa uma cerimônia de coroação em uma igreja importante, muitas vezes numa catedral. Na Irlanda, entretanto, cerimônias de posse, na maioria das vezes, eram realizadas em locais de reunião abertos, ao ar livre, cuidadosamente localizados na paisagem. Combinando essa experiência antiga com evidências documentais de que ocorriam coroações na área, é possível que Rathnandrina tenha sido a Lis na Urlnann do século XII, um sítio de coroações de reis em Cashel. Poucos lugares na Irlanda, nessas redondezas, refletem o triunfo do cristianismo sobre o paganismo tão bem quanto Cashel. Um dos problemas com os locais eclesiásticos antigos na Irlanda é que muitos se desenvolveram em centros maiores, proto-urbanos - pontos focais para desenvolvimento posterior que podem ocultar evidências das origens préhistóricas desses sítios. O início da Idade Média tinha uma sociedade complexa, bemestruturada, dividida em áreas tribais, guardadas por reis e vice-reis. Nesse tempo, um grande número de fortes circulares foram construídos na Irlanda, muitos ocupando locais estrategicamente importantes. Esses fortes variam em escala e em importância, refletindo o status de seus ocupantes. No alto do topo da hierarquia estavam os "Sítios dos Reis", assim como Tara no Condado de Meath ou Navan Fort no Condado de Armagh (O’BRIEN, 2011: 13). Situada praticamente no coração de Cashel, as ruínas de Rock of Cashel (Castelo de Cashel) evidenciam a importância arqueológica e histórica que o forte de Rathnadrinna possui. O solo fértil formado sobre os leitos de rocha calcárea que circunda Cashel é próprio para a lavoura e a criação de animais, semeando as sendas de uma agricultura próspera. Comandando as antigas planícies de Cashel, o forte foi tanto uma cidadela como um estado, anunciando a todos que a viam que se tratava de um território da realeza. O Forte de Cashel é um afloramento dramático de rocha calcárea, que surge abruptamente da extensa e fértil planície do Golden Vale. É encimado por um grupo de ruínas eclesiásticas extraordinárias do século XII. Os registros históricos mostram tal importância, relatando ter sido o reinado dos Altos Reis de Munster, entretanto, o forte nunca foi escavado antes de 2009. O motivo disto é deveras interessante: a população da área rural irlandesa é geralmente de caráter supersticioso e possui diversas lendas e crenças de que os fortes construídos pertenciam às fadas, e que não era aconselhável o desmatamento ou qualquer intervenção humana em tais construções. Agora, após a primeira escavação, O’Brien tem substrato suficiente para começar uma investigação com conclusões mais concretas. A Arqueologia Ambiental será essencial nesse âmbito, e é exatamente o que propõe esse artigo. Reconstruindo ambientes e documentando mudanças ambientais, é necessário que

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comparemos características encontradas no passado pela arqueologia com as que existem hoje, definindo, então, as características ambientais prevalescentes quando o local era ocupado, e documentando mudanças que podem ter ocorrido antes ou depois de tal ocupação (REITZ & SHACKLY, 2012: 23). Os achados no local, juntamente com as características do forte, os registros históricos e seu próprio nome já nos remetem à reconstrução daquele passado.

Escavações em Rathnadrinna

Rathnadrinna, até 2009, só era conhecida por registros históricos. Nada se sabia sobre sua real história, com evidências arqueológicas e pesquisas no campo. É por este motivo que a descrição aqui é essencialmente baseada no único artigo publicado sobre o assunto, no relatório feito por Richard O’Brien para a Royal Irish Academy e nas experiências em campo da própria autora. É importante ressaltar que alguma precisão de informações pode vir a faltar, pelo fato de ser uma pesquisa tão recentemente realizada. O projeto de escavação foi iniciado por Richard O’Brien, juntamente com Heather Gimson e James Bonsall (da empresa Earthsound de Geofísica). Primeiramente, foi solicitado financiamento ao Conselho do Patrimônio Irlandês, mas os autores do projeto também foram apoiados, inclusive financeiramente, pela Royal Irish Academy, que dá relevância acadêmica ao projeto. O primeiro passo em uma escavação é o mapeamento geofísico do solo no local todo, o que foi realizado por Gimson e Bonsall. As constatações foram de ser um forte trivallate, o que significa ser um morro circular com três sessões (TS061-089001), situado em Lalor's Lottownland, 3,33 quilômetros ao sul-sudeste da cidade de Cashel. Os registos históricos dizem que a partir do século VII d.C. Cashel era sinônimo da dinastia Eóganacht e mais tarde ainda o Cais Daleo de McCarthy até o final do século XII, o que atribui ao forte uma paisagem essencialmente real (O’BRIEN, 2011: 1-3). O Forte de Rathnadrinna e suas cercanias provaram ser ideais para uma prospecção arqueológica e ampliou o valor das observações geofísicas: o emprego da alta resolução, as técnicas não-invasivas revelaram um monumento multi-periódico e multi-estratificado (camadas) da maior significância (O’BRIEN, 2011: 1-3). Após as constatações geofísicas e as pesquisas realizadas entre 2009 e 2011, iniciouse o processo de escavação em si. O procedimento básico na escavação foi realizar o mapeamento geofísico, delimitação dos cortes, retirada da primeira camada (orgânica) do solo, retirada das camadas geológicas do solo com análise das variações de cor, textura e

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composição. A cada camada retirada foi feita uma análise detalhada do local, seguida de limpeza do solo para observações de padrões na coloração. Depois foi realizada a catalogação escrita e fotográfica dos locais. O’Brien recrutou voluntários, que vieram de várias partes do mundo, o que demonstrou o interesse internacional por sua pesquisa. Começamos por fazer cinco cortes em locais estratégicos no forte. Os dados exatos de tais cortes ainda não foram divulgados, entretanto têm-se informações aproximadas. Foram ao todo cinco cortes, sendo o primeiro corte de cerca de 20 metros de comprimento por dois de largura e, em princípio, 20 centímetros de profundidade (o que foi sendo modificado ao longo do processo de escavação). De acordo com o relatório enviado ao final da escavação à Royal Irish Academy, elaborado por Richard O’Brien, juntamente com as informações coletadas no trabalho de campo pela própria autora, a escavação durou nove semanas, isto é, desde 11 de junho até 10 de agosto de 2012, sob Licença de Escavação nº 12E157. Dois cortes foram abertos para investigar os bancos e as valas da fortaleza, e também as características geofísicas a partir de levantamentos anteriores. Fora do forte, duas valas não datadas foram encontradas: as valas pareciam ter postholes (em Arqueologia, corte feito por superfície de madeira ou pedra e por ela preenchido) e poços pequenos, todos sem data e estéreis, os quais tanto podem ter sido associados com assentamentos fora do alcance do forte quanto com assentamentos préhistóricos. Alguns postholes e elementos de pedra estreitos e alinhados podem ter sido parte de alguma estrutura. Foram encontrados os restos parciais de um forno de pedra usado para secagem de cereais: o empedramento nas proximidades pode ter sido uma região de trabalho. A chaminé do forno foi traçada, pela susceptibilidade magnética, para o leste além da escavação. Na vala escavada encontrou-se argila, carvão queimado e um objeto de ferro não identificado. Fornos semelhantes escavados em torno de Cashel foram datados de VI–XII d.C. Um depósito próximo de estrume era do início da era moderna: sob estes traços pode-se inferir a existência de uma vala sobrevivente de outro forte. As valas do forte eram geralmente de fundo chato com lados inclinados. As bases foram revestidas com pedras densas e o conteúdo da vala era muito semelhante a argilas homogêneas. A Vala C continha um depósito raso de solo rico em carvão vegetal. A Vala B continha os depósitos de pedra fixadas contra a face interna do Banco 1, que por sua vez tinha um perfil em degrau: estes depósitos podem ter sido colocados para reforçar o banco ou poderiam representar as características de paisagismo pós-medieval. Cada vala produziu restos faunísticos, em particular a Vala D, que continha ossos da perna de bovinos, dentes e clavícula. Um objeto de ferro curvo pequeno foi encontrado em um enchimento superior da

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vala B e uma pistola de chumbo rodado em um enchimento superior da vala D. O Banco 3 parecia consistir de material cultural, sob a forma de pedras queimadas, e um posthole único contendo um depósito rico em carvão. Três dos bancos continham superfícies de pedra, atualmente sem data. Os dois bancos exteriores são muito mais substanciais, com superfícies pavimentadas ao longo de suas cúpulas. Dentro do forte, uma anomalia geofísica foi identificada como uma vala anterior ao forte. A vala tinha um corte em poço de data desconhecida, e ela própria foi preenchida com depósitos, em grande parte estéreis. A vala tem depósitos parciais de pedra, em barro, cheios de carvão vegetal: dentro dessas camadas foram encontrados ossos humanos cremados, dentes de animais e um pequeno chifre. Não houve evidência de queima in situ. A vala foi selada por um horizonte de argila que se estendeu para o sul do banco no interior da fortaleza. Em outros lugares do interior do forte (Figura 1) continha uma infinidade de postholes, stakeholes (em Arqueologia, buraco cavado antes de algo ser colocado nele), poços e alguns em grupo, formando complexos em arco, todos sem data e em grande parte estéreis. Claramente, alguns dos postholes foram substanciais o suficiente para suporte de carga, embora em nenhum deles contivesse mensagens substanciais, como pedras. Atualmente, estas características são encontradas em solo compactado, no corte que ocupa o centro do forte, tal como identificados a partir da geofísica. Encontra-se, geralmente, constituída por cherts (grãos finos, microcristalinos, ricos em sílica, criptocristalinos ou rochas sedimentares microfibrosas, que podem conter pequenos fósseis) e flints (uma variedade de chert, feito de quartzo, geralmente facilmente lascável, comumente usado na Pré-História para manufatura de ferramentas e armas) – não diagnosticados (O’BRIEN, 2011: 1-3).

Fig. 1: Escavação dentro do forte. Fonte: Richard O’Brien, diretor do projeto de escavação.

