Revista do GELNE, João Pessoa, v. 8 n.1/2 (2006)

July 19, 2017 | Autor: R. Gelne | Categoria: Lingüística, Linguistica aplicada, Letras
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Vol. 8 - Nos. 1/2 - 2006

GRUPO DE ESTUDOS LINGÜÍSTICOS DO NORDESTE

GELNE

REVISTA DO GELNE Dermeval da Hora (UFPB) Eliane Ferraz Alves (UFPB) Lucienne C. Espíndola (UFPB) Maria Elizabeth Affonso Christiano (UFPB) Marianne Bezerra Cavalcante (UFPB) (Organizadores)

Revista do Grupo de Estudos Lingüísticos do Nordeste - GELNE João Pessoa Vol. 8 Nos. 1/2 2006 ISSN 1517-7874

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Todos os direitos reservados ao GELNE Editoração Eletrônica Magno Nicolau Realização Grupo de Estudos Lingüísticos do Norte e Nordeste (GELNE) www.gelne.org.br

Revista do GELNE - Grupo de Estudos Lingüísticos do Nordeste - Vol. 8 - Nos. 1/2 - João Pessoa: Idéia, 2006. Semestral ISSN 1517-7874 1. Língua - Lingüística - Literatura - Periódicos I. Grupo de Estudos Lingüísticos do Nordeste Endereço para correspondência: Mailing address Grupo de Estudos Lingüísticos do Nordeste Universidade Federal da Paraíba / CCHLA Cidade Universitária 58.059-970 João Pessoa-PB Fone/Fax: (83) 3216-7280 Site: www.gelne.org.br E-mail: [email protected]

EDITORA LTDA. (83) 3222–5986 www.ideiaeditora.com.br [email protected] Impresso no Brasil

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REVISTA DO GELNE

Dermeval da Hora (UFPB) Eliane Ferraz Alves (UFPB) Lucienne C. Espíndola (UFPB) Maria Elizabeth Affonso Christiano (UFPB) Marianne Bezerra Cavalcante (UFPB) (Organizadores)

Idéia João Pessoa 2006

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA COMITÊ EDITORIAL Américo Venâncio Lopes Machado Filho (UFBA) Dermeval da Hora (UFPB) – Presidente Dóris de Arruda Carneiro da Cunha (UFPE) José de Ribamar Mendes Bezerra (UFMA) Maria Elias Soares (UFC) Socorro de Fátima Pacífico Barbosa (UFPB) CONSELHO EDITORIAL Ana maria Martins - Universidade de Lisboa Ataliba Teixeira de Castilho - USP Célia Marques Telles - UFBA Diana Luz Pessoa de Barros - USP Dino Preti - USP Ingedore Vilaça Koch - UNICAMP José Luiz Fiorim - USP Kazuê Saito de Barros - UFRN Luiz Antônio Marcuschi - UFPE Maria Aparecida Barbosa - USP Maria da Piedade de Sá - UFPE Maria do Socorro Simões - UFPA Sônia Maria van Dijck Lima - UFPB Stella Maris Bortoni-Ricardo - UNB GRUPO DE ESTUDOS LINGÜÍSTICOS DO NORDESTE Presidente Vice-Presidente Secretária Tesoureira Suplente-Secretária Suplente-Tesureira

Prof. Dr. Dermeval da Hora (UFPB) Profa. Dra. Ma. Elizabeth Affonso Christiano (UFPB) Profa. Dra. Socorro de Fátima Pacífico Vilar (UFPB) Profa. Dra. Lucienne C. Espíndola (UFPB) Prfa. Dra. Eliane Ferraz Alves (UFPB) Profa. Dra. Marianne Bezerra Cavalcante (UFPB)

CONSELHO TITULARES Prof. Dr. Antônio Luciano Pontes (UECE) Profa. Dra. Célia Marques Telles (UFBA) Profa. Dra. Maria Éster Vieira de Sousa (UFPB) Profa. Dra. Conceição de Maria de Araújo Ramos (UFMA) Profa. Dra. Maria Elias Soares (UFCE) CONSELHO - SUPLENTES Profa. Dra. Maria das Graças Carvalho Ribeiro (UFPB) Profa. Dra. Kasuê Saito Barros (UFPE) Profa. Dra. Márcia Manir Miguel Feitosa (UFMA) Profa. Dra. Maria do Socorro Oliveira (UFRN) Profa. Dra. Serafina Maria de S. Pondé (UFBA)

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SUMÁRIO FOCUS STRUCTURES AND VS ORDER IN BRAZILIAN PORTUGUESE Mary A. Kato

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ESTABILIDADE NA VARIAÇÃO DA FLEXÃO DO INFINITIVO EM PORTUGUÊS: PROPRIEDADES DAS CONSTRUÇÕES E IMPLICAÇÕES TEÓRICAS Heloisa Maria Moreira Lima Salles

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O CLÍTICO SE EM FLORIANÓPOLIS: UMA ANÁLISE DA ALTERNÂNCIA ÊNCLISE/PRÓCLISE NUMA AMOSTRA (SÓCIO-GEO)LINGÜÍSTICA Marco Antonio Martins

41

UNA OJEADA A UNA INTERFERENCIA PORTUGUESA EN LA PERÍFRASIS CASTELLANA: UN ABORDAJE PEDAGÓGICO A PARTIR DE LA LINGÜÍSTICA COGNITIVA María Josefina Israel Semino

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A MODALIZAÇÃO NO GÊNERO NOTÍCIA JORNALÍSTICA Erivaldo Pereira do Nascimento

71

QUANTIDADE É ELEVAÇÃO VERTICAL: METÁFORA OU METONÍMIA? Emilia Maria Peixoto Farias

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METÁFORAS CONCEPTUAIS EM TEXTOS PRODUZIDOS NO PROCESSO SELETIVO SERIADO-2006 DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA Eliane Ferraz Alves, Vítor Feitosa Nicolau Janilda Anilde Guedes de Lima

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METÁFORAS CONCEPTUAIS EM EDITORIAIS COM TEMA SOBRE ECONOMIA Lucienne Claudete Espíndola

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O ESTUDO DA SINGULARIDADE DA FALA DA CRIANÇA: A QUESTÃO DA SUBJETIVIDADE DO INVESTIGADOR Fabiana Lins Browne Rego, Glória Maria Monteiro de Carvalho

117 A LEITURA DE POESIA EM SALA DE AULA: QUESTÃO DE GÊNERO OU DE MÉTODO? Josalba Ramalho Vieira

127 DIÁRIO DE LEITURA COMO INSTRUMENTO DE AÇÃO DIDÁTICA: UMA EXPERIÊNCIA Tânia Aires Costa

149 AS MÚLTIPLAS FACES DA INTERAÇÃO Regina Celi Mendes Pereira

163 PROBLEMAS E ENCAMINHAMENTOS DE UMA PROPOSTA DE ENSINO E/LE DENTRO DE UM ENFOQUE PRAGMÁTICO María del Pilar Roca Escalante, Rocío Serrano Cañas

