Revista de Arqueologia Pública, 6, 2012

September 5, 2017 | Autor: P. Funari | Categoria: Arqueologia, Patrimonio Cultural, Patrimônio Cultural, Arqueologia Pública
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número 6 | 2012

ARQUEOLOGIA EDITORES Aline Carvalho (LAP/NEPAM/UNICAMP) Pedro Paulo A. Funari (LAP/NEPAM/UNICAMP)

COMISSÃO EDITORIAL Ana Pinon (Universidad Complutense de Madrid, Espanha) Andrés Zarankin (UFMG) Erika Marion Robrahn-González (Documento - Patrimônio Cultural, Arqueologia e Antropologia Ltda) Gilson Rambelli (LAAA / NAR / UFS) Lourdes Dominguez (Oficina del Historiador, Havana, Cuba) Lúcio Menezes Ferreira (UFPel) Nanci Vieira Oliveira (UERJ) Pedro Paulo A. Funari (NEPAM/UNICAMP) Charles Orser (Illinois State University, EUA)

CONSELHO EDITORIAL Bernd Fahmel Bayer (Universidad Nacional Autónoma de México) Gilson Martins (UFMS) José Luiz de Morais (MAE/USP) Laurent Olivier (Université de Paris) Martin Hall (Cape Town University, South Africa) Sian Jones (University of Manchester)

COMISSÃO TÉCNICA Rafael Augusto Nakayama Rufino Victor Henrique da Silva Menezes Marcos Rogério Pereira

PROJETO GRÁFICO Luiza de Carvalho

DIAGRAMAÇÃO Icléia Alves Cury

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Ú

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SUMÁRIO 5

EDITORIAL ARTIGOS

6

O patrimônio arqueológico rupestre no agreste pernambucano: a comunidade em foco Claristella Santos, Viviane Maria Cavalcanti de Castro e Marinete Neves Leite

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Algumas considerações sobre as ideias prévias dos alunos em relação à temática arqueológica e indígena: um estudo de caso em Londrina-PR Leilane Patricia de Lima

30 39

Arqueologia subaquática, arqueologia pública e o Brasil Marina Fontolan

Estrechando vinculos entre “comunidades” en torno al patrimonio arqueológico. Las prácticas extensionistas desde un programa de arqueologia pública Mariela E. Zabala e Mariana Fabra

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“Aqui nao é Ruínas Quilmes, é a Cidade Sagrada Quilmes” – Disputas patrimoniais em torno de um sítio arqueologico no noroeste argentino Frederic Pouget

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“Dê ao garoto esta marshalltown dourada”: a arqueologia na visão de Kent Flannery Martha Helena Loeblein Becker Morales

RESENHA

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HINGLEY, Richard. O Imperialismo romano: novas perspectivas a partir da Bretanha. Trad. Luciano César Garcia Pinto. Organização de Renata Senna Garraffoni, Pedro Paulo A. Funari e Renato Pinto. São Paulo: Annablume, 2010. Rafael Augusto Nakayama Rufino

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ENTREVISTA

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O processo de conservação dos bens culturais no Brasil: reflexões do professor Jaime Mujica Por: Luciana Cristina de Souza

Seção de graduação 92

O gênero e as roupas: a moda infantil na categorização dos corpos Cassia Manso Maschietto, Clarita Maria de Godoy Ferro e Gabriel Carlos Souza Santos

RESENHA

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FABIÃO, Carlos. Uma História da Arqueologia Portuguesa: descoberta da Arte de Côa. Lisboa: CTI, 2011. Thiago do Amaral Biazotto

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das origens à

E D I TO R I A L Dezembro de 2012

É com grande prazer que lançamos o sexto volume da Revista Arqueologia Pública! Optamos por abrir esta edição com um texto sobre Educação Patrimonial. O conceito Educação Patrimonial é bastante plural e as relações entre os arqueólogos e esse campo são diversificadas. Poderíamos afirmar, sem muita hesitação, que este campo de ação traz como desafio as singularidades das comunidades com as quais os arqueólogos, ou o os educadores, interagem. Conscientes da inexistência de fórmulas mágicas para os trabalhos junto às comunidades, escolhemos trazer algumas experiências que vão do agreste pernambucano (“O Patrimônio Arqueológico Rupestre no Agreste Pernambucano: a comunidade em foco”, por Claristella Santos, Viviane Maria Cavalcanti de Castro e Marinete Neves Leita), passando por uma escola municipal em Londrina (“Algumas considerações sobre as ideias prévias dos alunos em relação à temática arqueológica e indígena: um estudo de caso em Londrina-PR”, por Leilane Patricia de Lima), adentrando as reflexões produzidas nos estudos da arqueologia subaquática (“Arqueologia Subaquática, arqueologia pública e o Brasil”, por Marina Fontolan), chegando à Argentina (“Estrechando vinculos entre ‘comunidades’ en torno al patrimonio arqueológico”, por Mariela E. Zabala e Mariana Fabra; e “Aqui não é ruínas quilmes, é a cidade sagrada quilmes” – disputas patrimoniais em torno de um sítio arqueológico no noroeste argentino, por Frederic Pouget). Extrapolando os limites dos Estados Nacionais atuais, almejamos fornecer novos subsídios para pensarmos as nossas práticas. E, como as práticas estão sempre alinhadas às propostas teóricas bastante específicas, encerramos a primeira parte dos artigos da Revista de Arqueologia Pública, voltada para pesquisadores inseridos no universo da pós-graduação, com a reflexão teórica de Martha Helena Loeblein Becker Morales sobre o texto The Golden Marshalltown, escrito por Kent Flannery, arqueólogo norte-americano, no início da década de 1980. A resenha desta edição, escrita por Rafael Augusto Nakayama Rufino, traz ponderações sobre a obra HINGLEY, Richard. O Imperialismo romano: novas perspectivas a partir da Bretanha. São Paulo: Annablume, 2010. E, na seção de entrevista, temos a conversa com o Prof. Jaime Mujica (UFPel) sobre os processos de conservação dos bens culturais no Brasil. Na seção composta por textos de alunos de graduação, apresentamos as primeiras reflexões de Cassia Manso Maschietto, Clarita Maria de Godoy Ferro e Gabriel Carlos Souza Santos sobre as relações entre nós e a cultura material (“O gênero e as roupas: a moda infantil na categorização dos corpos”). Encerramos com a resenha produzida por Thiago do Amaral Biazotto da obra FABIãO, Carlos. uma História da Arqueologia Portuguesa: das origens à descoberta da Arte de Côa. Lisboa: CTI, 2011. Como nas publicações anteriores, nossa proposta é abrir espaços para discussões democráticas e plurais no campo arqueológico. Você, leitor, é mais do que bem vindo para participar destes diálogos.

Boa leitura! Aline Carvalho e Pedro Paulo Funari

Arqueologia Pública | Campinas | n° 6 | 2012

O PAT R I M Ô N I O A R Q U E O L Ó G I C O R U P E S T R E N O AGRESTE PERNAMBUCANO: A COMUNIDADE EM FOCO

AUTORAS Claristella Santos [email protected]

Doutorado em Arqueologia (Faculdade de Letras/UP); Arqueóloga do Núcleo de Estudos Indigenistas (DL/CAC/UFPE).

Viviane Maria Cavalcanti de Castro

Doutorado em Arqueologia (PPGA/UFPE); Professora Adjunto 1 do Departamento de Arqueologia da Universidade Federal de Pernambuco.

[email protected]

Marinete Neves Leite [email protected]

RESUMO

Doutoranda em Arqueologia (PPGA/UFPE).

Esse artigo tem como objetivo apresentar um levantamento preliminar de alguns dados para nortear o projeto “A educação patrimonial no agreste pernambucano: a comunidade em foco, uma parceria que pode dá certo”, que tem como área geopolítica inicial o município do Brejo da Madre de Deus, situado na Mesorregião do Agreste pernambucano. Esse levantamento incluiu uma avaliação prévia do papel do patrimônio arqueológico rupestre para a comunidade local, representada pelos vários segmentos sociais da população brejense. Outro aspecto diz respeito à análise dos impactos antrópicos produzidos sobre alguns sítios arqueológicos rupestres, que foram atingidos por esse tipo de impacto. Essa avaliação embasará ações de educação patrimonial que visem evitar a continuidade de comportamentos lesivos ao patrimônio pré-histórico na área de abrangência do projeto. Palavras-chave: Educação Patrimonial, Patrimônio Rupestre, Brejo da Madre de Deus.

ABSTRACT

This article aims to present a preliminary survey of some data to guide the project “The heritage education in the Agreste region of Pernambuco: a community in focus, a partnership that can works”, to be developed initially in the geopolitical area of the municipality of Brejo da Madre de Deus, located on the Mesoregion of the Agreste of Pernambuco. This survey included a preliminary assessment of the role of prehistoric archaeological heritage to the local community, represented by the various social segments of the local population. Another aspect concerns the analysis of human impacts produced on some archaeological rock art sites that were affeted by this kind of impact. This evaluation actions form the basis of heritage education aimed at preventing the continuity of behavior detrimental to the prehistoric heritage in the area covered by the project. Keywords: Heritage Education, Heritage Rock Art, Brejo da Madre de Deus.

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INTRODUÇÃO

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A problemática da preservação do patrimônio rupestre na região do Brejo da Madre de Deus, situado na Mesorregião do Agreste pernambucano, diz respeito às ações degradantes tanto do ponto de vista antrópico como natural. Alguns sítios rupestres na área em estudo têm sido alvo de ações humanas lesivas, especialmente aquelas voltadas para fins de subsistência da comunidade local, através da exploração do granito, favorecendo a destruição de sítios arqueológicos e do seu entorno. Diferentemente dos casos de pilhagem ou saques, que resultaram na dilapidação de sítios arqueológicos, tal como os de Cartagena das Índias, na Colômbia, descrito por Andrade Lima (2007), há em comum a necessidade de sobrevivência, bem como o potencial de mudança de comportamento por meio da educação patrimonial. Os sítios arqueológicos no Brejo da Madre de Deus estão alijados de um caráter identitário, elemento que deveria configurar um processo natural, mas que, contrariamente, só tem sido despertado a partir do desenvolvimento de um trabalho de educação patrimonial, posto a partir da necessidade não de se resgatar uma memória, mas de contextualizar e mostrar a importância de um patrimônio que, apesar de distante do nosso passado e das nossas realidades atuais, pode servir de entreposto para uma investida com retorno social. Nesse contexto, é importante explicitar que tal retorno diz respeito não apenas à ciência, mas pressupõe que o trabalho de educação patrimonial poderá também redundar, num futuro não muito distante, na participação comunitária em termos de um projeto de desenvolvimento sustentável voltado para o turismo. Paralelamente a isso, prevêem-se, ainda, diversas ações que possam resultar na preservação e na valorização dos bens arqueológicos e, considerando-se as potencialidades locais, a educação patrimonial no Brejo da Madre de Deus deve caminhar ao lado da educação ambiental e considerar outros bens potenciais do município. Assim, “a educação patrimonial e ambiental deve ser conduzida de modo a contemplar a pesquisa, o registro, a exploração das potencialidades dos bens culturais e naturais no campo da memória, das raízes culturais e da valorização da diversidade” (PELEGRINI, 2006: 127). Diante dessa situação, que não é exclusiva dos municípios nordestinos, iniciamos um programa de ações educativas voltadas a atingir não apenas um segmento da sociedade brejense, como os professores e alunos, mas igualmente um maior número de segmentos sociais, como membros da administração pública do município, caçadores, trabalhadores rurais, proprietários de terra onde há sítios arqueológicos, líderes comunitários, guias locais, motoristas de transporte público alternativo, artesãos e, dentre estes, os escultores em granito. Esses segmentos sociais supracitados encontram-se diretamente relacionados com o patrimônio rupestre mesmo sem ter uma ligação de identidade e de não o reconhecer como parte de sua cultura. Desse modo, as ações educativas a serem ampliadas visam dois objetivos principais: (1) assinalar as dificuldades consideradas como limitantes à preservação do patrimônio arqueológico pré-histórico, especificando a sua natureza, e (2) ampliar as ações de educação patrimonial, a fim de se obter como resultado a participação da comunidade brejense na preservação dos sítios arqueológicos pré-históricos da região.

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1 Localização A área pesquisada abrange especialmente o município de Brejo da Madre de Deus, além de áreas fronteiriças pertencentes aos municípios de Santa Cruz do Capibaribe, Taquaritinga do Norte, Belo Jardim, Tacaimbó e São Caitano, Caruaru, Toritama e Jataúba (Figura 1).

Fig.1: Carta topográfica da área da pesquisa, com a localização dos sítios arqueológicos.Fonte: SANTOS, C. A., 2010.

2 A problemática da preser vação do patrimônio rupestre No Brasil, os sítios arqueológicos sempre foram objeto de curiosidade, pois, de um modo geral, exprimem um interesse não só pelo passado humano (uma vez consciente da relação de pertença ao passado), mas pelo incógnito, pelo desejo do leigo de interpretar ou de tentar “desvendar” um “tesouro” perdido. Os sítios rupestres podem ser completamente ignorados ou dar margem a muitas interpretações, sobretudo quando estão associados a enterramentos. Particularmente no Nordeste do Brasil há, também, uma antiga lenda a respeito da botija, cuja mística ainda prevalece em alguns lugares. Dessa forma, a presença de arqueólogos em cavernas ou abrigos, de um modo geral, desperta a curiosidade da população local, a qual logo a associa a uma possível busca de botija, até que uma explicação convincente seja dada. Essa mística tem levado à destruição parcial ou até mesmo total da estratigrafia de muitos sítios, em decorrência da realização de covas.

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Outra mística refere-se à busca do “carneiro de ouro”. A esse respeito resgatamos um exemplo de um sítio arqueológico no município de Buíque, agreste pernambucano, com gravuras rupestres cuja base sedimentar, estratigráfica da furna, foi dinamitada visando à busca de um “carneiro de ouro”. Assim, restou apenas um grande painel rupestre, pouco afetado nessa investida, e o contexto arqueológico estratigráfico, no âmbito da furna, ao qual o painel de gravuras podia estar relacionado, desapareceu com a destruição das camadas estratigráficas do sítio. No Brejo da Madre de Deus a mística da botija também existe, inclusive as pinturas rupestres são interpretadas por um membro da comunidade como uma representação do local onde a botija pode ser encontrada. De modo semelhante, as pinturas rupestres também são vistas como uma manifestação linguística, ou seja, “letras” que compõem um significado, não podendo ser lidas pela população atual. Esses letreiros, os painéis rupestres, são desprovidos de significado identitário enquanto patrimônio que precisa ser preservado. Os locais onde há pinturas não amedrontam, porém, por outro lado, não lhes é dada importância na perspectiva patrimonial, mas sim no sentido do senso comum; daí o universo “imaginário” circunscrito nas ideias, na fala e/ou no discurso da comunidade em geral, conforme os exemplos citados (botija e letreiros). Nessa perspectiva, há muitos que até conhecem as pinturas desde a infância, mas não lhes conferem qualquer valor de preservação, principalmente uma conotação patrimonial. Foi dessa maneira, então, que várias informações sobre a localização de “letreiros” foram obtidas e que, em várias conversas informais e longas, nós nos posicionamos perante a população local sobre a importância dos mesmos e da necessidade de sua preservação. 2.1 A preser vação do patrimônio rupestre: memória e reconhecimento Manifestações de destruição parcial ou total de sítios rupestres recaem na questão da identidade. Esta, em geral, surge de forma natural, em relação a algo ou alguém, revelando, espontaneamente, uma expressão de reconhecimento (MENESES, 1984). Em A Memória Coletiva (1990), Halbwachs defende que a memória é formada pelas relações com os diversos grupos com os quais convivemos em nossa comunidade. A memória se apoia na história vivida pelos indivíduos e as lembranças e ideias são geradas no interior dos grupos. Em vários momentos, mesmo que o indivíduo esteja fisicamente só, suas reflexões são coletivas, deslocam-se de um grupo para outro; os indivíduos só lembram pela interação com os outros. Desse modo, para este autor, os outros nos ajudam a lembrar, pois têm lembranças em comum. O indivíduo só tem capacidade de lembrar quando se coloca no ponto de vista de um ou mais grupos com os quais convive. A memória coletiva mantém sua duração no fato de ter como suporte um conjunto de memórias individuais. Halbwachs afirma que “[...] cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva, que este ponto de vista muda conforme o lugar que ali eu ocupo, e que este lugar mesmo muda segundo as relações que mantenho com outros meios” (1990: 51).

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Contudo, a memória é uma representação seletiva do passado que é de todos os indivíduos inseridos em seus diversos grupos de convivência. Sendo seletiva, os indivíduos só lembram daquilo que ainda está ativo em suas lembranças e do que compartilharam comumente com outros membros do grupo. Desta maneira, [...] à medida que o cidadão se percebe como parte integrante do seu entorno, tende a elevar sua auto-estima e a valorizar a sua identidade cultural. Essa experiência permite que esse cidadão se torne um agente fundamental da preservação do patrimônio em toda sua dimensão. O conhecimento adquirido e a apropriação dos bens culturais por parte da comunidade constituem fatores indispensáveis no processo de conservação integral ou preservação sustentável do patrimônio, pois fortalece os sentimentos de identidade e pertencimento da população residente, e ainda, estimula a luta pelos seus direitos, bem como o próprio exercício da cidadania (PELEGRINI, 2006: 127).

De fato, há uma forte relação entre patrimônio e identidade, a qual também está associada à cidadania, uma vez que fortalece os laços do cidadão (COPELAND, 2009). O fortalecimento desses laços tem um papel preponderante na valorização e preservação do patrimônio. Assim, não há dúvida de que o patrimônio arqueológico pode ser elemento de identidade, mas, na maioria das situações, os sítios arqueológicos não estão ativos nas lembranças das comunidades. Em geral, existe uma falta de identificação com o patrimônio arqueológico. Na opinião de Bradford (1998), o cidadão brasileiro não se reconhece e não reconhece este patrimônio como seu, ou como parte da sua história; não há, segundo este autor, nenhuma identificação, e isto é resultado do fato de que o povo brasileiro ignora as suas raízes. Tal afirmação, no entanto, deve ser esclarecida através da descoberta da história do lugar, de modo a se construir um conhecimento do processo que pode ter contribuído fortemente para o distanciamento da população local de suas origens indígenas na região.

3 A comunidade em foco: metodologia do trabalho de campo 3.1 As entrevistas

1 Há na região do Brejo da Madre de Deus a prática da caça de subsistência, especialmente voltada para o consumo de um pequeno roedor, que vive em locais rochosos ou pedregosos, o mocó (Kerodon rupestris). Os caçadores desse roedor costumam frequentar ou se abrigar em sítios rupestres, fazendo pequenas fogueiras e deixando restos de lixo.

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No que concerne à realização das entrevistas, optamos por uma amostragem qualitativa. Para as coletas e composição de um banco de dados, foram organizados protocolos de entrevistas específicas para todos os segmentos sociais que julgamos expressivos, tais como: a administração pública do município; o professorado e estudantes; os caçadores1; os trabalhadores rurais; os proprietários de terra; os líderes comunitários; os guias locais; os artesãos; os escultores. As entrevistas não seguiram uma sequência de perguntas/respostas em forma de questionário, mas um roteiro definido, flexível, e, em função das respostas e do que mais podia ser explorado em cada entrevistado, fez-se uso, inclusive, de uma linguagem acessível, a qual estava atrelada,

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entre outros fatores, ao grau de escolaridade do entrevistado; o uso dessa linguagem mais coloquial contribuiu para fazê-lo compreender o que se estava buscando, havendo, contudo, a preocupação em não induzir a uma resposta. Consideramos, ainda, a categoria do entrevistado, pois nem sempre era possível usar todos os itens do roteiro e alguns outros elementos surgiram espontaneamente ao longo de algumas entrevistas (SANTOS, 2006). É nossa intenção aprofundar este fio condutor da pesquisa em um projeto futuro, de cunho interdisciplinar, cujos resultados têm se mostrado de fundamental importância para um trabalho de educação patrimonial. a Protocolo de entrevista: exemplo n n

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Entrevistador: Por que as pinturas são chamadas de letreiros? Entrevistado: [...] a gente chama de letra né , acha que é uma letra, aquilo... foi escrito alguma coisa ali, [...] e dizem, então, o índio chegava ali, ele tinha uma ideia, os que não sabiam, suponho que tenha sido isso. Entrevistador: Mas quando o senhor era pequeno, se comentava que as pinturas eram feitas pelos índios? Entrevistado: É... sempre achavam que sim, isso era...era da época de índios. Poderia num sê mas é..., porque o índio é..., na minha concepção, foram um dos habitantes daqui da nossa região, né? Teve o índio, depois teve escravo.

3.2 O registro dos sítios Os sítios registrados foram avaliados individualmente, in locu, possibilitando perceber e descrever os principais agentes que vêm contribuindo para sua degradação, tanto em nível antrópico como natural, constituindo elementos suficientes para se refletir sobre o desenvolvimento de uma estratégia de preservação e gestão do patrimônio arqueológico local. Também foi realizado um amplo documentário fílmico e fotográfico de cada sítio. Cinquenta e nove (59) sítios arqueológicos foram visitados e, com exceção de um único com gravuras e outro apenas com sepultamentos, todos os demais são sítios rupestres.

4 - Re s u l t a d o s n

Fatores Impactantes Identificados

O patrimônio rupestre da área em estudo tem sido alvo de uma série de impactos naturais, dentre os quais destacamos: erosão eólica e pluvial; fixação de ninhos de vespas e galerias de cupins, desplacamento rochoso decorrente da amplitude térmica; desenvolvimento de fungos, liquens, plantas grimpantes e outros agentes biológicos (SANTOS et al., 2007). Esses agentes degradantes naturais são comuns em sítios rupestres e seus efeitos têm sido largamente estudados (LAGE et al., 2004; LAGE, 2007). Além dos impactos naturais, ressaltamos a degradação do patrimônio rupestre provocada pela ação humana, a exemplo da exploração da rocha granítica para fins comerciais, do uso do suporte rochoso para produção plástica de esculturas (Fotos de 1 a 7) e também da utilização de abrigos e furnas

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por agricultores e caçadores. Estes, por sua vez, contribuem negativamente para o aumento da amplitude térmica quando realizam fogueiras, que de igual modo impactam os painéis através da produção de fuligem, a qual se fixa sobre as pinturas rupestres. Registramos também riscos recentes sobre as pinturas pré-históricas, como restos de construção em alvenaria, pintura com tinta a óleo ou similar, etc. n

Relação Patrimônio x Identidade

Uma avaliação da história da ocupação colonial no Agreste de Pernambuco nos permitiu constatar que a desagregação dos grupos indígenas que ocupavam a região contribuiu fortemente para o aniquilamento quase que absoluto das raízes ameríndias, restando apenas, no Brejo da Madre de Deus, referências evasivas aos primeiros ocupantes da região. O resultado das entrevistas também nos forneceu subsídios para a conclusão de que inexiste para a população local uma identificação com os sítios arqueológicos pré-históricos. Uma vez inexistente, até onde pudemos averiguar, não há retroalimentação no sentido de resguardar, de preservar o patrimônio arqueológico précolonial (SANTOS, 2010). Portanto, “o que se busca é a tomada da consciência das comunidades sobre a relevância da geração, valorização e resguardo de patrimônios culturais locais” (SABALLA, 2007: 23). Deste modo, concluímos que a ausência deste vínculo identitário com as materialidades pré-históricas, no caso, os sítios arqueológicos, conduz a uma omissão involuntária no que respeita à preservação. Os suportes das pinturas ou gravuras rupestres, de um modo geral, são vistos como um produto econômico, enquanto matéria-prima a ser transformada. Poucos são os que vislumbram o patrimônio arqueológico pré-histórico local como possibilidade de exploração turística. Assim, tomando por base a ligação entre patrimônio e identidade (BEZERRA DE MENEZES, 1984), pudemos apreciar de perto, a partir das entrevistas ao longo do trabalho de campo, o quanto essa relação, no município do Brejo da Madre de Deus, encontra-se notadamente distanciada e, desse modo, o caminho a ser trilhado para que a relação entre patrimônio X identidade se desenvolva deverá ser realmente o da educação patrimonial. Tal conclusão nos faz avançar num raciocínio no sentido de que, uma vez desenvolvido um processo de educação patrimonial, espera-se que a população local assimile a importância do patrimônio arqueológico pré-histórico, tornando-se, deste modo, multiplicadora de uma atitude de valorização e preservação. Contudo, a realidade não é assim. As comunidades só podem entender e respeitar os bens culturais de seu entorno de acordo com a sua história e com as relações que estabeleceram com o passado. Nessa perspectiva, as ações de educação patrimonial são instrumentos que proporcionam um novo olhar para a realidade circundante. [...] la sociedad es siempre más vieja que esos individuos, de modo que el aprendizaje se vuelve necesariamente hacia el pasado. Propone una educación en la cual se busque no sólo transmitir un saber, sino promover un pensamiento propio, un pensar que se produzca desde la existencia. Es decir que la identidad de una persona sólo se puede entender como relato de su historia, como un proceso de re-apropiación del pasado (CONFORTI, 2010: 110).

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Evidentemente se espera que a educação patrimonial possa conduzir a uma ponderação no sentido de criar nos indivíduos a vontade de conhecer e proteger o patrimônio. Com o seu lugar instituído no âmbito da Arqueologia Pública, a expressão educação patrimonial revela em si a necessidade de ser gerado um conhecimento para um determinado público ou comunidade a fim de que ela possa conhecer, respeitar e valorizar o seu patrimônio. Ou seja, a noção de educação patrimonial, e aqui em particular do patrimônio arqueológico pré-histórico, parte do princípio de que existe um desconhecimento do valor desse patrimônio, sendo necessário, portanto, ensinar que esse bem é significativo, é provido de valor e precisa ser preservado. A necessidade da educação envolve vários fatores, que devem ser analisados de forma integrada. Dentre esses fatores, que devem constituir as bases de um amplo diagnóstico no qual se verifica a necessidade de educação patrimonial, entendemos ser imprescindível a ação do arqueólogo junto à população local, contribuindo, assim, para que esta possa estar mais receptiva às ações educativas a serem empreendidas. É importante ressaltar, porém, que este processo não funciona quando o valor de pertença é atribuído por outrem; é preciso criar um vínculo afetivo com este patrimônio. Portanto, só a partir desse processo de percepção e de apropriação afetiva em relação aos bens culturais é que os moradores poderão se tornar agentes da preservação, pois já não se sentirão separados do patrimônio, mas sim a ele integrados, com sentimento de pertença e de identidade. O Patrimônio rupestre do Brejo da Madre de Deus e municípios limítrofes, que têm sido alvo de ações predatórias, revelam a inexistência do sentimento de pertença e de identidade em relação a si mesmos. Dessa forma, é a educação patrimonial, com base no envolvimento de todos os segmentos representativos das comunidades locais, que surge como condição primordial capaz de resultar no reconhecimento e na valorização do patrimônio rupestre da região do Brejo da Madre de Deus.

Foto 1: Área do ateliê próxima aos sítios Lagartixa I e II, com uma visão da Vênus de Brassempouy em processo de elaboração. Fonte: Claristella Santos.

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Fotos 2 e 3 – Detalhe das pinturas. Fonte: Claristella Santos. Tratamento computacional: Kátia Oliveira.

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Foto 4: Exploração de granito na Pedra do Brás. Fonte: Claristella Santos. Tratamento computacional: Kátia Oliveira.

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q Foto 5: Bloco de granito tombado para a elaboração de esculturas (setas pretas). Parte do bloco com pintura rupestre, que foi repartido (seta vermelha). Fonte: Claristella Santos.

Foto 7: Escultura em processo de elaboração. Fonte: Claristella A. Santos.

Foto 6: Detalhe da pintura. Fonte: Claristella A. Santos. Tratamento computacional: Kátia Oliveira.

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Re f e r ê n c i a s b i b l i o g r á f i c a s ANDRADE LIMA, T. Sobrevivência: a face sensível do tráfico de bens arqueológicos. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE GESTÃO DO PATRIMÔNIO ARQUEOLÓGICO AMAZÔNICO, 1, 2007, Manaus. 70 anos do IPHAN, 19372007. Manaus: Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Superintendência Regional, 2007. BRADFORD, R. B. Arqueologia para quem? Monografia (TCC) Faculdade de Arqueologia, Universidade de Estácio de Sá, Rio de Janeiro, 1998. CONFORTI, M. E. Educación no formal y patrimonio arqueológico. Su articulación y conceptualización. Intersecciones en Antropología. Argentina, n°11, p. 103-114. 2010. COPELAND, T. Archaeological Heritage Education: Citizenship from the Ground Up. Disponível em: http://ddd.uab.cat/pub/tda/11349263n15p9.pdf. Acesso em: 13/09/2012. HALBWACHS, M. A memória coletiva. Tradução de Laurent Leon Schaffter. São Paulo: Vértice, 1990. LAGE, M. C. S. M. Proteção ao material arqueológico e etnográfico: A conservação de sítios de arte rupestre. Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Rio de Janeiro, n. 33, p. 9-30. 2007. LAGE, M. C. S. M.; BORGES, J. F.; ROCHA JÚNIOR, S. Sítios de registros rupestres: monitoramento e conservação. Mneme, Revista de Humanidades, vol. 6, n°13, p. 28-51, dez.2004/jan.2005. MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Identidade cultural e arqueologia. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Rio de Janeiro, n° 20, p. 33-36. 1984. PELEGRINI. S. C. A. Cultura e natureza: os desafios das práticas preservacionistas na esfera do patrimônio cultural e ambiental. Revista Brasileira de História. São Paulo, vol. 26, n° 51, p. 115-140. 2006. SABALLA, V. A. Educação Patrimonial: “Lugares de Memória”. Revista MOUSEION, Canoas, vol. 1, p. 23-25, jun. 2007. SANTOS, C. A. dos. O patrimônio arqueológico pré-histórico do Agreste pernambucano: fronteiras de valorização. Relatório de pesquisa, nível doutorado, apresentado ao CNPq. 166 p. Brasília, 2006. SANTOS, C. A. et al. A preservação de sítios rupestres no Agreste de Pernambuco (Brasil): uma análise petrológica. In: CONGRESSO ARGENTINO, 2; CONGRESSO LATINOAMERICANO DE ARQUEOLOGIA, 1., 2007, Buenos Aires. Buenos Aires: Talleres Gráficos Centro Atómico Constituyentes, Comisíon Nacional de Energía Atómica, p. 58-59. 2007. SANTOS, C. A. dos. O Patrimônio arqueológico pré-histórico do Agreste de Pernambucano: fronteiras de valorização. 2010. 328f. Tese (Doutorado em Arqueologia) Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Porto, 2010.

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ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE AS IDEIAS PRÉVIAS DOS A L U N O S E M R E L A Ç Ã O À T E M ÁT I C A A R Q U E O L Ó G I C A E I N D Í G E N A : UM ESTUDO DE CASO EM LONDRINA-PR AUTORA Leilane Patricia de Lima [email protected]

RESUMO

Doutoranda em Arqueologia no Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo, sob orientação do professor Dr. Pedro Paulo Abreu Funari. Bolsista CAPES.

As reflexões aqui apresentadas são frutos de uma experiência educativa desenvolvida com alunos do quinto ano do ensino fundamental em uma escola municipal de Londrina/PR. A formação deste município deu-se a partir de um projeto de colonização estrangeira, articulado pela Companhia de Terras Norte do Paraná, que ainda hoje gera exclusão e/ou negação da presença indígena. Assim, como elaborar, neste contexto, uma proposta educativa de sensibilização sobre esta presença, uma vez que a geração contemplada é descendente, direta ou indiretamente, dos colonizadores, exaltados como “pioneiros”? A partir disso, relata-se o primeiro passo do caminho metodológico percorrido: a investigação e a análise das ideias prévias dos alunos em relação à temática arqueológica e indígena. Palavras chave: Arqueologia Pública, Educação, Ideias Prévias.

ABSTRACT

The ideas presented here are the result of an educational experience developed with fifth graders of elementary school in a public school in Londrina / PR. The birth of this city was the result of a project from foreign colonization, articulated by Companhia de Terras Norte do Paraná, which still generates exclusion and/or denial of indigenous presence. So how to make in this context, an educational proposal on this presence, since the generation is descending, directly or indirectly, of the colonizers, exalted as “pioneers”? From this, we report the first step of the methodological approach: research and analysis of previous ideas of students in respect to archaeological and indigenous theme. Keywords: Public Archaeology, Education, Previous Ideas.

I N T R O D U Ç Ã O A Arqueologia Pública é uma área que está em desenvolvimento e

1 Conceber a Arqueologia como ciência aplicada implica a percepção dos outros sujeitos do universo patrimonial e o reconhecimento do uso do passado como um caminho para o fortalecimento de comunidades com as quais lidamos durante nossas pesquisas (SILVEIRA; BEZERRA, 2007).

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aperfeiçoamento sobre suas ações. Muitas são as publicações, nacionais e internacionais, que discutem as atividades públicas da Arqueologia. No Brasil, estes debates têm alcançado novos caminhos e perspectivas e isto se deve, especialmente, à crescente inserção da Arqueologia no campo da ciência aplicada1 (FUNARI; ROBRAHN-GONZÁLEZ, 2008: 3). Apesar de o termo “Arqueologia Pública” ser de uso recente no país, é preciso considerar os esforços precursores de aproximar o conhecimento arqueológico da sociedade realizados, já na década de 1960, por Paulo Duarte, Castro Faria e Loureiro Fernandes, que atuaram em favor da federalização da proteção do patrimônio arqueológico e da divulgação do conhecimento produzido (CARNEIRO, 2009:105).

