Revista do GELNE, João Pessoa, v. 7 n.1/2 (2005)

July 19, 2017 | Autor: R. Gelne | Categoria: Linguistics, Lingüística, Letras
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GRUPO DE ESTUDOS LINGÜÍSTICOS DO NORDESTE





GELNE

REVISTA DO GELNE Dermeval da Hora (UFPB) Eliane Ferraz Alves (UFPB) Lucienne C. Espíndola (UFPB) Maria Elizabeth Affonso Christiano (UFPB) Marianne Bezerra Cavalcante (UFPB) (Organizadores)

Revista do Grupo de Estudos Lingüísticos do Nordeste - GELNE João Pessoa Vol. 6 ISSN 1517-7874

No. 1

2004







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Todos os direitos reservados ao GELNE









Editoração Eletrônica Magno Nicolau





Realização Grupo de Estudos Lingüísticos do Norte e Nordeste (GELNE) www.gelne.org.br

Revista do GELNE - Grupo de Estudos Lingüísticos do Nordeste - Vol. 6 - No. 1 - João Pessoa: Idéia, 2004. Semestral ISSN 1517-7874 1. Língua - Lingüística - Literatura - Periódicos I. Grupo de Estudos Lingüísticos do Nordeste Endereço para correspondência: Mailing address Grupo de Estudos Lingüísticos do Nordeste Universidade Federal da Paraíba / CCHLA Cidade Universitária 58.059-970 João Pessoa-PB Fone/Fax: (83) 3216-7280 Site: www.gelne.org.br E-mail: [email protected]

EDITORA LTDA. (83) 3222–5986 www.ideiaeditora.com.br [email protected] Foi feito o depósito legal - Impresso no Brasil

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Dermeval da Hora (UFPB) Eliane Ferraz Alves (UFPB) Lucienne C. Espíndola (UFPB) Maria Elizabeth Affonso Christiano (UFPB) Marianne Bezerra Cavalcante (UFPB) (Organizadores)

João Pessoa Idéia 2004

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REVISTA DO GELNE









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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA





COMITÊ EDITORIAL Américo Venâncio Lopes Machado Filho (UFBA) Dermeval da Hora (UFPB) – Presidente Dóris de Arruda Carneiro da Cunha (UFPE) José de Ribamar Mendes Bezerra (UFMA) Maria Elias Soares (UFC) Socorro de Fátima Pacífico Barbosa (UFPB) CONSELHO EDITORIAL Ataliba Teixeira de Castilho - USP Célia Marques Telles - UFBA Diana Luz Pessoa de Barros - USP Dino Preti - USP Ingedore Vilaça Koch - UNICAMP José Luiz Fiorim - USP Kazuê Saito de Barros - UFRN Luiz Antônio Marcuschi - UFPE Maria Aparecida Barbosa - USP Maria da Piedade de Sá - UFPE Maria do Socorro Simões - UFPA Sônia Maria van Dijck Lima - UFPB Stella Maris Bortoni-Ricardo - UNB GRUPO DE ESTUDOS LINGÜÍSTICOS DO NORDESTE Presidente Vice-Presidente Secretária Tesoureira Suplente-Secretária Suplente-Tesureira

Prof. Dr. Dermeval da Hora (UFPB) Profa. Dra. Ma. Elizabeth Affonso Christiano (UFPB) Profa. Dra. Socorro de Fátima Pacífico Vilar (UFPB) Profa. Dra. Lucienne C. Espíndola (UFPB) Prfa. Dra. Eliane Ferraz Alves (UFPB) Profa. Dra. Marianne Bezerra Cavalcante (UFPB)

CONSELHO TITULARES Prof. Dr. Antônio Luciano Pontes (UECE) Profa. Dra. Célia Marques Telles (UFBA) Profa. Dra. Maria Éster Vieira de Sousa (UFPB) Profa. Dra. Conceição de Maria de Araújo Ramos (UFMA) Prof. Dr. Luís Passeggi (UFRN) Profa. Dra. Maria Elias Soares (UFCE) CONSELHO - SUPLENTES Profa. Dra. Maria das Graças Carvalho Ribeiro (UFPB) Profa. Dra. Kasuê Saito Barros (UFPE) Profa. Dra. Márcia Manir Miguel Feitosa (UFMA) Profa. Dra. Maria do Socorro Oliveira (UFRN) Profa. Dra. Serafina Maria de S. Pondé (UFBA)

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UMA PR OPOST AÇÃO FONO PROPOST OPOSTAA DE ATU TUAÇÃO FONOAA UDIOLÓGICA JUNTO A IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS Diana Babini Lapa de Albuquerque, Nadia Pereira da Silva Gonçalves de Azevedo, Ivana Arrais de Lavor Navarro Lins

7 O DESENV OL VIMENT O DO SISTEMA DDAS AS DESENVOL OLVIMENT VIMENTO PREPOSIÇÕES NA LÍNGUA PORTUGUESA Evangelina Maria Brito de Faria

33 SEMIÓTICA E ANÁLISE LITERÁRIA: UMA INTRODUÇÃO Expedito Ferraz Júnior

47 LEV ANT AMENT O DE QQUESTÕES UESTÕES SOBRE A NOÇÃO DE PPAR AR TILHA LEVANT ANTAMENT AMENTO ARTILHA NO CAMPO DA AQUISIÇÃO DE LINGUAGEM Glória Carvalho

57 CONSTRUINDO VERSÕES DE MUNDO (Reflexões sobre a aatititividade vidade de ca te or tuguês) cate tegg orização em aulas de PPor Jan Edson Rodrigues-Leite

69 ABORD ALIST ANÇA EM TEMPO AP ARENTE: ABORDAA GEM SOCIOFUNCION SOCIOFUNCIONALIST ALISTAA DDAA MUD MUDANÇA APARENTE: ANÁLISE DE UM CASO EM FLORIANÓPOLIS (SC) Maria Alice Tavares

91 A TRANSITIVIDADE DE VERBOS DICENDI Maria Angélica Furtado da Cunha

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SUMÁRIO







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PROCEDIMENTOS DE REFORMULAÇÃO DO TEXTO ORAL Maria Cristina de Assis Pinto Fonseca

127 SUJEIT O NUL O NNAA A Q UISIÇÃO: UM PPARÂMETR ARÂMETR O EM MUD ANÇA – SUJEIT O SUJEITO NULO ARÂMETRO MUDANÇA SUJEITO PREENCHIDO NA APRENDIZAGEM: A ETERN ANÇA ETERNAA TENT TENTAATIV TIVAA DE MUD MUDANÇA Maridelma Laperuta

141 A PR OP O DO DISCURSO? PROP OPAA GAND GANDAA TURÍSTICA É UM GÊNER GÊNERO Regina Baracuhy

153 UM ESTUDO DE ASPECT OS DO LÉXICO NOS TR O VADORES DO MAR ASPECTOS TRO Rosa Virgínia Mattos e Silva

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UMA PR OPOST AÇÃO FONO PROPOST OPOSTAA DE ATU TUAÇÃO FONOAAUDIOLÓGICA JUNTO A IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS ABSTRA CT ABSTRACT CT:: The present study outlines to keep the institutionalized language of the aged people in functioning through the interaction with the others. The motivation of this research was based on the interest in studying the institutionalized language of the aged people, once that speech therapy literature just approaches the work with aged people under pathological point of view (i.e., disturbs, such as: audition, voice, motor and language), without checking, the citizens which do not present any speech therapy problem, a possibility of intervention in their language. The study of the institutionalized language of the aged people is a new subject of the speech therapy field knowledge; not because is a work that has being done in geriatric institutions, but, for being an innovative theory that emphasizes the language functioning under a non-pathological process perspective, opening, then, new horizons of work. For this reason, 20 aged people were selected from a public geriatric institution in Recife city and then, group sessions were done. These sessions were recorded for a later analysis. From their speeches, were identified some aspects, namely: relations between force and direction, anticipations, silences, childish language, among others. It is relevant to observe that the speech therapy support to the aged people is fundamental in order to guarantee a better language performance, given that during the sessions, it was in a constant movement. KEY -W ORDS: Aged people institutionalized; speech therapy; language. KEY-W -WORDS:

Introdução Esta pesquisa surgiu do interesse em estudar a linguagem de idosos institucionalizados, uma vez que a literatura fonoaudiológica contempla o trabalho com idosos sob o ponto de vista das patologias, ou seja, distúrbios auditivos, de voz, motores e de linguagem, sem conferir aos sujeitos que não apresentam quaisquer comprometimentos de ordem fonoaudiológica uma possibilidade de intervenção em sua linguagem.

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Fonoaudióloga pela Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP. Professora Adjunto da graduação e da pós-graduação de Fonoaudiologia da Universidade Católica de Pernambuco - UNICAP. *** Fonoaudióloga pela Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP

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Diana Babini Lapa de Albuquerque* Nadia Pereira da Silva Gonçalves de Azevedo** Iv ana Ar r ais de La Ivana Lavv or Na Navv ar r o Lins***









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O trabalho teve como objetivo geral manter a linguagem do idoso institucionalizado em funcionamento através da interação com o outro, a fim de proporcionar maiores possibilidades de se evitar quadros como depressão, ansiedade, demência e outras situações relacionadas à ausência de atividades de linguagem. O estudo da linguagem do idoso institucionalizado é um tema novo no campo da Fonoaudiologia, não por ser um trabalho realizado em instituições geriátricas, mas sim, por partir de uma teoria inovadora que enfatiza o processo de funcionamento da linguagem sob um olhar não patológico, abrindo, então, novos horizontes de trabalho. Esta pesquisa fundamentou-se na Análise de Discurso (AD) de linha francesa, tal como desenvolvida no Brasil por Eni Orlandi e na teoria Interacionista proposta por Lemos (1999; 2000), que considera a linguagem como constituinte do sujeito e a interação com o outro como fundante deste processo, partindo do principio que a interação “é uma condição necessária” (Lemos, 1999, p. 128), pois o outro, como meio de movimentação da língua, estabelece uma relação social, propiciando o funcionamento da linguagem do idoso constituída através dos processos de interação realizados com este. O idoso institucionalizado De acordo com Rodrigues et al. (1996), o envelhecimento é um processo universal que se refere a um fenômeno fisiológico, social e ainda cronológico. O homem em desenvolvimento durante o ciclo de vida é um ser biopsicossocial, podendo sofrer influências e influenciar o ambiente em que vive, num processo de adaptação em suas relações com o mundo. Assim, o ambiente físico, político e cultural no qual o indivíduo estiver situado, poderá facilitar ou dificultar o processo de adaptação, acelerando ou retardando o envelhecimento. Nos dias atuais, o envelhecer não é mais uma exceção, e sim, uma regra. Porém, esta é individual para cada ser humano, podendo ocorrer de diversas maneiras. Na verdade, o idoso pode e deve estar engajado no social, exercendo qualquer tipo de atividade para a qual esteja preparado e que lhe dê prazer, mas muitas vezes a situação político-social do país o impede de exercer tal atividade. Nas relações interpessoais cotidianas, observamos uma série de interesses que se definem de acordo com a nossa compreensão e/ou interesse. Construímos conceitos, julgamentos e explicações e sempre rotulamos os diferentes grupos existentes em nossa sociedade. De acordo com Dias (1998), existem diferenças importantes entre “ser

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Análise de discurso De acordo com Orlandi (2000), a Análise de Discurso (AD, como será chamado daqui por diante), como o próprio nome diz, trata do discurso propriamente dito e não da língua e/ou gramática existentes, mesmo que estas a interessem. Aqui, observa-se o indivíduo falando, buscando compreender a língua, produzindo sentidos. Assim, as palavras do nosso cotidiano chegam a nós cobertas de sentidos. Não se sabe a origem destes; sabe-se, porém, que estes significam tanto em nós quanto para nós. Ao se analisar o discurso, percebe-se que a linguagem é a ponte que une o homem a sua experiência natural e social. É através dela que há sentido das realizações humanas no tempo e no espaço. Esta união é o que torna possível a permanência, a continuidade, o deslocamento e a transformação do homem e da realidade em que ele vive. Com isso, percebe-se que não há discurso sem sujeito, nem sujeito sem linguagem, onde a língua se abriga e faz sentido. A AD considera a linguagem como algo materializado ou, melhor explicando, como algo não transparente. Desta forma, o que se procura extrair do texto não é o que a linguagem quer dizer e sim como ela significa. A linguagem existente no discurso oferece conhecimento próprio, já que possui a sua materialidade específica, demonstrando, então, a sua discursividade, sua significação. Quando se pensa no discurso, ao analisá-lo, não se vê como um processo de comunicação, no qual o emissor é separado do receptor atuando numa

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velho” e “estar na terceira idade”. Ou seja, diferentes imagens da velhice podem ser produzidas pela forma como os meios sociais tratam os idosos. “Ser velho”, na representação de Dias (1998), também se relaciona à idéia de perdas – sejam elas biológicas ou sociais. O termo traz consigo a idéia de estagnação e de inutilidade, além da falta de capacidade pessoal e isolamento social. Associa-se a uma imagem negativa desta fase de vida, vinculada a imagem estereotipada do aposentado, isto é, pessoa que não tem espaço no mercado produtivo e nem uma função social. O ser velho significa ser aquele indivíduo que se encontra no final da vida, esperando a morte. Porém, se a sociedade tem outra imagem do idoso, isto é, a sociedade o vê como um indivíduo que “está na terceira idade”, toda a situação muda. Ainda de acordo com Dias (1998), “estar na terceira idade” significa ser uma pessoa que busca constantemente modernizar-se para acompanhar as mudanças sociais.





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seqüência, existindo apenas, transmissão e informação, e sim, como algo onde se realiza ao mesmo tempo o processo de significação, existindo um complexo processo de constituição do sujeito juntamente com a produção de sentidos. A linguagem, dentro do discurso, serve para comunicar e/ou não comunicar, no qual seus efeitos são múltiplos e variados, causando efeitos de sentidos. A linguagem que existe no discurso é linguagem porque elicita efeito em quem a usa; porém, ela faz efeito porque está presente na história, no cotidiano dos seres humanos. É através da linguagem que a AD compreende como os objetos simbólicos, inseridos na linguagem, produzem efeito. Quando se analisa um discurso, o que se observa na linguagem é a sua inteligibilidade, a interpretação que se faz dela e a compreensão que ela deixa nos locutores, enfim, o efeito que a linguagem faz nos locutores. Ainda assim, o que pode fazer efeito num locutor pode não fazer em outro. Nem sempre o mesmo trecho da linguagem surte efeito em diferentes pessoas. Pode até surtir efeito, mas este será diferente. Os dizeres, quando expressados, não têm apenas mensagem a ser codificada. Têm efeitos de sentido que são produzidos de alguma maneira estando presente no discurso, na forma como se diz, na pista que se deixa. Estas pistas são possíveis de serem compreendidas, ou melhor, os sentidos existentes nestas pistas são compreendidos. Estes sentidos têm a ver com o que foi dito, o que não é dito e o que poderia ter sido dito e não foi. Pode-se dizer que os sujeitos e sentidos ficam sempre em movimentos por existir, no discurso, o eixo parafrástico e o polissêmico. O parafrástico é o que se mantém, é o dizível, é a memória. Melhor explicando, é o retorno ao mesmo. Já o polissêmico é a ruptura dos processos de significação, é o deslocamento. A paráfrase e a polissemia são o mesmo e o diferente, são o já dito e o a se dizer. Neste jogo, os sujeitos e os sentidos se movimentam, fazem seus percursos e assim, significam. Teoria interacionista proposta por Lemos Neste aspecto abordado será utilizado o arcabouço teórico da Proposta Interacionista em aquisição de linguagem, proposto por Cláudia Lemos. Mesmo este tendo como objetivo estudar a aquisição da linguagem, foi tido como intuito compreender o funcionamento peculiar da linguagem do sujeito idoso institucionalizado, apresentando, mais tarde, as análises de discurso de idosos, fundamentadas nesta teoria. Lemos (1999) relata que o processo da Curva-em-U ocorre na criança em três posições de falante: A primeira posição de falante é uma fase inicial de acertos onde a fala da criança está limitada, localizada na fala do outro.

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Método Sujeitos: Para atender aos objetivos propostos na pesquisa, foram selecionados 20 idosos que se encontravam inseridos em uma instituição geriátrica pública, na cidade do Recife. Pretendíamos, com isto, comprovar que os idosos que interagiram em grupo com o fonoaudiólogo e/ou familiares e os outros idosos recuperaram a sua atividade mais prazerosa: interação social por meio da linguagem. Vale salientar que das vinte idosas selecionadas, duas desistiram (uma deixou a instituição e a outra, negou-se a participar). É importante salientar que os nomes utilizados, referidos a cada idosa participante no estudo em questão, foram fictícios.

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A segunda posição de falante é a fase dos erros, que na verdade são grandes acertos. Aqui, a língua começa a fazer efeito na criança, pois ela está em movimento. E, por fim, a terceira posição de falante. Nela ocorre o desaparecimento dos erros, caracterizando o estado estável da língua da criança. A fala atinge a sua homogeneidade caracterizada por pausas, reformulações e auto-correções. De acordo com Lemos (2000), ainda que estas três posições se manifestem no tempo cronológico, não significa dizer que apenas quando o indivíduo é criança está submetido a esta transformação no seu desenvolvimento enquanto falante. O indivíduo idoso é igualmente submetido ao funcionamento da linguagem, pois ele, o idoso, transita tanto quanto a criança pela linguagem, ou melhor explicando, tem a sua linguagem sempre em movimento. O idoso, por sofrer algumas transformações na sua linguagem, é que necessita de uma interação maior com o mundo, com o outro, para poder ter sua posição e singularidade de sujeito-falante. O indivíduo, ao utilizar a linguagem, põe em uso processos de linguagem, permitindo, desta forma, o aparecimento tanto na sua fala quanto na fala do outro, de ações metonímicas e metafóricas. Essas ações dão origem a processos reorganizacionais, nos quais o eixo metafórico e metonímico do idoso se movimenta, trazendo como conseqüência o funcionamento lingüístico do seu discurso. Assim, gostaríamos de enfatizar a utilização do arcabouço teórico da Proposta Interacionista em aquisição de linguagem, proposto por Cláudia Lemos, com o intuito primordial de estudar e compreender o funcionamento peculiar da linguagem do sujeito idoso institucionalizado. Apresentaremos, mais tarde, as análises de discurso de idosos, fundamentadas nesta teoria.





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Seleção dos Idosos









Os idosos foram selecionados de acordo com os seguintes critérios: idade mínima de 60 anos para os idosos e a vinculação a uma instituição geriátrica, independente do sexo, sendo excluídos apenas os que apresentaram patologias relacionadas à ausência de atividades de linguagem, cuja etiologia fosse neurológica. Material • Gravador • Fitas cassete Método Análise de Discurso de linha francesa, desenvolvida no Brasil por Eni Orlandi. Procedimento Esta pesquisa foi desenvolvida com a atuação de duas estudantes de Fonoaudiologia, orientadas por uma professora/fonoaudióloga, em um período de 11 meses, em uma instituição geriátrica pública. Essa atuação foi realizada em três momentos: Primeiro momento: Interação individual com os idosos da instituição, sendo o discurso pesquisador X idoso analisado pelo pesquisador. No primeiro contato com os idosos participantes da pesquisa foi realizada uma conversa informal de acordo com o assunto abordado pelo idoso. Esta conversa teve dois objetivos: a familiarização dos idosos com a pesquisa; e um conhecimento pessoal mútuo. Estas sessões iniciais foram gravadas em fitas cassete; posteriormente transcritas e analisadas. Para a realização das análises, selecionamos fragmentos das próprias sessões, e assim, constituímos recortes discursivos, que melhor esclarecem a natureza da análise. As análises foram realizadas com base no funcionamento discursivo dos sujeitos, sendo, então, destacadas as propriedades discursivas. A partir daí, iniciamos o segundo momento. Segundo momento: partindo da análise individual, começamos a atuar com os sujeitos a partir da interação. Como forma de promover esta interação,

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O procedimento da Análise de Discurso Na primeira sessão, no qual foi estabelecido o primeiro contato, não houve temas planejados a priori, uma vez que os idosos deveriam iniciar o discurso a partir de seus próprios interesses. Esta sessão teve dois objetivos: a familiarização dos idosos com a pesquisa; e um conhecimento pessoal mútuo. As sessões foram gravadas em fitas cassete, posteriormente transcritas e analisadas. Para a realização das análises, selecionamos fragmentos das próprias sessões, e assim, constituímos recortes discursivos, que melhor esclarecem a natureza da análise. As análises foram realizadas com base no funcionamento discursivo dos sujeitos, sendo, então, destacadas as propriedades discursivas. A partir do contato inicial com as idosas, realizamos reuniões em grupo com as mesmas, a fim de analisar e dinamizar o funcionamento da linguagem destes, sendo que nestas reuniões a proposta terapêutica já estava sendo empregada.

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utilizamos atividades em grupo, através da conversa espontânea para facilitação do processo de funcionamento da linguagem. Durante a interação, estavam sendo gravados os discursos desses idosos com o restante do grupo e o investigador para posterior análise, sendo que nestas reuniões a proposta terapêutica já estava sendo empregada. Os discursos também foram gravados em fitas cassete, posteriormente transcritas e analisadas. Analisamos os discursos dos idosos e os articulamos aos conhecimentos previamente adquiridos, a fim de promover um melhor funcionamento da linguagem, através da atuação fonoaudiológica junto a esses, prevenindo o aparecimento de situações relacionadas à ausência de atividades de linguagem. A análise também foi realizada com base no funcionamento discursivo dos sujeitos, sendo, então, destacadas as propriedades discursivas. No entanto, desta vez a análise foi realizada sobre todo o discurso existente nas reuniões e não em recortes discursivos, para que o funcionamento da linguagem ficasse em evidência.





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Reunião: 1 (assunto: Família)





Investigadora A: Cada um conta alguma experiência na família, fala um pouquinho sobre sua família. Hoje eu vou começar falando um pouquinho e depois cada uma conta alguma coisa que queira sobre a família. A minha família é grande, a gente gosta de se reunir e eu acho que é bom tá em contato com a família e tudo. por outro lado também quando a família é muito próxima é como algumas de vocês disseram que conviver em conjunto, em grupo é um pouquinho difícil. Por que? Porque quando tá tudo muito junto um dá uma opinião, outro quer dar outra opinião, fica meio que se intrometendo.









F1: Eu tenho família, mas é pequena. Uns vive mais comigo e outros não. Agora, a desunião é muito pouco. A desunião que eu tenho é com uma cunhada minha, mas os sobrinhos me abraçam. Os sobrinhos vêm, tudo, tem uma irmã que mora com um sobrinho, ela tem 90 anos, ele morava com ela, ela já tava um pouco delirando, 90 anos. Aí esse sobrinho foi e levou ela prá lá. Ele queria me levar pra lá. Eu disse: não vou não. Investigadora A: Prá onde? F2: Se mudar prá Artur Lundgren. Eu nasci aqui na Várzea. Fiquei pensando, pensando, pensando, ficando em casa sozinha, já criando medo. Criando medo por causa do pessoal que tá tudo... tudo doido. Eu disse: isso aqui num dá certo. Eu sempre doente... que sou doente. É meu, um bucado de troço, mas eu não ligo não. Tô doente, me levanto... M1: Eu não tenho família. Meu marido morreu faz 28 anos. Eu resolvi vim prá cá.

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Investigadora A: Não tem irmãos?





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M2: Não tenho nada, eu digo que não tenho nada.... Sabe qual é o motivo? Porque um faz 45 anos que foi pro Paraná. Ele escreveu uns 3 meses e depois deixou. Sumiu! E o outro foi prá São Paulo. Enquanto era solteiro se comunicava com os pais, depois que casou, cabou-se. Não deu mais noticia. Ele nunca me procurou, nem quando eu tinha marido. Investigadora A: Quem mais quer falar? A... A1: eu ? não tenho nada, morreu tudo! Investigadora A: A!!! .(NOME DA IDOSA) A2: não tenho marido, não tenho pai, não tenho mãe, não tenho irmão, morreu todo mundo. Investigadora A: Não tem nem sobrinho? A3: Tenho. Investigadora A: Tá vendo, e a senhora nem ia falar deles.

A4: São como 4 filhos bons, mas não tenho mais ninguém. Tenho essas amigas aqui tudinho. Investigadora A: Olhe, já tem muita coisa. Quer coisa melhor? A5: De jeito nenhum. Investigadora A: Mas seus sobrinhos vêm muito aqui? A6: Só vem as que moram aqui. Vem toda semana e a que não mora aqui liga sempre. Eu tenho isso tudinho. Não é uma riqueza? Investigadora A: Com certeza. E disse que não tinha nada. Investigadora A: E a sua MMC?







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M.C1: Eu também não tenho família, minha filha. Minha família foi na casa que eu passei 32 anos. Considerava como se fosse minha família, mas tratava bem. Mas, foi o tempo que o patrão adoeceu, os filhos se casaram. E ele era doente nervoso aí ficou a minha patroa: ela não pode trabalhar porque ela sofreu da vista, não enxerga aí foi aquela confusão toda e ela ficou aperriada. Por mim eu não tinha vindo não porque eu gostava, não era? Já faz 2 anos que eu tô aqui. Prá mim já faz bem 10 anos. Eu não esqueço de lá nunca. Investigadora A: A senhora tá aqui há 2 anos, mas a senhora diz que parece que já faz quase 10 anos. Por que? M.C2: porque esse tempo todinho, eu sou muito agarrada com as pessoas, mas as pessoas não é comigo. A minha peca é essa. Tinha uma doente lá que era muito pegada comigo era como criança. Eu me apeguei muito com ela. E a mais nova, esse povo que se casa não quer mais saber que eu criei nem que levava prá colégio nem nada, não vieram mais. Elas podem até telefonar, né? Mas, não sei. As únicas famílias que eu conheci é essas. Uma me botou aqui, eu me aposentei lá, eu não pensei que vinha pro abrigo. Ainda passei 1 ano lá. Mas ele disse: tem que levar porque ela não enxerga mais, não trabalha mais. Ele é atacado da cabeça e é diabético, né? A família que eu conheci é essa que eu me apeguei muito, mas faz 2 anos que estou aqui. Às vezes, tem gente da família eu vejo que desaparece, não são todos, quanto mais eu que não sou, né? Mas não é tão ruim porque vem as visitas, conversa com a gente, tem uma madrinha de adoção, ela de 15 em 15

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dias vêm visitar a gente aqui. Pronto, é a visita que eu tenho, né? Alguma vez, vem uma que trabalhou comigo há muitos anos. Ela vem aqui. Essa diz que o marido tá doente, num sei o quê... eu digo: tá certo. O que é que vou fazer? A gente não vive só, né? Vive com Deus, né? Com Deus. É isso. Minha mãe legitima mesmo eu não conheci. Ela deu a gente na usina Aliança e a dona da usina repartiu para cada um uma menina. Mas, a de criação morreu. Foi para a casa de outra família. Acabei para criar outra menina. Casou-se, foi embora pras banda do Rio. Queria me levar, mas a mãe dela não quis aí eu fiquei aqui. 4Ates eu achava que aqui era o bom pastor, mas eu encontrei muita gente boa aqui. Investigadora A: Por que a senhora achava que aqui era o bom pastor? M.C3: Não sei. Porque são criminosa, pensei. Eu vou sofrer muito! Investigadora A: Mas não tá, né? M.C4: Não. Eu não conheci abrigo nenhum. Não sabia nem que existia. Investigadora A: E a senhora D. H? H1: Sobre família eu não tenho nada prá lhe dizer porque não conheço um parente que eu diga: esse parente aqui é da minha família. Agora o motivo de dizer que não conheço ninguém da família foi porque quando eu era pequena meu pai me deu a uma família muito distante do lugar onde eu morava. Os de lá da família nunca me levaram lá porque eu não sabia de onde eu vim, né? Porque era pequena ainda. Aí pronto, prá lhe dizer que não conheço um parente, eu não conheço. Me casei, não tive filho, meu esposo faleceu. Eu fiquei só ainda. Fiquei







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morando na casa uma porção de tempo, mas depois vi que não dava certo eu ficar sozinha numa casa. Aí procurei e vim pro abrigo. E graças à Deus tô muito feliz, já quase terminando a minha vida, não é? Investigadora A: Tá nada! Os seus parentes viraram as pessoas que moram aqui? H2: Justamente. Meus parentes são as pessoas que moram aqui. São pessoas muito boa que a gente considera como parente. Foi uma coisa que eu tive muita tristeza quando me entendi de gente e fiquei sabendo que não era daquela família que tava me criando. Mas o que é que eu ia fazer? O certo era os de lá, que era da família, me procurar, saber como ia, como não ia, não é? Mas, não veio ninguém. Quem me criou nunca me levou lá. Me casei, não tive filho. Meu esposo faleceu aí fiquei sozinha. Vi que não dava mais para viver sozinha aí vim pro abrigo. É o que eu tenho para lhe dizer. Tô feito aqueles 2 irmãos que se casaram sem se conhecer. Posso até conversar com algum deles sem saber que é parente. Eu não conheço, não é? Investigadora A: E a senhora D. J? J1: Construir uma família é como um prédio. Um prédio de 5 andares com um bom alicerce, uma boa formação... A família é uma coisa importantíssima, é uma beleza, é um lar mesmo. Principalmente quando se entende, quando se tem paciência e fé em Deus.

Análise F1, no seu segmento discursivo, sempre dentro do contexto, antecipa o seu discurso. Por exemplo: “...ficando em casa sozinha, já criando medo.

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Criando medo por causa do pessoal que tá tudo... tudo doido...”. Aqui, ela também silencia o seu discurso, talvez porque em suas formações imaginárias ela tenha pensado que nós não concordaríamos com sua opinião. Mas, logo em seguida ela o antecipa. Em seu segmento discursivo, M2 inicia o seu discurso com uma marca discursiva: “Não tenho nada...”. Nada é um pronome que designa ausência, nenhuma coisa, é indeterminado, pois o que é nada para uns é alguma coisa para outros. Com isso ela restringe o seu discurso, tornando-o metafórico e, assim, deixando um leque de idéias, abrindo para a polissemia. Porém, em suas formações imaginárias, provavelmente Maria imaginou que seria questionada. Desta forma, direcionou o seu discurso, retirando a polissemia que ela havia propiciado no início de seu relato. Outro aspecto importante encontrado são os segmentos de A. pois, os mesmos são metafóricos, além da presença de marcas discursivas. Tais como: “Eu não tenho nada!.... morreu todo mundo”. “Nada” relata nenhuma coisa e “todo mundo é algo indeterminado”. Quem é todo mundo? A quem ela está se referindo? Parentes, amigos? Não se sabe. Em A.3, ela relata sobre a existência de seus sobrinhos: “são como 4 filhos bons...”. Neste relato, podemos perceber a relação de forças existente quando Anna compara os sobrinhos a filhos. Há aqui, uma reversibilidade de papéis quando existe esta comparação, provavelmente por o amor de A pelos sobrinhos ser semelhante ao de um filho. A. nos seus segmentos discursivos 3 e 5, relata a existência de amigos: “... tenho essas amigas aqui tudinho”, e: “... eu tenho isso tudinho, não é uma riqueza?” Aqui, A. volta a metaforizar o seu discurso, fechando-o. Outra questão encontrada foi no segmento 2 de M.C., pois ela compara a instituição ao bom pastor: “...antes eu achava que aqui era o bom pastor, mas eu encontrei muita gente boa aqui”. O discurso da idosa sobre a instituição faz uma relação com um lugar ruim. Em suas formações imaginárias deve existir o conceito de que só quem habita uma instituição, um abrigo, são pessoas más, tristes. Porém, isto é uma relação de forças, pois, para a sociedade, a posição que uma instituição de 3ª idade ocupa é exatamente esta, um lugar habitado por pessoas abandonadas, desabrigadas. Quando ela foi questionada sobre o porquê deste pensamento, respondeu: “Não sei. Porque são criminosas. Pensei: eu vou sofrer muito!” H, no segmento 1, logo antecipa o seu discurso. Em suas formações imaginárias, previu que seria questionada sobre o porquê daquele discurso. Assim, ela logo o antecipou. Podemos encontrar no seguinte trecho de seu relato: “...Sobre família eu não tenho nada prá lhe dizer porque não conheço um parente que eu diga: esse parente aqui é da minha família.





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Agora o motivo de dizer que não conheço ninguém da família foi porque quando eu era pequena meu pai me deu a uma família muito distante do lugar onde eu morava...”. Já no segmento 2, H. utiliza a metáfora: “quando me entendi de gente”. Com isso o seu discurso abre para a polissemia, lançando um leque de idéias: quando ela cresceu? Quando ela começou a entender as coisas? Não se sabe, ficou indeterminado. J. apresenta um relato fazendo uma analogia entre a construção da família e a construção de um prédio: “Construir uma família é como um prédio. Um prédio de 5 andares com um bom alicerce, uma boa formação...”. Finalmente, podemos salientar a presença do efeito da linguagem dos idosos sob a linguagem dos próprios idosos, uma vez que através da interação, o movimento da língua esteve presente ante o discurso apresentado, proporcionando aos idosos momentos discursivos bastante interessantes. Reunião: 2 (Assunto: Mulher de hoje) Investigadora A: A gente sabe que a mulher hoje é diferente da mulher de antigamente, não é? O que vocês acham da mulher de hoje? Tá melhor desse jeito, a mulher mais evoluída ou é melhor como era antigamente que a mulher ficava em casa tomando conta de tudo? M.S1: Quem vai vencer é ela prá se formar e ser alguma coisa. Aí trabalha ela e o marido, quando casar. Hoje em dia quando o marido tá parado a mulher vai trabalhar... se for uma mãe solteira vai trabalhar prá criar o filhinho dela, como eu conheço... e tem muitas assim que tem que trabalhar prá ajudar o filhinho dela e o marido, não acha? umas faz faxina, vai cozinhar, lavar roupa, tudo prá ajudar o marido, para não estar em casa... não querem fazer nada em casa, tem uma pessoa que faz, só quer se distrair na rua, vender qualquer coisa, se distrair e ajudar o marido para não ser as custas do marido... e as outras faz isso mesmo,

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Investigadora A: E você acha importante? M.S2: Eu acho, é uma distração. Eu acho que seja. Agora a gente sendo doente não tem disposição para fazer nada. Ainda tendo a vista boa faz qualquer coisa, mas não tendo, não faz nada. Eu acho que é isso. De primeiro ninguém fazia nada, não saída de casa. ficava em casa, trabalhava em casa... M.F1: Não acho importante a mulher trabalhar. Investigadora A: Por que? M.F2: porque não tem necessidade dela estar trabalhando. Investigadora A: E a independência dela? M.F3: Eu acho que não. Se fosse mulher minha não deixava não. Tá faltando alguma coisa para a senhora? Tá não. Então fica em casa. Investigadora A: Mas, e a independência da mulher, você não acha importante a mulher trabalhar hoje em dia? M.F4: Não é bem certo não. Investigadora A: Por que? M.F 5: É feio. Eu acho feio. Investigadora A: E por que você não acha certo? Magnólia6: porque se fosse mulher minha não. Tá faltando alguma coisa prá você? Tá não. Então não vai. Investigadora A: Então você acha que as mulheres deveriam continuar a ser como as de antigamente? M.F 7: É, deveriam. O mundo seria outro... Investigadora A: Mas o mundo não está ruim por causa disso.









uma arrumação, outras vão lavar... se vira, procura qualquer coisa.







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M.F 8: Mas tá muito ruim. Não tá nunca nem a metade do que era... Investigadora A: E você acha que isso é porque as mulheres estão trabalhando?





M.F9: Justo. A mulher tá trabalhando, tá com dinheiro, quer ter a mesma força que o marido. Investigadora A: E se você precisasse de uma coisa e seu marido não lhe desse, você não ia trabalhar? M.F10: Não. Ficava com o ruimzinho. Fico com qualquer uma roupa. Eu não tô com qualquer uma roupa e tô viva. Tudo o que ela vê eu vejo... D1: Eu quero dizer uma coisa muito certa: trabalhei 8 anos na máquina costurando... Investigadora A: Mas você acha certo, hoje em dia, as mulheres saírem de casa para trabalhar, ser independente? D2: não, não, não, não. Investigadora A: O que você acha das mulheres de hoje? D3: Eu num trabalhei! Na maquina né? Prá mim e pros meus irmãos. Nunca casei, nunca tive filho. Investigadora A: Mas, qual a sua opinião sobre as mulheres de hoje em dia? Você vê falando na tv que as mulher ;e governadora, ganha mais que o marido, o que você acha disso tudo? D4: Eu acho certo ele trabalhar. Investigadora A: E a mulher? Ficar em casa?

D5: Justo.

Análise M.S relata: “Hoje em dia quando o marido tá parado a mulher vai

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Reunião: 3 (Assunto: Situações Cotidianas) Investigadora A: Quem é que assisti a novela das seis? S1: Todo mundo. Investigadora A: todo mundo sabe que tem aquela Amelinha, né? vou contar um pedacinho. ela namorava com edu e ela traia Edu com o peão da fazenda. só que ela tá grávida. agora, provavelmente ela tá grávida do peão. mas aí ela disse prá Edu que tava grávida dele prá prender ele. o que é que vocês acham disso? (silêncio) uma mulher grávida de outro homem, mas dizendo que tá grávida do outro prá poder o outro ficar com ela.

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trabalhar... umas faz faxina, vai cozinhar, lavar roupa, tudo prá ajudar o marido, para não estar em casa... só quer se distrair na rua... se distrair e ajudar o marido para não ser às custas do marido...”. há uma constante antecipação de relatos, um explicando o outro. O seu discurso apresenta uma discordância sobre a reversibilidade de papéis existente entre o homem e a mulher, quando relata: “... ajudar o marido para não ser as custas do marido...”. Vale salientar que, além de M.F, D. novamente concorda com a relação de forças existente: “...Eu acho certo ele trabalhar...”. Aqui, houve um efeito de evidência. Para D. o seu silenciamento não precisava da conclusão do dito, pois, para ela, subentendia-se o que ela estava querendo dizer. Evidentemente, o seu discurso não era transparente, pois a Investigadora A, logo em seguida, não devolveu o dito, mas tentou adivinhar o que D. silenciou. Novamente destacamos a presença da interação das idosas através do discurso. Vale salientar que a evolução da interação, e conseqüentemente um maior movimento da linguagem, desta vez, foi notório. Pôde ser percebida uma maior participação das próprias idosas no discurso sobre o assunto – Mulher de Hoje. De um modo geral, as idosas têm em seu discurso a importância do desenvolvimento do indivíduo enquanto mulher, sendo ele pessoal ou profissional. Nos seus discursos fica bem explícito o desejo delas em terem tido sua liberdade e direito de fazer o que tinham vontade. Trabalhar, sair, passear. Estas declarações podem ser encontradas nos segmentos desta reunião.









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S2: ela nem gosta dele e nem gosta do peão e nem gosta do pai e nem gosta de ninguém. Ela só gosta dela ... ela é um poço de maldade. Você viu o que ela fez com a irmã? Ela foi buscar a irmã no colégio e ela tá com raiva porque tá grávida porque por ela, ela já tinha tirado aquele menino... ela tá usando aquela gravidez pela chantagem e como a irmã tem aquelas visões ela deixou a menina na estrada prá menina vim sozinha à pé. E ameaçou a empregada, a empregada disse que ia contar tudo ao pai dela, e contou realmente aí ela disse: seu emprego tá perdido. Ela é má, é perversa. Investigadora A: Foi por isso que ela colocou as jóias, né? S3: Aí o pai chamou a empregada e disse: você roubou todas as jóias da minha filha. Quer dizer isso não acontece apenas em novela não. O povo diz que as novelas botam o povo a perder. Não, a novela não bota a perder não, a novela é uma lição de vida, é uma lição de vida. Tem muita coisa na novela que eu acho na minha... impressão, na minha não deveria passar porque as novelas só deveriam transmitir coisas boas. Assim, coisas decentes. Mas, a gente que vive num que tem muita maldade. Então aquilo que ela tá fazendo com a empregada, o mundo tá cheio. Tem muita patroa que tem raiva da empregada, quer botar a empregada prá fora sem pagar os direitos da empregada, ela arruma um jeito de dizer que a empregada é ladrona e coloca a empregada prá fora sem pagar. Aí daqui que aquela empregada vá provar que é inocente... minha filha... ela já é... já estragou a vida dela... já tá em idade... não tem

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mais condições de trabalhar... ninguém acredita porque fica desacreditada porque você não quer uma pessoa na sua casa que... você diz assim: mas ela parece ser uma criatura tão boa, mas se já tem a mau informação da patroa, que roubou, que fez e aconteceu, você fica confiando desconfiando. Quer dizer que o mundo está cheio de maldade, não é só em novela, não é só no mundo social não é em todo canto que existe maldade. Agora eu faço igual ao Padre Marcelo: “existe uma doença que não tem cura e não tem remédio: inveja”... pior doença do mundo é a inveja. Da inveja a gente não se livra. Se quem tem inveja, de quem faça maldade. Tem gente que anda com a Bíblia debaixo do braço, criticando a vida dos outros, fazendo maldade, rezando, aplaudindo, louvando, batendo palma e o subconsciente: fulano é isso, fulano é aquilo... porque eu estou careca de ver e conviver com pessoas desse tipo. Investigadora A: É verdade. Mas, essa questão de que hoje em dia, o mundo realmente. Assim, a gente vê 90% de coisas ruins e 10% de coisas boas. E o que é que tu acha H.C de tudo isso que Solange tá falando? H.C1: Minha filha, de novela eu não lhe digo nada porque eu não assisto Investigadora A: Mas, desse sentimento ruim que a gente tá vendo no mundo... H.C2: Ah, desse sentimento ruim é uma coisa triste porque... num, num quer dizer que antigamente não aparecia não aparecia umas certas coisas, aparecia, às vezes. Mas, como hoje? Hoje tá uma coisa horrível mesmo, tá muito mesmo. Mas, não pode se falar em coisas antigas porque era coisa de







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cafona, hoje tudo é moderno, tudo que aparecer certo e errado é do, é, é do tempo é, é como é que eu ia dizer?.... eu tô com uma cabeça era uma coisa seria mesmo o que a gente ouve dizer. Eu, quando começou a televisão eu assisti muita novela... mas, que novelas eu assistia? Era mamãe Dolores, O direito de nascer, Senhora de Engenho e outras...mas era uma coisa que podia se ver, mas hoje... primeiramente eu não tô entendendo nada e acho que é uma coisa horrível as novelas de hoje, não assisto mais não. Investigadora A: Mas, o que passa nas novelas de hoje é o que tá acontecendo no mundo, né? Se a gente vê na novela, a menina engravidou de um homem e disse que era de outro, ela faz essas ruindades toda com a irmã, que a gente vê. É a questão da traição, que passa naquela novela das sete... H.C3: Naquele tempo, falasse em uma coisa antiga: Ah, isso é coisa de cafona, é coisa de já era. Então leve como vocês quiserem, agora tem uma coisa... precisa-se saber que quando a gente chegar lá em cima diante do pai a gente vai dar conta dessas coisas... porque ele vai dizer a cada um de nós: Dai-me conta da tua vida. O que fizeste? Ele não sabe o que foi que a gente fez? Mas, ele pede conta... de tudo que a gente fez. Tinha um livro antigo que hoje não tem que dizia que é pecado se usar prá figuras indecorosas, repare? Quem era que antigamente falava numa coisa, falava até coisa no tempo dos escravos, mas não se ouvia dizer que a filha tinha filho do pai... e hoje o que é que se vê? É natural, né? É moderno, é o mundo prá frente. Então vá prá frente, não vire as costas não, vá prá frente (RISOS) deixe que tudo que vier tá certo, né? Tudo que vier tá certo.

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M.S1: Eu não escutei nada. Investigadora A: Olhe, a gente estava conversando da ruindade que o povo tá fazendo hoje em dia, da violência...o que é que tu acha desses sentimentos? Acha que é bom, que é ruim, que existe mesmo ou que não... M.S2: Falsidade? Existe demais. Eu brigar com você por falsidade?saber que uma mata a outra, eu vou lhe contar? Não conto. É o mundo todo que não presta.

Análise S., em S2, tem em seu discurso uma interpretação das ações e atitudes da personagem da novela, mesmo sendo o discurso opaco e as situações irreais. Existindo assim, uma posição autoritária desta em relação à personagem, pois de acordo com Solange, a personagem é uma mulher má e chantagista: “Continuando a novela: ela nem gosta dele e nem gosta do peão e nem gosta do pai e nem gosta de ninguém. Ela só gosta dela ... ela é um poço de maldade. (...) ela tá usando aquela gravidez pela chantagem...” S., em S3, utiliza em seu discurso a metáfora lição de vida, e ainda, a presença das palavras divinas como justificativa para seus pensamentos e atitudes existentes no mundo atualmente: “...o mundo está cheio de maldade, não é só em novela, não é só no mundo social não é em todo canto que existe maldade. Agora eu faço igual ao Padre Marcelo: “existe uma doença que não tem cura e não tem remédio: inveja”... pior doença do mundo é a inveja...”. No segmento H.C3, existiu a presença de metáforas como: “coisa de cafona” e “coisa de já era”. Acredito que H.C usou essas expressões pelo fato de nas suas formações imaginárias estar pré-estabelecido que estas seriam expressões conhecidas pela interlocutora e as demais idosas. Outro aspecto importante encontrado no discurso dos idosos é o efeito que gera efeito. Melhor explicando, o discurso de um gera efeito no discurso do outro, colocando, desta maneira, a linguagem em movimento, através da interação com o outro.

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Investigadora A: E você M.S, o que acha de tudo que estamos conversando?





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Por fim, o relato dos demais idosos. Neles podemos constatar uma relação de sentido, já que a interlocutora sempre teve que estar resgatando seus discursos anteriores para poder fazer com que as idosas resgatassem a idéia central da reunião e pudessem falar, opinar. Podemos citar como exemplo o trecho abaixo: Investigadora A: “E você M.S, o que acha de tudo que estamos conversando?”, M.S1: “Eu não escutei nada”, Investigadora A:: “Olhe, a gente estava conversando da ruindade que o povo tá fazendo hoje em dia, da violência...o que é que tu acha desses sentimentos? Acha que é bom, que é ruim, que existe mesmo ou que não...” e M.S2: “Falsidade? Existe demais. Eu brigar com você por falsidade?saber que uma mata a outra, eu vou lhe contar? Não conto. É o mundo todo que não presta”. No confronto dos discursos das 18 idosas participantes da pesquisa em grupo, através da Análise de Discurso (AD), procuramos destacar as semelhanças entre as propriedades discursivas existentes. Identificamos cinco propriedades discursivas, que passamos a explorar mais adiante.