175 PROJETOS DE ENSINO COMO ALTERNATIVA DIDÁTICA DE ARTICULAÇÃO ENTRE SABERES ACADÊMICOS E SABERES EXPERIENCIAIS DE PROFESSORES EM FORMAÇÃO Glícia Azevedo Tinoco

191 IDIOMAS NUM MUNDO GLOBALIZADO: O CASO DO ESPANHOL Maria das Graças Targino, Osvaldo Balmaseda Neyra

207 NORMAS

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Mary A. Kato

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FOCUS STRUCTURES AND VS ORDER IN BRAZILIAN PORTUGUESE1 (Estruturas de foco e a ordem VS no Português Brasileiro) ABSTRACT Brazilian Por tuguese has been shown to still license VS order with monoargumental verbs, but with some peculiar properties, such as lack of subject-verb agreement and lack of sentence focus reading. In this paper we claim that BP is not a language in an unstable state of syntactic change. All its constructions are shown to be coherent with a grammar that does not have a strong head C (cf. Uriagereka, 1992) to attract the tensed verb, or to check a constituent (Chomsky, 1995) as the narrow focus of the sentence. Focused elements are uniformly the predicate of the tense operator, which may appear lexicalized as the copula or only discernible by prosodic (the pause) or morphological features. What gives the final shape of some focus constructions in BP are deletion operations at the PF interface. Key-words: VS order, focus, agreement, clefting, copula. RESUMO A literatura tem mostrado que o Português Brasileiro (PB) vem perdendo a ordem VS, mas ainda licencia VS com verbos mono-argumentais, com algumas propriedades peculiares tais como a possibilidade de ausência de concordãncia verbosujeito e a não-possibilidade de leitura com foco sentencial. Neste trabalho, defende-se a idéia de que essas construções são legítimas construções de uma gramática estável que perdeu a possibilidade de gerar VS através de um núcleo forte que provoca a subida do verbo flexionado. O sujeito posposto focalizado é o predicado de um operador de tempo nulo ou lexicalizado via copula. O que dá a forma final dessas construções de foco são operações de apagamento na interface PF. Palavras-chaves: ordem VS, foco, concordância verbal, clivagem, cópula.

1. The decrease of free inversion in Brazilian Portuguese Among the changes that Brazilian Portuguese (BP) has been undergoing, the loss of VS inversion (both the Germanic VSO and the Romance VOS types) has been one of the most documented (see a.o. Berlinck, 1995). According to her data, these patterns were quite common in the 19th century:

* UNICAMP/ CNPq 1 Paper presented at the Colloquium on Portuguese Linguistics, University of California, Sta Barbara, 1996. I thank the audience for the questions and suggestions, especially Eduardo Raposo. I also thank Marcello M.Rosa for his kindness in reviewing my English.

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(1) a. Tem ele nove anos e será prudente criarmo-lo desde já para frade. (1845) (VSO) (lit.: has he nine years and will-be prudent (we) rear-him from now on) b. Tocou à minha cunhada, como principal bem de fortuna e fonte de renda, a conhecida fábrica de meias da rua de Santa Engrácia. (1896) (VOS) (lit.: touched to my sister-in-law, as main good of fortune and source of income the known factory of socks of the street Santa Engrácia) Berlinck claims that in the 20th century BP has only maintained the unaccusative VS of the type in (2): (2) Nesses planos estávamos, quando apareceu este homem, não sei donde, (...)(1845) European Portuguese (EP), on the other hand, seems to have preserved both VSO and VOS orders. (cf Costa, 1998, 2000): (3) a. Comeu o Paulo a sopa. (lit.: ate the Paul the soup) EP b. Comeu a sopa o Paulo. (lit.: ate the soup the Paul) EP Kato & Tarallo (1988) show, however, that in present BP VS can still appear not only with unaccusatives verbs , but also in V1 constructions with unergative verbs (exs in (4)), in a few V2 type constructions (exs in (5) and in Subject Right Dislocated structures (SRD) (ex. (6). (4) a.Viajou comigo um estrangeiro. (lit.: travelled with me a foreigner) b.Telefonou o cliente das 10. (lit: telephoned the client of 10 o’clock.) (5) a. Ali moram os meninos. (lit.: there live the boys) b. R$50.000 custou meu carro. (lit.: 50.000 cost my car) (6)

Dormiu cedo o menorzinho (lit.: slept early the little one)

The aim of this paper is to provide an analysis of the VS forms in (4), with the verb in first position, relating them to other facts of BP grammar, such as loss of agreement and copula erasure. The V2 type was studied in Kato (forth) and Kato and Mioto (2005), and the SRD type in Kato and Tarallo(1988, 2000).

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2. Brazilian Portuguese (BP): a puzzle for the parameter model of language change With mono-argumental verbs, BP can have subject focus in postverbal position like other Romance Null Subject (NS) languages or in an in-situ preverbal position like English. With verbs with more than one argument, Null Subject languages like EP can also obtain subject focus in the post-verbal position, but the possibility of focusing just the subject with such verbs in BP is attained only through the in-situ extra-heavy accent strategy. (7) a. – O João telefonou? ( “Has John called?” ) b1. – Não. Telefonou o PEDRO. (lit.: telephoned the Peter) b2. – Não. O PEDRO telefonou. (lit.: the PETER telephoned) (8) a. – O cachorro comeu os chocolates? (“Did the dog eat the chocolates?”) b1. – Não. Comeu-os o GATO. (lit: ate them the CAT) EP b2. - Não. O GATO comeu. (lit: the CAT ate) BP A diachronic hypothesis for BP could be that the mono-argumental VS constructions are residual cases of the old VS structure and the in-situ focus are the innovative form. From a socio-variationist perspective, it is common to assume that change spreads from certain contexts (social or linguistic) to others. But this view is untenable in the parametric perspective since it would entail the acceptance of V-raising as affecting certain contexts and not others. In order to assume a parametric change, a different hypothesis has to be entertained. My claim in this paper is that V-raising to a functional head above IP is not possible in BP and that all the forms for constituent focusing in this variety of Portuguese are coherent with one grammar and one strategy, namely the cleft and pseudo-cleft sentences, universal strategies for constituent, or identificational focusing.

3. Forms derived from the reduction of cleft sentences and pseudoclefts in BP BP has, along with the normal cleft and pseudo-cleft sentences, some constructions that may be claimed to be reduced types of cleft structures (cf. Casteleiro, 1979 and Kato & Raposo, 1996). The wh-questions are analyzed also as deriving from cleft sentences, and they also exhibit a reduced form.