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Considerações finais

Com essa primeira escavação, dados essenciais para o início de uma pesquisa mais aprofundada na área de Arqueologia Ambiental já estão acessíveis. Com a análise de todo o material encontrado e todas as informações catalogadas, é possível iniciar a reconstrução do local, tanto no aspecto estrutural, quanto no cultural, no histórico e no ambiental. Entretanto, como o próprio O’Brien coloca em seu relatório para a Royal Irish Academy, mais escavações são necessárias para revelar a natureza desse complexo sítio, e ajudar na interpretação da paisagem real e antiga de Cashel.

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PROUDFOOT, B. “Irish raths and cashels: some notes on chronology, origins and survivals”. Ulster Journal of Archaeology, University of Alberta, Edmonton, vol. 33, third series, pág. 37-48, 1970. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/20567665 REITZ, E.J.; SHACKLEY, M. “Introduction to Environmental Archaeology”, Archaelogical Method and Technique, pág. 1-39, Springer, 2012. WORSTER, D. “Para fazer História Ambiental”. Revista 1991.

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Estudos Históricos, vol.4, nº 8,

Revista de Arqueologia Pública, n.9, Julho de 2014. Campinas: LAP/NEPAM/UNICAMP.

Revista de Arqueologia Pública – LAP NEPAM Interview: Neil A. Silberman (by Gabriella Rodrigues) Subject/Title: “Public views of Archaeology: Interpretation and Presentation of Cultural Heritage Sites”

1. First of all, we would like you to talk about your academic biography and how did you get interested in the role Archaeology plays out of the University? (Archaeology and Politics) It’s been a long story with lots of surprises. Originally I had intended to become a field archaeologist, specializing in the archaeology of Israel. My first job was with the Israel Department of Antiquities and Museums, digging in the summer and working at the Rockefeller Museum in Jerusalem during the rest of the year. And you can’t work or study in Jerusalem for very long before you begin to realize what enormous impact archaeology has in justifying (or disproving!) modern political and territorial claims. That subject eventually became my main field of research and I went on to write many books and articles about the politics of Middle Eastern archaeology. But when I took a position in Belgium as director of the Ename Center for Public Archaeology and Heritage Presentation, it became clear to me that the “politics” of archaeology and heritage was not just restricted to war zones. Even in peaceful places, our visions of the past shape the present and future—about identity, race, gender, ethnicity, economic policy, and ideas about right and wrong. This impact of archaeology and heritage on modern society is something that archaeology students usually have to contend with once they actually begin their professional lives. How do you choose a place to dig? Which interpretations are likely to guarantee publicity and which are likely to anger rival communities, or even the host government? In many ways, these are some of the most difficult problems archaeologists have to contend with. And have become convinced that these issues must be included in archaeology curricula, along with pottery dating, epigraphy, and excavation techniques.

1. Para começar, nós gostaríamos que você falasse sobre sua biografia acadêmica e sobre como se interessou pelo papel da Arqueologia fora da Universidade?

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Tem sido uma longa história, cheia de surpresas. Originalmente, eu pretendia me tornar um arqueólogo de campo e me especializar em Arqueologia de Israel. Meu primeiro trabalho foi com o Departamento de Antiguidades e Museus de Israel, escavando no verão e trabalhando no Museu Rockefeller em Jerusalém durante o resto do ano. E você não consegue trabalhar ou estudar em Jerusalém por muito tempo sem que comece a perceber o enorme impacto que a Arqueologia tem, justificando (ou refutando!) políticas modernas e reivindicações de territórios. Esse tema acabou se tornando minha principal área de pesquisa e eu o levei adiante, escrevendo muitos livros e artigos sobre os aspectos políticos da Arqueologia no Oriente Médio. Mas, quando eu assumi o cargo de diretor do Ename Center for Public Archaeology and Heritage Presentation (Centro de Arqueologia Pública e Apresentação do Patrimônio de Ename), na Bélgica, ficou claro para mim que “política” em Arqueologia e em Patrimônio não se restringe apenas a áreas em guerra. Até mesmo em lugares pacíficos, nossas visões do passado determinam o presente e o futuro – em relação à identidade, raça, gênero, etnicidade, política econômica e ideias sobre o certo e o errado. Esse impacto da Arqueologia e do Patrimônio nas sociedades modernas é algo que estudantes de Arqueologia normalmente têm que enfrentar, assim que eles iniciam sua vida profissional. Como você escolhe um local para escavar? Quais interpretações devem garantir publicidade e quais irão, mais provavelmente, enfurecer comunidades rivais, ou mesmo o governo local? De várias formas, estes são alguns dos problemas mais difíceis que os arqueólogos têm que enfrentar. Além de se convencer de que

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2. Since the last decade you have been working on heritage projects from international centers and institutions as the Ename Center for Public Archaeology and Heritage Presentation and the ICOMOS International Scientific Committee on Interpretation and Presentation of Cultural Heritage Sites (ICIP). Could you tell us how those institutions work? Most of my efforts have been devoted to ICOMOS—the International Council on Monuments and Sites—which is one of the main advisory bodies for UNESCO in reviewing nominations for the World Heritage List and other activities. ICOMOS has more than 120 national committees from UN member states and it also has 23 scientific committees on specialized subjects. The Committee I chair is concerned with public interpretation and we worked for many years on a Charter (http://www.icomos.org/charters/interpretatio n_e.pdf) that is meant to serve as a professional standard for heritage interpretation all over the world. I want to be clear that this Charter does not tell anyone what the contents of interpretation should be but rather it highlights the social responsibilities of heritage interpreters regarding things like cultural diversity, sustainability, and authenticity. The committee, and indeed all of ICOMOS, tries its best to protect heritage and to develop new understandings of the value of heritage, how it should be protected, and who should be able to participate in protection activities. For so long we have all taken heritage for granted and accepted the stories we were taught in school. But as archaeologists like you and your colleagues can testify, the past is always changing as research and new discoveries are made. International organizations like ICOMOS and academic institutions like the Ename Center and the Center for Heritage and Society at the University of Massachusetts—and of course

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tais questões devem ser incluídas na grade curricular dos cursos de Arqueologia, juntamente com datação de cerâmica, Epigrafia e técnicas de escavação. 2. Desde a última década, você vem trabalhando em projetos na área de patrimônio em centros e instituições internacionais, como o Ename Center for Public Archaeology and Heritage Presentation and the ICOMOS International Scientific Committee on Interpretation and Presentation of Cultural Heritage Sites (ICIP). Você poderia nos contar como essas instituições trabalham? Muito dos meus esforços vêm sendo dedicados ao ICOMOS - the International Council on Monuments and Sites (Conselho Internacional de Monumentos e Sítios) – que é um dos principais conselhos consultivos da UNESCO para examinar candidaturas para a lista de Patrimônios Mundiais e outras atividades. O ICOMOS tem mais de 120 comitês nacionais dentre os países-membros da ONU e tem também 23 comitês científicos para assuntos específicos. O Comitê presidido por mim preocupa-se com a interpretação pública. Nós trabalhamos por muitos anos num Estatuto (http://www.icomos.org/charters/interpretation_e. pdf), criado para servir como uma norma profissional para a interpretação do patrimônio no mundo todo. Eu quero deixar claro que esse Estatuto não diz a ninguém qual deve ser o conteúdo da interpretação, mas, mais precisamente, ele acentua as responsabilidades sociais de quem interpreta o patrimônio, com relação a diversidade cultural, sustentabilidade e autenticidade. O comitê, e, de fato, todo o ICOMOS, tenta o seu melhor para proteger o Patrimônio e para desenvolver novas formas de compreender seu valor, de como ele deve ser protegido e de quem deve participar das atividades de proteção. Nós temos considerado o patrimônio como algo certo, por muito tempo, aceitando as estórias que nos ensinavam na escola. Mas como arqueólogos, como você e seus colegas podem testemunhar o passado está sempre mudando, conforme pesquisas e novas descobertas são feitas. Organizações internacionais como o ICOMOS e instituições acadêmicas como o Ename Center e o Center for Heritage and Society (Centro de Patrimônio e Sociedade) da Universidade de Massachusetts – e, é claro, o LAP, NEPAM – têm

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LAP NEPAM—are working hard to develop new techniques of public education and communication that will enable the general public to see the remains of the past as a shared resource rather than as just tourist attractions or roadside curiosities.

trabalhado duro para desenvolver novas técnicas para educar e se comunicar com o público, que permitirão que o público em geral veja o passado muito mais como um recurso compartilhado, e não apenas como atrações turísticas ou curiosidades de beira de estrada.

3. How would you define Public Archaeology and Cultural Heritage today? How should one understand the term “public” concerning the interpretation and presentation of the past?

3. Como você definiria Arqueologia Pública e Patrimônio Cultural hoje? Como devemos entender o termo “público” em relação à interpretação e apresentação do passado?