Linguagem infantilizada do interlocutor As idosas, em vários momentos dos seus respectivos discursos, utilizam uma linguagem infantilizada. Talvez, para elas, a volta da utilização da linguagem infantilizada tenha algum significado maior, uma vez que as crianças têm menos cobrança, recebem mais carinho e atenção. Podemos destacar a utilização da linguagem infantilizada nos segmentos discursivos de A.L2: “...estou nas mãos de papai-do-céu...” Papai-do-céu é uma expressão utilizada por crianças numa forma mais inocente de se referir a Deus. Metaforização da posição do indivíduo senil para a própria “doença” Diante do discurso das idosas, podemos perceber a metaforização do indivíduo senil como sendo a própria doença. Talvez este atributo seja dado por elas a si próprias pelo fato de esta ser a única possibilidade de materializar o que sentem, o que desejam expressar ou até para chamarem a atenção, através dos seus discursos. No recorte individual da idosa I., a sua necessidade de falar sobre seus problemas é evidente, tanto que ela relata: “...o que não falta é doença em mim”. Através de seu discurso, ela metaforizou algo que “a incomoda” e ao qual ela sente necessidade de dar ênfase.

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A presença de Deus para a solução dos problemas ou compreensão e consolo para os mesmos é uma propriedade discursiva de muito peso para os idosos. Talvez isto se dê pelo fato de que o indivíduo quando vai ficando mais idoso, apresenta um apego mais forte à religião. Por terem sofrido momentos difíceis, criam este vinculo à imagem divina como solução para todos os problemas. É comum, quando estamos passando por situações difíceis, querermos acreditar em algo, nos apegar a alguma crença. E isto é o que podemos encontrar com bastante freqüência nos segmentos discursivos das idosas. A idosa J.P, relata: “...pedi a Deus que tomasse conta, que Deus resolvesse esse problema...”. Aqui ela enfatiza Deus como solução, aquele que irá resolver o que ela tanto deseja. Percebemos neste segmento, a devoção, o carinho, o apego que estas idosas depositam na divindade, o que é comum na fase senil das nossas vidas.

Ênfase dada à velhice As idosas também enfatizam a velhice de uma maneira negativa. Talvez por tanto escutarem da sociedade que o idoso não produz, não tem serventia, eles terminam se auto-rotulando como algo sem função, vendo-se como estorvo para a família e/ou sociedade. A idosa A. relata em A1: “E eu sei mais... com essa idade, já passei por tudo.(...) Não faço mais nada, eu num já disse, só fico preguiçando...” Aqui, ela deixa claro que não tem mais o que fazer por ser idosa, não sabe mais de nada, como ela mesmo relata.

Cobrança da presença familiar As idosas, em seus relatos, demonstram a falta da família e a vontade da presença desta em suas vidas. Talvez pelo fato da família ser a nossa base, o nosso alicerce, as idosas sintam falta. Como o indivíduo nesta fase da vida fica mais sensível à modificações, o fato da família estar ausente os deixa mais abalados emocionalmente, o que não é bom para o indivíduo como um todo. Podemos encontrar isto em diversos relatos, sendo destacado em J1: “...Aí ela disse: mas, tu vai visitar Júlia e me deixar sozinha aqui. Repara! Agora eu digo, sabe quantas vezes ele veio: nenhuma, minha filha!...”.

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Atribuição divina





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Conclusão









Esta pesquisa teve como objetivo manter a linguagem do idoso institucionalizado em funcionamento, através da interação com o outro, buscando maiores possibilidades de prevenir quadros como depressão, ansiedade, demência e outras situações relacionadas à ausência de atividades de linguagem. Este objetivo surgiu pelo fato de acreditarmos que, ao manter a linguagem do idoso institucionalizado em movimento, através da interação com o outro, podendo este outro ser o fonoaudiólogo, a família ou outro idoso, a linguagem do idoso irá evoluir, manter-se em funcionamento e, com isso, minimizar problemas relacionados a ausência de comunicação. Em nosso trabalho, pudemos constatar que a linguagem dos idosos institucionalizados, selecionados em nosso estudo, apresentou evolução, pois o movimento da linguagem foi evidenciado durante as reuniões em grupo, que foram de grande valia para a vida das idosas, pois proporcionaram momentos de descontração, interação e desenvolvimento da linguagem, posta em prática através das conversas existentes nas reuniões. É importante ressaltar que nas análises dos discursos das idosas foram encontradas cinco propriedades discursivas: linguagem infantilizada do interlocutor, metaforização da posição do indivíduo senil para a própria “doença”, atribuição divina tanto na compreensão das suas dificuldades como para a solução destas, ênfase dada à velhice e cobrança da presença familiar. Assim, considerando o que foi exposto sobre a linguagem dos idosos, concluímos que através da proposta interacionista os idosos recuperam a sua atividade mais prazerosa: a linguagem, por meio da interação social. Nesta perspectiva, a proposta interacionista de atuação fonoaudiológica junto a idosos institucionalizados é de extrema importância, não apenas para a recuperação, mas também para a manutenção da linguagem do idoso, podendo ser realizada através do contato entre o idoso e o outro, seja ele individual (fonoaudiólogo e/ ou família X idoso) ou, como no caso da nossa pesquisa, em grupo (fonoaudiólogo e/ou família X idoso X idoso).

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Referências





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Evangelina Maria Brito de Faria*









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O DESENV OL VIMENT O DO SISTEMA DDAS AS DESENVOL OLVIMENT VIMENTO PREPOSIÇÕES NA LÍNGUA PORTUGUESA ABSTRA CT ABSTRACT CT:: The increasing evolution and deepening of linguistic studies have led several issues approached by traditional grammar to be reviewed as they have been presented in an inappropriate manner regarding the new theories proposed by the language science. Among the several issues which deserve a major focus by language experts are, undoubtedly, linking words- Conjunctions and Prepositions- and mainly the latter, constitute the main aspect of a field of study which requires a new look. It is very easy to realize that, on the whole, grammarians have devoted a special attention to nouns, verbs and pronouns. It is worth pointing out the priority given in grammars, for example, to gender and number infections of the nouns and adjectives, the description involving the degree of nouns, adjectives and adverbs, the inflections of verb forms in relation to the categories of tense, mood, number, voice and aspect, concerning either the general or the special pattern. This emphasis is not limited to the morphological aspect, it also includes the syntactic aspects of concord, complements and collocation. However, regarding the study of propositions, most grammars display nothing but a mere list. Prepositions play a relevant role in language. Besides being linking elements, their high frequency in discourses, and above all, the multiple meanings they have statements, can be pointed out as a phenomenon that values their study. Examine the following sentences: “He acted with affection” and “He acted without affection”. The mere change in proposition fully modified the relation the terms acted and affection. Such relations that have received secondary attention by grammarians have recently been highlighted in the approaches of modern linguist. This article, which is part of a comprehensive research, seeks to reconstruct, considering its profit and loss, the development that these elements have undergone in the Portuguese language, starting form the Latin language to nowadays. KEY -W ORDS: Preposition; development. KEY-W -WORDS:

1 Origem. O sistema latino das preposições O sistema de preposição existente hoje no português, ao menos em suas linhas gerais, proveio do sistema latino. Como língua eminentemente flexional, o latim apresenta uma estrutura sintética. A subordinação, nesse idioma, era realizada através de seis casos: nominativo, genitivo, dativo, acusativo, ablativo e vocativo. “Casos são formas distintas que podem apresentar em muitas línguas um nome ou pronome segundo * Universidade Federal da Paraíba.







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a função sintática” (CÂMARA, 1983, p. 69). Em outros termos, são as terminações que indicam as funções que as palavras desempenham na frase. E isto faz com que uma língua seja sintética. Havia, paralelamente aos casos, um sistema de preposições com idêntica finalidade: subordinar um termo a outro. O professor Mattoso Câmara (1979, p.75) pronuncia-se a respeito do assunto da seguinte maneira: “O latim já possuía um princípio desse sistema, a fim de subordinar certos complementos ao verbo respectivo. O nome complemento vinha no caso acusativo ou ablativo, já indicadores da subordinação ao verbo, mas a partícula adverbial que se antepunha e, por isso se chamava preposição na terminologia gramatical, insistia no elo subordinativo e delimitava melhor as condições de dependência.”

Por serem em maior número, as preposições, muitas vezes, sobrepunhamse aos casos, exprimindo com maior sutileza as diversas relações existentes entre as palavras. Vejamos como se expressa o professor Ernesto Carneiro Ribeiro (1965, p. 463) sobre a importância da preposição sobre os casos: “No latim, como em algumas outras línguas, a maior parte das relações que as preposições criam são realizadas através de casos. Estes, porém, com o número limitado das mudanças flexionais, não conseguem exprimir a imensa variedade das relações existentes. Por isso, mesmo nessas línguas, existem as preposições para expressar de um modo mais completo todas essas relações.”

Assim, havia no causativo e o ablativo uma partícula que reforçava no elo subordinativo, ao mesmo tempo em que explicitava melhores condições de dependência. Pode-se perceber que, tanto no latim, como acontece hoje no português, a preposição se caracteriza por desempenhar duas funções: a de subordinação, estabelecendo uma dependência, e a de fazer surgir entre os termos que une uma relação semântica. Segundo Ravizza (1958, p. 174), o sistema latino das preposições era formado da seguinte maneira: “ – Preposições que regem o causativo: Ad (a, para) indica movimento em direção a, aproximação. Ex.: Ad castra venire. (Vir ou chegar ao acampamento) Ante (diante de, perante, antes de) com relação a tempo e lugar.

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Ex.: Ante oppidum (diante da cidade) Ante eius mortis diem (antes do dia da morte dele)





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Post (após, depois de) com relação a tempo e lugar. Ex.: Post meridiem (depois do meio-dia) Post templum (depois do tempo) Apud (em, junto a, perto de, em casa de, entre, segundo) Ex.: Incredibilis apud Cannas pugna (a formidável batalha de Canas) Apude Paulum (em São Paulo) Apud germanos (entre os germanos) Ob (por causa de) Ex.: Ob iram (de raiva) Per (por, através de, por meio de, durante) Ex.: Per silvam ambulare (passar pela floresta) Per multos annos (durante muitos anos) Juxta (ao pé de) Ex.: Juxta aram iurare (jurar ao pé do altar) Penes (em posse de, em poder de) Ex.: Penes milites (em poder dos soldados) Prope (perto de, ao pé de, junto a) Ex.: Prope castra (perto do acampamento) Propter (por causa de) Ex.: Propter eam causam (por essa razão) Adversus (em direção a, contra, para com) Ex.: Impetum adversus montem faciunt (atacam monte acima) Contra (em oposição a, contra, em frente de) Ex.: Contra hostes dimicare (lutar contra os inimigos) Contra templum (diante do templo) Erga (para com, em favor de) Ex.: Pietas erga victos (piedade para os vencidos) Secundum (ao longo de, depois de, conforme, consoante) Ex.: Secundum flumen (ao longo do rio) Secundum ludos (depois dos jogos) Secundum naturam (conforme a natureza)







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Praeter (além de, exceto) Ex.: Praeter spem (além da esperança) Nemo praeter mercatores Britanniam adit. (ninguém além dos mercadores chega à Bretanha) Circum (ao redor de) Ex.: Templa circum fora erant (Os templos ficavam ao redor das praias) Circiter (cerca de) ordinariamente usado como advérbio, significando ’em todos os sentidos ‘ , ‘ em todas as dimensões ‘ ; usa-se como preposição nos conceitos de tempo (aproximadamente). Ex.: Circiter meridiem (cerca de meio-dia) Inter (entre, no meio-dia) Ex.: Mons Iura est inter sequanos et helvetios (o monte Jura fica entre os séquanos e os helvécios) Intra (dentro de, para dentro de interior) Ex.: Intra moenia esse (estar dentro dos muros) Deus creavit coelum et terram intra sex dies. (Deus criou o céu e a terra dentro de seis dias.) Extra (fora de, contra) Ex.: Extra portam esse (estar da porta para fora) Extra ordinem (fora de ordem) Infra (abaixo de) Ex.: Infra lunam (abaixo da lua) Supra (acima de) Ex.: Supra deos (acima dos deuses) Cis (aquém de) Ex.: Cis Alpes (aquém dos Alpes) Trans (além de) Ex.: Trans Alpes (além dos Alpes) Ultra (além de) Ex.: Ultra modum (além do necessário) - Preposições que regem o ablativo A (ab, abs) (de, por) a, antes de consoantes; ab, antes de vogal ou h;

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Ex.: A patre tuo (por teu pai) Ab origine (desde o princípio) Peto abs(a) te (peço-te) E, Ex (de) lugar donde, origem, movimento para fora, matéria, partitivo) Ex.: Ex urbe proficisci (partir da cidade) Statua ex aere facta (estátua feita de bronze) Unus ex multis (um dentre muitos) De (de) proveniência, movimento de cima para baixo, a respeito de Ex.: De muro dejicere aliquem (derrubar alguém do muro) De aliqua re dicere (falar a respeito de alguma coisa) Cum (Com) ajuntamento, companhia, modo Ex.: Cum amico laborare (trabalhar com o amigo) Cum cura scribere (escrever com cuidado) Sine (sem) Privação Ex: Sine amicis vivere (viver sem amigos) Sine spe (sem esperança) Pro (por) mais empregado com o sentido de “diante de’, “em favor de”, “em função de”. Ex: Legiones pro castris constituere (dispor as legiões diante do acampa mento) Oratio pro rege (discurso em favor do rei) Prae (diante de) para lugar, por causa de, em relação a Ex.: Prae se armentum agere (tanger o rebanho diante de si) Prae coeteris beatus (feliz diante dos outros) Coram (em presença de) Ex.: Coram populo romano ( em presença dos romanos) Tenus (até) proposto ao substantivo Ex.: Colo tenus (até ao pescoço) Palam (diante de) Ex.: Palam populo (diante do povo)

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Abs, quase exclusivamente antes de “te”. Indica origem, afastamento, agente e com complemento pessoa do verbo petere (pedir)





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- Preposições de duplo caso, com valor diferenciado para cada um dos casos.





In - usado com acusativo, indica “para”, “em direção a” , sempre traduzindo uma situação dinâmica no sentido de aproximação. Ex.: In urbem ire (ir para a cidade) In Brasiliam proficisci (viajar para o Brasil) Amor in patriam (o amor para com a pátria) Severus in filiun (severo para com o filho) In - usado com ablativo significa “em” com relação a tempo e lugar. Ex.: In flumine pontem facere (construir a ponte sobre o rio) In litore et in monte (no litoral e na montanha) Semel in anno (uma vez por ano) O “In” usado com ablativo traduz uma situação estática. Sub - empregado com acusativo, significa sob, debaixo de, porém dando uma idéia dinâmica. Ex.: Sub iugum mittere (submeter à escravidão) Sub vesperum (pela tarde) Sub lucem ( pela manhã) Sub - usado com ablativo tem o mesmo significado, indicando, porém uma idéia estática. Ex.: Sub monte esse (estar ao pé do monte) Sub media nocte (à meia-noite) Super - usado com acusativo significa “para além”. Ex.: Super Numidiam (para além da Numídia) Super - empregado com ablativo externa o significado de “sobre”. Ex.: Ensis super cervice pendet (a espada pende sobre a cabeça) - As preposições que se seguem são usadas com um e outro caso, sem, no entanto, haver distinção de sentido. Subter (debaixo de) usado geralmente com acusativo. Ex.: Subter montes (debaixo dos montes) Clam (às escondidas de) mais freqüentemente usado como advérbio - às escondidas surge como preposição na língua jurídica e mais comumente com o acusativo.

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Ex.: Clam uxorem (às escondidas da esposa) Clam dominum (às escondidas do patrão).”





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Embora se fale aqui, em relação ao latim, em um sistema de preposição, tal sistema não chegou a ser esboçado nas gramáticas latinas. O que aparece é apenas um elemento ou catálogo de formas denominadas preposições que não vão além de uma divisão em dois grupos: um para uso do acusativo e outro para uso do ablativo. 1.2

Fragmentação do sistema a partir do latim vulgar

No período nobre, o latim ainda se apresentava como uma língua flexional. A norma do latim clássico procurou fixar esse sistema. Muito cedo, porém, as desinências casuais começaram a desaparecer nos usos vulgares e até na língua escrita. Com a difusão do idioma por outras províncias do império, era natural que ocorressem transformações. Os estudos comprovam que essas alterações aconteceram em todos os níveis da língua. Em relação às preposições, estas atraíram para si uma sobrecarga maior no campo da sintaxe, pois foram largamente ampliadas em sua função e significação. Modificado em sua estrutura original, o sistema de preposições do latim erudito não teve uma evolução homogênea em todas as regiões da România. As alterações a que esteve sujeito apresentam características diversificadas de acordo com as tendências de cada uma das regiões. Aqui, particularmente, são de interesse de estudo, os fenômenos que constituíram maior freqüência na Península Ibérica. As transformações, que começam a ocorrer no sistema latino das preposições, já podem ser percebidas no próprio latim clássico no período da decadência, pois algumas preposições passam a ser usadas em detrimento de outras. O filólogo Grandgent (1990, p. 76) evidenciou esse fato da seguinte maneira: “Ab, segundo parece, não teve continuidade nas línguas românicas, tendo sido substituída por “de”, que também ocupou (desde o século III) o lugar de “ex”: ‘de palato exit’ , ‘egredere de ecclesia’ [ . . . ] Ad por apud aparece em Plauto, Terêncio e outros: ‘ad ipsum fontem fact est oratio’ , ‘ad nos’ [ . . . ] Apud é usado no lugar de cum por Sulpício Severo e mais freqüentemente por escritores da fase da decadência [ . . . ] Super, às vezes, substitui de: ‘super anima comendatus’.”







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Ao lado dessa alteração, ocorre, simultaneamente, uma outra de igual importância. A queda gradual de alguns casos, como o genitivo, dativo, ablativo enseja o fortalecimento do acusativo que surge, neste momento, ricamente assessorado das mais diversas preposições e, não só daquelas que se usavam com o acusativo, mas também das que se destinavam ao uso do ablativo. Assim, enquanto no latim erudito dizia-se: domus magistri (a casa do professor) librum discipulo dedi (dei um livro ao aluno) puella cum matre ambulat (a criança passeia com a mãe) na linguagem coloquial ou no latim da decadência via-se: domus de magistru (m) libru (m) ad discipulu (m) dedi puella cum matre (m) ambulat.

Silva Dias (1959, p. 108) se expressa a respeito disso, com essas palavras: “No próprio latim preromânico, o emprego do dativo ou ad é, às vezes, indiferente (litteras mittere alicui ou ad aliquem). Nos Cômicos e de T. Lívio em diante, ocorre ad, em lugar do dativo da prosa clássica, por exemplo, em Plauto: utinam meus nunc mortus [ = mortuus] pater ad me muntietur; aequiperare suas virtutis [ = virtutes ] ad meas; em T. Lívio: ad spem eventus respondit; a par de: ut prodigio responderet eventus [ . . . ]”

Eduardo Carlos Pereira, em sua Gramática Histórica (1916, p. 182) comenta deste modo, esse assunto: “O dativo de atribuição do latim clássico passou a ser, muitas vezes, expresso pelo acusativo regido de ad. A vulgata nos oferece deste fato larga cópia de exemplos: dixit Thomas ad condiscipulos; dicebat ergo ad eos”. Uma outra característica de mudança desse período é a utilização da preposição para subordinar um nome substantivo a outro. No latim, a subordinação nominal era realizada através da desinência do genitivo. Com o tempo, os diferentes tipos que esse caso exprimia na língua latina foram sendo substituídos pela preposição de: “possessor propriae terrae – possessor de própria terra” (CARDOSO, 1978, p. 91). Naturalmente, essa tendência fixou-se em português. Observem os exemplos:

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amor de mãe amor da pátria casa do rei cidade de Roma virtude da abstinência homem de grande talento vala de quinze pés menino de dez anos grande parte dos homens

Assim, gradativamente, os casos foram desaparecendo. O dativo que se conservou excepcionalmente nos pronomes pessoais e no pronome reflexivo, nas situações restantes, foi substituído pelas preposições a e para; o ablativo, pelas preposições de, em, com e por e o genitivo, em geral, pela preposição de. Várias são as causas que concorreram para a sobrevivência das preposições em prejuízo dos casos. Primeiro, pode-se lembrar o aspecto semântico. As preposições evidenciam-se pelo seu conteúdo semântico, o que pode ser facilmente verificado, quando as comparamos com os advérbios – chegou antes, chegou antes da hora; falou perto de mim – enquanto que a desinência casual constitui um elemento semanticamente vazio, isto é, sua significação é meramente gramatical. Segundo, tome-se igualmente em consideração, o aspecto da economia. Como a preposição era usada em redundância com os casos, quase sempre a preposição absorvia a desinência em parte ou por completo, tornando, assim, algumas vezes, desnecessário, supérfluo, o uso das flexões. Se com a presença dos casos, o uso das preposições já era, de certa forma, necessário para o sistema da língua, com o desaparecimento das flexões casuais, tal uso tornou-se muito mais solicitado e muito mais complexo, o que resultou em sobrecarga no emprego e na função das preposições. A partir desses dados, é possível concluir que houve uma descaracterização no sistema latino das preposições. Essa descaracterização teve início, ainda que de forma não muito acentuada, no latim clássico da fase da decadência, o que se pode deduzir pelas citações feitas com relação a Plauto e a Terêncio. Tal descaracterização acentuou-se fortemente no latim vulgar no período da romanização. 1.3

Organização do sistema das preposições em português

Embora se tenha como inquestionável que o sistema das preposições em português proveio do sistema de preposições do latim, uma visão geral do nosso



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- amor matris - amor patriae - domus Regis - urbs Ramae - virtus abstinentiae - homo magni ingenii - fossa quindecim pedum - puer decem annorum - magna pars hominum



genitivo subjetivo genitivo objetivo genitivo possessivo genitivo apositivo genitivo especificativo genitivo de qualidade genitivo de qualidade genitivo de idade genitivo partitivo









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quadro de preposições permite, de imediato, perceber que o aproveitamento com relação ao latim foi apenas parcial. É de se crer que os ganhos se sobreponham às perdas, mas, mesmo considerados os ganhos, muitas alterações se processaram na mudança de uma para outra língua. Se de uma parte houve perdas totais, de outra se verificou, com freqüência, alteração de funções; isto sem contar com os casos em que a preposição teve funções acumuladas, além de alguns poucos casos de novas criações românicas. Em resumo, com relação à passagem do latim ao português, como ocorrências mais evidentes, podem-se registrar as seguintes: -

formas que não subsistiram formas que acumulam funções formas que se firmaram como preposições criações românicas.

É sabido que um pequeno número de preposições latinas passaram para o português. Algumas formas não resistiram à evolução e perderam-se no tempo, dentre estas, vale a pena nomear: prope, erga, ciciter, coram e palam. Outras subsistiram na língua portuguesa sob a forma de prefixo. Para suprir tal deficiência, o sistema da língua lançou mão de vários recursos, um naturalmente, foi a redistribuição de função, ou seja, algumas partículas passaram a ter um uso mais acentuado, o que acarretou um acúmulo de funções. Nesse sentido, deve-se destacar a preposição de. No latim, essa preposição limitava-se a exprimir “origem”, “movimento de cima para baixo” – descendit de coelis – e “assunto” – de Brasília reperta – (descobrimento do Brasil). Ao seu lado, havia ab, que significava “afastamento no sentido horizontal” e ex com a noção de “movimento de dentro para fora”. No dia-adia, o critério muito rígido entre as noções horizontais e verticais foram diminuindo até fazer com que o uso da preposição de se confundisse com o de ab, o que resultou, naturalmente, no desaparecimento dessa última. Da mesma forma, a idéia de origem acabou por suplantar a significação de “movimento de dentro para fora”, fazendo com que, aos poucos, a preposição ex deixasse de ter continuidade. Assim, de, além de sua própria função que continuou a desempenhar, passou a exercer os papéis característicos que cabiam às preposições ex e ab e ainda acumulou a idéia de posse que está na base da relação nominal. Matosso Câmara (1979, p. 178) registra os seguintes exemplos:

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Outros exemplos de preposições que tiveram seus campos de atuação ampliados foram ad e pro. A preposição ad era limitada por in quando se indicava uma noção de “movimento com entrada”: “Ire in silvan”. Em português tem-se: “Ir à floresta”, em que ad > a substituiu in. O modelo anterior, no entanto, mantém-se, fortemente, na linguagem coloquial – ir na floresta. Com relação à segunda preposição, no idioma latino, a idéia de percurso era expressa através de per > per e a noção de posição dianteira era indicada por pro > por. Com o tempo, por assumiu completamente a função de per. A respeito desse assunto, vale salientar que é perfeitamente possível identificar na língua portuguesa o por que proveio de per com o sentido de “através de”, “por meio de”, “por intermédio de” e o próprio sentido de “causa” ou “agente da passiva” como pode ser verificado nestes exemplos: “passe pela minha casa”, “mandei pelo correio”, “perdeu por não saber jogar”, “foi ajudado por mim”, “fiz tudo por você”, “o que não se faz por um amigo”. Diante disso, é perfeitamente concebível a existência, no português, de uma homonímia com relação à preposição por, uma advinda de per e outra de pro. Como foi visto, algumas formas desapareceram de nossa língua, outras partículas, no entanto, firmaram-se como preposições ainda que sujeitas à evolução fonética: ad, ante, contra, cum, de, in, inter, per, pro, sub, super, post, sine e trans. Constituindo um grupo um pouco diversificado, encontram-se as formas compostas. Observe-se o relato do filólogo Grandgent (1990, p. 61) “Alguns compostos adverbiais e outros de índole semelhante eram empregados no latim vulgar como preposições: ab ante, de inter, de intrus, de retro, in ante, in ante, in contra. Existiam ainda alguns compostos formados por preposição e nome: in giro, in medic, per girum, per giro e outros constituídos por duas preposições: de ab, de post, de sub, de super.”

Através desses compostos, pode-se chegar a duas conclusões: a primeira, que já, no latim vulgar havia um estreito relacionamento entre preposições e advérbios. Basta lembrar que, além de os compostos adverbiais serem usados como preposição, vários advérbios resultam da aglutinação de preposições: ad + trans > atrás, de + post > depois, de + intro > dentro, de + in + ante > diante, de + trans > detrás; a segunda, que a combinação de preposição é um recurso que teve início ainda no latim vulgar e seu uso na língua portuguesa, estende-se



atirar-se da muralha retirar-se do templo vir de Éfeso livro de Pedro



– – – –



Se deiicere de muro A fano tollere Ex Epheso advenire Líber Petri









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até nossos dias. Sirvam de exemplos: de entre, de sobre, por entre, por sobre, de sob, por sob. Em conseqüência do uso de formas compostas, surgiu, mais tarde, um grupo constituído em romanço pela aglutinação de preposições latinas: per + ad < para ad + post < após ad + tenus < até de + ex + de < desde per + ante < perante (combinação) Forma-se, assim, o quadro restrito das preposições portuguesas. São elas: a < ad ante < ante após < a + pos ad + post até < ad + tenus contra < contra com < cum de < de desde < de + ex + de em < in entre < arc. antre, ontre intre para < per + ad per + per perante per + ante por < pro sem < sine sob < so sub sobre < supre super trás < trans

inter

A essas chamadas essenciais juntaram-se palavras de outras classes, que eventualmente são empregadas como preposição, entre outras, destacamse: conforme consoante { derivadas de adjetivos segundo

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{ derivadas de verbos

É necessário lembrar que estas duas últimas são consideradas hoje denotativos de exclusão. A transformação de particípios em formas invariáveis, que passam a funcionar como preposições, tem sua origem no latim vulgar, acentuando-se, consideravelmente, nas línguas românicas, conforme comenta Maurer (1962, p. 164): “Alem das preposições vindas do latim vulgar, as línguas românicas – sempre do Ocidente – criaram mais tarde certo número de preposições pela cristalização de particípios usados em expressões absolutas [ . . . ] O particípio, quando passado, acaba por tornar-se invariável na expressão, esvaziando-se do seu valor de particípio absoluto. A tendência para reduzir tais particípios a formas petrificadas nota-se já em latim [ . . . ] Durante a Idade Média, observa-se a mesma tendência nas línguas românicas. Assim encontramos em textos portugueses antigos: ‘e todollos domyngos tirado os da quaresma’, ‘passado alguns dias [ . . . ] Stolz-Schmalz notam que mediante e exceto se tornaram invariáveis no latim da decadência’. Outros surgiram na Idade Média.”

Junto ao quadro das essenciais e das acidentais, desenvolveu-se uma série aberta de locuções prepositivas, que enriqueceram enormemente o sistema das preposições em português. Das quais são exemplos: atrás de, diante de, por baixo de, por cima de, em conseqüência de, por causa de. Em muitas estruturas, essas locuções substituem as preposições simples, externando, às vezes, com maior exatidão, as mais sutis e variadas relações existentes entre as palavras. Pelo exposto, pode-se perceber que a descaracterização, que ocorreu no sistema latino das preposições, atingiu o sistema de preposições portuguesas tanto no plano mórfico como no funcional. Em suma, ficou evidente que do acervo das preposições existentes hoje no português, a maioria proveio do latim ainda já foneticamente modificada pelo latim vulgar; outras tantas surgem como contribuição do romanço; por último, temos ainda algumas criadas no próprio português. Quanto às perdas, se é verdade que na transição latim/português chegou a se verificar algum tipo de redução, por outro lado é inegável que tais reduções foram compensadas tanto pela criação de novas formas como pela redistribuição de funções atribuídas às preposições remanescentes.



mediante durante exceto salvo









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O sintetismo do latim foi-se aos poucos debilitando, de forma que as línguas novas que iam surgindo tinham desenhado em seus semblantes uma marca exatamente oposta à da língua de origem, esta marca era acentuadamente analitista. A debilitação das desinências casuais, associada ao não aproveitamento de algumas formas resultou em que as preposições que permaneceram ficassem sobrecarregadas, razão pela qual vieram sofrer sensível redistribuição de funções.

Referências CÂMARA JÚNIOR, Joaquim Mattoso (1983). Estrutura da língua portuguesa. 13 ed. Petrópolis: Vozes, 1983. ______. História e estrutura da língua portuguesa. 3 ed. Rio de janeiro: Padrão, 1979. CARDOSO Wilton e CUNHA Celso. Estilística e gramática histórica. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978. GRANDGENT, C. H (1992) Introducion al latin vulgar. 2 ed. Madri: Instituto Miguel de Cervantes, 1992. MAURER JÚNIOR, Theodoro. O problema do latim vulgar. Rio de Janeiro: Acadêmica, 1962. PEREIRA, Eduardo Carlos. Gramática histórica. São Paulo: Weiszflog Irmãos, 1916. RAVIZZA João. Gramática latina. 40 ed. Niterói: Dom Bosco, 1958. RIBEIRO, Ernesto Carneiro. Serões gramaticais. 6 ed. Salvador: Progresso, 1965. SILVA DIAS, Augusto E. Syntaxe histórica portuguesa. Rio de Janeiro: Acadêmica, 1959.

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Expedito FFer er r az Júnior*





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SEMIÓTICA E ANÁLISE LITERÁRIA: UMA INTRODUÇÃO ABSTRA CT ABSTRACT CT:: This work aims to contribute to a primary reflexion on the applicability of Semiotics Theory to literary text reading and interpretation. Using Charles Peirce’s notion of hypoicon, and by making brief comments on a popular sound lyrics, we want to demonstrate the pertinency of such theoretical tool to the analysis of poetry. KEY -W ORDS: Semiotics; hypoicon; literary text. KEY-W -WORDS:

Introdução Definida como ciência geral dos signos, a Semiótica peirceana tem por objeto os processos de significação que constituem a linguagem, não se ocupando, a princípio, com a obra de arte literária, de modo específico. Decorre daí que essa teoria não oferece, aos que se dedicam ao estudo do texto poético ou de ficção, um modelo de análise voltado para suas características particulares. Trata-se antes, nas palavras de Pignatari (1979, p.9), de “uma ciência que ajuda a ler o mundo”– aí incluído, obviamente, o mundo das palavras, entre outros signos –, mas tal leitura não possui uma gramática ou um método, no sentido tradicional destes termos. A passagem dessa visão teórica geral para a prática da abordagem semiótica da literatura nem sempre se dá sem dificuldades. Mesmo a existência, entre nós, de autores que têm realizado brilhantemente essa aplicação, não significa que a trilha por eles aberta possa ser seguida sem percalços. A maioria dos seus achados interpretativos, embora fundada numa mesma concepção de linguagem, dificilmente funcionaria como fórmula a ser transposta para a leitura de outros textos, pois se refere a processos existentes apenas nos contextos em que foram identificados. Sobre essa característica da leitura semiótica, assim se posiciona uma pioneira de sua divulgação em nosso meio, Santaella (1996, p.60):

UNIR - Rondônia







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A semiótica peirceana ou a ciência dos signos ao mesmo tempo que nos fornece um complexo dispositivo de indagação das possibilidades de realização e classificação dos signos num corpo teórico sistematizado, também exige de nós uma atividade de descoberta, quando pretendemos aplicar esse corpo teórico a sistemas concretos de signos. Aliás, não é hoje novidade para ninguém o fato de que uma ciência não se define como corpo de dogmas cristalizados, nem como receituário metodológico aplicável a qualquer objeto. A relação teoria / aplicação prática não se processa, portanto, como mera reiteração ritualística de fórmulas sagradas, visto que, ao se defrontar com seu objeto na atividade metodológica de sua aplicação prática, a teoria pode sofrer retificação de seus conceitos. A questão da aplicação é pois indagação dupla: a teoria desvendando seu objeto e o objeto testando os conceitos que o falam.

Nada é mais apropriado à natureza da linguagem literária do que um antimétodo – isto é, um aparato teórico que fundamenta as análises de textos sem, no entanto, uniformizá-las – uma vez que a literatura se caracteriza justamente pela transgressão de códigos, pela invenção constante de formas, repelindo os esquemas fechados, prescritivos. E isto nada tem a ver com subjetivismo ou falta de rigor científico: as bases conceituais da teoria peirceana são, ao contrário, bastante objetivas, além de possuírem uma finalidade precisa, como explica Pignatari (1979, p.12): Mas afinal, para que serve a Semiótica? Serve para estabelecer as ligações entre um código e outro código, entre uma linguagem e outra linguagem. Serve para ler o mundo não-verbal: “ler” um quadro, “ler” uma dança, “ler” um filme – e para ensinar a ler o mundo verbal em ligação com o mundo icônico ou nãoverbal.

De fato, as reflexões de Peirce (1990, p.64) a respeito da linguagem aplicam-se, indefinidamente, aos contextos literários e aos não-literários. Mas é aí que está a novidade: munido dessa visão ampla, e atento à interação do icônico e do verbal, o semioticista focalizará o texto de uma perspectiva capaz de apreender os diálogos que se estabelecem entre as diversas formas artísticas: a literatura, o cinema, a música, as artes plásticas etc. E ainda quando se detenha exclusivamente na leitura do código verbal, a Semiótica buscará nele a transformação do simbólico (no caso, a palavra) em ícone, isto é, os meios pelos quais a obra literária, mais do que representar, presentifica o seu objeto. Para entendermos os modos possíveis como se opera, na linguagem literária, essa transformação, é necessário remetermo-nos, ainda que de forma sintética, a alguns conceitos elementares da teoria peirceana, especialmente à categoria dos signos icônicos ou hipoícones.

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A mais importante das tricotomias criadas por Peirce (1990) para a descrição dos signos distingue-os em ícone, índice e símbolo. Fundamental para a expressão artística (e também para o pensamento científico), o ícone é definido como um signo que mantém, com aquilo que representa, traços de semelhança em suas qualidades imediatas, isto é, em suas características visuais, sonoras, táteis etc. Diversamente do símbolo, cuja associação com o objeto é arbitrária e convencional; e do índice, que está diretamente ligado a ele, por contigüidade; o ícone reproduz qualidades idênticas às do objeto, constituindose numa réplica deste. Não existe, por exemplo, qualquer semelhança entre a palavra livro e o que ela denota na língua portuguesa, ou entre a luz verde e a mensagem “siga” no código de trânsito (relações simbólicas). Já o surgimento de certas ervas e pássaros, ao redor de uma embarcação, indica ao navegante a aproximação do continente (relação indexical). Um girassol retratado numa tela mantém, por sua vez, uma relação icônica com o girassol real. Entretanto, a identidade de um signo com o seu objeto será sempre ilusória, parcial (um retrato pode substituir/significar, em certos contextos, a pessoa retratada, mas jamais se confundirá com ela). Por isso, ao nos referirmos a fenômenos concretos de linguagem, o que temos em mente, geralmente, não são ícones ideais, mas signos icônicos ou hipoícones, na expressão de Peirce (op. cit.). Descendo ainda um degrau nessa tipologia, encontramos uma subclassificação que adquire grande interesse para a abordagem de sistemas complexos de significação, como as obras de arte: trata-se da divisão dos hipoícones em outras três categorias ou modos de representação. São elas: a imagem – que reproduz mimeticamente as qualidades simples da coisa representada –, o diagrama – que está mais próximo de uma associação indexical com o objeto – e a metáfora – que guarda maior semelhança com as formas simbólicas de representação – (Cf.PEIRCE,1990, p.64). Esta última – que dispensa apresentações no campo dos estudos literários – parece não divergir, em sua definição semiótica, do conceito que conhecemos da Retórica. Peirce (Op. cit.) inclui nesta categoria os signos ou representâmens cuja remissão ao objeto se dá através “de um paralelismo com alguma outra coisa”. É o que ocorre, por exemplo, no código verbal, em sentenças como “fecha-se a pálpebra do dia” (= anoitece), de um soneto de Raimundo Correia. Mais instigante é a oposição que se estabelece entre imagem e diagrama. São imagens, por exemplo, uma tela naturalista, a maquete de um edifício ou uma onomatopéia, pois estes signos nos remetem sensorialmente à presença daquilo a que se referem. Por outro lado, considera-se diagramática a relação entre

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1 Alguma teoria





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dois processos que, embora não se assemelhando mimeticamente, possuem certa identidade em algumas de suas partes: a escala do termômetro e a temperatura medida; um mapa e a região nele representada.

2 A questão da operacionalidade A primeira pergunta que se coloca para a Semiótica literária é precisamente: que rendimento o leitor de um poema ou de uma narrativa de ficção pode obter dessa teoria acerca dos signos? Antes de tentar respondê-la, devemos advertir contra dois extremos que representam riscos para uma atividade prática neste terreno. O primeiro deles é a diluição ou a banalização da abordagem semiótica, muitas vezes degenerada em mero inventário de jogos paragramáticos que sequer estabelecem relações convincentes com o sentido dos textos analisados. O extremo oposto, igualmente nocivo, é a utilização do texto como pretexto para exercícios de classificação, em prejuízo da análise interpretativa. Assim como existem um sociologismo e um psicologismo literários, não estamos livres aqui do emprego abusivo da teoria pela teoria. E, se a teoria não servir para nos fazer compreender o seu objeto, para que serve então a teoria? Para enfrentar a questão da operacionalidade da Semiótica peirceana, no que se refere à análise literária, retornemos à constatação, aparentemente consensual, de que o texto literário é um signo (complexo, porque composto de muitos signos) icônico. A matéria-prima da literatura é o símbolo (a palavra), mas o artista a emprega de um modo especial, visando ao que Pignatari (1979), reformulando a função poética de Jakobson, definiu como uma projeção do icônico sobre o verbal. 1Nesse contexto, o signo lingüístico tem sua arbitrariedade relativizada e tende a transformar-se em signo icônico, isto é, tende a imitar as características do seu objeto. A principal contribuição da Semiótica para a literatura é a compreensão de como se constrói essa iconicidade da linguagem literária. Tome-se como exemplo o comentário seguinte, acerca de uma letra de canção de Edu Lobo e Chico Buarque de Holanda: Sobre todas as coisas. Gravada inicialmente por Gilberto Gil, para a trilha sonora do espetáculo O grande circo místico (1982)2 e posteriormente por vários outros intérpretes, 1

2

A função poética de Jakobson, de base lingüística, fala de uma projeção do eixo da similaridade sobre o eixo da contigüidade. Cf. Jakobson, Roman. Lingüística e poética. In: Lingüística e comunicação. São Paulo: Perspectiva, 1969. Referência ao balé de Naum Alves de Souza, inspirado num poema homônimo de Murilo Mendes.

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esta composição foi incluída por Chico Buarque no disco Paratodos (1992), registro que ora nos serve de referência.3





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Sobre todas as coisas 01 02 03 04

Pelo amor de Deus, Não vê que isso é pecado, desprezar quem lhe quer bem? Não vê que Deus até fica zangado vendo alguém Abandonado pelo amor de Deus?

05 06 07 08

Ao Nosso Senhor Pergunte se Ele produziu nas trevas o esplendor Se tudo foi criado – o macho, a fêmea, o bicho, a flor, Criado pra adorar o Criador.

09 10 11 12

E se o Criador Inventou a criatura por favor Se do barro fez alguém com tanto amor Para amar Nosso Senhor.

13 14 15 16

Não, Nosso Senhor Não há de ter lançado em movimento terra e céu Estrelas percorrendo o firmamento em carrossel Pra circular em torno ao Criador.

17 18 19 20

Ou será que o Deus Que criou nosso desejo é tão cruel, Mostra os vales onde jorra o leite e o mel E esses vales são de Deus?

21 22 23 24

Pelo amor de Deus, Não vê que isso é pecado, desprezar quem lhe quer bem? Não vê que Deus até fica zangado vendo alguém Abandonado pelo amor de Deus?

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Sobre Todas as Coisas. Chico Buarque e Edu Lobo. Paratodos. Faixa 5, n.65064470 BMG.1982. CD.







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Sobre todos as coisas conjuga a gravidade do motivo religioso, sinalizado desde o título, e certa ironia profanadora, o que se explica pelo contexto ficcional para o qual a canção foi composta: trata-se de um protesto contra a indiferença da mulher amada, consagrada à vida religiosa e, portanto, ao amor divino. Para vencer-lhe a resistência, o sujeito lírico recorre a um argumento afetadamente retórico (“Não vê que isso é pecado, desprezar quem lhe quer bem?”), com o qual busca subverter-lhe as convicções, mostrando-lhe que sua recusa, ao invés de agradar, ofende a Deus, pois Ele não teria reservado para Si todo o amor com que dotou a criação. Embora preterida, ou evocada sempre de modo indireto ou atenuado (pergunte se... / não há de... / ou será que...), a figura de um “Deus cruel”, que teria criado o amor para usufruto próprio, ocupa quatro das seis estrofes do texto. Ela surge no segundo e terceiro segmentos, assumindo a forma negativa no quarto para voltar a ser considerada no quinto – só não ocorre na primeira e última estrofes que, idênticas, envolvem visualmente as demais, ao mesmo tempo que servem de contrapeso no jogo sutil de convicção e dúvida em que o texto se equilibra. Essa imagem narcísica do Deus cristão estrutura todo o discurso e repercute em vários níveis da composição, chegando a fixar-se mais vigorosamente na percepção do leitor do que o próprio tema do apelo amoroso, que acaba como que deslocado para segundo plano. Duas questões nos conduzem aqui à reflexão teórica: (1) por que essa imagem se torna esteticamente eficaz? E (2) como é construído tal efeito? O primeiro problema foi parcialmente abordado quando referimos a freqüência com que ela se reitera ao longo do poema. A teoria literária nos ensina que toda recorrência deve ser considerada em uma análise, ainda mais quando o objeto de estudo é um discurso altamente condensado, como é o caso da poesia. Mas devemos perceber que essa reiteração ocorre, como dissemos, em vários níveis de significação do texto. A imagem ganha vida aqui, não apenas porque se repete, mas porque se materializa na construção do signo, extrapolando o simbólico em direção ao icônico, de modo que forma e conteúdo parecem estar dizendo a mesma coisa. O segundo questionamento, que nos interessa de perto na presente análise, diz respeito aos recursos empregados pelos autores para alcançar essa materialidade do conceito. Como e onde ocorre, precisamente, a projeção do icônico sobre o verbal? Sublinhemos um detalhe curioso na estrutura do poema: as repetições de palavras e expressões (vejam-se os grifos na transcrição) não ocorrem ali de modo aleatório, mas obedecem a um esquema regular. Os elementos duplicados estão, em sua maioria, dispostos nos extremos de partes visualmente definidas do texto: início e fim de uma estrofe, de um grupo de estrofes, de um período ou do poema inteiro. A primeira e a sexta estrofes, não apenas são

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Não, Nosso Senhor Não há de ter lançado em movimento terra e céu Estrelas percorrendo o firmamento em carrossel Pra circular em torno ao Criador.