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(9) a. (É) o PEDRO que ama a Maria. b. (Quem) o Pedro ama é a Maria. c. Quem (é) que ama a Maria?

BP BP EP BP

Notice that reduction consists of copula erasure in (9)a and c, and of the wh-operator in (9)b, the only one licensed in EP.

4. Further reduction With wh-questions, Duarte (1992) first observed that the VS order, which was the norm until the 18th century, gave way to the cleft questions: (10) a. Que faz você? (18th century) b. O que é que você faz? (19th century on) c. O que você faz? (20th century) According to the author, the SV order in (10)c. is a consequence of (10)b., in which the same word order is observed. However, Lopes Rossi (1995) correctly points out that EP also introduced the cleft sentences, but does not license the SV order without é que. Kato and Raposo (1996) establish the correlation of the SV order, not with the canonic cleft form é que, but rather, with the reduced form que, which is disallowed in EP. (11)

a. O que que você faz ? b. O que você faz?

(20th century) (20th century)

BP BP

*EP *EP

The b. form would result from a PF erasure of que. Likewise, the in-situ focus on the subject would derive from the PF erasure of que in a structure like (12)a. (cf. Kato & Mioto, 2005) (12) a. O PEDRO (que) ama a Maria.(lit.: the Peter that loves the Maria) b. O PEDRO ama a Maria (lit. the PETER loves Maria) 2

For Cinque (1993), the information focus of a sentence (as opposed to the identificational focus), is the deepmost element in the sentence. Moreover, the information focus can propagate leftwards, and may have the whole sentence as the informational focus. This does not happen with [10]b2 as the focus does not propagate upwards, excluding the verb as part of the focalized constituent.

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5. Puzzles in BP VS order 5.1. The subject focus reading of VS construction in BP: a problem for Cinque’s algorithm2 Except for some unaccusative constructions, VS in BP can only be interpreted as having identificational focus reading, contrary to other Null subject languages, which can conform to Cinque’s (1993) algorithm, according to which any constituent containing the stressed element can be the focus. (13) a. – O que foi? (lit.: What was it? = ‘What happened?’) b1. [FO Pedro [telefonou]] BP b2. [FTelefonou [ o Pedro]]. *BP (14)a. – Quem telefonou? b1.– Telefonou [Fo PEDRO].

BP

5.2. The lack of agreement in both unergative and unaccusative VS constructions Though BP has preserved the VS order with mono-argumental verbs, there is another ongoing change, namely the lack of verbal agreement with postposed subjects, even for speakers who retain agreement with preposed subjects: (15) a. Chegou as cartas (lit. arrived+3psing the letters) b. * As cartas chegou. (lit the letters arrived+3psing) (16) a. Telefonou uns clientes (lit. telephoned+3psing some clients) b. *Uns clientes telefonou. (lit. some clients telephoned+3psing) c. Viajou comigo o Pedro e a Maria (lit. travelled+3psing with me the Pedro and the Maria) A partial solution to this problem is given in Kato (2002), who analyzes the unaccusative VS order in BP as an existential construction. However, she does not provide a solution for the inergative VS and neither for unaccusative VS with a definite postverbal DP. 5.3. The use of nominative pronouns as objects: Present day BP does not present third person clitics like EP, as in (17), but resorts to the null object or the the non-clitic third person pronoun ele:

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(17) A Maria viu-o. (lit the Maria saw-3psingcl. “Mary saw him)EP (18) A:– Alguém viu o Pedro? (lit. someone saw the Pedro? “Has someone seen Peter?”) B:– A Maria viu Æ. (lit.: the Maria saw) B’– A Maria viu ele. (lit.: the Maria saw he) (19) A:– Quem a Maria viu? (lit. who the Maria saw? “who did Mary see?”) B:– A Maria viu ELE (lit. the Maria saw HE “Maria saw HIM”)

6. Proposal: deriving VS from reduced, or semi-pseudoclefts in BP As we saw in section 3., previous work (cf a.o. Casteleiros, 1979), semipseudoclefts ((20)b, (21)b and (22)b.)are assumed to derive from pseudoclefts ((20a.), (21)a. and (22)a.). What we are proposing is an additional reduction. From the b. forms we derive the c. forms, through copula erasure, like in other cases of cleft reduction. (20) a. O que eu quero é um EXPRESSO (lit. what I want is an expresso) pseudocleft b. Eu quero é um EXPRESSO. (lit. I want is an expresso)_ semi-pseudocleft c. Eu quero # um EXPRESSO. (lit. I want # an expresso) (21) a. Quem telefonou foi o PEDRO. (lit.: who telephoned-3rd p.s. was Peter.) pseudo-cleft b. Telefonou foi o PEDRO. (lit.: telephoned-3rd p.s. was Peter) semi-pseudo-cleft c. Telefonou # o PEDRO. V#S (22) a. O que chegou foram os OVOS. (lit.: what arrived-3rd p s. were the eggs) pseudo-cleft Chegou foram os OVOS.(lit.:arrived_3rd p.s. were the eggs) semi-pseudo-cleft Chegou # os OVOS. (lit.: arrived-3rd p.s.# the eggs) V#S As the VS forms are assumed to derive from pseudoclefts, and in these

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structures the only focus reading is the identificational type, we succeed in explaining why sentence informational focus cannot be obtained in such VS forms. The VS forms in (21)c and (22)c. are disguised cases of VS order. In other words, they can be considered a type of VS, not with the lexical verb, but with the copula. Notice, moreover, that it is the copula that agrees with the postposed DP, and not the lexical verb. When it is erased, what we have left is an apparent lack of agreement. The erasure of the copula seems to leave a slight pause, unlike copula erasure in the beginning of a clause, like in the sentences below: (23) a. (É) lindo o seu cabelo! b. (É) A MARIA que ama o Pedro. As for the non-accusative “object” ELE, observe that in the pseudo cleft clause from which we assume it originates, it has the copula predicate position, which requires the “default” nominative case of strong pronouns.2 (24) a. Quem eu encontrei foi ELE. (lit.: who I met was he.) b. Eu encontrei foi ELE. (lit.: I met was he) c. Eu encontrei # ELE (lit.: I met was he) Further evidence of the pseudo-cleft origin of VS sentences in BP comes from the fact that, , though licencing VS, the order VOS is disallowed in this variety. In order to derive a VOS sentence from a semi-pseudocleft, we would have to imagine that it comes from (25)b, which is somehow ill-formed: (25) a. Quem comeu os chocolates foi a Maria. b. *Comeu os chocolates foi a Maria. c. * Comeu os chocolates a MARIA. For some reason, semi- pseudoclefts is not possible when the wh-operator is the subject. We will leave this problem for future work. What we wanted to show is the fact that the ill-formedness of VOS word order is also connected to the ill-formedness of its corresponding semi-pseudocleft structure.