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Na década de 1980, as exigências legais de proteção do patrimônio arqueológico brasileiro, estabelecidas de maneira mais incisiva a partir da legislação vinculada à Política Nacional de Meio Ambiente (CONAMA 01/86, Portaria SPHAN 007/88 e Portarias IPHAN 230/02 e 28/03), resultaram em uma retomada de preocupações preservacionistas e de divulgação do conhecimento científico (CARNEIRO, 2009: 105). Desde então, há uma multiplicação de projetos e de publicações no país que apresentam discussões sobre os aspectos públicos da Arqueologia e que confirmam um momento favorável para novos debates. Estas discussões apontam que ainda não há um consenso sobre a Arqueologia Pública, pois quando se alcança a questão da aproximação com a sociedade, especialmente via ações educacionais, não há apenas um campo de atuação ou um plano de ação pré-estabelecido. Ainda, é importante esclarecer que se convencionou no Brasil tratar as ações educativas de Arqueologia como ações de Educação Patrimonial. No entanto, entende-se aqui a Arqueologia Pública e a Educação Patrimonial como campos de conhecimentos distintos, que apresentam suas interconexões no país via legislação, especialmente depois da implantação da portaria 230/02 (CARNEIRO, 2009: 10). A meu ver, a Arqueologia Pública é uma área de pesquisa dedicada a pensar tanto as relações da Arqueologia com os diferentes sujeitos do universo patrimonial quanto a dimensão social e pública do conhecimento arqueológico. E, independentemente da denominação “Pública”, esta é uma tarefa que pertence à Arqueologia como um todo, uma vez que esta ciência tem como objeto de estudo o patrimônio arqueológico, gerenciado como bem da União, cujo conhecimento produzido é de interesse comum do povo brasileiro. De outro lado, a Educação Patrimonial foi instituída como uma metodologia, surgida no contexto de museus, para favorecer as relações entre o público escolar e o patrimônio cultural. Entretanto, nos últimos vinte e cinco anos, a Educação Patrimonial consagrou-se no Brasil não como metodologia, mas como campo de trabalho, reflexão e ação (CHAGAS, 2004: 144), que funciona independentemente da Arqueologia e que recebe contribuições de áreas diversas que lidam com o patrimônio cultural. Dito isto, o presente artigo não discute a Educação Patrimonial, mas como a Arqueologia e o conhecimento científico por ela produzido podem ser importantes instrumentos para promover uma educação mais inclusiva e crítica no ambiente formal de ensino, conforme o estudo de caso apresentado a seguir.

A formação histórica de Londrina O município de Londrina localiza-se no chamado Norte Novo do Paraná, cuja ocupação definitiva iniciou-se em 1925. A partir desse momento, a situação dos indígenas que por ali viviam (Kaigang, Guarani e Xetá) tornou-se cada vez mais preocupante, até ficarem nas reservas (MOTA, 2005: 69). Nas palavras desse autor: No caso paranaense, o norte, oeste e sudoeste foram considerados terras devolutas pertencentes ao Estado, que as cedeu [...] para as grandes

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companhias colonizadoras. Estas companhias promoveram a ocupação da região em um ritmo acelerado [...]; em menos de trinta anos tudo estava desmatado e ocupado com vilas, cidades e grandes plantações de café (2005: 69).

2 O plano inicial desta Companhia de Colonização era vender as terras do norte do Paraná aos curdos do Iraque para a produção de algodão, proposta advinda de uma visita de economistas ingleses em 1924. No entanto, uma forte campanha contrária a essa imigração foi desencadeada pela imprensa curitibana e carioca. Com o fracasso da proposta inglesa, paulistas, mineiros, nordestinos (da Bahia, de Pernambuco etc.) e outros estrangeiros, tais como japoneses, italianos, alemães, espanhóis e poloneses, foram os maiores beneficiados com a aquisição das terras no norte paranaense (WACHOWICZ, 2001).

3 Atualmente, a região norte do Paraná conta com cinco reservas: Laranjinha e Pinhalzinho, habitadas por grupos indígenas Guarani; Apucaraninha e Barão de Antonina, por Kaingang; e São Jerônimo da Serra, onde vivem Guarani, Kaingang e Xetá. Ressalta-se que a reserva do Apucaraninha, que conta com o maior número de Kaingang no norte do Paraná, está sob jurisdição da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), mas com administração regional de Londrina.

4 Sobre o assunto, consultar (NOELLI, 1999-2000); (RIBEIRO, 2000); (PARELLADA, 2005), entre outros.

5 Informação concedida durante a palestra “Missões Jesuíticas do Guairá – 1610-1631”, ocorrida no dia 03/08/2011, no município de Cambé/PR.

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Na região de Londrina, a colonização das terras ficou sob a tutela da Companhia de Terras Norte do Paraná (CTNP), subsidiária da firma inglesa Paraná Plantations, que, para chamar a atenção dos compradores2, passou a revender as terras concedidas pelo estado como pequenas e médias propriedades. Também para atraí-los, a CTNP investiu no planejamento urbanístico da cidade e nas inúmeras propagandas veiculadas na época. O discurso mais comum era o de uma terra vazia, desabitada ou devoluta, sinônimo de futuro sucesso e realização (LIMA; ZARPELÃO, 2008: 207). A ideia de “vazio demográfico” foi reforçada pela produção acadêmica entre as décadas de 1930 e 1960, pois o norte do estado foi alvo de visitas, excursões e passeios científicos. Os relatórios dessas visitas foram publicados por geógrafos, sociólogos e historiadores que reforçaram a questão de terras vazias e desabitadas, conforme aponta Mota (2009: 27). Londrina, então, surge no ano de 1934, enquadrada neste cenário de “vazio demográfico” e de desenvolvimento por conta do café. A elite da cidade amparou-se nas ideias de progresso e Eldorado Cafeeiro, dando a sensação de grande êxito no futuro para aqueles que se aventurassem por aquelas terras. Tais ideias ensejaram a crença na fertilidade da terra, no enriquecimento público e privado, no fácil acesso às propriedades agrícolas e na riqueza possibilitada pela agricultura (LIMA; ZARPELÃO, 2008: 213). No que diz respeito à presença indígena, estudos históricos apontam que o projeto colonizador da região foi violento e contou com a resistência dos índios que, de igual modo, revelava-se hostil. Segundo Ramos e Alves (2008: 183), a CTNP confirmou esta presença e classificou a retirada e o deslocamento destes grupos para reservas3 como “limpeza de área”. Mas poucas são as fontes que relatam as lutas entre os “pioneiros” e os indígenas da região. Nas palavras dos autores, A omissão da presença indígena na região, bem como a omissão de seus conflitos, quer pela propaganda da CTNP, quer pela literatura da época, pretendia criar a aparência de um lugar pacífico, de uma “Terra da Promissão”, o paraíso prometido da fertilidade [...] (RAMOS; ALVES, 2008: 184).

A Arqueologia também contribui para a afirmação desta presença, pois as pesquisas indicam que o Paraná tem sido ocupado por diferentes populações humanas há mais de 12.000 anos4. Pelos estudos arqueológicos foi possível evidenciar a presença dos caçadores-coletores (as chamadas Tradição Humaitá e Umbu), dos pescadores-coletores no litoral e das populações indígenas históricas (Guarani, Kaingang, Xokleng e Xetá) (MOTA, 2005: 113-117). Na região metropolitana de Londrina, em específico, recentemente foi identificada a missão jesuítica San Joseph, que funcionou entre 1621-1625, pela arqueóloga Cláudia Inês Parellada, do Museu Paranaense5.

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Londrina e os esforços educativos em prol d o Pa t r i m ô n i o C u l t u r a l Esta breve discussão sobre a ocupação histórica de Londrina pode ser relacionada com os esforços educativos em prol da temática de seu patrimônio cultural. Desde 2005, a partir de ações promovidas pela Secretaria Municipal da Cultura, é desenvolvido o projeto “Educação Patrimonial”. Arquitetos, urbanistas, historiadores, profissionais de turismo etc., ofereceram cursos de capacitação para professores da rede pública, passeios monitorados e produziram materiais didáticos que foram distribuídos gratuitamente para as escolas. No ano de 2007, este projeto estendeu sua atuação para o público escolar e começou a desenvolver oficinas nas escolas da rede pública, com o objetivo de promover reflexões sobre o patrimônio cultural da cidade (MAGALHÃES et al., 2009: 66). Dentre as atividades oferecidas aos alunos, é proposta uma reflexão sobre o conceito de herói, como um elemento importante para a constituição identitária de um grupo. E, ao tratar da ocupação da região, o papel do pioneiro ganha destaque como o “herói” que, juntamente com a CTNP, promoveu o sucesso da ocupação (MAGALHÃES et al., 2009: 72). Nessas ações propostas, a presença indígena não foi tratada. Além deste fato, tive a oportunidade de colaborar em inúmeras atividades no Museu Histórico da cidade. Nas monitorias, não raras vezes ao questionar os visitantes (alunos do ensino fundamental, em sua maioria) sobre os primeiros habitantes da região, as respostas foram: “os ingleses”, “os europeus”, “os pioneiros”. Poucos arriscaram “os indígenas” e outros preferiram o silêncio. Diante de tal cenário, a Arqueologia tratada no contexto escolar pode servir como um importante instrumento para uma educação mais inclusiva e preparada para lidar com a temática indígena, contribuindo, assim, para a valorização da diversidade cultural e para a preservação do patrimônio arqueológico indígena local e regional.

O primeiro passo da ação arqueológica educativa: a investigação das ideias prévias dos alunos Como falar de Arqueologia e de presença indígena em um contexto onde a formação histórica da cidade pode ser um importante entrave? O que os alunos pensam sobre a Arqueologia e a presença indígena? Eles estão realmente alheios a esta presença ou conseguem identificar o indígena na paisagem londrinense e relacioná-lo com o passado? E mais, conseguem reconhecer relações com os indígenas na sua história familiar? Estes questionamentos levaram-me a definir os passos da ação arqueológica educativa: investigar e analisar as ideias prévias dos alunos em relação à temática arqueológica e indígena, consultando, igualmente, a disposição em aprender sobre estes assuntos. Em seguida, elaborar a proposta de intervenção, articulada com os documentos orientadores de Educação no Paraná e com o plano pedagógico da escola e avaliar os resultados.

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6 Entenda-se por conhecimento prévio o que o aluno já sabe (conceitos, símbolos, princípios, fatos, ideias, imagens) sobre determinada proposta de ensino (ALEGRO, 2008: 24).

7 O mesmo não ocorre quando há uma aprendizagem mecânica, concebida como aprendizagem de novas informações com pouca ou nenhuma associação a conceitos relevantes existentes na estrutura cognitiva (ALEGRO, 2008: 25). Neste tipo de aprendizagem, muito estimulada na escola, novas informações são memorizadas pelos alunos, sem nenhuma reflexão e interação com as informações de sua estrutura cognitiva (MOREIRA, 2000: 4).

8 A investigação em Educação Histórica tem se desenvolvido em vários países, como Inglaterra, Estados Unidos e Canadá. Outros seguem na mesma esteira, como Portugal, Espanha e Brasil (BARCA, 2001: 13 e GEVAERD, 2009: 34).

9 Os estudos qualitativos realizados na década de 1980, na Itália, por Antônio Calvani, a partir da análise das ideias dos alunos, de perguntas e de observação, mostram um resultado contrário. Em sua pesquisa empírica, Calvani demonstrou que crianças de 6 anos possuem um horizonte histórico infantil e chegam à escola primária com esquemas mentais que dotam certo “sentido” à História. Este autor assegura que estes alu-

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No universo da Educação, a investigação sobre as ideias prévias dos alunos é uma tendência indicada pela Psicologia Cognitiva desde a década de 1960, por David Ausubel, quando deu início aos estudos sobre aprendizagem significativa. Este autor pontuava que somente pode-se aprender a partir daquilo que já se conhece, isto é, se o objetivo é promover uma aprendizagem significativa é preciso averiguar o conhecimento prévio6 e ensinar de acordo (AUSUBEL et al., 1980). A aprendizagem significativa caracteriza-se pela interação entre o novo conhecimento e o conhecimento prévio. Neste processo de interação, o novo conhecimento adquire significados para o aprendiz e o conhecimento prévio fica mais rico, mais elaborado, em termos de significado, e adquire mais estabilidade7 (MOREIRA, 2000: 3). Ademais, a aprendizagem significativa não está condicionada à idade, exceto em crianças recém-nascidas, nem à prontidão, mas ao conhecimento prévio de que o aluno dispõe, à predisposição para aprender significativamente, à potencialidade do material de aprendizagem e às estratégias metodológicas aplicadas pelo professor (ALEGRO, 2008: 32). Transpondo a teoria da aprendizagem significativa, da segunda metade da década de 1960, para o ensino de História, Alegro (2008: 14) afirma que aquela é praticamente desconhecida no espaço para a pesquisa sobre ensino e aprendizagem desta disciplina no Brasil. O contrário ocorre nas áreas de Física, Biologia e Linguística, onde prosperam estudos nesta direção. Por outro lado, têm ganhado força e se ampliado, desde a década de 1990, o campo da Educação Histórica (Cognição e Ensino de História)8, que se dedica a compreender como os alunos aprendem esta disciplina, incluindoos, de fato, como sujeitos no processo de construção do conhecimento, interessando-se pelas suas ideias (ALEGRO, 2008: 14). Como pressuposto metodológico, os pesquisadores da Educação Histórica analisam as ideias que os sujeitos expressam em e acerca da História, através de exercícios concretos. Este campo de investigação afasta-se de critérios generalistas de categorização do pensamento em níveis abstratos e concretos, que foi estabelecido, na década de 1970, tendo por base as ciências exatas. Estes critérios generalistas conduziram alguns autores a concluírem que a História era complexa para ser compreendida entre alunos com idades mentais inferiores a 16 anos. Tais conclusões ofereceram argumentos, nas décadas de 1970 e 1980, contra a inclusão da História no currículo escolar obrigatório, enquanto disciplina autônoma, substituindo-a por uma área integrada de Estudos Sociais (BARCA, 2001: 13 e TREPAT; COMES, 2008: 50). Sob influência destes critérios, ainda hoje, no campo do ensino de História, há estudiosos convictos de que alguns temas são de difícil compreensão para os alunos, como por exemplo, a pré-história9. Todavia, pesquisas sistemáticas sobre o pensamento histórico dos alunos indicam que eles têm condições de aprender sobre qualquer temática, abordadas de inúmeras maneiras, e que é possível encarar a aprendizagem da História numa perspectiva qualitativa (BARCA, 2001: 14). Sendo assim, na mesma direção da teoria da aprendizagem significativa, que pontua o conhecimento prévio como o fator isolado mais importante na determinação do processo de ensino (ALEGRO, 2008: 15), os estudos sobre

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nos manifestam uma capacidade clara para imaginar e conceber tempos mais recuados. Para o autor, as crianças de 6 anos já têm algumas ideias dos grupos pré-históricos (caçavam animais, viviam nas cavernas e vestiam peles). No entanto, também se observa a existência de contaminações, tais como “caçavam dragões” e “dinossauros”, provavelmente influências advindas de desenhos. A partir de seus resultados, Calvani sugere que o trabalho com esta temática não seja ignorado nos anos iniciais e que parta das ideias que os alunos têm sobre este passado mais distante (TREPAT; COMES, 2008: 57-62).

10 A avaliação museológica é uma área ampla que compreende avaliar as ações do Museu, especialmente em três níveis de preocupação: o primeiro é com relação ao público, o segundo, às ações e atividades desenvolvidas e o terceiro, às condições de produção e de emissão (CURY, 2004: 93).

11 A investigação aqui citada foi desenvolvida com pouco mais de 50 alunos do quinto ano do ensino fundamental (a maioria deles com 10 anos de idade), da Escola Municipal Professor Leônidas Sobriño Porto. Esta ação foi realizada entre os meses de junho a novembro de 2011. A escola localiza-se em uma região marcada pela violência, cujo perfil socioeconômico da comunidade é caracterizado pela classe econômica baixa e média. 12 Esta etapa foi realizada a partir de três exercícios distintos: atividade com desenho, aplicação de questionário e conversa informal com os alunos. Este último exercício, por conta das normas da Secretaria Municipal de Educação, não foi gravado. Mesmo assim, foi possível registrar algumas informações dos alunos acerca da presença indígena. Esta etapa, que será apresentada integralmente na tese de doutorado da autora, contou com a colaboração de Ana Pinõn e Regina Célia Alegro. 13 Grande parte do grupo investigado conheceu o Museu Histórico Padre Carlos Weiss no ano anterior, pelas ações do projeto “Conhecer Londrina”, desenvolvido pela Secretaria da Educação. Tal projeto consiste num roteiro de visitação aos considerados “pontos históricos mais expressivos”, executado conforme o horário de estudo

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a Educação Histórica indicam que para que a História, em sala de aula, não seja uma regurgitação do passado, o professor deve estimular o pensamento crítico de seus estudantes, adotando alguns procedimentos específicos, como investigar as ideias que eles já possuem, possibilitando a reflexão sobre diferentes hipóteses e exercitando a seleção de diferentes respostas (BARCA, 1998 apud GEVAERD, 2009: 160). Investigar o público também é uma tendência discutida pela Museologia que, embora seja uma área de pesquisa do Museu e não do contexto escolar, mantém importantes relações com a escola. Estudos na área de comunicação museológica apontam que o público é construtor ativo de sua própria experiência e o Museu (com a exposição e a ação educativa) é um local de encontro, negociação e atribuição de sentidos e significados da mensagem compartilhada (CURY, 2004: 91). Desse modo, o Museu precisa conhecer os seus inúmeros sujeitos e isto pode ocorrer a partir da pesquisa de recepção, sendo esta uma das possibilidades da avaliação museológica10. Aplicar uma pesquisa de recepção é colocar-se à disposição para compreender quais os usos que o público faz do Museu e como este público, tão heterogêneo, atribui significados para o patrimônio ali existente (CURY, 2004: 94). Assim, os estudos de recepção tornam-se fundamentais para compreender os alcances, as interpretações geradas e os significados atribuídos pela comunicação museológica. A partir da contribuição destas tendências, o caminho metodológico selecionado para a realização da ação arqueológica educativa11 foi composto pelas seguintes etapas: •

Coleta das ideias prévias dos alunos12 sobre a Arqueologia e a presença indígena na região;



Descrição e análise quantitativa e qualitativa das ideias prévias;



Articulação dos resultados com as políticas educacionais, tanto local quanto regional;



Elaboração da intervenção pedagógica;



Avaliação das ideias dos alunos posteriores à intervenção pedagógica.

Alguns apontamentos sobre as ideias prévias dos alunos em relação à temática arqueológica e indígena A análise das ideias dos alunos em relação à temática arqueológica e indígena obedeceu aos métodos quantitativos e qualitativos, uma vez que ambos os métodos não são antagônicos ou excludentes, mas, ao contrário, podem ser complementares (TIRADO SEGURA, 2003: 29). O método quantitativo foi utilizado para averiguar as seguintes questões: se o que mais marcou a experiência dos alunos em relação ao Museu está ligado ao patrimônio arqueológico indígena13, se eles conheciam a Arqueologia e, finalmente, se havia interesse em aprender sobre o assunto. A investigação demonstrou que os 41 alunos que conheceram o Museu Histórico de Londrina indicaram como mais significativos os objetos e os monumentos ligados à colonização da cidade e aos pioneiros, especialmente aqueles caracterizados por sua monumentalidade, como o trem e a ferrovia14. Outros objetos com maior ocorrência foram as armas, apontadas pelos meninos, as fotos históricas e os brinquedos, pelas meninas.

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(HILDEBRANDO, 2010: 13). Esta visita inclui o Museu Histórico da cidade e o contato com os objetos relacionados ao patrimônio arqueológico indígena. Vale ressaltar que a exposição destes objetos é resultado da ação da professora Maria Cristina Bruno do MAE-USP, que assinou o projeto de revitalização desta instituição entre 1996 a 2000. O antigo acervo em exposição era composto por objetos pertencentes aos pioneiros da cidade, entregues ao Museu por meio de doações. O acervo arqueológico indígena é constituído por instrumentos e fragmentos de pedra lascada e polida, peças de cerâmica, tais como vasilhas e uma urna funerária. 14 Desde 1986, o Museu Histórico ocupa o prédio da antiga Estação Ferroviária de Londrina, inaugurada na década de 1950. 15 Deste grupo, apenas 1 aluno indicou diretamente a “urna funerária”. O restante respondeu que o que mais gostou foi “dos objetos de índios”. 16 Embora este artigo não tenha como objetivo discutir a questão da musealização do patrimônio arqueológico indígena pertencente ao Museu Histórico de Londrina destaca-se a importância de desenvolver estudos de recepção nesta instituição museal, pois a forma de exposição do acervo pode ter influenciado as respostas dos alunos. 17 Os 2 alunos restantes indicaram a escola e o museu. O que surpreende neste resultado é apenas 1 indicação do conhecimento de Arqueologia pelas informações escolares, já que na semana anterior ao teste, o conteúdo sobre a temática indígena havia sido tratado com o público. Neste conteúdo havia referências sobre o trabalho do arqueólogo e a Arqueologia. 18 Apesar de a imagem apresentar um pesquisador do sexo masculino, durante as atividades realizadas com os alunos, tomou-se o cuidado de informar que esta é uma profissão realizada igualmente por mulheres. 19 A análise de conteúdo é um conjunto de técnicas utilizadas no contexto da análise de discurso (MORAES, 1999; 2003 e ROCHA; DEUSDARÁ, 2005 etc.) que valoriza o rigor metodológico e possibilita um maior aproveitamento que o objeto analisado possa conter. Sua proposta está na atribuição de sentido dos discursos apreendidos. Este recurso tem sido utilizado em trabalhos de Educação, Comunicação, Educação Ambiental etc.

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A indicação de peças indígenas teve baixa ocorrência (3 alunos15), o que pode sugerir que o patrimônio arqueológico, o primeiro a ser contemplado na exposição, não chama atenção, talvez por estar em parte fragmentado e em menor quantidade. A própria localização na exposição pode ser um elemento que contribui para isto: as peças encontram-se numa pequena antessala, cuja passagem dá acesso a três galerias dedicadas, especialmente, aos “pioneiros”, responsáveis pela fundação da cidade. Isto significa que há grande desvantagem em termos expositivos, pois os objetos indígenas são poucos, comparando-os aos objetos relacionados aos colonizadores16. Entre aqueles que não tiveram a oportunidade de conhecer o Museu (10 alunos), suas expectativas resumem-se em encontrar “coisas boas e legais” e “coisas antigas”. Tais indicações genéricas não permitem avaliar se “as coisas boas, legais e antigas” são objetos indígenas. Todavia, neste grupo houve também a indicação específica de objetos de arte e ossos de dinossauro, o que não equivale ao conteúdo expositivo do Museu citado. Isto sugere que as crianças possuem ideias sobre outros museus e esperam encontrar nesta instituição objetos correspondentes às suas ideias. Sobre a Arqueologia, 37 alunos nunca haviam ouvido falar, apesar de este assunto ter sido tema em sala de aula. Para aqueles que afirmaram positivamente (14 alunos), quando foram questionados “onde”, o que predominou foi a ausência de resposta (8 alunos). No entanto, os que responderam, apontaram como fonte de informação principal a TV (4 alunos)17. Este dado pode sugerir o acesso a novelas, filmes e documentários que tratam a pesquisa arqueológica e temas correlatos. Ainda sobre esta temática, os alunos foram convidados, a partir de uma imagem da prática arqueológica de escavação, a indicar quais objetos o arqueólogo18 procurava. Tanto os alunos que afirmaram conhecer Arqueologia quanto os que não conheciam apontaram, em sua maioria, “ossos de dinossauros”, o que leva a crer que, independentemente do conhecimento sobre Arqueologia, os alunos apresentam ideias prévias do trabalho arqueológico, relacionando-o, sobretudo, ao passado distante, de coisas extintas. Ademais, foi possível identificar que o público investigado tem curiosidade sobre o assunto e manifestou interesse em aprender sobre temas diferentes e de formas variadas. A pré-disposição em aprender existe. Nos casos em que não há esta pré-disposição, o argumento utilizado aponta o desconhecimento, ou seja, os alunos que não se interessavam em conhecer a Arqueologia argumentaram que era porque eles não sabiam exatamente o que era. O método qualitativo, conforme discussões da análise de conteúdo19, foi usado para identificar dados sobre a temática indígena. Para tal análise, duas questões foram levadas em consideração. A primeira, os alunos tiveram como conteúdo escolar a temática indígena pouco antes da realização dos exercícios. O conteúdo estudado, sobre a História do Paraná, indicava a presença de indígenas muito antes, durante e depois da colonização. A segunda, o fato comum da circulação de índios na cidade, pois os Kaingang, da reserva do Apucaraninha, vendem objetos artesanais ou circulam como pedintes por toda a região, inclusive no bairro onde se localiza a escola.

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Para a análise qualitativa, a metodologia proposta compreendeu três procedimentos básicos: • Desmontagem dos textos (no caso, os questionários e os desenhos); •

Estabelecimento de relações (criação de categorias)



Captação do novo (análise das categorias).

Para começar a desmontagem dos instrumentos em questão, a pergunta de corte estabelecida foi “Como as crianças representam os índios no tempo (passado e presente) e na paisagem da região?”. Desta pergunta de corte, surgiram 6 tipos de respostas diferentes, que foram agrupadas, as chamadas unidades de análise. A saber: Alunos que acreditam que havia índios na região no passado Alunos que não sabem se havia índios na região no passado Alunos que acreditam que não havia índios na região no passado

Alunos que acreditam que há índios vivendo na região no presente Alunos que não sabem se há índios vivendo na região no presente Alunos que acreditam que não há índios vivendo na região no presente

20 Com as unidades de análise, identificadas nas duas turmas, foram criadas categorias, de acordo com as respostas dos alunos, no intuito de compreender a pergunta de corte estabelecida. Esta categorização será apresentada integralmente na tese de doutoramento da autora.

21 As características comportamentais e as práticas de subsistência são elementos conectados e que compõem os aspectos culturais dos indígenas. Todavia, para melhor visualização das ideias prévias, eles serão citados distintamente.

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Sendo assim, apresento alguns pontos elencados durante esta etapa, que contribuíram para a categorização das ideias prévias dos alunos20. Alunos que acreditam que havia índios na região no passado (27 alunos) •

Grupo a que correspondeu à metade do público. Mesmo afirmando que havia índios na região no passado, 6 alunos indicaram que os primeiros a chegar ali foram os ingleses;



Ao descrever o índio do passado, este grupo preocupou-se mais em citar aspectos comportamentais21 (andam nus, pintam os corpos) do que descrever práticas de subsistência (caça, pesca, coleta);



Interessante destacar que esta unidade de análise também se preocupou em atribuir qualificações aos indígenas, bem como estabelecer comparações com a sociedade atual: “os índios do passado são parecidos com a gente”, “são modernos”, “falam a nossa língua”; “são alegres”, “legais”, “trabalhadores” etc. Acrescenta-se ainda que tal iniciativa pode estar associada com a dificuldade em imaginar uma alteridade tão distante no passado;



Muito embora este grupo tenha pontuado a certeza da presença indígena, ao serem convidados a desenhar a floresta antes da construção da cidade de Londrina, indicando quem vivia e o que tinha lá, 11 alunos não desenharam os indígenas;



O restante, que desenhou o indígena, optou por representá-lo mais pelas suas práticas de subsistência.

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Alunos que não sabem se havia índios na região no passado (19 alunos) •

Grupo a que correspondeu pouco menos da outra metade do público. Este fato sugere que, mesmo com as informações escolares, os alunos não tinham certeza da presença de índios no passado da região;



Embora não tenha a certeza desta presença, 16 alunos indicaram os indígenas como os primeiros habitantes do norte do Paraná;



Para descrever os indígenas do passado, em sua maioria, citaram mais os aspectos comportamentais (andam nus, pintam os corpos) ou indicaram não saber responder;



Apesar de incertos sobre esta presença, ao serem convidados a desenhar a floresta antes da construção da cidade, 10 alunos desenharam os indígenas, dando destaque para suas práticas de subsistência.

Alunos que acreditam que não havia índios na região no passado (5 alunos) •

Para 3 alunos, os ingleses foram os primeiros habitantes da região;



O restante indicou os indígenas como primeiros habitantes da região;



Deste grupo, 2 alunos atribuíram qualificações aos indígenas (“bons, legais, divertidos”), 2 disseram não saber descrevê-los e 1 citou aspectos comportamentais (andam nus, pintam os corpos);



Os 2 alunos que apontaram os indígenas como primeiros habitantes da região, na atividade do desenho representaram o índio e suas práticas de subsistência.

Alunos que acreditam que há índios vivendo na região no presente (27 alunos) •

Grupo a que correspondeu à metade do público. Deste grupo, 15 alunos afirmaram ter visto um indígena pela cidade;



Os alunos que viram um indígena no presente, optaram por descrevê-lo mais por suas características físicas (o tom de pele moreno teve destaque);



Aqueles que não viram, optaram em descrever os indígenas do presente mais por aspectos comportamentais (andam nus, pintam os corpos);



3 alunos indicaram não saber descrever os indígenas do presente;



Para a grande maioria desta unidade de análise, os indígenas de tempos atuais habitam a floresta;



Dos 27 alunos que afirmaram que havia índios no presente, 14 já haviam afirmado esta certeza no passado, fato que pode sugerir tanto uma percepção de continuidade histórica quanto uma confusão entre o que é passado e o que é presente;



Outros 11 alunos não têm certeza no passado, mas têm a certeza de que há índios na região no presente;



Por fim, para 2 alunos não havia na região índios no passado, somente há no presente.

Alunos que não sabem se há índios vivendo na região no presente (21 alunos) •

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Deste grupo, 11 alunos afirmaram já ter visto um índio, especialmente circulando pela cidade. Embora tenham visto, eles não têm certeza se há índios na região no presente;

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10 alunos afirmaram que não sabiam ou não se lembravam de como é o índio do presente, embora 4 deles já tenha visto um indígena;



O restante, que descreveu o indígena, optou por citar suas características físicas, onde o tom de pele foi predominante (moreno); e comportamentais (andam nus, pintam os corpos);



13 alunos não conseguiram indicar onde os índios do presente vivem;



Outros 7 alunos indicaram a floresta;



Do total de 21 alunos, 13 têm a certeza da presença indígena no passado, mas não no presente;



Outros 7 não sabem nem no passado e nem no presente;



Por fim, 1 aluno acredita que não havia índios no passado e no presente ele não tem certeza.

Alunos que acreditam que não há índios vivendo na região no presente (3 alunos) •

Para 2 alunos deste grupo não havia índios na região no passado e não há no presente;



1 aluno não sabe no passado, mas tem certeza de que não há índios na região no presente;



Nenhum aluno deste grupo indicou ter visto um indígena;



Deste grupo 1 aluno descreveu o indígena do presente, indicando seus aspectos físicos;



Para esta unidade de análise, os índios vivem na floresta ou em um lugar distante.

Considerações finais Antes de algumas considerações sobre as ideias prévias do público investigado, é importante salientar um esforço recente em entender o que os alunos pensam sobre os índios, que pode ser encontrado na publicação “A Temática Indígena na Escola: subsídios para professores”, 2011, de Pedro Paulo Abreu Funari e Ana Piñon. Na obra, que se preocupou em oferecer elementos para os professores discutirem a temática indígena na sala de aula, os autores apresentaram os resultados de uma ampla pesquisa realizada em escolas do Rio de Janeiro, Niterói, Campinas e Natal, com alunos dos sextos aos nonos anos, com o objetivo de identificar como este público percebe os indígenas. Os resultados mostraram avanços e limites das políticas educacionais nos últimos anos. O principal aspecto positivo foi a identificação dos índios como parentes. Este reconhecimento é um avanço considerável, uma vez que, por muitos séculos, qualquer parentesco com os índios era considerado vergonhoso. Todavia, uma limitação evidente foi o fato da maioria dos alunos afirmarem que os indígenas estão no Brasil há quinhentos anos, o que sugere o desconhecimento sobre o processo de ocupação humana no território nacional e a desconsideração sobre a colonização européia como processo de expropriação (FUNARI; PIÑON, 2011: 109-112). No caso da investigação aqui proposta, em conversa informal com os alunos, estes não se sentiram à vontade em afirmar algum parentesco indígena e tiveram imensas dificuldades em responder quando perguntados sobre o

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tempo em que os índios habitam as terras brasileiras. Para a maioria deles, menos de 500 anos. A partir da análise das ideias prévias, pude elencar outras considerações: o passado para as crianças é constituído de informações fragmentadas; na estrutura cognitiva da criança, o índio existe como um ser exótico e estereotipado do passado e que, para a maioria, ainda mantém as mesmas características culturais no presente, muito embora eles se sintam mais à vontade em descrever o indígena do passado. Apesar de a maioria dos alunos ter a informação escolar que os indígenas foram os primeiros habitantes da região, apenas pouco mais da metade deles conseguiu associá-los à paisagem local na atividade do desenho. Outra questão foi o fato de que tanto o indígena quanto a paisagem local foram confundidos com o negro, a temática africana e a afro-brasileira. Alguns alunos descreveram os índios do passado e do presente como “negros”. Além disso, animais africanos foram utilizados como elementos compositivos de muitos desenhos que representavam a paisagem anterior à colonização. Diante destas considerações, mostram-se bastante importantes ações arqueológicas desenvolvidas no contexto escolar. A proposta não é impor novas versões históricas aos alunos. Ao contrário, o que se pretende é, pela perspectiva do conhecimento arqueológico, apresentar-lhes novos elementos para que, de maneira autônoma, possam confrontar as novas ideias com as já existentes. Agradecimentos Ao professor Pedro Paulo Abreu Funari, ao Laboratório de Arqueologia Pública, em especial, à professora Aline Vieira de Carvalho.