A organização lógica do discurso, determinada pela ordem específica de

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idênticas, como também iniciam e terminam pela mesma expressão. As demais incidem no mesmo processo, se considerarmos a sinonímia dos termos “Nosso Senhor” e “Criador”, que se alternam entre a segunda e a quarta estrofes, configurando um duplo quiasmo (versos 5 a 12 e 9 a 16, respectivamente). No penúltimo bloco, vê-se ainda a recorrência da palavra “Deus” em final de verso. A reiteração de um elemento inicial no fim de cada um desses segmentos é uma figura conhecida da Retórica, que a chama de epanadiplose, e seu efeito está aqui diretamente relacionado à construção do ícone. A equivalência dos extremos, seja nas unidades internas ou na macroestrutura textual, adquire, para o ouvinte ou leitor (mas sobretudo para este último, que pode explorar o texto de forma não-linear), o efeito de um contínuo retorno ao ponto de partida, se empregarmos a já consagrada analogia em que se representa o discurso como trajetória (considere-se, neste sentido, o emprego de expressões como linearidade e paralelismo nos estudos lingüísticos e literários). Daí podermos falar, neste caso, de uma estrutura circular. Sugerida pela disposição e seleção das palavras, essa circularidade afeta o plano sonoro da canção (veja-se, por exemplo, o efeito localizado da paronomásia, no oitavo verso: “criado pra adorar o criador”), mas também se manifesta na sua organização discursiva, impressão que se reforça pelo fato de as estrofes coincidirem com enunciados completos, marcando uma segmentação, não apenas rítmica, mas também lógica do discurso. Além do retorno à primeira estrofe, no final do poema, repete-se nas quatro estrofes internas um mesmo argumento, apenas variando a forma de expressá-lo (costuma-se dizer, nestes casos, que o discurso dá voltas ou gira em torno de um mesmo ponto). Temos assim uma multiplicação do efeito de circularidade, que atua simultaneamente nas unidades internas e no corpo inteiro do poema. Não há dúvida de que a analogia com o círculo, embora seja apenas um dos modos possíveis de representação da estrutura destacada (outra figura pertinente seria a do espelho), não nos ocorre de modo arbitrário: somos conduzidos a ela por uma série de correspondências. Basta lembrarmos que o atributo da circularidade aparece de modo eloqüente em uma das passagens mais expressivas da composição:





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repetições acima descrita, configura-se, assim, como um signo icônico em relação à imagem do carrossel, que integra, por sua vez – e noutro plano de análise – uma alegoria da visão teocêntrica do Universo. Para melhor explorar essa correspondência, deve-se perceber que tal estrutura circular não reproduz pontualmente as qualidades imediatas do objeto carrossel, mas o constante retorno ao ponto inicial que, por força das repetições, impõe-se à leitura, mimetiza a ação de “circular em torno a”, de que falam esses versos. À luz da categoria dos hipoícones, podemos afirmar que o que temos, neste caso, não é, portanto, uma imagem, mas um diagrama. Importa aqui distingui-los, menos para efeito de classificação do que para fim de compreensão do processo descrito: menos evidentes, as associações diagramáticas demandam interpretações relativamente mais complexas, na medida em que implicam maior abertura. Elas não preexistem ao processo da leitura, não estão dadas, mas sugeridas enquanto relações possíveis, cabendo ao leitor estabelecer o nexo entre elementos aparentemente desvinculados. Daí a grande importância do conceito peirceano de diagrama para a análise literária.4

3 Considerações finais Os comentários acima nos conduzem a um dos pressupostos fundamentais para uma abordagem da obra literária através da Semiótica. Tratase da consideração do texto como um signo complexo, em que diferentes níveis de construção (a organização sintática e discursiva, as escolhas lexicais, o ritmo, a segmentação espacial) concorrem para um efeito de coerência estrutural, isto é, para uma impressão de unidade, podendo todo o conjunto ser apreendido como um hipoícone na medida em que reflete qualidades análogas às do conceito representado. Lembremos que, para Peirce (op. cit), o efeito estético decorre de o signo apresentar “uma quantidade de partes de tal modo relacionadas umas às outras que confiram uma positiva e simples qualidade imediata à sua totalidade”.5

4

5

Em um artigo de 1965, Roman Jakobson já destacava a relevância desse conceito no âmbito dos estudos lingüísticos. Cf. JAKOBSON, Roman. À procura da essência da linguagem. In: Lingüística e comunicação. São Paulo: Cultrix, 1969, p.98-117. O termo cunhado por Peirce para designar essa “simples qualidade imediata” é firstness, que se costuma traduzir por primeiridade ou primariedade.

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BUARQUE, Chico e LOBO, Edu . Sobre Todas as Coisas. Chico Buarque e Edu Lobo.m Paratodos. Faixa 5, n. 65064470 BMG. 1982. CD. JAKOBSON, Roman. Lingüística e Comunicação. São Paulo: Cultrix, 1969. PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1990. PIGNATARI, Décio. Semiótica e Literatura: icônico e verbal, Oriente e Ocidente. São Paulo: Cortez & Moraes, 1979. SANTAELLA, Lúcia. Produção de Linguagem e Ideologia. 2. ed. São Paulo: Cortez, 1996.

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Referências





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Glória Car v alho*





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LEV ANT AMENT O DE QQUESTÕES UESTÕES SOBRE A NOÇÃO DE LEVANT ANTAMENT AMENTO PAR TILHA NO CAMPO DDAA AQ UISIÇÃO DE LINGU ARTILHA LINGUAAGEM ∗∗ ABSTRA CT ABSTRACT CT:: Dialogical relations have been approached by various groups of researchers in the field of Language Acquisition by standing out its privileged empirical unity statute. Nevertheless, one cannot undervalue the great differences implied in each of those approaches. Thus, in the clipping of this unit, special emphasis is put on the speech experience shared by the interlocutors (parent-child), as well as the infant’s utterance singularity at an early stage of the subject’s linguistic course. In the light of De Lemos’ proposition (2002), the present work suggests an attempt to discussing the relation between the child’s singular speech and his/her speech experience shared with an adult interlocutor (parent). Then it is worth standing out the importance to consider both interlocutors’ speech background when studying the changes occurring in the subject as s/he turns from the stage of a non speaker into the condition of a speaker. Nevertheless, it is herein indicated that it would be the movement of the language – by means of its two functioning poles: metaphoric and metonymical processes – that would work onto such experience making it return, in the infant’s utterances, as a different and singular structure. Therefore, the child’s speech singularity would be pointing at a feedback with a difference whose discussion could bring about consequences to the field of Language Acquisition investigation, as for raising questions about the natural way such notion has been dealt with in that field. KEY -W ORDS: Sharing; singularity; language acquisition. KEY-W -WORDS:

A relação dialógica tem sido considerada como unidade de análise privilegiada na investigação da linguagem da criança. Este trabalho consiste, portanto, numa tentativa de abordar tal unidade a partir da idéia de experiência discursiva partilhada. Nesse sentido, pretendemos indicar algumas questões sobre a noção de partilha, ou melhor, sobre a noção de história discursiva partilhada pelos interlocutores (adulto e criança), durante a trajetória lingüística do sujeito. Embora possua raízes na pragmática, tal noção tem sido adotada em diferentes abordagens, no campo da Aquisição de Linguagem. Realçamos, então, a importância do papel desempenhado pela partilha na tentativa de explicar a mudança, que ocorre no sujeito, de uma condição de não falante para uma condição de falante. Propomos, entretanto, que parece não se tratar ∗

Universidade Federal de Pernambuco Este trabalho faz parte da realização de Projeto de Pesquisa financiado pelo CNPq.

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de uma noção simples, natural, evidente em si mesma e, por isso, mereceria ser colocada em discussão.





1 A Partilha e a Noção de Desacordo De um modo geral, tem vindo à tona a necessidade de se trazer, para o campo da Aquisição de Linguagem – e, especificamente, para a questão da singularidade da fala da criança – a discussão sobre o reconhecimento de intenções comunicativas em sua relação com a experiência discursiva partilhada pelos interlocutores. Nesse campo de estudo, sob o enfoque pragmático, o outro (interlocutor/adulto), concebido como indivíduo que reconhece na criança intenções de comunicar uma mensagem, adquire especial relevo, durante a trajetória lingüística do sujeito. Essa concepção recebe destaque, por exemplo, na análise feita por John Dore do seguinte fragmento de diálogo: Episódio 1: “Um experimentador [E] está falando com uma criança [C] de 18 meses, antes que a mãe [M] entre em cena: C: Band-Aid. E: Onde está seu Band-Aid? C: Band-Aid. E: Você tem um Band-Aid? C: Band-Aid. E: Você se feriu e caiu? [A mãe entra] C: Band-Aid. M: Quem lhe deu o Band-Aid? C: Enfermeira. M: Onde ela o colocou? C: Braço.” (Extraído de DORE, 1979, tradução nossa)

Ao analisar esse episódio, Dore (1979) compara a comunicação mal sucedida do experimentador com o êxito da comunicação depois que a mãe entra em cena. Explica então essa diferença pelo fato de que mãe e filho partilham, tanto um conhecimento anterior, como a intenção de comunicar esse conhecimento. Em outras palavras, a mãe reconhece, na produção de C (“BandAid”), a intenção de comunicar um conhecimento sobre a visita ao médico. Segundo esse autor, o êxito da comunicação depois que a mãe entra em cena se deve, em suma, ao fato de que “a mãe sabia que questões a criança

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poderia responder e a criança sabia que questões a mãe provavelmente faria” (1979: 350, tradução e ênfases nossas). Em outras palavras, para esse autor, o êxito da experiência discursiva atual (no episódio citado) teria, como condição, o retorno da história discursiva (sobre a visita ao médico) – partilhada pelos dois interlocutores – a qual, por sua vez, teria como condição, tanto o conhecimento partilhado anteriormente, como a intenção partilhada de comunicar esse conhecimento. Nessa perspectiva, a história discursiva partilhada pelos dois sujeitos (mãe e criança) teria, como base, um acordo, uma relação de semelhança entre intenções comunicativas dos interlocutores, ou mesmo uma coincidência entre um saber da mãe e um saber da criança sobre as intenções mútuas. Neste momento, vamos sair do campo específico da Aquisição de Linguagem para um outro campo, evocando o Contrato Social de Rousseau, com base no qual podemos propor que o mais essencial à noção de partilha seria o desacordo e não o acordo. Nesse sentido, passaremos muito rapidamente por alguns aspectos do Contrato Social apenas com o objetivo de recortar elementos que sirvam de operadores para a discussão da partilha em Aquisição de Linguagem. Nesse texto, Rousseau (citado por CHAUÍ, 1996) parte da suposição de que o bom selvagem, o estado natural de felicidade teria se acabado no momento em que o homem teria dito: isso é meu, isso é teu, ou seja, a partir do momento em que teria surgido a divisão, a propriedade, em outras palavras, a sociedade. Entretanto, a sociedade (a partilha) não poderia sobreviver naturalmente, isto é, não poderia sobreviver se os indivíduos se relacionassem de forma direta, cada um fazendo valer os seus conhecimentos, as suas vontades, os seus interesses individuais, uma vez que naturalmente existiria uma assimetria entre eles: uns seriam mais fortes do que outros, segundo aquele autor. Teria surgido, então, a necessidade de um pacto social, de um contrato, de uma lei a que os indivíduos teriam que se submeter, não somente para que a partilha entre eles pudesse sobreviver, mas para que ela pudesse mesmo existir, já que segundo Rousseau (1987) a lei seria a condição da partilha. Assim, decorreria dessa lei uma vontade comum, semelhante. Por sua vez, ao se submeterem à lei, os indivíduos se transformariam em cidadãos (em sujeitos), com suas diferenças, suas singularidades. Com base nesse rápido resumo, sugerimos, como conseqüência, que o investigador, em Aquisição de Linguagem, seria afetado por uma suspeita, no que diz respeito ao acordo concebido como base da história discursiva partilhada pelos interlocutores (mãe e criança).





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2 Atitude de Suspeita do Investigador no Campo da Aquisição de Linguagem





Partindo da colocação acima, segundo a qual o mais essencial na partilha seria o desacordo, a diferença, destacaremos os seguintes aspectos, trazendoos para o campo da Aquisição de Linguagem: 1 – A partilha, ou melhor, a história discursiva partilhada pelos interlocutores (mãe e criança) teria, como condição constitutiva a lei estrutural da língua à qual mãe e criança se submeteriam. Estamos nos referindo, portanto, às leis do funcionamento lingüístico – no sentido saussuriano – que foram relidas por Jakobson (1971) como funcionamento metonímico, através do qual os signos se combinam por uma relação de contigüidade, e funcionamento metafórico, pelo qual os signos se substituem uns aos outros por uma relação de semelhança. Essas leis foram ressignificadas por De Lemos (2002), no campo de investigação da Aquisição de Linguagem. 2 – Dessa partilha, o investigador não poderia ficar de fora. Em outras palavras, ao estudar a mudança que ocorre na criança de uma condição de não falante para uma condição de falante, isto é, ao se relacionar com a fala da díade (mãe-criança), o investigador, embora de forma diferente desses sujeitos, também se submeteria à lei que constitui a partilha. 3 – Essa submissão à lei criaria, no investigador, o que passaremos a chamar de uma atitude de suspeita, aspecto esse que vai assumir o foco da discussão ao longo deste trabalho. Na tentativa de tornar um pouco mais claro o sentido que estamos atribuindo a uma tal atitude de suspeita, discutiremos o seguinte exemplo: (C = criança; M = mãe) Episódio 2: (C - 1;2.15 entrega a M uma revista tipo Veja) C: Ó nenê/o auau. M: Auau? Vamo achá o auau? Ó a moça ta tomando banho. C: Ava? Eva? M: É. Ta lavando o cabelo. Acho que essa revista não tem auau nenhum. C: Auau. M: Só tem moça, carro, telefone. C: Alô? M: Alô, quem fala? É a Mariana? (Extraído de DE LEMOS, C., 2002)

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3 O Erro e a Experiência Discursiva Partilhada Os erros – produzidos pela criança num ponto inicial de seu percurso lingüístico – trazem à tona, de modo especial, o caráter singular (diferente) do estado de mudança, em relação ao estado em que se encontra o sujeito já falante de determinada língua. Podemos nos referir, entretanto, a dois tipos de erros: os erros previsíveis e as produções insólitas ou estranhas. No primeiro caso, trata-se daqueles erros que respondem claramente a um padrão lingüístico, tendo sido realçados, sobretudo, por autores que se situam numa vertente do construtivismo piagetiano, como Peters (1983), Bowerman (1974 e 1982) e Karmiloff-Smith (1986 e 1992). Bowerman (1982), por exemplo, privilegiou a chamada ultrarregularização, como é o caso do uso (na língua portuguesa) de fazi, ao invés de fiz, em que se estaria conjugando, no passado, formas irregulares de acordo com a regra de conjugação das formas regulares. Quanto

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Segundo De Lemos (2002), apreende-se da fala de M que não há nem nenê nem auau na revista. Nesse sentido, o que retorna da fala da mãe na fala da criança são significantes cujo significado seria uma interrogação, apontando para uma não coincidência entre a fala da mãe e a fala da criança. Desse modo, o funcionamento lingüístico, atuando sobre a díade, fez o diálogo progredir. Por exemplo, o significante telefone (produzido por M) convocou, metonimicamente, na fala da criança, o fragmento de uma situação anterior (Alô), situação essa que foi reconstituída, metonímica e metaforicamente, pela mãe (Alô quem fala? É a Mariana?). Por sua vez, a interpretação do investigador não recairia apenas sobre esse fragmento de diálogo, em que a discordância é mais visível, porém retroagiria a momentos anteriores. Melhor dizendo, nessa retroação, seriam convocadas situações anteriores em que mãe e criança produziram nenê e auau, de modo aparentemente idêntico, coincidente, sem que alguma discordância se tornasse visível, colocando-se, portanto, em questão aquela coincidência. Uma conseqüência do que foi dito seria a de que o investigador, em sua relação com a fala da criança seria deslocado do nível do significado – regido por uma intencionalidade única – para o nível do significante no qual predomina o equívoco entendido como a possibilidade de um enunciado tornar-se outro, isto é, a possibilidade de um significante (ou cadeia de significantes) assumir, simultaneamente, vários significados. Por sua vez, tanto o caráter retroativo do que estamos chamando de suspeita quanto o equívoco se tornam mais visíveis na abordagem dos erros produzidos pela criança.





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às produções estranhas, seriam aqueles erros imprevisíveis os quais não poderiam ser explicados por uma regra de conhecimento lingüístico, como a regra de conjugação de verbos no passado. Vale apontar, aqui, um exemplo de erro imprevisível destacado por Bellugi, ou seja, a produção verbal de uma criança (Adam): “...o que você pensa que eu sou, um não menino com não relógio?” (no original: “a no boy with no watch?”). É importante indicar que Lemos (2002) abordou esse tipo de erro, segundo a concepção de efeito de estranhamento ou efeito de enigma provocado pela fala da criança sobre o adulto, tendo realçado a perplexidade do investigador diante de seu caráter imprevisível. Essa abordagem tem como referência a experiência do estranho (segundo Freud) a qual é provocada pelo retorno de algo conhecido, mas que havia sido esquecido. Nesse sentido, o enigma produzido pela fala da criança consistiria numa possibilidade (ainda que esquecida) da língua, ou seja, decorreria de uma maneira singular de combinar significantes. Esse tipo de produção também foi constatada por Bowerman que deixou clara a inquietude provocada por seu caráter inesperado, ao afirmar que: Muitos dos erros que eu estava registrando, entretanto, me colocavam diante de algo mais como um quebra-cabeça. Não era óbvio que a criança estivesse respondendo a um padrão estrutural do inglês e, mesmo que isso parecesse provável, não era necessariamente claro como caracterizar essa regularidade [...] (BOWERMAN, citada por LEMOS, 2002, p. 143).

Portanto, os erros estranhos, inesperados – mais do que os erros previsíveis – dão visibilidade ao caráter singular da fala da criança, apontando ainda para a resistência que esse caráter oferece a uma explicação através do conhecimento que o infante possuiria sobre a língua. No tocante a essa resistência, De Lemos destaca o papel crucial desempenhado pela relação do enunciado da criança com o do interlocutor/adulto, no sentido de que: o movimento da língua aproximando palavras ou fragmentos que, oriundas de diferentes cadeias se cruzam e se substituem na mesma posição, ainda que imprevisível, não é aleatório. É a história da relação da criança com os textos em que sua fala, gesto, movimento e presença foram interpretados que está aí inscrita e que lhe dá singularidade (1995, p. 26).

Desse modo, seria a história da relação discursiva entre o adulto (mãe) e a criança – ou melhor, a história de uma experiência discursiva partilhada – que o movimento da língua faria retornar, de maneira constante e diferente,

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Episódio 3: (Depois do almoço, C - 2;0.15 é acordada por M) M: Num pode não. Quando a gente levanta precisa...cê ficou descalça antes de dormir, é? C: É. M: Tá se vendo. C: Tá se vendo. M: Tá se vendo que você ficou descalça antes de dormir. C: Eu achuvia agu. M: Vai chover logo? C: É. M: Ahn. C: Tá muito fio. Episódio 4 (C - 2;5.23) M: A água tá guardada nas nuvens. C: Tá sovendo ele num abiu. M: Num abriu porque num tá chovendo. C: Cumasu.

No episódio 3, sugerimos que a produção de C (Tá se vendo) foi interpretada pela mãe como uma reprodução de sua cadeia anterior (Tá se vendo). Nesse sentido, M repete essa cadeia incluindo-a no enunciado completo Tá se vendo que você ficou descalça antes de dormir. Esse exemplo levantou, entretanto, a suspeita de que a interpretação da mãe em relação ao suposto caráter reprodutivo da cadeia da criança (Tá se vendo), provavelmente, não coincidia com uma intenção da criança de repetir o mesmo enunciado ou, pelo menos, de repeti-lo com sentido idêntico àquele que lhe foi atribuído. Tal suspeita, por sua vez, somente teria surgido em virtude da produção posterior (estranha): Eu achuvia agu, no episódio 3, bem como da produção Tá sovendo, no episódio 4 e em vários outros momentos da sessão de gravação. Assim, foi ao se deparar, posteriormente, com essas produções, que o investigador retroagiu à cadeia anterior de C (Tá se vendo), colocando em questão seu sentido de reprodução. Em outras palavras, levantou-se a hipótese de que o Tá se vendo do enunciado da mãe teria convocado (por deslocamento metonímico) as expressões Tá chovendo e Tá sovendo escutadas e produzidas pela criança, em outros

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nos enunciados infantis, constituindo a singularidade desses enunciados, como pretendemos apontar na análise (extraída de CARVALHO, 2003) de três episódios retirados do Banco de Dados do Projeto de Aquisição de Linguagem do IEL-UNICAMP:





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momentos. Isso teria permitido ao investigador suspender o sentido ou a intenção atribuídos pela mãe à fala da menina, levando-o a suspeitar de que não poderia saber em que sentido a criança estaria usando seus significantes, ou melhor, ele teria sido tomado pelo caráter equívoco desses significantes, oscilando entre ver e chover. Por sua vez, a análise do erro: Eu achuvia agu, fez com que o investigador voltasse aos dados, pois já havia se deparado, várias vezes, com o enunciado da mãe: Eu acho que vai chover, como por exemplo, no seguinte fragmento de diálogo: Episódio 5: (C - 1;11.05 está conversando com M) M: Nós vamos no Ibirapuera? Achei que a gente fosse para o zoológico. O Ibirapuera é mais perto, né? Só queria comprar um pirulito, cê compra? C: Compo. Intão vô no bilapuela/qui é muito puquinho. M: Mas só que eu acho que vai chover e nós num podemos descer do carro. Então você sai e vai comprar o pirulito pra nós todos. O seu dinheiro dá? Se não, eu empresto um pouco do meu. C: Num dá.

Sugere-se, por meio desse exemplo, que teria havido no erro (Eu achuvia agu), a fragmentação do enunciado Eu acho que vai chover, bem como a recomposição e substituições (metafóricas) de seus significantes, de forma imprevisível. Ao que parece, esse caso estaria dando visibilidade à suposição de que uma experiência anterior partilhada (em torno do tema da chuva) havia retornado, como significantes, na fala da criança. Teria sido então a língua, em seus dois movimentos (indissociáveis) de aproximar (metonimicamente) cadeias verbais e de substituir (metaforicamente) pontos nessas cadeias, que havia feito retornar, de modos diferentes, tanto na díade como no investigador, a história da experiência discursiva partilhada, pelos interlocutores (mãe e criança), sobre a chuva.

4 Considerações Finais Para finalizar, retornemos à abordagem pragmática em aquisição de linguagem, através do estudo transcultural de Ochs e Schieffelin (1995) que apontam para o fato de que, em algumas comunidades lingüísticas, não se reconhece, ou melhor, não se atribui às verbalizações da criança uma intenção de comunicar alguma coisa, num momento muito inicial de seu percurso lingüístico. Tal reconhecimento/atribuição somente ocorreria a partir do

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Pode-se dizer, então, que mesmo nessas comunidades exemplificadas, uma história discursiva estaria sendo, desde muito cedo, constituída através da partilha entre adultos e criança, muito embora tal partilha esteja fundada em padrões culturais bem diversos dos padrões predominantes na nossa cultura.

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momento em que o infante começasse a produzir formas verbais semelhantes às do falante. Essas autoras, porém, constataram, nas comunidades referidas, um tipo de história da experiência discursiva da criança com a mãe, com características bem diferentes – sobretudo em seus momentos iniciais – daquela história que tem lugar em outras comunidades. Explicando um pouco melhor, nas comunidades exemplificadas, diferentemente do que predomina entre os ocidentais, as crianças somente são tratadas como parceiros conversacionais diretos depois que aprendem a falar; antes disso, porém, os bebês participam de interações comunicativas na posição de um terceiro, ou seja, na posição de ouvinte casual da conversação entre múltiplos agentes, diferentemente do que ocorre, na cultura ocidental, onde o bebê é eleito pelo adulto como parceiro conversacional direto. Contudo, Ochs e Schieffelin concluem que “o resultado em termos da aquisição final da competência gramatical não é substancialmente diferente nessas duas estratégias” (1995, p. 74). Dizendo com outras palavras, essas crianças percorrem com êxito os vários momentos de sua trajetória lingüística. Por sua vez, esse fato é complementado por uma outra constatação empírica – apontada pelas autoras mencionadas – segundo a qual a produção de enunciados ambíguos (ou ininteligíveis) é universal, não estando seu aparecimento, portanto, na dependência de práticas discursivo-culturais específicas. Desse modo, podemos inferir que a criança daquelas comunidades, num determinado momento do seu percurso lingüístico, produz formas verbais diferentes, singulares, heterogêneas com relação a um padrão lingüístico. A partir desse estudo, poderíamos levantar uma suspeita em relação ao acordo de intenções comunicativas concebido como base para a história discursiva partilhada pelos interlocutores (mãe e criança). Explicando um pouco melhor, as comunidades exemplificadas funcionariam como uma espécie de contra exemplo onde não se poderia focalizar esse acordo num momento muito inicial da trajetória lingüística do sujeito, até porque a mãe, nesse momento, não reconhece ou não atribui intenções às verbalizações da criança. Da nossa leitura desse estudo, portanto, três proposições foram convocadas e se cruzaram: – O papel crucial da história discursiva partilhada pelos interlocutores (mãe e criança); – A não atribuição de intenção comunicativa; – A universalidade das produções infantis ambíguas.





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Nesse sentido, ganharia destaque o segundo aspecto recortado no início deste trabalho, ou seja, a proposta de que a lei seria a condição da partilha. Lembremos que a mãe, nos exemplos referidos, não atribui intenções às verbalizações da criança, num período inicial de sua história discursiva e, mesmo assim, erros ou enunciados ambíguos são, posteriormente, produzidos na fala infantil. Em outras palavras, da escuta da criança, na interação comunicativa – em que ela comparece na posição de um terceiro (ou de um ouvinte casual) – os enunciados produzidos pelos adultos teriam que se deslocar (metonimicamente) e se modificar (metaforicamente) para que pudessem constituir os enunciados ambíguos infantis. Como já foi dito, essa ambigüidade estaria apontando, sobretudo, para uma diferença em relação aos enunciados do falante, isto é, estaria apontando para a singularidade da fala da criança em seu momento de mudança. Em conseqüência, podemos propor que uma tal singularidade seria efeito de uma história discursiva partilhada cuja condição constitutiva, isto é, as leis de funcionamento lingüístico se imporiam não somente à crianças e aos falantes de sua comunidade, mas também ao investigador no campo da aquisição de linguagem.

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CONSTRUINDO VERSÕES DE MUNDO (Reflexões sobre a atividade de categorização em aulas de PPor or tuguês) ABSTRA CT ABSTRACT CT:: This article aims at reflecting on the question of categorization as it is carried out in classroom environment. Category construction, as we assume, is essential to knowledge acquisition once categories are the basic units which allow us negotiate views of reality through processes of socio-historically, cultural-based joint interaction. Social interaction brings to classroom context different world versions held by teachers and students in an attempt share these versions with all lesson participants. Social cognition, in its turn, distributes those versions among cognitive subjects in order to allow them negotiate, in situated contexts, the way they should observe the facts of the world, and eventually think of it and act on it. KEY -W ORDS: Categories; social cognition; interaction. KEY-W -WORDS:

Introdução Este texto tem por finalidade discutir a atividade de construção de categorias e conceitos no contexto específico das aulas de língua portuguesa, com foco privilegiado no conjunto de saberes fabricados conjuntamente por professores e alunos em ambientes de aula. O trabalho com categorias é central nessa discussão na medida em que estas nos permitem observar como os atores do contexto social de aula manejam em termos concretos as unidades básicas que estruturam o conhecimento. Além disso, nos permitem considerar como se classificam os pontos de vista mais gerais sobre a realidade, dado o contexto situado. Categorias são aqui compreendidas como versões públicas do mundo que utilizamos como o meio de constituirmos o conhecimento sobre um dado. Nestes termos, o conhecimento publicamente construído e veiculado na escola não seria mais do que uma das muitas versões da realidade, autorizada institucionalmente e aceita pelos membros da sociedade para ser oficial e vigorar como se fosse a verdade existente e aceitável. Estas versões são altamente estabilizadas (porém não estáticas) graças * Universidade Federal da Paraíba.







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aos mecanismos de conceptualização sócio-cognitiva que opera, de um lado, através de redes de modelos cognitivos idealizados (LAKOFF, 1987) como dispositivos estruturantes da formação de categorias, e de outro, por meio de redes de integração conceptual (FAUCONNIER, 2002), mais dinâmicas, que operacionalizam a convergência dos espaços mentais, responsáveis pelo fluir do pensamento, do discurso, dos conceitos, para a categorização. Os estudos de categorização no âmbito da cognição social têm o papel investigar como as versões mais ou menos estáveis são distribuídas entre os sujeitos cognitivos para que os indivíduos possam negociar, de modo situado, o olhar com que devem observar os fatos da realidade e eventualmente pensar sobre o mundo e agir nele.

1 Esquemas explicativos da categorização 1.1. A hipótese clássica: condições necessárias e suficientes A primeira teoria de categorização, no ocidente, é parte da herança filosófica clássica, representada pela figura de Aristóteles, para quem os seres e objetos são considerados pertencentes a uma dada categoria se compartilharem as mesmas propriedades necessárias e suficientes. Nesta tradição, aos objetos do mundo exterior são atribuídas certas propriedades suficientes, através das quais identificam-se com objetos de uma mesma categoria, além de propriedades necessárias, sem as quais deixam de fazer parte dessa categoria. Como para Aristóteles, o conceito homem é reconhecido por propriedades necessárias como animal, racional, mortal, bípede, entre outras, a ausência de uma propriedade, como racional, por exemplo, seria suficiente para desvinculá-lo da categoria em questão. Segundo Lakoff (1987, p. xii), a visão da teoria clássica é extremamente objetivista, pois assume a posição de uma realidade construída de forma especular – as categorias refletem o mundo. Para o autor, uma teoria de categorização assim postulada trata o pensamento como sendo a manipulação mecânica de símbolos, ou seja, a mente humana se configura como uma máquina interna abstrata que opera através de símbolos objetivos, tomados externamente. Tais símbolos mantêm uma relação biunívoca com o mundo à medida que são uma representação interna de uma realidade externa e devem corresponder aos elementos do mundo, independentemente dos contextos em que se encontram. Nas categorias objetivamente tomadas, as variações são traços incidentais e equívocos, não determinantes na atribuição de propriedades

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1.2 A hipótese pragmática: semelhanças de famílias A discussão sobre a categorização tem sido produtiva desde Aristóteles. O século XX, no entanto, produziu teorias capazes de por em xeque o pensamento clássico que vigorava até então. Wittgenstein (1961,1979), por exemplo, postulou a ineficácia das propriedades necessárias e suficientes em seu famoso exemplo sobre o conceito de jogo (Investigações Filosóficas, § 66). Propôs, na ocasião, que as semelhanças entre os indivíduos de uma família são mais úteis na identificação dos membros pertencentes às categorias, uma vez que no exemplo de jogos – jogos olímpicos, jogos de cartas, jogos de bola, de tabuleiro – os exemplares podem não compartilhar todas as propriedades, porém se conectam um ao outro por semelhanças sobrepostas, como as semelhanças entre os membros de uma família, através das quais os itens A e B são intrinsecamente relacionados, enquanto B se assemelha a C, C a D, D a E, sucessivamente, até que cada item tem, pelo menos, um elemento em comum com outro ou outros itens, mas poucos elementos são comuns a todos os itens do mesmo grupo (Cf. ROSCH & MERVIS, 1975, p. 575). Considere, por exemplo, as atividades a que chamamos de jogos (...) O que é comum a elas? Não diga ‘deve haver algo em comum, senão não seriam chamadas de jogos’, – mas veja se há algo comum a todas elas – pois se você observá-las, não verá algo comum a todas, apenas similaridades, relações, e toda uma série delas. Repito: não pense, veja! – Por exemplo, veja os jogos de tabuleiro, com seus múltiplos parentescos. Agora observe os jogos de carta; aqui você encontra muitas correspondências com o primeiro grupo, mas muitos traços comuns se perdem e outros surgem. Quando você passa para os jogos de bola, muito do que é comum é mantido, mas outro tanto se perde. São todos jogos ‘divertidos’? Compare xadrez com jogo da velha. Ou há sempre perdedores e ganhadores, ou competição entre os jogadores? Pense em paciência. Nos jogos de bola há perdedor e vencedor, mas quando uma criança atira a bola contra a parede e a apanha na volta, este traço desaparece. Observe aqueles em que há habilidade e aqueles em que há sorte e veja a diferença entre habilidade no xadrez e habilidade em tênis. Pense agora em outros jogos de crianças; aqui há um elemento de diversão, mas quantos outros traços característicos

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necessárias e suficientes e, por isso, descartáveis no cálculo da significação do objeto. Estas categorias são vistas como descorporificadas da realidade, insensíveis às contingências sensório-motrizes dos indivíduos, bem como às suas demandas sócio-históricas. Como são atomísticas e discretas, as categorias são incontornáveis em sua relação biunívoca com a realidade e só explicam as semelhanças entre os seres do mundo e não suas diferenças.





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desapareceram! E nós podemos percorrer os muitos, muitos outros grupos de jogos da mesma forma; vemos como as semelhanças surgem e desaparecem (WITTGENSTEIN, 1961, § 66).

1.3 A hipótese sociolingüística: categorias têm limites difusos Além de Wittgenstein, Labov (1973, p. 342), nas ciências da linguagem, havia reconhecido que se a lingüística pode ser definida por um objeto, o mesmo seria possível com os estudos das categorias, mas ele acrescentou que a categorização é uma dimensão tão evidente e fundamental para a atividade lingüística que suas propriedades são freqüentemente mais pressupostas do que propriamente estudadas. O autor se ocupou, assim, da natureza difusa dos limites categoriais através de uma investigação empírica, através da qual desenvolveu uma série de experimentos envolvendo figuras de xícaras e outros recipientes semelhantes. O procedimento do experimento de Labov era muito simples: os informantes observavam desenhos de xícaras e outros recipientes, um a um, e respondiam perguntas do pesquisador sobre qual era o nome de cada figura. Os resultados eram analisados em termos de perfis de consistência. Se todos os informantes do teste nomeassem um objeto como X, a consistência seria de cem por cento; se metade deles tivesse dúvida se o objeto era, de fato, X, e não o nomeassem, a consistência cairia para cinqüenta por cento. Tais análises encaminharam para a seguinte conclusão: O aspecto subjetivo da difusão (fuzzyness, na terminologia laboviana) pode ser pensado como a falta de exatidão sobre se um termo é ou não é denotativo; e isto pode ser transformado na consistência com a qual alguns exemplares de falantes, de fato, aplicam esse termo (LABOV, 1973, p. 353).

Para Ungerer & Schmid (1996, p. 19), os achados de Labov contrastam fortemente com o pensamento aristotélico de propriedades necessárias e suficientes, mas relacionam-se com alguns dos pressupostos já emergentes sobre a natureza cognitiva das categorias, especialmente nas seguintes características: a)

as categorias não representam divisões arbitrárias de fenômenos do mundo, mas podem ser vistas como fundamentadas nas capacidades cognitivas da mente humana; b) categorias cognitivas como cores, formas, organismos e objetos concretos são ancoradas em protótipos conceptualmente salientes, que têm papel crucial na formação de categorias;

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1.4 A hipótese prototípica: categorias têm exemplares melhores que outros As características acima descritas levam a questão da categorização e de sua natureza cognitiva a uma das hipóteses mais expressivas, representada pelos postulados de Rosch (1978) sobre a estrutura prototípica. A atenção sobre os processos lingüísticos atraiu os trabalhos de Rosch para a redefinição da concepção clássica que havia dominado desde Aristóteles. Rosch desenvolveu seu enfoque das estruturas de conhecimento na memória humana, motivada pela crítica da arbitrariedade e artificialidade dos conceitos então utilizados nos experimentos psicológicos, e por sua vontade de aproveitar os processos categoriais empregados nas categorias naturais que não são articuladas pelos cânones da lógica clássica, mas por uma lógica prototípica. Rosch apresenta uma teoria conceptual, na qual postula a existência de categorias prototípicas. Tal concepção repousa sobre a natureza contínua das categorias, sua gradualidade. Ou seja, cada categoria possui representantes mais ou menos típicos, e não é clara a linha que separa os exemplares mais próximos de uma categoria de seus não-exemplares. Assim, se perguntarmos a um informante qualquer (comum ou não especializado) por um exemplar de um conceito como fruta, ou pássaro, ou uma cor, ouviremos mais freqüentemente termos como maçã, bem-te-vi, e azul do que tomate, pingüim e magenta (Cf. RODRIGUES-LEITE, 2004, p. 26) Como bem reconhece Rosch, as categorias são observáveis através de sua expressão na língua, “os assuntos da categorização com os quais nos ocupamos primeiramente têm a ver com a explicação das categorias encontradas em uma cultura e codificadas pela língua daquela cultura em um ponto especifico do tempo” (1978, p. 28). Rosch descreve as categorias como funcionando notadamente segundo dois princípios psicológicos realistas de base: a economia cognitiva e a natureza não arbitrária da estrutura do mundo percebido. Neste sentido, Rosch se omite de abordar a questão de saber qual é a concepção de língua mais apropriada quando se trata de cognição. Ainda que as manifestações lingüísticas sejam onipresentes nas suas experiências e observações, a autora as ignora enquanto tais, ou mesmo as trata segundo uma concepção de língua como repertório de etiquetas, dicionário e nomenclatura. Com efeito, essa concepção de língua é marcada por uma confusão constante entre referente, conceito e significado (Cf. MONDADA, 1997, p. 293).

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os limites categoriais são difusos, isto é, categorias circunvizinhas não se separam por fronteiras rígidas, mas se mesclam entre si. d) entre os protótipos e seus limites, as categorias cognitivas contêm membros que podem ser classificados em uma escala de tipicalidade que varia de piores a melhores exemplares.



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A despeito de suas contribuições heurísticas, a teoria da categorização prototípica se caracteriza por um tratamento lingüístico, e mais geralmente semiótico, que revela uma concepção realista e transparente das mediações simbólicas. Tal tratamento negligenciou a dimensão sintagmática do discurso, provocando o que Mondada (p. 294) chama de apagamento do co-texto, o qual se acompanha do apagamento do próprio contexto, que passa a ser considerado como periférico ou é totalmente negado. Estas duas dimensões, no entanto, são constitutivas dos fatos lingüísticos empíricos e centrais a eles, sendo, portanto, centrais também às categorizações. 1.5 A hipótese de conceitos de nível básico: categorias são percebidas em diferentes níveis Relativamente à apreensão das categorias das linguagens naturais, em Rosch (1976) também encontramos uma contribuição que fornece subsídios para seu estudo – trata-se da concepção de nível básico das categorias. Em oposição à concepção aristotélica que pressupunha a uniformidade dos níveis taxonômicos dos sistemas de categorização, em que, por exemplo, um nível de taxonomia da biologia como ‘ser vivo’ só se distinguia de outros níveis de acordo com sua posição hierárquica (‘espécie’, ‘gênero’, etc.), Rosch postula a existência de um nível especial, em cada taxonomia, o qual se distingue dos demais por uma série de particularidades cognitivas, como percepção, comunicação e organização do conhecimento. Este nível especial é denominado de nível básico. O nível básico é mais bem definido se posto em relação às outras concepções também apresentadas por Rosch, que fazem com que sua teoria constitua-se de três ordens: conceitos básicos, conceitos superordenados e conceitos subordinados. As crianças aprendem mais facilmente os conceitos básicos como ‘cachorro’ antes de aprenderem os superordenados ‘animais’ e os subordinados ‘vira-lata’. As particularidades características da ordem básica (percepção, comunicação e organização do conhecimento) são relacionadas com as proposições apontadas por Oliveira (1999, p. 25), segundo as quais, categorias de nível básico são aprendidas pelas crianças primeiramente, de acordo com a ordem básico-subordinado-superordenado. Assim, primeiro se processa a percepção de um objeto conhecido como ‘carro’, para depois reconhecê-lo como ‘carro de corrida’, e em seguida como ‘veículo’. Os conceitos apreendidos em nível básico também são mais rapidamente aplicados – o tempo médio para identificação de um objeto como um martelo é menor do que para identificá-lo como uma ferramenta. Além disso, as categorias correspondem ao nível mais

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1.6 A hipótese do realismo experiencialista: a corporificação da cognição Um outro direcionamento à categorização prototípica foi dado por Varela, Thompson & Rosch (1991 – a chamada “virada budista”, ou seja, a interdependência dos fenômenos da experiência), e teve como objetivo liberar as ciências cognitivas de uma concepção realista e, logo, representacional da cognição, que sustém a concepção de cognição como o tratamento da informação procedente pela seleção das propriedades dadas e pré-existentes no ambiente contextual. A noção adotada para a cognição depende dos tipos de experiência que vêm do fato de termos um corpo com várias capacidades sensório-motrizes, e estas capacidades individuais são em si mesmas embutidas em um contexto biológico, psicológico e cultural mais fechado. O semanticista mais próximo das novas proposições roschianas foi Lakoff (1988) que propôs uma crítica paralela à de Varella, Thompson & Rosch, ao opor a cognição objetivista a uma cognição baseada na experiência. A primeira revela um realismo metafísico onde os símbolos são representações internas de uma realidade externa. A segunda, ao contrário, se fundamenta sobre os símbolos significantes e não-finitos, que funcionam segundo os esquemas imagéticos baseados sobre os processos elementares. O autor considera a experiência como ativa, funcionando como parte de um ambiente natural e social, motivando o que é significativo no pensamento humano (p. 120). Assim, com relação às categorias prototípicas, a hipótese realistaexperiencialista propõe que a prototipicidade é plástica e condicionada pelo ambiente cultural da comunidade lingüística. Lakoff (1987, p. xiv), por exemplo, atribui às categorias as características de corporificação – as categorias não são abstratas, mas sensíveis às contingências sensório-motrizes dos falantes; natureza imaginativa – as categorias não têm necessidade de correlação com fenômenos reais, mas pertencem a esquemas imaginativos de base; propriedades gestálticas (de formas) e não apenas de qualidades; contextualmente situadas – a estrutura da categoria é ambientada no contexto; idealização – as categorias podem ser descritas por modelos cognitivos idealizados domínios mentais estáveis e locais. Na lingüística cognitiva, a noção proposta por Lakoff (1987, p.68) relativa aos modelos cognitivos idealizados (MCI), reflete a maneira como organizamos

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alto para o qual uma imagem mental é associada ao conceito como um todo e correspondem ao nível mais alto em que uma pessoa usa programas motores semelhantes para interagir com as unidades às quais o conceito se aplica.





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o nosso conhecimento através de estruturas de categorias e efeitos prototípicos que são produtos resultantes da disposição MCIs. A noção de modelos cognitivos é tributária de quatro fontes no âmbito da lingüística: a semântica dos frames de Fillmore (1982), a teoria de metáforas e metonímias como organizações cognitivas de Lakoff e Johnson (1980), a gramática cognitiva de Langacker (1986) e a teoria dos espaços mentais de Fauconnier (1985, 1994). A noção de MCI, proposta por Lakoff (1987), diz respeito aos conhecimentos produzidos socialmente e disponíveis culturalmente. São espaços permanentes, estáveis, que estruturam os conceitos, as categorias e os frames, ou seja, nossa maneira de organizar o conhecimento sobre o mundo. Ainda que Lakoff (1988) e Rosch (1991) falem de categorização e cognição como corporificados, o problema reside em saber onde situar tal dimensão e superar sua redução à sensório-motricidade. Em todo caso, corporificado não significa situado em uma prática social como é o caso da etnometodologia (que faz a distinção entre o mundano e o ideal), o que se permite ao contrário é uma visão endógena dos processos que se constituem na/para a interação e a ação. É por isso que o debate se fixa na esfera dos condicionamentos genéticos e não pode se deslocar para a interação social. 1.7 A hipótese sócio-cognitivista: categorias são negociadas para fins práticos, temporários em contextos locais Ao contrário da psicologia cognitiva de Rosch, a abordagem sóciocognitiva permite reorientar o enfoque das categorias, levando em conta seu caráter situado, localmente produzido, contextualmente dependente e lingüisticamente organizado. As categorias, neste sentido, são produzidas de forma corporificada, o que não significa que têm uma determinação sensóriomotriz, mas que estão imersas em uma prática social secular, mundana. Desta forma, a atividade categorial não se reduz à atribuição de etiquetas prototípicas aos indivíduos e aos objetos, mas se ocupa dos métodos utilizados pelos sujeitos para caracterizar, descrever, justificar, compreender os fenômenos da vida cotidiana. As categorias tratadas por Mondada (1994, 1997, 2003) não são apenas observáveis discursivamente, mas também estruturadas pelos processos lingüísticos que fazem delas objetos-de-discurso (e não objetos de referência), ou seja, objetos que são construídos para o discurso e não são preexistentes a ele. O corpus lingüístico permite observar como o discurso se constrói progressivamente, não postulando objetos e configurações pré-elaboradas, mas lhes constituindo. Tal enfoque considera as categorias como sendo tratadas lingüisticamente em seu interior, decompostas e recompostas, associadas e

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1.8

A hipótese da integração conceptual: espaços mentais são mobilizados na conceptualização

Uma das grandes contribuições para o estudo dos processos de conceptualização e categorização no âmbito das ciências cognitivas, na atualidade, é oriunda de um conjunto de pressupostos apresentados por Fauconnier (1994, 1997, 2002), no tocante à criação e manipulação de espaços mentais, pelos seres humanos; e ao mapeamento do pensamento e da linguagem dentro de uma perspectiva semântica. Esta teoria tem como principal atrativo a operação mental verificada na formação de conceitos e na atribuição de sentido às relações que os objetos têm com o contexto, ao invés do enfoque formal da semântica que atribui significados na linguagem a elementos exteriores, como se aquela refletisse o mundo. Fauconnier, de modo diferente, procura investigar como a cognição funciona na sociedade e que conjuntos de relações são utilizados para se estabelecer a fusão entre espaços mentais, conhecida como blending, ou mesclagem conceptual, que funciona como o nascedouro dos sentidos. Segundo Fauconnier & Sweetser (1996, p. 8-9), a linguagem nos permite falar não só sobre o que é, mas também sobre o que poderia ser, o que será, do que se espera, do que se acredita, de hipóteses, do que é visualmente esperado, do que aconteceu, do que deveria ter acontecido, dentre outros. Para isso, criamos uma rede de espaços mentais através dos quais nos movemos à medida que o discurso ocorre.