I’m not sure I can define Public Archaeology and Cultural Heritage, since there are so many different versions and varieties. But I can tell you what I think they could develop into in the coming years. As you know from your own work, Public Archaeology was established as an attempt by archaeologists to reach beyond the closed circles of scholars and technical excavators, to offer something of value to the public at large. In general, Public Archaeology represents a kind of outreach—providing school kids and the general public with first-hand experience with sites, artifacts, and the archaeological process itself. Often it works with communities whose heritage has been overlooked or neglected—or who, because of their cultural or economic context—are unfamiliar with museums and archaeological digs. In some cases, it is also called “Community Archaeology,” suggesting the mobilization of a neighborhood or other community group to participate in archaeology for a wide variety of social and even economic needs. Sometimes the goal is enhanced identity and dignity; sometimes it’s to recover or reclaim their connection to particular places that have significance to them. Your lab has carried out many of these projects successfully and has really pioneered this kind of outreach in Brazil. Yet I believe that in the coming years, the lab’s activities will expand in two directions: first, in sharing with communities a wide range of methodologies to protect archaeological resources—alongside stratigraphic excavation and artifact study, will be other modes of collective memory practices such as

Eu não estou certo de que posso definir Arqueologia Pública e Patrimônio Cultural, já que há tantas variedades e versões diferentes. Mas eu posso te dizer no que eu acho que eles podem se desenvolver nos próximos anos. Como você sabe, do seu próprio trabalho, a Arqueologia Pública estabeleceu-se como uma tentativa dos arqueólogos de ir além dos fechados círculos de acadêmicos e escavadores técnicos, para oferecer algo que fosse importante para o grande público. Arqueologia Pública representa, em geral, uma forma de trabalho social – fornecendo a alunos e ao público em geral experiência de primeira mão com sítios, artefatos e com o processo arqueológico em si. A Arqueologia Pública trabalha, com frequência, em comunidades cujo patrimônio foi desconsiderado ou negligenciado, ou que – por conta de seu contexto econômico ou cultural – não tem familiaridade com museus e escavações arqueológicas. Em alguns casos, também é chamada de “Arqueologia Comunitária”, sugerindo a mobilização de uma vizinhança, ou outro grupo comunitário, para participar da experiência arqueológica por uma série de necessidades sociais ou até econômicas. Às vezes, o objetivo é uma identidade valorizada e dignidade; outras, é recuperar ou reivindicar uma conexão com lugares específicos, que têm alguma importância para essa comunidade. O laboratório de vocês tem realizado com sucesso muitos projetos desse tipo e tem, de fato, sido o precursor desse tipo de trabalho social no Brasil. Eu acredito, no entanto, que as atividades do LAP vão se expandir em duas direções, nos próximos anos: em primeiro lugar, em compartilhar com as comunidades um amplo leque de metodologias de proteção de recursos arqueológicos – além da escavação estratigráfica e do estudo de artefatos,

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storytelling, performance, and traditional building skills. And that brings me to the definition of “Cultural Heritage,” which used to be restricted to elite expressions of architecture, official historical sites, and the fine arts. But over the last twenty years, the definition of cultural heritage has expanded dramatically. It is no longer restricted to elite culture and it is no longer even restricted to buildings, objects, or tangible things. As a combination of ethnology, folklore, landscape studies, musicology, and cultural anthropology, intangible cultural heritage is now a major focus of interest around the world. In fact, the whole range of cultural heritage—from archaeology to architecture to art—has come increasingly to be seen valuable for the social activities it encourages and the sense of identity it promotes. So that’s why I am confident that the next step in the development of Public Archaeology and Cultural Heritage will be their synthesis: Public Heritage. In not being restricted to a single methodology or a single kind of evidence, the work with communities for the safeguarding of their collective memory will eventually shift from a primarily pastoriented endeavor to a tool for community well-being and sustainable development. 4. If we talk about “public interest”, how would you evaluate non-experts interest on the past and which role does that interest play in the works of experts? Well, that’s one of the main problems: establishing a strict division between “experts” and “non-experts.” Archaeologists and Cultural Heritage professionals have long been accustomed to being regarded as “the experts,” whose opinions carry special weight. When it comes to making statements about the past for official commemoration or legal protection, only those with specialized university degrees and familiarity with technical methods and jargon were regarded as authoritative. All other kinds of approaches to the past—through legend, local hearsay, and cultural traditions—were at best seen as naïve folklore, and at worst as evidence of ignorance. It’s now clear with

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haverá outros modos de praticar a memória coletiva, como contar histórias, performances, e meios tradicionais de construção. E isso me leva à definição de “Patrimônio Cultural”, que costumava restringir-se a expressões arquitetônicas de elite, a sítios históricos oficiais e às Belas Artes. Mas, nos últimos vinte anos, a definição de patrimônio cultural expandiu-se dramaticamente. Ela não está mais restrita a uma cultura de elite e também não está mais restrita a edifícios, objetos ou coisas tangíveis. Da combinação de Etnologia, Folclore, estudos da Paisagem, Musicologia, e Antropologia Cultural, o Patrimônio Cultural Imaterial é hoje um dos principais focos de interesse pelo mundo afora. Na verdade, todo o campo do patrimônio cultural – da Arqueologia à Arquitetura, passando pela Arte – tem sido considerado cada vez mais valioso, pelas atividades sociais que encoraja e pelo senso de identidade que promove. É por isso que eu estou confiante de que o próximo passo no desenvolvimento da Arqueologia Pública e do Patrimônio Cultural será a síntese dos dois: Patrimônio Público. Sem se restringir a uma única metodologia, ou a um único tipo de evidência, o trabalho com comunidades pela salvaguarda de sua memória coletiva deve, eventualmente, passar de um esforço primeiramente orientado pelo passado para uma ferramenta para o bem-estar e desenvolvimento sustentável da comunidade. 4. Falando de “interesse público”, como você avaliaria o interesse de não-especialistas pelo passado e que papel esse interesse desempenha no trabalho de especialistas? Bem, esse é um dos principais problemas: estabelecer uma divisão severa entre “especialistas” e “não-especialistas”. Arqueólogos e profissionais do patrimônio foram acostumados, por muito tempo, a serem considerados “os especialistas”, cujas opiniões carregariam um peso especial. Quando se trata de fazer declarações sobre o passado para comemorações oficiais ou proteção legal, apenas aqueles com diplomas universitários especializados e familiaridade com métodos e jargão técnicos são considerados autoridades. Todos os outros tipos de abordagens do passado – por meio de lendas, contos locais e tradições culturais – são vistos, na melhor das situações, como folclore ingênuo, e, na pior delas, como evidência de ignorância. Está claro, agora

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the work of Public Archaeology and Public Heritage that members of the general public (“non-experts”) who collaborate with scholars (“experts”) can no longer be regarded as empty vessels that need to be filled with academic facts. It used to be that the “experts” were influenced by the interests of “non-experts” mainly when fundraising or publicity were concerned. Sometimes archaeologists would cater to the popular stereotypes of Indiana Jones-type discoveries and adventures in making their excavations sound more exciting and their finds more important to gain public interest. But few took the historical ideas and theories of “nonexperts” very seriously. This situation seems to be changing, with the increasing public engagement of academic disciplines of many kinds. With the past increasingly seen as a social reality in the present, formed by many kinds of memory and historiographical practices, the influence now flows both ways.

com o trabalho da Arqueologia Pública e do Patrimônio Público, que membros do público em geral (“não-especialistas”) que colaboram com acadêmicos (“especialistas”) não podem mais ser considerados potes vazios que precisam ser preenchidos com fatos acadêmicos. Costumava acontecer que “especialistas” eram influenciados pelos interesses de “não-especialistas” principalmente no que dizia respeito a arrecadação de verbas e publicidade. Por vezes, arqueólogos iriam considerar o estereótipo popular de descobertas e aventuras à la Indiana Jones, na tentativa de fazer suas escavações parecerem mais excitantes e seus achados mais importantes, para atrair o interesse do público. Mas poucos levaram as ideias e teorias históricas de “não-especialistas” muito a sério. Essa situação parece estar mudando, com o aumento do compromisso público de disciplinas acadêmicas variadas. Agora, a influência flui em ambas as direções, com o passado visto cada vez mais como uma realidade social no presente, formado por diversos tipos de memórias e práticas historiográficas. 5. By the way, which “past” are we talking 5. A propósito, de que “passado” estamos about? What can be defined as past and what falando? O que pode ser definido como passado e should be preserved as heritage according to o que deve ser preservado como patrimônio, de these programs? acordo com esses programas? I can best explain it by comparing the archaeological or historical past with a person’s memory. Even people who have been at the same event have different recollections of what happened at a certain moment and what it means. One thing is for certain: there is no single past that can be discovered by scholars and documented completely—anymore than a modern journalist can write the one, definitive description of the present. And of course the journalist has many more sources of evidence than the historian or archaeologist has. It’s not impossible to document some things about the past, but they will inevitably be things that happen to be important or of interest to us today. That is the key, I think. The past never can be seen as something completely separate from the present, because it never exists as “The Past” in reality. When it was happening, it was a lived and unfinished present, with as many viewpoints

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O melhor jeito de explicar isso é comparando o passado arqueológico ou histórico com a memória de uma pessoa. Até mesmo pessoas que estiveram num mesmo evento têm lembranças diferentes do que aconteceu num determinado momento e do que isso significa. Uma coisa é certa: não há um passado único que pode ser descoberto pelos estudiosos e documentado completamente – não mais do que um jornalista moderno pode escrever uma descrição única e definitiva do presente. E, logicamente, o jornalista tem muito mais fontes para a evidência do que o historiador ou arqueólogo tem. Não é impossível documentar algumas coisas sobre o passado, mas acontece que elas serão inevitavelmente coisas que são importantes para nós, ou do nosso interesse atual. Isso é a chave, eu acho. O passado nunca pode ser visto como algo completamente separado do presente, porque, na realidade, ele nunca existe como “O Passado”. Quando ele estava acontecendo, era um presente vivido e inacabado, com tantos pontos de vista sobre ele quanto havia

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about it as there were people who experienced it. When we think about a certain past (prehistory, the Bronze Age, or the Roman period) in our own lived and unfinished present, we change a once-lived and uncertain reality into an imaginary past. Of course I don’t mean “imaginary” in the sense that it never happened; it’s just that the imagining always takes place in the present, for reasons having to do with the present. Since the past inevitably comes to us in fragments, we must glue it together with the logic, consciousness, and sensibility of the present day. So our interpretation of the past is a thoroughly modern creation, not a fact of nature like a water molecule or the surface of the moon. And it is up to every generation to decide if the collective memories that have been handed down to us are accurate and appropriate to the times in which we live.

pessoas para experiênciá-lo. Quando pensamos sobre um certo passado (Pré-História, Idade do Bronze, ou o Período Romano) no nosso próprio presente, vivido e inacabado, nós transformamos uma realidade uma vez vivida e incerta em um passado imaginário. Obviamente, eu não quero dizer “imaginário” no sentido de que nunca tenha acontecido; é só que o imaginar sempre acontece no presente e por razões ligadas ao presente. Como o passado chega até nós inevitavelmente em fragmentos, nós precisamos colá-los, com a lógica, consciência e sensibilidade dos dias de hoje. Então, nossa interpretação do passado é uma criação completamente moderna, não um fato da natureza como a molécula da água, ou a superfície da lua. E depende de cada geração decidir se as memórias coletivas que chegaram até nós são precisas e apropriadas para o tempo em que vivemos.