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A R Q U E O L O G I A S U B A Q U ÁT I C A , ARQUEOLOGIA PÚBLICA E O BRASIL AUTORA Marina Fontolan

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RESUMO

Aluna de Mestrado em História Cultural pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP); Linha Genêro, Identidade, Cultura Material e Cartografia, sob a orientação do Professor Doutor Pedro Paulo Abreu Funari. Pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

O objetivo deste artigo é abrir debates sobre como a Arqueologia Subaquática pode se valer do conceito e das prerrogativas da Arqueologia Pública no sentido de garantir (ou não) que o patrimônio cultural submerso seja protegido, mesmo que seja sem o respaldo legislativo. Para tal, analiso brevemente o desenvolvimento da arqueologia no país, mostrando, sobretudo, como se dá a proteção deste patrimônio no que concerne às leis envolvidas. Então, passo a apresentar algumas possibilidades de atuação dos profissionais da Arqueologia de modo que eles possam envolver o público em geral na preservação deste patrimônio. Isto, de forma a abrir caminhos para debates dentro da área no que concerne à atuação do profissional da Arqueologia frente a seu trabalho. Palavras chave: Arqueologia Subaquática, Arqueologia Pública, Arqueologia Brasileira.

ABSTRACT

The main goal of this paper is to set debates on how Underwater Archaeology could draw from the concepts and prerogatives of Public Archaeology in a way to guarantee (or not) that the underwater cultural heritage to be protected, even without a proper legislation for it. For this, I analyze the development of Archaeology in Brazil, focusing on the laws involved on protecting or not our heritage. Then, I present some possibilities of action, where the archaeologists may involve the general public in heritage preservation. The idea is to set debates within the area regarding the performance of the archaeologists towards their work. Keywords: Underwater Archaeology, Public Archaeology, Brazilian Archaeology.

Quando falamos em Arqueologia para pessoas que não estão direta ou indiretamente envolvidas com a área, podemos nos deparar com os mais diversos tipos de reações: perguntam-nos sobre as “verdades” do passado, sobre a necessidade de ficar decorando datas, sobre teorias da conspiração ou sobre nossas aventuras. Nestas conversas, notamos o quão rico é o imaginário de uma pessoa no que se trata da Arqueologia, mas este se distancia bastante daquilo que poderíamos chamar de ofício do profissional da Arqueologia. Raros os casos que nos perguntam sobre trabalhos em laboratórios ou sobre quanto tempo nos dedicamos à leitura. Os que perguntam sobre trabalhos de campo talvez esperem a descrição de aventuras estilo Indiana Jones, não uma descrição de escavação meticulosa, feita em horas de trabalho.

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1 Aqui, pode-se citar o exemplo de escavações e estudo do sítio conhecido por Kyrenia, que ocorreram no final da década de 1960 (Bass, 2005: 72 - 79). Além deste, há o estudo da cidade de Port Royal, na Jamaica, cuja escavação ocorreu durante toda a década de 1980 (Bass, 2005:164 - 171).

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Isto tudo pode voltar a vir à tona quando o arqueólogo diz que sua especialidade é Arqueologia Subaquática. Neste ponto, as pessoas podem começar a imaginar um aventureiro de roupa de mergulho, buscando verdades sobre os grandes segredos da humanidade, como a Atlântida. Outra possível reação é perguntar diretamente: “o quê é isto?”. Ou seja, podemos notar, assim, que a pessoa pode conceber o que é Arqueologia, mas nem sempre ela pode perceber, com a mesma facilidade da área médica, que haja especialidades dentro do campo. E é exatamente neste momento que o arqueólogo deve ser criterioso em sua resposta, para não criar a noção de que o profissional atua como o Indiana Jones, mas debaixo da água! O objetivo deste artigo será pensar como o conceito de Arqueologia Pública pode ajudar os/as arqueólogos/as subaquáticos e demais profissionais da área a reverter este quadro, não pretendendo com isso se tornar um guia definitivo, mas buscar espaços para debater o assunto. Desta forma, pensar maneiras de fazer a Arqueologia Subaquática se aproximar do imaginário do público geral se torna fundamental, além de, é claro, fazer uma discussão sobre qual a forma de arqueologia pública pode-se construir neste país para que se possa garantir a savalguarda do patrimônio submerso. Para tal, num primeiro momento, se pensará o que é Arqueologia, Arqueologia Subaquática e Arqueologia Pública. Então, passo a levantar discussões sobre os problemas que a prática da Arqueologia Subaquática enfrenta no Brasil atualmente. Com isto, busco pensar algumas possibilidades de atuação dos profissionais da Arqueologia, de forma a envolver o público geral nas problemáticas acerca do patrimônio submerso. A Arqueologia é entendida, aqui como uma disciplina que visa a interpretação de um passado através da cultura material, buscando entender as relações sociais e as transformações pelas quais as sociedades humanas passaram (cf. FUNARI, 2006). Assim sendo, a disciplina ganha um caráter amplo, pois ela passa a ter um aspecto que é, simultaneamente, histórico e antropológico (idem: 18). A criação de especialidades neste contexto mais geral acabou sendo uma via para que os pesquisadores pudessem reunir e interpretar seus dados. Pode-se, desta forma, colocar tanto a Arqueologia Subaquática quanto a Arqueologia Pública neste contexto mais amplo de criação de especialidades na Arqueologia. No primeiro caso, temos a especificidade de interpretar aquilo que foi encontrado debaixo da água. É interessante notar que a Arqueologia Subaquática é a única especialidade da disciplina na qual o ambiente em que se encontram os materiais a serem escavados e estudados dão o nome da disciplina (BASS, 1971: 17). Isto se torna importante, sobretudo, no quesito de debates sobre a legislação que confere a proteção do patrimônio arqueológico. Desta maneira, esta especialidade acaba por estudar uma grande gama de materiais que vão desde embarcações até cidades inteiras.1 A Arqueologia Pública, da mesma maneira que a Subaquática, pode ser considerada como uma das várias especialidades da Arqueologia. A ideia de Arqueologia Pública não é algo estático, muito menos simples de ser definido e uma das razões disso é a noção de que a palavra público nos remete, pois pode vincular-se ao estado e à população de uma forma geral (MERRIMAN, 2004: 2). A vinculação do termo à Arqueologia passou a ser mais sistemática no início da década de 1970, estando ligado às necessidades de manejo de

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recursos culturais (MERRIMAN, 2004: 4). No entanto, foi apenas atualmente que ela se tornou a responsável por voltar a Arqueologia para o interesse do público, de forma a estabelecer relações entre este, os estudiosos e suas respectivas pesquisas, garantindo a construção e o fortalecimento de identidades nacionais (CARvAlHO e FUNARI, 2009). No entanto, os arqueólogos Pedro Paulo Abreu Funari e Márcia Bezerra acreditam que todo o trabalho arqueológico deve estar ligado ao público (2012: 110).

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2 Texto completo da lei nº 3.924/61. Disponível em: http://www010. d a t a p re v. g o v. b r / s i s l e x / pa g i nas/42/1961/3924.htm Acesso em: 12/4/2012.

3 Texto completo da lei nº 10.166/00. Disponível em: http://www.leidireto.com.br/lei-10166.html Acesso em 12/4/2012.

4 Art.20, § 2o, lei nº 10.166/00. Disponível em: http://www.leidireto. com.br/lei-10166.html Acesso em: 12/4/2012.

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No país, a Arqueologia terrestre, como na maior parte do mundo (Funari, 2006: 23), desenvolveu-se no século XIX, passando por períodos nos quais houve ou não estímulo à ela (Funari e Bezerra, 2012: 103-105). Ao longo desta história, diversas legislações acerca da proteção do patrimônio foram discutidas e, em 1961, a principal lei que dispõe sobre a preservação de monumentos arqueológicos e pré-históricos foi aprovada, sob o nº 3.924/61 (Funari, 2006: 26). Tal legislação é responsável por definir o que se considera um monumento arqueológico ou pré-histórico, seus usos e, também, sua propriedade.2 Será, justamente, na proibição do uso comercial de sítios arqueológicos e na propriedade pública dos mesmos que o patrimônio arqueológico terrestre garante sua savalguarda e sua proteção. A Arqueologia Subaquática, no entanto, teve um desenvolvimento diferente no país, sobretudo no que se refere à proteção do patrimônio submerso. Assim, por se tratar de um estudo de caso específico sobre este tema, a análise do desenvolvimento do ramo e da legislação produzida será mais detalhada, notando como o país acabou criando, pelo menos, duas arqueologias diferentes. A prática da Arqueologia voltada para os meios submersos está vinculada ao início oficial do mestrado de Gilson Rambelli em 1993 no Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE/USP), após especializações na área realizadas na França. Neste mesmo ano, durante a vII Reunião da Sociedade de Arqueologia Brasileira (SAB), houve a organização de uma mesa-redonda dedicada ao tema (RAMBEllI, CAMARGO e CAllIPO, 2003). Até o final da década de 1990, outros dois mestrados na área foram iniciados (RAMBEllI, CAMARGO e CAllIPO, 2003). Este processo acabou tendo certa continuidade, já que outras pessoas se interessaram pela área e passaram a estudá-la. Isso ajudou a consolidar a prática da Arqueologia Subaquática no Brasil (RAMBEllI, 2004a). No entanto, no final do ano de 2000, o governo federal promulgou a Lei Federal nº10.166/00.3 Esta dispõe de forma específica sobre os sítios submersos e permite “(...) estipular o pagamento de recompensa ao concessionário pela remoção dos bens de valor artístico, de interesse histórico ou arqueológico, a qual poderá se constituir na adjudicação de até quarenta por cento do valor total atribuído às coisas e bens como tais classificados”.4 Ou seja, a legislação, de alguma forma, legaliza a prática comercial de exploração de sítios submersos, uma vez que garante pagamento de recompensa àquele que tiver permissão para explorar o sítio. Neste contexto, os arqueólogos Gilson Rambelli, Paulo Fernando Bava de Camargo e Flávio Rizzi Calippo criam o Centro de Estudos de Arqueologia

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5 Os textos traduzidos são: “O Homem que roubava as estrelas” (original de 1979, traduzido por Gilsn Rambelli em 2004) e “Arqueólogos, mergulhadores desportivos e caçadores de tesouros” (original de 1985, traduzido por Gilson Rambelli em 2004b). Estes foram originalmente escritos para apoiar o projeto-lei conhecido por Abandoned Shipwreck Act. Este previa que o Estado Americano seria o responsável por reivindicar e gerenciar naufrágios abandonados que estivessem em terras submergidas que a ele pertenceriam, ou seja, os sítios seriam protegidos de explorações comerciais se estivessem num raio de três milhas náuticas a partir da costa (AUBRY, 1997:16-17). Sua aprovação deu-se em 1988 (AUBRY, 1997: 16).

6 Descrito como um mergulhador ligado ao salvamento comercial.

7 Aqui, podemos exemplificar com os textos: “Arqueologia Subaquática”, escrito por Gilson Rambelli, Paulo Bava de Camargo e Flávio Rizzi Calipo, e publicado no site http://www.ciadaescola.com.br/ zoom/materia.asp?materia=171 em 2003. Além disto, o site História e-História (http://www.historiaehistoria.com.br/), contém diversos textos sobre o tema escritos por Gilson Rambelli, Filipe Castro e as traduções de George Fletcher Bass. As referências completas estão na bibliografia. 8 Aqui, pode-se citar o artigo escrito por Glória Tega para a Revista Mergulho nº96, ano vIII (2004).

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Náutica e Subaquática (CEANS), ainda no ano de 2000. Este acaba ganhando um espaço acadêmico no Núcleo de Estudos Estratégicos da Universidade Estadual de Campinas (NEE/UNICAMP) em 2004, tornando-se o primeiro centro de pesquisa em Arqueologia Subaquática do Brasil (NASCIMENTO, 2004). Ainda neste ano, os especialistas publicam o Livro Amarelo, uma obra cujo objetivo é divulgar a prática da Arqueologia Subaquática no Brasil. Além desta, há a tradução e a publicação de dois textos escritos por George Fletcher Bass, cujo uso deu-se, justamente, para construir uma ideia do que é a Arqueologia Subaquática e qual sua diferença da exploração comercial, conhecida entre os arqueólogos como caça ao tesouro.5 Por um lado, uma Arqueologia que tem seus sítios e achados protegidos por uma lei, que também garante que a propriedade daquilo seja pública. Por outro, uma prática construída como uma sub-área da primeira, mas cujos sítios e seus respectivos achados são tratados de forma bem diferente, garantindo que haja propriedade privada e valor monetário àquilo que for encontrado. Assim temos, no Brasil, pelo menos duas Arqueologias, que são determinadas, apenas, pelo meio no qual se pratica uma ou a outra.

Arqueologia Subaquática e Arqueologia Pública: Diálogos Dado este contexto, torna-se importante passar a refletir como o conceito de Arqueologia Pública pode ajudar os arqueólogos subaquáticos brasileiros a buscar o interesse do público geral no tema e trazê-los para os debates acerca da proteção deste patrimônio. A importância de se envolver o público nestes debates já é tratada por George Fletcher Bass desde o final da década de 1980, quando, no prólogo do livro Ships and Shipwrecks of the Americas: A History Based on Underwater Archaeology, escrito em conjunto com o capitão W.F.Searle,6 ele dá à sociedade a responsabilidade da iniciativa de apoiar a Arqueologia Subaquática ou a caça ao tesouro e, também, de fazer escolhas entre o que será escavado cientificamente e o que será autorizado para exploração comercial (BASS; SEARlE, 1988: 258). Para tal, se analisará algumas ações já tomadas e, também, se fará propostas de outras, de modo a poder criar um ambiente amplo de discussões. vale deixar claro que o objetivo aqui não é criar um guia fechado e pronto, mas sim fornecer propostas e pontos de debates. Creio que o primeiro ponto que deve ser pensado são questões de publicações de obras e textos sobre Arqueologia Subaquática em vários locais e com um texto acessível para o grande público. Obras que divulgam a ciência em si, como o caso do livro Arqueologia Até Debaixo D’Água, do arqueólogo Gilson Rambelli (2002), são de grande importância no que concerne a divulgar a disciplina e a chamar a atenção do público-leitor para alguns de seus debates internos. Além disto, textos escritos por especialistas diversos divulgados em sites de conteúdo aberto,7 em revistas voltadas para um público em geral8, e a disponibilidade de um manifesto, como o livro Amarelo (2004), para download, sem dúvida, inserem um amplo público na temática. Como se pode inferir da análise da seguinte tabela, são obras que atingem um bom público e podem ser vistas como uma importante maneira de divulgar a Arqueologia Subaquática no país:

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9 No original: “(...) people are sought to be manipulated in order to make their opinions more compatible with the interests of professional archaeology”.

Publicação

Fonte

Período

Número de Acessos

Os desafios da Arqueologia Subaquática no Brasil, por Gilson Rambelli

História e-História

02/2012 a 07/2012

661

O futuro do passado ameaçado, por Gilson Rambelli

História e-História

02/2012 a 07/2012

311

livro Amarelo

História e-História

01/2012 e 08/2012

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Infelizmente, não foram obtidos a quantidade de acessos em um período anterior ao dado e, tampouco, os dados do outro texto citado. No entanto, já é uma pequena amostragem da importância deste tipo de trabalho. Desta forma, se faz necessário ampliar sempre publicações a respeito do tema voltadas para um público geral, de modo que um grande número de pessoas possam continuar tendo acesso aos debates e, também, para que elas consigam compreender a dimensão desta prática, que não se restringe apenas a navios. No entanto, se apenas nos atermos às publicações, acabaremos por criar aquilo que o arqueólogo Cornelius Holtorf chama de Arqueologia de Relação Pública. Nesta, “(...) as pessoas são solicitadas à serem manipuladas de modo que a opinião delas sejam mais compatível aos interesses da Arqueologia profissional” (HOLTORF, 2005).9 Por isso, de uma forma mais sistematizada, podemos dizer que o Modelo de Relações Públicas visa [...] garantir o aval social que permite a continuidade dos próprios trabalhos arqueológicos. [...] Assim, por uma questão de sobrevivência, torna-se imperativo demonstrar para a sociedade o quanto os trabalhos arqueológicos, e as memórias deles derivadas, são relevantes e, por isso, podem ser financiados com fundos públicos ou apoiados das mais diversas maneiras (CarVaLHO; Funari, 2009).

Desta maneira, os debates sobre a proteção do patrimônio submerso acabam se restringindo apenas aos círculos acadêmicos. De que forma, então, podemos envolver o público nestes debates? Primeiramente, creio que há a necessidade de se criar exposições interativas. Aqui pode-se pensar não apenas em museus históricos ou de arte, que são espaços onde normalmente se constrói exposições baseadas em achados arqueológicos, mas também pode-se preparar materiais e exibições para museus de ciências, que mostrem algumas especificidades de se fazer Arqueologia debaixo da água, complementando e enriquecendo as mostras sobre Arqueologia geral na instituição (BOWENS, 2009). As exposições, tanto as mais simples quanto as mais elaboradas, são capazes de introduzir o público aos trabalhos de pesquisa que estão sendo realizados e podem fazer com que a comunidade fortaleça o desejo pela proteção do sítio (BOWENS, 2009: 192). Este desejo ainda pode ser mais bem reforçado se as pessoas estiverem envolvidas na montagem da mesma. Aliás, essa questão de envolver os não-arqueólogos em trabalhos tanto de campo como laboratoriais e na divulgação já é antiga. Já era uma preocupação para Bass em 1985, como podemos notar a partir de sua carta “Arqueólogos, mergulhadores desportivos e caçadores de tesouros”:

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Muitos mergulhadores amadores se opõem ao projeto-lei porque eles sentem que ela é muito restritiva. [...] sítio de naufrágio após sítio de naufrágio foram roubados por caçadores de souvenires amadores e saqueadores profissionais. [...] Alguns mergulhadores amadores crêem que os arqueólogos profissionais são contra eles terem qualquer papel na Arqueologia de naufrágio. Eu nunca trabalhei sem mergulhadores 10 No original: “Many amateur divers oppose the Bill because they feel it is overly restrictive. (...) shipwreck site after shipwreck site had been stripped bare by amateur souvenir hunters and professional looters. [...] Some amateur divers feel that professional archaeologists oppose their having any role in shipwreck archaeology. I have never worked without amateur divers in my staff”.

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amadores em minha equipe (BASS, 1985: 256 - tradução minha).10

Bass dá uma grande importância em ter não-arqueólogos em suas equipes de trabalho. Nesta carta, ele argumenta em favor do Abandoned Shipwreck Act, que é um projeto-lei que postula sobre a proteção do patrimônio submerso em águas americanas. Este estava sendo discutido no Senado americano nesta época e que foi promulgado em 1988 (AUBRY, 1997: 16-17). Isto, sem dúvida, é uma das maneiras de se criar um laço entre a sociedade, o trabalho do profissional da Arqueologia e o patrimônio submerso, de modo que a proteção deste se dê pela vontade da população em protegê-lo e não por meios legislativos. Além disto, o contato entre o arqueólogo e a população local de seus trabalhos ajuda a questionar o estereótipo do cientista como detentor de verdades sobre o mundo e, além disso, ajuda a população a quebrar aquela ideia de que a Arqueologia está ligada a uma aventura. No entanto, é de grande importância entender que não são todas as pessoas que podem ter um acesso ao sítio arqueológico em si. Afinal, não são todos que podem mergulhar, por se tratar de uma prática esportiva ainda bem custosa, embora já muito mais popularizada do que os antigos escafandros. Assim, torna-se fundamental que os arqueólogos se reúnam com a comunidade para divulgar o trabalho que está sendo realizado, podendo envolvê-las em outros estágios do trabalho arqueológico. O objetivo, claro, não é impor um interesse na preservação do patrimônio que está sendo estudado, mas tentar encontrar um ponto de equilíbrio entre os diversos interesses envolvidos na preservação ou não daquele patrimônio. Desta maneira, podemos enxergar apreços e desapreços pelo chamado patrimônio, além daqueles do Estado (FUNARI; BEzERRA, 2012: 109). Afinal, não creio que baste ao profissional chegar e falar da importância de se preservar algo, pois, caso as pessoas não se relacionem com aquele bem de alguma maneira, dificilmente haverá uma luta para protegê-lo. A meu ver, ele deve entender as dimensões políticas de seu trabalho e, assim, tentar encontrar certo equilíbrio entre os diversos interesses envolvidos nele: seja relacionado ao governo, à população da comunidade, à empresa/academia que ele presta serviços e, no caso mais específico da Arqueologia Subaquática, à Marinha (atual responsável pela fiscalização dos sítios submersos). Talvez o tempo que o profissional tenha para realizar todas suas tarefas em campo não seja suficiente para que haja um contato tão constante com o público. Assim, chamar a imprensa local e manter contato com ela pode ser uma alternativa para a divulgação dos trabalhos, sobretudo aqueles que se relacionam com a história local (BOWenS, 2009: 192-194). Este contato, claro, pode também ser feito quando o profissional também tem tempo de ter um contato mais constante com a população, afinal, a imprensa é um meio de divulgação importante.

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Arqueologia Subaquática, Arqueologia Pública e Pa t r i m ô n i o Desde o início da década de 1990, com a publicação da Carta de Proteção e Gerenciamento do Patrimônio Arqueológico pelo Comitê Internacional para a Gestão do Patrimônio Arqueológico (ICAHM/ ICOMOS), tem-se a ideia de que só se consegue preservar algo caso haja afeição e conhecimento sobre aquilo (CarVaLHO; Funari, 2009). Assim, a Arqueologia Pública passou a ganhar uma atenção cada vez maior por parte de especialistas e o mesmo deve ocorrer na Arqueologia Subaquática brasileira. Afinal, é através deste conceito que o interesse pela preservação do patrimônio subaquático pode ser garantido. Ele é capaz de gerar debates em outras esferas da sociedade, podendo acarretar na criação da necessidade de preservação daquilo, mesmo que a legislação autorize uma exploração comercial do mesmo. O que pretendi aqui foi trazer algumas ideias acerca de como a Arqueologia pública pode fazer parte dos trabalhos de Arqueologia Subaquática no país, integrando estas duas esferas da ciência. Não pretendo, com isto, criar fórmulas sobre como agir em relação à lei nº 10.166/00 ou como se deve dar a savalguarda do patrimônio submerso em águas brasileiras. Abrir o diálogo com a sociedade é uma das maneiras que penso como possíveis para garantir a proteção do patrimônio submerso, sem ter que contar apenas com um apoio legislativo para tal. Agradecimentos Agradeço, primeiramente, ao meu orientador, Pedro Paulo Abreu Funari, pelo apoio a minha pesquisa no mestrado. À Aline vieira de Carvalho, também por seu apoio. Quero agradecer a Glória Tega e a equipe que faz parte do site História e-História, pela ajuda e o fornecimento dos dados apresentados no texto, em relação aos acessos de obras sobre Arqueologia Subaquática. Também agradeço à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) pelo apoio a esta pesquisa. Por fim, agradeço à Equipe do Laboratório de Arqueologia Pública do Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais da Universidade Estadual de Campinas (lAP/NEPAM/UNICAMP) pelo convite para publicação nesta revista.

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E S T R E C H A N D O V I N C U LO S E N T R E “ CO M U N I DA D E S ” E N TO R N O A L PAT R I M O N I O A R Q U E O L Ó G I C O . L A S P R Á C T I C A S E X T E N S I O N I S TA S DESDE UN PROGRAMA DE ARQUEOLOGIA PÚBLICA AUTORAS Mariela E. Zabala [email protected]

CONICET, Programa de Arqueología Pública, (SEU, FFyH, Museo de Antropología, UNC).

Mariana Fabra

Secyt, Programa de Arqueología Pública (SEU, FFyH, Museo de Antropología, UNC).

[email protected]

RESUMEN

1 Programa dependiente de la Secretaría de Extensión Universitaria y del Museo de Antropología (Facultad de Filosofía y Humanidades, Universidad Nacional de Córdoba).

Cada día hay mayor conocimiento, apropiación, reinvención y ejercicio de los derechos culturales por parte de agentes sociales pertenecientes a distintas comunidades: locales, académicas y originarias. En la provincia de Córdoba (Argentina), estos derechos se manifiestan en demandas y reclamos por la recuperación de bienes arqueológicos en riesgo, que consideran parte de su patrimonio cultural, en la organización y participación de encuentros, jornadas y charlas sobre historia, memoria e identidad, y en la búsqueda por estrechar vínculos con la Universidad Nacional de Córdoba para conocer más sobre los pueblos originarios del actual territorio cordobés. Esta nueva realidad socio-cultural-escolar ha requerido al Programa de Arqueología Pública1 (PAP) repensar, después de 12 años de trabajo, sus prácticas extensionistas con las comunidades donde se llevan a cabo tareas de rescate arqueológico. El presente trabajo busca dar a conocer la problemática abordada desde el PAP, en su objetivo de estrechar vínculos con las comunidades a partir de prácticas extensionistas concretas, en pos de la recuperación, investigación, conservación preventiva, valoración y educación de los bienes que las mismas consideran de valor patrimonial. Palabras claves: Patrimonio Arqueológico, Arqueología Pública, Córdoba (Argentina).

RESUMO

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Todos os dias há mais conhecimento, apropriação, reinvenção e exercício dos direitos culturais por agentes sociais pertencentes a diferentes comunidades: local, acadêmico e nativas. Na província de Córdoba (Argentina), esses direitos são manifestados em demandas e reivindicações de recuperação arqueológica em risco, consideram parte do seu património cultural e participação na organização de reuniões, seminários e palestras sobre memória, história e identidade, e da busca de laços mais estreitos com a Universidad Nacional de Córdoba para aprender mais sobre os povos nativos do atual território de Córdoba. Esta nova realidade sócio-cultural-escolar tem exigido do Programa de Arqueologia Pública (PAP) repensar, após 12 anos de práticas de trabalho, de extensão com as comunidades onde eles realizam salvamento arqueológico. Este trabalho busca a conscientização das questões em jogo a partir do PAP, no

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seu objectivo de reforçar os laços com as comunidades de práticas específicos de extensão, após a recuperação, pesquisa, conservação preventiva, educação e avaliação dos bens que considerada patrimônio. Palavras-chave: Patrimônio Arqueológico, Arqueologia Pública, Córdoba (Argentina).

ABSTRACT

Today, there is more knowledge, appropriation, reinvention and exercise of Cultural Rights by social agents belonging to different communities: local, academic and native. In Córdoba (Argentina), these rights are manifested in a) demands and claims of archaeological remains being at risk, remains that communities consider part of their cultural heritage, b) participation in the organization of meetings, seminars and lectures about history, memory and identity, and in c) search for closer ties with the Universidad Nacional de Córdoba to learn more about the native peoples that inhabited Córdoba in the past. This situation has required to the Programa de Arqueología Pública (PAP) rethink, after 12 years of work, extension practices with the communities where they conduct archaeological rescues. The aim of this paper is to release the problems addressed by PAP, in its aim to strengthen links with communities from specific extension practices, after recovery, research, preventive conservation, education and assessment about archaeological remains considerer heritage. Keywords: Archeological Heritage, Public Archeology, Córdoba (Argentina).

INTRODUÇÃO

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Desde un punto de vista geográfico, la provincia de Córdoba ocupa parte de la región austral de las Sierras Pampeanas, abarcando los cordones montañosos de las provincias de Córdoba y San Luis, así como las llanuras orientales y occidentales aledañas (CAPITANELLI, 1979). Su posición geográfica intermedia, ocupando el centro del territorio argentino, fue significativa a lo largo del tiempo en la historia de las poblaciones que la habitaron. El registro arqueológico da cuenta de una ocupación humana de por lo menos 12000 años AP (FABRA, 2009). Por lo cual es muy frecuente el hallazgo de sitios arqueológicos cuando se realizan cualquier tipo de obras de infraestructura, así como debido por la acción de agentes naturales, tales como crecidas de ríos o por grandes torrentes de agua ocasionados por lluvias estivales, erosión hídrica de costas de lagunas, etc. Estas causas ponen al descubierto sitios de gran valor para conocer el modo de vida de los antiguos pobladores de esta región. Desde el último cuarto del siglo XIX, esta región fue de gran interés para el estudio de naturalistas y arqueólogos, interesados en el conocimiento de la flora, la fauna así como la historia de los antiguos pobladores. El impulso a estas investigaciones fue dado de un modo especial por la creación de la Facultad de Ciencias Físico-Matemáticas (hoy Facultad de Ciencias Exactas, Físicas y Naturales) de la Universidad Nacional de Córdoba (1876) y la Academia Nacional de Ciencias (1878). En la creación y puesta en marcha de estos espacios académicos- universitarios se invitó a destacados naturalistas alemanes de la época, así como a científicos argentinos (TOGNETTI, 2000).

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2 Entre 1999 y 2007 nuestro grupo se denominó “Equipo de Arqueología de Rescate y educación patrimonial” (Museo de Antropología, FFyH, UNC), luego “Proyecto de Arqueología Publica” (20772011, Museo de Antropología, FFyH, UNC) y ”Programa de Arqueología Publica” (2011 y continua, Museo de Antropología y SEU-FFyH, UNC).

Los primeros argentinos interesados en el pasado humano de la región, desde fines del siglo XIX hasta mediados del siglo XX, fueron Florentino Ameghino (1885-1889), Alfredo Castellanos, Félix Outes (1878-1939), Francisco De Aparicio (1892-1851), Monseñor Pablo Cabrera (1857-1936), Antonio Serrano (1899-1982), Aníbal Montes (1886-1859) y Alberto Rex González (1918-2012) (LAGUENS y BONNIN, 2010; ZABALA, 2010a). Algunos de los aportes que nos interesa retomar a los fines del presente artículo son sus contribuciones a la interpretación de la construcción histórica del pasado cordobés: el aporte de Ameghino al establecer una cronología relativa de dos etapas en el desarrollo cultural, una inicial de cazadores y otra posterior de agricultores; de Outes, quién utilizó la técnica de mapas de distribución de rasgos para delimitar las áreas culturales en el espacio geográfico y analizar los cambios culturales a partir de la difusión. Para hacer sus estudios acudió a las crónicas de viajeros de la época de la conquista española y comenzó a hablar de “Comechingones” para denominar a los antiguos pobladores del territorio cordobés (LAGUENS Y BONNIN, 2010). Este modo de historizar y comprender el pasado, así como de nombrar a los antiguo pobladores, fue retomado en los trabajos de Cabrera, De Aparicio y Montes, y se profundizaron y sistematizaron en la obra Los Comechingones de Serrano (1945). Esta obra cristaliza un pasado de los indígenas, homogeneizando su modo de vida, quitándole profundidad y complejidad histórica. Hasta hoy, este libro es muy consultado y utilizado como material de referencia para producir conocimiento y enseñar sobre los indígenas de Córdoba así como para producir memorias sociales indígenas presentes. En este hito histórico académico se funda la importancia de nuestro Programa, el cual intenta discutir y poner en tensión estos temas, tanto en la sociedad como en el mundo académico universitario, vinculados al poblamiento originario de la provincia, los modos de vida de sus poblaciones a lo largo del Holoceno, a partir de las investigaciones realizadas sobre más de 80 sitios y restos arqueológicos recuperados a lo largo de 12 años de trabajo en la provincia de Córdoba2 (FABRA et al., 2008a, 2008b; FABRA y DEMARCHI, 2009; FABRA et al. 2012; ZABALA et al., 2012). En este artículo queremos sistematizar, reflexionar y dar a conocer la problemática abordada desde el PAP, con el objetivo de estrechar vínculos con las comunidades a partir de prácticas extensionistas, en pos de la recuperación, investigación, conservación preventiva, valoración y educación de los bienes que las mismas consideran de valor. Buscamos reconfigurar los vínculos entre las comunidades locales, los pueblos originarios y los universitarios en torno al patrimonio arqueológico, generando espacios de encuentros multivocales donde poner en tensión los saberes ancestrales, los discursos políticos y los saberes académicos.

Ay e r A r q u e o l o g í a d e r e s c a t e y e d u c a c i ó n patrimonial... Hoy Arqueología Pública: los desafíos de la multivocalidad El surgimiento de la Arqueología Publica puede vincularse con las transformaciones sociales y académicas que se han desarrollado en las últimas décadas a nivel global, así como con el surgimiento de posicionamientos

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críticos hacia la neutralidad de la ciencia y la objetividad, heredadas del positivismo (FUNARI y ROBRAHN-GONZÁLEZ, 2006). La Arqueología de Rescate surgió a partir de los debates que se generaron, principalmente en Estados Unidos entre las décadas de 1960 y 1970 por el problema de la pérdida irreparable de sitios arqueológicos y paleontológicos con motivo de la construcción de grandes obras de infraestructura que producían enormes remociones de tierra o dejaban bajo agua vastas porciones de territorio. Así, el objetivo de esta disciplina era registrar y recuperar la mayor cantidad bienes y sitios arqueológicos en peligro de destrucción. Esta práctica generó un gran debate en Estados Unidos acerca de los criterios de selección de los bienes patrimoniales a preservar, al respecto R. Thompson (1982) considera que todo hallazgo tiene significado por su posible contribución al conocimiento del pasado y por ende debe ser salvado. Por lo tanto los bienes rescatados tienen un significado actual, entienda sé al momento del rescate, y uno potencial a medida que se generen nuevos conocimientos en el desarrollo científico (ENDERE, 2000). Con el mismo sentido, pero mayor especificidad, nació la Arqueología Pública en ese mismo país, en el año 1972, tras la publicación del libro Public Archaeology de Carles McGimsey, donde es acuñado por primera vez el término. En él, presenta las acciones de publicidad que se hacían desde los parques nacionales y pone de relieve la integración de las comunidades locales con el patrimonio. Años más tarde, en 1999, el European Journal of Archaeology publica dos volúmenes dedicados a la Arqueología Pública, pero en la introducción, el museólogo inglés Tim Schadla-Hall, habla de la Arqueología Comunitaria. La diferencia se centra en que Europa no tenía como problema la relación de los indígenas con el patrimonio como referente de la identidad y la territorialidad, como si ocurría en Estados Unidos Hay dos ideas básicas comunes que la definen como son la teoría y la acción (ALMANSA SANCHEZ, 2011). En esta relación entre la práctica arqueológica, el patrimonio y la comunidad es que surge la Arqueología Pública, donde el arqueólogo toma una posición políticamente activa. La interacción con las comunidades (locales, nacionales, trasnacionales) pasa a tener un papel fundamental tanto en la práctica como en la teoría arqueológica (FUNARI y ROBRHAN-GONZÁLEZ, 2007). Esta sub disciplina de la Arqueología reúne una larga lista de temas como son el saqueo y tráfico de bienes culturales; la relación entre arqueología y nacionalismo; derechos humanos; el reconocimiento de los derechos de los grupos indígenas a sus patrimonios culturales, la representaciones de la arqueología en los medios de comunicación; la industria del patrimonio y la autenticidad de las representaciones del pasado; y la relación entre patrimonio y educación entre otros temas posibles (CONFORTI, 2009) . En los últimos años, ha quedado de manifiesto la importancia de entender a la práctica arqueológica como un saber compartido, entre investigadores y comunidades involucradas en la protección de su patrimonio, no sólo como la producción de conocimientos acerca del pasado, sino con un grado de compromiso social hacia el presente, por parte de los investigadores (CASTRO et al., 2007). Con este marco de referencia, reflexionemos acerca de la particularidad de las prácticas realizadas en Arqueología Pública, en Argentina, puntualmente el desarrollo que las mismas han tenido en Córdoba en los últimos años

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3 Sobre el tema, ver Informes de Gestión del Museo de Antropología FFyH-UNC.