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contrastadas e constantemente ajustadas ao contexto e à dinâmica comunicacional. A dinâmica categorial observada é essencialmente discursiva – leva a conceber uma semântica discursiva, baseada em operações sobre as fronteiras categoriais e não sobre seus traços fixos. De outro modo, ela é indissociável da prática enunciativa que se apropria do sistema lingüístico para ajustar os objetivos particulares e comunicativamente situados à dimensão que define a flexibilidade das categorias. Esta concepção considera o discurso como instaurador de sua própria realidade. O discurso deixa de ser uma cópia do mundo, ou a simples emissão de palavras conectadas entre si, passa a ter uma eficácia performativa que se exprime em sua capacidade de reificar aquilo que enuncia. Esta concepção interacionista e praxeológica da categorização se concebe como constitutivamente ligada às situações onde ela se desenrola, emergente nos trabalhos de negociação, de construção interativa, de elaborações coletivas, ordenando de forma endógena o curso de sua realização prática.





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Esta teoria postula a existência de quatro (ou mais) espaços mentais envolvidos no processo de projeção conceptual entre domínios: dois espaços de input (correspondentes ao domínio-fonte e ao domínio-alvo), um espaço genérico que comporta a estrutura abstrata partilhada pelos dois espaços anteriores (e eventualmente por muitos outros) e ainda um espaço de mesclagem (blending), em que se verifica a combinação, a mistura, de representações dos espaços de input, e por vezes também de outros espaços mentais cuja informação é mobilizada. É desta mesclagem que resulta uma nova conceptualização. O espaço mescla permite explicar a emergência de uma estrutura nova, que é um produto da projeção conceptual e não pode, por isso, ser encontrada nos espaços de input. A projeção conceptual constitui um processo cognitivo fundamental, responsável por fenômenos como a categorização, a formulação de hipóteses, os mecanismos inferenciais, a contrafactualidade, etc. Nesta hipótese, o processo da construção do discurso é altamente fluido, dinâmico, e localmente criativo – categorias provisionais são ajustadas em espaços apropriados; conexões provisórias são estabelecidas; novos enquadres são criados, e os sentidos são negociados. Esta abordagem possibilita a mediação entre conhecimento acumulado em modelos culturais e pessoais e sua ativação nos eventos comunicativos em desenvolvimento, na forma de esquemas conceptuais, modelos cognitivos idealizados e espaços mentais (LAKOFF 1987; FAUCONNIER 1994, 1997, 2002). A emergência da significação, deste modo, tem uma dimensão essencialmente pública e sua interpretação é tanto ato cognitivo como ato social (Cf. SALOMÃO 1997, p.33). O tipo de construção de significações que emerge no ambiente escolar é emblemático da relevância da teoria dos Espaços Mentais para a investigação que ora empreendemos. A aula é fortemente marcada pela negociação de modelos transitórios da realidade, que cumprem uma função local no processo de elaboração criativa de outros modelos mais estáveis, os quais garantem a permanência do conhecimento enciclopédico como objetivo acadêmico. É, também, o local onde presenciamos uma influência mútua entre as escolhas discursivas feitas pelos alunos e aquelas feitas pelos professores, as quais acionam modalidades diversas de tratamento contextual dos tópicos discursivos e refletem um dinamismo latente, pouco explorado nas pesquisas sobre as rotinas escolares. Este dinamismo é explicado, nas atividades comunicativas da interação em aula, pela abundância de estratégias sócio-cognitivas que ocorrem à medida que o discurso e pensamento fluem, tornando o contexto escolar o ambiente mais adequado para se construir publicamente versões da realidade.

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Procuraremos demonstrar, nesta seção, como certas rotinas comunicativas e atitudes interativas em aulas de português, entre os quais a avaliação, a correção e o reparo são também mecanismos que auxiliam na atividade cognitiva envolvida na construção conceptual e na categorização de conteúdos escolares. Iniciaremos pelo aspecto da avaliação, uma vez que, através de dados observados, percebeu-se que ela consiste em uma atividade bidirecional, isto é, da parte de ambos alunos e professores, que promove a recontextualização dos conteúdos em discussão. Em seguida, apresentaremos a categorização segundo uma dinâmica discursivo-interacional que envolve a negociação de objetos-de-discurso entre professores e alunos, em uma situação comunicativa bastante delimitada, e enfim, discutiremos a categorização do ponto de vista da integração conceptual, da mesclagem de espaços mentais, dentro do quadro teórico da hipótese sócio-cognitiva. Gumperz (1982) destaca o caráter interativo da comunicação, por apontála como uma atividade social, onde os esforços coordenados de dois ou mais indivíduos são exigidos. Desse modo, a comunicação só é atingida, quando os movimentos de um interlocutor provocam respostas por parte de outro, e isto com base em um inter-relacionamento entre um processo inicial de inferência global e as inferências locais geradas pelas trocas conversacionais subseqüentes. Este julgamento inicial é feito através do enquadramento da interação num modelo global. O indivíduo apresenta, inicialmente, uma série de expectativas acerca do que está se passando no contexto comunicativo antes de fazer qualquer inferência sobre o sentido do que está ocorrendo. A esse conjunto de expectativas dá-se o nome de ‘Frame’, ou enquadramento, ou ainda, moldura. O conceito de ‘Frame’ de que Gumperz se utiliza, foi desenvolvido por Goffman (1972) para designar o quadro do qual os participantes de uma interação face a face fazem parte em uma atividade de fala. As interpretações de sentido dos enunciados são feitas com base no que ocorre ao tempo da interação, e esta é definida como um quadro ou esquema identificável e familiar aos participantes. Juntamente à noção de ‘frames’, Gumperz aponta a teoria do alinhamento, ou ‘footing’, com o interesse de definir o papel ou a postura adotada pelos participantes da interação. O alinhamento ocorre toda vez que há uma mudança no enquadramento da situação vivida pelo falante. Marcuschi1 nos lembra que a teoria do footing deve ser observada em dois níveis: o nível macro do alinhamento na estrutura dos papéis e eventos, observado acima segundo Gumperz; e o nível micro das relações interpessoais, 1

Informação verbal.

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2 A interação em aula como mecanismo de categorização





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conforme Goffman. Este último apresenta maior relevância para a investigação feita em sala de aula. Professores e alunos apresentam alinhamentos diversificados em atividades como as rotinas de pergunta e resposta, por exemplo, em que a pergunta do professor ao aluno encadeia determinados modos de agir, de falar, de gesticular, de sorrir – observe o caso da perguntasurpresa feita pelo professor para testar a atenção do aluno (Exemplo 1), ou a pergunta retórica no início da aula, como tentativa de revisão de aulas anteriores. De modo diferente, a pergunta do aluno ao professor pode ensejar uma variedade de alinhamentos manifestados por reações agressivas, irônicas, cômicas, etc. (Exemplo 2).2

1.P= 2.A1= 3.P= 4 5 6 7 8.A= 9.P= 10 11 12.A= 13.P= 14 15 16

(...) peraí.../ com licença/ felipe/ por que rr não é encontro consonantal? éé::: /.../ ah/ ah/ ah/ ah/ ah com licença/ carlos felipe não está prestando atenção então eu acho que ele já sabe do assunto... certo? eu quero saber de carlos felipe/ carlos felipe... iuri falou que rr não é encontro consonantal porque? (5s) r-r não é encontro consonantal por quê?... nós aqui estamos vendo pr dr tr br/ e ai alguém gritou rr e iuri falou... erre erre não é encontro consonantal... por que? [é dígrafo calma]/ eu quero que o carlos felipe... carlos/ eu acho que só tem um carlos felipe nessa turma/ respeite/ porque rr não é considerado encontro consonantal? procura na sua gramática eu sei/ é porque não dêem a resposta/ ouviram? tão ouvindo? nós vamos continuar a aula mas não vamos dar a resposta pra ele... entendido? tá certo? procure na sua gramática e me diga porque rr não é encontro consonantal/ bem... então encontramos uma regra rr/r dobrado... num é? entre duas vogais... né? o som hhh mas aqui também tem o som hhh... e aí qual é a regra? (...)

Exemplo 1 – Pergunta-Resposta: Professor-Aluno.

2

Convenções da transcrição utilizadas: 1. ... = qualquer pausa; 2. (XXX) = trecho não compreensível; 3. :: = alongamento de vogal ou consoante r ou s; 4. PAgina = ênfase; 5. fa-zer = silabação; 6. ((comentários))= comentários do observador; 7. [ ] = sobreposição de voz localizada; 8. A= aluno; 9. P= professor; 10. (...) ou /.../ = indicação de transcrição parcial ou de eliminação de trechos.

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(...) à proporção que você for colocando o número um... ai responde ai depois copia o dois/ eu quero a pergunta com a resposta no caderno vai até onde? até onde vocês conseguirem fazer e se um conseguir fazer a metade e o outro conseguir fazer menos? e se uma pessoa não conseguir fazer nenhum... hein tia? ô tia a gente vai fazer até que número? vá fazendo tainah, não se preocupe... você coloca o quesito copia a pergunta e responde logo a pergunta (xxx) muito grande é pra copiar tudinho! tô lidando com criança aqui de alfabetização não tainah/ eu falo uma coisa você/ eu não vou copiar não (...)

Exemplo 2 – Pergunta-Resposta: Aluno-Professor. Para Marcuschi (2004, p. 10), as características funcionais da atividade interativa de perguntar-responder realizada pelo professor ou pelo aluno dependem do formato de aula3 em que o diálogo interacional ocorre, bem como do sistema de participação que cada tipo de aula utiliza. Assim, o diálogo é percebido de modo diferente em cada contexto e se presta a finalidades interacionais diversas, conforme a natureza do evento em curso. 2.1 A avaliação interativa e a negociação de conceitos A idéia inicial que se tem sobre a avaliação sempre a reduz às noções de prova, nota, conceito, boletim, etc., ou seja, um procedimento de julgamento de quanto o aluno aprendeu após ser exposto a uma certa quantidade de informações. Cada uma das práticas avaliativas citadas está ligada a uma 3

O autor apresenta quatro formatos de aula: 1. Ortodoxa – o professor apresenta o tema e o desenvolve, geralmente sem intervenção dos alunos ou com intervenções breves, orientadas para o tópico, assimiladas se pertinentes ou ignoradas quando fogem ao tema; 2. Socrática – o professor não enuncia o tema da aula nem o expõe diretamente, mas usa sistematicamente a estratégia de perguntas aos alunos e busca respostas intuitivas para, a partir delas, elaborar sua posição; 3. Caleidoscópica – o professor tem um plano maleável e um bloco de temas construído segundo a motivação e colaboração dos alunos, através de grande participação espontânea; 4. Desfocada – não há um tópico bem delineado em andamento e o professor trata de vários temas com pouca conexão entre si e dá a entender que tudo é tratável, desde que se associe com o que está em andamento. (Cf. MARCUSCHI, 2004, p. 5-8).



1.P= 2 3.A1= 4.P= 5.A1= 6.A= 7.A1= 8.P= 9 10.A1= 11.P= 12 13.A1=









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determinada concepção educacional do professor ou da instituição e refere-se às visões da realidade adotadas por eles. Essa idéia inicial sobre a avaliação tem como finalidade encontrar valores julgados adequados pela escola, sendo portanto, uma etapa seletiva e autoritária que estimula a hierarquização (alunos bons e insatisfatórios), padronização e seleção dos alunos, operando com conceitos polarizados que indicam quem fracassou ou quem obteve sucesso comparado a outros, visando à submissão do aluno em relação ao conteúdo adotado pela escola; essa concepção tradicional dispensa qualquer atenção à interatividade, à historicidade e o aos processos sócio-cognitivos de categorização. A avaliação está aqui sendo discutida como um procedimento interativo operado pelo ouvinte e falante na sequenciação intra e interturnos, que não deve ser vista apenas como o julgamento do que é certo ou errado, mas como uma oportunidade do locutor, no caso o aluno, refazer sua contribuição, confirmando ou mudando a aplicação prática das instruções obtidas do interlocutor, no caso o professor e vice-versa. A avaliação interativa que propomos assegura a negociação coletiva de categorias e conceitos no jogo avaliativo de sala de aula. A construção categorial tem, assim, caráter cooperativo, isto é, constrói-se a partir não apenas do que se vê e se ouve do interlocutor, mas das rotinas de sala de aula que promovem o intercâmbio do conhecimento através da interação social, levando em conta a intenção e significação do falante/ouvinte. Os trechos destacados abaixo são exemplos reais de atividades interativas que se propõem a auxiliar a construção de conceitos acerca dos conteúdos escolares. Tratam-se de trechos de aulas de língua portuguesa, coletados em turmas de 4ª e 5ª séries do Ensino Fundamental de duas escolas públicas da cidade de João Pessoa, entre 1998 e 2002. Ressalte-se que as pistas lingüísticas que tanto alunos como professores fornecem em sala de aula buscam quase sempre retomar os conteúdos, trazer à tona tentativas de negociações sobre o conteúdo, ou seja, avaliar muito mais a produção do conhecimento do que a precisão dos enunciados do falante, mantendo o foco na interatividade dos turnos negociados na situação comunicativa.

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Exemplo 3 – Avaliação: Aluno-Aluno. No exemplo acima, retirado de uma aula de português em que a professora explica questões de ortografia a partir da semelhança entre palavras primitivas e derivadas, percebe-se que a atitude comunicativa de avaliação (linha 5) partiu do aluno em relação ao turno de outro aluno retomado por P (linha 1). Ele analisa a suposição do outro grupo envolvido na atividade, chamou a atenção da professora e corrigiu a informação (linha 7): “mas é o contrário...”. O exemplo demonstra que a avaliação, correção e reparo4, como atitudes interativas, orientam o processo comunicativo pondo em relevo as dúvidas e incompreensões sobre o tópico em curso e procedendo a tomada, reformulação e inserção de conteúdos que venham a favorecer a conceptualização das noções discutidas. 1. P= 2 3.P= 4.A= 5.P= 6 7.A= 8.P= 9.P= 10.A= 11.A= 12.P= 13.A= 14.A= 15.P= 16.A= 17.P=

[...] agora o dimas/ dimas já percebeu outra coisa... que além do significado elas tem escritas iguais...ou seja...elas têm letras iguais...né isso?/.../ e isso quer dizer o quê? semelhança? ah...então vamos usar semelhança o que você tá colocando...é isso que eu queria dizer. semelhança de que gente? de palavras? de palavras? [...] será que é... será que é de palavras? não de nomes? de nomes? de sílabas? de ortografia /.../ não. ortográficas ah... semelhanças ortográficas. /.../

Exemplo 4 – Avaliação: Professor – Aluno. 4

Consideramos estes três termos como conceitos diferentes, pois avaliar é posicionarse em relação a um dado, informação ou turno, corrigir é sugerir algo diverso do que foi veiculado, e reparar é restabelecer a interação em seus enquadres.



[...] aquele grupo acredita que a palavra gás... deu e:: veio...veio...derivou-se...criou-se de gasoso...gasolina e gasosa...alguém tem alguma consideração sobre isso?/.../ [ professora] diz... tiago e:: eles num disse que gás vinha de gasoso...gasolina e gasosa? [sim] mas é o contrário... a::::h!



1. P= 2 3.A= 4.P= 5.A= 6.P= 7.6= 8.P=







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No exemplo 4, tanto professora quanto aluno interagem de forma avaliativa na interação. Nas linhas 8 e 12, a professora repete a questão proposta pelo aluno como forma de fazê-lo ir em busca do que ela pretende que seja alcançado. Depois é o próprio aluno que responde “não” (linha 10) a avaliação feita por P, indicando que entendeu que não está no caminho certo para encontrar a solução do problema. Outros alunos seguem suas tentativas de erro e acerto, até que na linha 15 a professora rejeita todas as respostas. Em seguida, os alunos alcançam encontram o termo desejado (linha 16): semelhanças ortográficas. No campo da análise sócio-interacional, a avaliação, a correção, e o reparo, têm sido tratados como estratégias utilizadas no curso da construção conceptual (ONO & THOMPSON, 1996; GOODWIN & DURANTI, 1992). Tais estratégias são empregadas pelos sujeitos cognitivos no curso da interação através da coordenação eficaz de seus esforços, e atuam ora na transição interturnos, ora no interior de um mesmo turno conversacional. Estas estratégias também ilustram a noção de contexto como uma dimensão acionada seqüenciadamente na temporalidade da interação e restringem o esforço cognitivo de interpretação, tanto através do gerenciamento da interação como por via das negociações de sentido. Além disso, revelam o desdobramento sincrônico da comunicação em planos interativos, replicáveis em planos discursivos (Cf. SALOMÃO, 1997, p. 26-9). Philips (1992, p. 312) também ressalta que na medida em que cada falante utiliza o turno na fala, ele ou ela constrói o sentido a partir das contribuições do falante anterior e ao fazer isso evidencia as compreensões particulares da fala prévia. Assim, o sentido de uma sentença específica não é inerente a esta sentença, mas é conjuntamente construído pelos co-interactantes – não sendo propriedade de um único falante – de forma emergente, ou continuadamente em mudança, através estrutura seqüencial da fala. Deste modo, os reparos têm papel crucial na construção contextual do sentido. Philips (p. 313) sugere que é comum aos falantes produzirem trechos de fala na interação que foram anteriormente utilizados por outros falantes como novos e espontâneos, ainda que possam ser repetições quase exatas de um ou vários aspectos da forma discursiva do falante anterior, ou ainda a repetição da própria fala utilizada em uma ocasião anterior. Tal fenômeno explica as ações de reparo, além da construção interacional do contexto social como amplamente padronizados ou ‘rotinizados’. A avaliação fornece exemplos dos pequenos sistemas de atividade que podem emergir, desenvolver-se e expirar nas fronteiras de um único turno de fala, podendo também se estender a múltiplos turnos e conectar unidades maiores que o turno. As avaliações também fornecem aos participantes recursos para

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2.2

Categorização como atividade praxeológica

As categorias ordenam a descrição dos acontecimentos em questão; elas são também os processos genéricos de controle social; organizam e regulam a forma como se constrói um novo saber. Os dispositivos de categorização são contextualmente pertinentes, dependem da atividade em curso e de suas finalidade práticas. O enfoque discursivo das categorias permite superar uma visão reificante ao propor uma abordagem em termos de realizações práticas, localmente situadas, organizadas de forma contingente na/para as atividades em curso. Tal abordagem permite trabalhar com a variabilidade das versões do tópico em desenvolvimento, apresentadas pelos indivíduos no decorrer da conversação, ao invés de propor uma resolução aos impedimentos analíticos que banalizam as diferenças, vistas do ponto de vista logicista em termos de contradições (Cf. MONDADA, 1994, p. 90).

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demonstrar julgamentos dos eventos e das pessoas de maneira relevante aos projetos maiores nos quais estão inseridos. É também crucial o modo como estas atividades dão aos participantes recursos para cumprir a organização social no interior de um turno, e para negociar e demonstrar compreensão congruente dos eventos nos quais eles estão engajados. As avaliações contribuem com uma arena na qual a estrutura lingüística, a cognição, a afetividade, e a coordenação social podem ser investigadas em detalhe como componentes integrados de um único processo. Por isso, a avaliação tem grande relevância para os assuntos mais amplos, levantados pelas análises da linguagem, cultura e organização social (Cf. GOODWIN & GOODWIN, 1992, p. 183-4).





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1.P= 2.A= 3.P= 4.A= 5.P= 6 7.A= 8.P= 9.A1= 10.P= 11.A= 12.P= 13.A= 14.P= 15.A= 16.P= 17.A1= 18.P= 19.A= 20.A1= 21.P=

/.../ a que/a palavra que dá origem é a que eu chamo de derivada? [não! com’é que eu chamo a que deu origem? original sim... mas tem outra/vamos procurar o-ri-gi-nar/ vamos procurar no dicionário original/ procura no dicionário a palavra o-ri-gi-nal/o-ri-gi-nal que dá origem somente isso? achei original ainda não é essa que eu quero /.../ (substantivo derivado) substantivo pode ser derivado... mas para ser derivado ele veio de um adjetivo? não... adjetivo não [ de um verbo tia?] o:::lha... pegue a gramática [palavra primitiva ((gritando)) procure a gramática] professora... humberto achou primitivo] ((aluno grita do fundo)) pri-mi-ti-vo... que veio primeiro... olha aqui ó... (...)

Exemplo 5 – Conceito: Derivação. A tentativa de conceptualização do conceito ‘palavra derivada’ sofre um impasse quando a consulta ao dicionário não é suficiente para definir o termo tratado na aula. As diversas tentativas dos alunos ao apresentarem significações para o conceito podem ser vistas superficialmente como inadequações e mesmo contradições ao tópico que está em foco na discussão. Numa perspectiva sócio-cognitiva, entretanto, trata-se de construções coletivas da categoria para as finalidades locais da interação. A dinâmica da aula, por sua vez, geralmente rejeita estas tentativas porque elege uma categoria precisa, um item lexical definido de antemão, como é o caso de ‘primitivo’. A análise dos processos de categorização feita do ponto de vista sóciocognitivo permite mostrar que as categorias são sempre construídas em um contexto interacional, de forma situada e para fins práticos. A questão da adequação referencial não pode ser vista a não ser como concebida em si mesma, construída localmente e interativamente e não dada por critérios a priori em relação com uma realidade independente (Cf. MARCUSCHI, 2001, KOCH, 2001, MONDADA, 1994, 2001).

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De acordo com o modelo de mapeamentos de Fauconnier (1997), as categorias apresentadas e discutidas em aula pelo professor e alunos, estruturadas pelos modelos cognitivos idealizados do discurso cotidiano podem ser projetadas entre si, através do princípio de identificação conceptual da teoria dos Espaços Mentais (EM). Este mapeamento permite a construção dos significados partindo dos esquemas mais genéricos, de base, para esquemas particulares. O processo de reconceptualização, desta forma, envolve o reconhecimento da integração entre os domínios fonte e alvo para a construção de um domínio mescla (blending) que leva em conta conhecimentos estruturados nos dois níveis anteriores (fonte e alvo). 1. P= 2.AA= 3.P 4 5.A=

/.../ vocês sabem o que significa reciclagem? ((silêncio)) que símbolo é este? ((a professora mostra o símbolo de reciclar – três setas largas interconectadas em um círculo) já sei/ reciclar é colocar o lixo na caixa azul /.../

Exemplo 6 – Reconceptualização no ‘Blending’. A reconceptualização feita pelo aluno no exemplo acima (linha 5) só é possível em um contexto em que ambos professor e alunos compartilham um modelo cultural construído possivelmente através de um contrato sócio-didático, em que disponham de um recipiente (uma caixa envolta em papel azul) onde possam ser colocados as sobras de papel e outros materiais re-utilizáveis. Tal caixa, dada sua função de depósito de materiais recicláveis, contém um símbolo internacionalmente reconhecível que indica sua função. Como o evento se trata de uma aula de alfabetização, com alunos na faixa etária de 5-6 anos, a pergunta da professora na linha 1 não contextualiza conhecimentos possuídos pelos alunos. Trata-se, na verdade, de um conceito técnico que engloba uma série de possíveis definições. No entanto, quando o símbolo é apresentado, aciona um conjunto de saberes pressupostos e experienciados pelos alunos no convívio diário da aula, ou de suas atividades em casa. Isto conduz a uma associação entre o símbolo e a categoria introduzida pela professora, o que engatilha uma fusão das duas, sendo reconceptualizadas na assertiva do aluno (linha 5).

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2.3 A integração conceptual na atividade de categorização





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Espaço Genérico

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Enquadre

= reciclagem









= caixa azul

Espaço Influente 1

?

Espaço Influente 2

Reciclagem caixa azul

reciclar é por o lixo na caixa azul

Espaço-Mescla Estrutura Emergente

Esquema 1: Mesclagem Conceptual – Reciclagem.

Conclusão Neste trabalho, procuramos demonstrar como o uso da linguagem em sala de aula, para fins de categorização e construção do conhecimento, é produto da coordenação das competências individuais e sociais dos falantes, reafirmando sua posição de atividade conjunta colaborativa, e como este uso é delimitado por um contexto localmente situado, produzido no curso das atividades lingüísticas. A atividade de categorização, em decorrência do papel da linguagem nas atividades sócio-cognitivas, abandona de uma vez por todas a preocupação com a apreensão representacionista da realidade e as categorias, nossas versões do mundo, passam a constituir e serem o constituídas pelo conhecimento como formas palpáveis, manipuláveis, que utilizamos para lidar com a fluidez da realidade existente no mundo. Fazemos isto, através de atividades colaborativas que nos permitem intercambiar e distribuir o conhecimento, agora negociável e não definido de uma vez por todas. Decorre desta reflexão que as categorias e os conceitos, como as formas mais básicas de organizarmos o conhecimento sobre algo, são itens priorizados nos diversos sistemas de ensino, e em geral, organizados em grades curriculares contextualmente determinadas pela situação sócio-histórica de uma dada

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comunidade. Dessa forma, o conhecimento publicamente veiculado na escola não é mais que uma das muitas versões públicas do mundo, autorizada institucionalmente e aceita pelos membros da sociedade para ser oficial e vigorar como se fosse a única verdade/realidade existente e aceitável.





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Maria Alice Tavares*









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ABORD ALIST ANÇA ABORDAAGEM SOCIOFUNCION SOCIOFUNCIONALIST ALISTAA DDAA MUD MUDANÇA EM TEMPO AP ARENTE: ANÁLISE DE UM CASO APARENTE: EM FL ORIANÓPOLIS (SC) FLORIANÓPOLIS ABSTRA CT ABSTRACT CT:: In this paper I deal with the function I designate “retroactive-propeller seqüenciation”, which is responsible for establish a link between a past statement and a future one. In Florianópolis (SC), the sequenciation link is especially codified by the sequence connectors E, AÍ, DAÍ and ENTÃO. In a sociofunctionalism approach (combination of theoretical presuppositions of Variacionist Sociolinguistics and of Linguistic Functionalism), I analyze these items of speech sequence as layerings/ variants, trying to verify how they are distributed in different age groups in Florianópolis. The age distributions obtained allow two explanations: (i) age-grading stable variation, where de individual changes but the community remains constant; (ii) generational change in progress, where the individual preserves his or her earlier pattern, but the community as a whole changes. KEY -W ORDS: Retroactive-propeller seqüenciation; apparent time change. KEY-W -WORDS:

1 Introdução Focalizo itens lingüísticos que atuam no âmbito discursivo como conectores – e, aí, daí e então. Grande parte dos papéis que esses conectores desempenham estão vinculados ao domínio funcional que denominei seqüenciação retroativo-propulsora, responsável por estabelecer uma relação coesiva entre um enunciado passado e um futuro, indicando que este será introduzido em continuidade e consonância com aquele. É o que tento apreender com a expressão retroativo-propulsora: os movimentos simultâneos de retroagir – conduzindo a atenção do interlocutor para trás no discurso – e de propulsionar – conduzindo a atenção do interlocutor para a frente, para a continuidade do discurso.Vejam-se alguns exemplos: (1) Quer dizer, descia de táxi e levava até lá. E era combinado assim: ele ia nos buscar às cinco horas. Se chovesse, que não dava pra descer o morro, ele

* Universidade Federal do Rio Grande do Norte.







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ficava lá em cima no morro e fazia sinal com o farol, aí a gente subia o morro com aquelas tralhas todas (ZO/FLP24:1258).1 (2) Ela tava assim fazendo um barulhinho, esse barulhinho é quando ela chora, então tu vai dando uma coisa. Daí foi doendo a perna, que a minha prima jogou, aí bateu nela (FR/FLP02C:42). (3) Então tu vês, o pai voltou a nada. E o meu avô era tratorista da prefeitura há muito tempo. Se aposentou pela prefeitura. Então ele ensinou a profissão de tratorista pro pai. Aí o pai começou trabalhar como tratorista e começou a levantar tudo novamente (IR/FLP13:756).













Cada um dos conectores destacados nos exemplos acima aponta para o enunciado anterior ressaltando que ele se relacionará com algo que aparecerá a seguir, e, assim, criando a expectativa desse aparecimento e instigando a procura por relações semântico-pragmáticas entre as informações interligadas.2 E, aí, daí e então são opções bastante recorrentes dentre as atualmente disponíveis na gramática da comunidade de fala de Florianópolis, sendo postos variavelmente em funcionamento quando há a necessidade de marcar a seqüenciação.3 Encontrei inclusive casos de uso muito semelhantes, como os seguintes, envolvendo verbos dicendi: (4) Aí ele viu que não tinha mais jeito, ficamos naquele (hes) E ele: “Vou ficar.” “Não, tu não vais ficar.” E ele disse: “Eu não vou” (RO/FLP03:735). (5) Ela falou: “Ah, vai ser menino e o nome vai ser Mateus.” Aí eu disse assim: “Então, se for menina, tu bota o nome de Bárbara, porque eu gosto” (DE/ FLP06J:552) (5). (6) Daí ela diz: “Ah, vai fazer deveres.” “Não tem deveres.” Daí ela diz: “Ah, que escola é essa que nunca tem deveres, professor nunca passa deveres?” (DE/FLP06J:188). (7) A pessoa já está vendo que terminou, então vai na pessoa que é encarregada, então diz a ela: “Está faltando uma caixa de tomate” (ID/FLP07:469).

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O código que segue o trecho da entrevista a identifica. Por exemplo, (ZO/FLP24:1258) = informante ZO, natural de Florianópolis (FLP), entrevista número 24, linha 1258. Quando há uma letra após o número da entrevista, temos J = informante de 15 a 21 anos, ou C = informante de 09 a 12 anos. Identifiquei cinco subfunções de natureza semântico-pragmática vinculadas à seqüenciação retroativo-propulsora (seqüenciação textual, seqüenciação temporal, introdução de efeito, retomada e finalização), que não são ora apresentadas por questão de espaço. E, aí, daí e então são utilizados variavelmente em todas essas subfunções (resultados quantitativos podem ser conferidos em Tavares, 2003a). Há ainda outros seqüenciadores, porém de freqüência bastante menor, como o depois.

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Tavares (2003a) descreve com detalhe possíveis trajetórias de gramaticalização seguidas por cada uma das formas em questão até se tornarem seqüenciadores.

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E adentrou o português já na função de conector, oriundo da conjunção latina et. Então também já era utilizado como marca da seqüenciação nos primórdios da língua portuguesa (séculos XIII e XIV). Quanto a aí e a daí, é provável que seus usos seqüenciadores tenham surgido apenas em língua portuguesa e em tempos recentes, pois, em um estudo anterior, tendo como fonte diversos textos do século XIII ao XX, obtive os primeiros dados do aí apenas em textos escritos em português brasileiro a partir da primeira metade do século XX, e do daí somente a partir da segunda metade desse século (cf. TAVARES, 2003a). Além disso, em outro estudo, comparando os domínios da seqüenciação na fala do português brasileiro e do português europeu, não localizei nenhum dado do aí e do daí na fala portuguesa, o que é forte indício de que se desenvolveram apenas no português brasileiro (TAVARES, 2003b). Provenientes de fontes distintas e em épocas distintas, e, aí, daí e então chegaram à seqüenciação através da gramaticalização (processo de criação e re-criação constante da gramática).4 Cada conector recém-chegado passou a conviver e a competir por espaço com os demais, provavelmente ocasionando alterações quanto à distribuição do território pertinente ao domínio. Em Florianópolis, daí, o seqüenciador mais recente, é muito freqüente na fala de adolescentes e pré-adolescentes (fenômeno facilmente perceptível tanto pelos habitantes da cidade quanto por quem vem de fora), o que permite considerar que seja uma marca identitária dos falantes mais jovens da comunidade. Mais ainda: é possível levantar a hipótese de que uma mudança esteja em andamento no domínio funcional em tela, na direção de uma maior recorrência de uso do daí por gerações cada vez mais jovens, em detrimento dos demais seqüenciadores. Assim, unindo pressupostos da sociolingüística variacionista (WEINREICH; LABOV; HERZOG, 1968; LABOV, 1972a/b, 1994, 2001) e do funcionalismo lingüístico norte-americano (HOPPER, 1987, 1991; BYBEE; HOPPER, 2001; GIVÓN, 1995, 2001), em uma abordagem que pode ser dita sociofuncionalista (NEVES, 1999; TAVARES, 2003a), tomo e, aí, daí e então como camadas/variantes da seqüenciação florianopolitana, verificando como eles se distribuem relativamente a diferentes micro-cosmos etários da comunidade. Analiso os resultados quantitativos obtidos à luz de duas possibilidades explanatórias, a de gradação etária estável e a de mudança em tempo aparente. Em especial, considero, em relação a esta última, reformulações recentes levadas a cabo no seio da sociolingüística variacionista (LABOV, 2001), e discuto implicações dessas reformulações relativamente ao caso em estudo. Para a realização desta pesquisa, considero as ocorrências da seqüenciação retroativo-propulsora na segunda metade de quarenta e oito entrevistas de informantes nativos de Florianópolis (cerca de trinta minutos de





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fala de cada um), estratificados em quatro faixas etárias: de 09 a 12 anos, de 15 a 21 anos, de 25 a 45 anos e mais de 50 anos. O total de dados é de 4.300, com a seguinte distribuição: e = 1.790 (42%), aí = 926 (22%), daí = 890 (21%), então = 694 (16%). A fonte das entrevistas é o Banco de Dados do Projeto VARSUL/UFSC.5 O artigo está organizado do seguinte modo: inicialmente, apresento o referencial teórico; na seqüência, procedo à análise quantitativa e à discussão de questões pertinentes ao fenômeno enfocado; encerro com as considerações finais e as referências bibliográficas.

2 Referencial teórico Uma abordagem sociofuncionalista à mudança em tempo aparente como a adotada neste estudo encontra respaldo no fato de a sociolingüística variacionista e o funcionalismo lingüístico norte-americano possuírem um certo número de postulados teórico-metodológicos comuns ou similares, alguns dos quais estão sintetizados no quadro a seguir:6 • O objeto de estudo é a língua em uso, cuja natureza heterogênea abriga a variação e a mudança (cf. WEINREICH; LABOV; HERZOG, 1968; GIVÓN, 1995). • Os fenômenos lingüísticos que constituem o alvo das investigações são analisados em situações de comunicação real em que falantes reais interagem (cf. LABOV, 1972a/b; BYBEE; HOPPER, 2001). • A língua está continuamente se movendo, mudando e interagindo (cf. HOPPER, 1987; GUY, 1995). • A mudança espalha-se de forma gradual ao longo do espectro social, considerando-se fatores como região, geração, classe social, etc, sendo o aumento de freqüência de uso compreendido como índice de difusão sociolingüística (cf. LABOV, 1972a/b, 2001; HOPPER; TRAUGOTT, 1993). • É comum haver diferença de freqüência de uso entre falantes mais velhos e mais jovens, no caso de mudança em progresso. (WEINREICH; LABOV; HERZOG, 1968; LABOV, 1972a/b; LICHTENBERK, 1991; ANDROUSTOPOULOS, 1999). • Fenômenos de mudança podem ser atestados através de tratamento empírico com quantificação estatística. (LABOV, 1994; GIVÓN, 1995). Quadro 1: Postulados convergentes – sociolingüística variacionista e funcionalismo lingüístico. 5 6

Variação Lingüística Urbana da Região Sul. Todos os postulados listados no Quadro 1 são mencionados e/ou discutidos por estudiosos variacionistas e funcionalistas em diversos trabalhos. Contudo, para cada postulado, cito apenas um ou dois trabalhos de cada um dos quadros teóricos (geralmente, os estudos pioneiros e/ou os que mais se destacam).

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Conferir em Tavares (2003a), com base em Labov (1972a/b, 1994 e 2001), as propostas da sociolingüística variacionista a respeito dos tópicos que foram comentados acima apenas do ponto de vista do funcionalismo. As camadas/variantes, na proposta apresentada aqui, podem possuir ou não o mesmo significado, conquanto exibam a mesma função. Diferenças de significado que porventura existam podem ser descobertas e descritas via controle de grupos de fatores particulares. É possível utilizar os termos de modo conjugado (por exemplo, estratificação/ variação), ou optar por um deles, salientando-se que, no caso deste estudo, remetem ao mesmo fenômeno.

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Embora este estudo busque inspiração em ambas as fontes teóricas, inclina-se em direção ao funcionalismo, ao assumir que a função a que serve a gramática é prioritária e determinante de seu uso pelos falantes. A gramática é “o agregado maleável e internalizado das formações vindas da língua em uso” – do discurso, das experiências com a interação lingüística que acumulamos durante a vida (BYBEE; HOPPER, 2001, p. 7). Trata-se de um processo em andamento, nunca chegando a constituir-se de fato, devido às constantes alterações a que está sujeito no discurso. O movimento de re-arranjo constante da gramática é denominado gramaticalização, definido como o processo de regularização gradual pelo qual um item lingüístico freqüentemente utilizado em contextos comunicativos particulares adquire função gramatical e pode, uma vez gramaticalizado, angariar ainda mais funções gramaticais (HOPPER; TRAUGOTT, 1993; BYBEE, 2003).7 A gramática coaduna domínios funcionais variados, cada um abarcando um conjunto de formas gramaticalizadas, isto é, de uso rotinizado na língua. Tais domínios podem corresponder a áreas funcionais gerais (ou macrodomínios) como TAM (tempo/ aspecto/ modalidade), caso, referência, ou a áreas mais estritas (micro-domínios), como o tempo futuro, o sujeito, a dêixis, etc. (GIVÓN, 1984, 2001) As formas pertinentes a cada domínio são um conjunto de elementos “unificados funcionalmente” (NICHOLS, 1984, p. 111), isto é, que codificam o mesmo ou semelhante papel. Elas são consideradas camadas do domínio do qual fazem parte: formas alternantes de realização existentes em uma relação de estratificação na mesma etapa histórica de uma língua (HOPPER, 1991). Podemos dizer que as camadas representam variantes lingüísticas em um sentido próximo ao da sociolingüística variacionista, segundo a qual variantes são duas ou mais formas de mesmo significado passíveis de serem empregadas no mesmo contexto, em uma relação de variação. 8 Combinando-se os termos, temos “camadas/variantes” e “estratificação/ variação”.9 A gramaticalização está por trás do fenômeno de estratificação/variação:





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no decorrer de seu desenvolvimento, uma forma pode vir a migrar para um domínio funcional já codificado por outra forma. Nesse caso, surge um ponto de estratificação/variação, em que as formas passam a co-habitar como camadas/variantes. É o caso de e, aí, daí e então, que, como já comentado, tornaram-se marcas lingüísticas da seqüenciação retroativo-propulsora em épocas distintas. A hipótese é que, a cada novo conector recém-chegado, a distribuição (em termos de freqüência de uso) dos demais é alterada, pois surge mais uma forma para partilhar os espaços lingüísticos e sociais pertinentes ao domínio. Como a seqüenciação conta com duas formas relativamente recentes, aí e daí, é possível que esteja em andamento atualmente uma mudança nos padrões de distribuição de suas camadas/variantes. Se for o caso, um estudo em tempo aparente pode revelar indícios dos rumos que estão sendo seguidos por cada forma: aumento de uso? diminuição de uso? Mas o que é um estudo em tempo aparente? Vimos, no Quadro 1, que a sociolingüística e o funcionalismo prevêem a possibilidade de haver diferenças nos padrões de freqüência de uso entre falantes mais jovens e mais velhos quando uma mudança lingüística está em progresso. No seio da sociolingüística, Labov (1994) afirma que podemos perscrutar a mudança lingüística tanto em amostras do passado quanto no que ouvimos a nossa volta, pois a língua é constituída por variações e alterações que cruzam períodos de tempo. O quadro de inter-relações lingüísticas delineado hoje é reflexo dos usos anteriores dados a língua por seus usuários e é a base dos usos futuros, em um contínuo de pequenos incrementos inovadores levando a grandes mudanças. Sendo assim, os indícios de mudança lingüística podem ser buscados em estudos que envolvem dados de tempo real e/ou de tempo aparente, isto é, dados de épocas passadas – o uso em tempo real; ou dados atuais, relacionando-se as variantes à idade dos informantes – o uso atual como reflexo do uso passado e fonte dos usos futuros. Nesse último caso, se uma mudança estiver em jogo, possivelmente haverá uma correlação significativa entre a idade dos informantes e o fenômeno estudado, mapeando-se diferenças nas freqüências das variantes entre falantes mais jovens e mais velhos de uma mesma fatia sincrônica, o que é conhecido como mudança em tempo aparente. O esperado é que a recorrência das variantes inovadoras aumente à proporção que diminua a idade dos informantes, do que resulta uma distribuição linear crescente: de um lado da escala, temos a faixa etária mais velha, com as freqüências de uso mais baixas ou mesmo com freqüência zero, e do outro a faixa etária mais jovem, com as freqüências de uso mais elevadas. A possibilidade de estudo da mudança em tempo aparente depende da

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Tomemos um exemplo. Modelos de mudança sonora definiram o período final para a estabilização fonológica do sistema lingüístico como ocorrendo aos dezessete anos de idade. Contudo, Norberg e Sundgren (1998 apud LABOV, 2001, p. 447) observaram que, no caso de algumas variáveis fonológicas, adultos jovens continuavam a avançar a mudança no início dos vinte e mesmo trinta e quarenta anos. A gradação etária é um tipo de variação estável, mas não o único. É possível, por exemplo, que, em situações de estabilidade, os grupos etários usem as variantes com freqüência similar, não havendo uma distribuição linear, padrão que pode se manter idêntico com o passar das décadas e mesmo séculos (cf. LABOV, 2001).

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validade do pressuposto de que o sistema lingüístico individual é estável, isto é, o vernáculo de um indivíduo de uma certa faixa etária permanece essencialmente o mesmo a despeito da passagem dos anos, o que permite que se compare a fala de pessoas de diferentes idades para observar diferentes estágios da língua. A hipótese, baseada na psicologia desenvolvimentista, é que a aquisição da língua é finalizada até o final da adolescência e se mantém estável pelo resto da vida, do que resulta que, ao analisarmos a fala de uma pessoa de setenta anos hoje, temos um reflexo do sistema que estava sendo adquirido por volta dos anos quarenta, ao passo que a fala de uma pessoa de cinqüenta anos nos desvela os anos sessenta (cf. LABOV, 1994, 1981; SILVA; PAIVA, 1996). Todavia, temos de ser cuidadosos ao assumir a perspectiva de análise da mudança em tempo aparente, pois o pressuposto de fixação do sistema lingüístico ao final da adolescência não é balizado em alguns casos. Exceções têm emergido de análises empíricas, envolvendo tanto mudança morfossintática quanto fonológica. Por essa razão, Labov (2001, p. 438) e Kerswill (1996, p. 179) alertam que a concepção de estabilidade do vernáculo após a adolescência talvez precise ser revisada ou ao menos relativizada à cada situação de variação. Adultos em torno de trinta a quarenta anos aparentemente perderam grande parte da habilidade de mudar seu sistema lingüístico, mas ainda assim não se pode afirmar que possuam um sistema rígido e imutável.10 Quando os adultos modificam seus vernáculos, acompanhando pari passu a evolução lingüística na comunidade de fala, a mudança não pode ser detectada por meio de uma metodologia de tempo aparente, pois as freqüências de distribuição das inovações serão semelhantes ao longo das faixas etárias, ao invés de mais intensas entre os jovens (ou seja, não há uma distribuição linear crescente). Na grande maioria dos casos de mudança já estudados isso não ocorre, mas as exceções exigem cautela por parte do analista, que não deve se conformar a evidências unicamente derivadas da distribuição etária. Urge mencionar que duas interpretações podem ser dadas para casos de distribuição etária linear crescente: a já discutida mudança em tempo aparente e a gradação etária (age-grading). Neste segundo caso, não há mudança, mas sim um tipo de variação estável11 caracterizada pelo fato de





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que os indivíduos mudam seu comportamento lingüístico durante a vida, mas a comunidade como um todo não é afetada por essa mudança. É o caso da gíria, por exemplo: os mais jovens usam mais, o que não significa que a quantidade de gíria vá aumentar diacronicamente entre a população. À medida que os jovens amadurecem, ao invés de manterem esse traço, abandonam-no, o que faz com que sua taxa mantenha-se constante na comunidade (LABOV, 1994, p. 353). Diferentemente, nos casos de mudança em curso, indivíduos estáveis carregam sempre consigo uma dada taxa de uso das variantes – maior a cada geração de falantes –, o que resulta em mudança lingüística com o passar do tempo. Portanto, se obtivermos uma distribuição linear crescente dos seqüenciadores retroativo-propulsores relativamente aos micro-cosmos etários da comunidade de fala florianopolitana, temos de considerar as duas possibilidades explanatórias: mudança em tempo aparente ou gradação etária. Mas como diferenciá-las, se ambas apresentam distribuição linear crescente? Novamente, a solução é não se conformar apenas a evidências provindas da distribuição etária, e sim recorrer a diferentes métodos e fontes.

3 Idade: o caminho da mudança Em razão da existência de modificações nas relações sociais ao longo das histórias de vida dos seres humanos, a idade influi sobre uma variedade de manifestações comportamentais de um indivíduo, incluindo-se aí o uso da língua. Busquei propor, no conjunto de 48 informantes que, nesta pesquisa, representam a comunidade de fala de Florianópolis, recortes no contínuo etário que fossem consoantes a diferentes etapas de vida. Contemplo, então, quatro faixas etárias: de 09 a 12 anos (crianças ou pré-adolescentes, em pleno processo de alinhamento a um grupo de amigos); de 15 a 21 anos (envolvimento em grupos adolescentes, finalização da escolarização secundária e orientação ao grupo de trabalho mais amplo e/ou universidade); de 25 a 45 anos (emprego regular e/ou responsabilidades familiaridades); acima de 50 anos (diminuição da força de trabalho e aposentadoria).12 É no período da adolescência (ou já na pré-adolescência) que os indivíduos comumente sentem necessidade de, por um lado, distinguir-se dos adultos e, por outro, aproximar-se de companheiros da mesma idade ou um pouco mais 12

Embora a faixa etária ‘de 25 a 45 anos’ seja bastante ampla, a maioria dos informantes que a integram se encontra entre 34 e 45 anos (nove informantes do total de doze), o que minimiza eventuais envieasamentos que uma faixa etária abarcando indivíduos de idades tão diferentes pudesse causar.

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Os dados foram submetidos a tratamento estatístico através do pacote VARBRUL (PINTZUK, 1988), para cálculo de freqüências, percentuais, pesos relativos e identificação da ordem de significância dos grupos de condicionadores testados (cinco lingüísticos e três sociais, dos quais este estudo apresenta resultados apenas para o grupo “idade”). Realizei rodadas binárias distintas para cada conector, além de rodadas eneárias, que confirmaram os resultados das binárias.