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To see more about strong pronouns in this position, consult Kato (1999).

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CONCLUSIONS By deriving VS constructions in BP from pseudocleft sentences, I was able to account for: – an identificational focus reading signalled not only by primary stress, but by the two tone units which result from the gap left by the copula. The copula and the pause separate the last constituent, the focus, from what appears before it , the presupposition; – the monoargumentality constraint postulated by Kato and Tarallo(1989) since the complement of the copula is always a single constituent; – the apparent loss of agreement between the V and the “subject” in BP; the real agreement carrier (the copula) is erased; – the possibility of a non-clitic pronoun in post-verbal position, assumed to have the “default” nominative case of strong pronouns. Concluding, BP is not a language in an unstable state of syntactic change. All its constructions are coherent with a grammar that does not have a strong head C (cf. Uriagereka, 1992) to attract the tensed verb, or to check a constituent (Chomsky, 1995) as the narrow focus of the sentence. Focused elements are uniformly the predicate of the tense operator, which may appear lexicalized as the copula or only discernible by prosodic (the pause) or morphological features. What gives the final shape of some focus constructions in BP are deletion operations at the PF interface.

REFERENCES ANDRADE BERLINCK, Rosane de. (1995) La Position du Sujet en Portugais: Étude Diachronique des varietés brésilienne et européene. Leuven, Katholieke Universiteit: Ph.D. Dissertation. CASTELEIRO, J. M. (1979) Sintaxe e Semântica das Construções Enfáticas com “é que”. Boletim de Filologia, XXV: 97-166. CINQUE, G. (1993) A null theory of phrase and compound stress, Linguistic Inquiry,24: 239-298. COSTA, João (2000) COSTA, J. (2000) Word order and discourse configurationality in EP. In J.Costa (ed) Portuguese Syntax. Oxford: Oxford U.Press. CHOMSKY, N. (1995) The Minimalist Program. Cambridge,Mass: MIT Press DUARTE, Maria Eugênia Lamoglia (1995) A Perda do Princípio “Evite pronome” no Português Brasileiro.Campinas, SP, UNICAMP: Ph.D.Dissertation KATO, Mary A. (1999) “Strong pronouns, weak pronominals and the null subject parameter”. PROBUS, 11, 1: 1-37. _____. (2002) The reanalysis of unaccusative constructions as existentials in Brazilian Portuguese. Revista do GEL, N. Especial. 157-186.

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_____ (forth.) Perspectivas do Português Paulista no século XXI. In: Ataliba de Castilho e Marilza de Oliveira (orgs) Os 450 anos da Cidade de São Paulo. Editora Humanitas. _____ & E.RAPOSO (1996) Word order in European and Brazilian Portuguese: questions, topic and focus constructions.In: C.Parodi, A.C.Quicoli, M. Saltarelli & M.L.Zubizarreta (eds) Aspects of Romance Linguistics. Washington: Georgetown U.Press, pp. 267-277. _____ & Carlos MIOTO (2005) A multi-evidence study of European and Brazilian whquestions. In Stephan Kepser & Marga Reis (eds) Linguistic evidence: empirical, theoretical and computational perspectives. 307-328. Berlin & new York: Mouton De Gruyter. _____ & F.TARALLO (1988) Restrictive VS syntax in Brazilian Portuguese. Georgetown RoundTable on Languages and Linguistics (GURT 1988). Washington, DC. _____. (2003) The loss of VS syntax in Brazilian Portuguese In: B. Schliebe-Lange, I..Koch & K.Jungbluth (eds.). Dialogue between Schools: sociolinguistics, conversational analysis and generative theory in Brazil.pp101-129.Münster: Nodus Publicationen, Klaus D.Ditz.. LOPES ROSSI, M.A. (1996) A Sintaxe Diacrônica das Interrogativas-Q no Português. Campinas: Ph.D.Dissertation. URIAGEREKA, J. (1992) A Focus Position in Western Romance. GLOW 1992, Lisbon.

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Heloisa Maria Moreira Lima Salles*

ESTABILIDADE NA VARIAÇÃO DA FLEXÃO DO INFINITIVO EM PORTUGUÊS: PROPRIEDADES DAS CONSTRUÇÕES E IMPLICAÇÕES TEÓRICAS 1 ABSTRACT The study examines the variation in the inflection of the infinitive in constructions with perception and causative verbs in Por tuguese. It is noted that the variation manifests itself in a stable pattern, which is found not only in the diachronic perspective, but also in the contrast between Brazilian Portuguese and European Portuguese. It is argued that the stability of the variation is due to the fact that the variants are associated with different syntactic configurations. Key words: inflected infinitive; direct object; indirect object; perception verb; causative verb. RESUMO O estudo examina a variação na flexão do infinitivo em construções com verbos perceptivos e causativos no português, considerando-se que tal variação se mantém estável, não só do ponto de vista diacrônico, como também no contraste entre o português do Brasil e o português europeu. Argumenta-se que a estabilidade da variação devese ao fato de que as formas variantes estão associadas a configurações sintáticas distintas. Palavras-chave: infinitivo flexionado; objeto direto; objeto indireto; verbo perceptivo; verbo causativo

INTRODUÇÃO Infinitivos flexionados em português têm despertado grande interesse nos estudos gramaticais, em diferentes quadros teóricos. Entre as razões para tal, * UNB. 1 Uma parte da pesquisa reportada no presente artigo está sendo desenvolvida no âmbito do projeto de pós-doutorado intitulado “Orações completivas na diacronia do português”, por mim desenvolvido na Universidade de Leiden, Holanda. Agradeço à Universidade de Brasília, pela licença para capacitação, à Universidade Leiden, pela acolhida como visitante no Leiden University Center of Lingüistics (LUCL). Agradeço a Johan Rooryck, Ian Roberts, Anna Roussou, Maria Aparecida Torres Morais, Marta Scherre, Poliana Rabelo, por discussões relevantes para o desenvolvimento das idéias deste artigo. Agradeço especialmente a Patrícia Rodrigues por sugestões valiosas ao texto e à análise. Os erros são naturalmente de minha responsabilidade. O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq (processo: 200948/2006-7), “uma entidade do governo brasileiro voltada ao desenvolvimento científico e tecnológico”.