6. You have been talking very often about the future. How do you see the future of Cultural heritage? How does the way sites are presented to the people, or the way people interpret those sites, can affect people’s future?

6. Você tem falado com frequência sobre o futuro. Como você vê o futuro do Patrimônio Cultural? Como a forma com que os sítios são apresentados ao público, ou a maneira como se interpreta esses sítios pode afetar o futuro das pessoas?

It’s very interesting that neuroscientists have recently recognized that many of the same brain functions that enable us to remember and to visualize the past are the same as those that allow us to imagine what the future will be like. Actually it makes sense that our understandings of the past would somehow be linked to our expectations of the present and future. I think that in the coming decades, archaeology and heritage will be much more concerned with encouraging people to reflect on what was positive and negative in the past and what lessons it can teach—much more than trying to reconstruct a single “scientific” truth. How often we have all seen drawings depicting “daily life” in ancient societies—and how often have those reconstructions shown, for example, women cooking and men hunting; children playing with toys; or shops selling a particular kind of merchandise. Are these accurate depictions of the past or are they just

É bastante interessante que neurocientistas reconheceram, recentemente, que muitas das funções cerebrais que nos permitem lembrar e visualizar o passado são as mesmas que nos permitem imaginar como o futuro pode ser. Na verdade, faz sentido que nossas compreensões do passado estejam, de certa forma, ligadas às nossas expectativas em relação ao presente e ao futuro. Eu acho que nas próximas décadas, a Arqueologia e o Patrimônio estarão muito mais preocupados em encorajar as pessoas a refletir sobre o que foi positivo e negativo no passado e que lições isso pode nos ensinar – muito mais do que em tentar reconstruir uma única verdade “científica”. Com que frequência nós temos visto desenhos representando o “dia a dia” em sociedades antigas - e com que frequência essas reconstruções mostram, por exemplo, mulheres cozinhando e homens caçando; crianças brincando com seus brinquedos; ou lojas vendendo um tipo de mercadoria específica. Seriam essas representações acuradas do passado ou elas apenas

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mirror images of the present? Are they just mirror images that suggest that gender relations, family life, or business practices are timeless and inevitable? That is the serious challenge for heritage research and interpretation: will peoples’ attitudes toward social change and social justice be stifled because that’s the way things always have been done? Or will scholars and the general public learn to interpret the past, to recognize the good and bad within it, to build better lives for themselves and the generations that will come after them?

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refletem imagens do presente? Seriam elas apenas reflexos sugerindo que as relações de gênero, a vida familiar, ou as práticas comerciais estão além do tempo e são inevitáveis? Aí está o verdadeiro desafio para a pesquisa e interpretação do patrimônio: será que as atitudes das pessoas em relação à mudança e à justiça sociais serão sufocadas porque é assim que as coisas sempre foram feitas? Ou será que os estudiosos e o público em geral vão aprender a interpretar o passado, a reconhecer o que há de bom e ruim nele, a construir vidas melhores para si próprios e para as gerações que virão depois deles?

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Resenha: GODOY, Renata de. Assessing Heritage Values: Public Archaeology in Brasília. Lambert Academic Publishing, 2012. Rita Juliana Soares Poloni1

Assessing Heritage Values: Public Archaeology in Brasília, da Antropóloga Renata de Godoy é uma recente publicação que vem acrescentar importantes pontos de discussão à questão da Arqueologia Pública no país. Dividida em seis capítulos a obra procura investigar as relações de pertença desenvolvidas pela população em relação ao patrimônio arqueológico, sobretudo, no que se refere a populações não nativas. Para compreender seu objeto de pesquisa a autora se utilizou da chamada “Abordagem de valor público” (Public Value Approach), que se desenrola a partir da investigação de dois sítios arqueológicos paleoindígenas e um histórico (DF-PA-11, DF-PA15 e Pedra Velha, respectivamente), localizados na Área de Relevante Interesse Ecológico Parque Jucelino Kubitchek (ARIE JK), na região metropolitana de Brasília, entorno de Ceilândia, Samambaia e Taguatinga. A pesquisa desenvolve-se a partir de abordagens vindas da antropologia urbana e do urbanismo, da gestão do patrimônio cultural e do turismo patrimonial. Utiliza ainda, como metodologia de pesquisa, entrevistas abertas, investigações arquivísticas e digitais, sobretudo, visando periódicos, relatórios e documentos legais e, finalmente, investigações do tipo “Walking Survey”. A autora questiona por que comunidades migrantes, principal constituinte humano da região, se preocupariam com sítios arqueológicos pré-históricos tão distantes da sua trajetória de vida pessoal e para isso chama atenção para os três valores gerados pelo patrimônio: os intrínsecos, os institucionais e os instrumentais. Os valores intrínsecos podem ser apontados como a experiência intelectual, emocional e espiritual do indivíduo com o patrimônio, enquanto os institucionais representam, por sua vez, o ethos e o comportamento das organizações patrimoniais. Finalmente, os valores instrumentais são os valores econômicos, sociais e paisagísticos assumidos por um determinado contexto patrimonial. Nesse sentido, a hipótese da pesquisa é a de que questões extrínsecas influenciam comunidades não-nativas a se importar com o patrimônio arqueológico mais que questões intrínsecas. Ou seja, essas comunidades se

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Pós-doutoranda em Arqueologia pelo LAP/NEPAM

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importam mais como o patrimônio arqueológico devido aos seus valores institucionais e instrumentais que aos seus valores emocionais ou identitários. Enquanto o primeiro capítulo da obra pontua os aspectos gerais anteriormente descritos, o segundo capítulo dedica-se à metodologia e descrição do sítio. Aqui, o campo da antropologia urbana toma lugar de destaque. Pode ser definido como um campo interdisciplinar por excelência e que diz respeito às origens, desenvolvimento e crescimento das cidades, mas também, ao entendimento da vida e da cultura urbana. A idéia de espaço público tem lugar especial nesses estudos e pode ser definida como locais onde é possível interagir de forma variada com outras pessoas e com o entorno, bem como cultivar a solidão e o anonimato. Os parques e as praças são dois importantes exemplos. Nesse sentido, a principal metodologia empregada na pesquisa baseia-se no “rapid ethnografic assessment procedures (REAP)”. Consiste numa combinação entre entrevistas, observação participante e registro de testemunhas oculares. A autora então esclarece que foram realizadas vinte e nove entrevistas em duas temporadas de trabalhos de campo realizadas em 2008, equivalentes a vinte horas de conversas gravadas. Os entrevistados foram divididos em dois grupos e em quatro subgrupos de no mínimo seis pessoas cada, de acordo com seu local de residência e com a sua ligação a instituições relacionadas com o estudo de caso. Foram também selecionadas dezoito entrevistas de periódicos, publicadas entre 2004 e 2008 em dois dos principais jornais da capital (Correio Brasiliense e Jornal de Brasília), assim como relatórios de campo e de laboratório não publicados, publicações acadêmicas e legislação diretamente relacionados com o estudo de caso. Também foram tiradas novecentas fotografias e realizadas filmagens no local e seu entorno, todas conduzidas em Abril, Maio e Novembro de 2008. O Terceiro capítulo do livro é dedicado a discutir os valores institucionais relacionados ao objeto de estudo. O papel do IPHAN ganha destaque, em especial no que tange ao desenvolvimento de mecanismos para a proteção ao patrimônio arqueológico nacional. Quanto à aplicação da metodologia, nesse ponto da pesquisa foram utilizadas entrevistas, análises de periódicos e “walking survey”. O ponto mais abordado nas entrevistas foi o conflito no uso da terra seguido de degradação ambiental e questões de gestão. As questões arqueológicas aparecem em todos os grupos, mas são mais comuns entre os que habitam nas proximidades do parque. Embora assuntos institucionais apareçam em todos os grupos (leis, sua aplicação, licenças, pesquisas e preservação), são mais comuns entre o grupo

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dos especialistas. Os profissionais da arqueologia, claramente, focam mais em assuntos institucionais que outros entrevistados. Destacam-se, particularmente, muitos conflitos entre a Companhia de Saneamento Ambiental do Distrito Federal (CAESB) e moradores locais por causa da instalação de infraestrutura de saneamento básico. Como parte do acordo judicial surgido a partir das demandas de compensação financeira de moradores locais contra a empresa, a CAESB teria pagado a prospecção e escavação arqueológica da área afetada pelo empreendimento e pela elaboração de um DVD educativo de onze minutos. Entretanto, a construção de um museu e a publicação de um livro ainda estariam em suspenso. Em relação à análise dos periódicos, notou-se que, praticamente, todos os exemplares do Correio Brasiliense analisados traziam a palavra-chave arqueologia e, praticamente, a metade se referia ao parque ARIE JK. No caso do Jornal de Brasília, há três reportagens arqueológicas sobre o parque. A maior parte inclui questões ambientais, sobretudo, com a CAESB. Todos os dois periódicos têm suas agendas particulares, sendo o Correio Brasiliense mais afeto à defesa do governo do Distrito Federal, elogiando, inclusive, os trabalhos de saneamento básico da CAESB realizados no parque. Mas, curiosamente, é também o que mais críticas expõe sobre outros órgãos em relação à preservação arqueológica no parque. No contexto do “walking survey”, a autora realizou a observação de um dos encontros do MAPE (Movimento Amigos dos Parques Ecológicos), ocorrida em 11 de novembro de 2008. A principal questão abordada pelos participantes era a preservação ambiental de parques ecológicos, incluindo a ARIE JK. Houve, espontaneamente, a proposta de se defender a abertura de um museu arqueológico na região, comprovando uma grande demanda pelo museu e pelo retorno de artefatos arqueológicos enviados a outros estados para o Distrito Federal. O capítulo quatro aborda os valores instrumentais relacionados ao patrimônio e a sua principal questão é tentar perceber se a possibilidade de implementar turismo patrimonial no parque está por detrás do interesse da opinião pública em questões arqueológicas. Nesse sentido, o turismo patrimonial pode ser definido como um tipo de atividade turística em espaços definidos como sítios patrimoniais. Outro tipo de turismo relacionado com a arqueologia, o ecoturismo, pode ser definido como atividades que visam um equilíbrio entre ambiente e comunidades humanas. A autora ressalta que os sítios arqueológicos são de grande interesse para a humanidade. Torná-los objeto turístico, se por um lado valoriza o sítio e o torna sustentável,