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velhos. Nesse processo de busca da identidade, formas já existentes na região podem ser tomadas como marcas identitárias, havendo predileção por aquelas que fogem à língua padrão/culta. Dois dos seqüenciadores sob enfoque – aí e daí – costumam ser considerados de menor status, isto é, trata-se de conectores que não fazem parte do conjunto de formas pertencentes à língua padrão/ culta. Sua utilização é, provavelmente, influenciada por tal avaliação negativa: aí e daí devem ser mais recorrentes na fala dos indivíduos mais jovens, de 09 a 12 anos (pré-adolescentes) e de 15 a 21 anos (adolescentes), ao passo que os indivíduos de mais idade devem dar preferência para e e para então, os quais não são considerados conectores de menor status. Subjacente à relação entre períodos de vida e o uso de formas de status inferior, está outra razão pela qual podemos esperar uma maior recorrência do aí e do daí na fala dos menores de 21 anos: são esses indivíduos que tendem a utilizar formas inovadoras como marcas típicas do grupo de pares. Os itens lingüísticos que sofrem “discriminação” são, em geral, mais novos em relação a outras opções tidas como mais “corretas” – e por isso mesmo considerados como de menor valor. Destarte, as formas tomadas como marcas identitárias pelos pré-adolescentes e/ou adolescentes apresentam, comumente, duas propriedades correlacionadas: são relativamente recentes e, em decorrência, possuem baixo status no mercado lingüístico – como o aí e o daí. Tais formas podem estar envolvidas em um caso de gradação etária, tendo sua freqüência diminuída quando os indivíduos se tornam adultos, ou em um caso de mudança em progresso, em que a experiência de cada geração mais jovem faz a mudança avançar. Minha hipótese é que o aparecimento das camadas/variantes mais recentes, aí e daí, deve aumentar à proporção que diminui a idade dos informantes. Se aí e daí têm tido avanços, em termos de freqüência, na fala dos indivíduos com menos de 21 anos, possivelmente e e então apresentam, como contraparte, freqüência reduzida na fala de tais indivíduos: a opção maior seria pelas formas mais novas e de menor status, possivelmente adotadas como marcas de identidade. Essa opção pode levar à mudança lingüística, no sentido de aí e de daí virem a ocupar pouco a pouco o espaço de e e de então. Vejamos os resultados na Tabela 1:13





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IDADE 09 a 12 anos

E A p./T ot. % ./Tot.

AÍ P R A p./T ot. % ./Tot.

DAÍ P R A p./T ot. % ./Tot.

ENTÃO P R A p./T ./Tot. ot. % P R 300/1.146 26 0,39 144/1.146 13 0,24 686/1.146 60 0 , 9 1 16/1.146 01 0,12

15 a 21 anos

479/1.064 45 0 , 5 1 310/1.064 29 0 , 6 4 161/1.064 15 0 , 6 4 114/1.064 11 0,36

25 a 45 anos

488/1.113 44 0 , 5 2 290/1.113 26 0 , 6 0 29/1.113 03 0,21 306/1.113 27 0 , 7 4

+ de 50 anos TOTAL

523/977 54 0 , 5 9 1.790/4.300 42 3º selecionado Input: .43

182/977 19 0,40 926/4.300 22 6º selecionado

Sig: .002 Input: .19

14/977 01 0,13 890/4.300 21 1º selecionado

Sig: .015 Input: .20

Sig: .005

258/977 26 0 , 7 7 694/4.300 16 1º selecionado Input: .15 Sig: .000

Log-likelihood: -2179.259 Log-likelihood:-1852.120 Log-likelihood:-1284.763 Log-likelihood:-1285.255 Tabela 1: Influência da idade sobre o uso de e, aí, daí e então.

E tem uso mais restrito apenas entre os pré-adolescentes, sendo responsável, nas demais faixas etárias, por 45 a 54% das ocorrências de seqüenciação em Florianópolis (com pesos relativos de 0,51 a 0,59). Aí predomina na fala dos adolescentes, mas também é opção recorrente por parte dos indivíduos de 25 a 45 anos. Quanto ao daí, verifica-se uma acentuada polarização entre os pesos relativos de 0,91/0,64 e 0,21/0,13, atribuídos a pessoas com menos de 21 anos e a pessoas com mais de 25 anos, respectivamente. Ou seja, falantes mais jovens tendem largamente ao uso do conector, enquanto falantes mais velhos inclinam-se fortemente a seu desfavorecimento. Os grupos que mais fazem uso do então são aqueles referentes a indivíduos maiores de 25 anos. Em oposição, indivíduos com menos de 21 anos o repelem intensamente. Portanto, as hipóteses propostas para a influência da idade sobre o uso da seqüenciação foram confirmadas: os conectores mais novos e de menor status, aí e daí, estão associados aos falantes mais jovens, ao passo que os mais antigos e não estigmatizados, e e então, estão associados aos falantes mais velhos. As exceções são a inesperada alta freqüência do aí entre os indivíduos de 25 a 45 anos e a sua baixa freqüência entre os pré-adolescentes. Uma vez que foi constatada uma correlação significativa entre a idade dos informantes e o uso de e, aí, daí e então, a possibilidade de que uma mudança esteja em curso é grande: daí está ocupando um espaço maior no domínio da seqüenciação a cada geração considerada. Esse fenômeno é discutido na próxima seção. O gráfico a seguir permite uma comparação entre os pesos relativos atribuídos a e, aí, daí e então (cf. Tabela 1):

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IDADE E USO DE E, AÍ, DAÍ E ENTÃO 100 90

91

80 70 64

60

51

50 40

39

74

77

60 52

59 40

36

30 20 10

24

21 13

12

0 09-12 anos

15-21 anos

25-45 anos

mais de 50

idade E



DAÍ

ENTÃO

Gráfico 1: Idade e uso de e, aí, daí e então - Florianópolis.

4 Um caso de mudança em tempo aparente? Estudos em busca da mudança em tempo aparente como o aqui realizado, ao obterem um perfil gradiente quanto à estratificação etária, defrontam-se com duas possibilidades de interpretação: (i) Gradação etária (age grading): indivíduos móveis numa situação estável, isto é, os indivíduos mudam seu comportamento lingüístico durante a vida, mas a comunidade como um todo não é afetada. Nesse caso, um comportamento lingüístico se repete a cada geração, de modo geralmente regular e previsível, como marca de um estágio de maturação, caracterizando uma situação de variação estável. A entrada na fase adulta é acompanhada por uma queda drástica no uso das formas identitárias socialmente desvalorizadas. (ii) Mudança em tempo aparente: indivíduos estáveis numa situação móvel, isto é, os indivíduos permanecem estáveis, carregando sempre consigo uma dada taxa de uso das variantes – maior a cada geração de falantes –, o que resulta em mudança lingüística comunitária com o passar do tempo.

A mudança lingüística geralmente avança em progressão geracional: uma camada/variante que ocorre com baixa freqüência na fala dos idosos ocorre com mais freqüência na fala dos adultos e mais ainda na fala dos jovens.







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A explicação fornecida para o elo entre juventude e mudança inspira-se nas transformações sofridas pelas relações sociais ao longo da história de vida do indivíduo. Na pré-adolescência e na adolescência, os falantes estão, respectivamente, iniciando e dando continuidade à sua transição para o individualismo, passando por uma etapa movimentada, turbulenta e longa, a qual, nas sociedades industrializadas, pode ultrapassar a faixa dos 20 anos. (CHAMBERS, 1995) Esses falantes, ao mesmo tempo em que buscam uma identidade que marque sua separação em relação aos mais velhos, necessitam de ligação com seus pares, como compensação pela perda da segurança do grupo domiciliar. Daí advêm duas forças – distinção em relação aos mais velhos e solidariedade com os pares – que se combinam, fazendo com que, sociolingüisticamente, indivíduos pertencentes às faixas etárias em questão sejam o ponto focal para a mudança: ao tomar itens lingüísticos particulares como marcas de identidade, tendem a super utilizá-los, acelerando a disseminação das camadas/variantes inovadoras e/ou estigmatizadas entre seus pares e entre indivíduos ainda mais jovens, contribuindo para a evolução da mudança. Diferentemente do que acontece no fenômeno de gradação etária, as inovações incorporadas ao vernáculo e super generalizadas pelos falantes mais jovens podem rotinizar-se como parte de sua gramática e prosseguir com eles pelo resto da vida, e são passíveis de sofrer aceleração ainda maior por parte das gerações posteriores, o que resulta em alterações progressivas na gramática da comunidade de fala. É possível que, com o tempo, as formas tomadas como marcas de identidade atinjam a comunidade de fala como um todo, suplantando eventuais camadas/variantes mais antigas com as quais competiam, em um processo que pode chegar até a extinção destas últimas. Inicialmente, analiso os resultados apresentados na Tabela 1 à luz da hipótese de mudança em tempo aparente. Quando uma mudança está em andamento, considerando-se o comportamento de diferentes gerações de falantes, comumente obtém-se uma distribuição linear gradiente: (i) crescente, no caso de implementação de uma forma lingüística (os indivíduos mais jovens usam-na cada vez mais); ou (ii) decrescente, no caso de desaparecimento de uma forma (os indivíduos mais jovens usam-na cada vez menos). Tal é o que se verifica, em Florianópolis, no caso do e (que tem seu uso diminuído de 54% na faixa mais velha para cerca de 45% nas faixas intermediárias e para 26% na faixa mais jovem) e do aí (que tem seu uso aumentado de 19% na faixa mais velha para cerca de 28% nas faixas intermediárias, embora esse acréscimo de uso seja interrompido na faixa mais jovem, com apenas 13% de ocorrência). Contudo, não é o que se verifica no caso do daí e do então. O primeiro sofre um aumento gradual entre a faixa etária mais velha e a de 25 a 45 anos (de 01

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Labov (2001) afirma que a aquisição lingüística é, em grande parte, uma transmissão de traços fonéticos e morfossintáticos de núcleos adolescentes e pré-adolescentes

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a 03%), mas tem dois grandes avanços de uso nas faixas mais jovens (de 03 a 15% e de 15 a 60%). O segundo sofre uma diminuição gradual entre a faixa etária mais velha e a de 25 a 45 anos (de 77 a 74%), mas tem dois grandes recuos de uso nas faixas mais jovens (de 74 a 36% e de 36 a 12%). No entanto, esses picos mais intensos de uso ou desuso não colocam em cheque a possibilidade de estar em curso uma mudança no domínio de seqüenciação sob enfoque. Labov (2001) modificou sua proposta de que a existência de uma distribuição linear crescente ou decrescente envolvendo todas as faixas etárias seria indício de mudança lingüística em tempo aparente (cf. Labov, 1972, 1981). Como vários estudos têm constatado a existência do uso intenso de formas inovadoras por indivíduos com idades em torno de dezesseis a vinte anos, Labov acredita que, nos casos de mudança lingüística, deva haver um pico de uso no período final da adolescência, ao qual se segue a diminuição constante do uso das formas inovadoras à medida que aumenta a idade dos informantes (ou seja, a distribuição linear crescente ou decrescente parece ocorrer somente a partir das faixas adultas), e ao qual precede um uso ainda elevado, mas menor, das formas em questão, por parte dos indivíduos com menos de dezesseis anos. Como contraparte ao pico de uso das inovações, podemos esperar um pico de desuso, entre os adolescentes, das camadas/variantes mais antigas. No caso da seqüenciação em Florianópolis, as formas mais antigas, e e então, parecem estar perdendo porções do território a cada geração, o que é evidenciado pela distribuição etária decrescente: quanto mais jovem os falantes, menor a utilização do e e do então. Contudo, a retração do uso do e acontece de modo mais suave que a do então: e possui freqüência de 54% e peso relativo de 0,59 na faixa dos informantes com mais de 50 anos, que diminuem para cerca de 45% e 0,52 nas faixas intermediárias e, em uma redução mais brusca, para 26% e 0,39 na faixa mais baixa. Dessa guisa, verifica-se, para o e, a existência de um declive maior de desuso apenas na fala dos pré-adolescentes. Já o então sofre duas quedas bruscas em termos de freqüência e de peso relativo, passando dos cerca de 27% e 0,75 atribuídos aos informantes com mais de 25 anos aos 11% e 0,36 atribuídos aos informantes de 15 a 21 anos e, finalmente, aos 01% e 0,12 atribuídos aos informantes de 09 a 12 anos. Ou seja, os desenvolvimentos do então em termos geracionais apresentam um pico de recalque de uso que se inicia entre os adolescentes e se acentua entre os pré-adolescentes, como se estes tivessem sido afetados pela “aversão” ao conector demonstrada por seus irmãos e/ou amigos mais velhos e a tivessem intensificado ainda mais.14





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E quanto a aí e a daí? A distribuição do aí pelas três faixas etárias mais velhas caracteriza-se por um aumento de freqüência acompanhando a diminuição da idade dos florianopolitanos: de 19% entre os indivíduos com mais de 50 anos a 29% entre os adolescentes. Configura-se, portanto, uma distribuição linear crescente que poderia ser interpretada, a despeito de um pico mais intenso de uso, como indício de mudança gradual em curso, no sentido de que as gerações vindouras optariam cada vez mais pelo aí como marca da seqüenciação. Contudo, os resultados para o grupo mais jovem, de 09 a 12 anos, frustram essa interpretação: a utilização do conector sofre uma grande contração, passando da freqüência de 29% e do peso de 0,64 referentes à faixa anterior, para 13% e 0,24. Silva e Macedo (1996), com base em dados de informantes cariocas, analisaram a influência da idade sobre o uso do aí e concluíram que, quanto mais jovem o falante, maior é o uso do conector em questão. Os pesos relativos atribuídos a cada uma das faixas etárias consideradas foram: de 7 a 14 anos = 0,70; de 15 a 25 anos = 0,60; de 26 a 50 anos = 0,40; mais de 50 anos = 0,30. Foi obtida, portanto, uma distribuição linear crescente: o aparecimento do aí aumenta à medida que diminui a idade dos informantes. Ou seja, no Rio de Janeiro, o aí parece não ter tido interrompida sua trajetória de aumento em progressão geracional, ocupando o conector mais e mais terreno no domínio da seqüenciação a cada novo grupo etário. Em Florianópolis, entre os indivíduos de 15 a 21 anos, a freqüência do aí, de 29%, já é a segunda maior (nessa faixa etária, ele perde apenas para o e, com 45%), e o peso relativo, 0,64, é semelhante ao atribuído à faixa etária correspondente no estudo de Silva e Macedo (indivíduos de 15 a 25 anos), 0,60. Se o processo de incremento de uso a cada nova geração tivesse tido continuidade em Florianópolis, o aí poderia ter sido conservado, na fala dos pré-adolescentes, como uma das formas detentoras da maior parte do território da seqüenciação. Nesse caso, talvez apresentasse um peso relativo similar ao do aí carioca no grupo de 7 a 14 anos (0,70). Contudo, no grupo florianopolitano correspondente (de 09 a 12 anos), uma das camadas/variantes – a mais recente – aparece atirando para todos os lados e tomando espaço dos demais seqüenciadores. mais velhos a mais jovens, sobrepondo-se à base lingüística transmitida pelos pais. A transmissão da mudança acontece no processo de transmissão da língua, em uma trajetória constante e regular de inovações que são adicionadas ao vernáculo adquirido dos pais. Cada criança reflete o nível de sua aquisição inicial (do que lhe foi transmitido pelos pais), acrescido de alterações advindas do contato com irmãos e outras crianças mais velhas na comunidade local. Há, portanto, pequenos incrementos constantes nas gramáticas individuais: a experiência de cada grupo mais jovem faz a mudança avançar, afastando-se ligeiramente do nível alcançado pelos falantes um pouco mais velhos.

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É possível que, se tivesse sido levada em conta uma faixa etária de indivíduos ainda mais jovens (de 03 a 05 anos, por exemplo), a existência dos picos de uso na fala préadolescente fosse mais ressaltada. Por hipótese, haveria um decréscimo do uso do daí entre essas crianças que, por sua pouca idade, possuem elos de ligação mais fortes com os pais do que aquelas que já são pré-adolescentes.

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O uso do daí para sinalizar a seqüenciação entre informações é raro entre os florianopolitanos com mais de 50 anos, com freqüência e peso relativo diminutos: 01% e 0,13. Ocorre uma pequena elevação entre os adultos: 03% e 0,21. Na faixa representando a geração seguinte, de 15 a 21 anos, há um pico de uso, em comparação com as duas faixas anteriores: 15% e 0,64. Surpreendentemente, surge um pico de uso ainda maior entre os pré-adolescentes: 60% e 0,91. Parece que os adolescentes de Florianópolis adotaram o daí como marca identitária e o transmitiram a falantes cada vez mais jovens, até haver uma explosão de uso entre os pré-adolescentes. É interessante observar que a freqüência do daí na faixa mais jovem é superior até mesmo a do e na faixa dos informantes com mais de 50 anos (54%), a segunda maior freqüência de um dos seqüenciadores em relação aos grupos etários (cf. Tabela 1). Cumpre ressaltar que Labov (2001) prevê que os picos de mudança acontecem na fala de indivíduos no final da adolescência (até cerca de 20 anos de idade). No caso da seqüenciação em Florianópolis, tal não se verifica: os maiores picos de uso e de desuso de e, aí, daí e então encontram-se na faixa etária de 09 a 12 anos, e não na faixa de 15 a 21 anos.15 As razões que motivam os indivíduos, na pré-adolescência, a super generalizarem formas inovadoras e de baixo status devem ser as mesmas que motivam os adolescentes. Atualmente, as pessoas de 09 a 12 anos já estão em uma fase de busca e afirmação da identidade, procurando distinguir-se dos pais e aproximar-se do grupo de pares. Nesse processo, podem adotar formas lingüísticas como marcas identitárias, reforçando um modo de falar “jovem”, em oposição a um modo de falar “adulto” (ou “velho”), do qual querem marcar distanciamento. Podemos interpretar os resultados elencados na Tabela 1 como significando que o aí tomou um pouco do espaço do e entre os adultos (a freqüência daquele aumentou, a deste diminuiu) e outro tanto do e e do então entre os adolescentes. No entanto, a mudança em direção ao predomínio do aí na seqüenciação florianopolitana foi interrompida em razão da super disseminação do daí. Entre os adolescentes, o daí parece estar ocupando o espaço outrora pertencente ao então (a freqüência daquele eleva-se intensamente, e a deste reduz-se em proporção semelhante). Entre os préadolescentes, a situação se agrava e tem lugar um golpe de misericórdia: com apenas 16 dados, o então não passa de um “resquício de épocas passadas”, em comparação com sua forte recorrência na fala dos indivíduos com mais de 25 anos. É também na fala dos pré-adolescentes que o terreno do aí é invadido,





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sofrendo o conector uma intensa retração de uso (de um peso relativo de 0,64 a um de 0,24), e que até o e é atingido, tendo sua freqüência reduzida quase que à metade em relação à faixa etária anterior, e obtendo seu único peso relativo desfavorecedor no grupo de fatores idade. O e reinava no domínio da seqüenciação, como a conjunção mais freqüente em todas as faixas etárias, até enfrentar o daí na fala florianopolitana pré-adolescente e ser derrotado. Todavia, o maior atingido pelo super avanço do daí parece ter sido o então, cuja evolução reflete, como imagem de espelho, a do daí: o pico de uso – altíssimo – do então acontece entre os falantes adultos e com mais de 50 anos e o do daí – ainda mais alto – entre os falantes adolescentes e préadolescentes. À medida que a utilização do daí aumenta, a do então diminui. Observem-se as linhas traçadas para ambos no Gráfico 1: quase uma imagem de espelho... Enfim, podem ser tomados como indícios de que uma mudança está em andamento na fala de Florianópolis: (i) o aparecimento intenso da forma mais inovadora da seqüenciação (daí) entre os adolescentes e, especialmente, entre os pré-adolescentes – um pico de uso –; (ii) o quase desaparecimento de uma das formas mais antigas (então) nas mesmas faixas etárias – um pico de desuso –; (iii) o fato de que os dois grupos adultos apresentam uma distribuição linear decrescente para o daí e crescente para o então (a freqüência do primeiro diminui com o aumento da idade dos informantes, e a do segundo aumenta), consoante previsto por Labov (2001) para casos de mudança. Já o aí, descontando-se o grupo mais jovem, parece passar por uma mudança menos vigorosa, pois, embora seja constatada uma queda mais acentuada entre as faixas de 25 a 45 anos e mais de 50 anos, o uso do conector diminui gradualmente entre os adolescentes e adultos. A mudança para o e também parece ser mais suave, havendo um decréscimo de uso gradual com a diminuição da idade dos informantes e apenas um salto mais brusco, entre a faixa etária de 15 a 21 anos e a de 09 a 12 anos. É possível que os hoje pré-adolescentes florianopolitanos tenham diminuída a taxa de recorrência do daí em sua fala à medida que amadurecerem. Conforme Labov (2001), é esperado que ocorra, nos processo de mudança, após o pico de uso da forma inovadora, uma retração de seu aparecimento: ela é incorporada, ainda com índices de grande freqüência, à gramática dos falantes do grupo em que teve seu uso fortemente acelerado, mas passa a recorrer menos, em comparação com a fase de pico de uso. Assim, a mudança adquire matizes não tão radicais e sim uma maior gradualidade: passa a haver uma distribuição linear crescente entre faixas etárias adultas, agora ocupadas pelos mesmos indivíduos que levaram a forma inovadora a seu ápice. Esta poderá vir a derrotar as demais concorrentes com o passar do tempo, mas com uma menor velocidade do que a que seria prevista, considerando-se somente seu(s) estágio(s) de pico de uso. Contudo, poderíamos considerar que os resultados expostos na Tabela 1

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Encontra-se em Tavares (2004) uma discussão sobre o grau de confiabilidade que pode ser depositado em dados de variação lingüística provenientes de As Vinhas da Ira. Aí também pode ser conferida a distribuição dos demais seqüenciadores em relação à idade dos personagens.

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revelam não mudança em tempo aparente, mas sim gradação etária (agegrading), que também pode ter como reflexo a distribuição linear crescente. Nesse caso, o daí, tomado como marca identitária pelos adolescentes e préadolescentes florianopolitanos, seria pouco utilizado por eles como marca da seqüenciação nas fases posteriores da vida (a exemplo dos adultos de hoje, com taxas de uso de 01 a 03%): daí seria abandonado ou teria sua freqüência fortemente reprimida, como tipicamente acontece com a gíria. Entretanto, acredito que o daí esteja sofrendo, atualmente, uma mudança da qual resultará como um dos articuladores que dividem a parte do leão da seqüenciação na comunidade como um todo e não somente entre os mais jovens, podendo mesmo se tornar o conector predominante, em termos de freqüência, no domínio da seqüenciação em Florianópolis. Para tecer essa hipótese, confio no seguinte indício: o daí pode estar seguindo os passos do aí, que, como ele, migrou recentemente para o domínio da seqüenciação e nele está estabelecido como conector de grande recorrência (ao menos até ser atacado pelo daí, entre os pré-adolescentes), observada inclusive na fala dos florianopolitanos de mais de 50 anos. Nessa faixa, o aí representa 19% do total dos seqüenciadores utilizados, o que é um sintoma de que está na luta com boas freqüências desde as décadas de 40 e 50, acompanhando os falantes que, hoje com mais de 50 anos, na época eram crianças em fase de aquisição ou já adolescentes. Se o aí não foi abandonado, é provável que o daí não o seja. Em um estudo anterior (TAVARES, 2004), apresento algumas evidências a respeito da distribuição sociolingüística do aí no final da primeira metade do século XX que confirmam a hipótese de que esse conector era utilizado com freqüência na codificação da seqüenciação retroativo-propulsora já naquela época. Nesse estudo, utilizei dados extraídos da fala dos personagens do romance As Vinhas da Ira, datado de 1940, tradução de The Grapes of Wrath, de John Steinbeck. Encontram-se em As Vinhas da Ira casos de variação em diferentes níveis lingüísticos, possivelmente em uma tentativa dos tradutores brasileiros de apresentar traços de oralidade de classes populares, à semelhança do original americano. Compus o grupo de fatores idade pela estratificação dos personagens do romance relativamente a quatro faixas etárias e interpretei os resultados como reflexos do uso real da comunidade de fala da época.16 Obtive a seguinte distribuição etária para o aí: de 09 a 12 anos = 13%; de 15 a 21 anos = 08%, de 25 a 45 anos = 06%; acima de 50 anos = 02%. Se, como defende Labov, adquirimos grande parte da língua através de nossas experiências em situações de comunicação transcorridas da infância até o final da adolescência e tendemos a conservar por toda a vida os padrões





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lingüísticos conforme experienciados nesse período, a freqüência de uso do aí no grupo mais idoso de Florianópolis (acima de 50 anos) deveria guardar semelhanças com sua distribuição na fala dos personagens de 09 a 12 anos do romance, que são aqui tomados como representando os pré-adolescentes da época em que o grupo de informantes florianopolitanos em questão estava na infância e/ou pré-adolescência. E é realmente similar a freqüência de aparecimento do aí na fala dos pré-adolescentes do romance (13%) e na fala dos florianopolitanos com mais de 50 anos (19%). Portanto, temos aqui indicações de que o aí foi preservado na fala dos indivíduos a despeito de seu amadurecimento, não configurando, assim, um caso de gradação etária. O mesmo pode acontecer com o daí. Além disso, é preciso considerar que o grande aumento de uso sofrido pelo daí em tempos recentes na comunidade de Florianópolis possivelmente trará implicações para o seu processo de gramaticalização. Quanto mais freqüente é uma forma, maior o seu grau de penetração na gramática, uma vez que a representação cognitiva desta é afetada pelo contato do usuário da língua com repetidas instâncias de utilização no sentido em que tokens da experiência fortalecem os exemplares armazenados (PIERREHUMBERT, 2001; BYBEE; HOPPER, 2001). Sendo assim, a alta freqüência do daí provavelmente contribuirá para que o conector seja conservado na gramática da comunidade, mesmo quando os jovens de hoje envelhecerem. 5 Considerações finais O procedimento de análise de mudança em tempo aparente mostrou-se bastante significativo para este estudo sociofuncionalista do domínio da seqüenciação, pois permitiu antever soluções possíveis para a situação de estratificação/variação sob enfoque. Tais soluções estão relacionadas à gramaticalização de e, aí, daí e então, pois, ao estudar seu uso variável no plano da seqüenciação, analisou-se com maior refinamento aquela que é uma das etapas dos percursos de gramaticalização seguidos por cada uma dessas formas.17 A estratificação etária implicada na utilização de e, aí, daí e então como seqüenciadores na fala de Florianópolis aponta múltiplas possibilidades de rumos a serem seguidos pelo domínio: (i) o daí pode se fixar como o seqüenciador mais recorrente; (ii) o então e o aí podem desaparecer da fala florianopolitana (já que sua taxa de uso foi bruscamente encolhida na fala dos pré-adolescentes); (iii) e, aí, daí e então podem ser todos conservados como marcas da seqüenciação, mas cada um especializado para nichos específicos 17

Provenientes de fontes distintas, e, aí, daí e então chegaram à seqüenciação, mas sua odisséia não acaba aí: a partir de seus usos seqüenciadores, passaram a exibir outras funções, como a adversão e o preenchimento de pausa (cf. Tavares, 2003a).

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F: Ele é chato. Ele fica- Ele- já passa uma- uma hora e ele fica lá conversando(hes) conversando assim: “Onde que tu mora?” a onde- Daí não começa o jogo. (hes) Até onze horas que ele co- que ele faz o jogo, daí não dá, né? Não dá pra fazer as pessoas- as pessoas que são sorteadas, né? não vai dar, né? que- que são doze pessoas, né? É bastante, não dá tempo. E: E aí o que acontece? F: Daí ele fica conversando, daí- daí demora, né? pra fazer os- o jogo. É assim: é as perguntas- o Sílvio Santos faz as perguntas, né? que valem um mil, dois mil, três mil, até um milhão- um milhão de reais, até. Daí a hora que chega a do meio milhão, (hes) vem- que vem a resposta de um milhão- um milhão de reais, daí o Sílvio Santos coloca uma maletinha, a hora que fechar tem que dizer a resposta. Tem ou responder ou tem que parar, parar com meio milhão. E se errar, perde tudo, não ganha nem um real, nem um centavo (FR/FLP02C:32-33).18 Referências ANDROUTSOPOULOS, Jannis K. Grammaticalization in young people’s language. The case of German. Disponível em Acesso em: 08 jun. 2000. 1999. BYBEE, Joan. Mechanisms of change in grammaticalization: the role of frequency. In: JANDA, Richard; JOSEPH, Brian (Eds). The handbook of historical linguistcs. Oxford: Blackwell Publishers, 2003. ______. HOPPER, Paul J. Introduction to frequency and the emergence of linguistic structure. In: BYBEE, Joan; HOPPER, Paul J. (Eds). Frequency and the emergence of linguistic structure. Amsterdam: John Benjamins Publishing Company, 2001. p.01-24. CHAMBERS, J. K. Sociolinguistic theory: linguistic variation and its social significance. Cambridge: Blackwell Publishers, 1995. GIVÓN, Talmy. Syntax: a functional-typological introduction. Vol.1. Amsterdam: John Benjamins Publishing Company, 1984. ______. Functionalism and grammar. Amsterdam: John Benjamins Publishing Company, 1995. ______. Syntax. Vol. 1. Amsterdam: John Benjamins Publishing Company, 2001. GUY, Gregory R. Form and function in linguistic variation. In: GUY, Gregory R. et al. (Eds). Towards a social science of language. Vol.1: Variation and change in language and society. Amsterdam: John Benjamins Publishing Company, 1995. p.121-252. 18

No exemplo, o entrevistador pertence a um grupo etário que, na comunidade de fala de Florianópolis, inclina-se ao uso do aí (de 25 a 45 anos), e interage com uma informante de 09 anos (pré-adolescente), que utiliza como principal marca de seqüenciação o daí.

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(certos contextos lingüísticos e/ou sociais); (iv) daí pode ter sua freqüência fortemente reprimida quando os falantes hoje adolescentes e pré-adolescentes se tornarem adultos, configurando, nesse caso, uma situação de gradação etária e não mudança geracional. Todavia, somente um novo estudo, levado a cabo daqui a alguns anos, pode revelar qual dessas possibilidades de fato se concretizará. Enquanto esperamos, observemos o futuro sendo tramado:





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Maria Angélica Fur tado da Cunha*









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A TRANSITIVIDADE DE VERBOS DICENDI ABSTRA CT ABSTRACT CT: This paper focuses on reported speech, aiming at examining the status of complement clauses of verbs dicendi. In particular, I will attempt to answer the following questions: can the clause which introduces the quotation be analyzed as an object complement of the verb of saying? Which are the syntactic, semantic and prosodic properties of utterance verbs that support such treatment? Which degree of transitivity does the complement clause manifest? The data come from twelve conversational narratives from Corpus Discurso & Gramática: a língua falada e escrita na cidade do Natal. The analysis follows a functional perspective. KEY -W ORDS KEY-W -WORDS ORDS: reported speech; transitivity; complement clause.

1 Introdução O fato de que o discurso reportado constitui um domínio muito especial do uso da língua é amplamente reconhecido (CLARK e GERRIG, 1990; CHAFE, 1994 inter alia). Sua investigação faz surgir questões que ultrapassam o escopo da gramática da complementação, como indexação, efeito e atitude. Ainda que vários trabalhos tenham focalizado a citação, a maioria deles analisa dados criados ou fragmentos de textos escritos. O discurso reportado pode ser descrito como um recurso utilizado na fala e na escrita quando o falante ou o escritor reporta o discurso (ou pensamento) de outra pessoa considerado em um tempo diferente do tempo de fala. No domínio do discurso reportado, pode-se distinguir discurso direto e indireto1. Além do uso de um complementizador nas citações indiretas, ambas as construções diferem com respeito à sua orientação dêitica. No discurso direto (DD), o centro dêitico é aquele do enunciação original, i. e., o tempo de fala e o tempo em que a citação foi produzida são considerados o mesmo. Ao contrário, no discurso indireto (DI), o centro dêitico é aquele do momento de fala, ou seja, a citação reflete o tempo real em que ela foi produzida. Essa diferença em orientação dêitica determina a escolha da referência pronominal (em que ‘eu’ e ‘você’ referem-se, respectivamente, ao falante e ouvinte originais, ∗ 1

Universidade Federal do Rio Grande do Norte/CNPq. Há um terceiro tipo, chamado discurso indireto livre, que contém traços tanto do discurso direto quanto do indireto. Esse tipo de discurso reportado não será analisado neste artigo.







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no DD, e ao falante e ouvinte correntes, respectivamente, no DI), da dêixis de lugar (o uso de este, aqui e vir, por exemplo, no DD, e de aquele, lá e ir, no DI) e do tempo verbal (em que o tempo do verbo no DI é o mesmo do verbo dicendi, enquanto isso não se dá no DD). Em outras palavras, no discurso direto o falante adota a a orientação dêitica daquele que cita, enquanto no discurso indireto o falante usa a si próprio como o ponto de referência espaçotemporal. O discurso reportado é geralmente introduzido por verbos dicendi ou verbos de enunciação, cujo protótipo é o verbo dizer, seguido pela oração citada. Os verbos dicendi tem sido objeto de estudo de vários trabalhos. Parece haver uma tendência geral para considerar esses verbos como intransitivos. Enquanto algumas línguas permitem que o complemento dos verbos dicendi seja codificado como um objeto oracional, em muitas línguas esses verbos exibem características de intransitivos. Os principais aspectos discutidos na literatura referem-se a: 1. as distinções sintáticas e semânticas entre o discurso direto e indireto; 2. a relação entre um verbo dicendi e o material citado; 3. as funções discursivas da citação. Neste trabalho investigo o status da oração complemento do verbo dicendi, com o objetivo de responder as seguintes perguntas: a oração que introduz a citação pode ser analisada como um complemento objeto do verbo dicendi? Quais são as propriedades sintáticas e semânticas dos verbos de enunciação que evidenciam tal tratamento? Qual o grau de transitividade que a oração complemento manifesta? Os dados empíricos correspondem a doze narrativas conversacionais extraídas do Corpus Discurso & Gramática: a língua falada e escrita na cidade do Natal, totalizando cerca de 12 horas de gravação. A análise segue uma perspectiva funcionalista do estudo da língua. Meus dados consistem num total de 349 citações, das quais 167 (48%) occorrências representam DD, e 182 (52%) exemplificam DI. Há uma variedade de verbos que podem introduzir discurso reportado, o que contribui para uma diferenciação semântica da citação. O Quadro 1 mostra as ocorrências desses verbos no discurso direto e indireto.

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DD (167)

DI (182)

dizer 135 (81%) falar 7 perguntar 6 fazer 4 reclamar 2 pensar 2 ficar 3 contar pedir 2 chamar 3 repetir 1 indicar 1 combinar 1

110 (60%) 9 11 28 17 5 1 1

Quadro 1: Verbos de discurso reportado. Dizer é o verbo mais frequentemente usado para introduzir uma citação em meus dados (70% do total), com poucas ocorrências dos outros verbos. Dizer corresponde a 81% de todas as ocorrências de verbos de enunciação no discurso direto e 60% no indireto, representando o verbo prototípico da classe de verbos que emolduram o discurso do outro. Uma razão para a natureza não-marcada de dizer e sua predominância é que ele pode ser considerado pragmaticamente neutro, já que a prosódia é geralmente usada para indicar o modo como o enunciado foi falado, se era uma pergunta, um pedido, uma ordem ou qualquer outro ato de fala, como no exemplo (1): (1) minha mãe trouxe, trouxe, biquini e essas coisa, maiô, num sabe? ela trouxe maiô. aí disse: < ei, você vai >? aí eu disse: < não, num vou não >. Nesse fragmento, o falante está falando sobre uma excursão que fez. A primeira citação é uma pergunta, enquanto a segunda é a resposta que ela deu a sua mãe. Ambas as citações são introduzidas por dizer. Ocorrências como essas são comuns em meus dados. O Quadro 1 também permite observações interessantes. Primeiro, note que alguns verbos não ocorreram no discurso indireto (fazer, ficar, reclamar, indicar, chamar). O uso de fazer e ficar, comparáveis ao ‘go’ do inglês usado no registro coloquial, está restrito ao discurso direto, como em: (2) aí ele fez: < eu num acredito >.





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(3) aí ficou todo mundo: < quem foi, quem não, quem não foi >, e terminou ficando o professor com a culpa.





Quanto a chamar e indicar, sua ausência do discurso indireto tem uma motivação semântica-pragmática. Com esses significados, esses verbos não podem ser seguidos por uma oração introduzida pelo complementizador que. Como esses verbos denotam um ato de fala lexicalizado, eles só podem ser usados no discurso direto, em que a citação representa as funções retóricas realizadas: (4) e já tinha algumas amigas minhas, tavam lá atrás e foram logo me chamando: < Gerson, vem pra cá, pra cá cantar >. (5) aí daqui a pouco um cara que num, que não me perguntou se eu queria ou não, chegou e indicou: < eu indico o nome de Gerson e tudo, da igreja do Satélite >. Além disso, pensar tem uma frequência de ocorrência mais alta no discurso indireto (n = 28) do que no direto (n = 2), enquanto contar apenas aparece no discurso indireto (n = 17). O uso do verbo pensar mostra que o ato de reporter inclui não somente atividade de fala, mas também atividade mental não verbalizada (para uma discussão de pensamento reportado, ver CHAFE, 1994). É interessante observar que quando uma pergunta é reproduzida no discurso indireto, a entonação se perde, mas o uso do verbo perguntar, juntamente com um pronome interrogativo na citação, compensa essa perda. Em meus dados, as 7 occorrências de citação introduzidas por perguntar são precedidas por diferentes complementizadores: se, por que, onde, como e quem: (6) se alguém pergunta pra gente < se você viu aquele filme >, Do ponto de vista sintático, esses verbos dicendi tendem a selecionar o mesmo tipo de oração complemento. No português do Brasil, o discurso reportado tem três tipos de complemento: oração principal, i.e., o complemento tem a mesma forma sintática de uma oração principal (discurso direto), orações com que e orações no infinitivo (discurso indireto). É relevante notar que alguns verbos de enunciação meramente transmitem que um certo tipo de atividade verbal aconteceu. Nesse caso, o objeto direto não é obrigatório e o objeto indireto/recipiente pode (7) ou não (8)

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(7) só sei que a namorada chegou. aí começou a falar com ele, num sabe? (8) aí [o amigo dele] começou a falar. (9) ela começa falando da ocupação nazista na França. (10) você começou a me contar aí de um passeio, né? com a sua tia. (11) mas quando foi à noite, né? foi perguntar de novo pelo gato, né? (12) aí ele foi pra casa, né? e ficou pensando só nisso, né? Meus dados também registram várias ocorrências de citação zero, isto é, discurso direto em que não há verbo dicendi: (13) aí vinha um caminhão e descarregava lá, na calçada. aí maínha: < ei, tire esse negócio daqui >. (14) o morador tinha saído. aí ela ofereceu o apartamento. aí mãe: < ah, tudo bem. eu fico com o apartamento. fico pagando o aluguel pra você >. (13) e (14) mostram algumas das características que ajudam a identificar os enunciados entre parênteses angulados como discurso direto. Primeiro, há mudança de sujeito: da 3ª pessoa (maínha) para a 2ª pessoa do singular (você, omitido mas recuperável através da morfologia verbal) em (13), e da 3ª pessoa (mãe) para a 1ª pessoa do singular (eu) em (14). Segundo, há também uma mudança no tempo verbal: do passado para o presente em ambas as orações. Terceiro, o uso de partículas como ei e ah no começo dos enunciados reportados indica que o falante corrente está agora citando, e que essas partículas foram supostamente produzidas pelo falante original no evento que está sendo reportado. Observe também o uso do marcador narrativo aí antes da referência ao falante que está sendo citado. Além disso, a prosódia ajuda a indicar que uma citação é pretendida, visto que ambas as citações são precedidas por entonação contínua. Assim, o verbo dicendi pode ser omitido, enquanto os pronomes e o tempo verbal são usados de um modo apropriado ao discurso direto.

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ser expresso. O mais comum é o verbo falar. Quando esse é o caso, o verbo dicendi tem uma estrutura argumental diferente, e pode codificar o assunto sobre o qual se está falando como um constituinte oblíquo, como em (9-12):





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Na citação, a escolha do tempo verbal, assim como a escolha da orientação especial e temporal, é determinada pelo ponto de referência da citação. Com relação ao tempo em que o verbo dicendi aparece em meus dados, o Quadro 2 exibe o número de ocorrências para esse traço: Tempo Pretérito Presente Futuro

DD (166)

DI (182)

144 (87%) 20 (12%) 2 (1%)

145 (80%) 33 (18%) 4 (2%)

Quadro 2: O tempo dos verbos dicendi. O verbo que introduz a citação está predominantemente no tempo pretérito (289/348 = 83%), tanto em DD como em DI, mas também pode estar no presente (53/348 = 15%), com muito poucas ocorrências no futuro. A alta frequência do pretérito tem a ver com a função de reportar uma situação ou evento prévios. O uso do presente no discurso reportado representa uma instância do presente histórico. Ao invés de reporter um evento passado no tempo pretérito, o falante usa o presente como um recurso para similar que o evento está acontecendo no momento de fala. Essa estratégia é usada principalmente em pontos na narrative em que o falante está altamente envolvido com o que ele/ a está recontando, e tem o efeito de dramatizar aquilo que está sendo descrito, fazendo-o parecer mais vívido (ver CHAFE, 1994), como em (15) abaixo, em que o falante reproduz seu diálogo com um antigo namorado: (15) aí ele: < num vai comer não, você? digo: < não, é porque eu tô sem fome >. e eu morrendo de fome, sabe? tinha saído do colégio. O exemplo em (16) ilustra o uso do presente habitual (ou genérico), que veicula uma situação ou estado de coisas atemporal: (16) a moral da história é, quando o povo diz: < ah, tenha paciência de Jó >, é porque Jó era o nome do cara. Quanto ao futuro, nos dados examinados ele é sempre expresso por meio de uma locução formada pelo verbo auxiliar ir, flexionado no presente, e o verb principal dizer. Esse uso é típico do registro coloquial, e representa um caso de gramaticalização. No fragmanto em (17) o narrador está falando sobre

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(17) então eu combinei com as minhas amigas: < olha, vai duas pra sala de aula assistir à data comemorativa. eu vou começar a chorar e vou dizer < que estou doente Q. uma vai chegar, vai chamar o diretor, vai dizer < que eu estou doente > pra poder, você vai chamar as outras que estão no auditório, que é pra me levar pro hospital >. Assume-se, em geral, que o tempo do verbo no DI, mas não do DD, é o mesmo do verbo dicendi (LI, 1986). Isso pode ser explicado pelo fato de que no DD o centro dêitico é o do enunciado reportado, enquanto no DI o centro dêitico é o do momento de fala. Desse modo, no primeiro o tempo verbal é o mesmo do enunciado original, enquanto no último o verbo da citação frequentemente está no pretérito, assim como o verbo dicendi (predominantemente no pretérito, mas também no presente e também no futuro, em meu corpus, em ambos os tipos de discurso reportado. Cf. Quadro 2). Meus dados corroboram essa assunção: no DD, em 121 de 159 occorrências (76%) o verbo dicendi e o verbo na citação têm tempos diferentes, enquanto no DI em 160 de 180 ocorrências (89%) o verbo dicendi e o verbo reportado estão no mesmo tempo. Com relação ao tempo verbal, note-se que considerei um número menor de ocorrências para o DD e o DI: 159, em vez de 166, e 180, em vez de 182, respectivamente (cf. Quadro 1). In DD, registrei 7 occorrências em que a citação não é uma oração, mas um SN, (6 exemplos, como em ((18), abaixo) e um pronome interrogativo (por que). Em DI, 2 citações são expressas pelo complementizador que seguido de sim, e de não, como em (19): (18) era o filho dele, muito sujo, aí chamando: < papai >, né? (19) o cara disse que ela podia sair de lá, mas ela disse < que não >. O exemplo (19) é interessante na medida em que apresenta características da citação direta e indireta simultaneamente, isto é, o uso do complementizador que, e o marcador negativo não, que pertence à fala. Quanto ao modo do verbo, embora a grande maioria das citações estejam no indicativo, o subjuntivo ocorre em 9 citações indiretas. A preferência pelo subjuntivo parece estar condicionada pelo verbo, mas alguns verbos admitem

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um plano que ela bolou para enganar o diretor da escola onde ela estudava naquela época. Esse trecho é interessante porque contém citações diretas dentro de uma outra citação direta, introduzida pelo verbo combinei. Observe que todos os verbos dentro da citação estendida estão no futuro imediato:





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ambos os modos. À exceção de dizer (n=5), todas as outras ocorrências de subjuntivo são exigidas pelo significado dos verbos de enunciação pensar e pedir, flexionados no pretérito. Todas essas orações são irrealis, reportando um evento futuro, como em (20) e (21). (20) eu pensei < que eu fosse morrer >, sabe, quando o colégio inteiro correu pro laboratório pra ver o que tinha sido. (21) dá esse almanaque e diz para ele < que aposte em tudo >. Alguns estudos apontaram as diferenças em pronominalização como um critério para distinguir entre DD e DI (MUNRO, 1982, LI, 1986, MAYES, 1990). Em DD, os pronomes pessoais de 1a e 2a pessoas referem-se ao falante original e ao ouvinte original, respectivamente, enquanto o pronome de 3a pessoa não se refere nem ao falante original nem ao ouvinte original. Por outro lado, no DI os pronomes de 1a e 2a pessoas referem-se ao falante e ao ouvinte correntes, respectivamente, enquanto o pronome de 3a pessoa é usado de acordo com a regra geral de pronominalização. Meus dados confirmam o critério de pronominalização, como mostram os seguintes exemplos: (22) aí seu Carrilho disse: < não, ainda não fui atendido >. (23) aí minha tia disse: < o que que você tava conversando com ele >? aí eu disse: < nada, ele tava me contando uma história >. Em (22), a forma verbal fui está flexionada na 1a pessoa do singular, e se refere ao falante original, seu Carrilho. Em (23), você é correferente ao ouvinte, que é o falante corrente, e ele refere-se a uma terceira pessoa, que não é nem o falante original nem o ouvinte original. (24) o médico disse: < que [o acidente] me prejudicou também >. (25) mas você disse < que foi a melhor coisa que aconteceu pra você >, e, você hoje tem muitos amigos, né? (26) o professor quando chegou viu que tinha sido eu que tinha feito o serviço. aí ele disse < que tinha sido ele > fazendo uma experiência. Em (24), o pronome objeto me é correferencial ao falante corrente. O exemplo (25) mostra que o pronome de 2a pessoa você se refere ao ouvinte corrente. Em (26), o pronome ele se refere ao SN o professor, que não é nem o falante nem o ouvinte correntes.