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encontra-se o fato de que constitui fenômeno gramatical relativamente isolado entre as línguas, e até mesmo no âmbito da família lingüística românica, a que se filia o português. Conforme descrito nos estudos gramaticais, a flexão do infinitivo propicia crucialmente a ocorrência de um sujeito lexical em orações infinitivas, o que em princípio não é possível em línguas que não dispõem dessa categoria gramatical. Esse contraste está ilustrado em (1) e (2), com dados respectivamente do português e do francês. (1) (2)

Maria lamenta os alunos saírem *Marie regrette les élèves sortir

A possibilidade de apresentar o sujeito lexical em orações infinitivas permite, portanto, estabelecer paralelo distribucional entre orações com infintivo flexionado e orações finitas, conforme ilustrado em (3), em oposição a (1): (3)

Maria lamenta que os alunos saiam

No entanto, alguns aspectos da sintaxe do infinitivo flexionado impedem uma comparação irrestrita com as orações finitas. Particularmente, constata-se que a oração com infinitivo flexionado não ocorre como oração independente ou como oração raiz, conforme ilustrado em (4), restringindo-se a contextos de subordinação.2 (i) “Tu, Hemengarda, recordares-te” (4)

*Os alunos saírem

Do ponto de vista descritivo, é possível identificar contraste no nível morfológico entre a forma verbal finita e a infinitiva com flexão: enquanto a primeira codifica cumulativamente categorias de modo, tempo, pessoa e número, a segunda codifica apenas pessoa e número. Uma conclusão natural é a de que, em português, as informações gramaticais de modo e tempo são imprescindíveis à realização das orações do tipo independente/ raiz; inversamente, tais categorias parecem ser dispensáveis em contexto de subordinação, o que leva à suposição de que são compartilhadas anaforicamente com a oração matriz/principal – uma questão a ser retomada adiante. 2

O infinitivo flexionado pode ser encontrado em orações raiz em contextos marcados para o tipo frasal exclamativo, conforme observado no âmbito da gramática tradicional (cf. (i)). (i) “Tu, Hemengarda, recordares-te Assassinares uma fraca mulher!!” (exemplo extraído de Said Ali (1921/2001))

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Há, porém, contextos de subordinação em que a oração finita não pode ser substituída pela oração com o infinitivo flexionado, como ilustrado em (5), em oposição a (6): (5)

Maria quer que os alunos saiam

(6)

*Maria quer os alunos saírem

Do ponto de vista descritivo, o contraste em (5) e (6), por um lado, e (1) e (3), por outro, pode ser discutido em termos da natureza semântica dos predicados ‘lamentar’ e ‘querer’ na oração matriz/principal, respectivamente associados à classe sintático-semântica dos predicados factivos e volitivos. Em relação à agramaticalidade de (6), pode-se então supor que existe algum tipo de incompatibilidade entre as propriedades codificadas pela classe de verbos volitivos que bloqueiam a realização da oração infinitiva com sujeito lexical na posição de complemento. É interessante notar que essa restrição não se mantém se existe correferencialidade entre o sujeito da oração matriz e o sujeito da oração subordinada, sendo, porém, obrigatório o infinitivo impessoal, nesse caso (cf. (6’)). (6’) Nós queremos sair(*mos) A análise segundo a qual a construção em (6’) envolve uma oração subordinada infinitiva, com a respectiva posição de sujeito, parte do pressuposto de que o verbo no infinitivo apresenta estrutura argumental independente, sendo o predicado subordinado realizado em uma configuração oracional própria (com as projeções funcionais relevantes), o que se confirma por meio de testes. Como se observa nos dados do português, o predicado subordinado pode ocorrer isolado, diferentemente de outras construções, com perífrases verbais (cf. É sair que a Maria quer/ *É sair que a Maria deve/pode); em inglês, por exemplo, identifica-se o elemento ‘to’ diante do infinitivo, supostamente um elemento morfossintático que realiza a categoria funcional T (tempo) na projeção oracional, em oposição à construção com a perífrase verbal, em que tal elemento não ocorre (Mary wants *(to) leave/Mary must (*to) leave). O estatuto oracional do predicado subordinado pressupõe, portanto, a presença da posição sintática de sujeito, cabendo das contas das condições que levam à impossibilidade de realizar lexicalmente tal posição sintática, em face do requisito de correferencialidade com o sujeito da oração principal. Foge ao escopo deste trabalho a discussão dessa questão, havendo amplo debate, no âmbito da teoria gerativa, em relação ao estatuto gramatical do sujeito (nulo) da

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oração infinitiva nessas construções.3 Passamos a analisar a questão assumindo que a posição de sujeito da oração infinitiva nessa caso é realizada por uma categoria pronominal nula, exclusiva desse contexto sintático, a ser referida como PRO (cf. nota (3)). As questões ilustradas em (1) a (6) têm sido centrais na investigação da sintaxe do infinitivo flexionado, em particular no quadro teórico gerativista.4 O presente estudo detém-se em um aspecto particularmente interessante da sintaxe de orações de infinitivo flexionado, que é a possibilidade de alternância com o infinitivo não-flexionado, observada em construções com verbos perceptivos e causativos (cf. (7) e (8)). (7) Maria viu os alunos sair(em) (8) Maria fez/mandou os alunos sair(em) As construções com verbos perceptivos e causativos nas diferentes línguas têm despertado a atenção dos gramáticos, tornando-se particularmente interessante em português exatamente pela diversidade de realizações morfossintáticas que apresentam, em que se destacam, além da questão da flutuação na flexão do infinitivo, aspectos como a sintaxe de pronominalização do(s) argumento(s) e a ordem dos termos do predicado subordinado, havendo ainda contrastes sintático-semânticos entre verbos perceptivos e causativos. O objetivo do presente estudo é examinar o uso variável da flexão do infinitivo, considerando-se particularmente o fato de que essa variação se mantém estável na diacronia do português, conforme se depreende da referência ao 3

A discussão dessas propriedades, entre muitas outras, está formulada na teoria gerativa no âmbito da chamada ‘teoria do controle’. Em termos minimalistas, existe controvérsia quanto ao estatuto da posição de sujeito da oração infinitiva nessas construções: (i) se é realizada por uma categoria pronominal nula, exclusiva desse contexto sintático, referida como PRO – que se distingue da categoria pronominal nula pro, associada à posição de sujeito de orações finitas em línguas de sujeito nulo, como em nós/Øpro saímos; (ii) ou se se trata de posição derivada por movimento do constituinte relevante para a posição de sujeito da oração principal (movimento-A) – sendo a realização nula associada ao apagamento de uma das cópias do constituinte movido, no nível da interface fonológica. Referimos o leitor para Chomsky (1986), em relação à formulação da teoria do controle e das propriedades da categoria PRO no quadro teórico da Regência e Ligação. Para discussão no que se refere ao debate quanto à existência da categoria PRO em oposição à categoria nula por processo derivacional, consulte-se Chomsky (1995, 2001), Manzini e Roussou (1999), Hornstein (1999) (entre muitos outros). Para estudos minimalistas quanto ao estatuto do sujeito da oração infinitiva nesses casos, com dados do português, vejam-se Pires (2001), Rabelo (2004)). 4 Serão considerados diferentes estudos acerca do infinitivo flexionado no desenvolvimento da presente análise, sendo, portanto, oportunamente, fornecidas as referências. Neste ponto, ressaltam-se essencialmente os fatos empíricos relevantes.