4 El Reglamento del Museo de Antropología aprobado por Ordenanza 1/2002 del Honorable Consejo Directivo de la FFyH-UNC, con fecha del 16/09/2002, reconoce las siguientes áreas: Investigación, Educación y Difusión, Conservación, Documentación y Museografía.

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porque, como señala Gnecco (2007), no existe una única manera de hacer Arqueología Pública. Desde fines de la década de 1990, el Museo de Antropología de la Facultad de Filosofía y Humanidades, Universidad Nacional de Córdoba fue receptor de innumerables pedidos por parte de diversos agentes sociales, instituciones estatales (museos, escuelas, municipios) y organizaciones no gubernamentales (Amigos de la Arqueología, aficionados a la arqueología, asociaciones patrimoniales) para dar respuesta frente a situaciones de pérdida o destrucción de sitios arqueológicos en la provincia de Córdoba (FABRA et al., 2005, 2008a, 2008b). Estas demandas llevaron a la directora del Museo, Mgter. Mirta Bonnin a procurar las políticas universitarias pertinentes para formar recursos humanos idóneos, así como institucionalizar equipos de trabajo interdisciplinarios con el fin de transformar a la institución en un espacio de referencia para la sociedad cordobesa sobre la recuperación y puesta en valor de los patrimonios3. Fue así como se formaron dos equipos, uno que llevaría adelante tareas vinculadas a la práctica de la arqueología de rescate, a la investigación de las colecciones y los sitios arqueológicos en riesgo, y otro orientado a la realización de prácticas de educación patrimonial, en ambos equipos, priorizando la formación de recursos humanos del grado. Por un lado difundían y comunicaban los resultados de los trabajos y las investigaciones académicas realizadas sobre estos sitios, y por otro generara debate y problematizara acerca de temas patrimoniales, el rol del arqueólogo y los procesos de patrimonialización, a través de la sensibilización de los pobladores mediante prácticas de educación e interpretación patrimonial (ZABALA et al. 2006, 2008, 2010b y 2010c). En el año 2006, se ganó un subsidio de la Secretaría de Políticas Universitarias del Ministerio de Educación de la Nación, con un proyecto de investigación y extensión dirigido por el Dr. Andrés Laguens y Bonnin. Dicho proyecto preveía el trabajo conjunto de arqueólogos y educadores interesados en los problemas del patrimonio arqueológico, y fue la base del presente Programa de Extensión. Por las particularidades de sus objetivos y metodologías de trabajo no podía ser ubicado en una única Área4 del Museo, ya que a la vez contemplaba la realización de trabajos de investigación, conservación de colecciones y educación, desde un enfoque multidisciplinario. En ese momento, el proyecto se redactó en torno a una propuesta de una estudiante de la Carrera de Historia, oriunda de la localidad de Villa de Soto cercana a Charquina, quien manifestó su preocupación por la pérdida de aleros con arte rupestre por la explotación minera (URIBE y OCHOA, 2008). Parte de los resultados de las investigaciones realizadas en el marco de dicho proyecto se publicaron en Arqueoweb. Revista de Arqueología en Internet (2008, número 10), y en Educar en Patrimonio: Educar en Valores. Propuesta didáctica para interpretar el patrimonio en el aula (2006), publicación del Museo destinada a docentes como estudiantes del nivel primario. Esta última publicación surgió a partir de nuestra inquietud de que los conocimientos generados en el equipo llegaran, con la transposición educativa pertinente, al mayor número de personas posibles, teniendo en cuenta la diversidad y potenciándola como riqueza para abordar los problemas planteados. El deseo

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es que estos saberes tengan un impacto inmediato, en este caso, en el sistema educativo provincial. En años recientes seguimos trabajando de la provincia de Córdoba, y en nuevas publicaciones que dieran cuenta del trabajo y las inquietudes del equipo. Nuestro último cuadernillo, titulado Pueblos de las sierras, del piedemonte, de los valles y la llanura: la protección del patrimonio arqueológico de las sociedades indígenas de Córdoba (2010), se pensó para aquellos educadores que quisieran abordar el estudio de los modos de vida de los pueblos originarios que habitaron las sierras, el piedemonte, los valles y la llanura de Córdoba desde su patrimonio material. Lo novedoso de la propuesta es que aporta una nueva mirada sobre estas sociedades a partir de investigaciones arqueológicas recientes, haciendo hincapié en la antigüedad de los pobladores de Córdoba y la diversidad en los modos de vida desarrollados en estos 10.000 años, así como de los estudios de la arqueología pública realizados en la provincia desde nuestro proyecto. En el año 2011 formalizamos el Programa de Arqueología Pública: patrimonio arqueológico y derechos culturales en el Noreste de la provincia de Córdoba, como resultado de la interacción entre el Museo de Antropología (FFyH, UNC), la Secretaría de Extensión Universitaria (FFyH-UNC) y distintos museos del este de la provincia. Delimitamos el trabajo a esta región geográfica no sólo por los numerosos e importantes sitios arqueológicos identificados en la margen sur de la Laguna Mar Chiquita, expuestos principalmente debido a la acción erosiva de las aguas y las fluctuaciones que ha tenido su nivel en los últimos años, sino también por los vínculos establecidos con sus pobladores y sus museos, que muestran un gran interés por conservar estos sitios, así como conocer y difundir su historia. Este interés también se fundamente en que los Bañados del Río Dulce y la Laguna Mar Chiquita ha sido declarada Reserva Provincial de Usos Múltiples (1994), sitio Ramsar (2002) y sitio de importancia continental para aves playeras (2008). Esta región atraviesa diferentes problemáticas que ponen en riesgo sitios arqueológicos y el ambiente. Esta situación, sumada a la ausencia de políticas estatales en torno a su protección generó que en el transcurso de 2012 se hayan realizado una serie de reuniones, organizadas por museos de la región, asociaciones civiles y nuestro Programa, con el objetivo de establecer acciones y estrategias para cambiar la situación. En estas reuniones han participado representantes de estas organizaciones, vecinos de las distintas comunidades y autoridades municipales, a las cuales se les ha planteado la gravedad de la situación y las posibles acciones que pueden pensarse para revertir la misma a través de distintas propuestas: elaboración de cartas de riesgo arqueológico, que posibiliten un plan de manejo de la región, ofrecer charlas y talleres, que permitan problematizar este tema e involucrar a los vecinos en cuestiones vinculadas a la protección del patrimonio arqueológico y designar a la región como Reserva Arqueológica. Si bien quienes nos convocan ante la aparición de restos arqueológicos son los museos municipales de la región, es notable que las distintas comunidades reconstruyan su historia principalmente a partir de un hito como fue la llegada del ferrocarril a fines del siglo XIX. Aunque no desconocen la existencia de restos arqueológicos que dan cuenta de una compleja y profunda historia para las comunidades originarias de la región que se remonta como

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5 Se realizaron fechados radiocarbónicos sobre restos óseos humanos arqueológicos de diversos sitios de la costa sur de la laguna Mar Chiquita, siendo el más antiguo de C14 4525 ± 20 años AP (FABRA y DEMARCHI, 2009).

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mínimo a 5000 años5, en el imaginario local los pobladores se reconocen como hijos de inmigrantes europeos, en su mayoría italianos y españoles, aunque también hay descendientes de europeos del Este. Estas identidades construidas en torno a un origen como localidades vinculados a la inmigración reciente europea, se contraponen con una serie de estudios basados en ADN mitocondrial de pobladores actuales de las localidades de La Para, Miramar y La Tordilla, ambas ubicadas en el noreste de la provincia de Córdoba, los cuales han demostrado que el 80% de las personas analizadas presenta alguno de los 4 linajes maternos amerindios (GARCÍA y DEMARCHI, 2009). Aunque reconocemos que la identidad se construye desde distintas dimensiones sociales, no podemos negar que una de esas dimensiones es la filiación por el ADN. Además de los museos regionales, a partir de 2011 nuevos actores se han sumado a este diálogo en torno al patrimonio arqueológico, y son las comunidades Comechingonas de la provincia de Córdoba. A partir de la conmemoración de los 500 años de la llegada de los españoles a América, comenzó un proceso de autoreconocimiento de los Pueblos Comechingones de Córdoba, que ha ido tomando fuerza y consolidándose en los últimos años, culminando con el reconocimiento por parte del Instituto Nacional de Asuntos Indígenas de nueve de estas comunidades. Sus intereses, nivel de involucramiento y participación en trabajos de campo nos desafían a entablar nuevos diálogos en torno a éticas de trabajo, el uso y valor de los bienes arqueológicos, intercambiar conocimientos en torno a los pueblos originarios de Córdoba, así como discutir protocolos de trabajo. El proceso descripto anteriormente no sólo da cuenta de cómo fue construyéndose nuestro equipo en estos 12 años en la práctica de la Arqueología Pública en Córdoba, desde un ámbito académico universitario, sino de la particularidad de esta práctica en nuestra provincia, en un escenario que ha ido complejizándose en el tiempo, gracias a la participación y los intereses de nuevos actores. Entonces, ya no sólo entramos en diálogo con vecinos, miembros del estado, ciudadanos movilizados por intereses culturales- patrimoniales o estudiantes oriundos de localidad con sitios arqueológicos sino también con miembros de los pueblos originarios. Reconocemos que como antropólogos, biólogos, historiadores, geógrafos y arqueólogos producimos un tipo particular de conocimientos y saberes sobre el pasado. A partir de nuestras prácticas extensionistas intentamos acercar y devolver estos saberes a las comunidades interesadas en conocer más acerca de las poblaciones que habitaron este territorio en el pasado, discutir acerca de la complejidad y riqueza de sus modos de vida a lo largo del tiempo. Aportar desde un tipo particular de saberes, construidos desde la práctica arqueológica y antropológica, a los procesos de construcción de identidades y memorias locales. Consideramos que la realización de estas tareas desde un Museo Universitario, entendido como nexo entre el conocimiento sobre el patrimonio y la sociedad, es un aspecto expresivo de la democratización y extensión de la cultura y la ciencia, y un importante elemento a tener en cuenta en los procesos de inclusión social y cultural.

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Prácticas extensionistas Consideramos que las comunidades tienen el derecho de conocer acerca de los resultados de los trabajos que arqueólogos y antropólogos realicen sobre bienes arqueológicos que las mismas consideran de valor patrimonial, puntualmente, conocer acerca de los modos de vida de los pobladores que habitaron el territorio que hoy ocupan esas comunidades, así como decidir sobre su gestión. Desde nuestro programa apoyamos las gestiones que puedan realizar estas comunidades y organizaciones públicas sobre sus bienes arqueológicos. En el caso que en estas comunidades haya museos públicos, iniciamos las gestiones frente a la Dirección de Patrimonio Cultural del Gobierno de la Provincia de Córdoba para que estos bienes formen parte de las colecciones de dichos museos. De este modo generamos prácticas de intervención social donde aportamos a la resolución de problemáticas vinculadas al patrimonio arqueológico, y esa participación nos compromete a repensar, como académicos, nuestras propias investigaciones con un claro tamiz social. Valoramos al conocimientos como un bien público que nos pertenece a todos (PACHECO, 2008). Entendemos a la Educación Patrimonial como la didáctica y la interpretación de los bienes patrimoniales. De esta forma, en los espacios que generamos y proponemos desde nuestro programa nos impulsa el deseo de construir experiencias de interacción cooperativa, donde los participantes locales sean protagonistas del proceso y de la toma de decisiones. Estos espacios suelen generan situaciones de tensión o disenso al interior de la comunidad o entre los participantes de las actividades, en torno a la apropiación y significación del patrimonio, así como también agradecimiento y respeto por la construcción del pasado local que realizamos desde estas prácticas. A continuación reseñamos las principales actividades extensionistas realizadas desde nuestra constitución como Programa de Arqueología Pública. Trabajos de Arqueología de Rescate Los trabajos de rescate fueron convocados por museos y municipios del interior provincial, como por denuncias realizadas por particulares ante instituciones judiciales (Juzgados, Fiscalías) o policiales (comisarias). Esto es así porque gran parte de los hallazgos tienen que ver con la aparición de restos óseos humanos. Desde el año 2009 se ha puesto en marcha un Convenio entre el Poder Judicial de la provincia de Córdoba, el Equipo Argentino de Antropología Forense y nuestro programa, dentro del Museo de Antropología (FFyH, UNC) para dar respuesta ante este tipo de pedidos. Mediante ese convenio, inédito en la Argentina, antropólogos forenses y arqueólogos realizan la exhumación en conjunto de los restos en el campo, y determinan si se trata de restos humanos, en primer término, y si son de interés forense o arqueológico. Una vez estimado su carácter, se deriva los hallazgos al Instituto de Medicina Forense, Museo de Antropología – FFyH, UNC – o museos públicos de las localidades donde se han realizado los hallazgos (Figura 1a). En este marco, se han realizado un total de 14 rescates casos arqueológicos (10 en 2011 y 4 en lo que va del 2012). Por otro lado, se trabajó en un total de 36 casos de interés forense (23 en 2011 y 13 en 2012). En estos traba-

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6 Si bien la Universidad Nacional de se encuentra próxima a cumplir 400 años de historia, ciertas disciplinas son de reciente desarrollo en esta casa de estudios. Tal es el caso de la Antropología: en el año 2002 se creó la Maestría en Antropología, en el año 2009 el Doctorado en Ciencias Antropológicas y en el año 2010 la Licenciatura en Antropología. Esta reconstrucción histórica de la institucionalización académica de la Antropología en la UNC permite dar cuenta de la importancia que tiene para este Programa de Extensión incorporar estudiantes de dicha carrera, a modo de espacio formador no solo de la disciplina sino de las prácticas extensionistas.

jos participaron alumnos de grado de la carrera Licenciatura en Antropología6 (FFyH-UNC), tanto en los trabajos de campo como en el posterior análisis bioantropológico de los restos. Para realizar está tareas, los estudiantes deben firmar una Protocolo de Trabajo donde se les informa acerca de las normas de trabajo tanto en el campo como en el laboratorio. Consideramos que este instrumento ayuda a generar compromiso y sentido de pertenencia con el Programa, así como una actitud ética en el trabajo con bienes arqueológicos patrimoniales. Durante las tareas de rescate los pobladores, miembros de los pueblos originarios así como turistas se acercan para preguntar qué tareas se están realizando, quienes somos, cómo trabajamos (Figura 1b). Para responder algunas de estas inquietudes hemos producido un díptico que se reparte durante el trabajo de campo. El mismo está estructurado a partir de un estudio previo donde registramos cuáles eran las preguntas más frecuentes, así como información acerca de normas de comportamiento esperadas para la realización del trabajo: ¿Quiénes estamos trabajando? ¿Qué es la Arqueología Pública?¿Qué actividades realizamos?¿Por qué es importante que trabajen arqueólogos y antropólogos? ¿Por qué es importante la participación de la comunidad en las charlas y talleres?¿Querés conocer más? Con este material buscamos entablar un vínculo de confianza, reconocimiento y respecto con los visitantes. Este material comenzó a ser entregado en el mes de Julio del corriente año, por lo cual aún no tenemos una evaluación de los resultados.

Figura 1. Trabajos de Arqueología de rescate en la provincia de Córdoba. 1a: sitio Tio Pujio 01 (2010), 1b: sitio Loteo 5 (2011).

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Asimismo, cabe destacar que dentro de las actividades realizadas desde el Programa contemplamos el análisis y acondicionamiento de colecciones, el relevamiento e inventario de colecciones arqueológicas – principalmente bioantropológicas – de otros museos del interior provincial, a partir de la solicitud de dicho servicio.

Re s t i t u c i ó n d e r e s t o s h u m a n o s A partir del pedido realizado por la Intendencia de la localidad de Villa de Tránsito, se procedió a la restitución de restos óseos humanos recuperados en el sitio arqueológico “Arenera Pintussi-Tránsito” de la mencionada localidad, junto con una copia del informe realizado a partir del análisis del material. La devolución tuvo lugar en el marco los festejos por el Día de los Orígenes, el 14 de Marzo de 2011, y el hallazgo fue declarado de interés municipal (Figura 2a). Durante el mismo acto, se dictó una conferencia destinada al público en general, en donde se describió el Convenio mediante el cual se procedió a la recuperación de los restos, así como los Protocolos de Trabajo en arqueología, tanto en campo como en laboratorio, los resultados obtenidos a partir del análisis de los restos óseos recuperados, y una síntesis general acerca del modo de vida de los habitantes prehispánicos de la zona, a partir de investigaciones previas en cuanto a antigüedad de los restos, alimentación, actividades cotidianas y prácticas mortuorias. Por último se abordaron conceptos como patrimonio arqueológico, educación patrimonial y pluriculturalidad, entre otros (ACHINO et al., 2012).

Figura 2. Actividades extensionistas. 2a: restitución de restos en Villa de Tránsito (2010); 2b: Dictado de charla en San Carlos Minas.

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Charlas y talleres Las charlas y talleres, orientados a distintos públicos, son parte de los trabajos de arqueología realizados en las distintas localidades donde se produjeron hallazgos. En estas actividades, cuya modalidad es de charla-taller, no solamente se dan a conocer los resultados de las investigaciones realizadas en la zona para que las comunidades interesadas conozcan más sobre los modos de vida de las sociedades prehispánicas que habitaron Córdoba, sino que también se realizan actividades donde los habitantes de la comunidad participan activamente como agentes constructores de su patrimonio (Figura 2b). En 2010 se dictaron dos charlas, acerca de los precursores de las ciencias antropológicas en Córdoba, y sobre los pueblos originarios que habitaron la provincia, a alumnos de profesorados de la ciudad de Córdoba. Asimismo, se diseñaron y planificaron charlas de difusión sobre los aportes que pueden hacer a la comunidad las investigaciones arqueológicas para conocer su pasado, y en base a esos nuevos saberes, aportar a la reconstrucción de su historia e identidad. Las mismas tienen por objetivo sensibilizar a la comunidad con respecto a la importancia del trabajo de los arqueólogos en caso de hallazgo fortuito así como en excavaciones programadas. Por otro lado, buscamos que la comunidad conozca sus derechos culturales, se apropie de ellos y los haga cumplir. Las charlas están estructuras en un exposición por miembros del equipo, luego una trabajo en grupo de los participantes a partir de la exposición y un cierre grupal. La metodología de la charla es aula-taller como estrategia de enseñanza donde el educador y el participante tienen un rol activo en el aprendizaje (ABADI, 2006). El aula-taller se divide en tres momentos: actividad inicial, síntesis informativa o desarrollo del marco teórico, y actividades de afianzamiento, integración y extensión. Los saberes previos de los participantes son recuperados por el educador y en algunos casos, revalorizados, y en ellos se hace el anclaje de nuevos saberes generados en esta nueva instancia de aprendizaje. Estas charlas fueron ofrecidas en las localidades de Miramar y Villa de Transito durante los meses de Marzo y Junio de 2012.

Proyecto audiovisual Se trabajó sobre un proyecto documental titulado Lo tuyo, lo mío, lo nuestro… ¡Arqueología Pública, al Rescate!, con el doble objetivo de dar a conocer un nuevo campo de estudio de las Ciencias Antropológicas como es la Arqueología Pública en la Argentina, puntualmente tomando como caso nuestra experiencia de trabajo como Programa de Extensión. A partir de indagar sobre el lugar que ocupa hoy en nuestra sociedad el patrimonio arqueológico, y su responsabilidad social y política, se analiza cómo se producen los procesos de patrimonialización. En este documental se plantea la necesidad de involucrar a la comunidad en las tareas de gestión, difusión y comunicación del patrimonio. El proyecto está compuesto por 4 capítulos que busca problematizar acerca de un tema muy caro a los cordobeses como es la presencia indígena, pasada y presente, buscando darle evidencias materiales y sustento teórico para mostrar su profundidad histórica y su diversidad en el modo de vida.

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Algunas consideraciones Como hemos tratado de mostrar, nuestro trabajo como académicos de un Museo de Antropología interesados por la recuperación, estudios y puesta en valor de los patrimonios arqueológicos de la región en conjunto con las comunidades locales y las comunidades originarias, ha ido cambiando en sintonía con las nuevas miradas que ha tenido la sociedad en torno al pasado indígena de la región. La mirada retrospectiva elegida por nosotros para dar cuenta de la historia del programa permitió reflexionar y dar cuenta de los procesos de etnicidad iniciados recientemente en nuestra Provincia, el replanteo del rol del arqueólogo en su vínculo con la comunidad en torno al patrimonio, y los procesos de revalorización del patrimonio arqueológico por parte de la sociedad, entre otros temas. Hasta hace muy poco los pueblos originarios no se reconocían, ni demandaban participar en las decisiones sobre los bienes arqueológicos como lo hacen en este momento. Nosotros tenemos la relación con los pueblos originarios en el mismo territorio. Esta nueva realidad demanda una mirada reflexiva en la comunidad académica acerca de nuestro trabajo, y pensar la generación de metodologías de trabajo conjunta con los pueblos originarios y las comunidades locales. Consideramos que nuestro programa de Arqueología Pública comparte con otros proyectos arqueológicos ciertos objetivos y miradas acerca de la disciplina y el rol social del arqueólogo. Seguramente, el trabajar en conjunto con aquellas comunidades que manifiesten preocupación por la protección del patrimonio arqueológico, así como acercar los saberes generados a partir de la investigación realizada sobre sitios y restos arqueológicos en riesgo de destrucción, pueden ser aspectos en común con otros proyectos similares. Sin embargo, hacer arqueología publica en Córdoba, puntualmente de la forma en la que hemos trabajado como equipo en este programa, tiene ciertas particularidades que pueden ser señaladas. En primer lugar, por estar inserto en un museo universitario de alta visibilidad y presencia en la sociedad cordobesa, nuestro programa pudo articular tanto las demandas en torno a la protección del patrimonio como la investigación de dichas colecciones. Además, este museo forma parte de una Facultad dedicada al estudio de las ciencias humanas y sociales, no naturales, como en el caso de otros museos universitarios de la Argentina. La formación de grado de la mayoría de los miembros del equipo proviene de la Historia – con especialidad en Arqueología-, Biología, Geografía, y de postgrado en Antropología. Otra particularidad está dada por las demandas en sí mismas: en su mayoría, se solicitó nuestra intervención en sitios arqueológicos definidos principalmente por la aparición de restos óseos humanos. Esta particularidad permitió que nuestro equipo se especializara en el análisis bioarqueológico de los restos, dando origen a una serie de proyectos de investigación y tesis de grado y postgrado que han abierto una nueva línea de indagación en ese aspecto de los estudios arqueológicos.

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“A q u i n A o é R u í n A s q u i l m e s , é A C i d A d e s A g R A d A q u i l m e s ” – d i s p u tA s pAt R i m o n i A i s e m t o R n o de um sítio ARqueologiCo no noRoeste ARgentino AutoR Frederic pouget [email protected]

Resumo

Bacharel em Ciências Sociais-USP, Mestre em Arqueologia-USP e Doutorando em História Cultural – UNICAMP. Bolsista de doutorado FAPESP

A história dos índios quilmes, situados no noroeste argentino, representa um caso paradigmático nos termos de um discurso patrimonial. Na Ciudad Sagrada Quilmes, não só encontramos os vestígios arqueológicos monumentais dessa antiga cultura andina, mas também discursividades que refletem aspectos de dominação e resistência vivenciada por esse povo. Toda essa trajetória pode ser seguida tomando como exemplo os aspectos patrimoniais do sítio arqueológico- Ciudad Sagrada Quilmes- sendo possível, portanto, refletir sobre o caráter de agentes históricos das populações nativas e como elas atuam frente a verdades históricas (acadêmicas ou não) exteriormente elaboradas. Tais questões se aproximam do debate teórico sobre etnicidade (BARTH, 1969; 1998; POUTIGNAT e STREIFF-FERNANT, 1998), que, no caso quilmes, se correlaciona diretamente com o sitio arqueológico e com sua perspectiva de memória coletiva histórica evidenciada pela disputa patrimonial. palavras-chave: Patrimônio, Discursividades, Quilmes.

ABstRACt

The history of the Quilmes Indians, located in the northwestern Argentina, is a paradigmatic case in terms of heritage discourse. In the “Ciudad Sagrada Quilmes”, we found not only the monumental archeological remains of this ancient Andean culture, but also discourses that reflect aspects of domination and resistance experienced by these people. This entire trajectory can be fallowed if we have in account the heritage aspects of the archaeological site – Ciudad Sagrada Quilmes- that implies to reflect the native population as agent of his history and how they act in face of historical truths (academic or not) externally developed. Such questions are closer to the theoretical debate about ethnicity (BARTH, 1969; 1998; POUTIGNAT; STREIFF-FERNANT, 1998), and correlates directly with the archaeological site and quilme’s historical perspective of collective memory evidenced by heritage dispute. Keywords: Heritage, Discourse, Quilmes.

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Figura 1: Placa de apresentação da comunidade para os visitantes junto ao sítio arqueológico.

INTRODUÇÃO

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O intuito deste trabalho é fornecer uma reflexão em torno das problemáticas de disputa patrimonial e da disputa de sentidos históricos envolvidos neste mesmo patrimônio. Esse contraste é mais explícito no caso quilmes, por ser tratar de uma população indígena que traz para si uma compreensão própria de etnicidade em torno do sitio arqueológico e da memória histórica. (BIDASECA e RUGGERO, 2011) O grupo indígena quilmes sofreu, durante o período colonial, um quase extermínio (ou total, se verificarmos o senso comum argentino que, até hoje, considera os índios como extintos), sendo as poucas famílias restantes obrigadas a se mudarem da sua cidade sagrada nos vales andinos para uma futura vila próxima a Capital Federal, à aproximadamente 20 km de distância (LORANDI e BOIXADOS, 1988; SARASOLA, 2010). Hoje, Quilmes é uma cidade que faz parte da Grande Buenos Aires e empresta o seu nome à cerveja mais popular da Argentina. No entanto, os quilmes não desapareceram. Em um processo de tomada de consciência política por parte dos seus descendentes, eles tomaram para si – literalmente - sua herança histórica. As famosas “Ruínas de Quilmes”, marco do turismo arqueológico argentino, passaram a ser controladas pela comunidade indígena em 2008, sendo ressignificadas como Ciudad Sagrada Quilmes, à revelia de arqueólogos, agentes governamentais e turísticos. Nesse sentido, a “Ciudad Sagrada Quilmes” não é somente um espaço de poder, mas é também um espaço de agência histórica para a resistência dos grupos oprimidos por um determinado processo de (des)territorialização (CARRASCO, 2000). Cabe ainda a pergunta se a retomada da ação política por parte deste povo não estava presente bem antes desta intervenção, sendo a mesma só uma conseqüência do longo processo político identitário que os próprios quilmes, assim como outros povos indígenas argentinos, vêm manifestando nas últimas duas décadas. Isso se evidencia no período logo após abertura democrática no país, que aconteceu em 1983, depois de uma sangrenta ditadura que deixou, segundo os cálculos dos grupos de direitos humanos, mais de 30.000 mortos.

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Historiografia do sítio arqueológico quilmes

1 Vale lembrar que uma coleção de cerâmica calchaquie também se encontra no Museu de Arqueologia da USP. Coleção esta adquirida de Juan Ambrosseti e Francisco Moreno por Hermann von Ihering, antigo diretor do Museu Paulista em 1904 (FERREIRA: 2010).

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A “Ciudad Sagrada Quilmes” localiza-se a oeste na província de Tucuman, em um território montanhoso (pré-andino), chamado de vale de Yokavil (ou Santa Maria), estendendo-se ao norte até os Vales Calchaquies. Esta paisagem geográfica é compartilhada pelas províncias argentinas de Salta, Tucuman e Catamarca. Nela, encontra-se também a famosa Ruta 40 (que refaz o antigo caminho incaico, o qual se estendia desde Cuzco até a atual província de Mendoza), que corta o país do Norte até o extremo meridional Patagônio. O Pucará de Quilmes é um dos exemplos das cidades fortalezas do período pré-colonial da Argentina. Sua população se desenvolveu deste o século X, alcançando uma enorme complexidade cultural, com manejo agrícola e hidráulico, relações de intercâmbio político e econômico com o império incaico e sendo uma das principais frentes de resistência perante colonizador espanhol. Todavia, ao serem derrotados militarmente em 1667 (durante a terceira guerra calchaqui), sendo compelidos a um êxodo forçado, os 1000 indivíduos restantes (segundo cronistas, como D. Juan de Ceballos) foram instalados próximos a Buenos Aires (SOSA, 2007; LORANDI e BOIXADOS, 1988). No entanto, nem todos percorreram os 1500 km de êxodo. Várias famílias conseguiram fugir do cerco espanhol e se instalaram nas proximidades de sua antiga cidade. Ao analisarmos um pouco mais a história cultural deste patrimônio arqueológico, podemos compreender o porquê da desconfiança em explicações interpretativas geradas por cientistas historiadores. O período compreendido entre o final do século dezenove e o começo do século passado foi considerado como de florescimento da arqueologia argentina, consolidando a arqueologia enquanto ciência. (POLITIS, 1995; NASTRI, 2004; TARRAGÓ, 2003). As primeiras indicações sobre os quilmes, nesta fase pioneira, são verificadas nos relatos de campo de Lafone Quevedo, em 1883, Ten Kate, em 1894, e, claro, na obra bibliográfica do eminente antropólogo/arqueólogo Juan Bautista Ambrosetti, La antigua ciudad de Quilmes (Valle Calchaque), de 1897, que implanta técnicas inovadoras de análises estratigráficas no noroeste argentino. Outros artigos pioneiros indicativos sobre os quilmes foram aqueles referentes a coletas de artefatos cerâmicos produzidos por LA VAUX (1901): “Execursión dans les Vallées Calchaquies (Provience de Tucuman). Poteries indigenes ». Atualmente, tais artefatos se encontram no Musée Quai du Branly, em Paris.1 Ainda no século XIX, Padre Lozano (1873) publicou Historia de la conquista del Paraguay, Rio de la Plata y Tucuman, com algumas referências sobre os quilmes, especialmente sobre a suposta migração originária daqueles a partir do Chile. Por não citar sua fonte de pesquisa, ainda gera dúvidas quanto à veracidade da informação. Tais pesquisas ficaram conhecidas como ‘estúdios calchaquies’, ou “questão calchaquie”, pois assim se referiam os conquistadores espanhóis à população nativa que vivia naqueles vales. Naquela época, o consenso acadêmico permeava a ideia de sucessão de ‘civilizações’ (NASTRI, 2004), e, em 1906, como consequência desta perspectiva teórica, foram produzidas sínteses gerais, como “Alfarerias del Noroeste Argentino”, do Museu de

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LaPlata, e “cronologia de las culturas extinguidas y su reciprocas vinculaciones”, do Museu Etnografico da Universidade de Buenos Aires, sendo este focado em uma sistematização da cronologia arqueológica (NASTRI, 2010). Vale lembrar também que várias “tradições” arqueológicas foram estabelecidas nestas épocas, como, por exemplo, o debate sobre uma civilização diaguita de influência incaica (BOMAN, 1923; NASTRI, 2010; NASTRI e FERREIRA, 2010). Alguns trabalhos sobre os quilmes, já no seu contexto de redução indígena no século XVII, foram desenvolvidos por Guillermina Sors em “Quilmes Colonial”, em 1937. Tal trabalho se centra sobre a formação da cidade de Quilmes (parte da Grande Buenos Aires) e nos indica algumas informações sobre a dinâmica cultural dos quilmes em situação colonial baixo a tutela do Estado. Em especial, é possível acompanhar uma discussão acerca da sucessão do cacicado disputado por uma mulher, Isabel Pallamay, hoje elevada a símbolo histórico, como indica uma estátua em sua homenagem na cidade de Quilmes.