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2 Propriedades intransitivas das orações citadas A afirmação de que verbos dicendi são intransitivos geralmente se baseia no fato de que os complementos desses verbos se comportam diferentemente de outros tipos de argumentos objeto direto. O comportamento desviante das orações reportadas é apresentado como evidência de que a oração introduzida por um verbo de enunciação desempenha alguma função que não a de objeto direto, embora essa função não seja identificada na literatura. Vejamos algumas das propriedades comumente apontadas como indicadoras do caráter intransitivo da citação: marcação de subordinação, entonação e afetamento. Munro (1982) demonstra que em várias línguas a citação relacionada a um verbo dicendi aparece completamente não-marcada, mesmo nos casos em que todos os outros verbos que tomam complementos oracionais requerem marcação subordinativa explícita, ou ao menos a sua possibilidade, como no inglês. Noonan (1985) observa que a função de um complementizador é identificar a entidade com a qual ele se associa como um complemento. Em português, o complementizador que não pode aparecer antes de uma citação direta (27), mas é obrigatório em citações indiretas (28):

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Aqui, novamente, 159 occorrências foram consideradas, em vez de 166, devido ao fato de que no discurso direto 7 citações não são orações, como salientado acima. 3 Novamente, para o discurso indireto 180 occorrências, em vez de 182, foram contadas porque em duas delas a citação não é uma oração, mas o complementizador que seguido por sim e não.

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A citação parece ser predominantemente usada para reportar os enunciados de outro, tanto no discurso direto quanto no indireto. No DD, apenas 10% (16/165) das ocorrências se referem ao falante corrente (isto é, 1a pessoa do singular), enquanto no DI 9% das citações (17/181) referem-se ao falante corrente. Vale notar que no discurso direto, somente quando o sujeito do verbo dicendi está na 1a pessoa do singular, temos o mesmo sujeito na oração citada. Consequentemente, no DD o sujeito da oração principal é diferente do sujeito da oração citada em 90% (142/158) dos casos.2 Quanto ao discurso indireto, temos um quadro um tanto diferente: o sujeito da oração principal é diferente do sujeito da oração citada em 72% (128/179) das ocorrências. Quando o verbo dicendi e a citação têm o mesmo sujeito, ele pode ser 3a pessoa do singular (32/179 = 18%), 1a pessoa do singular (16/179 = 9%), ou mesmo 2a pessoa do singular (apenas uma ocorrência).3





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(27) aí ela disse: < quer sair comigo >?









(28) o médico disse < que ela não podia se machucar >. De fato, o complementizador que pode ser omitido no discurso indireto quando o recipiente do verbo dicendi é introduzido pela preposição para e o verbo da oração citada está no infinitivo, como em (29): (29) e ele não admite você é:: dizer pra ele < não beber numa ocasião dessa >. Logo, a presença de um complementizador antes da citação não pode ser tomada como decisiva para provar o status de objeto direto da citação, a menos que o discurso indireto seja tratado diferentemente do direto com relação a sua natureza gramatical. A entonação é tida como uma fator importante na avaliação da integração de orações, de modo que a ausência de uma quebra entonacional entre duas orações é um indicador confiável de que uma delas está integrada à outra (LEHMAN, 1988). Vários linguistas alegam que a presença de pausa entre um verbo dicendi e a citação é evidência de que a citação não é dependente do verbo. Noonan (1985) observa que quase todas as línguas distinguem discurso direto de indireto por meio de entonação: enquanto tipicamente há uma pausa antes e/ou depois da citação direta, do ponto de vista da entonação a citação indireta é tratada como qualquer outro complemento oracional. Aqui, outra vez, discurso direto se comporta de modo diferente dediscurso indireto. Contudo, o critério da entonação não é útil para decidir sobre o comportamento (in)transitivo da citação no português do Brasil, visto que na fala não apenas é possível uma pausa separando dizer e a citação direta, mas também entre a citação indireta (30), por um lado, e entre qualquer verbo transitivo e seu objeto direto, por outro (31): (30) e disse: < que ela era uma prostituta >. (31) eles descobriram: o local lá, né? Logo, no português do Brasil os verbos dicendi e seus complementos nominais/oracionais podem estar na mesma unidade entonacional, ou podem estar separados, sem nenhuma razão sintática aparente. Na formulação de transitividade de Hopper e Thompson (1980), dois parâmetros caracterizam um objeto altamente transitivo: afetamento e individuação. Hopper (1985) enfatiza a importância do grau de afetamento do

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3 Propriedades transitivas das orações citadas Passemos, agora, às características transitivas que se aplicam aos verbos de enunciação: tipo morfológico de verbo, ordenação e número de argumentos. Munro (1982) destaca as restrições sobre possíveis objetos dos verbos dicendi como uma característica intransitiva da citação. Assim, algumas línguas permitem que dizer tome uma citação como um objeto oracional, mas não um objeto pronominal como ‘it’ ou um SN mais concreto. No português do Brasil, contudo, dizer pode ocorrer tanto com um objeto pronominal (32), quanto com um SN (33), como em: (32) foi a única palavra que eu disse. (33) a gente não disse o nome dela.

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objeto na mensuração da transitividade prototípica. Ele reconhece, além disso, que é impossível atribuir uma propriedade semântica unitária, invariável à relação verbo-objeto, porque alguns objetos não são transformados, e sim criados, pela ação do verbo. Hopper chama esses casos de objetos efetuados. Objetos afetados e efetuados compartilham a propriedade gramatical de ocupar a mesma posição sintática reservada para os objetos, mas eles se distinguem em outros traços gramaticais, como: (i) sua contribuição para o grau de transitividade oracional (objetos efetuados são menos transitivos do que objetos afetados), e (ii) a referencialidade do objeto (objetos efetuados geralmente são nãoreferenciais). De acordo com Hopper, os verbos de enunciação formam o maior grupo de verbos efetuados em inglês e, presumivelmente, em qualquer língua. Há, portanto, uma correlaçao entre Efetuamento e Intransitividade: a oração efetuada será sempre menos transitiva do que a oração afetada. Deste modo, os parâmetros ‘afetamento’ e ‘individuação’ do objeto direto não se aplicam totalmente aos complementos dos verbos dicendi. Por um lado, a citação não tem individuação pois não é própria, animada, concreta, singular, contável e referencial; por outro lado, embora não seja estritamente afetada, a citação é efetuada pelo ato de dizer executado por um sujeito-agente volicional, exibindo, portanto, algum grau de transitividade. Em resumo, não discarto a transitividade dos verbos dicendi; ao contrário, admito que eles não são prototipicamente transitivos, na medida em que um objeto efetuado é menos transitivo do que um afetado.





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Diferenças na ordenação das palavras entre citações e outros objetos oracionais frequentemente são apontadas como uma característica intransitiva dos verbos dicendi: (i) em muitas línguas, orações citadas podem ser precedidas e seguidas simultaneamente pelo verbo dicendi, enquanto outros verbos não permitem esse tipo de construção “emoldurada”; (ii) algumas línguas permitem a extraposição de objetos oracionais, mas não da citação; (iii) nas línguas Yuman, um objeto direto oracional pode aparecer encaixado entre o sujeito e o verbo, enquanto o complemento de dizer nunca aparece nessa posição. O português do Brasil não exibe diferenças de ordenação entre discurso direto, discurso indireto e complementos no infinitivo. Embora rara, a inversão é possível no discurso indireto (34), com SNs objetos de dizer (35) e, em geral, em orações S-V-OD (36): (34) < se fosse mentira >, eu já tinha dito. (35) tudo que eu faço, digo a ela. (36) o filme, eu assisti no cinema. No português do Brasil, os verbos dicendi podem ser usados como um predicado de três argumentos, com o recipiente do ato de fala expresso em um sintagma oblíquo (SPrep) na oração matriz. Essa codificação é possível quer o objeto direto seja um SN (37), ou um complemento oracional (38). (37) você diz uma coisa pra mim, você acha que eu vou acreditar? (38) às vezes eu dizia pra minha mãe < que tinha aula no sábado >. A codificação explícita do destinatário é mais comum no discurso indireto (n=21) do que no discurso direto (apenas uma ocorrência). Em 8 casos, o objeto indireto da oração matriz também desempenha a função de sujeito na oração citada, o que demonstra a integração entre a oração principal e a citação: (39) ele sempre disse pra mim < que eu era muito fria, assim, calculista >. O compartilhamento de elementos – predicados, tempo e aspecto, participantes – entre a oração principal e a citação reflete seu entrelaçamento semântico e sintático (LEHMANN, 1988). Além disso, complementos oracionais objetos que têm o mesmo sujeito que a oração principal são considerados mais dependentes do que orações com sujeitos diferentes. Em meus dados, o discurso

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4 Conclusão A citação parece ser um universal da estrutura cognitiva. Embora a função da citação seja bastante difundida, os recursos gramaticais para a codificação do discurso reportado diferem de uma língua para a outra, conquanto sejam todos marcados. Não apenas a transitividade das construções com dizer varia translinguisticamente, mas também há diferenças com relação aos padrões de discurso reportado que uma língua distingue. Em muitas línguas, as citações de discurso direto não têm o mesmo status que SNs objetos de verbos dicendi, e portanto elas não se enquadram nas categorias de ‘objeto’ ou ‘complemento’. Além disso, várias línguas restringem a complementação de verbos de enunciação ao discurso direto, o que as posiciona longe do centro transitivo (HOPPER, 1985). Como vimos, por um lado, o português do Brasil não distingue sintaticamente entre objetos oracionais e objetos nominais como complementos de verbos dicendi; por outro lado, tanto o discurso direto quanto o indireto são usados. Alguns linguistas alegam que em muitas línguas a fronteira entre o discurso direto e o indireto não é nítida (TANNEN, 1989, ROCHA, 2000). Esse não parece ser o caso no português do Brasil: a distinção entre os dois tipos de citação é sempre clara. Todavia, assim como muitas outras categorias linguísticas, o discurso reportado não é uma entidade discreta. Se adotamos um tratamento gradiente da complementação em termos da integração sintática com o verbo dicendi (GIVÓN, 2001), podemos distribuir os tipos de citação num continuum, com o discurso indireto no ponto mais alto da escala, e o discurso direto no ponto mais baixo. Conforme foi visto, as citações diretas exibem o menor grau de dependência sintática do verbo da oração matriz, representando orações estruturalmente independentes que podem se manter sozinhas. As citações indiretas, por outro lado, não podem ficar sozinhas, porque elas são obrigatoriamente introduzidas por um complementizador que estabelece uma relação de dependência entre as orações matriz e complemento. No caso do

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direto se opõe ao indireto com relação à identidade de tempo. No DD, em 24% das ocorrências a oração principal e a citação estão no mesmo tempo, enquanto no DI a percentagem sobe para 89%. Quanto à identidade do sujeito, contudo, ambos os tipos de discurso exibem o mesmo padrão: no DD, os sujeitos da oração principal e da citação são idênticos em 10% dos casos, enquanto no DI a percentagem de sujeitos idênticos é 28%. Resulta, então, que nenhum desses parâmetros é útil para determinar a transitividade dos verbos dicendi no PB, se quisermos propor um tratamento unificado para o discurso direto e o indireto.





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discurso reportado, então, o critério de transitividade não corresponde a uma divisão binária clara: o discurso direto e o indireto ocupam cada extremo da escala, com vários pontos intermediários entre eles, representados pelas formas de citação com graus variados de integração. No nível semântico, todavia, ambas as citações são estreitamente relacionadas ao verbo dicendi da oração matriz. Os fatos apresentados evidenciam que no português do Brasil, embora a citação não seja um objeto direto prototípico, ela é efetuada pelo ato de dizer. Em outras palavras, os verbos dicendi criam seu objeto, que são produzidos pelo próprio dizer. Nesse sentido, os verbos dicendi projetam o que está por vir, de tal modo que a citação pode ser adequadamente considerada como o complemento objeto do verbo da matriz. Se o termo ‘complemento’ implica completude (PAYNE, 1997), um verbo de enunciação não expressa uma proposição completa até que a citação seja produzida. Desse modo, mantenho a transitividade como uma propriedade dos verbos dicendi, sob a consideração de que a citação acrescenta algo ao significado do predicado. Em resumo, os verbos dicendi no português do Brasil exibem mais características transitivas do que intransitivas.

Símbolos de transcrição . entonação final prototípica ? entonação final interrogativa , entonação de continuação : pausa < > discurso reportado / palavra truncada :: alongamento

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Maria Cristina de Assis Pinto Fonseca*





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PROCEDIMENTOS DE REFORMULAÇÃO DO TEXTO ORAL ABSTRA CT ABSTRACT CT:: This article concerns the analysis of some textual reformulation strategies used by participants in an interview with a “rezador”. In this analysis, the procedures of reformulation employed by speakers are emphasized and exemplified based on some theoretical assumptions from Conversational Analysis, an approach which gives priority to real data collected in their natural context of occurrence. KEY -W ORDS: Conversational analysis; paraphrase; correction. KEY-W -WORDS:

1 Introdução O objetivo deste trabalho é abordar, a partir da análise de uma entrevista com um rezador popular, algumas estratégias de reformulação textual utilizadas pelos participantes. O encontro teve o objetivo de promover rituais de cura, através de rezas populares tradicionais. Após o evento, procedeu-se a entrevista, com o intuito de obter algumas informações acerca das rezas. Encontram-se presentes à gravação, além da documentadora, que sugeriu o tema da conversa, e dos interlocutores, mais duas pessoas que, embora não se manifestem, fazem parte da cena da conversação, o que é comprovado em determinados momentos da entrevista. O segmento transcrito, com duração de 38 minutos, aproxima-se de uma conversação espontânea, apesar de o objetivo do encontro ter sido sugerido previamente e de ter sido autorizada a gravação. Os interlocutores estão em relação de diálogo. Alternam-se nos papéis de falante e de ouvinte uma mulher (Locutor 1) de cinqüenta e três anos, empresária, com segundo grau, natural da Paraíba e residente no Ceará, e um homem (Locutor 2) de oitenta e dois anos, vigia aposentado, rezador popular, primeiro grau incompleto, natural de Pernambuco, residente na Paraíba. Os dados relacionados aos interlocutores (idade, sexo, profissão etc.) mostram que há um desequilíbrio de papéis. No entanto, essa relação assimétrica (MARCUSCHI, 1986, p.16) explica-se mais pelo caráter da * Universidade Federal da Paraíba.







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entrevista do que pelas diferenças de condições sócio-econômicas e culturais. O tema da conversa, a reza popular, é bastante familiar a L2; o entrevistado tem competência para falar sobre o assunto, uma vez que é rezador profissional bem conceituado na comunidade em que se encontra. A perspectiva adotada é a Análise da Conversação, abordagem que prioriza os dados reais em seu contexto natural de ocorrência. Alguns conceitos teóricos acerca dos procedimentos de reformulação serão destacados e exemplificados, embora não seja de maneira exaustiva, nem do ponto de vista teórico, nem na análise dos elementos.

2 A formulação do texto Neste estudo, a linguagem é entendida como uma atividade não apenas verbal, mas também sociocognitiva, em que os interlocutores constroem cooperativamente um texto, utilizando, além de sua competência lingüística, sua competência discursiva. Dessa forma, privilegia-se o estudo da linguagem em situações concretas de interação. Entende-se que os participantes desempenham papéis, de acordo com regras situacionais e institucionais por eles interiorizadas, buscando adequar seu comportamento às regras da sociedade em que se inserem, para que possam compreender e serem compreendidos. Para tanto, é necessário que eles sejam capazes de fazer escolhas lingüísticas e discursivas apropriadas e, assim, produzirem textos orais, de forma que se possa reconhecer a ação desempenhada pelo enunciado do interlocutor e responder de modo apropriado e coerente. Numa conversação, apenas a competência gramatical não basta: o participante precisa saber o que se espera dele e construir seu enunciado de forma que o interlocutor possa reconhecer sua intenção comunicativa. Ou, no dizer de Hilgert (1993, p.108): Construir lingüisticamente o enunciado ou, no sentido mais amplo, o texto, significa dar forma e organização lingüística a um conteúdo, a uma idéia, enfim, a uma intenção comunicativa, o que permite dizer que, na construção lingüística do enunciado, desenvolvem-se atividades de formulação.

Fávero et al. (1999, p. 55), citando Antos, lembram que formular um texto significa deixar marcas, traços no texto que possibilitem a sua compreensão. Na formulação de um texto oral, diferentemente do que ocorre com o texto escrito, as marcas de seu processo de organização são perfeitamente visíveis. Enquanto na escrita a elaboração e a produção discursivas podem ser

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(1) L1 L2

é porque ela deve ta carregada, né? eu já rezei uma aqui que caiu uma vez o marido dela tava acolá eu chamei ele disse ...ai eu disse a ele...aí e e ele disse... quando ela ficou boa suou demais levantou e disse... e e e o senhor não vai rezar mais não? eu disse rezo mas ela vai de novo... não cai não ... então tá certo/ oxente... cheguei no meio da oração (...)

Esse trecho inicia-se com uma sobreposição de vozes. L1 interrompe seu turno e L2 começa sua narrativa. O fluxo é interrompido no momento em que L2 sente dificuldade em encontrar a seqüência correta dos acontecimentos: hesita, escolhendo entre “ele disse” ou “eu disse”, hesita novamente, corrigese, segue a formulação com dificuldade, gaguejando, até finalizar a narrativa e passar a explicar como evita que as pessoas caiam durante a reza. Esta seqüência apresenta-se com descontinuidades que denunciam problemas de formulação detectados pelo próprio falante antes de formular. (2) L2 eu vou lhe contar uma... eu rezo mordida de casca... mordida de jararaca...faz muito

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dissociadas, na fala, elaboração e produção ocorrem explicitamente, simultaneamente, porque aparecem no próprio momento da interação ou, como diz Marcuschi (1986, p. 28), “no tempo real”. Disso resulta que incidentes de produção, pistas da elaboração textual como repetições, paráfrases e correções surgem na conversação. Um texto falado apresenta-se cheio de descontinuidades. Schegloff, Jefferson e Sacks (apud HIGERT, 1993, p.108), lembram que, tanto na ocorrência de erros e falhas quanto na busca de termos ou palavras adequadas é possível identificar problemas. O próprio falante, ou seu interlocutor, ao detectar algum tipo de problema no seu enunciado, é levado a reformulá-lo, a fim de garantir a compreensão. Utilizando uma terminologia sugerida por Koch e Oesterreicher, Hilgert (1993: p.108) distingue os problemas prospectivos, os que são detectados pelos falantes antes mesmo de os formular, e retrospectivos, os que só são percebidos quando já estão lingüisticamente inseridos na formulação do texto. Os seguintes segmentos mostram alguns exemplos de problemas prospectivos e retrospectivos:





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Nesse caso, o locutor percebe o erro antes de completar seu enunciado. Interrompe a formulação e a refaz usando o termo que corresponde ao que pretendia. Outros problemas são detectados pelo falante ou pelo interlocutor depois de o enunciado formulado. Nesses casos, ocorrem as atividades de reformulação, como nos fragmentos seguintes: (3) L2

(...) aí diz que tenho que limitar...rezar uma quantidade...

Em (3), o verbo limitar parece ser sentido pelo falante não suficientemente explícito, o que poderia acarretar problemas de compreensão. Então interrompe o enunciado, e retoma-o em forma de paráfrase, “rezar uma quantidade”, buscando maior explicitação. (4) L1 [ é mas qual é a a a proteção que o senhor... acha que tem que...se protege... como é que o senhor se protege? Nesse fragmento, L1, com o intuito de ser bem entendida pelo interlocutor, reformula seu enunciado original, buscando uma forma adequada para expressar seu pensamento.

3 Atividades de reformulação Koch (1997, p. 68) apresenta dois tipos de reformulação: a retórica e a saneadora. A retórica manifesta-se através de repetições e parafraseamentos e tem como função principal reforçar a argumentação e ainda facilitar a compreensão por meio da desaceleração do ritmo da fala. A saneadora realizase por meio de correções ou reparos e de repetições ou paráfrases saneadoras. As correções nascem da tentativa de o locutor solucionar, após a materialização de um segmento, dificuldades detectadas por ele mesmo ou pelo parceiro.

3.1 A paráfrase A paráfrase é, segundo Hilgert (1993, p. 114), dentro do processo de construção do texto, uma atividade lingüística de

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Caracteriza-a o tipo de relação que ela mantém com o seu enunciado de origem: uma relação de equivalência semântica, isto é, a paráfrase retoma total ou parcialmente o conteúdo de um texto-fonte, num texto-derivado. Muitas vezes, o texto original é ampliado quando o locutor pretende generalizar o enunciado de origem. Em outros casos, a paráfrase serve para resumir, limitar os traços semânticos do texto original. Entre as diversas funções da paráfrase, segundo Fávero et al (1999 :60), estão principalmente “garantir a intercompreensão” e “contribuir para a coesão do texto, enquanto articuladora de informações novas e antigas”. São exemplos de paráfrases encontrados no corpus pesquisados: (5) L1 [ o senhor tem uma proteção muito grande, né? L2 é mas se eu não num coidar ...se eu não tiver cuidado... aí cai (6) L1 L2

(7) L2

[ é mas qual é a a a proteção que o senhor... acha que tem que...se protege/ como é que o senhor se protege? eu acho que a minha proteção que eu tenho é porque eu confio muito em Deus

(...) pequeno assim... dor de ventrusidade... dor reumática...essas rezas tudo pequininim berruga assim sinal hérnia eu peguei a/faz pouco tempo,...comecei agora há pouco... mas essas coisinhas eu rezava pouquinho mas adespois desses problema que eu recebi (...)

No caso seguinte, o locutor refaz seu enunciado em outro turno, enfatizando a importância das rezas em sua vida: substitui “não durmo não”por “não durmo de jeito nenhum” . (8 ) L2

sabe por quê? porque se eu não rezar eu eu tenho eu tenho duas oração que se eu não rezar de noite eu também não durmo não

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reformulação, por meio da qual se estabelece entre um enunciado de origem e um enunciado reformulador uma relação de equivalência semântica, responsável por deslocamentos de sentidos que impulsionam a progressividade textual.





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Doc L1 L2

e é? hum durmo de jeito nenhum/ e então eu tenho uma proteção de uma mulherzinha que se apresenta eu todo dia...( incompreensível) às vezes ela vem nesse portão aí... a (...)

3.2 A correção Outro procedimento de reformulação, característico da conversação, é a correção, um “procedimento de reelaboração do discurso que visa a consertar seus “erros” (BARROS, 1993:136). Barros (1993: 139) cita um dos mais conhecidos trabalhos acerca das correções, o de E. Schegloff, G. Jefferson e H. Sacks – S/J/S – que tem como critério o modelo elementar da conversação em sistema de turnos de fala. Neste modelo, distinguem-se dois tipos de correção, a reparação e a correção propriamente dita. 3.2.1 A reparação Por reparação entende-se a correção de uma infração conversacional: os interlocutores cometem erros no sistema de tomada de turnos, desobedecem às regras e essas falhas são reparadas. Na conversação, a regra geral básica estabelece que deve haver pelo menos uma troca de falante. Quando um dos participantes não cede a palavra aos demais e fala o tempo todo ele viola essa regra e pode sofrer reparações, ou ele mesmo corrigir-se. (9) L1 L2 L1 L2 L1 L2 L1 L2 L1 L2 L1

só se o senhor...é ... eu vou ficar curada... a senhora ...sabe... ãn sabe onde eu vou ficar curada... e o senhor curou uma pessoa de Fortaleza [sabe onde é Rondônia? sei que divide com o estrangeiro? sim já rezei gente daqui lá... é eu tem rezado gente de São Paulo, de Rio, de Natal de todo canto pois é o senhor rezou agora uma de Fortaleza sabia?

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3.2.2 A correção propriamente dita São chamadas correções propriamente ditas, ou simplesmente correções, aquelas que não se relacionam com as violações às regras conversacionais. (10) L2 só só porque eu tem medo dela demais...e nojo... num é tanto medo como é nojo de cobra... uma cobra pode tá morta e eu não boto minha mão em cima por caridade não...e às vezes diz que quem reza mordida não pode matar a cobra né? Nesse segmento, L2 corrige-se, substituindo a palavra medo por nojo, que não considera adequada para expressar seu sentimento diante das cobras. Observe-se que ele continua a formulação enfatizando a correção. Marcuschi (1986, p. 29) apresenta a seguinte tipologia geral para o mecanismo de correção estabelecida por Schegloff, Jefferson e Sacks: (a) autocorreção auto-iniciada: é a correção feita pelo próprio falante logo após a falha; (b) autocorreção iniciada pelo outro: é a correção feita pelo falante, mas estimulada pelo seu parceiro ou por outro; (c) correção pelo outro e auto-iniciada: o falante inicia a correção, mas quem a faz é o parceiro; (d) correção pelo outro e iniciada pelo outro: o falante comete a falha e quem corrige é o parceiro.

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Na conversação em apreço, há inúmeras sobreposições de vozes, desobedecendo à regra de falar um de cada vez. Essas violações no corpus analisado são reparadas apenas implicitamente, em forma de tomada ou devolução de turno, de sobreposição de voz ou de formulação de novas perguntas. Este fato explica-se pelo caráter da conversação – uma entrevista, e de L2 ter a preferência, em virtude de ser entrevistado, como é ilustrado no segmento acima. Há de se considerar que as regras e técnicas variam de acordo com o modelo cultural e com o tipo de conversação, uma vez que o estudo da reparação está diretamente relacionado ao da organização da conversação que, por sua vez, diferencia-se nas diversas culturas, embora existam também normas universais.





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Segundo diversos autores, entre eles Sacks, Jefferson e Schegloff (1977), Marcuschi (1986), a preferência na conversação decai na autocorreção autoiniciada. O falante, ao autocorrigir-se, procura evitar as conseqüências do seu erro. No corpus analisado a freqüência maior foi desse tipo de correção. Essa predominância se justifica também pelo fato de L2 manter o turno por mais tempo, principalmente porque responde as perguntas do interlocutor. Vejam-se os trechos seguintes: (12) L1 [ é é é por isso que eu perguntei... se o senhor reza[va ... num é? L2 [ataca minha vista tem vez que ataca de eu ficar cego/ficar quase cego/ ( muitas vezes) (13) L2

(14) L2

[quatro oração que eu tinha ...menina tinha sido há dez anos aí eu disse assim com aquelas oração que a menina ensinou você pode rezar qualquer problema na sua vida aí de lá pra cá eu fiquei rezando/ num fiquei rezando ninguém não/ fiquei guardando assim no pensamento/ com mais um bocado de ano mas eu sempre me lembrava/ mas (...)

eu rezo qualquer PROblema na vida ... porque ele ...quando me ensinou isso... quando ela me ensinou ... a pessoa que me ensino...i/isso foi um rapaz que me ensinou/ ele fazia dez anos que tinha morrido... ele disse assim... com essas oração... que você sabe/eu só sabia de quatro oração...aí então... rezando pra curar engasgo que é fácil demais... tomar sangue de palavra é bem pouquinho...esses aí eu sabia... dor de (...)

Ainda segundo os autores, em segundo e terceiro lugares estão respectivamente a autocorreção iniciada pelo outro e a correção feita e iniciada pelo outro. No corpus examinado foram encontrados casos em que o interlocutor, não entendendo o que foi dito, demonstra sua dificuldade através de repetições ou da expressão “o quê?”, com nos casos seguintes: (15) L2

(...) da serra ...aí assim coitado só faltava morrer... veio aqui ...aí eu... mandei ele ...arrumar o remédio... ele arrumou... fiz ficou BONzinho...e eu sofro de gastrite e não tem coragem de tomar... porque é FEdorento demais... banha de cágado

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(16) L1

sei... o senhor reza quantas vezes ( incompreensível) quantas vezes o senhor reza assim por dia? L2 quantas pessoas? L1 sim L2 ... eu num conto não mas às vezes cheguei a rezar aqui cinqüenta e seis pessoas... (17) L2 L1 L2 L1 L2 L1 L2

aí você sabe... agora você não sabe dizer foi fulano poi.. ã um am no no meu caso o senhor não rezou mau olhado não...né? o senhor rezou... em você? sim... eu rezei o corpo geral... porque eu rezo assim rezo geral... fechou, né?... fechou geral ( )

Na conversação em exame não aparecem heterocorreções, características de conversações muito polêmicas, o que não é esse caso. As correções podem ocorrer no mesmo turno ou em turnos diferentes. Marcuschi (1986, p. 32), citando Streek, explica a urgência da correção no mesmo turno por uma motivação estrutural ou pressão estrutural. Segundo ele, o falante prefere truncar sua fala a perder a oportunidade de reparar um erro, por temer passar a chance de reparar um erro. (18) L2

(19) L1

(...) não pode nem pisar? tem um cara aqui com... dois...o pai e o filho... cada um tinha oito...em cada um pé quatro... aí eu rezei... rezei ele ...rezei assim três sextas-feiras seguida...eu ..(....)

de repente sentiu isso

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é o quê? daquele cágado preto BAnha de cágado preto ... da d’água... ela disse você pegue... arranje a banha de (...)



L1 L2 L2





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L2









(20) L1 L2

foi eu tomei... não tomei e andei ...assim como daqui ali naquela esquina... tinha um passador.. quando eu subi que peguei aí recebi esse problema... dormente e fiquei dormente... três dias... com três dias voltei pelo mesmo caminho quando peguei no (...)

aí o senhor chegou a a a ... ...(...) com aquelas oração que a menina ensinou você pode rezar qualquer problema na sua vida aí de lá pra cá eu fiquei rezando/ num fiquei rezando ninguém não/ fiquei guardando assim no pensamento/ com mais um bocado de ano mas eu sempre me lembrava (...)

Em alguns casos, a correção é parcial, confundindo-se com a paráfrase. No trecho seguinte, L1 faz a pergunta em um turno, mas L2 não ouviu, em virtude de estar falando. Repete a pergunta em outro turno, logo que tem a oportunidade, mas mesmo assim sua pergunta não é compreendida, provocando diversas reelaborações do enunciado, o que faz ver o caráter interativo e colaborativo da correção. (21) L1 L2 L1 L2 L1 L2 L1 L2 L1 L2 L1

[o senhor tem visão?] [quando eu vou pros hospital eu rezo eles num quarto separado(...) tá certo, tem que ser um quarto separado né? [ lá é bom porque na minha casa não tem cômodo nem eu posso fazer é ...é... quando o senhor reza... nem interesso mais fazer quando o senhor reza o senhor tem visão não? ver o quê? visão... o senhor consegue ver a a a vibração da pessoa?... [ às vezes tem tem muitas vezes eu vejo ( incompreensível )] o senhor vê o espírito que acompanha a pessoa?

4 Tipos de erros Há vários tipos de erros e diversos mecanismos são usados para reparálos. Pessoa (1990, p. 23) distingue três blocos de erros, de acordo com o nível

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(22) L2 tô ... dentro do hospital um DOEnte dentro desse hospital eu não gosto de rezar no hospital que eu rezo em qualquer hospital tô eu fui entrevistado rezo em todos eles mas ... eu não gosto de rezar em hospital não porque quando eu vou rezar um doente aí eu rezo ao

5 Marcadores e padrões lingüísticos de correção Os principais marcadores da correção, segundo Barros e Melo (1990) são a pausa, prolongamento de vogais, repetição, truncamento ou interrupção, expressões verbais estereotipadas, mudança na curva entonacional, aceleração do ritmo. Acrescentam ainda marcadores paralingüísticos ou não-verbais como o olhar, os gestos, os movimentos da cabeça, entre outros. Todos esses procedimentos funcionam para marcar dúvidas ou dificuldades em relação à continuidade do enunciado, ao mesmo tempo em que garantem tempo para que o falante reformule seu discurso. Eis, a seguir, alguns procedimentos lingüísticos empregados nas atividades de correção, apontados na literatura e encontrados no texto analisado: (23) L2

L1 (24) L2

foi ...eu me acordei com uma azia infe:liz...comi... um pedaço de uma galinha muito gorda ali... aí fui dormir mas quando acordei, mulher, foi morrendo... morrendo não, com aquela GAStura ...a a senhora já sofreu azia? [é fica ruim ter azia... é muito ruim]

[mas quando eu rezava assim por lista digamos eu pegava sua lista né rezava hoje /que eu tenho MUItas ali/ um caderno assim ..um ãn eu acho que eu acho tenho bem vinte ... un ..não vinte ou trinta (...)

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de descrição lingüística reconhecido: os fonético-fonológicos, morfossintáticos e semântico-pragmáticos. Não foram encontrados no corpus erros do tipo fonético-fonológico nem morfossintáticos. Predominam erros que podem ser vistos principalmente como impropriedades nas informações.





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6 Funções da correção









Uma das principais funções das correções é garantir a boa compreensão entre os participantes da conversação, através da reformulação de enunciados inadequados. Barros e Melo (1990, p. 30) apresentam as funções da correção organizadas em três grandes blocos: a) funções cognitivo-informativas: a correção tem o objeto de levar o ouvinte a bem compreender as informações objetivas do falante; b) funções pragmáticas ou enunciativas: a correção procura levar o ouvinte a compreender o falante, suas opiniões e sentimentos e seu papel social; c) funções interacionais: a correção tenciona fazer o ouvinte reconhecer as intenções do falante, no que toca às relações intersubjetivas e aos envolvimentos emocionais.

7 Considerações finais Neste estudo, objetivou-se mostrar alguns procedimentos de reformulação textual, a partir de uma entrevista feita com um rezador popular, voltando-se principalmente para uma aplicação da teoria sobre os procedimentos de reformulação, observados no corpus analisado, com destaque maior para paráfrases e correções. Observou-se que o texto falado apresenta problemas de formulação que podem ser percebidos através de hesitações ou correções e paráfrases. As atividades de formulação, que acontecem em textos falados ou escritos, desempenham uma importante função na construção desses textos. Elas ocorrem de forma distinta nessas duas modalidades da língua: no texto escrito, as inadequações podem ser refeitas de maneira que o leitor só recebe a versão final do texto, enquanto no texto falado, elaboração e produção “coincidem no eixo temporal”, deixando marcas que permitem detectar os procedimentos usados pelo falante, a fim de conseguir atingir seu objetivo comunicacional. A partir dessa análise, foi possível observar que esses mecanismos de reformulação desempenham uma importante função na construção do texto oral, no momento em que permite maior interação entre os participantes de uma conversação.

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BARROS, Diana Luz Pessoa de, e MELO, Zilda Maria Zapparoli Castro. Procedimentos e funções da correção na conversação. In: PRETI, Dino e URBANO, Hudinilson (org.). A linguagem falada culta na cidade de São Paulo: materiais para seu estudo. Vol. IV. São Paulo, T.A . Queiroz / FAPESP, 1990. BARROS, Diana Luz Pessoa de. Procedimentos de reformulação: a correção. O processo interacional. IN: Preti, Dino (org.). Análise de textos orais. vol. 1, 2 ed. São Paulo: FFLCH/USP, 1993. BRAIT, Beth. O processo interacional. In: Preti, Dino (org.). Análise de textos orais. vol. 1, 2 ed. São Paulo: FFLCH/USP, 1993. FÁVERO, Leonor L., ANDRADE, Maria Lúcia da Cunha V. de Oliveira, AQUINO, Zilda Gaspar Oliveira de. Oralidade e escrita: perspectivas para o ensino de língua materna. São Paulo: Cortez, 1999. HILGERT, Urbano. Procedimentos de reformulação: a paráfrase. In: Preti, Dino (org.). Análise de textos orais. vol. 1, 2 ed. São Paulo: FFLCH/USP, 1993. KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. O texto e a construção dos sentidos. São Paulo: Contexto, 1997. MARCUSCHI, Luiz Antônio. Análise da Conversação. São Paulo: Ática, 1986.





Referências





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Maridelma La per uta* Laper





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SUJEIT O NUL O NNAA AQUISIÇÃO: UM PPARÂMETR ARÂMETR O EM SUJEITO NULO ARÂMETRO MUDANÇA – SUJEITO PREENCHIDO NA APRENDIZAGEM: A ETERN ANÇA ETERNAA TENT TENTAATIV TIVAA DE MUD MUDANÇA ABSTRA CT ABSTRACT CT:: The aim of this paper is to explain away the research entitled “The null subject: not more acquired, but supposing learned”, that has been developing by me at UNIOESTE – Universidade Estadual do Oeste do Paraná – Foz do Iguaçu – Brasil. This is a research that compares data, about syntactic subject, in language acquisition (of a 2 years old child) and in mother language learning of school age children. The purpose of this research is to argue my initial hypothesis: the acquired subject by the children is not null. And to inquire: “what does the school do with this children non-prodrop parameters?” KEY -W ORDS KEY-W -WORDS ORDS: Null subject; principles and parameters; language acquisition.

1 O Parâmetro do Sujeito Nulo Se considerarmos que as línguas naturais são um “dote” do ser humano e apenas dele e que todos os seres humanos possuem um mesmo “dote” lingüístico, poderíamos supor que todas as línguas são iguais. Entretanto, sabemos que essa suposição não é verdadeira. Há diferenças entre as línguas naturais de todo o mundo que não se restringem apenas a diferenças lexicais, fonéticas ou fonológicas, mas também, a diferenças na organização das palavras nas sentenças, na sintaxe. Como, então, explicar esse aparente paradoxo: todos os seres humanos possuem um mesmo aparato lingüístico (concepção inatista da aquisição da linguagem) e, ao mesmo tempo, determinados grupos se utilizam de códigos lingüísticos e de estruturas sintáticas diferentes para sua comunicação e interação? Como se sabe, a Teoria Gerativa traz uma alternativa para essa questão. São as definições de “princípios e parâmetros”. Desde 1981, quando Chomsky propôs um modelo de gramática baseado em princípios e parâmetros, os estudos de variação e mudança lingüísticas, no âmbito da Teoria Gerativa, tomaram novos rumos. As línguas naturais, então, passaram a ser analisadas * Docente do Centro de Educação e Letras da UNIOESTE – Universidade Estadual do Oeste do Paraná – Campus Foz do Iguaçu.







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em termos de Princípios Universais - responsáveis pelo que há de semelhante entre as línguas – e Parâmetros – responsáveis pela variação, isto é, pelo que as diferencia. No que se refere ao estudo dos Parâmetros, um dos fenômenos que têm sido estudados é a possibilidade de algumas línguas apresentarem o sujeito nulo. Tal possibilidade diferencia, por exemplo, o Italiano, que o permite, do Inglês, que não o permite. O parâmetro responsável por esse tipo de diferença entre as línguas é o famoso e discutido Parâmetro do Sujeito Nulo (CHOMSKY, 1981). Tem sido proposto como tendo sua particularidade básica definida em termos das propriedades flexionais das línguas: em línguas, como o Italiano, que têm o sistema flexional “rico”, o elemento agreement (concordância) permite a omissão do sujeito; línguas com agr “pobre”, caso em que se insere o Inglês, a omissão do sujeito não é permitida1. Segundo Chomsky (1981), essa correlação com a flexão visível não precisa ser exata2, mas há alguma propriedade abstrata de agr correlacionada mais ou menos com a morfologia visível, que distingue línguas pro-drop de não-pro-drop. Com relação ao Português do Brasil, o que muitas pesquisas (por exemplo, Duarte (1995)) têm mostrado é que ele está deixando de licenciar o sujeito nulo referencial. Isso tem sido relacionado à redução na riqueza flexional sofrida por essa língua. No entanto, tem-se verificado na escrita um uso ainda significativo de sujeitos pronominais nulos (MAGALHÃES, 2000).

2 Sujeito Nulo? Onde? A partir do contato com a tese de doutorado de Duarte (1995), valorizando o conteúdo de sua pesquisa e de outros que também têm-se interessado pela pronominalização do sujeito (FERREIRA, 2000), elaborei minha primeira pesquisa realizada com esse objeto de estudo (LAPERUTA, 2002) e verifiquei, dentro do modelo Sociolingüístico Variacionista, a presença ou ausência do sujeito nulo nas orações finitas, de um corpus composto por entrevistas de falantes da cidade de Londrina (no Norte do Paraná), para saber se, também 1

2

Há ainda outras hipóteses (não abordadas aqui) a respeito da possibilidade que certas línguas têm de apresentarem categorias vazias (neste caso, o sujeito nulo) sem marcas de concordância, como o caso do Chinês (HUANG, 1982). Chomsky faz essa observação, baseado no fato de que há línguas que apresentam um sistema flexional misto, permitindo o apagamento do sujeito em algumas construções, mas não em outras (Hebraico, Irlandês).

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O pronome tu, de 2a. pessoa, não é utilizado na região, por isso, foi considerado apenas o você como pronome pessoal de 2a. pessoa. 4 Os exemplos foram retirados do corpus do projeto VARSUL (Variação Lingüística do Sul do País) e a abreviatura PrLd significa que são entrevistas do Paraná, da cidade de Londrina. Os números, na seqüência, indicam a entrevista de que foram extraídos (1 a 24). 5 Spec de IP – na linguagem da teoria gerativa, significa a categoria na qual se insere o sujeito.

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naquela comunidade, a posição de sujeito tem sido preenchida por pronome. Considerava ter um resultado que me permitisse afirmar que, também ali, o português está passando por um processo de mudança no que se refere à sua sintaxe pronominal e, além disso, que a realização foneticamente nula ou plena desse sujeito associa-se a contextos lingüísticos como, por exemplo, pessoa gramatical e tipo de referência expressos pelo sujeito. Houve um resultado bastante satisfatório se comparado às hipóteses que eu havia levantado. Quase todos os fatores lingüísticos e extralingüísticos corresponderam a outras pesquisas já realizadas sobre parâmetro pro-drop. Através das análises da variável pessoa gramatical, pude comprovar os resultados, uma vez que, no cômputo geral, a segunda pessoa aparece como a que possui maiores índices de sujeito pleno: “Eu sei que você3 é de Curitiba, mas você não torce pro Coritiba né?” (Pr Ld 19).4 E a terceira pessoa, os menores. Considerei a hipótese de que a existência de um referente externo reforça os traços enfraquecidos por agr, como pode ser observado em outras pesquisas sobre o mesmo objeto (LIRA, 1982; TARALLO, 1985; DUARTE, 1995; MAGALHÃES, 2000). “Reforça” esses traços, mas não tem sido suficiente para o aparecimento do sujeito nulo, uma vez que mesmo as terceiras pessoas parecem estar precisando de Spec de IP5 preenchido (MAGALHÃES, 2000).





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Gráfico 1: procentagem de sujeito nulo por pessoa gramatical

É possível observar, pelo gráfico acima, que os menores índices de sujeito nulo aparecem na 2a. pessoa (você) e os maiores aparecem nas 3a. pessoas (mesmo assim, com percentuais abaixo de 50%). A única exceção refere-se à 3ª pessoa arbitrária, que ainda resiste com mais de 50% de sujeito nulo em orações finitas: “É muda. É muda. (cv6) Planta, né? Faz-se a cova, (cv) planta ali, tá? (cv) Aduba” (Pr Ld 01)). Galves (2001), que discorre sobre a interpretação das categorias vazias, embora afirme que “a interpretação determinada ou indeterminada do sujeito nulo depende do contexto...” (p. 48), demonstra, com exemplos, que são vários os casos em que o sujeito nulo em PB recebe interpretação indeterminada. Além disso, acredito que a inclusão, na amostra, das orações coordenadas não iniciais: “Sabe quando você saí às seis horas e (cv) chega só às cinco da tarde?... (PrLd21), e das orações que se fazem basicamente em português com sujeito nulo e verbo: E: “Você lembra como é que foi? F: (cv) Lembro” (PrLd15) tenham “enviesado” o resultado. 6

cv – categoria vazia. Neste caso, sujeito nulo.

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“... você vai na igreja, você ora, você pede a palavra, você sente de ficar com Deus” (PrLd03). “Ela mora em Curitiba, ela está lá agora, sabe? Morando lá”. (PrLd 02). “A gente saía no sábado e a gente chegava lá no domingo à tarde. Daí a gente voltava pra casa, né?” (PrLd 07). A resistência do pretérito perfeito à mudança mais que os outros tempos (inclusive nas orações coordenadas não iniciais), a destacada correlação entre preeenchimento e orações subordinadas, especificamente as relativas e a quase irrelevância da transitividade para o preenchimento do sujeito comprovam que os falantes londrinenses possuem a mesma tendência à perda da propriedade de sujeito nulo, observada por Duarte (1995), em outra variedade geográfica do português brasileiro. O fator animacidade do referente do sujeito de 3ª pessoa também mostrou que o sujeito nulo é preferido quando o referente for [-animado], como esperado: “...então acho que (falando da novela) (ec) não terminou não, viu? Não é possível terminar assim, então, (ec) não teve fim, sabe?” (PrLd 02) Mas com um resultado interessante: o fato de ter apenas 23% de sujeitos nulos com o grupo que possui 2º grau completo e esse grupo ser, em sua maioria, composto de falantes do grupo etário mais jovem mostra que (pelo menos com relação a essa variante) existe uma evidência de mudança.