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fenômeno nas gramáticas históricas, bem como em estudos diacrônicos voltados para o tema (a serem citados oportunamente). Além da perspectiva diacrônica, será considerado ainda o fato de que a variação se mantém estável também no contraste entre o português europeu (PE) e o português do Brasil (PB) atuais, em que, como será demonstrado, as construções com verbos perceptivos e causativos apresentam diferentes propriedades gramaticais. Adotando-se o quadro teórico gerativista, em particular o programa minimalista de pesquisa lingüística, tal como formulado em Chomsky (1995, 2001), será demonstrado que a estabilidade da variação se deve ao fato de que cada forma variante ocorre em uma configuração sintática específica. Isso não exclui, porém, a perda ou o enfraquecimento da flexão na configuração em que a relação sintática que licencia o sintagma na posição de sujeito é marcada no nível morfofonológico, um fenômeno de natureza distinta, cuja manifestação no PB parece estar associada a fatores sociolingüísticos. Deseja-se, porém, ressaltar que essa situação distingue-se crucialmente daquela em que a variação está associada a diferentes configurações estruturais. Ao se postular que o uso variável do morfema flexional não ocorre na mesma configuração sintática, buscamos então identificar fatores que mantêm a co-existência das construções. A discussão tem ainda o objetivo de ressaltar que há evidências quanto à vitalidade do infinitivo flexionado no PB (cf. Salles (2005a), Rabelo (2004), Scheid (2005)). Considera-se ainda que a coexistência duradoura das formas flexionada e nãoflexionada tem implicações significativas para o entendimento do papel dos processos morfológicos/ flexionais na mudança lingüística. A discussão será desenvolvida como a seguir: na seção 1, são apresentados estudos prévios que examinam o problema da variação na flexão do infinitivo no português, bem como fundamentos teóricos para a análise da questão; na seção 2, é discutida a manifestação do infinitivo (flexionado) nas construções relevantes, tomando-se por base aspectos inovadores da gramática do português do Brasil, que permitem identificar condições para a manifestação das construções relevantes nessa língua, em oposição ao português europeu e outras línguas românicas; na última seção, são apresentadas as considerações finais.

1. O PROBLEMA DA VARIAÇÃO NA FLEXÃO DO INFINITIVO: ESTUDOS PRÉVIOS E FUNDAMENTOS TEÓRICOS PARA A ANÁLISE A flutuação na flexão do infinitivo é amplamente identificada desde os períodos diacrônicos mais remotos, conforme ressaltado em diversas gramáticas históricas. É o que ocorre nos exemplos (9) e (10), extraídos de Said Ali (1921/ 2001: 252):

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(9) a. Vy estes portugueeses asi revolver a lide e ferir tã estranhamente (Nunes, Crest. Arc.) b. Vimos as Ursas, a pesar de Juno, banharem-se nas águas de Neptuno (Camões) (10) a. Quem te deu o direito de apagar no sangue dos últimos godos o único facho (...) (Herculano) b. Quem te deu, pois, o direito de correres a morte certa? (Herculano) Ainda em Said Ali (op. cit.), a estabilidade da variação na diacronia é ressaltada pela observação de que construções em que o infinitivo sem flexão é amplamente aceito, como em ensinou-nos a falar francês, também admitem o infinitivo flexionado, conforme abonado por autores em períodos diacrônicos distintos (cf. (11a) e (11b)). (11) a. Pois ele nos ensina a amarmos nossos amigos (Frei Luís de Sousa) b. Ginetes ensinados a voltarem sós ao campo cristão do deserto (Herculano) Além de identificada em gramáticas contemporâneas – com dados tanto do português europeu como do português do Brasil (cf. Mateus et al. (2003), Bechara (1999)) –, a flutuação na flexão do infinitivo tem sido reportada em estudos de caso. Em (12) são apresentados dados reais de fala extraídos do estudo de Scheid (2005)5: (12) a. A professora não deixou seus alunos sair b. O chefe do supermercado barrou eles de entrarem sem crachá c. As crianças foram para casa, para assistir o desenho d. Fiquem quietos para irem à festa Os dados de (9) a (12) mostram que a variação entre o infinitivo flexionado e não-flexionado manifesta-se em diferentes contextos sintáticos: em (9), (10), (11) e em (12a-b), a oração infinitiva ocorre como complemento de diferentes tipos de verbos e como complemento nominal; em (12c-d), como adjunto. No presente estudo, conforme mencionado, examina-se crucialmente a variação em construções com verbos perceptivos e causativos, cujas propriedades se mostram particularmente relevantes para a argumentação que pretendemos desenvolver. 5

Trata-se de dados orais obtidos em Mato Grosso do Sul, com falantes de nível superior em ambiente profissional. Consulte-se Scheid (2005) para mapeamento dos contextos sintáticos da variação e discussão preliminar sobre as propriedades sintático-semânticas envolvidas.

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A discussão da variação no âmbito da gramática tradicional enfatiza seu caráter estilístico – em geral, a presença da flexão é vista como uma forma de dar destaque ao sujeito ou um recurso para contornar problemas de ambigüidade. Sem querer ignorar a relevância desse tipo de análise, entendendo-se que é possível discutir mecanismos de ênfase por meio de operações de focalização, sintaticamente codificadas, consideramos, porém, que, em relação aos fenômenos citados, é relevante identificar que mecanismos sintáticos estão presentes na geração das formas variantes, em face da constatação de que existem ocorrências não marcadas de ambas as construções (com e sem flexão), o que permite atribuir significado idêntico às mesmas. Para tanto, passamos a discutir estudos prévios orientados para a questão da flutuação da flexão, buscando enfatizar as construções com verbos causativos e perceptivos. Em estudo seminal a respeito de orações infinitivas no português, Perini (1977) propõe que orações com verbos perceptivos apresentam duas estruturas, respectivamente associadas à presença e à ausência da flexão de infinitivo: enquanto na presença da flexão, o argumento relevante é realizado como sujeito do infinitivo (flexionado), na ausência da flexão, o argumento é realizado como objeto do verbo perceptivo, conforme ilustrado em (13) e (14). (13) [Vi [os cavalos correrem]] (14) [Viu os cavalos [correr]] Nessa análise, o autor postula a aplicação da regra de inserção do sufixo de pessoa e número (Regra SPN) sempre que houver um candidato possível a sujeito do predicado subordinado, considerando ainda que a aplicação de uma regra R a uma cadeia estruturalmente ambígua, onde são evidentes os efeitos de uma decisão anterior por parte de outra regra R’, requer os mesmos efeitos obtidos com a decisão imposta por R’, no que se refere à aceitação da sentença (cf. Perini (1977: 93)).6 6