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por outro pode representar um risco para a sua própria preservação, na medida em que aumenta a demanda sobre o patrimônio. Para avaliar os valores instrumentais gerados pelo patrimônio da ARIE JK, pontos de uso recreacional no interior do parque foram contrastados com a opinião pública sobre o tema, coletadas em entrevistas e notícias de periódicos, tendo em vista as palavras chave ARIE JK e arqueologia. Foi também utilizado o “walking Survey”, que demonstrou que, de modo geral, os locais apontados como recreativos no parque estão em condições precárias, abandonados e tomados pelo lixo. Nas entrevistas, o objetivo principal era entender se e como o público percebe o turismo como um valor instrumental gerado pelos sítios arqueológicos do parque entendendo também, quando possível, como cada pessoa percebe lazer e recreação. De modo geral, percebeu-se que os entrevistados não vêem o parque e tampouco a visita aos seus sítios arqueológicos como opção de lazer. O parque é visto, na realidade, como área vazia de funções, local de preservação ambiental. Parte dessa visão deriva, entretanto, da preferência dos entrevistados por opções de lazer em espaços fechados, tais como shoppings e cinemas. Nesse sentido, o único ponto não questionado e muitas vezes trazido à tona em termos de turismo para a área de estudo é a criação de um museu arqueológico no local. O quinto capítulo da obra trata dos valores intrínsecos relacionados ao patrimônio arqueológico do parque. O foco do trabalho recai sobre os três sítios arqueológicos anteriormente citados, que sofreram escavações e têm importância científica comprovada. Eles estão relacionados à extração de material e confecção de peças líticas. Os sítios de jazidas são essenciais para o estudo da pré-história e para o trabalho arqueológico. Ao mesmo tempo, são sítios de complexa compreensão. Devido à dificuldade no estudo do processo de debitagem e na dificuldade em definir estratigrafias ou outros indicadores de datação, esses sítios ainda não são preferencialmente interessantes para os arqueólogos brasileiros. Por outro lado, a revisão da literatura na área indica que para além do processo tecnológico, o estudo de jazidas também permite compreender sistemas de trocas, organização social e economia pré-históricas e atuais. Quanto à metodologia utilizada na pesquisa, o principal objetivo das entrevistas realizadas seria o de perceber a compreensão de não profissionais sobre os sítios locais, se essas pessoas têm a real compreensão dos valores intrínsecos dos sítios e se esses valores influenciam fundamentalmente o seu comportamento acerca da preocupação com a preservação dos mesmos. Os resultados apontaram que os residentes e aqueles que moram no entorno do parque apresentaram uma compreensão semelhante e se preocupam com a

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preservação dos sítios, muito embora tenham pouco conhecimento sobre suas características. Especialistas e pessoas ligadas a instituições de preservação variam entre os que se importam com a preservação dos sítios e aqueles que ignoram ou desvalorizam o tema. Entretanto, os arqueólogos concordam com a grande relevância dos sítios pré-históricos. Também foram analisadas onze notícias do Correio Brasiliense e três do Jornal de Brasília sobre arqueologia. O principal objetivo foi analisar a qualidade do conteúdo relacionado com patrimônio arqueológico e informações científicas apresentadas pelas reportagens. Notou-se que as reportagens do Correio Brasiliense são menos técnicas e mais apelativas, associando, por exemplo, palavras como “tesouro” e “riqueza” aos temas arqueológicos. As do Jornal de Brasília são em menor número, mas em melhor qualidade. Em resumo, pode-se apontar que a antiguidade do sitio é o aspecto mais destacado e não suas características tipológicas ou geográficas. Há um interesse de instituições e comunidade com o conhecimento e preservação do sitio, embora de forma insipiente. O último capítulo, que abriga as conclusões do trabalho, destaca que o patrimônio arqueológico do parque é ainda intangível, uma idéia abstrata que tomou diferentes formas para diferentes atores e propósitos e por diferentes razões. A identificação com sítios naturais ou culturais é socialmente construída e não requer se basear em fatos para tomar forma. Comunidades locais podem se identificar com comunidades de caçadores-recoletores somente por terem habitado um mesmo local em um passado remoto. Os valores institucionais e instrumentais são as ligações mais importantes entre população não nativa e o patrimônio arqueológico local. Os dois tipos de valor estão intrinsecamente relacionados de forma que é difícil separá-los. Atualmente, a arqueologia não faz parte da vida quotidiana das pessoas em Brasília. Muito embora os entrevistados estivessem cientes da importância dos sítios estudados e da sua preservação, menos de 30 por cento das pessoas citaram espontaneamente essa questão durante a entrevista. Acerca das instituições importantes para a pesquisa, duas merecem destaque: a administração local e a mídia. As instituições tendem a proteger, de certa forma, os sítios, colocando-os sob os limites do parque e o fato dos sítios serem de difícil identificação para os leigos também os protege. Por outro lado, tal característica não favorece muito o turismo. A mídia, por seu lado, reproduz muitos erros e preconceitos nas reportagens. Sendo, geralmente, a única forma pela qual a comunidade toma conhecimento dos sitos, isso acaba por ser um ponto bastante negativo no processo.

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Finalmente, a atenção prestada por instituições e pela mídia aos sítios é pequena e dura somente enquanto os trabalhos estão sendo realizados. O patrimônio arqueológico não está adaptado para gerar valor econômico e social e a motivação das pessoas para a preservação dos sítios tem a ver muito mais com a sua antiguidade do que com outras características importantes dos mesmos. Como um todo, pode-se afirmar que a presente obra apresenta-se como um estudo crucial para aqueles pesquisadores que pretendem se aprofundar no campo da arqueologia pública brasileira, apresentando-se como um trabalho de competência e de consistência indiscutíveis, reflexo do próprio aprofundamento do campo no país. Abre espaço para que mais trabalhos possam ser realizados dentro da temática em outros contextos brasileiros, a fim de esclarecer quais são os principais fatores que estimulam a população local, especialistas e membros de grupos de preservação patrimonial e ambiental a se importarem com o patrimônio arqueológico e quais são os diálogos possíveis entre ciência e sociedade no que tange à valorização e conservação dos sítios no país.

Referência bibliográfica GODOY, Renata de. Assessing Heritage Values: Public Archaeology in Brasília. Lambert Academic Publishing, 2012.

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A CUNHAGEM DE UM MONARCA: MOEDAS COM A IMAGEM DE ALEXANDRE, O GRANDE The coinage of a monarch: coins with the image of Alexander the Great La acuñación de un monarca: monedas con la imagen de Alejandro Magno Thiago do Amaral Biazotto1 RESUMO Este artigo tem por objetivo apresentar algumas moedas cunhadas com a imagem de Alexandre, o Grande (356-323 a.C.), juntamente com uma discussão teórica acerca do papel das moedas como documento histórico e arqueológico, especialmente em termos de legitimidade de poder representados pela imagem desse monarca nos reversos monetários. Palavras-Chave: Alexandre, o Grande (356-323 a.C.), Moedas, Poder ABSTRACT This article aims to show some coins minted with the image of Alexander the Great (356-323 B.C.), alongside with a theoretical discussion about the role of coins as historical and archeological documents, especially in terms of legitimacy of power represented by the image of this monarch in the monetary reverses. Keywords: Alexander the Great (356-323 B.C.), Coins, Power RESUMEN Este artículo tiene por finalidad presentar algunas monedas con la efigie de Alejandro Magno (356-323 aC), unido con una discusión teórica acerca del papel de las monedas como documento histórico y arqueológico, especialmente en términos de legitimidad de poder representada por la imagen de este monarca en los reversos monetários. Palabras clave: Alejandro Magno (356-323 aC), Monedas, Poder.

O estudo das moedas e o tesouro numismático como fonte A moeda é um objeto palpável [...]. Nela pode-se contemplar o busto do soberano, enquanto os reversos mostram suas virtudes e a prosperidade da época [...]. Fazendo parte assim da máquina estatal, onde a numismática entra como um monumento de legitimação do Estado, uma tentativa de manter inalterado o status quo (CARLAN, 2010: 12).

1

Mestrando em História pela Unicamp. À época de redação deste artigo, o autor ainda estava na graduação em História pela Unicamp. E-mail: [email protected].

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O interesse pelas moedas data de tempos imemoriais, mas foi apenas a partir da Modernidade que seu estudo passou a ser sistemático. Tendo o primeiro passo sido dado pelo humanista francês Guillaume Budé (1467-1540), graças a seu estudo sobre os sistemas monetários antigos, a numismática – de raiz etimológica ligada ao termo latino nummus (moeda) e que se refere tanto ao estudo destes artefatos quanto ao das medalhas - se fortaleceu desfrutando do status de ciência no final do século XVIII e início do XIX. (CARLAN & FUNARI, 2012: 17). Até o século XIX, parece ser crível asseverar que a numismática ainda era vista como disciplina auxiliar da História e sua função primordial era ratificar aquilo que se encontrava na documentação escrita - como a datação de reinados pautada em cunhagens que possuíam a imagem de determinado monarca, por exemplo - numa relação simbiótica com a História Política. (CARLAN, 2010: 24). Também merecem menção os pontos de contato com a História de Arte, usando das representações no material monetário como instrumento de análise de estilos que eram conhecidos por meio das fontes escritas (CARLAN, 2010: 24). Nos séculos seguintes, contudo, a numismática passou a desfrutar de maior autonomia, admitindo ser possível extrair do numerário informações diversas acerca de um povo ou território, quer sejam ligados à economia, às finanças, à produção artística, ao abastecimento militar e à política, e que podem, algumas vezes, se interconectarem. Profícua ilustração é encontrada no capítulo “Os inimigos de Roma: estratégia e formação militar na Antiguidade Tardia”, de Claudio Carlan, parte integrante da obra História Militar do Mundo Antigo: Volume 1: guerras e identidades, organizada pelos estudiosos Pedro Paulo Funari, Margarida Maria de Carvalho, Claudio Carlan e Érica Cristhyane Morais da Silva. Interpretado como período de alto caráter bélico, a chamada Antiguidade Tardia assistiu a profundas mudanças ocorrerem no interior do exército romano, a começar pela incorporação cada vez mais aguda dos chamados “mercenários bárbaros” a seu regimento. Ato contínuo, houve ampliação do sistema monetário do Império, com peças de alto teor propagandista em benefício do Imperador, de modo a fomentar o soldo dessas novas tropas2. Também parte importante do aspecto da moeda como fonte histórica concerne às informações sobre o metal utilizado em seu fabrico: O primeiro elemento, o metal usado, informava sobre a riqueza de um povo. Os outros dois elementos – tipo e legenda – diziam algo sobre a arte, ou seja, o maior ou menor aperfeiçoamento técnico usado no fabrico do numerário circulante, sobre o

2

Cf. CARLAN, C. “Os inimigos de Roma: estratégia e formação militar na Antiguidade Tardia” in FUNARI, P. P. A., CARVALHO, M. M., CARLAN, C., SILVA, E. C. M. (orgs.) 'História Militar do Mundo Antigo: guerras e identidades'. São Paulo, Annablume: 2012.