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Inclusão essa que não significa “erro”, mas surge a partir de uma noção intuitiva de indícios de mudança também nesses contextos, tidos como ambientes categóricos de sujeito nulo. Sobre essa “noção intuitiva”, posso afirmar, baseada nos dados estatísticos, que se trata de algo mais do que uma simples intuição. Como já foi dito, se, até em línguas não pro-drop, as orações coordenadas não iniciais com sujeito correferente possuem sujeito nulo, línguas pro-drop, como “ainda” é considerado o PB, deveriam, obrigatoriamente, ter sujeito nulo nessas orações. Entretanto, observei que, do total dos sintagmas (inseridos em coordenadas não iniciais) analisados, 46% têm sujeito pleno. Observe os exemplos:





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O sujeito duplo é, sem dúvida, um dos mais fortes indícios de mudança:









“É..., o meu cunhado, ele ia namorar a minha irmã, quando tudo aconteceu” (PrLd 13). Segundo Kato (1999), a mudança no paradigma flexional tornou o agr do PB [-pronominal], “não sendo mais possível licenciar o sujeito nulo via morfologia verbal”. Isso fez com que surgisse um paradigma de “pronomes fracos” visíveis no PB que passaram a ser duplicados pelos nominais fortes, dando origem à duplicação do sujeito. O fator faixa etária, porém, contradisse minhas hipóteses, uma vez que o grupo de falantes mais velhos, no cômputo geral, utilizou-se mais de sujeito pleno do que o grupo dos mais jovens. As demais pesquisas tinham demonstrado que os falantes mais velhos preenchem menos o sujeito que os mais jovens, o que, verdadeiramente, denotaria mudança lingüística.

3 A Escolaridade Entretanto, essa contradição cai por terra se se considera sua correlação com a variável escolaridade. Para Magalhães (2000), a escola é o grande contribuinte para que o falante “aprenda” sujeito nulo: ele adquire a língua materna com sujeito pleno e aprende que não deve preencher essa categoria, quando de sua escolarização. O que também foi observado é que os falantes mais velhos possuem menos escolarização do que os mais jovens e, por esse motivo, pôde-se inferir que essa escolarização seria a responsável pela categoria vazia na posição do sujeito. Os resultados referentes ao fator sexo também, aparentemente, mostraram-se incoerentes, uma vez que, como pode ser comprovado em pesquisas sociolingüísticas (OLIVEIRA; SCHEERE, 1996), são as mulheres que tomam a frente da mudança e, portanto, deveriam ser elas as maiores responsáveis pelo aparecimento do sujeito pleno. Porém, uma vez considerando que as mulheres são mais conservadoras em relação a formas mais prestigiadas (PAIVA, 1996) e conjeturando que a variante sujeito nulo é prestigiada, uma vez que é aprendida na escola, não vejo incoerência; pelo contrário, encontro uma justificativa para esse resultado. Considerando a relevância desses resultados (que, apenas aparentemente, são contraditórios), imaginei que seria interessante continuar pesquisando esse objeto de estudo em outra Região do português falado no Brasil. Assim, estou iniciando uma pesquisa que considera uma correlação

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4 Aquisição de Língua Materna Versus Aprendizagem de Língua que “se diz” Materna Para um estudo cujo objetivo é verificar como um mesmo fenômeno se comporta na aquisição da linguagem oral e na aprendizagem da linguagem escrita, faz-se necessário explicitar a diferença que envolve essas duas modalidades. Por essa razão, especifico abaixo como estou entendendo aquisição e aprendizagem. Aquisição de língua materna é o processo pelo qual o falante entra em contato com a língua por meio de um “input” natural externo. Na aquisição da linguagem, a criança precisa estar inserida no ambiente lingüístico da língua que está adquirindo e não ter ultrapassado o período crítico, para ter as informações necessárias para desenvolver o sistema lingüístico correspondente a essa língua (MAGALHÃES, 2000, p. 78).

Não é necessário que indiquem para ela quais os caminhos a seguir nesse percurso. Assume-se, portanto, que adquirir a fala é algo biológico da espécie humana, um processo natural, no sentido de que ela se desenvolve sem a necessidade de correções ou instruções. Já aprendizagem é o processo em que há algum tipo intervenção ou estímulo externo (KATO, 1999). A aprendizagem da escrita, por sua vez, é uma “habilidade cultural durante a qual o aprendiz, normalmente, necessita de ajuda para descobrir de quais mecanismos ele pode dispor para usá-la de uma forma eficiente” (MAGALHÃES, 2000). A criança, que já passou pelo processo de aquisição, vai para a escola com um conhecimento gramatical de língua materna (Gramática-I7) pronto e, muitas vezes, ao chegar à escola, é apresentada a formas que não correspondem àquelas que ela adquiriu. Mesmo diante de formas diferentes, a criança vai utilizar o conhecimento de que já dispõe e a escola vai tentar reprimir esse uso através das correções, pois esse conhecimento não condiz com aquele exigido 7

Gramática-I (gramática internalizada): nos termos da Teoria Gerativa, é o mecanismo, o conjunto de regras que é dominado pelos falantes e que lhes permite o uso normal da língua – individual – aquela que desenvolvemos quando crianças.

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entre aquisição da linguagem (sob a luz do inatismo) e aprendizado de língua – com objeto de estudo “o sujeito” – na cidade de Foz do Iguaçu (também no Paraná).





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pela Gramática Normativa para a escrita. Como conseqüência, têm-se produções escritas com uma mistura de formas que reflete o conhecimento da gramática que o aluno leva para a escola (sua Gramática-I) e das regras que lhe são ensinadas durante o processo de ensino-aprendizagem. Se o PB está passando por um processo de mudança com relação ao uso de sujeito nulo (DUARTE, 1995) e, se é a criança que detona o processo de mudança (LIGHTFOOT, 1991), minha expectativa, assim como em Magalhães (2000), é de que a produção oral da criança apresente um índice de pronomes plenos mais altos do que aqueles apresentados pelos dados da escrita. Tal resultado mostraria que o processo de mudança no PB, com relação ao uso de sujeitos pronominais nulos, já estaria implementado e que sua gramática já se encontraria estável. Portanto, os sujeitos pronominais nulos encontrados na escrita seriam, realmente, frutos da aprendizagem escolar.

5 Propósitos do Trabalho Minha proposta, nesta pesquisa, é então, observar o uso dos sujeitos pronominais nulos vs plenos na fala de uma criança em fase de aquisição e na escrita escolar. O objetivo é verificar se as restrições encontradas na língua oral são ainda verificadas durante a escolarização e, caso isso não se verifique, buscar os fatores que determinam a ocorrência do sujeito pronominal nulo vs pleno na escrita. Entre outras, em princípio, procurarei responder às seguintes perguntas, que trarão os resultados da pesquisa: O O que a criança traz de sua gramática-I para a escola? O A escola consegue reverter quantitativamente as inovações apresentadas pela gramática do PB com o processo de mudança? O Como o sujeito nulo se desenvolve durante a escolarização, isto é, ele apresenta as mesmas restrições encontradas na fala e na intuição do falante adulto?

6 Caminhos a serem Percorridos Para verificar o uso que se faz do sujeito nulo e não nulo na oralidade da criança e na escrita dos escolares, utilizarei a metodologia da Sociolingüística Quantitativa para o levantamento dos condicionamentos lingüísticos e extralingüísticos.

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7 Contribuições Considerando que os dados lingüísticos que serão analisados nessa pesquisa são de uma criança nascida na cidade de Foz do Iguaçu, em fase de aquisição, a análise certamente trará uma mostra de como está acontecendo esse processo de mudança lingüística (no que se refere ao sujeito sintático) especificamente nessa Região brasileira que, por questões sócio-culturais, é um ambiente lingüístico mais heterogêneo e diversificado que muitos outros lugares do país. No que se refere à questão extralingüística, como já disse, tenho como 8

Para maiores esclarecimentos de tempo aparente, vide TARALLO (1997).

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A Sociolingüística Quantitativa é um modelo teórico-metodológico que, embora não tenha sido criado por Labov, foi por ele sistematizado. Foi ele quem mais “veementemente”, segundo Tarallo (1997), insistiu na relação entre língua e sociedade e na possibilidade, virtual e real, de sistematizar a variação existente e própria da língua falada, língua essa que pode ser definida como o veículo lingüístico de comunicação usado em situações naturais de interação social, do tipo comunicação face a face (TARALLO, 1997). Essa língua é o que constitui o objeto de estudo desse modelo, o material básico para a análise sociolingüística. Esse modelo é chamado “quantitativo” porque opera com números e tratamento estatístico dos dados coletados. O corpus para esta pesquisa está sendo coletado. Primeiramente, foi realizada a coleta de 12 textos produzidos por alunos e alunas da primeira fase do Ensino Fundamental (2a. e 3a. séries) em uma escola pública da cidade de Foz do Iguaçu. E, no presente momento, estou coletando os dados orais de uma criança de 2 anos e 5 meses. Para isso, estão sendo feitas gravações da fala da criança em situação informal. Farei, então, um estudo, em tempo aparente8, do uso dos pronomes nulos e plenos, com intuito de investigar quais sujeitos preenchidos constituem inovações da criança em relação aos dados da escrita, para verificar qual o papel da aprendizagem no uso de sujeitos nulos que aparece nessa modalidade. Depois da análise, serão computados os dados (tanto os orais, como os escritos). Para isso, utilizarei o programa computacional VARBRUL, uma ferramenta da informática, que atribui porcentagens relativas à variável dependente ‘sujeito nulo vs sujeito pleno’ e pesos relativos, referentes ao preenchimento do sujeito, a cada um dos fatores citados, além de realizar também cruzamentos entre os fatores independentes.





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hipótese (baseada em outras pesquisas) que a criança adquire a linguagem com a categoria sujeito preenchida e, na escola, é “ensinada” que não deve preencher essa categoria porque a flexão verbal é suficiente para indicar a pessoa e o número gramaticais. A análise dos textos escritos de crianças em idade escolar verificará a função da escola na “correção” da aquisição da linguagem. Ou seja, o quanto e como a escola ainda desconhece das mudanças que ocorrem na língua.

Referências CHOMSKY, Noam. Lectures on government and binding. Dordrecht: Foris, 1981. DUARTE, Maria Eugênia Lamoglia. A perda do princípio “Evite Pronome” no português brasileiro. 1995. ... f. Tese (Doutorado em Ciências da Linguagem) Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1995. FERREIRA, Marcelo Barra. Argumentos nulos em português brasileiro. 2000. ...f. Dissertação (Mestrado em Lingüística) Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2000. GALVES, Charlotte. Ensaios sobre as gramáticas do português. Campinas: Ed. da Unicamp, 2001. KATO, M. A. “Aquisição e Aprendizagem da Língua Materna: de um saber inconsciente para um saber metalingüístico.” In MORAES, J.; GRIMM-CABRAL (orgs) Investigações à Linguagem: ensaios em homenagem a Leonor Scliar-Cabral. Florianópolis: Editora Mulher, 1999. LAPERUTA, Maridelma. A realização do sujeito pronominal: um estudo sociolingüístico paramétrico para a cidade de Londrina – Norte do Paraná. 2002. ...f. Dissertação (Mestrado em Lingüística e Língua Portuguesa) - Universidade Estadual Paulista: Araraquara, 2002. LIGHTFOOT, David. How to set parameters: arguments from language change. Massachusetts: The MIT Press, 1991.

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LIRA, Solange de Azambuja Nominal, pronominal and zero subject in brazilian portuguese. 1982. Tese (Doutorado) - University of Pennsylvania: University Microfilms International. 1982. MAGALHÃES, Telma Moreira Vianna. Aprendendo sujeito nulo na escola. 2000. ...f. Dissertação (Mestrado em Ciências da Linguagem) - Universidade Estadual de Campinas: Campinas, 2000. OLIVEIRA SILVA, Giseli Machline de; SCHERRE, Martha Maria Pereira. (Org.) Padrões sociolingüísticos : análise de fenômenos variáveis do português falado na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1996. PAIVA, Maria Conceição. Sexo. In: MOLLICA, Maria Cecília. (Org) Introdução à sociolingüística variacionista. 3 ed. Rio de Janeiro. UFRJ (Cadernos Didáticos), 1996. TARALLO, Fernando. A pesquisa sociolingüística. 6 ed. São Paulo: Ática, 1997. TARALLO, Fernando. The filling of the gap: PRO-DROP rules in Brazilian Portuguese. In L. D. KING; C. A. MALEY (Eds.) Selected papers from the XIIIth Linguistic Symposium on Romance Languages. Capel Hill, N.C., 24-26 March 1983. Published as Current Issues in Linguistic Theory, 36. Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins, 1985.





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Regina Baracuhy*









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A PR OP O DO DISCURSO? PROP OPAAGAND GANDAA TURÍSTICA É UM GÊNER GÊNERO ABSTRA CT ABSTRACT CT: This article aims at discussing if touristic advertisiment may be considered a discourse genre, according Bakhtin´s theory. KEY -W ORDS KEY-W -WORDS ORDS: Touristic advertisiment; genre; discourse analysis.

Os gêneros do discurso são as correias de transmissão que levam da história da sociedade à história da língua. Nenhum fenômeno novo (fonético, lexical, gramatical) pode entrar no sistema da língua sem ter sido longamente testado e ter passado pelo acabamento do estilo-gênero. (Mikhail Bakhtin)

1 Entrando na ordem do enunciável A importância de discutir se a propaganda turística é um gênero do discurso, na acepção que o filósofo russo Mikhail Bakhtin emprega o termo, é mostrar que há um jogo de regras que controlam o funcionamento e a circulação dos discursos sociais. Por isso, não se pode dizer o que se quer quando se quer, mas os discursos são socialmente organizados, inserem-se numa ordem enunciativa e são regulados, moldados pelos gêneros que os constituem. Como salienta Bakhtin (1997, p. 302): Os gêneros do discurso organizam nossa fala da mesma maneira que a organizam as formas gramaticais (sintáticas). (...) Se não existissem os gêneros do discurso e se não os dominássemos, se tivéssemos de criá-los pela primeira vez no processo da fala, se tivéssemos de construir cada um de nossos enunciados, a comunicação verbal seria quase impossível.

Na ótica do mestre russo, a utilização da língua efetua-se sob a forma de enunciados, considerados como “unidades básicas da comunicação verbal”. * Universidade Federal da Paraíba







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Para ele, cada esfera da comunicação social apresenta “tipos relativamente estáveis de enunciados”, sendo isso que Bakhtin designa de gêneros do discurso. Todos os gêneros apresentam três elementos indissociáveis: conteúdo temático, estilo (recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais) e construção composicional, marcados pelas especificidades dos modos de enunciação. Para identificarmos a propaganda turística como um gênero do discurso, vamos verificar se ela apresenta os três elementos acima citados, uma vez que eles são condições indispensáveis para a classificação do gênero. Quanto ao conteúdo temático, o conjunto de enunciados que compõem os textos de propaganda, selecionados nesse trabalho, refere-se aos estados do Nordeste que eles anunciam. Por se filiarem a uma formação social1 capitalista, os dizeres da propaganda turística visam a transformar o espaço nordestino em um bem de consumo, uma mercadoria que ofereça prestígio, status social e, conseqüentemente, poder a quem a adquire. Objetivando vender esse espaço como destino ideal para viagens com finalidades turísticas e de lazer, a propaganda redimensiona o Nordeste, num processo metonímico, em que se toma a parte (Litoral) pelo todo (região). Para descreverem os atrativos turísticos da costa litorânea nordestina – foco temático da propaganda –, os enunciados, em sua maioria, se ancoram no mito do paraíso tropical, que é constantemente ressignificado na materialidade textual da propaganda. Essa perspectiva ufanista, em que o litoral aparece somente como sinônimo de oásis, fartura, e “reino da diversão”, mascara a realidade social do Nordeste, onde riqueza e pobreza convivem dialeticamente. Todavia, a produção de um dado discurso ocorre em condições de possibilidade específicas, logo, ele se insere em uma ordem: a ordem do enunciável, que delimita o “que pode e o que deve ser dito”. Não seria compatível, na ordem enunciativa da propaganda turística, a exposição das mazelas sociais, uma vez que a finalidade maior desse discurso é fazer o público-alvo comprar o produto anunciado. Há, portanto, regras e restrições que regem os gêneros – formas materiais dos discursos sociais. Como sintetiza Brait (2001, p. 32): “O gênero discursivo diz respeito às coerções estabelecidas entre as diferentes atividades humanas e os usos da língua nessas atividades, ou seja, as práticas discursivas implicam necessariamente coerções”. Sendo o texto da propaganda turística, submetido à voz institucional, que se marca em diversas posições enunciativas, as coerções desse dizer delimitam a atividade turística na região, instituindo para o Nordeste, rotas turísticas orientadas quase em sua totalidade para as capitais litorâneas, e apagando, 1

O conceito de formação social, definido por Pêcheux na primeira época da Análise do Discurso, refere-se aos modos de produção em uma dada sociedade.

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silenciando outros caminhos possíveis, como as regiões do Brejo, Cariri e Sertão, como analisa Cruz (2000, p. 210):





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O litoral nordestino, uma estreita faixa de, aproximadamente, 3.300 quilômetros de extensão, é o território eleito nesta região pelo e para o turismo, ou seja, para se especializar como território turístico receptivo. Este Nordeste turístico, repleto de diferenças e contradições, esconde, por outro lado, um Nordeste que o turismo e o turista não vêem, um território onde pobreza e concentração de renda são elementos importantes do processo de construção do lugar.

Em se tratando de estilo, podemos dizer que os enunciados, dos textos de propaganda turística, caracterizam-se pela opacidade, pelo jogo com as formas do sistema lingüístico, pela constante utilização de recursos expressivos, como figuras de linguagem, que configuram uma polissemia enunciativa. O slogan do estado do Maranhão, que circulou na mídia no ano de 2001, anuncia: Maranhão. O segredo do Brasil. Neste último enunciado, o vocábulo “segredo” é extremamente opaco, podendo significar de diversas maneiras, de acordo com a situação enunciativa em que ele se insere. Ele tem como referência próxima o topônimo Maranhão, o que possibilita relacioná-lo a todo o estado. Mas qual é o segredo do Maranhão? Esse enigma o leitor somente descobre ao ler o restante da propaganda, pois o “segredo” pode ser a Festa de São João, tal qual ela ocorre na capital maranhense, com “Bois de Matraca, Zabumba e Orquestra, numa sinfonia ‘única de alegria e paixão”, ou o “segredo” pode estar no Parque dos Lençóis Maranhenses, “onde impossível é não voltar”, ou ainda para entender por que o Maranhão é “uma terra inesquecível”, o “segredo” é ler as poesias do “romancista José Sarney”. Enfim, a eficácia do vocábulo segredo, na cadeia enunciativa, decorre de sua opacidade, a qual possibilita a multiplicidade dos sentidos no slogan e atesta a natureza fugidia dos sentidos, que ora se escondem (na própria acepção do vocábulo segredo como “aquilo que não pode ser revelado”), ora se deixam entrever na materialidade sintáticolexical da propaganda. Por isso, para Bakhtin, a palavra é sempre plural e inacabada. Além disso, a atividade turística no Maranhão não é tão intensa quanto a de outros estados nordestinos como o Ceará e a Bahia. Por isso, para muitos turistas do Brasil e do exterior, ainda há, no Maranhão, inúmeros “segredos” que eles desconhecem. Com o propósito de atrair riquezas por intermédio do turismo, o governo do estado procura instigar a curiosidade do turista para descobrir o que o texto de propaganda anuncia, ou seja, os roteiros turísticos do estado e assim, conseguir o seu intento: implementar a vinda de turistas e conseqüentemente lucrar com o turismo local. Seguindo a mesma estrutura formal do slogan maranhense, temos:







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Aracaju. A novidade do Nordeste. Novamente, observamos a opacidade no vocábulo “novidade”, que à semelhança do slogan maranhense, objetiva atrair a atenção do público, fazê-lo interessar-se em adquirir o produto à venda. Esse jogo, de/com os sentidos na estrutura enunciativa, caracteriza o estilo do texto publicitário, em geral, e da propaganda turística, em particular, pois é um procedimento recorrente em todos os textos que compõem o corpus dessa pesquisa. Ferreira (2000, p. 108) esclarece que isso acontece porque a língua é um sistema sintático intrinsecamente passível de jogo. E dentro desse espaço de jogo, as marcas significantes da língua são capazes de deslocamentos, transgressões, de rearranjos. É isso que faz com que um determinado segmento possa ser ele mesmo ou outro, através da metáfora, da homofonia, da homonímia, dos lapsos da língua, dos deslizamentos sêmicos, enfim, dos jogos de palavra e da dupla interpretação de efeitos discursivos.

O uso de empréstimos lexicais, provenientes em sua maioria, da língua inglesa, como o anglicismo point, é verificado em vários enunciados que compõem os texto de propaganda turística. A propaganda oficial do estado da Bahia (publicada na revista Caminhos de Salvador) afirma que Salvador é “o novo point do Brasil”; mas a revista internacional Condé Nast Traveler indica o Ceará como “um dos points mais quentes do milênio” e na Paraíba, “o point mais festejado na orla, no entanto, é Tambaú, com seus hotéis de luxo, restaurantes internacionais e regionais, bares, boates, mercados de artesanato, barraquinhas de comidas típicas e vendedores de frutas tropicais”. Essa técnica de construção dos enunciados, utilizando-se de terminologia estrangeira, revela a ideologia capitalista que regula o discurso da propaganda oficial. Vender uma mercadoria é a grande finalidade do discurso publicitário e o turismo é uma das atividades econômicas mais rentáveis do mundo. Para a Análise do Discurso, o discurso materializa o contato entre o ideológico e o lingüístico, pois ele representa no interior da língua, os efeitos das contradições ideológicas e manifesta a existência da materialidade lingüística no interior da ideologia. O discurso da propaganda turística sobre o Nordeste – instância da materialidade ideológica – visa a atrair turistas do exterior, como também os “de casa”, sendo essa uma das justificativas para o uso de empréstimos lexicais em sua estrutura enunciativa. Para os turistas internacionais, o uso de anglicismos surte um efeito de identificação pela empatia lingüística e conseqüentemente atrai o seu interesse para o produto enunciado, já em relação ao turista brasileiro, os vocábulos estrangeiros – Beach Park, show-room,

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A palavra é o signo ideológico por excelência; ela registra as menores variações das relações sociais, mas isso não vale somente para os sistemas ideológicos constituídos, já que a ‘ideologia do cotidiano’, que se exprime na vida corrente, é o cadinho onde se formam e se renovam as ideologias constituídas (1992, p. 16).

A linguagem coloquial – caracterizada pelo uso de termos e expressões do cotidiano, bem como por pequenos desvios da variante culta da língua – é outro traço estilístico da propaganda turística oficial. Por exemplo, a utilização do verbo “ter” no sentido de “haver”, a forma sincopada da preposição para: “pra”, a questão da regência do verbo ir: “ir em” ao invés da variante culta “ir para” são casos de uso extremamente produtivos na fala do cotidiano e na escrita informal. O enunciado abaixo, integrante do texto de propaganda do estado do Ceará, publicado na revista Veja em 13 de junho de 2001, ilustra bem esse tipo de linguagem: “Tem coisas que só indo no Ceará pra entender como é bom.”

Também a utilização de gírias, como o verbo curtir, é um recurso de persuasão utilizado para causar um efeito de empatia com o público-alvo, criando um tom de conversa informal, íntima, para fazer o consumidor sentir-se “em casa”, diminuindo a distância entre enunciador e enunciatário; dissimulando, assim, o eventual receio de se estar em terra estranha, desconhecida, na “casa do outro”. A propaganda do estado da Bahia (aquela da revista Caminhos de Salvador) assim convida seu leitor(a): Venha para Salvador e descubra todos os encantos da primeira capital do Brasil. Salvador está de cara nova, muito mais bonita. Aqui, você curte de tudo: folclore, festas populares, música, dança, comidas típicas, os banhos noturnos com águas mornas e cristalinas, shows e novíssimas atrações (grifo nosso).

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point – funcionam como símbolos de status e riqueza, que despertam nele, o desejo de obter a mercadoria anunciada. Além disso, o fato de a voz estrangeira agregar um valor material à estrutura simbólica, evidencia a superioridade econômica do país importador do vocábulo (geralmente os Estados Unidos) sobre o Brasil e o domínio sóciocultural americano, que se difunde, sobremaneira, pelos veículos da mídia nacional, como é o caso da propaganda turística oficial, influenciando condutas lingüísticas e determinando valores sociais. Essa relação constitutiva entre linguagem e ideologia, tão cara aos estudos da Análise do Discurso, já inquietava Bakhtin. Em sua obra Marxismo e Filosofia da Linguagem (publicada na Rússia em 1929), o pensador russo afirma que:





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Já o sujeito enunciador da propaganda do Ceará avisa (13/06/2001):









Quem curte a agitada vida noturna de Fortaleza e descobre o rico artesanato, a culinária deliciosa e todo o conforto da bem estruturada rede hoteleira cearense, fica ligado para sempre ao Ceará. Uma terra de gente hospitaleira e bem-humorada com um jeitinho de falar que cativa na hora (grifo nosso).

A ênfase no registro da linguagem cotidiana, informal, da propaganda está diretamente relacionada com a imagem do povo nordestino que se quer construir nesse gênero: pessoas de hábitos simples, alegres, hospitaleiras, como enfatiza a propaganda do Rio Grande do Norte: “os nativos desse belo e riquíssimo litoral são simples, amigos, hospitaleiros”. Segundo Ferreira (2000, p. 114): A linguagem publicitária em seu propósito de atrair a atenção do público (cliente em potencial) explora, não raro com bastante eficácia, recursos expressivos contidos na própria estrutura significante do sistema lingüístico. Dessa forma, realiza, em algumas formulações, um trabalho do sentido com o sentido, incorporando o caráter oscilante e paradoxal que perpassa a língua no registro do cotidiano.

Na ótica bakhtiniana, “as palavras dos outros introduzem sua própria expressividade, seu tom valorativo, que assimilamos, reestruturamos, modificamos” (1997, p. 314). Alguns enunciados da propaganda turística sobre o Nordeste fazem circular a voz de um personagem ilustre no cenário estadual, porém de prestígio reconhecido nacionalmente, para dar credibilidade ao seu discurso. É o caso do Maranhão, em que o texto da propaganda turística se constitui por um recorte de trechos do romance de José Sarney – ex-presidente da República, nascido no Maranhão, onde foi também Governador do Estado – , citado na estrutura enunciativa. Interessante observar como a propaganda desse estado recoloca Sarney em cena; apagando seu lugar social como político e privilegiando sua posição de romancista. Essa escolha confere um tom erudito ao texto, pelo recurso de utilização do discurso literário, outro gênero que se entrelaça com a propaganda, fazendo emergir a história do povo maranhense, num jogo de memória, em que se ressignifica o passado, atualizando-o na contemporaneidade do texto publicitário. Subi a ladeira do Desterro como os holandeses, franceses e portugueses que nos amaram . O cheiro da terra e o sacrifício de chegar em caravelas não indicavam os caminhos de voltar Ninguém partiu, mas todos voltaram. José Sarney- Romancista

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A sociedade constitui seu simbolismo, mas não dentro de uma liberdade total. O simbolismo se crava no natural e se crava no histórico (ao que já estava lá); participa, enfim, do racional. (...) Nem livremente escolhido, nem imposto à sociedade considerada, nem simples instrumento neutro e medium transparente, nem opacidade impenetrável e adversidade irredutível, nem senhor da sociedade, nem escravo flexível da funcionalidade, nem meio de participação direta e completa em uma ordem racional, o simbolismo determina aspectos da vida da sociedade (e não somente os que era suposto determinar) estando ao mesmo tempo, cheio de interstícios e de graus de liberdade.

Ainda em relação ao estilo da propaganda oficial, podemos apontar o uso de regionalismos (o uso do verbo “arribar”, por exemplo, na propaganda do Ceará), que conferem um efeito de identidade a esse gênero. Por ter um caráter essencialmente persuasivo, o foco do processo enunciativo, no discurso publicitário, é o outro. Por isso, o destinatário aparece inscrito no fio do discurso, tanto de forma direta, pelo dêitico você (que, na linguagem coloquial, funciona como um pronome do caso reto), quanto indiretamente, pelo verbo na terceira pessoa do singular, ou ainda, expresso pelo pronome relativo quem. Observem-se os exemplos, a seguir: “O sol, o mar e a nossa tranqüilidade estão esperando por você”. (propaganda de Sergipe) “Siga as trilhas da natureza”. “Respeite a sinalização do Parque” (propaganda do Piauí) “Quem não gosta de beleza, do bom e do melhor sem gastar muito?” (propaganda do Rio Grande do Norte) 2

Animismo, Prosopopéia ou Personificação é um tipo de metáfora que funciona como uma projeção de sensações, havendo um deslocamento de sentido que consiste em transferir algo inerente ao universo humano para o mundo dos seres inanimados ou irracionais, a fim de fazer as coisas “falarem e sentirem” .

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Observa-se, ainda, na linguagem da propaganda, o uso de recursos expressivos como a utilização de figuras de linguagem. No folder distribuído pela Prefeitura Municipal de Lucena, praia localizada no litoral norte da Paraíba, lê-se na capa: “Lucena, um lugar chamado Liberdade”. O animismo, prosopopéia ou personificação2 é um tipo de metáfora que “humaniza” esse espaço geográfico, acenando para o leitor-alvo com a ilusória utopia de ele gozar ali, a liberdade, de forma plena. Ao jogar com a natureza simbólica da palavra “liberdade”, a propaganda ativa a fantasia e o desejo do turista de conhecer/ descobrir um lugar ideal para o lazer. Dessa maneira, a propaganda municipal redimensiona o espaço real, transformando–o em sonho possível. Na compreensão de Castoriadis (1982, p. 152):





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Bakhtin, em Estética da Criação Verbal (1997), assegura que









Ter um destinatário, dirigir-se a alguém, é uma particularidade constitutiva do enunciado, sem a qual não há, e não poderia haver, enunciado. As diversas formas típicas de dirigir-se a alguém e as diversas concepções típicas do destinatário são as particularidades constitutivas que determinam a diversidade dos gêneros do discurso.

Enfim, para se interpretar os enunciados típicos da propaganda turística, é preciso lê-los sempre em relação ao outro, sendo este a quem o texto se destina, como também outros textos e discursos com os quais esse gênero dialoga. Além disso, no espaço enunciativo, é mister compreender o verbal, sempre em relação necessária com o não-verbal, isto é, com as imagens que compõem o texto sincrético da propaganda, pois é nesse intercruzamento de palavras e imagens (permeadas por vestígios da memória de outras) que os sentidos se estabelecem, materializando-se nas formas cristalizadas dos gêneros textuais. Estabelecendo fronteiras para a produção e circulação dos dizeres sociais, o gênero discursivo delineia a estrutura do enunciado, o qual é definido por Bakhtin como “um elo na cadeia da comunicação verbal, que não pode ser separado dos elos anteriores que o determinam, por fora e por dentro, e provocam nele reações-respostas imediatas e uma ressonância dialógica” (1997, p. 320). Quanto ao modo de construção composicional, a propaganda turística enquadra-se na categoria de gênero complexo, secundário. Para Bakhtin, os gêneros se classificam em primários (simples) e secundários (complexos). Os primários dizem respeito à atividade lingüística relacionada com os discursos orais em seus mais variados níveis: do diálogo cotidiano à carta pessoal, passando pelo discurso didático, dentre outros; já os gêneros secundários: discurso literário, científico, político, etc., são elaborados por meio de uma comunicação cultural mais complexa, principalmente escrita. O pensador russo assinala que os gêneros não são categorias estanques, pelo contrário, são intercambiáveis. Bakhtin explica que durante o processo de formação dos gêneros secundários, eles absorvem e transmutam os gêneros primários (simples) de todas as espécies, que se constituíram em circunstâncias de uma comunicação verbal espontânea. Os gêneros primários, ao se tornarem componentes dos gêneros secundários, transformam-se dentro destes e adquirem uma característica particular: perdem sua relação imediata com a realidade existente e a realidade dos enunciados alheios (1997, p. 281).

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2 Os suportes textuais da propaganda turística: o folder, a revista e o site eletrônico Todos os gêneros discursivos necessitam de uma materialidade para fazer circular os seus dizeres. No caso da propaganda turística oficial sobre o Nordeste, são os folders turísticos, as revistas e os sites eletrônicos dos órgãos institucionais de turismo que constituem os suportes materiais que abrigam os sentidos dos textos da propaganda turística oficial. Cada um desses suportes textuais assemelha-se quanto à finalidade: divulgar produtos e serviços do trade turístico estadual, e quanto ao conteúdo temático, constituem-se por imagens e textos verbais que versam sobre roteiros turísticos, informações sobre datas de festas e eventos turísticos, como também indicam como chegar, onde ir e onde comer. Em outras palavras, encontra-se, nos folders, a localização de rodovias, aeroportos, praias, rede hoteleira e restaurantes que compõem a infra-estrutura turística do município ou estado nordestino. No entanto, esses suportes diferenciam-se quanto ao público-alvo, forma de circulação e formato estrutural. De acordo com o Dicionário de Comunicação (1978, p. 210), folder é uma palavra originária da língua inglesa (to fold = dobrar). Ele é definido como “um folheto publicitário, constituído de uma só folha impressa, com duas, três ou mais dobras”. SOUZA & CORRÊA (2000) acrescentam que o folder é um impresso, de circulação não-periódica, que se constitui de informações referentes a uma oferta, seja produto ou serviço. O folder turístico não apresenta o período ou a data de divulgação do texto impresso; é pela presença obrigatória do slogan estadual ou municipal (marca da gestão administrativa oficial) que se deduz, aproximadamente, o tempo de circulação desse tipo de folheto publicitário. Composto por uma única folha com várias dobras, esse formato estrutural do folder possibilita um amplo leque de informações (históricas, econômicas, sócio-culturais) sobre a cidade ou estado que ele anuncia. O folder exibe um número de informações turísticas bem maior do que

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Como vimos, os enunciados que constituem o discurso da propaganda turística são bastante complexos, pois se por um lado, a linguagem utilizada é a do cotidiano, com palavras e expressões amplamente usadas no dia-a-dia, portanto próxima da oralidade primária; por outro lado, ao ser deslocada para o discurso publicitário, essas formas coloquiais passam por um processo de acabamento estético, que as diferenciam na situação enunciativa do discurso em pauta.





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um texto de propaganda inserido em uma revista semanal, como a Veja; por outro lado, a sua forma de distribuição e o meio de circulação são mais restritos. A distribuição do folder é local, ou seja, ele é entregue diretamente ao turista que está eventualmente visitando a cidade. Geralmente, os folhetos circulam apenas nos espaços destinados a divulgar o turismo da cidade, por isso ele é encontrado nos balcões das agências de viagens, hotéis, nos órgãos oficiais de turismo e em eventos turísticos locais. Há, também, as publicações turísticas institucionais como as revistas. Assim como os folders, elas não têm uma periodicidade definida e não contêm o período ou data de impressão e/ou divulgação. Igualmente têm distribuição direta ao turista (leitor-alvo) e circulam de forma local e restrita aos órgãos ligados ao turismo estadual ou municipal. Entretanto, esse tipo de revista é usualmente financiado pelo órgão oficial de turismo em nível estadual, enquanto o folder, até mesmo pelo custo mais barato, é publicado tanto pelo estado como pelos municípios. Outra diferença entre a revista e o folder reside no formato estrutural. A revista constitui-se de reportagens que divulgam as festas e eventos turísticos realizados ou a se realizarem no circuito estadual, como os “carnavais fora de época” que acontecem em diversas capitais nordestinas: MICAROA, CARNATAL, RECIFOLIA, FORTAL, dentre outros. Os textos também discorrem minuciosamente sobre as potencialidades turísticas da região. Além disso, as revistas apresentam, em suas páginas, propagandas de hotéis e propagandas turísticas oficiais do estado, estas sempre em destaque, seja na capa posterior, como o faz a revista Caminhos de Salvador, seja em folha dupla na parte central da publicação, como acontece em Trade News, revista turística oficial de Pernambuco. Esse suporte impresso serve ainda para divulgar as ações que a instituição responsável pelo turismo em âmbito estadual (EMPETUR, PIEMTUR, PBTUR, por exemplo) está desenvolvendo. A propaganda eletrônica dos órgãos estaduais de turismo, divulgada nos sites turísticos oficiais, tem em comum com os demais suportes textuais, o conteúdo temático e a função: divulgar os atrativos turísticos do estado sob a perspectiva institucional. Todavia, na migração dos textos, das páginas impressas para o computador, muitas diferenças são observadas. Uma delas é a relação com o público-leitor. Enquanto os folders e as revistas de turismo se destinam ao turista empírico, a abrangência do público-leitor dos sites eletrônicos de turismo é bem maior, pois qualquer indivíduo que possua ou tenha disponível um computador pode “navegar” na página da internet e tornar-se um turista virtual. Se a propaganda impressa em revistas ou folhetos é exposta ao olhar público, podendo ser dobrada, amassada, levada para casa, lida em ônibus, o texto eletrônico localiza-se distante dos corpos e dos hábitos coletivos, estando

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A revolução do texto eletrônico será ela também uma revolução de leitura. Ler sobre uma tela não é ler sobre um códex. Se abre possibilidades novas e imensas, a representação eletrônica dos textos modifica totalmente a sua condição: ela substitui a materialidade do livro pela imaterialidade de textos sem lugar específico; às relações de contigüidade estabelecidas no objeto impresso ela opõe a livre composição de fragmentos indefinidamente manipuláveis; à captura imediata da totalidade da obra, tornada visível pelo objeto que a contém, ela faz suceder a navegação de longo curso entre arquipélagos textuais sem margens nem limites.

O formato estrutural do site eletrônico turístico difere bastante dos textos de propaganda impressos. Esse ciberespaço apresenta menus, submenus, ícones para orientar o leitor/turista a fim de ele conseguir as informações desejadas. Ao invés de páginas, o site possui links, que permitem uma leitura “verticalizada” ou “em camadas” de vários textos não-visíveis na página principal. Além disso, os links do texto eletrônico estabelecem uma rede intertextual através de interconexões, que disponibilizam para o leitor, informações diversas sobre turismo no interior do espaço virtual em que ele se encontra ou em outros lugares do universo virtual (GREGOLIN, 2000). Na maioria dos sites turísticos oficiais, encontram-se, na página principal, imagens dos roteiros turísticos oferecidos pelo estado. Elas podem aparecer em lugares fixos na página de abertura, como no site oficial do estado de Alagoas (www.visitealagoas.com.br), ou ainda as imagens são exibidas através de flashes em movimento, como no site da Bahiatursa (www.bahiatursa.ba.gov.br), órgão do governo da Bahia, em que elas aparecem na parte inferior da página principal, emolduradas por uma película preta, simulando um trailler de filme, através do qual se vislumbram alguns dos principais points turísticos do estado. As imagens também podem se localizar na faixa superior da tela, como acontece no site do governo estadual do Piauí (www.piemtur.pi.gov.br). Graças ao avanço tecnológico, as imagens dos sites eletrônicos de turismo, associadas à linguagem verbal, criam impactantes efeitos

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reservado ao olhar exclusivo do leitor virtual, que precisa dominar a técnica de captação de dados via internet para poder ter acesso às informações do site turístico. Também muda a materialidade do texto, que não mais é o impresso, mas a tela do computador e com isso, modifica-se o modo de leitura da propaganda. Para Chartier (1998, p. 92): do códex à tela, os novos dispositivos formais dos textos eletrônicos modificam as condições de recepção e compreensão do leitor. A respeito dessa “revolução” da leitura do objeto impresso para o texto eletrônico, comenta Chartier (1998, p. 100):





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de referencialidade, fazendo o leitor acreditar na possibilidade de “viver” a realidade virtual. Além das imagens, o site eletrônico oficial apresenta uma coluna central, onde figura um texto escrito, em geral, versando sobre os principais atrativos turísticos do estado e “convidando” o turista para conhecê-los. Na lateral esquerda, geralmente aparece um índice das seções que você pode acessar para saber mais sobre os assuntos nele elencados. Essa estrutura organizacional confere ao site, um caráter didático, pois oferece várias opções de leitura em seu universo virtual, possibilitando ao leitor “recortar”, “colar”, imprimir, “anexar”, enfim, interagir diretamente com os textos que lhe convier. Por outro lado, a leitura no site obedece a uma ordem específica e está organizada pelos dispositivos técnicos, visuais e físicos que direcionam o modo de ler eletrônico.

Assim como nos textos impressos de propaganda turística, os sites são espaços virtuais destinados a implementar as atividades do órgão institucional, que se auto-promove ao divulgar as potencialidades turísticas do estado. Por isso, todos eles apresentam o nome do governo do estado e seu logotipo, bem como o slogan turístico que particulariza a gestão administrativa vigente. Em relação ao gênero propaganda turística, podemos concluir que a estrutura enunciativa complexa de que se compõe, decorre da heterogeneidade que a constitui e torna possível: – os vários discursos no interior de um único discurso, – os deslocamentos de sentido (retomadas, apagamentos e os jogos

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Os textos de propaganda, que compõem o corpus dessa pesquisa, apresentam regularidades enunciativas que se podem observar, tanto em nível de conteúdo temático – anunciar o espaço nordestino –, quanto de estilo – através de uma linguagem coloquial trabalhada esteticamente – como também, se constituem pelo cruzamento de vários textos e discursos, arquitetonicamente organizados, na materialidade textual por um sujeito enunciador heterogêneo e disperso, através das formas típicas do discurso da propaganda: – os enunciados que singularizam o modo de dizer da propaganda turística oficial sobre o Nordeste –, caracterizando-a como um gênero discursivo. Para finalizar esse artigo, concluímos que o conceito de gênero bakhtiniano, ao articular os usos da língua às diversas esferas da atividade humana, revela a indissociabilidade entre as práticas discursivas (instituídas através do processo de interação verbal) e as práticas sociais, ou em sentido lato, a relação constitutiva entre a língua e a vida. Nas sábias palavras do mestre russo: “A língua penetra na vida através dos enunciados concretos que a realizam, e é também através dos enunciados concretos que a vida penetra na língua” (1997, p. 282). Segundo Bakhtin, todos os enunciados de uma dada língua se enquadram em um gênero, ou seja, estão articulados a um tema, a um estilo e a uma construção composicional, entretanto, o gênero não é uma camisa-de-força do dizer, como salienta Daniel Faïta (1997, p. 173): “Contradição entre a pregnância incontornável das normas e a liberdade do projeto discursivo: os gêneros do discurso apresentam-se ao locutor como recursos para pensar e dizer”.

Referências BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997. --_____ (Volochinov). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Trad. de Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. 6 ed. São Paulo: Hucitec, 1992. BRAIT, Beth. (org.) Bakhtin, dialogismo e construção de sentido (org.). Campinas: UNICAMP, 1997.

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semânticos que exibem o trabalho com as formas verbais e não-verbais), – a alteridade do sujeito enunciador, que se apresenta disperso em toda a cena enunciativa, ora explicitando, ora mascarando, no discurso publicitário, a voz institucional que regulamenta seus dizeres.





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______.Bakhtin e a natureza constitutivamente dialógica da linguagem. In: BRAIT, Beth (org.). Bakhtin, dialogismo e construção do sentido. Campinas: UNICAMP,1997. p. 91-104. _______. O discurso sob o olhar de Bakhtin. In: GREGOLIN, M.R. & BARONAS, R. (orgs.) Análise do Discurso: as materialidades do sentido. São Carlos: Claraluz, 2001. p.19-35. CASTORIADIS, C. A instituição imaginária da sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. CHARTIER, R. A ordem dos livros: leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII. 2 ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998. FAÏTA, Daniel. A noção de gênero discursivo em Bakhtin: uma mudança de paradigma. IN: BRAIT, Beth. (org.) Bakhtin, dialogismo e construção de sentido. Campinas: UNICAMP, 1997. p. 159-177. FERREIRA, M.C.L. Da ambigüidade ao equívoco: a resistência da língua nos limites da sintaxe e do discurso. Porto Alegre: Editora da Universidade/ UFRGS, 2000. GREGOLIN, M.R. Da teia à tela do jornal on line. In: RIOLFI, Claudia Rosa; BARZOTTO, Valdir Barzotto (orgs.). Nexos. Ano IV. n.6. São Paulo: Anhembi-Morumbi, 2000. RABAÇA, Carlos Alberto; BARBOSA, Gustavo. Dicionário de Comunicação. Rio de Janeiro: Codecri, 1978. SOUZA, A. M.; CORRÊA, M. V. Turismo: conceito, definições e siglas. 2. ed. Manaus: Valer, 2000. Veja. São Paulo: Abril, ano 34 , n. 23, 13/jun./2001. Edição 1704

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Rosa Virgínia Mattos e Silva *









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UM ESTUDO DE ASPECTOS DO LÉXICO NOS TR OVADORES DO MAR TRO ABSTRA CT ABSTRACT CT:: The present study focuses on aspects of the lexicon, mainly nouns, verbs and idioms, in Trovadores do Mar, making use of Elsa Gonçalves’s recent published work that retrieves Celso Cunha’s Paay Gômez Charinho (1945), Joan Zorro (1949) and Cancioneiro de Martin Codax (1956) editions. KEY -W ORDS: Old portuguese lexicon aspects; medieval portuguese cancioneiro. KEY-W -WORDS:

Compõem o admirável trabalho de Elsa Gonçalves não só as reimpressões das referidas edições de Celso Cunha – O Cancioneiro de Paay Gômez Charinho (1945), O Cancioneiro de Joan Zorro (1949) e O Cancioneiro de Martin Codax (1956), mas ainda notas introdutórias a cada cancioneiro, ou seja, ‘apostilas’, comentários apostos ao Cancioneiro de Joan Zorro, em que Elsa Gonçalves discute o confronto que fez entre a edição publicada desse cancioneiro e o exemplar anotado de Celso Cunha, isto é, o exemplar de trabalho do autor. O conjunto de cantigas dos trovadores do mar perfaz um total de quarenta e seis cantigas – vinte e oito de Charinho, onze de Joan Zorro e sete de Martin Codax. Não partirei aqui dos eruditos glossários de Celso Cunha, apensos às edições das cantigas de Joan Zorro e Martin Codax, mas dos textos editados das cantigas com o objetivo de examinar o campo léxico-semântico, que designarei de amar e navegar nos trovadores do mar. Considerarei apenas nomes (substantivos e adjetivos), verbos e lexias feitas. Mas distinguirei as cantigas de amigo das de amor: Paay Gômez Charinho tem, na edição de Celso Cunha, dezenove cantigas de amor – de I a XIX; seis de amigo – de XX a XXV, sendo as três últimas “de escárnio” – XXVI a XXVIII (p. 140), que aqui não considerarei. As de Joan Zorro (onze cantigas) e Martin Codax (sete cantigas) são todas cantigas de amigo. Assim investigarei, no total, quarenta e três cantigas para tentar alcançar o meu objetivo – amar e navegar nos tovadores do mar, um campo léxico-semântico. Antes de iniciar a análise dos dados nas cantigas referidas, gostaria de tecer breves considerações, com base em Giuseppe Tavani, reconhecido * UFBA/CNPq/Grupo PROHPOR.