A análise de Perini (op. cit.) contempla ainda o contraste ilustrado em (5) e (6), entre outras questões. Segundo o autor, tais construções envolvem o grupo de verbos que exige o subjuntivo no complemento sempre que não houver identidade entre os sufixos de pessoa-número dos dois verbos (i). Nesse sentido, o uso da oração finita com o verbo no subjuntivo opõe-se crucialmente ao uso da oração infinitiva, obrigatório sempre que existe correferência entre os argumentos, a que se aplica regra adicional, designada de Supressão de Sujeito Idêntico, pela qual é bloqueada a presença do sufixo flexional no infinitivo (ii). (i) Maria quer que nós estudemos. (ii) Nós quere+mos estudar+mos (SSI) Casos de correferência entre os dois sufixos, como em (iii), em que SSI não se aplica, são explicados em termos das propriedades sintático-semânticas do verbo da matriz, que se opõem àquelas identificadas no verbo volitivo em (i) e (ii).

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Perini acrescenta que o caráter restritivo da regra que gera cada variante se confirma com o exemplo em (15), em que a pronominalização demonstra sintaticamente que o constituinte ‘os’ é objeto do verbo perceptivo, e a Regra SPN não pode ser aplicada. (15) Viu-os [correr]/*[correrem] É interessante notar que construções com verbos causativos apresentam ainda uma realização em que o sujeito lógico do verbo no infinitivo ocorre sintaticamente em uma configuração preposicional, manifestando propriedades morfossintáticas de um complemento dativo quando pronominalizado.7 Esse caso encontra-se ilustrado em (16a-b), com o predicado causativo:8 (16) a. Maria mandou/fez varrer a casa ao empregado b. Maria mandou/fez-lhe varrer a casa A análise de Perini apóia-se em uma formulação em termos de regras, o que atualmente não é adotado na análise gerativa. Independentemente desse aspecto, essa análise tem o mérito de discutir adequadamente a distribuição do infinitivo flexionado, considerando aspectos como as propriedades sintáticosemânticas do predicado da oração matriz, bem como argumentos no sentido de justificar as configurações sintáticas propostas (para uma síntese de outros (iii) Os alunos lamentam profundamente estudar(em) aos domingos. Segundo Perini (op. cit.), em (iii), o verbo da matriz seleciona a leitura factiva do conteúdo proposicional da oração complemento. Outros casos de aplicação da regra SPN são associados à presença de preposição introdutora da oraçãocomplemento (cf. (iv) e (v)). (iv) Maria obrigou os alunos a saír(em). (v) Maria saiu sem os alunos verem. 7 Muitos estudos têm investigado as propriedades da chamada causativa românica, ilustrada em (16), sob a perspectiva gerativista. Referimos o leitor ao estudo seminal de Kayne (1975), acerca dessa construção no francês, além de Zubizarreta (1985), Guasti (1996), entre muitos outros. Em Kayne (2000), desenvolve-se análise no sentido de distinguir a causativa românica (no francês) da causativa do inglês, a ser retomada adiante. Ao enfatizar a questão da variação da flexão do infinitivo, a presente análise não se detém em vários detalhes que envolvem as propriedades da causativa românica. 8 Construções com verbos perceptivos colocam questões distintas em relação à ocorrência do argumento na configuração preposicionada no português (europeu), havendo clara preferência pela configuração em que o sujeito do infinitivo é pré-verbal (cf. (i), em oposição a (ii)). Por essa razão, neste ponto, a exemplificação restringe-se à construção com o verbo causativo. (i) ?* Maria viu comer o doce ao menino (ii) Maria viu o menino comer o doce

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aspectos da análise, veja-se nota 6). Da análise de Perini retemos a hipótese de que as construções em (13), por um lado, e (14)/(15), por outro, envolvem configurações distintas, sendo esse aspecto crucial, na presente análise, para a discussão da estabilidade na variação da flexão. Embora haja unanimidade quanto à existência do contraste estrutural, os estudos têm divergido especialmente em relação à projeção sintática da configuração em (14) – cabe ainda lembrar que, dado o caráter isolado do fenômeno da flexão do infinitivo, a construção em (13) é menos comum entre as línguas, sendo a do tipo em (14) mais difundida, especialmente nas famílias lingüísticas presentemente examinadas. De fato, em relação à construção em (13), com o infinitivo flexionado, não existe dificuldade em estabelecer paralelo com a oração finita, o que permite postular uma configuração bi-oracional, com uma projeção do tipo CP associada ao predicado subordinado.9 Em termos minimalistas (cf. Chomsky (1995), (2001)), pode-se dizer que a flexão do infinitivo é o correlato morfofonológico de uma operação (formal) do sistema computacional da linguagem humana (CHL) – designada como Concordância/Agree –, pela qual traços formais nãointerpretáveis de pessoa e número, presentes no núcleo funcional T (Tempo), identificam/localizam traços formais interpretáveis de pessoa e número presentes no núcleo nominal relevante (os cavalos), em determinado domínio de busca, definido, por sua vez, como um domínio sintático em que não há outro candidato mais próximo para satisfazer o requisito de identificação (ou de checagem) dos traços não-intepretáveis de T. No contexto dessa identificação/checagem de traços, são eliminados os traços não-intepretáveis do núcleo funcional T, e, concomitantemente, o traço (formal) não-intepretável de Caso do Nome é validado como nominativo. Pressupõe-se ainda que a realização completa dos traços (não-interpretáveis) de pessoa e número na categoria funcional relevante implica que tal categoria seja selecionada pelo núcleo funcional C, que codifica traços formais da periferia da oração (por hipótese, tipo frasal/força, finitude, modalidade, conforme proposto em Rizzi (1997), Roussou (2000), Roberts & Roussou (2003))10 – para diferentes formalizações da relação entre C e T, levando-se em 9

Existe controvérsia também em relação ao estatuto categorial da oração com infinitivo flexionado com relação à presença ou não de todos os níveis estruturais da oração (finita). Ao se postular que seja um configuração do tipo CP, assume-se a hipótese de que existe relação entre C e T na atribuição do Caso nominativo, o que tem sido proposto em vários estudos, particularmente em termos minimalistas (cf. Chomsky (1995)) . 10 Conforme proposto em Chomsky (2001), a realização incompleta de traços de pessoa e número em T (associada a construções com o verbo sem flexão) pressupõe que T (do predicado subordinado) seja selecionado por T ou por V (e não por C), com a conseqüência de que o sujeito do predicado subordinado é necessariamente licenciado por traços da projeção de V e T (da matriz). Tal situação é associada, respectivamente, a construções de alçamento (Maria parece dormir ) e a construções do tipo ECM (do inglês) (John believes Mary to arrive soon) (cf. nota 2).