Re f l e x i v i d a d e d o d i s c u r s o h i s t ó r i c o Algumas considerações sobre esta fase pioneira das pesquisas científicas devem ser feitas. Alguns autores, como Oscar Moro-Abadia (2006), consideram que a história da arqueologia feita até 1980 se expressa como uma forma de discurso colonial, caso consideremos o seu modus operandi internalista que define a história como ciência em termos de evolução linear de ideias. Sob esta ótica, o “contexto” (econômico, político ou relacionado a instituições religiosas), não é especialmente importante para explicar a evolução da ciência. Em contraposição a esse modelo, as abordagens “externalistas” tomam forma, justamente por elaborar uma história crítica da arqueologia, capaz de englobar o caráter social, político e econômico envolvidos na prática da arqueologia, sendo possível explorar a própria subjetividade da disciplina. Todo esse jogo de apropriações discursivas relaciona-se diretamente com a ideia de cultura material, ao impor uma abordagem que abrange não só a historicização do espaço próprio cientifico e alheio, mas também a materialidade dos objetos, como uma forma de entender os diversos processos pelos quais as noções de subjetividade são construídas a partir de uma perspectiva tanto científica quanto indígena para, em seguida, retornar à arena política com uma reivindicação própria. (LAYTON, 1994a, 1994b; JENKINS, 2001; LATOUR, 1994; STENGERS, 2002; POUGET, 2010). Assim, os estudos pós-colônias oferecem uma ampla variedade de posições teóricas, ideias e categorias que nos ajudam a pensar os impactos das forças colonialistas e seus efeitos no que se referem à prática arqueológica. Dessa maneira, citando Gustavo Politis, Moro Abadia exemplifica o nosso contexto argentino: In Argentina, for example, between 1879 and 1881, the national government sent several military expeditions to the enormous Pampas and Patagonia territories, as part of the so-called ‘Conquest of the Desert’, to areas that were inhabited by Mapuche and Tehuelche indigenous people. Some scientists accompanied these expeditions and collected archaeological and ethnographic material, as well as the heads of dead indigenous people,

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for bio- anthropological studies. Following military conquests, the British developed a rail network across these territories, centered around Buenos Aires, and the La Plata Museum (one of the largest museums in South America) was constructed to store and exhibit the recent achievements of 2 Atualmente, o Museu de La Plata sofre constantes reivindicações – algumas contempladas por parte de certas etnias indígenas para a devolução dos restos humanos vinculados aos seus ancestrais.

the government and the scientists (POLITIS, 1995: 199).2

Entre os quilmes podemos ver os efeitos dessa arqueologia colonialista, principalmente na formação de coleções arqueológicas feitas por arqueólogos amadores e que chegam a ser institucionalizadas por autoridades municipais e provinciais, como é o caso do Museo de Arqueologia e História Cachaqui, na cidade de Cafayate, localizada próxima a “Ciudad Sagrada Quilmes” (província de Salta), aspecto este que também pode ser verificado na reconstrução de parte do sitio feito sob os auspícios de uma política mais turística do que científica (SOSA, 2007). Ultrapassando o marco de 1980, colocado por MoroAbadia, é visível, até hoje, as consequências dos processos de concessão comercial de exploração turística do sítio para terceiros, decorrente de uma política de privatização dos bens públicos que influenciou a América Latina dos anos 90 (e especialmente a Argentina). Atualmente, ainda podemos verificar atitudes colonialistas quando constatamos que o site oficial do governo da província de Tucuman insiste em denominar o sitio arqueológico como Ruina de Los Quilmes – e não Ciudad Sagrada – como atrativo turístico da região, mascarando a existência dos quilmes no local. (http://www.tucumanturismo. gov.ar. Acessado em: 26/07/2011.

grupos de interesse

3 É importante ressaltar, assim, que este momento da história argentina está marcado pela política de terrorismo de Estado, caracterizada pela perseguição a intelectuais e cooptação de pesquisas universitárias alinhadas a políticas nacionais, ponto comum em diversos governos totalitários da América do Sul.

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Detalhando um pouco estes processos desde uma perspectiva governamental, em 1977, durante a ditadura militar Argentina, foi realizado um plano de manejo turístico que recebeu a colaboração de alguns acadêmicos da Universidade de Buenos Aires para a reconstrução das “Ruínas del Quilmes”, como atrativo turístico da província de Tucuman, realizado sob o aspecto nacionalista do “Processo de Reoganizacion Nacional” (SOSA, 2007), que valorizava grandes momentos da história colonial, mas que também tinha o intuito de fornecer elementos turísticos para a Copa do Mundo de 1978. Os critérios de manejo patrimoniais ocorreram à revelia de padrões internacionais, sendo que a arcaica estrutura turística (um museu pequeno e um café) foi logo abandonada. A intervenção direta do Estado nacional sobre o sitio arqueológico ocorreu entre os anos de 1977 e 1980, com a participação do Instituto de Tilcara, da Universidade de Buenos Aires, na época sob a direção de Noberto Pelissero (PELISSERO e DIFRIERI, 1981). A partir de tal intervenção, temos, portanto, um interessante paradoxo: a valorização de um monumento arqueológico – fruto de um extermínio etnocida – construído como símbolo de uma grandeza nacionalista3. Tal aspecto já era posto em marcha anteriormente e possuía consequência na própria formação territorial do país, como aponta o artigo de Carrizo (2010) “Exploraciones arqueológicas en la construcción del territorio tucumano de fines del siglo XIX y principios del siglo XX” . Processos de construções de memórias nacionais semelhantes a esse podem ser encontrados em outros momentos da historia da formação dos Estados nacionais de outros países, como o uso de monumentos romanos e

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suas narrativas históricas, tendo como objetivo a afirmação de um determinado contexto do presente (SILVA, 2005; OLIVIER, 2005). No caso específico da reconstrução das Ruinas Quilmes, apesar do destaque dado ao grupo quilmes (ainda que invizibilizados no contexto contemporâneo), tanto a comunidade local quanto os pesquisadores acusam o processo gerenciado pelo Estado ditatorial argentino por ter sido acompanhado por péssimas pesquisas científicas e por saques e roubos de peças arqueológicas (CURTONI e ENDERE, 2003). Un caso distinto es el que ocurre en el Antiguo Quilmes‟. Todo empezó con la práctica de la “no-arqueología‟ de la década del 70’, cuando se encaró la “restauración” del sector central del poblado sin ningún tipo de investigación arqueológica. Parece que los autores del proyecto consideraron suficiente la reconstrucción basada en las fuentes históricas (ni abundantes ni precisas), desdeñando el estudio de las evidencias materiales. No se conocen planos ni plantas de procedencia de los múltiples hallazgos que se realizaron durante el enorme proceso de remoción de que fue objeto el poblado y del que fuimos testigos impotentes. No ha quedado de dicho trabajo ni un sólo fechado de radiocarbono ni una asociación contextual de áreas de actividad con construcciones edilicias, y las escasas piezas arqueológicas que subsisten en el museo de sitio, no poseen documentación de los hallazgos (TARRAGÓ, 1999: 235 apud Marchegani et al., 2003: 55).

Com base em tais acusações, é gerada uma série de questionamentos: que grupo quilmes era interessante para o Estado ditatorial argentino? Quais foram as memórias silenciadas ou destacadas neste processo narrativo? Como a História e a Arqueologia, de acordo com seus contextos específicos, construíram as “Ruinas Quilmes”? Depois de duas décadas, e já instaurada a democracia, foi realizada uma licitação para o manejo do sitio, ocorrendo, na prática, a sua ‘privatização’, à revelia de interesses locais ou de opiniões dos próprios quilmes. Assim, o empresário e artesão Hector Cruz, “vencendo” a licitação, tornou-se encarregado de expandir as obras de infraestrutura, com a instalação de um grande local de venda de artesanatos (decorrentes da exploração da mãode-obra local) e com a construção de um grande hotel, com direito a piscina e restaurante que, imediatamente, passou a ser considerado um dos pontos turísticos mais visitados da província. O descaso das autoridades públicas vis-á-vis à importância do sítio é marcante, já que tal empreendimento foi construído sobre a antiga praça comunal, sem nenhum estudo – até hoje – a respeito dos impactos arqueológicos produzidos. A partir da exploração comercial sobre a sua herança cultural, a Comunidad Indía Quilmes (CIQ) organizou-se politicamente durante as últimas décadas, tendo como bandeira a sua visibilidade étnica – contrariando a perspectiva de desaparecimento, provocada principalmente pelo mito das “Ruinas de Quilmes” – e o reconhecimento territorial. Mais recentemente, entre os anos de 2007 e 2008, os quilmes decidiram expulsar a iniciativa privada da gestão do seu patrimônio cultural. Deste modo, a CIQ tomou para si a responsabilidade de gestão do sitio arqueológico, renomeando-o, de forma paradigmática, de “Ciudad Sagrada de Quilmes”. Os conflitos políticos, contudo, permaneceram, principalmente, em

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relação à Secretaria de Turismo da província de Tucuman, que não aceitou um acordo com a comunidade. Os conflitos em questão evidenciam, mais uma vez, as disputas em torno do sentido de patrimônio mobilizadas tanto pela comunidade (BIDASECA e RUGGERO, 2011) quantos pelos agentes governamentais. Tal contexto maior, no que se refere às pesquisas arqueológicas na Argentina, pode ser conferido na obra de Maria Luz Endere (2007), “Management of Archaeological Sites and the Public in Argentina”. Situações semelhantes a esta – vale lembrar – aconteceram em diversos lugares do mundo. Nesse sentido, contribuições teóricas importantes a respeito da prática arqueológica e das alteridades indígenas foram feitas por autores como Siân Jones (1997), Robert Layton (1994a, 1994b), Bond e Gilliam (1994), Watkins (2000), Torrence e Clark (2000), Smith e Wobst (2005), Funari et al. (2005), mostrando que o interesse pelo passado e que o acesso a este é mais amplo do que os círculos acadêmicos. Não devemos desconsiderar trabalhos como os de Nastri (2003; 2004); Tarragó (2003) ou Podgorny (1995; 2009), no âmbito da análise da história arqueológica argentina, mas torna-se relevante ressaltar, neste momento, um aspecto essencial para a compreensão da história recente dos quilmes frente ao seu patrimônio: evidenciar a questão política do controle dos processos de patrimônio, do destino e do controle dos artefatos encontrados, relacionando tais aspectos a questões de etnicidade, territorialidade, fluxo comercial e turístico, além da questão sociológica clássica do “conhecimento para quem?” (UCKO, 1995; McGUIRE, 2004; POUGET, 2010).

Análise e contexto contemporâneo São as implicações de uma história de ‘longa duração’, segundo a perspectiva foucaultiana (FOUCAULT, 1969; 1979), que permitem a análise de rupturas e descontinuidades, que, por sua vez, revela subjetividades e relações de poder de um determinado caso (MARTINS, 2002). Inseridos nessa perspectiva teórica, ao se voltar o foco sobre o caso quilmes, no noroeste argentino, é possível colocar em contraste não só o registro escrito pretérito (feito pelos cronistas coloniais e as suas subjetividades), mas também o registro escrito contemporâneo (feito por arqueólogos, antropólogos, historiadores e, até mesmo, pela própria comunidade indígena, também com suas próprias subjetividades). Tal perspectiva é encontrada na análise de Fredrik Barth (1969) sobre etnicidade, especialmente, no trato sobre memoria coletiva que transmite e interpreta de modo seletivo determinados fatos históricos e personagens transformando-os em símbolos de identidade étnica e como apontam Poutignat e Streiff-Fernant (1998:13): “o que diferencia, em última instância, a identidade étnica de outras formas de identidade coletiva é o fato de ela ser orientada para o passado”. As memórias históricas (CANDAU, 2008; SANTOS, 2003), articuladas em torno deste patrimônio arqueológico de quilmes, produzem sentidos de etnicidade na comunidade e produzem reinterpretações históricas sobre o seu passado. Os contextos atuais de reivindicações de direitos civis e de reconhecimento territorial tornam expressivas estas articulações culturais para além do seio da comunidade indígena. Neste sentido, é válido compartilhar

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a reflexão de Geral Sider sobre etnohistória: “fazemos etnohistoria não através da história de uma etnia, mas pelos sentidos de historia trazido pelas etnias que estudamos.” (SIDER, 1994). Assim, hoje em dia, encontram-se na Ciudad Sagrada Quilmes, não só vestígios arqueológicos dessa antiga cultura andina, mas também vestígios arqueológicos contemporâneos que refletem aspectos de dominação e de resistência – em termos marxistas, de um poder capitalista – vivenciados por esse povo. Tais aspectos configuram alguns momentos da história política e econômica capitalista transcorrida na Argentina nas últimas décadas. O caso quilmes coloca em contraste definições clássicas de arqueologia histórica fundamentada em dicotomias, como moderno capitalista/antiguidade não-capitalista, letrado/iletrado, mito/história, primitivo/civilizado, que refletem elementos discursivos interligados (FUNARI, 2007:28). Por meio da rede discursiva – decorrente da agência humana – é possível perceber os diversos elementos históricos e os processos sociais envolvidos na constituição da Ciudad Sagrada Quilmes, tanto em termos contemporâneos quanto em termos de uma antiguidade histórica colonial. Afinal, o caco cerâmico ou aquela pedra lascada não se referem apenas a processos de representação arqueológica passados, mas também são formados pela representação trazida tanto pelo arqueólogo contemporâneo – marcado pelo seu viés político do presente (HOLTORF, 2006; 2002) – quantos pelos guias turísticos indígenas da Ciudad Sagrada, com uma interpretação muito própria sobre seu passado. O que se demonstra muito elucidativo quando refletimos sobre as memórias dolorosas vinculadas pelos quilmes, especialmente pelos guias turísticos da comunidade que fazem a mediação com público. Tais aspectos de memórias são os principais marcadores dessa memoria coletiva, como o cerco espanhol, o êxodo forçado, a violência dos terratenientes e o saqueio cultural. Tais elementos são essenciais na configuração de uma etnicidade, de uma noção de sujeito frente a memórias subjetivas de história. Como bem aponta Karina Bidaseca, no contexto mais amplo argentino: Até pouco tempo atrás, os indígenas se escondiam nas cidades. Hoje começam a mostrar com orgulho crescente a sua condição (ser índio). (...) Suas identidades diaspóricas devem ser construir em torno de fronteiras culturais, de se fazer habitável a sua própria posição de fronteira (BIDASECA, 2010:152).

5 As Ruínas de Quilmes ou como a comunidade prefere ser chamada “Ciudad Sagrada de Quilmes” é o marco reivindicatório territorial que engloba toda uma série de pequenas comunidades, campos de cultivo, territórios de pastagens e etc... a qual se vincula a Comunidad India Quilmes (CIQ).

Um exemplo desta releitura pode ser encontrado no próprio folheto explicativo distribuído pela Comunidad Índia Quilmes aos turistas que visitam o imenso sitio arqueológico em seu território5, chamo especial atenção para este folheto não apenas pelos seus elementos discursivos, mas também como exemplo de organização politica que os quilmes exercem sobre o seu patrimônio: Prolongamos la lucha heredada de nuestros antepassados y defendemos nuestro Território de todos os expropiadores, usurpadores y de las explotaciones mineras que com su contaminacion ambiental amenazan nuestra supervivencia.

(…). En la ciudad de Quilmes, se desarrollo

nuestra cultura, plasmaron en el arte, la medicina, la agricultura, la astrologia, la arquitectura y, sobre todo, en su propia espiritualidad o forma de ver el mundo.

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Muchos de estos hombres y mujeres vivieron – y murieron – en nuestra Ciudad Sagrada. Por eso, ella es un símbolo de la resistencia que el pueblo Diaguita opuso a la invasión extranjera, en la época de la conquista: en este lugar, está la sangre que derramaron nuestros mayores para defender nuestros territorios y nuestra cultura. (PANFLETO EXPLICATIVO DESTRIBUIDO PELA COMUNIDADE INDIGENA AOS TURISTAS- 2011).

Essa passagem demonstra, portanto, uma atualização da sua perspectiva histórica, uma agencialidade (Agency) em torno do sítio arqueológico e do contexto político em que se encontram. Tal contexto pode ser lido de forma mais ampla quando se refere aos impactos ambientais causados pelas atividades de mineração – atual bandeira de mobilização das comunidades indígenas da Argentina. Importante lembrar, portanto, que a dinâmica de interpretação do sitio arqueológico não se encerra nas pesquisas acadêmicas, sendo atualizada aos olhos daqueles que vivem o seu cotidiano e funcionando como elemento marcador de sua etnicidade.

Conclusão Atualmente, uma série de artigos e de comunicações em congressos tem sido produzida em torno da situação contemporânea dos quilmes, o que nos fornece um acompanhamento de seu desenvolvimento étnico político ao longo das últimas duas décadas. Trata-se de artigos que possuem, entre si, não apenas o grupo étnico em comum, mas que refletem sobre os aspectos pós-colonialistas e os marcadores de etnicidade. Dentre eles, podemos citar os artigos de Marina Marchegiani, (et al.) (2003) Pasado, futuro y presente: la construcción de la Identidad Cultural en la Comunidad India Quilmes; (2006) Nunca serán ruinas: visiones y prácticas en torno al antiguo poblado de Quilmes en Yocavil. José Sosa (2007), “Ruinas” de Quilmes. História de un despropósito. Bidaseca, K. Ruggero, S. (2011), Quilmes, o el ominoso retorno a la re-presentación hacia Occidente. Violeta Ramirez (Comunicação RAM-2009), Políticas multiculturales en la Provincia de Tucumán?La Comunidad India de Quilmes y el Ente Tucumán Turismo en las discusiones en torno al manejo de la Ciudad Sagrada Quilmes como atractivo turístico. Laura Butafuoco, Mariela J. Hernández y Natalia A.Valdez (Comunicação RAM 2009). Diferentes procesos de patrimonialización: el caso de la Quebrada de Humahuaca y el caso de la Ciudad Sagrada de Quilmes. María Florencia Becerra et al. (Comunicação RAM 2009)¿Participación o imposición? Dinámicas de poder y saber en la reconstrucción de la “Ciudad Sagrada de Quilmes”. A reflexão da abordagem histórica e das perspectivas patrimoniais abrange, portanto, desde os primeiros momentos de percepção ontológica de grupos de interesse diversos (stakeholders) em torno do sítio arqueológico – agentes governamentais, acadêmicos e a comunidade local – até o mapeamento na qual se articulam os sentidos de etnicidade, desenvolvidos pela comunidade. O caso quilmes, em especial, nos oferece uma profunda reflexão sobre cultura e “cultura” (CUNHA, 2009) e a dinâmica histórica contemporânea, constatando-se que o reflexo de uma cultura trazida pela interpretação subjetiva da cultura material (seja ela mítica ou cientifica) embute uma percepção de história nessa própria cultura.

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Portanto, as dinâmicas próprias de memória e de acontecimento social que influenciam sobre essa cultura são refletidas na discursividade local acerca do seu momento histórico, da sua seleção de memória coletiva, traduzida na dinâmica patrimonial em torno do sitio arqueológico (ROTMAN, 2004). Tal é o quadro de memória étnica da Comunidad India Quilmes. Sendo assim, o exercício de se pensar a disputa patrimonial está em atualizar a reflexão acadêmica sobre os grandes momentos históricos que compõem a historiografia identitária quilmes. Isso significa superar as grandes dicotomias que compõem o quadro historiográfico no trato da questão indígena, tais como civilização/barbárie e herói/vitima (PASSETI, 2005), além de acompanhar, tanto nos textos históricos, como na abordagem da história recente, os quilmes como agentes da sua própria história. À primeira vista, poder-se-ia pensar: “o que o sítio arqueológico quilmes tem a ver com tudo isso?”. Antes de qualquer coisa, é importante lembrar que a ideia de monumento aqui tratado não se refere apenas ao âmbito de sua materialidade por si só, mas também ao de sua monumentalidade discursiva. A “Ciudad Sagrada Quilmes” é o nódulo pelo qual se dispersam diversas linhas discursivas acerca do passado, do presente e do futuro – nesse sentido, vale lembrar a noção Latouriana de rede, entendida aqui como metáfora (LATOUR, 2005). O que também implica uma multiplicidade de questões referentes à discusividade elencada pelos quilmes (e outros grupos de interesse). De como se enxergam no mundo e de como se projetam ao mundo. O que, obviamente, decorre de uma relação muito própria com a história, com o patrimônio e com a etnicidade.

Figura 2: Vista Geral do Pátio Central

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Figura 3: Vista geral

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“ D Ê A O G A R O T O E S TA M A R S H A L LT O W N D O U R A D A” : A ARQUEOLOGIA NA VISÃO DE KENT FL ANNERY AUTORA Martha Helena Loeblein Becker Morales [email protected]

RESUMO

Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História, da Universidade Federal do Paraná, sob orientação da Profa. Dra. Renata Senna Garraffoni.

Este artigo propõe uma análise específica do texto The Golden Marshalltown, escrito por Kent Flannery no início da década de 1980. Parábola bem humorada, situada no centro de um debate conceitual, é uma narrativa que possibilita ainda hoje refletir sobre as mudanças teóricas no campo arqueológico, considerando a aceitação e a rejeição de determinadas ideias por diferentes grupos acadêmicos. O objetivo principal é identificar a arqueologia ideal, na perspectiva do autor, para analisar criticamente alguns traços importantes do clima intelectual que marcou a disciplina no final do século XX, repercutindo mesmo na atualidade. Deve ficar claro, enfim, que as formas de escrever arqueologia são sintomáticas da formatação disciplinar que se deseja legitimar, definindo o campo de atuação profissional, bem como o comportamento idealizado do arqueólogo. Palavras-chave: Arqueologia, Discurso, Cultura.

ABSTRACT

This article focuses on a specific analysis of The Golden Marshalltown, written by Kent Flannery in the beginning of the 1980s. A humorous parable, positioned in the center of a conceptual debate, it’s a type of narrative which still allows us to think about the theoretical changes in the archaeological field, taking into consideration the acceptance and the rejection of certain ideas by different academic groups. The main purpose is to identify the ideal archaeology, in the author’s perspective, to critically analyze some important features of the intellectual climate that defined the discipline in late 20th century, reverberating even today. It must be clear, ultimately, that the ways of writing archaeology are a symptom of the discipline format one wishes to legitimize, setting the limits of the professional activity as well as the ideal behavior for an archaeologist. Keywords: Archaeology, Discourse, Culture.

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INTRODUÇÃO

Então, filho, algum dia, quando encontrar um garoto que ainda acredita em cultura, em trabalho duro e na história da humanidade; um garoto que esteja em campo porque adora, não porque deseja ser famoso; um garoto que jamais se aproveitaria de dados alheios, ou puxaria o tapete de um colega para subir na vida; um garoto que conhece a literatura e respeita as gerações que vieram antes – dê ao garoto esta Marshalltown dourada.

É com o trecho acima que Kent Vaughn Flannery, um arqueólogo estadunidense conhecido por seu trabalho em sítios mesoamericanos, resume o que realmente poderia vir a ser chamado de um arqueólogo de primeira classe. Ou, pelo menos, é essa a opinião do “Veterano”, personagem principal da parábola The Golden Marshalltown, apresentada pelo autor no encontro da Associação Americana de Antropologia de 1981, em Los Angeles (FLANNERY, 1982). Estruturado como um diálogo entre cinco pessoas, incluindo o próprio Flannery, este é um texto cuja contribuição ao debate teórico poderia passar despercebido se encarado como um mero exercício de humor acadêmico, comum em conferências e congressos. Contudo, é justamente a narrativa descontraída e bem-humorada do autor que facilita a compreensão de sua mensagem mesmo por aqueles menos versados no vocabulário da Arqueologia. Com este artigo, procuro analisar a parábola de Flannery a fim de explicitar sua mensagem, ou seja, o que é a Arqueologia, ou o que ela deve ser em condições ideais, e, consequentemente, o que é um “arqueólogo de primeira classe”, na visão do autor. Acredito que este seja um exercício importante para o entendimento das diversas formas que um debate teórico pode assumir no universo acadêmico, manifestando-se inclusive em períodos nos quais a reflexão teórica não parece relevante ou prioritária aos praticantes da disciplina. Ao optar por um texto de aparência despreocupada e cômica, espero tornar clara esta acepção de que mesmo a ausência de posicionamento teórico – direto e transparente – é, por si só, uma forma de posicionamento teórico. Para tanto, apresento em tópicos os estágios do exame crítico ao qual o texto foi submetido. O ponto de partida é o embasamento teórico que permitiu interpelar o discurso arqueológico, ideia inspirada pelo pensamento de Foucault, além de algumas considerações metodológicas acerca da análise. Logo em seguida, a fim de localizar o documento no espaço e no tempo, a atenção recai sobre o contexto no qual ele foi escrito, inserindo-o em um panorama maior de conjunturas teóricas. Ainda em preâmbulo à análise, são apresentadas as questões presentes na parábola, bem como suas personagens, cuidadosamente eleitas por Flannery como representantes de um debate que os ultrapassa, que simultaneamente as precede e as sucede. Enfim, passando ao estudo pormenorizado do conteúdo, as concepções de Arqueologia que permeiam os diálogos, ou ainda, a concepção que triunfa na voz do protagonista em contraste com as demais pode ser examinada para alinhar-se ao debate constante acerca da identidade desta disciplina. Neste sentido, é importante destacar que o objetivo não é, em nenhum momento, atribuir valor positivo ou negativo às ideias do autor, mas promover uma análise crítica que contemple a inserção e a repercussão das mesmas no clima intelectual que vem marcando a Arqueologia nos últimos trinta anos.

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Foucault pela Arqueologia: uma breve introdução teórica e metodológica Funari afirma que “na Arqueologia, há dois discursos a serem analisados: aquele da cultura material e sua representação, em forma de texto, sobre a cultura material” (1999: s/p). Sua conclusão se fundamenta na construção que todas as disciplinas fazem de seus objetos, necessariamente por meio de discursos narrativos. O estudo de tais tipos de registros vem se tornando uma tendência importante na Arqueologia já há alguns anos, pois, com o advento do Pós-Processualismo, uma corrente teórica que, dentre outras características, salienta a intencionalidade humana na produção de cultura, também o sujeito-arqueólogo que redige relatórios, publica artigos e ministra palestras passou a ser considerado como um objeto de pesquisa merecedor de consideração. Muitos dos autores que se dedicam a este tipo de trabalho retomam as ideias de Michel Foucault, como Reis e o já citado Funari. Na aula inaugural no Collège de France, convertida na publicação A Ordem do Discurso, o filósofo argumenta que um discurso, longe de expressar “verdades únicas”, veicula vontades de verdade que dizem respeito a instituições ou a sociedades de discurso (FOUCAULT, 2008 [1970]). Trata-se de um sistema de exclusão, conduzido e reconduzido por indivíduos autorizados, ou legitimados, atribuindo e distribuindo valores, bem como os transformando. Dessa forma, tendo em vista as infinitas possibilidades de redefinição, Foucault observa que mudanças no discurso remetem quase sempre ao surgimento de uma nova, ou de novas vontades de verdade. Outro tema constante em sua obra é o poder e seus efeitos – sobre o discurso, sobre a academia, sobre o indivíduo. Como alguém que preza a descontinuidade como problema de pesquisa, Foucault se pergunta como compreender a modificação nas regras de formação dos enunciados aceitos como cientificamente verdadeiros, pois o que está em questão é o que rege os enunciados e a forma como estes se regem entre si para constituir um conjunto de proposições aceitáveis cientificamente e, consequentemente, susceptíveis de serem verificadas ou infirmadas por procedimentos científicos. Em suma, problema de regime, de política do enunciado científico (FOUCAULT, 1979: 4)

Há, desse modo, uma preocupação com os efeitos que agem internamente em um discurso, tanto os que regem suas alterações ao longo do tempo quanto os que ditam sua condição estática – um regime interior de poder. Com tais questionamentos, o filósofo deixa uma contribuição inestimável a qualquer estudioso que se proponha a pôr em prática a análise de um discurso, independente de sua área. No campo da Arqueologia, talvez mais do que em outros, a publicação de trabalhos voltados à análise do seu discurso ainda é tímida diante das incontáveis descrições metódicas dos trabalhos de campo e de laboratório. Acredito que não se trate de uma inclinação vocacional dos arqueólogos ao trabalho braçal da escavação, e muito mais devido a certo preconceito com o chamado “trabalho de gabinete”. No entanto, com algum afinco, é possível garimpar excelentes trabalhos dedicados a observação crítica da produção

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1 Esta é uma consideração obtida a partir da leitura completa do texto de Joyce, o qual se sugere a consulta.

textual da disciplina, especialmente na literatura anglófona. Um exemplo é o trabalho de Rosemary Joyce, Writing Historical Archaeology, que, apesar de ser apenas um artigo, conta com vasto levantamento bibliográfico (JOYCE, 2006). Joyce afirma que é através da escrita que os autores reconhecem a si mesmos e são reconhecidos como parte de determinada comunidade acadêmica. Também acredita que “a forma como escrevemos nossos relatos arqueológicos é tão constitutiva do nosso campo quanto as questões que julgamos significativas e a maneira que julgamos correta de abordálas” (JOYCE, 2006: 48). Da mesma forma, os termos utilizados fecham a comunidade retórica a qual o texto pertence, uma vez que requerem certo grau de conhecimento especializado e o simples aceite de sua utilização já atua como um contrato entre leitor e autor. A autora procura demonstrar, através de exemplos e citações, como o mais técnico dos textos não só não consegue ser neutro, como se apoia em um tipo específico de relação com o leitor ao se dizer verdadeiro, além de sempre ser narrativo em sua forma1. Entre as diferentes formatações de textos citados, o diálogo entre o arqueólogo e outros, reais ou imaginários, é classificado por Joyce como uma tentativa do autor em ilustrar seu processo de imaginação na análise dos dados. Até mesmo Flannery é lembrado, por seu livro The Early Mesoamerican Village, de 1976, com suas três personagens: o “Verdadeiro Arqueólogo Mesoamericano”, o “Estudante Cético de PósGraduação” e o “Grande Sintetizador”, que, na opinião da autora, servem como dublês genéricos dos verdadeiros interlocutores com os quais o arqueólogo debate em campo, no laboratório e na sala de aula (JOYCE, 2006). Como poderá ser visto a seguir, esta não seria a única vez que Flannery faria uso de personagens estereotipadas para comunicar suas ideias sobre Arqueologia, o que pode ser tomado como um indicativo de êxito na empreitada. Em termos metodológicos, a análise proposta neste trabalho procura enfatizar as continuidades e descontinuidades do documento em questão, numa postura pós-processualista como a enfatizada por Joyce. Nesta perspectiva, as ideias de Foucault são centrais, uma vez que se reconhece o status da narrativa arqueológica como um exercício de poder, conforme a autora destaca (JOYCE, 2006). Assim, a análise da retórica textual de Flannery procura compreender a representação do posicionamento do autor, a partir do jogo discursivo que declara ou obscurece o papel do narrador, ao mesmo tempo em que é determinado um lugar de autoridade. Os autores destacados neste tópico evidenciam uma prática de análise que inclui, mas não se limita ao conteúdo informado no discurso textual. Aquilo que circunda sua produção, como o autor e o leitor presumido, além das vontades de verdade e dos efeitos de poder, são sempre atuantes na veiculação da mensagem. A fim de percorrer tais minúcias, com o próximo tópico, procuro desenvolver a questão do contexto científico da Arqueologia no momento em que Flannery elaborou sua palestra.

A Arqueologia nos anos 1980: Antropologia, cultura e mudanças É importante ressaltar que a Arqueologia abordada por Flannery está inserida no universo disciplinar da Antropologia, algo que não é um consenso. Este

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2 Para um aprofundamento da discussão, sugiro a leitura de SCHIAVETTO, 2003 e TRIGGER, 2004.

3 WATSON (1995) apresenta uma interessante revisão das mudanças no conceito de cultura, com especial atenção ao antagonismo nascido nos anos 1980 entre o Processualismo de Lewis Binford e o Pós-processualismo de Ian Hodder.

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é o caso, principalmente, dos Estados Unidos, onde, apesar do paradigma histórico-cultural ter obtido grande aceitação, o objeto de estudo evidenciado nas escavações arqueológicas dizia mais respeito ao outro/ indígena do que ao arqueólogo/europeu (TRIGGER apud SCHIAVETTO, 2003). Assim, no ambiente acadêmico norte-americano foi adotado o conceito dos ‘quatro campos’ da Antropologia, incentivado por Franz Boas, sendo eles a Antropologia Social ou Etnologia, a Arqueologia, a Antropologia Física e a Linguística (WATSON, 1995). O próprio Flannery apontou para a relação simbiótica entre as disciplinas em outro artigo, no qual alega que nenhum ramo da Antropologia estaria mais bem equipado para lidar com mudanças de muito longa duração do que a Arqueologia, embora argumente que haja alguns aspectos da cultura com os quais ela esteja mal equipada para lidar, o que tornaria uma dependente da outra (FLANNERY, 1983). Entretanto, não são poucos os autores provenientes do mesmo contexto que questionam até que ponto essa ligação é tão natural ou mesmo necessária. Um exemplo interessante é o texto de Gumerman e Phillips, cuja proposta é desconstruir a ideia de que esta seria a única solução, pois acreditam que “ao associar-se à disciplina acadêmica da Antropologia, [arqueólogos] estão destinados a compreender apenas superficialmente outros modelos e os corpos teóricos dos quais tais modelos derivam” (GUMERMAN e PHILLIPS, 1978: 188). A crítica dos autores estava pautada no empréstimo desmedido de modelos de outras disciplinas sem a devida atenção à estrutura conceitual que lhes deu forma, devido à transposição de trechos isolados forçosamente encaixados em problemas antropológicos. A Arqueologia como Antropologia é, em grande medida, um resultado das propostas do Processualismo que, concebido na década de 1960 como uma reação ao formato tradicional, também chamado de Histórico-Cultural, orientou-se pela recusa aos conceitos de cultura, difusão e migração (SCHIAVETTO, 2003). Neste movimento de se opor ao paradigma anterior, a aproximação com a História, difundida em solo europeu por se tratar de um estudo do passado do mesmo, numa relação de continuidade, foi preterida em nome da vinculação cada vez mais clara com a Antropologia, fazendo do outro o tema principal de uma chamada arqueologia da ruptura2. Entre os aspectos tradicionais combatidos pela dita Nova Arqueologia, houve forte reação contra o conceito normativo de cultura que a definia como um todo complexo, universalizante e apresentado em diferentes estágios evolutivos. Binford foi um dos processualistas que se propôs a reformular tal conceito, com base nos preceitos do antropólogo Leslie White, que tomava a cultura como o meio extrassomático de adaptação do homem (WHITE apud BINFORD, 1970). Com esse conceito adaptativo, o foco das pesquisas se volta para problemáticas mais relacionadas a interações climáticas, topográficas, geológicas e de outros fatores naturais com a tecnologia e subsistência humanas, uma ênfase que também não se mostrou livre de críticas3. Outro arqueólogo a gerar um rompimento importante foi Michael Schiffer ao propor o que ficaria conhecido como arqueologia comportamental, na qual se considera a cultura como um constructo analítico de segunda ordem, atribuindo ao comportamento humano a variação de artefatos, arquitetura e demais depósitos arqueológicos (LAMOTTA e SCHIFFER, 2001). Com essa rápida revisão, é possível notar que mesmo entre aqueles que seguem uma

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orientação geral mais próxima, ou pelo menos compartilham o compromisso de recusar a arqueologia tradicional, não há consenso no que diz respeito à formulação ou utilização de determinados conceitos. O debate já acumula algumas décadas e não parece se aproximar do seu fim. Para uma compreensão preliminar do contexto da parábola de Flannery, anterior mesmo a sua leitura, são estes os dois pontos que se deve ter em mente: o autor, assim como suas personagens, fala de uma Arqueologia que é, quase por definição, uma parte constitutiva da Antropologia, sua ciênciamãe, e é a controvérsia acerca do conceito de cultura que move a ação do texto e estimula seus diálogos. Sendo assim, conhecer as personalidades em choque também auxilia no entendimento final da mensagem do autor.