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especialista da lírica medieval galego-portuguesa. No seu artigo, A poesia lírica na literatura hispânica do século XIII (1988[1967 e 1969]), Tavani define o contexto poético das cantigas de amigo: O seu ambiente é sempre marítimo ou campestre, com um cenário esquemático ou nitidamente caracterizado pela presença do mar, do ribeiro, da fonte, das aves, das árvores e das flores. E a cantiga de amigo é um eterno diálogo da donzela com tudo que a rodeia, um diálogo em que ouvimos apenas, por vezes uma voz, a da protagonista ... porque a voz do interlocutor, se não aparece fisicamente, reflecte-se aí, todavia, indirectamente (1988, p. 43).

Mais adiante, ao tratar das chamadas “origens” dessas cantigas, do debate antigo e conhecido, opta pelas kahragat ou jarchas e diz: (...) se poderia ver no uso do Habib, em vez de amigo, um reflexo da realidade bilingüe da Espanha muçulmana ... daí esse homogênero poético chegou aos poetas galego-portugueses, talvez através de um período de aclimatação românica ao nível popular, durante o qual se teria eventualmente processado a “tradução”, ou seja, adaptação ao novo meio, latino e cristão (idem, p. 45).

Ao tratar ainda das origens da lírica medieval, embora não explicite, estar se referindo às cantigas de amor, apresenta a interessante hipótese que é a de correlacionar essa questão aos “métodos da geografia lingüística”. (idem, p. 48), ou seja, da geografia lingüíistica areal, que é, como sabido, de origem italiana, pelo menos no âmbito da romanística. Aplicando o conceito de “áreas periféricas”, diz: A área galego-portuguesa recebe a nova concepção da poesia através da Catalunha e, sobretudo, através de Toledo, durante todo o século XIII (e até à morte de Afonso X, em 1284), [que é] o principal centro de recolha, adaptação e distribuição no ocidente peninsular (idem, p. 50).

Considera que sua hipótese Supõe que as mutações sofridas pelos trovadores na área galego-portuguesa tenham sido provocadas principalmente por três elementos: o afastamento dessa poesia do lugar de nascença a mediação de uma área intermédia, a traduçãoadaptação para uma língua e um meio cultural diferentes (ibid.).

Estou consciente de que simplifiquei o artigo de Giuseppe Tavani, mas, para não me estender mais, tentarei perseguir o meu objetivo já antes explicitado: amar e navegar, campo léxico-semântico nos Cancioneiros do mar.

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Afigura-se simpática e nobre a fisionomia dêste homem do mar. Nem uma só vez abusa da liberdade concedida aos trovadores medievais para licensiosamente expandir as fezes do seu pensar e sentir. Nenhuma palavra vil afeia seus versos (cf. Elsa Gonçalves, p. 31).

Dessas “fezes” e “palavra vil”, de que tratei em outro trabalho, Elsa Gonçalves diz sobre as palavras citadas anteriormente: “é claro que hoje não podemos subscrever esta interpretação do cancioneiro do grande poeta” (ibid). Viu-se que Charinho nos legou três cantigas d’escarnho, de que, como dito antes, não tratarei aqui. Sobre esse poeta diz Giuseppe Tavani que seu discurso lingüístico de tom contido, caracterizado por uma fluidez insólita de texturas retóricas e pelo emprego de termos e expressões muito raras é, por vezes, único, muitas vezes imerso no léxico marítimo (Lanciani e Tavani, 1993, s.v. Pai Gomes Charinho).

Em primeiro lugar considerarei as cantigas de amor de Charinho para depois tratar das cantigas de amigo dos três trovadores do mar. Tentarei primeiro observar o mar e o navegar nas cantigas de amor do “trovador almirante”, uma vez que o amar e o amor e o amor é tema de todas elas como seria de esperar. Dentre as dezenove cantigas de Charinho, são as de número III, VI, XII e XVI aquelas em que o mar e navegar ou estão expressos ou podem ser inferidos. Inferem-se nas cantigas VI e XII e estão expressos nas de número II e XVI, segundo a minha interpretação. Vejamos: Na Cantiga VI o trovador se despede da senhor, provavelmente porque vai navegar: Ora me venh’eu, senhor espedir (v. 1). Andareu triste, cuydando no vooso parecer (v. 12).

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Do campo léxico do amor, já tratou Machado Filho (2003) em textos do tipo religioso, que congrega o amor carnal, o espiritual e o amor fraternal. Diria que aqui tratarei do amor marinheiro, delicado e singelo, sobretudo nas cantigas de amigo. Carolina Michaëlis de Vasconcelos, referindo-se a Charinho, um dos trovadores do mar, e que, creio, se poderia estender às cantigas de amigo de Zorro e Codax, expressa:





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E do meu corpo que será senhor / quand’el d’alá o vosso desejar? (vs. 15-16). muy sen vergonha irey per u for / ora con graça de vós, mya senhor (vs. 32-33).





Na cantiga XII o trovador tem de partir e se conforma com a lembrança da senhor: e quero-vosleixar / encomendad’este meu coraçom (vs. 1 e 2). se vos algu)a vez nembrar / ca de vós nunca el se partirá (vs. 4 e 5). nembre-se (d’el) sempr’e faredes i / gram mesura ...” (vs. 10 e 11). [meu coraçom] ... mays quer sempre vosso morar / ca nunca soub’amar (tant’)outra rem e nembre-se d’el, senhor (vs. 18 e 19).

Na cantiga III, o trovador não é amado pela senhor e é o seguinte o refrão da cantiga, em que o amado expressa que não o podem livrar dessa coyta: mar, nem terra, nem prazer, nem pesar / nem bem, nem mal nom my-a podem quitar (vs. 5, 6, 11, 12, 17, 18). Na cantiga XVI, compara “coyta d’amor” e “coyta do mar”, o que está expresso no refrão: coyta d’amor nam faz escaecer / a muy gram coyta do mar (vs. 5, 6, 11, 12, 17, 18).

Conclui seu lamento: Po(la) mayor coyt’a que faz perder / coyta do mar, que fez muitos morrer (vs. 19 e 20)

Parece que, para o trovador, a coyta d’amor é mais forte que a coyta do mar. Tratarei as demais cantigas de Charinho, considerando nomes (substantivos e adjetivos), verbos e lexias feitas que caracterizam seus cantares d’amor. Note-se que Charinho é um sofredor e a senhor é caracterizada por inúmeras qualidades. Começarei, então, pelas qualidades da senhor, seguindo a ordem das cantigas, ao mesmo tempo em que se expressam nessas cantigas a coyta do trovador: Qualidades da senhor e a coyta d’amor do trovador: a bela figura (C.I, v.1) a bondade (C. I, v. 2)

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a mesura (C. I, v. 3) a melhor dona do mundo (C. I, v. 21).





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Tantas qualidades levam o trovador a morrer (CI, v21).

Na cantiga II, desiste o trovador da senhor. Observem-se as lexias feitas: queria-me lh’eu muy gram bem querer / mays non queria por ela morrer (vs. 5, 6, 11, 12 e 17, 18).

É esse o refrão. Justifica-se o trovador: Ca nunca lhi tam bem posso fazer / serviço morto, como se viver (vs. 19 e 20).

Na cantiga IV, o trovador vê a amada, mas nunca dix’o que dizer querria (v. 28); é assim que finaliza esse seu cantar. Por quê? Viu a dona, mas non lh’ousey atento dizer (v. 5) ... e vi-a / eu por meu mal, sey-o per bõa fé (vs. 8-9).

Dessa visão resulta: mays quand’e vi / o seu bom parecer / vi, amigos, que mya morte seria (vs. 2021).

Na cantiga V, a senhor é: fremosa (v. 1). seu bem (v. 8). lume de seus olhos (v. 14).

Na cantiga VII, o trovador qualifica a senhor como: muy fremosa (v. 7). muyt’aposta (v. 13). muy mans’e bõa razom (v. 14). das donas a melhor (v. 16).







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Na cantiga VIII, vê o trovador a senhor, mas não a alcança. É o que expressa o refrão:





nom vos pês e catarem vós, que a desejarem (vs. 5, 6, 11, 12, 17, 18).

Os olhos dele am sabor de vos catar (v. 2) ... nunca podem dormir / nem aver bem (vs. 9 e 10).

Na cantiga IX, o trovador prefere o gram bem / ca o gram mal (vs. 2 e 3).

e sobre o gram mal Ca sofri eu mal por vós, qual mal, senhor / me quer matar (vs. 5 e 6).

Contudo deseja o bem da senhor: e pod’assi veer qual é peor / – do gram bem ou do gram mal do sofrer (vs. 14 e 15).

Conforma-se, por fim com a lembrança da senhor: Mays en que mal sofri / sempre por vós – e non bem – des aqui / terríades por beò de vos nembrar (vs. 26, 27 e 28).

Na cantiga X, mais uma vez o trovador sofre pelo amor não correspondido e deseja esse amor, como desej’a noyte e o dia (v. 4).

seu sofrer chega à loucura por muyt’afam que eu sofr’e sofri / por vós, senhor, e oymais des aqui / pois entender que fac’i folia (vs. 5, 6 e 7)

e, por esse amor, poderia morrer como nom moyro, e morrer devia, / por en rog’a Deus que me vlaha i, / que sab’a coyta que por vós sofr’i (vs. 11, 12 e 13).

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disse-m’oje ca me queria bem / pero que nunca me faria bem (vs. 11-12 e 17, 18).

Nela, ele viu a senhor por mal deste meus olhos eu vi (v. 1).

e dela apenas obteve essa visão melhor que dela pud’aver (v. 3). melhor que m’ela nunca fez (v. 16).

Na cantiga XIII, sente-se o trovador incapaz de expressar o seu amor pela poesia E fazer nõ-na sey (v. 5).

porque seria falar no que sempre cuydey; / no seu bem e no seu bom parecer (vs. 13 e 14).

Julga ter perdido a razão e já não sabe o que diz mas como pod’achar bõa razom / ome coytado, que perdeu o sem / (...) quando falo rem / que nom sey que me digo (vs. 15, 16, 17 e 18).

Então, para fazer o seu “cantar”, conforma-se com a lembrança. E, se quero cantar, / choro, ca ele me nembra entom! (vs. 28 e 29).

Na cantiga XIV, dialogada, mostra que a “senhor” não entende mais o “amigo”, o que antes acontecia, (...) que vos prazia d’ouvides entom / em mi falar, e que nom é já si (vs. 3 e 4).

Todavia, o trovador morre de amor e não é entendido, quero que moyra, que rem nom me val / ca vós dizedes dest’amor atol / que nunca vos ende se nom mal vem (vs. 8, 9 e 10).

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Na cantiga XI, o refrão, parece-se, diz tudo





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Pergunta por fim













Mays que farey? / ca por vós muyr’e nom ey d’al sabor (vs. 11 e 12).

Na cantiga XV, mais uma vez, o trovador não é correspondido pelo seu amor e melhor era quando não amava. cuydava quand’amor nom avia / que nom prol s’el comigo poder (vs. 1 e 2).

Contudo, depois de amar, sem o amor não pode viver. ojemays ca viver, / ca sofro coyta qual nom sofreria (vs. 9 e 10).

Diante disso, pede à amada que, pelo menos, se deixe ver. ca nom lh’ouso dizer / que me valha, ca sey que me diria / que me quitasse bem de a veer (vs. 23, 24 e 25).

Na cantiga XVII, mais uma vez é o amor que faz o trovador viver porque a “senhor” é fremosa (v. 1) tem mansedume (v. 10). tem bom parecer (v. 10). tem bondade (v. 11).

Sonha então ele com o que vier e que o mantém vivo, o verdadeiro amor. ca sem desejos nunca eu vi quem / podessa’aver tam verdadeyro amor / com’oj’eu, nem fosse sofredor / do que eu sofri. E esto me mantém (vs. 22, 23, 24 e 25).

Na cantiga XVIII, mais uma vez não é o poeta correspondido: Ela, pero sey que lhe plazerá / de mya morte, ca nom quis nem querrerá, / nem quer que eu seja seu servidor (vs. 29, 30 e 31).

A razão do “sofrer”: Ca nom á no mundo tam sofredor / que a veja, que se possa sofrer / que ele nom aja gram bem de querer (vs. 15, 16 e 17).

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e por esto baratará melhor / nõ-na veer, ca sem nom lhe valrá (vs. 18 e 19).

O trovador não quer dar conselhos, porque não se aconselhou a si mesmo: May eu, que me faço conselhador / d’outros devera pera mi prender / tal conselho (vs. 22, 23 e 24).

Na cantiga XIX, a última dentre as cantigas d’amor de Charinho, expressa-se, no refrão, a súplica à senhor: e pelo bem que vos quer, outrossi, / ay meu lume, doede-vos de mim! (vs. 5, 6; 11, 12; 17, 18 e 23, 24). “A senhor” é fremosa (v. 1), o trovador é seu servidor (v. 4). Por que deve “a senhor” ter pena do poeta? porque vos nunca podedes per de / en aver doo de mim (vs. 13 e 14). por quam mansa e por quam de / bom prez e por quem aposto vos / fez falar Nostro Senhor (vs. 19, 20 e 21).

Esses recortes apresentados são, sem dúvida, uma violência à poética de amor do trovador almirante. Trovador “sofredor” e “servidor”, por vezes mal amado, também “conselhador”, está sempre a serviço da amada – mansa, bem aposta, de bom parecer. Sofre sempre coytas d’amor e, por vezes, conforma-se com a nembrança da sua amada. Tendo lido as cantigas na sua totalidade , concordo com Tavani (1993, s.v. Pai Gomes Charinho), quando diz que o seu discurso é contido, fluido e com texturas retóricas insólitas, como, por exemplo na cantiga XVIII – “e por esto baratará melhor / nõ-na veer, ca rem nom lhe valrá” (vs. 18 e 19) [‘fará melhor negócio’]. Passarei, em seguida, a examinar o campo léxico-semântico das Cantigas de amigo, dos três “trovadores do mar”, para observar as formas de expressão do amar e do navegar. Considerarei, como anteriormente: nomes (substantivos e adjetivos; também lexias ou frases feitas). Pelo que direi, em seguida, tratarei, em separado, as de Charinho. Das vinte e quatro cantigas de amigo que compõem os Cancioneiros dos trovadores do mar, são, certamente, as de Paay Gômes Charinho as mais elaboradas quanto à forma. Dessas seis cantigas de número XX, XXI, XXII, XXIII, XXIV e XXV, na edição de Celso Cunha, reimpressas por Elsa Gonçalves

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Melhor negócio seria, então,





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(1999, p. 133-140), diz da primeira – As frores do meu amigo, o especialista galego Xosé Filgueira Valverde.





[A cantiga XX] junta o motivo erótico das flores com o do mar (...); de idéia claramente desenvolvida, movimento aquecido e justa proporção é uma das mais rigorosamente perfeitas do Cancioneiro segundo os cânones da versificação dos trovadores (1992, p. 89-90) [tradução minha].

Destacarei, portanto, para iniciar essa cantiga composta de seis estrofes que se iniciam por dois versos de estrutura paralelística, que transcreverei, destacando os itens lexicais que interessam a este estudo: As frores do meu amigo / briosas vam no navio! (vs. 1 e 2). As frores do meu amado / briosas vam (e))-no barco! (vs. 7 e 8). Briosas vam no navio / pera chegar ao ferido (vs. 13 e 14). Briosas vam e)-no barco / pera chegar ao fossado (vs. 19 e 20). Pera chegar ao ferido, / servir mi, corpo velido (vs. 25 e 26). Pera chegar ao fossado, / servir mi, corpo loado (vs. 25 e 26).

Amigo e amado, pode-se dizer, são sinônimos perfeitos nas cantigas de amigo; ferido e fossado, por metonímia, são também sinônimos de amigo e amado. Note-se que, nos quatro primeiros versos acima transcritos, alternam, também como sinônimos, navio e barco. Nos dois últimos versos acima, destaco o “serviço amoroso”, próprio ao amor cortês à amada de corpo velido, de corpo loado. E as frores briosas? Segundo Elsa Gonçalves e Maria Ana Ramos, interogativamente, referem-se elas, metaforicamente, às “flores de lis do escudo do Almirante Pai Gomez Charinho (?)” (1983, p. 214). Ao final de cada estrofe, seguem-se os versos: Idas som as frores / d’aqui bem com meus amores! (vs. 5 e 6; 11 e 12; 17 e 18; 23 e 24; 29 e 30; 35 e 36).

Certamente, a referência do refrão expressa a partida pelo mar, para a guerra do Almirante amigo / amado, porque ferido e fossado têm referências bélicas. Diga-se, para o leitor que não conheça o léxico medieval, que fossado quer dizer: “obrigação que os nobres tinham de acompanhar o monarca nas suas incursões em território inimigo” (GOLÇALVES e RAMOS, 1983, p. 332, s.v.). Os dois versos que intermedeiam os apresentados, E vam-s(e) as frores / daqui bem com meus amores (vs. 3 e 4; 9 e 10; 15 e 16; 21 e 22; 27 e 28; 33 e 34),

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Disserom-m’oj’ay amiga! que nom / é meu amig’almirante do mar, / e meu coraçom já pode folgar / e dormir já (...) (vs. 1 a 4).

A amada já pode folgar e dormir, o Almirante estará de volta, o que ficará claro na cantiga XXV. Na seqüência da XXI, está: Muy bem é a mim, ca já nom andarey / triste por vento que veja fazer, nem por tormenta nom ey de perder / o son’ (...) (vs. 7, 8, 9 e 10). A amada não há de perder o sono, nem andará triste, temendo vento e tormenta.

No belo refrão que acompanha as três estrofes, o que do mar meu amigo sacou, / saque-o Deus de coytas qu’afogou (vs. 5 e 6; 11 e 12; 17 e 18),

almeja a amiga e pede a Deus que o amado tenha afogado no mar suas coytas, já que no mar não se afogou. Na cantiga XXV, breve e bela, agradece a amiga a Santiago por ter trazido de volta o seu amigo: Ay Sant’Iago, padrom sabido, / vós me adugades o meu amigo (vs. 1 e 2; 5 e 6).

Concluem as duas estrofes: Sôbre mar vem quem frores d’amor tem! / Mirarey as torres de Geem! (vs. 3 e 4; 7 e 8).

Já em terra, quem tem fores de amor, ou seja, o Almirante, e a amiga mirará as torres do castelo de Jaén, talvez a morada do amado. A cantiga XXII é uma reflexão da amiga sobre o amor do amado; em seu refrão expressa sua dúvida amorosa:

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parecem expressar a partida e o ato consumado de ir o amado para a guerra. Não é sem razão que Filgueira Valverde assim interpreta o belo ritmo da cantiga: “Sob seus versos estão, sem embargo, os remos a bater nas águas” (Ibid, p. 90) [tradução minha]. As cantigas XXI e XXV parecem expressar a seqüência dos acontecimentos da XX. Inicia a XXI:





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se mi quer bem, que lho quero eu mayor, / e, se lhi vem mal, que é por senhor (vs. 5 e 6; 11 e 12; 17 e 18).





Nas três estrofes, espécie de monólogo, cogita sobre o amor do seu amado: Que muytas vezes eu cuydo no bem / que meu amigo mi quer e no mal / que lhi por mi de muytas guisas vem! (vs. 1, 2 e 3).

Continua a cuydar (‘cogitar’) na estrofe seguinte: E poys (é) assi, que razom diria? / Porque nom sofra mal nom a razom, e, / u eu cuydo que nom poderia, – / tam gram bem mi quer! (vs. 7, 8, 9 e 10).

Também na última, prossegue no seu cuydar: E por tod’esto dev’el a sofrer / tod’aquel mal que lh’oje vem por mi, / pero cuydo que nom pode viver, – tam gram bem mi quer! (vs. 13, 14, 15 e 16).

Cuydar, sofrer mal, querer bem são expressões-chave nessa cantiga de amigo, que bem poderia ser uma cantiga de amor, se não houvesse no verso 2 a referência explícita ao amigo. Na cantiga XIII, a mãe aconselha a filha, para não confiar no amigo; o refrão é muito sugestivo e incisivo: que nulha rem nom creades / que vos diga, que sabyades (vs. 5 e 6; 11 e 12; 17 e 18).

Por que razão dá a mãe esse conselho à filha? Para defendê-la; vejamse os versos das três estrofes: Mya filha, nom ey eu prazer / de que parecedes tam bem, / ca voss’amigo falar vem / convosqu’ (...) (vs. 1, 2, 3, 4). Filha, ca perderedes i / e pesar-my-á de coraçom; / e já Deus nunca mi perdom / se ment’ (...) (vs. 7, 8, 9 e 10). Filha, ca perderedes i, / e vedes que vos averrá: / des quand’eu quiser nem será, / ora vos defend(o) aqui (vs. 13, 14, 15 e 16).

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vos sempre serviu (v. 1). sabemos que nom / vos errou nunca voss’amigu’e som / maravilhados todos ende aqui (vs. 8, 9 e 10). serviu-vos sempr’e fazerdes-lhi mal. / E que diredes d’el assi perder? (vs. 15 e 16).

Conclui o amigo que a amiga ouviu dizer novidades não verdadeiras sobre o amigo e por isso morre de amor, claro, não correspondido: Nom sey, amiga; dizem que oíu / dizer nom sey quê, e morre por em (vs. 5 e 6). Nom sey, amiga; el cada u é / aprende novas com que morr’assi (vs. 11 e 12). Nom sey, amiga; el quer sempr’oir / novas de pouca prol pera morrer (vs. 17 e 18).

Se as cantigas XX, XXIV e XXV tratam do amar e do navegar, nas de número XXII, XXIII e XXVI, Charinho se concentra em faces da arte de amar – a dúvida amorosa, o cuidado materno, o desfazer-se de um amor por ouvir “dizer nom sey quê” ou “novas de pouca prol”. Figueira Valverde, ao tratar de Joan Zorro, diz que da série poética de onze cantigas “apenas três não falam do mar, as outras, contudo, têm o mar como motivo principal” (Ibid, p. 87). Comparando Zorro a Codax, esse autor considera que “talvez seja superior a Codax nos recursos métricos, embora de muito menor importância poética” (Ibid, p. 90). Se nas cantigas de Zorro apenas três não falam do mar, nas de Codax, a última das sete, na edição de Celso Cunha, não fala de Vigo, cidade galega, e seu mar. Vejamos então o amar e o navegar nas onze cantigas de Joan Zorro e nas sete de Codax. Celso Cunha intitula a cantiga I de Pastorela; as de número II a VIII de Barcarola e as de número IX e XI de Tenção. As de Martin Codax apenas númera de I a XI, seguindo a ordem do Pergaminho Vindel.

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Muito simplesmente se pode parodiar essa cantiga XXIII: “não diga que não lhe avisei!”. Na cantiga XXIV, o amigo pergunta à amiga por que razão ela não lhe quer mais, ele que





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Por curiosidade, verifiquei, em primeiro lugar, aquelas cantigas de Joan Zorro que “não falam do mar”, segundo Filgueira Valverde: suponho que são, conforme a edição de Celso Cunha, a Pastorela (n. I) e as duas que intitula de Tenção (as de n. X e XI). Na Pastorela, o refrão, que acompanha as três estrofes, é: Ay amor, leixedes-me oje / de sô lo ramo folgar / e depoys treydes-vos migo / meu amigo demandar (vs. 5, 6, 7, 8; 13, 14, 15, 16 e 21, 22, 23, 24).

A amiga invoca o amor pela presença do amigo, a fim de que possa sô lo ramo folgar, ou seja, folgar sob os ramos, desde que o amigo venha estar com ela. Nas três estrofes, expressa a “amiga”, que andava fremosi)ha (v. 1); de amor coytada (v. 2); muito namorada (v. 3); fremosa (v. 10); d’amor chorando (v. 10); fazendo queyxumes d’amor d’amigo (v. 18); diria que estava à espera do amado, para, por fim, sô lo ramo folgar (vs. 6, 14 e 22). A Tenção de número dez é um diálogo entre mães e filha. A filha enamorada se lamenta porque o amado partiu com o rei: – Os meus olhos e o meu coraçom / e o meu lume foy-se com el-rey! (vs. 1 e 2). – Que coyt’ouv’ora’ el rey de me levar / quanto bem avia, nen ey d’aver (vs. 7 e 8).

O amado é para a amiga: meus olhos; meu coraçom; meu lume; quanto bem avia e há d’aver. A mãe pergunta quem é este por quem a filha espera, Quem est’, ay filha, se Deus vos perdon? / Que my-o digades gracir-volo-ey (vs. 3 e 4). Non vos ten prol, filha, de my-o negar, / ante vo-lo terrá de my-o dizer (vs. 9 e 10).

e agradecerá (gracir-vo-lo-ei) se a filha lhe disser e insiste que ela o diga (terrá de my-o dizer). Responde, por fim, a filha: Direy-vo-l’eu e, poys que o disser, / nom vos pês, madre, quand’aqui veer (vs. 5 e 6; 11 e 12).

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– Cabelos, los meus cabelos, / el-rei m’enviou por elos! (vs. 1 e 2). – Garcetas, las mias garcetas, el-rei m’enviou por elas! (vs. 5 e 6).

Cabelos e garcetas são de certo modo itens sinônimos, por metonímia, já que garceta é uma “mecha” ou uma “trança” de cabelos e não era a mão que se pedia, mas, sim, os cabelos. Responde a mãe, concordando com o pedido: – Filha, dade-os a el rey (v. 4). – Filha, dade-as a el rey (v. 8).

As cantigas centradas no mar ou na ribeira do rio são as Barcarolas (cantigas II, II, IV, V, VII, VIII, IX, X); no mar, são as de números II e II e, na ribeira do rio, as outras sete cantigas. Na Barcarola II, o amado informa à amiga: En Lisboa sôbre lo mar / barcas novas mandei lavrar (vs. 1 e 2). En Lisboa sôbre lo lez / barcas novas mandey fazer (vs. 5 e 6). Barcas novas mandey fazer / e no mar as mandey meter (vs. 10 e 11). E no refrão há a emnção à amiga: Ay mia senhor velida (vs. 3, 6, 9 e 12)).

Vale esclarecer, para o leitor que não convive com o léxico arcaico, dois itens: lez e velida; o primiero significa ‘costa (do mar)’, ‘beira mar’ e o segundo, ‘formosa’ (cf. CUNHA, apud GONÇALVES, s. v. pags. 272 e 288, respectivamente). Na Barcarola II, o rei de Portugal manda fazer barcas e lançá-las ao mar:

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Ela dirá quem é o amado, mas que a mãe não se “desagrade” (non vos pês) quando o amigo vier à presença da mãe. A tenção de número XI é mais um diálogo entre mãe e filha e trata do pedido de casamento que o rei mandou fazer à amiga:





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El-rey de Portugal / barcas mandou lavrare (vs. 1 e 2).













El-rey portuguese / barcas mandou fazere (vs. 5 e 6). Barcas mandou lavrare / e no mar as deytare (vs. 9 e 10). Barcas mandou fazere / e no mar as metere (vs. 13 e 14).

Sendo o refrão: e lá irão na barcas migo, mya filha e noss’amigo (vs.3, 4; 7, 8; 11, 12; e 15, 16).

Assim informa à amiga o amigo. As Barcarolas seguintes se centram no “rio” ou na “ribeira do rio”, ou seja, às suas margens; na de número IV, a amiga irá com o amado para onde ele for. O refrão diz tudo: Amores, convusco m’irey (vs. 4, 8, 12 e 16). Nas quatro estrofes, a amiga confirma a sua decisão: Jus’a lo mar e o rio / eu namorada irey, / u el-rey arma navio (vs. 1, 2 e 3). Jus’a lo mar e o alto / eu namorada irey, / u el-rey arma barco (vs. 5, 6 e 7). U el-rey arma barco / eu namorada irey, / pera levar a d’algo (vs. 13, 14 e 15).

Note-se a sinonímia mar e alto e a amiga é qualificada de namorada. Uma “namorada” decidida, certamente! Na Barcarola V, de estrofes singelas, informa a amiga à mãe: Pela ribeyra do rio salido / trebelhey, madre con meu amigo (vs. 1 e 2). Pela ribeyra do rio levado / trebelhey, madre con meu amado (vs. 7 e 8).

Já mais complexa é o que chamarei de refrão, em que a amiga se justifica à mãe por ter trebelhado (‘folgar’, ‘brincar’; cf. Cunha, Celso, apud Gonçalves, Elsa, s. v. pag. 287): amor ey migo / que non ouvesse! / fiz por amigo / que non fezesse! (vs. 3, 4, 5 e 6; 9, 10, 11 e 12)).

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Na singela Barcarola VI, a amiga observa o amado a remar na “ribeira do rio”:





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Per ribeyra do rio / vi remar o navio (vs. 1 e 2). Per ribeyra do alto / vi remar o barco (vs. 4 e 5). Vi remar o navio / i vay o meu amigo (vs. 7 e 8). Vi remar o barco / i vay o meu amado (vs. 10 e 11). I vay o meu amigo, / quer-me levar consigo (vs. 13 e 14). I vay o meu amado, / quer-me levar de grado (vs. 16 e 17).

Notem-se as sinonímias ribeyra do rio / ribeyra do alto; navio / barco e amigo / amado. No refrão diz a amiga: e sabor ey da ribeyra (vs. 3, 6, 9, 12, 15 e 18).

A ribeyra não poderia ser mais “saborosa”. Na Barcarola VII, mais uma vez a amiga dialoga com a mãe, como se vê no refrão: alá vay madr’ond’ey suidade! (vs. 3 e 6). Por que tem ela saudade? Met’el-rey barcas no rio forte; / quen amig’á que Deus lh’o amostre (vs 1 e 2). Met’el-rey barcas na extremadura; quen amig’á Deus lh’o aduga (vs. 4 e 5).

Porque o amado foi com o rei no rio forte e a amiga pede a Deus que o traga de volta (Deus lh’o aduga). Na última Barcarola, a VIII, canta à beira do rio a amiga: Venham nas barcas polo rio / a sabor (vs. 4 e 5; 9 e 10).

Esse canto se explicita nos versos que precedem o refrão: Pela ribeyra do rio / cantando ia la dona-virgo / d’amor (vs. 1, 2 e 3).







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Pela ribeyra do alto / cantando ia la dona-d’algo / d’amor (vs. 7, 8 e 9).













Notem-se os sinônimos: ribeyra do rio / do alto e dona-origo / donad’algo. A cantiga IX é uma bailada e trata, com simplicidade, do bailado das amigas velidas sob a sombra das avelaneiras; o refrão explicita isso: sô aquestas avelaneyras frolidas / verrá baylar! (vs. 5, 6 e 11, 12). E por que bailam as amigas velidas? Baylemos agora, por Deus, ay velidas / sô aquestas avelaneyras frolidas / e quen fôr velida, como nós velidas, / s’amig’amar (vs. 1, 2, 3 e 4). Baylemos agora, por Deus, ay loadass / sô aquestas avelaneyras granadas / e quen fôr loada, como nós loadas, / s’amig’amar (vs. 7, 8, 9 e 10).

Velidas e loadas bailam as amigas se estão amando o amigo (s’amig’amar). Nesta bailada o “trovador do mar” Joan Zorro não trata do mar, mas do amar. Conclui-se, então, diferentemente de Filgueira Valverde, que são quatro e não três as cantigas de Joan Zorro que não tratam do mar ou da ribeira do rio. As sete cantigas de amigo são consideradas por Filgueira Valverde não só como de maior “importância poética” que as de Joan Zorro (cf. Ibid, p. 89), mas ainda considera esse especialista galego Martin Codax “o maior dos nossos poetas marinheiros” (Ibid, p. 89), com já antes referido. Não direi que não compartilho desse julgamento, mas avento que não é fácil tomar tal decisão. Iniciarei pela última das cantigas, já que se destaca, como ressaltado, por não falar de Vigo. É ela a de número VII, na edição de Celso Cunha, que como antes assinalado, segue a ordem do Pergaminho Vindel. Elsa Gonçalves e Maria Ana Ramos, seguindo Tavani, convidam o leitor à leitura das sete cantigas “como se se tratasse de um único poema” porque todos os textos são cantigas d’amigo paralelísticas e têm o mesmo esquema rimático; todas têm o mesmo tema, (...) têm o mesmo tema e desenvolvem um discurso poético unitário e coerente (1983, p. 266-267).

Sobre a cantiga VII dizem as mesmas autoras que sua “função conclusiva a isola como se fosse uma finda (é a mais curta), as outras seis alternam-se em estruturas de 4 estrofes e de 6” (Ibid, p. 267). Mais adiante dizem: “Nas

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se me saberedes dizer / porque tarda meu amigo / sem mim? (vs. 2, 3 e 4). se me saberedes contar / porque tarda meu amigo / sem mim? (vs. 6, 7 e 8).

Segundo o direcionamento das autoras citadas, observarei primeiro as cantigas I, III e V, cujo “elemento temático chave é ondas”: Na cantiga I, a amiga interroga às ondas do mar de Vigo (v.1), sobre o amigo: se vistes meu amigo (v. 2).

Sobre o amado: Ondas do mar levado / se vistes meu amado? (vs. 5 e 6).

Continua a perguntar: se vistes meu amigo / o por que eu suspiro? (vs. 7 e 8). se vistes meu amado / por que ey gran coydado? (vs. 9 e 10).

No refrão, evoca Deus e exclama, desejando que o amigo / amado venhal logo: E ay Deus, se verrá cedo (vs. 3, 6, 9 e 12).

A cantiga III, mais complexa que a anterior, convida a irmana para mirar as oìdas (E miremos las ondas!) (vs. 3, 6, 9 e 12), que é o refrão do poema. Nas duas primeiras estrofes busca persuadir à irmana: Mia ìrmana fremosa, treydes comigo / a la igreja de Vig’u é o mar salido (vs. 1 e 2).

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cantigas I – III – V (...) o elemento temático chave é ondas e nos pares é Vigo” (Ibid). Vejamos, então, a VII, começando, portanto pelo fim, ou pela finda como analisam Elsa Gonçalves e Maria Ana Ramos. Consta essa cantiga de duas estrofes que são duas interrogações às ondas (Ay ondas) (vs. 1 e 5).





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Mia irmana fremosa, treydes de grado / a la igreja de Vig’u é o mar levado (vs. 4 e 5).





Nas duas últimas, esclarece por que deseja ver o mar: A la igreja de Vigo, u é o mar salido, / e verrá i mia madr’e o meu amigo (vs. 7 e 8). A la igreja de Vigo, u é o mar levado, / e verrá i mia madr’e o meu amado (vs. 10 e 11). porque para a igreja de Vigo irão a mãe e o amigo / amado.

Na cantiga V, a amiga não quer só “mirar o mar”, mas banhar-se nele com outras amigas / amadas, o que está claro no refrão: E banhar-nos-emos nas ondas! (vs. 3, 6, 9 e 12). Pela razão clara de que ali é o lugar para amar: Quantas sabedes amar amigo / treydes comig’a lo mar de Vigo (vs. 1 e 2). Quantas sabedes amar amado / treydes comig’a lo mar levado (vs. 4 e 5). Treydes comig’a lo mar levado / e veeremo-lo meu amado (vs. 10 e 11).

Nos dois últimos versos transcritos, vê-se que o convite às amigas para banharem-se no mar de Vigo é um pretexto, válido, para que possa ver o seu amado. Observemos, na seqüência, as cantigas pares, em que, conforme Elsa Gonçalves e Maria Ana Ramos, o “elemento temático é Vigo” (Ibid, p. 267) e não as “ondas”: Na cantiga II, o refrão mostra a decisão da amiga, quando informa à mãe: E irey, madr’, a Vigo! (vs. 3, 6, 9, 12, 15 e 18). A razão é receber o amigo, informado que foi de sua vinda: Mandad’ey comigo / ca ven meu amigo (vs. 1 e 2). Comigu’ey mandado / ca vem meu amado (vs. 4 e 5).

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Ca ven meu amigo / e ven san’e vivo (vs. 7 e 8). Ca ven meu amado / e ven viv’e sano (vs. 10 e 11). Ca ven viv’e sano / e d’el rey privado (vs. 16 e 17).

Na cantiga IV, a amiga, enamorada, pergunta a Deus pelo seu amado, por que continua a esperar e a amar. O refrão é: E sou namorada (vs. 3, 6, 9, 12, 15 e 18). [= e continuo enamorada].

Nas duas primeiras estrofes diz da sua solidão: Ay Deus, se sab’ora meu amigo / com’eu senheyra estou en Vigo! (vs. 1 e 2). Ay Deus, se sab’ora meu amado / com’eu en Vigo senheyra manho! (vs.3 e 4).

Notem os menos habituados ao léxico arcaico que senheyra e manho, respectivamente, significam: ‘sozinho’ e ‘permaneço’. Nas estrofes três e quatro, continua a amiga sanheyra e sem gardas (‘proteção’, ‘acompanhante’): Com’eu senheyra estou en Vigo, / e nulhas gardas migo trago! (vs. 7 e 8). Com’eu en Vigo senheyra manho, / e nulhas gardas migo non trago! (vs. 10 e 11).

Nas duas últimas estrofes, comoestá sozinha, choram os seus olhos: E nulhas gardas non ey comigo, / ergas meus olhos choran migo! (vs. 13 e 14). E nulhas gardas migo trago, / ergas meus olhos choran ambos! (vs. 16 e 17).

Vale esclarecer que ergas é uma conjunção arcaica equivalente a por isso, portanto. Na cantiga VI, baila a amiga porque tem o seu amado. O refrão: Amor ey! (vs. 3, 6, 9, 12, 15 e 18) (‘tenho amor’).

Nas seis estrofes de dois versos, expressa Martin Codax a felicidade da amiga:

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O amigo, ela foi informada, vem vivo, são e amigo do rei:





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Eno sagrado, en Vigo, / baylava corpo velido (vs. 1 e 2).













En Vigo, no sagrado / baylava corpo delgado (vs. 4 e 5). Baylava corpo velido, / que nunc’ouver’amigo (vs. 7 e 8). Baylava corpo delgado, / que nunc’ouver’amado (vs. 10 e 11). Que nunc’ouver’amigo / ergas no sagrad’en Vigo! (vs. 13 e 14).

Com os argumentos antes transcritos de Elsa Gonçalves e Maria Ana Ramos poderei concordar com Filgueira Valverde: Martin Codax, “o maior de nossos poetas marinheiros”. Além dos argumentos referidos, diria que, com tão pouco, Codax, poeta, diz tanto! Arrolarei em seguida os itens lexicais – substantivos, adjetivos, verbos e lexias ou frases feitas – encontrados nas cantigas de amor de Charinho e nas cantigas de amigo dos três “trovadores do mar”, sem exemplificação, para evitar redundâncias e sem identificar os trovadores. Seguireia ordem anteriormente apresentada. Quanto aos verbos, apresentarei na forma do infinitivo; por vezes, entre parênteses, apresentarei o contexto contíguo ou o significado atual do item. O objetivo deste rol é faclitar ao interessado a consulta e dar uma idéia de conjunto do campo léxico-semântico antes descrito e comentado. SUBSTANTIVOS (A) SENHOR MAR BONDADE MESURA DONA MAL (BOM) PARECER (BELA) FIGURA MANSEDUME (‘mansidão’)

SERVIDOR ACONSELHADOR SOFREDOR LUME (BOM) PREZ (‘bom preço’, ‘bom valor’) FRORES (D’AMOR) BARCO NAVIO TORMENTA AMOR AMIGO CABELOS GARCETAS (‘mecha de cabelo’) ALTO (‘mar’) RIO AVELANEYRA ONDAS IRMANA GARDAS (‘acompanhantes’)

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FREMOSA APOSTA MANSA BRIOSA FERIDO FOSSADO (‘atividade bélica’) VELIDO LOADO (‘louvado’) FREMOSI) HA NAMORADA SALIDO (‘mar’) LEVADO (‘mar’) (rio) FORTE GRANADAS (‘avelaneyras’) SENHEYRA (‘sozinha’) (corpo) DELGADO VERBOS NAVEGAR ESPEDIR (‘despedir’) NEMBRAR CATAR SERVIR GRACIR (‘agradecer’) LAVRAR BAYLAR TARDAR

LEXIAS E FRASES FEITAS ANDAR TRISTE DESEJAR O CORPO IR PER U FOR (u, ‘onde’) QUERER LEIXAR NEM BEM NEM MAL NOM PODER QUITAR COYTA D’AMOR COYTA DO MAR MELHOR DONA DO MUNDO QUERER (GRAM) BEM NON QUERER MORRER FAZER SERVIÇO QUERER DIZER

AVER DOO FALAR APOSTO PERDER O SONO AFOGAR COYTAS ADUZER O AMIGO (‘trazer o amigo’) FRORES D’AMOR MIRAR AS TORRES CUYDAR NO BEM E NO MAL DEUS NUNCA ME PERDOM (‘Deus nunca me perdoe) OUIR DIZER NO SEI QUÊ APRENDER NOVAS NOVAS DE POUCA PROL (‘novidades de pouco proveito’) FOLGAR SO O RAMO (da árvore)





ADJETIVOS











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Revista do Gelne























NON OUSAR DIZER LUME DOS OLHOS DE BÕA RAZOM DAS DONAS A MELHOR NON PODER DORMIR AVER BEM SOFRER MAL GRAM BEM GRAM MAL DO SOFRER DESEJAR A NOITE E O DIA FAZER FOLIA (‘enlouquecer’) DEVER MORRER POR MAL PERDER O SEM (‘perder o juízo’) NOM SABER QUE DIZER NOM VI)I)R MAL AVER SABOR SOFRER COYTA / SOFRER MAL BARATAR MELHOR (‘negociar melhor’) PRENDER CONSELHO

DEMANDAR O AMIGO (‘procurar o amigo’) CHORAR D’AMOR TE)E)R DE DIZER RIBEIRA DO RIO BARCAS NOVAS DEYTAR / METER NO MAR TREBELHAR (‘brincar’) COM O AMIGO AVER SABOR AVER SUYDADE (‘ter saudade’) DONA VIRGO DONA D’ALGO SABER CONTAR AVER COYDADO MIRAR AS ONDAS BANHAR NAS ONDAS AVER MANDADO (‘ter informação’) SABER DO AMIGO / AMADO MÃER SENHEYRA (‘ficar sozinha’) AVER AMOR

Referências CUNHA, Celso Ferreira da. Cancioneiros dos trovadores do mar. Edição preparada por Elsa Gonçalves. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1999. FILGUEIRA VALVERDE, Xosé. Estudios sobre lírica medieval. Trabalhos dispersos (1925-1987). Vigo: Editorial Galáxia, 1992. GONÇALVES, Elsa & RAMOS, Maria Ana. A lírica galego-portuguesa (textos escolhidos). Lisboa: Editorial Comunicação, 1983. MACHADO FILHO, Américo Venâncio Lopes. O que revela um manuscrito trecentista sobre “as formas de amar” na sociedade medieval: uma abordagem em campos associativos. Comunicação ao VI Encontro Internacional da Associação de Estudos Medievais. Salvador: 2003 (a sair nas Atas). TAVANI, Giuseppe & LANCIANI, Giulia. Dicionário da literatura medieval galega e portuguesa. Lisboa: Caminho, 1993. TAVANI, Giuseppe. (1988). Ensaios portugueses. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1988.

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Os trabalhos enviados serão submetidos ao Conselho Editorial desde que estejam de acordo com as normas elencadas a seguir: • Os trabalhos devem ser enviados em 3 (três) vias digitadas em Times New Roman, corpo 12, Word, acompanhado de cópia em disquete ou CD com etiqueta identificando o(s) autor(es); • Os trabalhos devem ser precedidos de uma lauda contendo título do trabalho nome do(s) autor(es), nome da instituição à qual pertence(m) e endereço para correspondência; • Os trabalhos devem ser acompanhados de um resumo em inglês (até 300 palavras. Seguindo o resumo, em linha separada, devem constar as palavraschave; • As ilustrações (tabelas, gráficos, fotos, etc.) devem ser colocadas em seus lugares definitivos com títulos na parte inferior; • As notas devem ser digitadas no rodapé, numeradas em arábico. A nota para o título deve ser indicada com uso do asterisco. Não devem ser utilizadas notas para referências bibliográficas, apenas eventuais explicações. Para referências, devem ser feitas no corpo do trabalho (ex.: Jakobson (1952, p. 3). Caso o sobrenome do autor esteja entre parênteses, utilizar caixa alta (ex.: (JAKOBSON, 1952, p. 3)); • As referências bibliográficas e outras: digitar a palavra REFERÊNCIAS. Os autores devem estar em ordem alfabética, sem numeração das entradas e sem espaço entre eles. Os títulos de livros e revistas devem vir em negrito. Na segunda entrada do mesmo autor, utilizar um traço de 06 toques. A data identificadora da obra deve estar entre parênteses após o nome do autor. Mais de uma obra no mesmo ano para o mesmo autor, identificar com letras minúsculas após a data. • Exemplos de referências: LABOV, William (2001). Principles of linguistic change: social factors. Oxford: Blackwell Publishers. PATRICK, Peter L. (1991). Creoles at the intersection of variable processes: -t,d deletion and past-marking in the Jamaican mesolect. Language Variation and Change. Cambridge: Cambridge University Press, p. 171189. • As citações com até três linhas devem estar entre aspas e no corpo do trabalho. Com mais de três linhas devem adentramento à esquerda de 04 cm, e corpo 11, sem adentramento à direita; • Extensão dos trabalhos: Artigos, entre 10 e 15 páginas; Resenhas, entre 3 e 5 páginas. • Os originais enviados não serão devolvidos.

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NORMAS PARA APRESENTAÇÃO DE TRABALHOS





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