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No Brasil, outrossim, o estudo da numismática é ainda incipiente, não obstante possuirmos gigantesco tesouro no Museu Histórico Nacional (CARLAN & FUNARI, 2012: 78). Uma boa descrição sobre o espaço é a seguinte: Atualmente o MHN ocupa todo o conjunto arquitetônico da antiga ponta do Calabouço, local onde se encontrava instalado originalmente o Forte de Santiago, construído em 1603, ao qual se acrescentou a Prisão do Calabouço (1693) destinada a escravos faltosos - a Casa do Trem (1762) - depósito do "trem de artilharia", responsável pelo deslocamento interno de armas e munições, o Arsenal de Guerra (1764) e o Quartel do Exército (1835). Foi no portão principal do Museu, durante uma recepção aos veteranos da Guerra dos Canudos (1896 – 1897), que o Marechal Carlos Machado Bittencourt (1840 – 1897), morreu a golpes de punhal, defendendo o presidente Prudente de Morais (1841 – 1902) (CARLAN, 2010: 24)

Ademais, o Museu Histórico Nacional comporta o maior tesouro numismático da América Latina, com cerca de 120 mil moedas e medalhas (CARLAN, 2010: 25)

Os reversos monetários e legitimação do poder

As pesquisas hodiernas no âmbito da numismática parecem mais voltadas às representações de autoridades em seus reversos, principalmente em termos de legitimidade de poder, associações dos imperadores com seus antecessores ou divindades diversas, numa relação cada vez mais harmoniosa com a História Cultural. É neste ponto que este texto está aportado, começando com uma discussão acerca dos termos técnicos usados para se nomear as partes de uma moeda, passando pela importância das imagens que aparecem nos reversos monetários e encerrando com estudo de caso de algumas moedas batidas com a efígie de um dos mais insignes conquistadores do Mundo Antigo: Alexandre Magno. Tratando dos termos técnicos da numismática, Carlan apresenta os seguintes como principais: Anverso, vulgarmente conhecido como ”cara”, encontramos geralmente o busto do governante ou mandatário. Reverso, lado oposto (coroa), representação mais significativa. Legenda, inscrições encontradas no anverso / reverso. Campo corpo da moeda. Eixo ou Alto Reverso, seguindo o sentido do relógio para diferenciar as peças variantes cunhadas na mesma casa ou casas monetárias diferentes. Exergo ou Linha de Terra, sigla localizada no reverso da moeda (abaixo da representação), indica a casa monetária de origem. Bordo cantos da peça. (CARLAN, 2006: 4, grifos no original).

Na descrição acima, consta que o reverso - popular “coroa” - é a parte mais destacável da moeda. Isso se deve à imensa quantidade de símbolos que dele podem ser

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auferidos. Nele é possível ver, em termos abstratos, o “desenvolvimento de uma sociedade” (CARLAN, 2008: 11): conquistas militares, a religião imposta por um soberano ou uma elite, a importância de uma determinada legião ou agrupamento militar, as características fisionômicas de um monarca, seus títulos, o casamento entre membros da nobreza, fortificações, unificação de territórios, representações dos navios de uma cidade portuária, entre outros (CARLAN, 2008: 11; FARIA, 2011: 86). Atribuía-se aos reversos, ademais, a propriedade mágica de afastar o mal (CARLAN & FARIA, 2012: 45). Na Antiguidade, em particular, também digno de nota é o papel das representações nos reversos como meio de propaganda do poder constituído, de forma a manter o status quo. Tal finalidade fica ainda mais clara quando se recorda a quantidade de analfabetos que existia no Mundo Antigo, o que reforça ainda mais o poder simbólico das imagens: Na Antiguidade (...) a moeda unificava um território, que estava submetido a um mesmo poder político. Mais do que a língua e religião, era o único instrumento ligado ao poder que permanecia estável. Transmitia uma forte carga propagandista do governo central (...). (CARLAN & FUNARI, 2012: 78).

As moedas, assim sendo, carregam a mensagem precípua do emissor em seus reversos. Seus símbolos trazem as virtudes do monarca como estadista, político, conquistador, piedoso e representante legítimo do cargo que lhe é conferido. Também se pode ver, nos reversos, a prosperidade de uma era, visando a engrandecer seus feitos e apresentar seus soberanos como distintos e autênticos emissários divinos (CARLAN, 2008: 12). A cunhagem liga-se de modo visceral à máquina do Estado e as moedas, portanto, podem ser consideradas documentos oficiais (DAHMEN, 2007: 3). Não obstante, é admissível lembrar que as relações entre as moedas e o poder instituído não se limitam à Antiguidade. Mencionemos, de passagem, as peças batidas durante a ditadura do general Francisco Franco (1939-1975), na Espanha, por ocasião do aniversário de seu governo. Em sua espécie de prata no valor de 100 pesetas, elas continham a inscrição FRANCISCO FRANCO CAUDILHO DE ESPAÑA POR LA G(RACIA) DE DÍOS, numa tentativa de usar de apanágios do Mundo Antigo de modo a apresentar seu regime totalitário sob o manto de monarquia divina (FARIA, 2011: 6).

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Fig. 1: Moeda de 100 pesetas com a imagem de Francisco Franco. Disponível em: http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/a/ab/1970_100_Pesetas.jpg/345px1970_100_Pesetas.jpg (Acesso em 02/02/2013)

De volta ao Mundo Antigo, um caso que parece ser o mais emblemático é o de Alexandre Magno, primeiro monarca a estampar sua imagem no meio circulante (CARLAN & FARIA, 2012: 3). Seus feitos foram de tal grandeza, que levaram o historiador e político prussiano Johann Gustav Droysen (1808-1884) a criar em sua obra Geschichte Alexanders des Grossen, publicada em 1833, o termo erudito “helenismo” para se referir à cultura nascida do contato entre os greco-macedônios e os autóctones, no período balizado pelas mortes do próprio Alexandre, em 323 a.C., e de Cleópatra, em 30 d.C. Nessa mesma obra, o erudito germânico menciona de maneira breve o papel das moedas nos tempos do conquistador macedônio: Todas as moedas daquela época que foram conservadas – de ouro, de prata ou de cobre – trazem a efígie de Alexandre. São testemunhas mudas que a ciência moderna conseguiu retirar do mutismo. Comparadas com as peças de ouro e de prata dos reis persas, das inumeráveis cidades gregas e dos reis da Macedônia anteriores a Alexandre, elas oferecem uma informação singular e reveladora (DROYSEN, 2010: 114).

Vimos até aqui a importância da numismática como ciência e o papel dos reversos monetários na legitimação do poder estabelecido. De modo a ilustrar esta demonstração, serão, doravante, apresentadas algumas peças cunhadas com a efígie de Alexandre, atestando como as imagens do monarca visavam a representá-lo como possuidor de ascendência divina e, portanto, que seu poder e conquistas eram de magnitude inabalável.

As faces de um monarca nas cunhagens monetárias

As cunhagens que retratam Alexandre tornaram-se mais comuns após sua morte, conforme argumenta Darhmen (2007: 6). No entanto, o primeiro exemplo deste artigo é datado de 326-323 a.C., destarte, de quando o conquistador ainda se encontrava em vida. Este

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conjunto de medalhas é denominado de Elephant Medallions3, por ilustrarem as campanhas de Alexandre nas Índias, nas quais ele se digladiou com exércitos que dispunham de elefantes em suas fileiras (DARHMEN, 2007: 6). Nessas moedas, o paladino macedônio está trajando uma armadura ao estilo grego e elmo decorado com duas plumas – em consonância com o descrito por Plutarco (Alex. XVI, 7) – numa tentativa de ovacionar os feitos militares frutos da Batalha de Hidaspes, em 326 a.C, travada contra o monarca indiano Poro (DARHMEN, 2007: 110). As primeiras peças desta série são conhecias desde 1887, quando chegaram ao British Museum, e retratam uma cena da contenda: Alexandre, a cavalo, ataca Poros, que dispõe de um paquiderme como montaria. Contudo, de acordo com as fontes Antigas, o embate entre os líderes jamais ocorreu, uma vez que o filho de Filipe II só encontrou seu desafiante quando a batalha já havia se findado (DARHMEN, 2007: 110). Nos reversos, Alexandre é representado com o relâmpago - elemento característico de Zeus, sua filiação contumaz - e sendo coroado por Nike, a deusa grega da vitória. É clara a volição em apresentá-lo com aura de semi-divindade, ainda que o local de fabrico dessas peças permaneça incerto (DARHMEN, 2007: 6).

Fig. 2: Os Elephant Medallions. Retirado de DAHMEN (2007: 111).

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Para uma análise mais pormenorizada desses medalhões: Cf. HOLT, F. Alexander the Great and the mystery of the elephant medallions. University of California Press, Los Angeles: 2003.