Um filósofo, uma criança e um veterano: a Arqueologia no conflito das gerações O diálogo entre as personagens é desencadeado por um recorte de jornal que traz o trecho de um artigo do antropólogo Eric Wolf, publicado no ano anterior pelo Sunday Times, onde se lê: uma antropologia mais antiga alcançou unidade sob a égide do conceito de cultura. Era a cultura, na visão dos antropólogos, que distinguia a humanidade de todo o resto do universo, e era a posse de culturas variáveis que diferenciava uma sociedade da outra... O último quarto de século solapou esta sensação intelectual de segurança. O conceito de “cultura” relativamente rudimentar foi atacado por várias direções teóricas. Conforme as ciências sociais se transformaram em ciências ‘comportamentais’, explicações para o comportamento não foram mais associadas a cultura; o comportamento deveria ser entendido em termos de encontros psicológicos, estratégias de escolha econômica, esforços para obter propinas em jogos de poder. Cultura, uma vez estendida a todos os atos e ideias empregados na vida social, agora está relegada às margens como ‘visão de mundo’ ou ‘valores’ (WOLF apud FLANNERY, 1982: 267).

4 A tréplica de Wolf se apresentou na forma de um terceiro texto, ponto a ser retomado mais adiante neste artigo.

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Embora este seja apenas um fragmento, o que pode dificultar uma melhor compreensão dos argumentos de Wolf, a questão central é a validade do conceito de cultura na atualidade, uma vez que as ciências sociais vinham se tornando mais complexas e lapidando novos conceitos. Como se trata de um momento crucial na discussão iniciada no texto, tomo a parábola de Flannery como uma resposta ao artigo de Wolf, especialmente em refutação à queda do conceito de cultura4. Este, aliás, é um dos pontos mais acalorados na fala das personagens, englobando toda a contenda que se forma entre os principais. Refiro-me aos “principais”, pois, dos cinco presentes ao longo da narrativa, são três os que merecem maior atenção. O diálogo acontece dentro de um avião, no retorno de um congresso em San Diego, o que faz da aeromoça um vínculo com o cenário – a personagem de poucos diálogos, que não recebe um nome, presta serviços aos quatro arqueólogos que se encontram no Boeing 747 com destino a Detroit. Flannery é um dos quatro, além de ser o narrador, ainda que seus interlocutores tenham maior presença na história. Os

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5 O fato de a Arqueologia alimentar o imaginário popular com histórias fantásticas e de pouco valor ou reconhecimento científico é o tema, por exemplo, da publicação de BAHN (1993).

outros três arqueólogos são apresentados como personagens reais, embora o autor não forneça seus nomes – são “reais” porque cada um deles representa o porta-voz de um grande grupo de pessoas (FLANNERY, 1982: 265). O primeiro recebe a alcunha de Filósofo Renascido (Born-Again Philosopher), devido a sua trajetória como um arqueólogo formado nos moldes tradicionais, ao final dos anos 1960, que se viu insatisfeito com o trabalho de retorno lento, ou pouco, das escavações e prospecções. Dessa forma, ele descobriu na Filosofia da Ciência sua verdadeira vocação, fazendo da crítica da epistemologia alheia a sua epistemologia. Aos olhos do narrador, o Filósofo Renascido é típico da década de 1960, alguém que elabora em seu escritório leis e modelos que serão, mais tarde, aplicados por terceiros, pois ele mesmo não seria capaz de um bom trabalho de campo. A segunda personagem, referenciada como a Criança dos Anos 70 (Child of the Seventies), é reduzida a sua ambição cega. Ela não teria nem o compromisso com o histórico-cultural típico da geração de Flannery, nem a devoção à teoria da geração do Filósofo. Seu objetivo seria fama e fortuna, algo que na Arqueologia poderia ser fácil, uma vez que as pessoas estariam mais propensas ao logro nesta área5. A carreira desta personagem, em suma, limitase a publicação de manuais elaborados a partir de anotações de sala de aula, reproduzindo dados ainda não divulgados por aqueles que de fato os tinham obtido, ou pela compilação de capítulos escritos por outros arqueólogos: “ele pode preparar um livro por ano, usando as ideias originais de outros, sem nunca precisar ter uma ideia original por si mesmo” (FLANNERY, 1982:266). Ambas as personagens são configuradas como antagonistas de uma terceira, o protagonista da narrativa por excelência, não só pela extensão de seus diálogos, mas pela maneira como Flannery constrói sua figura em relação aos demais. Enquanto o leitor é instigado a repudiar os atos levianos da Criança, que tira proveito do esforço de outros, e induzido a ver no Filósofo um indivíduo que se encerra numa Torre de Marfim e de lá a todos critica, o Veterano (Old-Timer) é apresentado como aquele profissional nostálgico, que desempenha suas funções por vocação, por um sentimento de quase predestinação. Além disso, ele é também o único a ter sua aparência descrita pelo narrador, com características bastante atreladas ao imaginário popular do arqueólogo aventureiro, mas a quem a experiência confere um ar de respeito: ele parou por um momento com a bolsa surrada na mão, olhando de cima para todos nós. Ele era um Veterano – sem dúvida – mas sua idade ninguém saberia dizer. Quando você é tão bronzeado e abatido pelo clima daquele jeito você pode ter 50, ou 60, ou até 70, e ninguém saberia dizer. Suas calças jeans passaram pela lama e por cercas de arame farpado de inúmeros trabalhos de campo, seu chapéu desbotou no sol das pradarias e seus olhos tinham o tipo de pés-de-galinha conhecidos aqui como olhar das Planícies Altas. Eu sabia que ele era um arqueólogo por causa de suas botas e sabia que ele ainda era um bom arqueólogo pelo tônus muscular em suas pernas (FLANNERY, 1982:267).

É somente com a chegada dessa figura que o diálogo realmente tem início, após ele retirar do bolso o fragmento do artigo de Wolf e informar a todos que por causa das afirmações do antropólogo seu departamento o havia demitido – afinal, ele ainda acreditava no conceito de cultura. O título

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inspirado que Flannery dá a sua parábola é uma referência ao presente de despedida que o Veterano recebe de seus colegas, que banham em ouro 24 quilates sua espátula da marca Marshalltown. Dessa forma, com o cenário estabelecido e as personagens apresentadas, uma série de tópicos de discussão é levantada, de certa maneira sempre tangenciando a questão da validade ou não do conceito de cultura para o desempenho da Arqueologia. A narrativa tem início quando a notícia da aposentadoria compulsória a que o Veterano foi submetido devido ao artigo de Wolf causa uma primeira controvérsia – “O que pensa em fazer agora?, perguntou a Criança dos Anos 70, (...) – Bem, disse o Veterano, até agora as únicas oportunidades que apareceram foram algumas ofertas de arqueologia de contrato” (FLANNERY, 1982: 268). Diante desta resposta, o Filósofo dispara um riso de desdém que revela sua opinião sobre a ocupação, um campo da disciplina em franca expansão, que ele pondera: “Suponho que seja um campo razoável (...) apenas não acredito que tenha muito a contribuir com o meu campo”. Assim, tem início uma longa querela sobre as relações entre a teoria e o trabalho de campo, bem como as prioridades que devem ser assumidas pelos arqueólogos. Na suspeita se a Arqueologia sem campo poderia, de fato, ser Arqueologia, o Filósofo e o Veterano se encontram em lados opostos, algo que fica ainda mais claro em uma espirituosa analogia que o último faz entre a disciplina e o futebol americano. Afinal, “o campo é mais baixo que tudo; é físico, é suado, é um lugar onde as pessoas seguem ordens. O balcão da imprensa é alto, separado, Olímpico, cerebral. E é verbal” (FLANNERY, 1982:271). É dessa forma que Flannery fornece ao seu protagonista todos os argumentos que justificam o seu posicionamento perante a necessidade do trabalho de campo – há uma exigência de ordem, de hierarquia, que dá sentido ao campo transformado em lugar de poder. Ali, serão tomadas as decisões, organizadas as estratégias, vencidos os obstáculos que garantirão um bom resultado final. Depois, a imprensa falará a respeito, levantará hipóteses e tecerá críticas, mas o sucesso pertence ao domínio dos jogadores. Além disso, a recusa ao conceito de cultura como o paradigma central da disciplina preocupa não só ao Veterano, mas também ao narrador, que externa seu ponto de vista para os demais: “Estou um pouco preocupado com isso”, admiti. “Agora, tenho a impressão que a antropologia está à deriva, como um navio sem leme. Sinto que pode se fragmentar em uma dúzia de disciplinas menores, com todos seguindo seus caminhos. Já não é mais tão emocionante como costumava ser. As matrículas caíram por todo o país. O mercado de trabalho é horrível. Suspeito que um motivo seja a falta de consenso na antropologia sobre o que ela tem a oferecer, não conseguindo se vender em comparação a campos mais unificados e agressivos” (FLANNERY, 1982:274).

Alinhado a esta opinião, o Veterano acredita piamente na necessidade do conceito tradicional de cultura para a execução da pesquisa arqueológica. O protagonista faz grande objeção aos trabalhos orientados por problemas, concluindo que, como esta é uma empreitada destrutiva em que os informantes são “mortos” em definitivo, não é possível arcar com as consequências de um estudo que não esteja comprometido com o “todo integrado” proporcionado

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pela ideia de cultura. Este finca seu lugar no debate: “dados arqueológicos não vêm embalados como ‘cognitivos’ ou ‘religiosos’ ou ‘ambientais’ ou ‘econômicos’, estão todos juntos no solo – integrados de formas complexas, talvez, mas integrados” (FLANNERY, 1982:276). Ao final de sua história, o Filósofo e a Criança já não entram mais em cena, restando apenas o narrador e um bilhete, deixado pelo Veterano na bolsa de Flannery, junto com a Marshalltown dourada. O longo desabafo do protagonista, que encerra a parábola, define, enfim, o que é a “arqueologia de primeira classe” e o arqueólogo que a faz. A ideia do conjunto cultural é constante na argumentação, algo que não está aberto para contestação. É isso que não só confere unidade às subáreas da Antropologia, mas também garante que todos os dados disponíveis em campo sejam registrados de maneira adequada pelo pesquisador. Diga-se a propósito, este pesquisador, o “garoto” do qual fala o trecho citado na primeira página deste artigo, deve ser acima de tudo comprometido com a velha e tradicional pesquisa arqueológica básica, aquela que não existe sem o trabalho de campo e não recusa o conceito-chave de cultura. Para ele, o prêmio é a Marshalltown dourada. Com o bilhete e o desaparecimento súbito do Veterano, já que o narrador cochila e não vê em que cidade ele teria desembarcado, a personagem assume uma aura mística de oráculo de uma Idade de Ouro da Arqueologia. Como se não bastasse, a aeromoça, quando interpelada, diz não se lembrar de nenhum ‘senhor de botas e chapéu desbotado’ a bordo, com a exceção do próprio Flannery. A seguir, procuro demonstrar como uma análise mais atenta desta narrativa pode esclarecer alguns temas-chave para o debate da Arqueologia não só no momento em que o texto foi elaborado, como também atualmente.

A Arqueologia de “primeira classe” de Flanner y: a teoria na parábola Numa consulta rápida ao dicionário de língua portuguesa, o termo parábola é definido como uma “narração alegórica na qual o conjunto de elementos evoca, por comparação, outras realidades de ordem superior” (FERREIRA, 2004: 1487). Portanto, seu compromisso com a verossimilhança permite certa maleabilidade no enunciado, a fim de comunicar, persuadir e provocar reflexão. A parábola de Flannery não seria, à primeira vista, classificada como um texto teórico-metodológico, afinal, narra o encontro de arqueólogos retornando para casa, numa conversa descontraída, ao embalo de algumas cervejas. Todavia, imbricado em suas falas é possível identificar, de maneira direta ou indireta, os lugares que ocupam no establishment arqueológico e suas perspectivas acerca do que faz ou não um profissional da área, o ponto central a que quero chegar. No primeiro ponto de tensão, quando o Veterano contempla o que a aposentadoria lhe reserva, está a arqueologia fora da Academia. Com nomes que podem variar entre Arqueologia de Resgate, de Salvamento e de Contrato, esta é uma modalidade que, segundo Cordeiro, começou a se consolidar internacionalmente na década de 1950 (CORDEIRO, 2006: 40). Costuma ser empreendida onde há risco de destruição do patrimônio arqueológico, através da realização de um contrato entre pesquisadores e empresas particulares, por exemplo, no caso da construção de grandes obras

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como usinas hidrelétricas e gasodutos. Neste quesito, a polêmica se deve às ressalvas que muitos profissionais, em geral, do meio acadêmico têm com relação à qualidade do trabalho desenvolvido sob as restrições financeiras e de tempo impostas pelos contratantes. A altercação se encontra no resultado de tais imposições ao trabalho do pesquisador, não sendo poucos os que questionam a viabilidade em contribuir com o desenvolvimento da teoria e do método da Arqueologia como um todo. Chegando a ser vista como um mero trabalho técnico, a arqueologia de contrato pode inclusive sofrer a acusação de retornar a disciplina ao seu status por longo tempo combatido de ciência auxiliar. Este, com certeza, é um posicionamento que pode ser extraído dos argumentos do Filósofo, que, inclusive, identifica-se como um arqueólogo que trabalha em um “nível superior de abstração”, sendo um produtor de leis, não um consumidor, com uma postura claramente dedutiva. Do outro lado da discussão, Flannery posiciona seu Veterano como alguém ciente das limitações e dos comprometimentos de um trabalho executado fora da redoma acadêmica, mas, acima de tudo, como um defensor dos arqueólogos que ainda lidariam de maneira direta com o que aconteceu na pré-história. Na visão do seu protagonista, as evidências escavadas fazem do pesquisador um “descobridor do passado”, estabelecendo um vínculo que não pode ser alcançado de nenhuma outra forma. A associação imediata entre Arqueologia e o ato de “ir a campo” é mais uma das questões de discordância entre estudiosos do mundo todo. A definição de onde está, exatamente, o “campo” do arqueólogo é um dissenso lembrado por Thiesen, em seu artigo sobre a arqueologia da paisagem: faz pouco tempo que abandonamos a noção de escavação como uma espécie de questão-de-honra nas metodologias da arqueologia e passamos a dar mais atenção à cultura material que está sobre o solo e não apenas no subsolo (além das louças, vidros e ossos enterrados), ainda que existam focos conservadores nos meios acadêmicos que confundem uma técnica com o objeto de estudo da arqueologia (THIESEN, 2006:1).

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Este é um termo utilizado para pesquisas referentes a grupos sem escrita já muito contestado, devido ao seu teor pejorativo que opõe os povos com História aos sem História, mas é utilizado neste artigo para corresponder ao estilo de escrita aplicado por Flannery em sua parábola.

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A autora, contudo, refere-se a uma tendência presente nas vertentes da Arqueologia Histórica, preocupada com períodos cada vez mais recentes da experiência humana. Já no caso de Flannery, o tema é a “Pré-História”6, consideravelmente mais apegada às formas tradicionais de se fazer Arqueologia, como as técnicas de campo consolidadas ao longo do século XX. Ainda assim, é possível notar o forte apelo que o trabalho de campo exerce sobre alguns pesquisadores, que vêem nesta atividade certa nobreza, própria da identidade da Arqueologia. Pensando dessa forma, considerando a analogia feita com o futebol americano, quem cria a teoria arqueológica? O debate entre as personagens conduz o leitor a questionar a validade da Filosofia da Ciência no que diz respeito à Arqueologia, pois, o que sabem os filósofos sobre o trabalho de campo? Qualquer argumento lançado pelo Filósofo Renascido sobre a urgência de um diálogo, na esteira das mudanças das Ciências Sociais, é rebatido pelos apontamentos do Veterano, sempre espirituoso e dotado de um charme típico de personagens rudes e experientes. Flannery, por vezes, parece querer que seu Filósofo transpareça um caráter bem-intencionado,

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diferente da Criança, que assiste ao debate com atenção astuta e anotando tudo o possível, mas não deixa de torná-lo arrogante em suas colocações e seu ar de superioridade perante o arqueólogo da velha geração. O Veterano, enfim, não acredita em teoria arqueológica. Ele acredita, sim, em uma teoria antropológica a ser transposta para uma metodologia própria da Arqueologia ou, ainda, em leis geológicas que ditam o processo de formação de sítios. Deste modo fica realçada a posição de subordinação à Antropologia, como discutido no segundo tópico, com algumas nuances em relação ao debate da condição independente da Arqueologia. Não me parece que a intenção de Flannery seja apontar para a noção de ciência auxiliar, ou de mera técnica de campo. Como uma disciplina maior que engloba outras, conforme o modelo dos “quatro campos” de Boas, o autor parece defender uma relação de contribuição interdependente. Para impor-se no diálogo, o Veterano desafia o Filósofo a ensinar-lhe um grande modelo, ou lei arqueológica, a qual permanece em aberto no texto. Além de representar mais uma vitória em favor do protagonista, pode-se afirmar que fica estabelecido pelo autor que uma teoria disciplinar só pode ser concebida na forma de leis e modelos, aspecto este questionado atualmente por estudiosos associados aos movimentos pós-modernos, os quais recusam pares dicotômicos e quadros normativos pré-estabelecidos na condução de suas pesquisas. Porém, é importante ressaltar que a Antropologia à qual responde a Arqueologia do Veterano não é qualquer uma, mas aquela unificada sob o conceito de cultura. Ou seja, não se trata da Antropologia do artigo de Wolf, nem da Antropologia que permite que William Rathje, uma das poucas referências bibliográficas trazidas ao final do texto, estude o lixo moderno de Tucson numa perspectiva arqueológica. A personagem defende, acima de tudo, a cultura e seu conceito, ainda que vago, como o ponto de ligação dos “quatro campos” da Antropologia. A preocupação é que, sem esse todo integrado que abarcava costumes, crenças e valores, a disciplina perderia o sentido e cairia em um limbo de paradigmas variados, como o materialismo e a ecologia cultural, o estruturalismo francês, a antropologia cognitiva e a simbólica, citados por Wolf como alternativas no novo cenário intelectual. A conversa também assume um caráter de questão ética quando se critica a perda de informação nos trabalhos orientados por problemas. Entretanto, se o leitor se mostrar mais identificado com aqueles que apontam para a inexistência do arqueólogo neutro, que aporta no sítio livre de objetivos, questionamentos e pressuposições, tal perda de dados pode vir a ser igualmente identificada naquelas pesquisas que se comprometem a coletar todo o suposto ‘conjunto cultural’. Dadas as evidências, atrevo-me a dizer que o autor desenvolve na figura singular e carismática do Veterano, pensada para ganhar a simpatia do leitor, não apenas seu interlocutor ideal, com quem compartilha todas as opiniões e perspectivas, mas, enfim, seu alter ego. Logo, a opção pela parábola permitiu ao autor esquadrinhar vários aspectos polêmicos do debate arqueológico, sem necessariamente tecer críticas diretas a nomes conhecidos do meio acadêmico. Com as personagens formuladas com base em estereótipos genéricos, como Joyce já havia notado em outra publicação do autor, Flannery pôde promover um embate de posicionamentos e eleger aquele que seria privilegiado, na voz de seu protagonista e na sua própria. Assim, contra todas as expectativas,

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triunfa na parábola da Marshalltown dourada uma Arqueologia tradicional, rebatendo seus críticos e clamando por novos aliados.

Considerações finais: ecos de Flanner y Philip Rahtz escreveu, há quase trinta anos, um capítulo bem humorado para seu livro Convite à Arqueologia, que optou por chamar de “A arqueologia alternativa” (1989). Versando sobre o humor dos arqueólogos, o autor lembrou o quanto estes podem ser engraçados quando reunidos, embora nem sempre o mesmo aconteça quando sozinhos. No texto, Rahtz afirma que a arqueologia é muito importante para não ser ironizada. Eu também coloco piadas nas palestras como forma de manter a atenção da audiência. O problema é que as pessoas se lembram das piadas, mas não do resto da conferência, de forma que as piadas têm de ser piadas importantes, que ilustrem verdades profundas sobre alguns aspectos (1989: 108).

As “verdades profundas” das quais Rahtz fala podem ser entendidas como a posição do autor diante da sua Arqueologia, diante do seu fazer arqueológico. São as “vontades de verdade” de Foucault, na mesma medida em que veiculam ideias pertinentes a uma sociedade de discurso, a uma corrente de pensamento dentre outras tantas da Arqueologia. O teor engraçado cativa o ouvinte, ou o leitor, e a afirmação formulada em tom de piada pode alcançar uma repercussão maior do que quando dita sem rodeios, direta e quase autoritária. São reflexões como essa que facilitam a compreensão da escolha de estilo para a narrativa de Flannery, principalmente se lembrarmos que, antes de publicada, a parábola foi idealizada como uma palestra em um evento de alcance nacional nos Estados Unidos. Aliás, idealizada também como resposta a um artigo de jornal, que tocava no baluarte da Antropologia, a noção tradicional de cultura. Eric Wolf chegou a redigir uma tréplica, dois anos mais tarde, retomando a querela conceitual (1984), onde suas influências marxistas ficam bastante claras. Relembrando que o Veterano despedido de Flannery insiste que somente a cultura conecta todos os artefatos de um sítio, Wolf contra-argumenta afirmando que os arqueólogos estariam muito mais preocupados em entender os tipos de conexões do que em rotulá-las como um conjunto. Sua conclusão é que o conceito de cultura não é uma panacéia, mas um ponto de partida de valor metodológico – não deve ser um instrumento limitador do raciocínio do pesquisador, e sua principal crítica ao pensamento difusionista e aos históricoculturalistas é que enfatizavam formas culturais; mas com notáveis exceções (como Alexander Lesser) falharam em enfatizar as maneiras como as pessoas relacionavamse entre si – ecologicamente, economicamente, socialmente, politicamente e ideologicamente – através do uso dessas formas (WOLF, 1984: 396).

A cultura, para Wolf, não conta com uma essência interior; além de plurais, culturas e sociedades estão em constante construção, desconstrução e reconstrução, formulando novas conexões entre as relações sociais de produção. Na concepção do autor, cultura é, em suma, “ideologia-em-

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formação”, nem estática, nem predeterminada, mas um constante ponto de tensão. Não foi só na tréplica de Wolf que a parábola de Flannery foi retomada para discussão, sendo possível encontrar suas referências em vários textos posteriores. James Deetz, por exemplo, concordava em absoluto que a cultura, não o comportamento, fosse o paradigma central da Arqueologia (DEETZ, 1989). Defendeu, inclusive, a visão de que a escavação deveria responder ao máximo de perguntas possível, contra a pesquisa orientada por problemas – apesar de reconhecer que ambas as alternativas apresentam suas desvantagens. Já Alison Wylie promoveu uma extensa discussão entre os trabalhos de Schiffer e Flannery, no que diz respeito as suas ideias sobre a Filosofia da Ciência em Arqueologia (WYLIE, 1985). Em sua opinião, a parábola não apresenta uma condenação inequívoca da análise filosófica na e da Arqueologia, desde que se refira à prática e aos problemas arqueológicos e seja desempenhada por pesquisadores seniores formados em campo. Não resta dúvida, portanto, de que a narrativa de Flannery ecoou pelo meio acadêmico e deixou sua marca na reflexão teórica da disciplina. Trigger se mostrou espantado ao verificar que esta, a “apostasia mais impressionante das preocupações metodológicas da Nova Arqueologia em prol de ‘fazer arqueologia’” (TRIGGER, 2004: 416), viesse logo de um teórico processual de tão conhecidas credenciais. Mas, como a Criança dos Anos 70 observa, o protagonista da parábola saiu direto da ‘rica, mas desprezada tradição empiricista’, uma origem da qual talvez Flannery não buscasse se desvencilhar totalmente.

Re f e r ê n c i a s B i b l i o g r á f i c a s BAHN, Paul. Tudo o que você precisa saber sobre Arqueologia para nunca passar vergonha. Coleção Manual do Blefador. Rio de Janeiro: Ediouro, 1993. BINFORD, Lewis. Archaeology as anthropology. In: FAGAN, Brian (ed.) Introductory readings in archaeology. Little, Brown, Boston. p. 325-338. 1970. CORDEIRO, Darlan Pereira. Conhecendo Arqueologia. Itajaí: Ed. do autor, 2006. DEETZ, James. “Archaeography, archaeology, or archeology?”. American Journal of Archaeology, vol. 93, n. 3, p. 429-435, jul/1989. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. 3. ed. Curitiba: Positivo, 2004. FLANNERY, Kent. “The Golden Marshalltown: a parable for the archaeology of the 1980s”. American Anthropologist, New Series, vol. 84, n. 2, p. 265-278, jun/1982. __________. Archaeology and ethnology in the context of divergent evolution. In: FLANNERY, Kent; MARCUS, Joyce (eds.) The cloud people: divergent evolution of the Zapotec and Mixtec civilizations. New York: Academic Press, p. 361-362. 1983. FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. São Paulo: Edições Loyola, 2008. __________. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.

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RESENHA HINGLEY, Richard. O Imperialismo romano: novas perspectivas a partir da Bretanha. Trad. Luciano César Garcia Pinto. Organização de Renata Senna Garraffoni, Pedro Paulo A. Funari e Renato Pinto. São Paulo: Annablume, 2010.

Rafael Augusto Nakayama Rufino

Mestrando em História Cultural pelo IFCH/UNICAMP. Bolsista CNPq.

Os estudos acerca do mundo clássico vêm recebendo, a partir do ponto de vista da História e da Arqueologia, propostas de análises inovadoras. Ao contrário das tradições interpretativas que concebiam as sociedades antigas como modelos de homogeneidade social e cultural, utilizando conceitos tais como legado, herança, civilização, helenização, romanização, alguns historiadores e arqueólogos que tematizam o mundo antigo têm direcionado seus esforços para o estudo das apropriações modernas da Antiguidade. Inseridos em uma discussão epistemológica mais recente, esses estudos chamam a atenção para o aspecto discursivo dos estudos clássicos, rechaçando posturas objetivistas. Convergem, nesse sentido, para “uma reação subjetivista, que coloca no centro de qualquer visão sobre o passado o autor dessa visão, que vê de determinada posição social, econômica, histórica, de gênero (homem, mulher)” (Garraffoni; Funari, 2007: 4). Comumente vistos como afastados do campo da política moderna, os estudos sobre a Antiguidade, como é ressaltado por Martin Bernal, “têm sido marcados por uma atitude francamente política” (2005: 13). É nessa perspectiva que está inserido o livro O Imperialismo Romano: novas perspectivas a partir da Bretanha de Richard Hingley, professor do Departamento de Arqueologia da Universidade de Durham, na Inglaterra. Este volume reúne quatro artigos, inéditos em língua portuguesa, publicados em primeira versão entre 1991 e 2008. Em comum entre eles é a pretensão de se analisar os modelos interpretativos utilizados nos estudos sobre a Roma clássica pelos estudiosos britânicos, no ensejo de desconstruir os discursos imperialistas do início do século XX que fundamentaram leituras sobre o passado romano, tanto na História como na Arqueologia. A partir dessas críticas é que são propostas análises inovadoras, influenciadas, em grande medida, pelas teorias pós-colonialistas, que tentam construir interpretações mais flexíveis acerca do Império romano. No capítulo de abertura, O “legado” de Roma: ascensão, declínio e queda da teoria da romanização (texto originalmente publicado em 1996), Hingley discute as mudanças sociais ocorridas com a chegada dos romanos na Bretanha, e como isso pode ter refletido na cultura material. Estabelece, então, uma discussão disposta em três tópicos com temáticas inter-relacionadas.

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No primeiro, seu intento é “examinar alguns dos modos pelos quais os britânicos usaram a imagem da Roma clássica para identificar e fundamentar suas próprias nacionalidade e expansão” (p.28). Muitos paralelos e associações com Roma foram estabelecidos durante os períodos medieval e moderno, principalmente entre os sistemas imperiais britânico e romano (p.29). Já no início do século XX, entre 1899 e 1914, um paralelo particular foi promovido por políticos e intelectuais que “argumentavam que a história de Roma fornecia ‘moralidade’ aos britânicos numa época de particular pressão internacional” (p.30). Esse paralelo romano, segundo Hingley, “foi empregado para definir uma linha de continuidade no desenvolvimento cultural europeu desde o passado clássico até o presente” (p.31). O principal acadêmico do período estudado é o arqueólogo e historiador Francis Haverfield (1860-1919), pioneiro na Arqueologia sobre o período romano-britânico, que está “entre os estudiosos que advogavam pelo especial valor moral que os estudos sobre Roma tinham para os britânicos” (p.32). Um dos conceitos promovidos por Haverfield é o de “Romanização”, do qual Hingley é crítico, onde é estabelecido “um modelo para o processo de mudança progressiva que tem muito em comum com os conceitos de ‘progresso’ e de ‘desenvolvimento’, próprios do século XIX e do início do século XX” (p.33). Essa idéia seria “comprovada” pela “transformação gradual da cultura material, na província, de nativa a romana, durante todos os três séculos e meio de dominação romana” (p.34). No segundo tópico, Hingley percebe uma mudança ocorrida nos estudos sobre a “Romanização” nos últimos setenta anos, realizados por acadêmicos já no período de declínio ou posterior ao fim do Império Britânico: “a romanização deixou de ser vista como uma forma de progresso moral e social, mas sim vista à luz do desenvolvimento, ou aculturação, pelo qual a sociedade nativa, de imediato, adotou a cultura ‘romana’” (p.34). Nesse momento, portanto, a teoria passaria por uma mudança conceitual, constituindo-se um processo de adoção cultural, não imposição. O trabalho de Martin Millet (1955-), professor de Arqueologia clássica da Universidade de Cambridge (Inglaterra), é, para Hingley, ilustrativo a esse respeito, onde “indivíduos bem-intencionados das elites imperial, tribal e local gentilmente demonstravam as vantagens dos novos costumes aos interessados da sua parentela, de seus clientes e de seus escravos, e permitiam – até mesmo encorajavam – mudanças voluntárias em seus modos de vida. (...) Considerou-se, então, que mudanças na cultura material eram direcionais e que tinham resultado de um desejo, da parte dos provinciais, de se tornarem romanos” (p.36). Por fim, Hingley propõe discutir a contribuição das teorias pós-coloniais para uma crítica dos discursos anteriores, pois “trabalhos cuja análise é póscolonial podem permitir-nos, todavia, ver e considerar as perspectivas que motivaram os estudos passados e, também, sugerir esquemas amplos para novas formas de compreensão” (p.35). Questiona os modelos interpretativos que “ignoram o papel ativo da sociedade nativa em determinar a função, o valor e o papel de suas próprias posses” (p.37), bem como as abordagens que sugerem que há um fenômeno tal como uma cultura material “romana”: “vários itens materiais que são tomados como índice de ‘romanização’ não provieram de Roma, mas de outras áreas do Império” (p.37). Sendo assim, o que Hingley espera de uma Arqueologia acerca da Bretanha Romana é que ela “aceite a teoria de que indivíduos e comunidades

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adotavam ativamente novos símbolos e ideias para criar ou manter o controle das relações de poder; mas, ao mesmo tempo, ela pode opor-se a isso com uma segunda teoria: comunidades e indivíduos dominados reagiam às tentativas de dominá-los por meio de atos de oposição que tinham correlatos materiais” (p.41). No segundo capítulo, O campo da Bretanha Romana: o significado das formas de assentamento rural (texto originalmente publicado em 1991), Hingley direciona sua atenção aos estudos dos assentamentos rurais romanobritânicos. Aponta que seu objetivo será “considerar certos conceitos e temas relevantes ao estudo do assentamento rural Romano-britânico. (...) a intenção é considerar um conjunto de modelos que examinam a natureza das evidências” (p.49). Considera que os “sítios de assentamento romano-britânico variam em tamanho, forma, abundância, função e localização” (p.50), e esses aspectos tornam-se importantes para um estudo da organização sócio-econômica das comunidades das províncias da Bretanha Romana. Também é possível, por meio da cultura material, vislumbrar o propósito econômico de cada assentamento, seja ele comércio, indústria ou agricultura. É tratado cada tipo de assentamento individualmente, oferecendo suas definições e principais características materiais: Outros assentamentos rurais (p.52); Pequenas cidades (p.52) – antes de explorar em detalhe a organização dos assentamentos e da paisagem que os cercam – A organização do assentamento (p.53); A organização da paisagem (p.58). É a partir de um estudo crítico dos conceitos e temas que vêm sendo empregados para a interpretação da cultura material dos assentamentos romano-britânicos, bem como os modelos interpretativos arqueológicos utilizados, que Hingley procura mostrar que, dependendo do modelo utilizado, uma determinada situação sócio-econômica pode parecer muito mais complexa quando comparada a visões mais tradicionais. No capítulo seguinte, Diversidade e unidade culturais: Império e Roma (texto inédito), Hingley escolhe como temática a ser desenvolvida a diversidade cultural do mundo da Roma clássica, e aponta como objetivo “explorar um aspecto da relação entre o mundo da Roma antiga e os nossos tempos atuais, ao destacar uma perspectiva que se desenvolve no interior dos estudos clássicos: a análise da diversidade, pluralidade e heterogeneidade culturais” (p.67). A proposta é analisar a questão do contexto político-social no interior do qual tais ideias emergiram e estão florescendo. Destaca, também, a questão da contemporaneidade dos estudos sobre a Roma clássica que “com freqüência explicam os fenômenos históricos antigos nos termos que satisfazem os gostos e os interesses modernos” (p.68), e o uso de Roma ao longo da história, pois “desde a queda do Império romano no ocidente, durante o século V d.C., a Roma clássica continuou a ser usada para ilustrar o presente de formas variadas e contrastantes” (p.69). Ilustrativo a esse respeito é o conceito de “Romanização”, uma categoria analítica criada, em especial entre os séculos XIX e XX, para enfatizar “um processo de ‘progresso’ desde uma cultura ‘bárbara’ até uma ‘romana’ na expansão do Império” (p.71), criando, dessa forma, polaridades e hierarquias que acabaram se configurando como ferramentas conceituais para o uso das nações imperialistas modernas. Nesse sentido, a atenção deve ser voltada, segundo Hingley, “para o papel ideológico desempenhado pela arqueologia clássica e pela história antiga ao longo de toda a era moderna” (p.73).