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Outro exemplo clássico são as peças cunhadas com Alexandre envergando chifres alusivos a Zeus-Amon, moedas que vieram a lume sob Ptolomeu I e persistiram até o período Romano. A peça desta demonstração foi fabricada a mando de Lisímaco (360-281 a.C.), guarda-costas de Alexandre e dos mais conspícuos generais do exército macedônico, no período entre 297-281 a.C. Havia dois tipos principais desta moeda: o primeiro, que será aqui apreciado, continha apenas os chifres, que se curvavam ao redor da orelha do conquistador. Já o segundo, além dos cornos, apresentava um diadema adornando sua cabeça (DAHMEN, 2007: 42). O filho de Olímpia é representado com chifres de carneiro, animal símbolo do deus egípcio Amon, de maneira a reivindicar uma ascendência dessa divindade. A associação entre conquistador e o deus reporta à visita ao oásis de Siwah, na qual o monarca logra obter o título de faraó, por meio do beneplácito do deus de Karnak, ao mesmo tempo em que mantém sua filiação a Zeus4: Por ser um deus que servia para unir pessoas de diferentes origens étnicas, ele (Amon) possuía santuários em toda a Grécia e na Macedônia também, além disso, devido à fama do oráculo que resida em Siwah, este deus obteve amplo reconhecimento a ponto do próprio Alexandre o ter escolhido como deidade patrona de sua linhagem. Como Zeus-Amon é uma deidade que soma diferentes deuses, ao mesmo tempo em que cada deus poderia ter uma existência individual, isto possibilitou a Alexandre manter Zeus como deidade de sua linhagem (ALMEIDA, 2007: 26).

No contexto post mortem de Alexandre e a fervilhante disputa entre seus generais pelos territórios de seu imenso império, a cunhagem de peças que continham sua efígie era importante ferramenta de legitimação de poder. Os objetivos de Lisímaco, o comandante da Trácia, ao capitanear a produção desses artefatos podem, assim, ser resumidos da seguinte maneira: “Using Alexander as a figured of his own interests, Lysimachos is able to hide behind Alexander’s universal invincibility and finally adopt some of his qualities” (DAHMEN, 2007: 17)5.

4

Sobre a visita de Alexandre ao oásis de Siwah, Cf. CARTLEDGE, P. “Leyendas y Legados de Alejandro” in CARTLEDGE, P. Alejandro Magno: la búsqueda de un pasado desconocido. Barcelona: Ariel, 2008 5 “Usando Alexandre como uma representação de seus próprios interesses, Lisímaco está apto a se esconder por trás da invencibilidade universal de Alexander e, finalmente, adotar algumas de suas qualidades”. Tradução do autor.

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Fig. 3: Tetradracma de prata com a efígie de Alexandre. Retirado de Almeida (2006: 26)

O crescimento da capilaridade da figura de Alexandre fez com que muitos monarcas passassem a bater moedas com sua efígie, de modo a se apresentarem como sucessores lídimos da dinastia do macedônico. Tal era o caso de Agátocles da Báctria, que assumiu o trono por volta de 180 a.C., após disputa com o usurpador Eucrátides, num cenário de intensa necessidade de legitimação de poder (DAHMEN, 2007: 120). Tão logo o comandante bactriano assenhoreou-se da coroa, iniciou a cunhagem de peças que carregavam as seguintes imagens: Zeus, entronado, no reverso, e Alexandre no anverso, no qual se lia a inscrição “Alexandre, filho de Filipe”. O reverso também continha a frase “No Reino de Agátocles, o justo”. Oportuno ressaltar que este epíteto era auto-atribuído (DAHMEN, 2007: 121). Dirigindo nossa atenção à forma como Alexandre é apresentado nessa moeda, notase a presença de um escalpo de leão adornando sua cabeça. Se à primeira vista a presença do acessório pode parecer insólita, é oportuno lembrar, por exemplo, da fábula do Leão da Neméia - fera sanguinária - abatida por Hércules, no primeiro de seus dozes trabalhos. De acordo com a lenda, o herói grego deu cabo da besta ao estrangulá-la e, depois, passou a usar de sua pele como manto protetor e de sua cabeça como elmo. Sabe-se que era comum asseverar a ascendência hercúlea em Alexandre, a ponto de Plutarco iniciar sua Vida de Alexandre afirmando que esta filiação era inconteste entre os autores de maior crédito (Alex. II, 2). O ato de extrema destreza, coragem e virilidade de abater um leão com as mãos nuas também foi “herdado” pelo conquistador macedônio, sendo comum em diversas outras representações, de acordo com a interpretação mais corrente6.

6

Sobre a alegoria da morte do leão por Alexandre, Cf. PALAGIA, O. “Hephaestion’s Pyre and the Royal Hunt for Alexander” in BOSWORTH, A. & BAYNHAM, E. Alexander the Great in Fact and Fiction. Oxford University Press, 2000.

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O objetivo precípuo de Agátocles, era a afirmação de seu poder a partir da invenção de uma linhagem unívoca que se iniciava com Hércules, passava de maneira fundamental por Alexandre, e desembocava no próprio monarca bactriano. Tem-se aqui um exemplo de uso da figura e das lendas em torno do conquistador macedônio (DAHMEN, 2007: 121).

Fig. 4: Tetradracma de Alexandre sob Agátocles. Retirado de (DAHMEN, 2007: 121).

O último exemplo mostra, como defende Jones (1997), que a construção de identidades dá-se de maneira contínua, chegando até os tempos coevos. Trata-se de uma moeda de 100 dracmas que começou a circular na Grécia no ano de 1990. Alexandre aparece com os chifres de Zeus-Amon, já discutidos aqui, com o objetivo claro de se evocar um pretérito glorioso, de se exaltar o caráter altivo de um povo que possui em suas veias o nobre sangue do maior dos conquistadores, de uma nação que - embora em onipresente crise econômica no mundo capitalista hodierno – dispõe de passado frugal que deve ser lembrado e celebrado no presente. Assim como a dimensão de seus feitos e a magnitude de sua lenda, a apropriação da imagem de Alexandre Magno é infinita.

Fig. 5: Moeda de 100 dracmas. Grécia, 1990. Nela, o conquistador é descrito como “Alexandre, o Grande, rei dos macedônios”. Tradução da moeda pelo Prof. Dr. Pedro Paulo Funari. Retirado de DAHMEN (2007: 155).

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Considerações finais

Este artigo teve como objetivo apresentar, de maneira breve e introdutória, o desenvolvimento da numismática como ciência, desde seu surgimento até a atualidade. Se antes ela se encontrava confinada ao auxílio e ratificação dos documentos escritos, agora desfruta de status autônomo, dada a infinidade de informações que se pode extrair do material numerário. Aqui, se buscou refletir nas formas através as quais as representações dos monarcas nos reversos monetários ligam-se às relações de poder, em particular no que concerne à legitimação dos governantes. No que cabe a Alexandre, os exemplos mencionados mostram a louvação dos feitos militares da Batalha de Hidaspes, a tentativa de seus sucessores Lisímaco e Agátocles da Báctria em lastrear seus respectivos reinados por meio da cunhagem de peças que aludiam às façanhas do conquistador e, ademais, como os usos da figura de Alexandre continuam em voga, exemplificado pela moeda batida na Grécia, em 1990. Esta apreciação de determinadas moedas com a efígie de Alexandre Magno, portanto, espera ter apresentado algumas das muitas formas de se analisar de modo crítico esse pequeno artefato metálico, cuja fascinação que desperta é inversamente proporcional ao seu tamanho.

Referências bibliográficas ALMEIDA, A. Ekthéosis Arsinóe: o culto a Arsinóe II Filadelfo. 2007. Dissertação (Mestrado em História). Universidade de São Paulo, São Paulo. 2007. CARLAN, C. “Os inimigos de Roma: estratégia e formação militar na Antiguidade Tardia” in FUNARI, P. P. A., CARVALHO, M. M., CARLAN, C., SILVA, E. C. M. (orgs) História Militar do Mundo Antigo: guerras e identidades. São Paulo, Annablume: 2012. CARLAN, C. “Arqueologia e Numismática: A História Antiga e a Cultura Material”. Agenda social (UENF), v.4, p. 22-36, 2010. CARLAN, C. “Arqueologia Clássica e Numismática: o uso das fontes.” Boletim da SNB (Sociedade Numismática Brasileira), v. 61, pp 67-75, São Paulo, 2008 CARLAN, C. “Numismática: ‘lendo’ a moeda como fonte histórica. Um documento alternativo”. História e-História, v. 06/03, pp. 1-10, 2006. CARLAN, C, FARIA, E. “A Política de Alexandre, o grande, e suas representações monetárias.” Revista Historiae, v. 2, p. 42-52, 2012.

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CARLAN, C. FUNARI, P. P. A . Moedas: A Numismática e o Estudo da História. São Paulo: Annablume, 2012. CARTLEDGE, P. Alejandro Magno: la búsqueda de un pasado desconocido. Barcelona: Ariel, 2008 DAHMEN, K. The Legend of Alexander the Great on Greek and Roman Coins. New York: Routledge, 2007. DROYSEN, J. Alexandre: o grande. Rio de Janeiro, RJ: Contraponto, 2010. FARIA, E. M. “Alexandre da Macedônia: cunhagens com aspectos de propaganda”. Cadernos de Clio, v. 2, p. 85-97, 2011. HOLT, F. Alexander the Great and the mystery of the elephant medallions. University of California Press, Los Angeles: 2003. JONES, S. The archaeology of ethnicity: constructing identities in the past and present. London: Routledge, 1997. PALAGIA, O. “Hephaestion’s Pyre and the Royal Hunt for Alexander” in BOSWORTH, A. & BAYNHAM, E. Alexander the Great in Fact and Fiction. Oxford University Press, 2000. PLUTARCH. Plutarch lives Demonsthenes and Cicero, Alexander and Caeser. Trad. Bernadotte Perrin. Havard, Harvard University Press, 2004.

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Resenha: CARLAN, Claudio Umpierre. Moeda e poder em Roma: um mundo em transformação, São Paulo, Annablume, 2013 Vítor Bianconi Menini1 Trabalhar com moedas é algo diferente, inusitado [...] é percorrer a história da humanidade em todas as suas facetas. É reunir e integrar dados reveladores de momentos áureos, de crises, de guerras [...] É colocar no presente os mistérios do passado (LUDOLF, 2002: 199).

A atenção que moedas recebem é tão antiga quanto elas próprias. São artefatos peculiares e importantes para o estudo da História. A numismática é a ciência que estuda as moedas, podendo atingir um alto grau de precisão técnica e classificação. É um campo de estudo imenso, uma vez que esses pedaços de metal estão repletos de informações sobre os mais diversos interesses da História: Arte, Religião, Economia, Política, sobre sociedades e civilizações. Manoel Severin de Faria, sacerdote católico e numismata português do século XVII aponta que “nas imagens das moedas e suas inscrições se conservava a memória dos tempos, mais que em nenhum outro documento” (LUDOLF, 2002: 199). A forja de uma ciência própria para o estudo desses pequenos objetos metálicos antigos inicia-se na Idade Moderna com as coleções: a busca pelo passado greco-romano. Francesco Petrarca e Guillame Budé são duas das figuras principais que ajudam a configurar a gênese formal dos estudos das moedas. Com o passar dos tempos e a consolidação do colecionismo, assim como o aumento de material (moedas) disponível para estudo e avanços museológicos, surgem as sociedades numismáticas. O livro de Carlan, Moeda e poder em Roma, trata – inicialmente - da questão do colecionismo e sua gênese, culminando na ascensão de museus, como o Museu Histórico Nacional no Rio de Janeiro, e de gabinetes numismáticos, como o da Catalunha em Barcelona. Em seguida, apresenta um catálogo de moedas romanas – de grande valor, já que é fundamental para o trabalho numismático - separado por imperador, temas e exergo2 do reverso3. Sendo assim, o centro do livro é a análise de uma coleção composta por 1888 moedas, cunhadas no IV século do Império Romano, do MHN. Trata, também, dos diferentes tipos monetários da Antiguidade Tardia e todo seu contexto socioeconômico, político, e 1

Graduando em História pela Universidade Estadual de Campinas, bolsista do CNPq, [email protected]. Local inferior do campo da moeda, onde se encontra a data e a casa monetária, quando existem tais informações. 3 Face oposta ao Anverso (lado principal da moeda que representa quase sempre a entidade emissora). Na gíria popular é conhecia como “coroa”. 2

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histórico. Por fim, analisa a propaganda por meio da moeda e relaciona a legitimação de poder com a vasta iconografia monetária. É muito difícil tentar traçar as origens do colecionismo, já que o homem coleciona desde o Paleolítico e é difícil determinar o motivo (SOUZA, 2009: 01). Porém, o resgate do passado greco-romano remonta, como expõe o professor Carlan, aos tempos pós-invasões bárbaras e à formação dos jovens estados modernos. Durante o Renascimento, essa prática floresceu a partir de novos interesses e valores históricos e artísticos. Um trabalho importante, conhecido como um dos primeiros catálogos numismáticos do período foi o Illustrium Imagines elaborado por Andrea Fulvio que contém imagens de diversas moedas e bustos antigos. Além de abundantes e portáteis, a variedade de bustos, cenas, símbolos e figuras estampadas nas moedas antigas encantavam aos numismatas de uma época em que se tinha "fome” por imagens, em especial, greco-romanas. (CUNNALY, 1999: 12) Já no século XVIII, a Vila Albani torna-se um centro de encontro de colecionadores e estudiosos do período que, como Wicklemann (1717 – 1768), buscavam imitar a cultura Clássica Antiga. A Society of Dilletani, também do XVIII, promoveu campanhas arqueológicas com o objetivo de estudar, conhecer e analisar as ruínas greco-romanas, o que contribuiu para o aumento do material numismático disponível para estudo (CARLAN, 2013: 41). A atividade do colecionismo é somada aos avanços museológicos iluministas que, através da arte, buscavam um processo de regeneração cultural (burguesia x aristocracia, arte “racional” x arte rococó). O Museu Britânico de Londres é considerado o pioneiro e, de maneira geral, apresentou (e ainda apresenta) – sustentado pela arte – as diferentes etapas da cultura material em diversas sociedades. Toda essa contextualização e explicação sobre museus é transportada, no texto, para a comparação entre o Gabinete numismático da Catalunha e o Museu Histórico Nacional do Rio de Janeiro. Ambos tiveram a mesma formação: através de doações em períodos relativamente próximos. Umas das diferenças seria a forte relação entre a fundação do MHN e o nacionalismo. Carlan ainda destaca que a numismática não está presa nos museus já que a moeda é um prato cheio para o estudo da História Econômica, Política, da Arte e as relações sociais existentes em sociedades monetarizadas4 (CARLAN, 2013: 48). A análise seguinte é a de sete peças numismáticas de quatro imperadores diferentes: Constante (1 peça), Constâncio II (1); Honório (2) e Arcádio (3). As moedas antigas devem 4

No vocabulário numismático, uma sociedade monetarizada é aquela - segundo os padrões modernos - que possui um sistema monetário que adotou a moeda metálica como meio de troca.

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ser pensadas como um corpus documental que possui um emissor que quer transmitir uma mensagem – por meio de representações e signos - para um destinatário ou receptor. Sendo assim, a moeda possui uma função política, social, administrativa, militar, religiosa e econômica dentro da sociedade Romana (CARLAN, 2013: 64). Para o estudo seguinte no livro, utilizou-se do “esquema de Lasswell”5. O centro analítico do livro são as 1888 moedas cunhadas nos século IV d.C.. A análise quantitativa executada separou as numárias em três: imperador (de Diocleciano a Galério), reverso (e seus temas) e exergo (local de cunhagem). O estudo recebe ainda, um amplo contexto histórico de cada imperador o que é fundamental para os estudos posteriores a serem elaborados a partir das mesmas numárias. O maior número de moedas do acervo (360) são as de Constantino com ênfase nos temas militares e religiosos. A explicação de Carlan para tal verificação é: Era preciso pagar o exército, legitimar o poder dos imperadores perante a tropa, homenagear ou favorecer uma determinada legião, demonstrar a segurança do seu governo divulgando a construção de muralhas ou campos militares, representar a sua vitória – a vitória de Roma – sobre um determinado inimigo (CARLAN, 2013: 172).

O contexto histórico apresentado é o do século IV: Tetrarquia e a divisão de tarefas civis e militares entre os imperadores, as reformas da Tetrarquia, o processo de ruralização do Império Romano - ação de mão única -, crise institucional (assassinato de 19 imperadores), guerra contra o Império Persa, as legiões romanas e as modificações da guerra e a análise da economia do período com ênfase no fator numismático: é interessante notar que é neste trecho que Carlan aborda o outro lado da numismática e examina em detalhe a crise dos preços, o valor da moeda, a variação de pureza dos metais usados nas cunhagens e da balança comercial romana. Por fim, é feito o estudo da moeda, propaganda e legitimação do poder. É fundamental ler os símbolos contidos nos reversos das moedas romanas que constituem um corpo de informação a ser interpretado pelo receptor. Busca-se as intenções e interesses que explicam a motivação do emissor ao cunhar aquele tipo. Sendo assim, faz-se necessário analisar ambos os lados da moeda que compõe um documento vastíssimo que, aliado a outras fontes, nos ajuda a produzir uma interpretação do passado.

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Harold Laswell (1902-1978): pioneiro na análise de conteúdos aplicados à política e à propaganda. Levantou teorias sobre o poder da mídia de massa. O esquema de Laswell analisa os meios de comunicação partindo da “análise de conteúdo”: uma série de questionamentos relacionados aos meios de comunicação (no caso do livro de Carlan, a moeda na Roma antiga). Alguns exemplos são: “Quem?; Diz o que?; Em qual canal?; Para quem?; Com quais efeitos?”

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De maneira geral, pode-se dizer que a obra de Carlan contribui para o fortalecimento dos estudos numismáticos acadêmicos no Brasil que ainda são considerados, de certa forma, incipientes. Há, entre os historiadores, certo preconceito sobre o uso de moedas como documentos, já que a maioria dos intelectuais da área prefere utilizar a antiga forma de documento: impressa em papel, catalogada e disposta em um arquivo ou biblioteca (CARLAN & FUNARI, 2012: 29). Tal hábito vem se alterando desde os Annales, que contribuíram para uma nova concepção sobre documentos. A moeda – que sofreu suas devidas alterações ao longo da História - faz parte do cotidiano de todos e revela uma forma de produzir, aliada a outros tipos de fontes, uma interpretação do passado distinta: já que a moeda, antiga ou contemporânea, é capaz de nos dizer muito sobre sociedades, suas concepções, economia, arte, política e tecnicismo (maneiras de produção das moedas). O livro de Carlan é uma leitura interessante para aqueles já inseridos ou não na temática romana da numismática, pois aborda conceitos básicos mesmo durante reflexões mais profundas do tema.

Referências bibliográficas CARLAN, Claudio Umpierre. Moeda e poder em Roma: um mundo em transformação, São Paulo, Annablume, 2013. CARLAN, Claudio Umpierre; FUNARI, Pedro Paulo Abreu. Moedas, a Numismática e o estudo da História. 1ª edição, São Paulo, Annablume/Fapemig/Unifal/Unicamp, 2012. CUNNALLY, John. Images of the Illustrious: the numismatic presence in the Renaissance, Princeton, Princeton University Press, 1999. LUDOLF, Dulce. “Que é Trabalhar com Moedas” In: O outro Lado da Moeda. Livro do Seminário Internacional. Rio de Janeiro, Museu Histórico Nacional, p.199-200, 2002. SOUZA, Helena Vieira Leitão de. “Colecionismo na modernidade” In: Simpósio Nacional de História, Fortaleza, 25. Anais do XXV Simpósio Nacional de História – História e Ética. Fortaleza: ANPUH, p. 1-9, 2009.

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