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Como crítica a essa visão, Hingley apresenta estudos que apontam para um cenário cultural e identitário muito complexo e diversificado, onde “a cultura ‘romana’ não é mais vista como uma entidade monolítica e claramente delimitada, mas como derivada de uma variedade de fontes ao longo do Mediterrâneo” (p.75), bem como estudos do início do século XXI que “começaram a fragmentar a identidade romana, ao se voltarem para interpretações mais complexas que, com freqüência, valem-se de vestígios materiais” (p.77). Menciona alguns estudiosos que vêm adotando essa perspectiva ao tratar da Roma clássica como Nicola Terrenato, Greg Woolf, Carol van Driel-Murray e Emma Dench. Outras questões ainda são tratadas por Hingley como o conhecimento do latim, a urbanização, a militarização e a marginalização no Império romano para apresentar um cenário de grande heterogeneidade no mundo romano. Por fim, aponta para a urgência do questionamento acerca dos propósitos, teorias e métodos relativos aos estudos contemporâneos sobre Roma. Ressalta que “os estudiosos do mundo clássico deveriam trabalhar a fim de procurar o contexto em que nosso entendimento do imperialismo romano se desenvolveu” (p.92). E conclui com um alerta: “se não encararmos o contexto político do trabalho que produzimos, seguiremos uma longa tradição acadêmica de recriar o fantasioso e o impossível: um campo neutro e apolítico dentro do qual os estudos clássicos pudessem funcionar” (p.93). No último capítulo, O Muro de Adriano em teoria: uma nova agenda (texto originalmente publicado em 2008), Hingley inicia a discussão considerando a ocorrência de um enigma, qual seja, “o declínio sério e dramático, nas universidades britânicas, da pesquisa relativa ao primeiro monumento romano na Bretanha” (p.105). O monumento em questão é o Muro de Adriano, assim conhecido por ter sido construído por volta de 120 d.C., a mando de Públio Élio Trajano Adriano, imperador romano entre 117 e 138. Acrescenta, ainda, que há uma “estagnação dessa pesquisa em comparação aos estudos de urbanismo, de assentamento rural e de achados romanos” (p.106). Ao apontar as razões para essa situação, Hingley coloca que existe uma noção de que “já possuímos a maior parte do que precisamos saber e que resta pouca coisa para se alcançar. (...) O monumento parece ser fácil de se interpretar, seguro e imutável, uma fundação sólida sobre a qual baseamos nossas ideias sobre o passado antigo de nosso país” (p.107). Esse entendimento solidificado sobre o monumento parece contar com o grande auxílio das escolas de educação básica, onde “toda criança educada em escolas da Inglaterra dá a impressão de ter aprendido uma versão de ‘fatos’ básicos acerca do Muro, e, em geral, é difícil enfrentar esse saber, por causa de sua provável importância como parte de mitos de origem fundamentais sobre a Inglaterra, Escócia e a Grã-Bretanha” (p.108). É justamente um enfrentamento que tem pela frente os estudiosos que almejam tornar novamente o Muro de Adriano um objeto de pesquisa, pois há uma forte relação entre o Muro e as identidades nacionais, inglesa e escocesa, que já se encontram naturalizadas. Por fim, Hingley questiona se há razões para o otimismo e, então, sugere “uma série de áreas que poderiam formar a base de uma nova agenda de pesquisa. Essa lista não se pretende, de modo algum, definitiva ou exclusiva, e um grande número de outras questões de pesquisa deveriam ser formuladas” (p.109). Algumas questões são levantadas e somente sugeridas: O muro

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articulou um discurso romano de identidade imperial? (p.109); Como as experiências acerca do Muro de Adriano estavam relacionadas à existência de outras fronteiras (p.110); Como o Muro valeu-se de paisagens pré-existentes e como sua presença influenciou as experiências de vários eleitorados (p.111); O que o Muro significou para as populações posteriores? (p.112). A pretensão do autor é chamar a atenção para as pesquisas que levem em conta a complexidade do monumento e, por outro lado, questionar a solidez e a imutabilidade que caracteriza os estudos concernentes ao tema atualmente. Foram apresentadas algumas idéias gerais sobre essa importante obra que busca perceber o mundo da Roma clássica de forma mais problematizada, ao considerar as leituras que são feitas para legitimar ações no presente, bem como os mecanismos de apropriação do mundo antigo para usos contemporâneos. Busca-se, ainda, estabelecer um diálogo entre História e Arqueologia clássica, em uma postura interdisciplinar, que permite rever os conceitos e categorias utilizadas em prol da construção de modelos teóricos menos rígidos e excludentes, abrindo possibilidades de produção de novos conhecimentos sobre o mundo antigo, e romano, em particular. Enfim, é uma obra que concede ao público brasileiro o acesso à produção acadêmica internacional, mostrando que os estudos sobre a Antigüidade clássica, muitas vezes vistos como conservadores e elitistas, permitem abordagens múltiplas, onde a ênfase é dada ao caráter heterogêneo, plural e conflitivo do mundo antigo.

Referências bibliográficas BERNAL, Martin. A imagem da Grécia Antiga como uma ferramenta para o colonialismo e para a hegemonia européia. Trad. Fábio Adriano Hering. In: Textos Didáticos – Repensando o Mundo Antigo. IFCH/UNICAMP. nº49, abril de 2005. GARRAFFONI, Renata Senna; FUNARI, Pedro Paulo A. Morte e vida na arena romana: a contribuição da teoria social contemporânea. In: Fênix: Revista de História e Estudos Culturais. Janeiro/Fevereiro/ Março de 2007. Vol. 04, ano IV, nº01. p. 4. Disponível em: www.revistafenix.pro.br.

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E N T R E V I S TA O processo de conservação dos bens culturais no Brasil: reflexões do Professor Jaime Mujica Entrevistado

Entrevistadora

Prof. Jaime Mujica

Professor do Curso de Antropologia/Arqueologia da Universidade Federal de Pelotas (UFPel): Linha de Pesquisa: Conservação de Materiais Arqueológicos. Pesquisador do Laboratório Multidisciplinar de Investigação Arqueológica - LÂMINA. Professor Permanente do Mestrado em Antropologia e Arqueologia da UFPel e da Especialização em Memória, Identidade e Cultura Material (UFPel). Biólogo (Universidad de la República, Uruguay); Mestre em Botânica: Agrostología (Universidade Federal do Rio Grande do Sul); Doutor em Ciências do Solo (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro).

Luciana Cristina de Souza – Mestranda em História Cultural pela Universidade Estadual de Campinas e pesquisadora do Laboratório de Arqueologia Pública Paulo Duarte. Bolsista FAPESP. E-mail: [email protected]

Reconhecimento de campo, prospecção, escavação, análise e interpretação dos materiais. Essas e outras atividades são comumente citadas ao se referir à atividade do profissional formado em Arqueologia. Contudo, para que essa atividade seja possível, é necessário que o arqueólogo tenha em suas mãos os materiais preservados no intuito de que as informações ali contidas possibilitem o seu estudo. Para isso, deve-se reconhecer a importância do profissional cuja atenção se volta para a preservação e conservação desses materiais. Para debater esse tema, a Unicamp recebeu, nos dias 22 e 23 de agosto, o pesquisador Jaime Mujica, da Universidade Federal de Pelotas – RS, que atua na área de conservação de materiais arqueológicos e ministra disciplinas na Graduação, na Especialização em Memória, Identidade e Cultura Material, e no curso de Mestrado em Antropologia e Arqueologia, todos eles na UFPel. Atua também como pesquisador associado do Laboratório Multidisciplinar de Investigações Arqueológicas (LÂMINA-UFPel), onde atualmente realiza trabalhos de escavação na Charqueada Santa Bárbara, como parte do projeto “O Pampa Negro: Arqueologia da Escravidão na Região Meridional do Rio Grande do Sul (1780-1888)”. Na entrevista que se segue, concedida gentilmente à Revista de Arqueologia Pública, o professor trata de vários assuntos relacionados ao seu trabalho nas charqueadas, à conservação do material arqueológico, e se propõe a analisar também a possibilidade da atividade do conservador no contexto da arqueologia de contrato.

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Entrevistadora

Gostaria que o senhor comentasse acerca do trabalho que a equipe do LÂMINA (Laboratório Multidisciplinar de Investigação Arqueológica) realiza nas charqueadas.

Prof. Jaime Mujica

O trabalho nas charqueadas teve início em agosto do ano passado, numa área que a universidade tinha intenção de comprar para transformar em prédio da Faculdade de Engenharias. Então, um colega arqueólogo, Cláudio Carle, detectou nas ruínas uma casa que corresponderia a uma estrutura de uma possível charqueada. Começamos a fazer um estudo nos arquivos, na documentação, e, realmente, nessa região aparecia uma charqueada, que se têm registros do início dos anos 1800. Fomos lá e reconhecemos o local. Há várias pessoas morando lá, uma das quais é descendente de uma das escravas que trabalhava na própria charqueada; e, outra família, descendente de portugueses, que veio trabalhar na charqueada depois da abolição da escravidão. Como a universidade pretendia fazer um prédio, realizar modificações nesse local – que depois vimos que não era exatamente nesse local que a universidade havia comprado, mas sim há uns 150 metros dali! – vimos evidências do que seria uma senzala, em grande parte bem preservada. Mesmo que em uma das paredes o telhado tenha desabado, estava em muito boas condições. Pela estrutura e pelo formato percebemos que se tratava de uma senzala, pelo menos para escravos que faziam serviços domésticos. A partir daí começou todo um trabalho de avaliação da possibilidade de fazer a prospecção arqueológica para evidenciar a participação do negro africano nessa atividade produtiva, e também interpretar a localização das distintas funções da charqueada: a área dos tanques de salga, dos varais para secar o couro, do curral, da produção agrícola, do alojamento e, assim, sucessivamente. Todas estas atividades estavam enquadradas dentro de um Projeto de Pesquisa do Dr. Lúcio Menezes Ferreira intitulado: “O Pampa Negro: Arqueologia da Escravidão na Região Meridional do Rio Grande do Sul (1780-1888)”, e de um projeto do qual sou o responsável chamado: “A Conservação in situ de Materiais Arqueológicos”. Essa prospecção implicava na escavação e na coleta de materiais. Nesse ponto é que começava o grande problema para nós: a UFPel não tem reserva técnica. Temos o LÂMINA , fundado ano passado, com uma infraestrura precária. Deste grupo participam arqueólogos, museólogos e conservadores, e nos reunimos diversas vezes para estimar o volume de material que pode aparecer, os tipos de materiais (osso, cerêmica, etc.), o estado de conservação deles (se estão muito degradados ou menos), e, a partir dessa quantificação, começamos a elaborar protocolos de trabalho (como devem ser coletados, transportados, acondicionados e como ser tratados no laboratório). É a partir desses protocolos que fazemos as listas de insumos que serão usados para fazer a conservação, curativa ou preventiva, e para nossa grande surpresa esses produtos não estão disponíveis no mercado do Rio Grande do Sul. Então, tínhamos que reformular os protocolos de trabalho para produtos de mais fácil aquisição. A partir daí, o objetivo era encontrar algumas alternativas para que a coleta de material fosse minimizada e a destruição posterior do material também fosse minimizada. Uma alternativa que encontramos foi realizar uma etapa dos trabalhos no próprio campo, vamos supor: cacos de cerâmica muito pequenos, sem as bordas; fragmentos de vidros, que não fosse do gargalo nem da base, que não possuem valor

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diagnóstico e que não darão informações importantes serão descartados no fundo da quadrícula, no próprio local da escavação. Isso minimiza parte dos materiais e aquilo que deve ser incorporado às reservas técnicas. A segunda estratégia que utilizamos é o enterramento, que é muito discutido no Brasil, porém em diversos países essa é uma prática muito comum. Quais são as vantagens do enterramento? Parte do material que não temos condições de conservar, o material que não é importante nesse momento, ao ser enterrado no próprio ambiente da escavação, estamos propiciando a conservação do mesmo, porque o PH do solo é o mesmo, o tipo do solo é o mesmo, a variação de temperatura e umidade são mais ou menos as mesmas. Então, o objeto vai continuar tendo o mesmo equilíbrio do que antes de ser desenterrado. Adotamos essas duas metodologias: uma triagem seletiva in situ e o enterramento. Posteriormente, no laboratório é feito uma segunda triagem do material, preferencialmente com o auxílio de especialistas em materiais arqueológicos e outras tipologias, e o material que não é interessante para ele há dois caminhos: um é ser reenviado às charqueadas ou ser separado e acondicionado como coleção didática. Essas coleções didáticas (de ossos, de cerâmicas e vidros) são coleções a serem manipuladas, manuseadas e utilizadas pelos discentes o docentes vinculados ao LÂMINA. Entrevistadora

Quais são as perspectivas do processo de musealização após a escavação?

Prof. Jaime Mujica

Nós temos uma pessoa no grupo, a Geanine Escobar, que é afroamericana e que possui muita incidência e articulação nos movimentos negros da região. Através dela, queremos chegar até a comunidade negra, conversar com eles e perguntar se eles possuem materiais do período da escravatura, porque já sabemos que eles têm. Queremos que eles venham até o Laboratório e que nos auxiliem no reconhecimento dos materiais. Com isso, queremos criar uma ponte entre a academia e a sociedade. O que acontece em Pelotas? Acontece que muitas culturas materiais negras e indígenas estão em posse senão de colecionista, de moradores. E eles têm muito receio que a comunidade científica vá lhes tomar os materiais. Então queremos criar instrumentos para que possamos deixar esses materiais nas casas das pessoas e que os próprios atores sociais interajam com o Laboratório; uma estratégia que poderia ser implementada é que algum líder ou alguma pessoa da própria comunidade negra participe da curadoria do material. Quando tiver uma exposição, um trabalho em colégio, essas pessoas da comunidade irão reinterpretar e ressignificar essa cultura material.

Entrevistadora

Como os responsáveis pelos museus da cidade já instituídos, ou as pessoas envolvidas com esses museus e com essas instituições, percebem o Projeto Pampa Negro?

Prof. Jaime Mujica

Nesse momento existe um projeto denominado Museu da Casa Oito, um museu de arqueologia em conjunto com o Museu da Tradição do Doce, em Pelotas. É uma casa dos primeiros charqueadores na praça central, onde se faria basicamente essa topografia dos registros materiais, grande parte dos materiais encontrados nas charqueadas. Mas a casa é do século XIX, então, tem que passar por uma série de reformulações técnicas para receber os materiais

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arqueológicos. Nesse sentido, não está muito claro o modo como vamos fazer. Este museu de arqueologia é uma parceria entre a Prefeitura Municipal e a UFPel, e está sendo coordenado pelo Dr. Pedro L. Machado Sanches, pesquisador do LÂMINA. Na cidade existem outros museus importantes, mas não existe um museu que realmente contemple as contribuições das etnias africanas e das populações originais na formação do que hoje é o Estado do Rio Grande do Sul, tirando os negros escravos e os indígenas da invisibilidade e da concepção romântica como os mesmos são tratados atualmente na sociedade. Entrevistadora

O projeto desenvolvido no LÂMINA recebe apoio financeiro dos órgãos federais e estaduais ou do município de Pelotas?

Prof. Jaime Mujica

Os apoios são muito limitados. O rol do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) se baseia nas concessões, na autorização da escavação. E nós temos boas relações com o Iphan do Rio Grande do Sul. Os órgãos de pesquisa estaduais, nesse caso, não estão contribuindo e a prefeitura também não. Basicamente são recursos do Instituto de Ciências Humanas (ICH-UFPel). Temos bolsista PET (Programa de Educação Tutorial), bolsistas de iniciação cientifica e bolsistas do Mestrado em Antropologia e Arqueologia. Mas não temos um apoio específico, o que dificulta bastante. Temos dificuldades de comprar os materiais, dificuldade para contratar outros especialistas.

Entrevistadora

Como se encontra atualmente a prática da conservação no Brasil? E se compararmos com outros países? É possível fazer um balanço?

Prof. Jaime Mujica

Podemos fazer sim. Historicamente, aqui no Brasil, são poucos os institutos que trabalham com a conservação arqueológica. Os cursos de conservação e restauro no Brasil – basicamente são três – estão na maioria direcionados à curadoria de obras de arte, documentos, obras raras, tecidos, entre outros. Tirando a atuação da Dra. Yacy-Ara Froner da UFMG e da sua equipe de conservação de materiais arqueológicos, que têm uma longa trajetória nesta área, são muito escassas as referências no país. Realmente, a conservação do patrimônio arqueológico e paleontológico é pouco considerada. Esse é um primeiro problema em relação a esse tipo de curadoria. O Uruguai está no mesmo grau de avanço que o Brasil, destacando-se os trabalhos de conservação de materiais arqueológicos subaquáticos da equipe liderada pelo Dr. Antonio Lezama do Programa de Arqueologia Subacuática (PAS) da Universidad de la República . Já a Argentina, em Buenos Aires, tem um centro especializado em escavação e conservação históricas, que possui bastante experiência, o Centro de Arqueología Urbana, com conservadores reconhecidos como é o caso da Dra. Patricia Frazzi. Então, nós que nos especializamos em conservação de materiais arqueológicos, sejam eles terrestres ou subaquáticos, temos que buscar aprimoramentos técnicos fora do nosso país. Dentro da profissão de conservador, existem poucos profissionais que se direcionam para os trabalhos arqueológicos e, muito menos, para os trabalhos arqueológicos in situ, porque implica que a pessoa além de trabalhar no laboratório deve estar com vontade de trabalhar em campo. Então, se compararmos com a Espanha, por exemplo, é um país que está muito avançado na conservação de

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materiais subaquáticos, com a existência de centros equipados, além dos vários especialistas que dão cursos em distintos países. Nós, por exemplo, fizemos um curso no Uruguai com o grupo PAS de conservação de metais arqueológicos, e, depois, fizemos um curso na República Dominicana sobre a conservação do patrimônio arqueológico subaquático. Portanto, é necessário continuar com essa capacitação, fazer cursos de conservação de variadas tipologias: cursos de conservação de madeira, de artefatos ferrosos, de cerâmica, pois cada uma tem uma metodologia específica. E a grande dificuldade é porque são poucos os cursos, e muitas vezes não se têm os recursos necessários para enviar o aluno, o pesquisador, o especialista. Então, as coisas se encaminham nesse sentido. Por isso, são tão importantes as parcerias. Nós temos um vínculo bastante estreito com esse grupo uruguaio, o PAS, com um intercâmbio intenso de alunos e pesquisas conjuntas; e, agora, com o LAP (Laboratório de Arqueologia Pública – NEPAM/UNICAMP), com esse intercâmbio de professores, de alunos, que já participaram de escavação em Pelotas. Assim, vão se formando pequenos núcleos que nos complementamos na parte da conservação, até conseguirmos formar uma massa crítica significativa. Entrevistadora

Percebe-se que a prática de conservação demanda muitos pré-requisitos: recursos humanos, reservas técnicas, laboratórios, recursos financeiros, entre outros. Diante do atual cenário de crescimento de obras públicas de infraestutura no Brasil, e a presença de empresas de arqueologia nesse processo, como o senhor avalia a prática de escavação e conservação nesse contexto?

Prof. Jaime Mujica

Você sabe que hoje mais de 90% dos projetos de prospecção e resgate arqueológicos são oriundos do que se chama de arqueologia de contrato. Somente 10% são projetos vinculados diretamente à academia. Isso implica trabalhos muito rápidos, feitos de forma muito sumária, que resultam em um volume muito grande de materiais, causando uma grave deterioração do patrimônio, porque, devido à carência de reservas técnicas no Brasil, não poderíamos retirar tantos materiais que estão preservados nos sítios arqueológicos. Essa é a primeira consideração. A segunda, é que não temos recursos humanos suficientes para fazer a curadoria desse volume de material. Desse modo, na minha visão, a questão não é melhorar a capacidade técnica dos museus, das universidades quanto à conservação curativa e preventiva. É claro que tem que melhorar, mas não é por aí. Também não é aumentar os recursos humanos especializados. O grande tema é minimizar o número de escavações e questionar a necessidade da retirada do material do subsolo. Há alternativas. Nós tentamos negociar com as empresas de contrato, com o proponente, para ver quais são as possibildades de não escavar no local, de o empreendimento ser descolocado para outra área com menos evidências de materiais arqueológicos. Ou seja, a ideia é minimizar a entrada desses materiais nos laboratórios. E o que acontece com grande parte dos laboratórios que não possuem condicões de conservação é que muitos materiais chegam com pouca ou nenhuma informação. Então, um material que chega descontextualizado está, a meu ver, perdido; não pode ser pesquisado, interpretado. Isso também é uma forma de perda do patrimônio, quando não sabemos de que contexto o material veio.

Toda a equipe do Laboratório de Arqueologia Pública agradece a entrevista concedida...

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O G Ê N E R O E A S R O U PA S : A M O D A I N FA N T I L N A C AT E G O R I Z A Ç Ã O D O S C O R P O S AUTORES Cassia Manso Maschietto

Graduanda do Departamento de História/IFCH/UNICAMP.

Clarita Maria de Godoy Ferro

Graduanda do Departamento de História/IFCH/UNICAMP.

Gabriel Carlos Souza Santos

Graduando do Departamento de História/IFCH/UNICAMP.

[email protected]

[email protected]

[email protected]

RESUMO

O presente artigo tem como materialidade em análise a moda infantil. Considerando o pensamento arqueológico pós-processualista e a teoria de gênero, o artigo analisa de que forma esse vestuário carrega intensas categorizações que acabam por enquadrar os sujeitos em condutas préestabelecidas, convergindo para um cenário de controle dos corpos segundo interesses ideológicos em voga. Foram escolhidas para análise duas marcas brasileiras de roupas infantis que hoje abrangem um significativo mercado e que optam por separar suas roupas por critérios de gênero: Lilica Ripilica/ Tigor T. Tigre e Alakazoo. Em contraposição, apresentar-se-á também a marca sueca Polarn O. Pyret, que opta por não realizar a divisão por questões de gênero, mas sim por critérios etários. Palavras-chave: Categorização, Infância, Moda.

ABSTRACT

The present article has the childhood’s fashions as a materiality to be analyzed. Taking the post-processualist archaeological theory and the gender theory as bases, the article analyses the way that this kind of clothing carries deep categorizations that end up framing the subjects in predetermined behaviors, converging for a scenario of control of the bodies according to the in vogue ideological interests. For analyses, two Brazilian brands of children’s wear that embrace a relevant part of the market and that choose to sort their clothes by gender criteria have been chosen: Lilica Ripilica/ Tigor T. Tigre and Alakazoo. On the other hand, it will be presented a Swedish brand called Polarn O. Pyret, that chooses to not realize gender segregations, but age ones. Keywords: Categorization, Childhood, Fashion.

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INTRODUÇÃO 1 Neste artigo, o uso da palavra dominação remete ao predomínio masculino sobre o feminino; portanto, não foi usado esse termo tendo em vista as reflexões econômicas desenvolvidas pelo marxismo. Assim, termos como subjugação e repressão também podem ser usados.

Propõe-se neste trabalho que o patriarcalismo, gerador da dominação1 masculina sobre a feminina, transpassa para o cotidiano. Dessa maneira, pretende-se observar aqui se esse modelo de dominação se aplica também à moda infantil. Em contraposição à dicotomia homem/mulher, este trabalho se funda em um questionamento proposto pela filósofa estadunidense Judith Butler: “[...] existe uma região do ‘especificamente feminino’, diferenciada do masculino como tal e reconhecível em sua diferença por uma universalidade indistinta e consequentemente presumida das ‘mulheres’? [...]” (2003: 21). Crê-se, aqui, que não. Entende-se que não há uma “essência feminina”, como também não há uma “essência masculina”. A divisão entre homem e mulher não é natural dos seres humanos, mas sim, socialmente constituída. Essa dicotomia serve, na realidade, para atribuir a essas categorias uma série de características que – tal como as próprias categorias – se justificam dizendo serem naturais. Atribuir previamente ao sujeito uma série de categorias é uma forma de manter o controle social por parte de certo grupo, não permitindo condutas que fujam à norma, legitimando características humanas como naturais, evitando que sejam questionadas. Dessa maneira, “corpos que não estão nos conformes, corpos que zombam das convenções culturais e saem sem as roupas apropriadas, são subversivos dos mais básicos códigos sociais e arriscam a exclusão, o desprezo e a ridicularidade” (ENTWISTLE, 2000: 7) A perspectiva de gênero aqui tomada foi referente ao estudo de caso da moda infantil. Mais do que simplesmente analisar a moda infantil, o objetivo deste estudo é analisar a categorização como ferramenta de dominação. Foi escolhido o vestuário infantil como estudo de caso porque se considera que, na sociedade contemporânea, a dicotomia “homem X mulher” tenta ser imposta desde o nascimento. A indumentária como materialidade a ser analisada foi proposta porque consideramos que “a moda é obcecada pelo gênero, define e redefine as fronteiras de gênero” (WILSON, 1985: 117. Apud. ENTWISTLE, 2000: 140). Poucos são os trabalhos relativos à infância. A arqueologia trabalha, tradicionalmente, com os adultos e, principalmente, com os homens. As vestimentas também costumam ser um assunto deixado de lado pela arqueologia – costuma-se dar muito mais ênfase ao patrimônio edificado, por exemplo. Esses paradigmas vêm sendo alterados e, atualmente, o escopo da arqueologia abrange diversos grupos sociais. Ainda assim, a quantidade de estudos referentes à arqueologia da infância é consideravelmente baixa. Trabalhando a infância em conjunto com os estudos de gênero, há um reduzido número de autores. A socióloga Joanne Entwistle indica a importância da moda para o estudo do corpo. Para ela, ‘Há um óbvio e proeminente fato sobre os seres humanos’, nota Turner (1985:1) [...] ‘eles têm corpos e eles são corpos’. [...] O corpo constitui o ambiente do si, a ser inseparável do si. Contudo, o que Turner omite em sua análise é um outro fato óbvio e proeminente: que os corpos humanos são corpos vestidos. O mundo social é um mundo de corpos vestidos (2000: 6).

A autora trabalha centralmente com a moda como agente formadora de identidades e com as relações entre privado e público; entre a agência

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individual daquele que se veste e a estrutura social da moda. Apesar de apresentar um fascinante estudo relativo à indumentária e às suas relações com as identidades e categorizações de gênero, Entwstile comenta apenas brevemente a questão da infância. Já a arqueóloga argentina Melisa Salerno (2006 2007), por exemplo, em seus trabalhos, mostra ser possível a construção de uma genealogia de nossa sociedade através da análise das roupas. Ela considera importante o estudo da vestimenta como forma de desnaturalizar seus usos e nos aproximarmos de seus significados. Para Baxter, arqueóloga histórica, uma vez que a roupa é um meio determinante no aprendizado das crianças sobre as distinções de gênero, a arqueologia da infância se torna essencial para a análise de tal processo. “Dessa maneira, uma arqueologia da infância é essencial para o entendimento do processo de formação de gêneros, assim como os estudos de gênero são essenciais para a compreensão da natureza da sociabilização infantil [...]” (2005). Através de uma análise teórica e da observação de marcas de roupa infantil destinadas a um amplo público consumidor, verificar-se-á se tais pressupostos partidos condizem com a realidade.

Pressupostos teóricos

2 “La base de la crítica al modernismo y al pensamento cientificista parte de cuestionar la existencia de verdades esenciales solo accesibles a través de larazón, y postular que por el contrario estas ‘verdades’ son relativas y se construyen a partir de referencias específicas” (ZARANKIN, 2000: 345). As referências específicas, conforme Zarankin diz na continuidade de seu texto, são as práticas sociais. Dessa maneira, os referentes de um dado objeto de análise serão derivados das experiências do observador.

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Este trabalho baseia-se na teoria arqueológica pós-processual. O movimento pós-processual é inscrito no pós-modernismo, baseando-se na crítica do status quo anterior (RODRIGUES, 2008). O pós-processualismo, ao contrário do modernismo, nega que existam leis universais que tornem a sociedade codificada, rejeitando o modelo positivista e a sua concepção de que estudos possam ser imparciais. De acordo com o pós-processualismo (ZARANKIN, 2000)2, o conhecimento é sempre parcial, pois qualquer leitura será influída pelos conceitos e opiniões pré-estabelecidos, fundamentados na experiência subjetiva do indivíduo e no tempo/espaço que o mesmo encontra-se inserido. Verdades definitivas não existem para a teoria pós-processual, uma vez que o conhecimento é subjetivo, tornando possível que existam diversas interpretações sobre um mesmo objeto de estudo. De acordo com Jose Alberione dos Reis (2003): “[...] a materialidade estudada pela arqueologia não foi somente moldada por transformações sociais de ordem estrutural. Também por uma ação humana que, contingencial e contextualmente, introduziu significados em tal materialidade”, ou seja, as mudanças na sociedade não são só técnicas – não se passa a fazer as coisas de um modo diferente só porque aquele modo seria tecnicamente melhor. As mudanças podem ser simbólicas; às vezes o objeto tem uma qualidade técnica inferior ao que se usava anteriormente, mas é adotado porque possui um significado simbólico importante para aquela sociedade. A teoria pós-processual é também muito mais plural, pois suas propostas vêm de diversos ramos do conhecimento, levando em conta o marxismo e o feminismo, por exemplo. Tal teoria diz que “não somente os significados da cultura material são contingências em relação a discursos sociais oriundos de contextos passados como fazem parte de interpretações arqueológicas situadas em amplas e contemporâneas realidades sociais e políticas” (REIS, 2003).

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Dessa forma, entende-se que as roupas infantis são produzidas muito mais a partir de critérios simbólicos do que técnicos; e, por isso, optou-se pelo método pós-processual.

A infância, a nudez e os discursos que as atravessam O vestuário escolhido foi o infantil, pois se crê que essa seja a fase da vida em que os discursos são mais facilmente aceitos. A criança possui vivências diferenciadas que, talvez, não as permitam lidar de forma reflexiva com a criticidade, que é gerada a partir de uma compreensão de que as práticas humanas se dão sempre de forma discursiva e a partir da exposição a diversos conflitos ideológicos – por isso, é tida como problemática a forma como se faz a moda infantil: somente um discurso, o dicotômico heterossexual, é apresentado (PONTES, 2004). O segundo motivo da possível falta de criticidade das crianças é a própria construção dessa fase da vida. Pretende-se ressaltar o fato de que a infância está também dentro das políticas de categorização da sociedade ocidental. Assim como a divisão entre masculino e feminino, a criação de categorias relativas ao tempo de vida está em convergência com discursos de manutenção do poder. De tal maneira, a infância não é uma fase natural da vida do ser humano. Ela é construída e a ela é atribuída uma série de características que remetem à ideia de passividade crítico-intelectual. A criança é tida, portanto, como uma massa a ser modelada, como um animal que precisa ser civilizado. Essa espécie de selvageria atribuída à infância permite que a possibilidade de escolha das crianças lhes seja negada. Dessa forma, a imposição de roupas não pode ser por elas questionada. A própria noção de infância passada para as crianças dificulta a capacidade de se criar um senso crítico, e facilita a aceitação daquilo que é imposto pela sociedade. É interessante notar a interpretação de Entwistle sobre a importância das roupas na apresentação dos corpos dos bebês para o restante da sociedade: As roupas chamam a atenção para o sexo daquele que as veste, podendose assim dizer, normalmente de primeira vista, se eles são homens ou mulheres. Como Woodhouse nota, ‘nós esperamos que homens se vistam para “parecerem” com homens e mulheres para se “parecerem” com mulheres’ (1989: ix).

Esse processo começa cedo: bebês, cujo

sexo normalmente não pode ser estabelecido à primeira vista, são frequentemente vestidos com cores, tecidos e estilos de roupas que os diferenciam e anunciam seu sexo para o mundo (ENTWISTLE, 2000: 140).

Desse modo, “[...] existe uma estreita relação entre as vestimentas e as identidades. Por este motivo, usualmente entendemos que as roupas que vestimos constituem uma extensão de nossa pessoa” (SALERNO, 2007:13). A nudez do nascimento permite, então, que o corpo seja tratado como ausente de identidade e o nascimento, portanto, é o primeiro passo para a construção do ser. Como diz Butler: “[...] é impossível considerar a existência de um corpo pré-social, distinto dos gestos e discursos que o atravessam [...]” (BUTLER, 1990, 2002. apud. SALERNO, 2007: 6). Assim, o corpo recém-nascido não está isento dos discursos sociais.

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3 Entenda-se: tanto as roupas propriamente ditas quanto adornos e acessórios. 4 A marca Alakazoo pertence ao grupo Lunender, considerado um dos maiores da indústria têxtil do país. A marca efetua suas vendas online pelo grupo Posthaus, considerado um dos maiores portais de venda pela internet. A Posthaus é voltada ao público das classes C e D. http://www.posthaus.com.br/lojas /posthaus?acao=institucional. Acesso em: 19/09/2012. http://ecommercenews.com.br/ artigos/posthaus-comemora-27anos-de-vendas. Acesso em: 19/09/2012.

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O problema não é o constituir a criança, mas a forma como essa constituição se dá. A criança, em sua condição de nudez, é tida como um animal que deve ser domesticado. “[...] Um corpo nu representa um corpo ao qual é negada sua condição social [,pois] o vestuário constitui um dos elementos mediante os quais se proclama a divisão entre natureza e cultura. [...]” (SALERNO, 2007: 11). A oposição aqui realizada se dá frente essa domesticação do ser humano. O que se deve fazer não é domesticar, mas criar um ser que pense sobre sua própria condição de ser e que compreenda que ela foi construída pelo meio social. A partir dessa compreensão, a pessoa deixa de ser moldada unicamente pela sociedade e passa a ter ferramentas para moldar a si mesma. “Os corpos nus – ao não responder às categorias geradas pela cultura – são corpos aos quais são negadas suas identidades. [...] O vestuário emprega símbolos sensoriais com o objetivo de informar quem somos, o que fazemos e quem pretendemos ser [...]” (SALERNO, 2007:11). Impor uma vestimenta às crianças – que nascem nuas e que, portanto, não possuem uma identidade demonstrável para a sociedade – é impor uma identidade a elas. Ao falar sobre a condição de nudez dos presos políticos da ditadura argentina, Salerno diz que “[...] para os militares, o corpo nu [...] constituía um corpo dominado – ou, ao menos, um corpo que se podia começar a dominar [...]” (SALERNO, 2007:11). Entende-se que essa ideia do corpo nu como objeto de dominação se dá também no caso da infância. A nudez do nascimento é um livro em branco, em que os discursos sociais serão inseridos. No entanto, é impossível ser imparcial no trato com as crianças, isto é, em qualquer ação se estará inserindo nelas visões socialmente formadas. A questão é a forma como isso é feito. Não se visa à liberdade ou à criticidade, mas à pura imposição de valores. Vestir as crianças, mais do que uma preocupação com a proteção do corpo, é uma forma de criar a ideia de que elas estão inseridas na sociedade desde o seu nascimento e que devem, portanto, se submeter às injunções sociais. Para a questão de gênero a indumentária é particularmente interessante, pois como Entwistle defende, “tão significativas são as roupas para nossas leituras do corpo que elas podem vir a suportar diferenças sexuais na ausência do próprio corpo” (2000: 141). À primeira vista é muito difícil de se distinguir o sexo de um bebê. Nesse caso, o argumento biológico da determinação do gênero é deixado de lado e as vestimentas3 são o único elemento que define o gênero da criança. Isso se dá por uma confusão frequente que se faz entre a aparência de gênero e o sexo biológico. Considera-se, no caso em questão, que a roupa é uma reveladora da identidade do sujeito. A aparência de gênero “feminina”, por exemplo, leva a pensar que o sexo biológico da criança é também feminino e, dessa maneira, uma identidade de gênero feminina é a ela imposta. Desta forma, serão tidas como objeto de análise duas marcas de roupas infantis que abrangem uma parcela significativa do mercado brasileiro: Alakazoo4 e Tigor T. Tigre/Lilica Ripilica5. As últimas são duas marcas que fazem parte de uma mesma empresa, mas se subdividem nominalmente a fim de atingir o consumidor masculino, no caso da primeira, e o consumidor feminino, na segunda. É importante destacar que não se tem por objetivo

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http://conrado.com.br/casem a r ke t i n g - d i g i t a l - p o s t h a u s . Acesso em: 19/09/2012. 5 De acordo com a Associação Brasileira da Indústria Têxtil, a grife Lilica Ripilica é a líder no segmento de moda infantil, com uma participação de 15% no mercado. O grupo Marisol, detentor das marcas Lilica Ripilica e Tigor T. Tigre, é o líder nos segmentos de confecção infantil e franquias monomarcas. A marca é voltada para crianças de 0 a 10 anos, pertencentes às camadas médias e altas da sociedade. RIBAS, Nadima C., Mercado de Moda Infantil, Universidade Estadual de Góias - UNU Trindade, 2007. In: http://pt.scribd.com/doc/820133/ artigo-Mercado-de-Moda-Infantil. Acesso em: 19/09/2012. http://www.marisolsa.com.br/ quem-somos. Acesso em: 19/09/2012.

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desenvolver uma análise socioeconômica sobre a indumentária infantil. Optouse por apresentar marcas que visam diferentes grupos financeiros, pois o que se defende aqui é justamente que, embora as questões econômicas interfiram nas questões de gênero, no caso do discurso oficial que age sobre a moda infantil e através dela torna o sexo binário e oposto, elas não são centrais neste texto. Nossa escolha pelas já citadas marcas, então, foi baseada na abrangência social que cada uma obtém, demonstrando que o binarismo de gênero ultrapassa as barreiras de classe e não deriva de questões financeiras.

As vestimentas e a modelagem do sujeito Tigor/Lilica e Alakazoo disponibilizam em meio virtual os modelos e valores das peças que compõem as suas coleções. Enquanto a marca Alakazoo oferece uma breve descrição da indumentária, Tigor e Lilica trazem uma descrição de suas mascotes, que levam o nome de suas respectivas marcas, expressando o “ideal masculino” e o “ideal feminino”. Foram selecionadas algumas peças referentes a cada marca citada, destinadas às duas categorias sociais, meninos e meninas, e, a partir dessas séries, será analisado o processo social de controle do corpo infantil, que distingue corpos, comportamentos e vestes, em um processo já nomeado por Foucault como “articulação corpo-objeto” (VIANNA; FINCO, 2009), isto é, entende-se que o corpo configura-se como uma materialidade que se molda a partir de toda a realidade que o cerca; constituído por múltiplas vozes sociais, ele é permanentemente inacabado, sendo, portanto, construído e destruído sem cessar segundo os imperativos de normas, padrões, expectativas e exigências que se deslocam do espaço cultural para se fixar no orgânico (ROVERI, 2004). A partir da observação dessas séries, foi constatado que as roupas voltadas para o público feminino têm desenhos delicados e tons suaves, com a predominância das cores rosa, lilás e branco (Figuras 1, 2, 3, 8 e 9). Elas são, em sua maioria, de modelagem mais justa e curta, além de trazerem decotes maiores, laços e babados. Além disso, verificou-se também a constante aparição de acessórios nas roupas femininas, como bolsas e cintos. As bolsas são, em sua maioria, de uso transversal. Já as peças que se destinam ao público masculino têm desenhos mais agressivos, com apelo ao urbano e ao esportivo, além de serem mais largas e compridas (Figuras 4, 5, 6, 7, 10 e 11). As cores são mais escuras, com grande ocorrência do azul. A presença de acessórios não é assídua; no lugar de bolsas transversais, aparecem mochilas, utilizadas nas costas. Os calçados destinados às meninas vêm em maior variedade de modelos, com a mesma paleta de cores das roupas, e são feitos com materiais mais finos e design delicado (Figura 3). Já os calçados destinados aos meninos não trazem tanta variação de formas, sendo, basicamente, tênis ou sandálias, também vindo em cores fortes, com materiais mais grosseiros e um design mais simples (Figura 7). Essas ocorrências acontecem tanto nas marcas mais caras, como na mais barata. Todos os sites das marcas analisadas também trazem imagens de crianças vestindo as peças destinadas à venda. Enquanto as meninas são fotografadas em poses que denotam calma, leveza e uma pretensa feminilidade – como a grande ocorrência de poses em que as modelos estão com as mãos na

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cintura – (Figuras 2, 8 e 9), os meninos são retratados em poses que denotam movimento, como, por exemplo, vento bagunçando os cabelos e balançando a roupa (Figuras 4, 6, 10 e 11). Cores frias e marcantes tendendo para o azul, cinza e preto, materiais mais grosseiros e recortes despojados. A forma com que se constitui a vestimenta destinada aos meninos, como vista nas observações acima, é atravessada por promessas comportamentais esperadas a um menino, o qual deve se apresentar ativo, esperto e corajoso. O contrário é visto na indumentária infantil feminina – colorida por tons pastéis, em sua maioria, rosa, lilás ou branco – ela denota passividade, delicadeza e candura esperadas a uma menina. Evidentemente, as posições em que essas crianças são retratadas nas imagens disponibilizadas pelas marcas em questão também são alvo dessa determinação dos comportamentos – feminino e masculino – esperados para cada indivíduo que se insere em uma dessas categorias. Além disso, o pequeno comprimento encontrado nas roupas para as meninas nos remete à noção de sensualização feminina, na qual a fêmea deve se mostrar de forma convidativa ao macho, que a cortejará caso ele se sinta atraído. Essa naturalização da fêmea passiva e do macho ativo pode nos levar também à espera pela heterossexualidade na criança. Os sítios virtuais em que foram coletadas as imagens das roupas infantis aqui analisadas também disponibilizam alguns comentários das marcas na tentativa de enaltecer a peça ou até mesmo reforçar a imagem dualista de suas mascotes. Como é o caso da marca Lilica/Tigor. Nela não há descrição das roupas, mas sim uma breve descrição das suas mascotes; um coala branco para a marca feminina e um tigre para a marca masculina. As mascotes associam-se à própria ideia que é imposta sobre feminino e masculino, pois enquanto o coala é um animal calmo e pacífico, o tigre é um animal agressivo. A descrição de Tigor, a mascote masculina, destaca seu gosto por esportes, sua inteligência e sua atitude. Permite-se afirmar tais características ao observar o trecho a seguir retirado da descrição: [...] Sua curiosidade e inteligência fazem com que esteja sempre por dentro de tudo o que acontece no universo dos meninos. Sabe tudo sobre computador, games e música. [...] O estilo ousado das suas roupas garante sucesso com todas as garotas e mãezonas. [...] Afinal, o que todo rapaz precisa é de liberdade para ter atitude, ser irreverente e se divertir muito, principalmente com manobras radicais na vida real ou virtual.

Já a descrição de Lilica, a mascote feminina, destaca seu charme, alegria e nos informa que a coala é romântica e “adora estar na moda”. Sua descrição também faz uma analogia ao uso de suas roupas de “estilo delicado de cores suaves e tons de rosa” com “sonhos” e “novas sensações”, assumindo um caráter mais lúdico, como pode ser visto no seguinte trecho: [...] Lilica Ripilica é uma coala charmosa, alegre e romântica, que adora estar na moda. Ao mesmo tempo em que transmite doçura, sabe ser ousada. [...] estilo delicado de cores suaves e tons de rosa, vestir Lilica Ripilica é descobrir novas sensações, despertar sonhos encantar tudo ao seu redor.

Já a marca Alakazoo, traz uma breve descrição de suas peças – as roupas destinadas às meninas são associadas às palavras “moda”, “estilo

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6 A grife Polarn O. Pyret possui um grande número de lojas na Suécia e no exterior, tendo um grande alcance de vendas entre a classe média sueca, embora os preços sejam um pouco mais altos que a média do país. h t t p : / / w w w. p o l a r n o p y re t . s e . Acesso em: 19/09/2012. h t t p : / / w w w. c h a c o m l i r i o s . c o . u k / 2 0 1 1 / 0 7 / p o l a r n - o - p y re tconfor to-e-qualidade.html. Acesso em: 19/09/2012. 7 De modo geral, as roupas infantis suecas tendem a ser muito baratas, de acordo com Somnia Carvalho, blogueira feminista que morou algum tempo na Suécia. Seu blog: http://borboletapequeninana suecia.blogspot.com. 8 Tais informações foram passadas a nós por Somnia Car valho. Post em que se refere à marca Polarn: http://borboletapequeninana suecia.blogspot.com/2011/05/nasuecia-tambem-nao-tem-bebecom.html. Acesso em: 07/12/2011. Site da marca é http://www.polarnopyret.se. Acesso em: 07/12/2011.

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romântico”, “charme”, “elegância”, denotando preocupação com a beleza da garota, como se pode ver nos excertos seguintes: “[...] Possui estampa com glitter e acompanha um broche de laço removível, que pode ser usado em diversas ocasiões. A manga no estilo princesa traduz a essência da Camiseta Malha Light Vermelha que é do estilo romântico [...]” e também: “[...] Camiseta Regata Malha Rosa, charme e elegância para as meninas que gostam de estar na moda.”. Já as descrições de roupas que se destinam aos garotos são muito mais associadas ao conforto, leveza e mobilidade. Seguem-se alguns trechos: “proporcionando conforto e leveza”, “bem ventilado e ideal para os dias mais quentes”, “ visual moderno” e “que proporciona conforto, leveza e ótimo caimento, para que os pequenos tenham mobilidade e estejam sempre à vontade”. Tanto as descrições de peças da Alakazoo quanto os mascotes de Lilica/Tigor reforçam a noção de passividade feminina - o sexo que deve se preocupar com a beleza acima de tudo - e a atitude masculina - o sexo que deve ser corajoso e preocupado com o mundo real, uma vez que deverá ser o “provedor”. Embora a visão dicotômica dos sexos esteja presente nas marcas em sua maioria, há exceções. Por exemplo, uma grife da Suécia, de nome Polarn6 – uma marca direcionada para pessoas com renda mais alta7. O site da marca não traz divisão por gênero, e sim, por idade. Há muitas opções de roupas multicoloridas, com ênfase em estampas, como listras, por exemplo. É claro que as cores rosa e azul estão presentes, mas sem a necessária definição de sexo e dificilmente há uma roupa que seja inteira rosa para menina ou inteira azul para menino. Embora a grife Polarn seja apenas um exemplo, na Suécia, como um todo, opta-se por vestir a criança com cores mais diversas e estampas de variados motivos. A preocupação com o conforto é geral, e não direcionada a apenas um sexo, pois a preferência comum do país é a malha – a própria Polarn usa esse tipo de tecido em suas criações.8 Demos aqui o exemplo da marca Polarn para desnaturalizar a categorização por gênero, comum no caso do Brasil, e demonstrar que a roupa pode ser alvo de diversos interesses ideológicos, não necessariamente a divisão binária dos sexos. No caso da Suécia, a divisão seria baseada na faixa etária. A roupa é, portanto, uma materialidade envolta em jogos de poder, tanto quanto os outros artefatos arqueológicos consagrados pelo senso comum.

Considerações finais Ao expor as particularidades encontradas nas indumentárias do Brasil e da Suécia, por exemplo, entende-se que a inserção da criança no espaço material acarreta a inclusão desse indivíduo em grupos pré-determinados pelo seu meio social. A ênfase dada pela sociedade brasileira à sexualidade da criança converge para situações como a analisada neste artigo: uma diferenciação explícita entre indivíduos que apresentam órgãos sexuais distintos; e no país escandinavo, em que apesar das relações desiguais entre os gêneros não se concretizarem nas roupas infantis, o agrupamento dos indivíduos se dá através da categorização por idades. Segundo Salerno (2007), os artifícios de categorização não configuram sistemas de autodeterminação, mas sim de imposição identitária, tornando-

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se, desse modo, estratégias de dominação dos indivíduos. A noção de prolongamento da identidade da pessoa para os limites físicos do corpo, dentre eles a vestimenta, revela o quanto as identidades individuais habitam corpos, e por esse motivo, como as relações de dominação se dão através dos mesmos. A ideologia dos discursos dominantes é responsável por construir os parâmetros categorizantes que submeterão corpos e indivíduos em um processo simplificador, e que segundo Salerno aflui para [...] A construção de estereótipos [que] corresponde à seleção de atributos que permitem caracterizar os membros de uma categoria, omitindo consciente ou inconscientemente outros. Esta simplificação reduz a possibilidade de distinguir diversidade dentro do universo definido. Em poucas palavras, a construção de estereótipos depende da possibilidade de generalizar as características de uma categoria à totalidade de seus membros – independentemente das exceções identificadas (Archenti 2006). A cultura material e as práticas corporais são empregadas na definição de estereótipos [...] (SALERNO, 2007: 5).

O vestuário infantil, desse modo, é permeado por relações de poder, que ao inserir arbitrariamente o indivíduo, ainda jovem, em rígidas categorias baseadas no fator sexual – considerando o cenário brasileiro – permite a modelação da criança segundo esses parâmetros pré-determinados. De fato significativa parcela da sociedade ocidental veste suas crianças segundo a dicotomia feminino x masculino, a qual há tempos é utilizada como ferramenta de diferenciação social. A indumentária infantil é apenas uma de muitas materialidades que o discurso político adotou para concretizar seus preceitos. Desse modo, o enquadramento sexual que se dá sob tal matéria é mais um meio para se ocorrer a categorização do indivíduo e, por fim, sua dominação.

Re f e r ê n c i a s b i b l i o g r á f i c a s Livros BAXTER, E. The Archaeology of Childhood: Children, gender and material culture. AltaMira Press: Walnut Creek, 2005. BUTLER, Judith. Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity. Londres: Routledge, 1990. __________. Cuerpos que Importan. Sobre los Límites Materiales y Discursivos de “Sexo”. Buenos Aires: Paidós, 2002. __________. Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. ENTWISTLE, Joanne. The Fashioned Body: Fashion, dress and modern social theory. Malden: Polity Press: Blackwell, 2000. SALERNO, Melisa Anabella. Arqueología de la Indumentaria: Prácticas e Identidad en los Confines del Mundo Moderno (Antártida, siglo XIX) - 1a ed. - Buenos Aires: Del Tridente, 2006.

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TURNER, B. The Body and Society: Explorations in Social Theory. Oxford: Basil Blackwell, 1985. apud. ENTWISTLE, 2000. WILSON, E. Adorned in Dreams: Fashion and Modernity. London: Virago, 1985. apud. ENTWISTLE, 2000. WOODHOUSE, A. Fantastic Women: Sex, Gender and Transvestism. London: Macmillan, 1989. apud. ENTWISTLE, 2000. ZARANKIN, Andrés. El pensamiento moderno y el pensamiento pós-moderno en arqueologia. In: RAGO, Margareth; GIMENES, Renato Aloizio de Oliveira (organizadores). Narrar o passado, repensar a história. 1ª edição. Campinas: Unicamp, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, 2000. p. 341-360. Dissertações e teses REIS, Jose Alberione dos. Não Pensa Muito que Dói: um Palimpsesto sobre Teoria na Arqueologia Brasileira. 2003. Dissertação de Doutorado, IFCH - Unicamp, Campinas, 2003. Disponível em: http://cutter.unicamp.br/document/?code=vtls000317500. Acesso em: 07/12/2011. ROVERI, F. T. A boneca mais chique é um choque: considerações acerca da educação de meninas. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação). Universidade Estadual de Campinas. Faculdade de Educação, Campinas-SP: 2004. Artigos ARCHENTI, Adriana. Imaginario y representación: Sobre algunas formas de clasificación social, 2006. In: Subsecretaría de Atención a las Adicciones. Ministerio de Salud. Gobierno de la Provincia de Buenos Aires. Opinión de Especialistas. Disponível em: http://www.sada.gba.gov.ar/especialistas_47.htm. PONTES, Heloisa. Modas e modos: uma leitura enviesada de O espírito das roupas. In: Cadernos Pagu, Campinas, nº 22, jan/jun 2004. RODRIGUES, Dânia. Seminário sobre “Pós-Processualismo: a Morte da Arqueologia?”. Lisboa: Universidade de Lisboa, 2008. Disponível em: http://trans-ferir.blogspot. com/2008/12/ps-processualismo-em-arqueologia-um.html. Acesso em: 07/12/2011 às 20:03. SALERNO, Melisa Anabella. Algo habrán hecho: la Construcción de la Categoría Subversivo y los Procesos de Remodelación de Identidades a través del Cuerpo y el Vestido (Argentina, 1976-1983). In: Revista de Arqueologia Americana, v. 24, 2007. VIANNA, Claudia; FINCO, Daniela. Meninas e meninos na educação infantil: uma questão de gênero e poder. In: Cadernos Pagu,Campinas, nº 33, jul/dez 2009. Sites das marcas de roupas referidas no artigo: http://www.lilicaripilica.com.br. Último acesso em: 07/12/2011 às 21:30. http://www.tigorttigre.com.br. Último acesso em: 07/12/2011 às 21:31. http://www.posthaus.com.br/loja/moda?acao=home&loja=17&v=1&anc=14. Último acesso em: 07/12/2011 às 21:30. http://www.posthaus.com.br/lojas/posthaus?acao=produtos&loja=59&anc=50&m arc=0&ao=0. Último acesso em: 07/12/2011 às 21:33

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ANEXO

n Coleção Lilica Ripilica

Figura 1

Figura 2

Figura 3

n Coleção Tigor T. Tigre

Figura 4

Figura 6

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Figura 5

Figura 7

n Coleções Alakazoo

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Figura 8

Figura 9

Figura 10

Figura 11

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RESENHA FABIÃO, Carlos. Uma História da Arqueologia Portuguesa: das origens à descoberta da Arte de Côa. Lisboa: CTI, 2011.

Thiago do Amaral Biazotto

E-mail: [email protected]

Graduando em História pela Unicamp. Bolsista de Iniciação Científica do CNPq.

Heróis do mar, nobre povo, Nação valente, imortal, Levantai hoje de novo O esplendor de Portugal!”

1 Trecho de “A Portuguesa”, o hino nacional de Portugal, escrito por Henrique Lopes de Mendonça em 1890.

2 Em todas as citações, doravante, optou-se por deixar o português lusitano tal encontrado na obra original.

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O interesse dos homens pelo passado sempre se fez presente na espécie humana. Seja através de fontes escritas, seja através de artefatos e resquícios materiais, o desejo de conhecer o que passou em eras remotas se constitui numa atividade ínsita ao próprio ato de pensar. Deste interesse nasceram disciplinas que se ocupam, a piori, do passado, como a História e a Arqueologia. Esta última, em particular, tem passado – nas últimas décadas – por múltiplas discussões epistemológicas, que se propõe a investigar como são concebidas e construídas as interpretações acerca da cultura material. Seguindo esta corrente teórica, o livro de Carlos Fabião - Uma História da Arqueologia Portuguesa: das origens à descoberta da Arte de Côa - revela-se uma obra de grande valor, ao promover uma revisão crítica da ciência arqueológica no Estado lusitano. Carlos Jorge Gonçalves Soares Fabião – nascido em Lisboa, licenciado em História pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e Doutor em Arqueologia pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde atualmente leciona – deixa claro seu objetivo logo nas primeiras páginas: “o presente livro trata dos modos como a indagação desse remoto passado se fez presente em Portugal” (p.10) e “podemos dizer que este livro trata de nossa identidade, ou, melhor dizendo, dos modos como ela se foi construindo ao longo dos séculos” (p.11). A partir do pressuposto teórico de que a leitura do passado está enviesada pela época em que é feita, torna-se crível admitir que o primacial alvo de Fabião é apresentar como tais leituras são feitas de acordo com interesses de ordem política, social e econômica e, de forma concomitante, despir a Arqueologia de seu manto de exotismo. Ler suas quase duzentas páginas é uma tarefa assaz agradável, graças a uma linguagem acessível, em associação a um trabalho gráfico primoroso – coroado com belíssimas ilustrações e fotos

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– que funcionam tanto como um complemento ao texto, como um deleite extra aos olhos do leitor. Divido em cinco grandes eixos temáticos – Os tempos da Sagrada Lei Escrita e dos nossos antepassados Romanos; A Antigüidade como argumento de legitimação política: a Real Academia de História Portuguesa; A Grande Revolução: o evolucionismo e a Antigüidade da terra das formas de vida e do Homem; Antiguidade das Nações e O Século XX – o livro inicia sua reflexão a partir do Mundo Antigo, em particular ao papel dado pelos gregos e romanos à identificação de vestígios do passado com realidades conhecidas através dos relatos mitológicos (p.17). Séculos depois, no Renascimento europeu, houve um resgate deste interesse, com reflexos imediatos no recém-unificado Estado português. Da exegese bíblica e da erudição da leitura de autores clássicos surgiriam as chaves para se chegar às autênticas raízes lusitanas. O dominicano Giovanni Nanni, em fins do século XV, escreve História, na qual atribuía à “colonização da Península Ibérica a Túbal – filho de Jafet e neto de Noé – que teria aportado quando baixam as águas do dilúvio (...) Túbal seria o primeiro monarca e foi sucedido por seu filho Ibero” (p.21). Na esteira de Nanni, também foram escritas História de Portugal, de Fernando Oliveira (1581) e a obra de Francisco Holanda (1571). Esta última chama atenção por considerar Lisboa “mais antiga que Roma (...) e edificada para o senhor Deus” (p. 27). Também se ocupou deste propósito André de Resende, em sua História da antigüidade da cidade de Évora, ao investigar as relações do moderno Portugal com a antiga Lusitânia romana, bem como entender os porquês do triunfo do cristianismo em terras lusas. Sendo assim, os pontos de contato entre o Mundo Antigo e o novo Estado português são, nesta época, pensados da seguinte maneira: “o legado clássico fascina, como exemplo, como factor de enobrecimento de terras e lugares e como espaço de reivindicação histórica (...) mas esse passado romano não ofusca, de modo algum, a idéia de que o Reino de Portugal teria sido um lugar onde cedo se afirmou a religião verdadeira” (p.44). Desnecessário mencionar que a “religião verdadeira” era a cristã. As formas através das quais as tradições clássica e cristã se interligavam continuou nos séculos seguintes, tendo seu fastígio na fundação da Real Academia de História Portuguesa e seu Real decreto de 14 de Agosto de 1721, que apregoava que “se conservem os monumentos antigos, que podem servir para ilustrar e testificar a verdade da mesma história (...) que pode ser muito interessantes à glória da Nação Portuguesa” (p.51). A despeito de sua aparente ineficácia, não deixa de ser basilar uma iniciativa Estatal que versava sobre a preservação – e, quiçá, interpretação – da cultura material no território lusitano. Embora catastrófico, o grande terremoto ocorrido em Lisboa no ano de 1755 acabou por reforçar os laços seculares entre as províncias lisboetas e o coração do Império, uma vez que no processo de reconstrução da cidade diversos artefatos e construções de origem romana foram descobertos, sendo o mais notável um teatro, detectado em maio de 1798 (p.66). Outro evento que deu novo fôlego à Arqueologia lusitana foi o início das escavações em Pompéia, em 1748, capitaneadas por Carlos III (1716-1788). Os trabalhos na cidade romana arrasada pelo Vesúvio em 79 d.C. revelaram um passado não apenas marcado por deuses e heróis, mas por pessoas

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comuns em suas atividades cotidianas, o que promoveu – nas palavras de Fabião – “um primeiro esboço de Arqueologia Pública” (p.82), que teve seu efeito ampliado pela escavação do templo romana na cidade de Évora, em 1845, e a fundação da Sociedade Archeólogica Lusitana. Embora de existência efêmera, tal entidade “constituiu uma singularidade no panorama arqueológico português, por se tratar de uma iniciativa nascida e alimentada pela sociedade, sem qualquer investimento estatal. Revela a atitude de uma nova sociedade liberal, burguesa e empreendedora (...)” (p.93). Neste novo Portugal, é oportuno salientar, “ninguém se preocupava em buscar as provas do cristianismo no reino” (p.91). A arqueologia portuguesa fervia. Fervia a ponto do egrégio escritor lusitano Eça de Queiroz, em seu romance A Relíquia, incluir a personagem Dr. Topsius, um germânico arqueólogo de ofício. Sua descrição é hilariante: “Um indivíduo meio lunático, descuidado no vestuário e nos comportamentos sociais, mas simpático e inofensivo” (p.84). A verdadeira revolução da Arqueologia Portuguesa, outrossim, seria consumada com a publicação de On the Origin of Species, do naturalista britânico Charles Darwin, em 1859. Se o colossal impacto da obra de Darwin atingiu ciências como Biologia e Botânica, ele não passaria incólume pela Arqueologia. A nova concepção de que “as sociedades humanas passaram a ser entendidas em sentido orgânico, sujeitas a diferentes estados de desenvolvimento que eram diretamente observáveis” (p.97-8) agenciou uma extraordinária mudança de prumo teórico no que concerne ao trato com a cultura material: “cuidar do passado e dos seus símbolos passou a ser responsabilidade social do novo Estado liberal, que a Era das Revoluções instituía por todo o continente” (p.98). Neste proscênio, a Arqueologia torna-se vedete: de reles meio para ratificar informações oriundas de fontes escritas, assume o posto de único meio para constatar a evolução humana. Surge a Comissão Geológica do Reino, em 1857, a cargo de Carlos Ribeiro Pereira da Costa e Nery Delgado. Ocorre em Lisboa, no ano de 1880, o Congrès International d’Anthropologie et d’Archeologie Pré-historiques. A península estava imersa no interesse pela ciência arqueológica. O advento do Estado-Nação e, por colorário, a invenção do nacionalismo – como se sabe – utilizou-se da Arqueologia, tanto para justificar sua existência, quanto para servir como meio de reivindicação histórica sobre determinados territórios. Antes se buscavam relações entre os povos nacionais e o Império romano. Agora se objetiva encontrar “heróis nacionais”, que traduzem uma índole inerente aos povos antigos e que, por consequência, foi herdada pelas modernas populações burguesas. Vercingetórix, na França; Boudica, na GrãBretanha e Arminius, na Alemanha. Todos respondiam a este anseio. Com Portugal não haveria de ser diferente: procura-se agora os lusitanos, povos que se situavam no extremo Ocidente da Península Ibérica antes da expansão romana. O grande arauto desta busca foi Martins Sarmento e, a partir de sua definição, os lusitanos seriam um povo que “manteve-se no Noroeste da Espanha, com a sua velha língua, os seus velhos costumes, sua velha civilização, enfim, até a conquista romana” (p.136-7). Nesta perspectiva, os portugueses descendiam – de maneira axiomática – deste povo e, por conseguinte, dispunham de uma solidez moral que os marca desde priscas eras. Sarmento, ademais, foi o fundador do Museu Ethnographico Português, que visava

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“representar a parte material da vida do povo português – isto é, tudo o que a esse respeito ethnicamente nos caracteriza” (p.162). O último capítulo, O século XX, versa a respeito da Arqueologia portuguesa no último século, em especial a partir da fundação da Universidade de Lisboa, em 1911. Assim como em grande parte da Europa, os estudos arqueológicos em Portugal, no período anterior às duas Guerras, estavam marcados por um forte traço nacionalista, como exemplificado na assertiva de Manuel Heleno: “a nacionalidade portuguesa, como agregador humano, possuidor de uma unidade moral, está definida, perfeitamente, desde os tempos da pedra polia” (p.171-2). Contudo, esta retórica reacionária caiu por terra ao término da II Guerra Mundial, tornando-se “absolutamente anacrônica” (p.172). Nesta altura do livro, o leitor pode sentir a ausência de relatos mais pormenorizados acerca das pesquisas arqueológicas realizadas durante o governo do ditador António de Oliveira Salazar (1889-1970). Em que pese esta ausência não representar decréscimo na qualidade da obra, cabe a sugestão para uma edição futura, ou uma eventual nova publicação voltada ao tema. As últimas duas décadas do século XX foram de grande importância para a arqueologia lusitana, com a criação do Instituto Português de Patrimônio Cultural, em 1980, e a promulgação da Lei de Bases de Patrimônio Cultural, em 1985 (p.179). Não obstante, o grande marco foi a descoberta do vale de Côa – em 1991 – “um enorme conjunto de gravuras rupestres, muito detalhado, em estilo paleolítico, com cerca de 20.000 anos” (p.180) e que “pelo carácter absolutamente extraordinário do conjunto, a UNESCO classificou a arte de Côa como patrimônio da Humanidade, em 1998” (p.181). O achado, e posterior tombamento, resultou em grande reconhecimento do local, que teve como consequência uma maior geração de receitas, bem como uma interação mais aguda entre as populações locais. Em suma: “o patrimônio arqueológico ocupa um espaço cada vez mais importante no quotidiano da população” (p.182). Ao escrever Uma História da Arqueologia Portuguesa: das origens à descoberta da Arte de Côa, Fabião não somente nos apresenta um belo relato acerca dos estudos da cultura material em terras lusitanas: ele mostra com a ciência em geral, e a Arqueologia em especifico, está ligada a interesses e motivações políticas, sociais e econômicas. E, se por um lado, tais interesses podem resultar em opressão e discriminação, por outro, iniciativas ligadas à preservação do Patrimônio podem representar um salutar alvitre para as populações locais. Nessa linha, o livro de Fabião não nos faz representar somente a Arqueologia Portuguesa. Faz repensar a Arqueologia como um todo.

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