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conta restrições e especificidades da sintaxe do infinitivo flexionado no português (europeu), veja-se Raposo (1987), Madeira (1995), Figueiredo e Silva (1996), Galves (2001), Pires (2001), entre muitos outros. Quanto à construção do tipo ilustrado em (14)-(16), existem propostas que postulam a ausência completa de núcleos funcionais na projeção do verbo no infinitivo, bem como propostas de uma projeção funcional reduzida, cabendo definir que projeções são essas, bem como as propriedades sintático-semânticas codificadas. Um aspecto amplamente aceito é o de que construções com verbos perceptivos e causativos envolvem a chamada união oracional. O conceito de união oracional visa captar uma característica relevante dessas construções, que é a transparência para a manifestação de certas fenômenos sintáticos, o que remete à hipótese de que as mesmas envolvem um tipo de re-estruturação sintática. É o que ocorre em (14)-(16), em que existe evidência morfossintática (observada na pronominalização) de que o argumento relevante (ou o sujeito lógico) selecionado pelo predicado subordinado é licenciado no domínio do verbo sintaticamente mais alto. No entanto, as condições que propiciam essa ‘transparência’ recebem diferentes formulações. Conforme ressaltado no extenso estudo de Wurmbrand (2001) acerca construções com verbos infinitivos (no alemão, em contraste com outras línguas germânicas, incluindo-se ainda o japonês e línguas românicas), as diferentes abordagens distinguem-se quanto a se a re-estruturação é um processo determinado pelas propriedades do verbo no infinitivo, manifestando-se originalmente em uma configuração mono-oracional, ou se é um processo obtido derivacionalmente, a partir de uma configuração bi-oracional, não havendo, portanto, especificidades em relação às propriedades do verbo no infinitivo. “According to mono-clausal approaches, a sentence with the restructuring infinitive is a single clause throughout the derivation and a restructuring infinitive never constitutes an independent clausal domain. According to the bi-clausal approaches, the clause union effect is attained derivationally. Restructuring infinitives and non-restructuring infinitives start out with the same syntactic structure; however, a futher application of restructuring alters the structure and/or properties of restructuring infinitives in a way that ultimately renders the clause boundaries ineffective.” (p. 9)11

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De acordo com abordagens que defendem a estrutura mono-oracional, a oração com o infinitivo re-estruturante é uma única oração durante toda a derivação, e o referido infinitivo nunca consitutui um domínio oracional independente. Em abordagens que defendem a estrutura bi-oracional, o efeito da união oracional é obtido derivacionalmente. Os dois tipos de infinitivos (re-estruturante ou não) iniciam no mesmo tipo de estrutura sintática; entretanto, uma aplicação posterior de reestruturação altera a estrutura e/ou as propriedades do infinitivo re-estruturante de tal maneira que a fronteira oracional torna-se inefetiva (tradução minha, com adaptações).

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Essa discussão contempla diferentes tipos de complementos infinitivos, o que torna o trabalho de Wurmbrand também relevante para a discussão de fenômenos como o controle e o alçamento. Em relação às construções com verbos causativos e perceptivos, ilustradas em (14)-(16), a autora reúne resultados convergentes de vários estudos e postula que tais construções apresentam propriedades intermediárias entre uma realização funcional e lexical do verbo perceptivo/causativo. Por um lado, é inegável que verbos causativos e perceptivos apresentam estrutura argumental própria – o que se justifica pelo requisito de que os argumentos relevantes sejam projetados separadamente no estabelecimento da relação causador/experienciador-causado (independentemente da possibilidade de o causado ser compartilhado pelos dois predicados, o que é objeto de controvérsia na literatura); por outro lado, é possível demonstrar que a relação temporal entre os predicados é fixa (remetendo, em particular, a uma situação de simultaneidade ou de orientação para o tempo futuro/modo irrealis), o que permite pressupor que existe apenas uma projeção de T (tempo). Isso não exclui que seja postulada a presença de outras categorias funcionais intermediárias, associadas à sintaxe da negação, à modificação do sintagma verbal. Interessantemente, uma hipótese que tem sido explorada é a presença da categoria aspecto na projeção desses predicados (cf. Wurmbrand 2001, Rodrigues 2006), o que propicia a discussão quanto ao papel desse tipo de categoria na seleção do argumento (externo), um resultado interessante em face das propriedades temáticas dessas construções. Tomando-se a presença do núcleo funcional T (em associação com C) como critério para definir o estatuto da projeção como ‘oracional’ (cf. Chomsky 1995, 2001), é possivel concluir que, na ausência dessas projeções (na projeção subordinada), tais construções apresentam propriedades mono-oracionais.12 Nesse sentido, em relação às construções com verbos perceptivos e causativos do português, considera-se haver evidências para postular duas configurações: (i) uma mono-oracional; (ii) outra bi-oracional, o que, conforme mencionado anteriormente, constitui aspecto crucial para a argumentação que buscamos desenvolver, em relação à variação da flexão do infinitivo no português. Considerando-se que as formas relevantes (flexionada e não-flexionada) estão 12

Remetemos o leitor aos estudos de Wurmbrand (2001) e de Rodrigues (2006) para ampla revisão da literatura acerca do tema, bem como para análises que postulam a ocorrência de núcleo aspectual na projeção de construções com verbos causativos e perceptivos. Em particular, o estudo de Rodrigues (2006), voltado para verbos perceptivos no português do Brasil, apresenta argumentos para motivar as configurações propostas não só em relação à construção com o infinitivo flexionado em oposição ao não-flexionado, como também em relação à oração de gerúndio, além de formular proposta interessante para distinguir as interpretações imaginativa e concreta dos verbos perceptivos em termos da projeção sintática e do estututo categorial dos núcleos sintáticos envolvidos.

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distribuídas em configurações distintas, é possível explicar a co-existência das mesmas e a estabilidade da variação. Essa situação é também encontrada nas variedades do PB, em que, como será demonstrado, estão presentes propriedades distintas na codificação das funções gramaticais (de sujeito e objeto direto/ indireto), em relação ao PE.

2. O INFINITIVO FLEXIONADO NO PORTUGUÊS DO BRASIL Foi observado anteriormente que o contraste em (15) é particularmente relevante para a argumentação que postula a existência de configurações distintas, na medida em que confirma a estrutura proposta para a construção sem flexão, por meio da sintaxe de pronominalização. De fato, o uso obrigatório do infinitivo sem flexão está associado à situação em que o pronome é licenciado no domínio sintático do verbo perceptivo, o que se confirma pela marcação morfológica acusativa do referido pronome. Esse tipo de contraste não está, porém, disponível no PB. Conforme amplamente referido na literatura, um aspecto característico da gramática do PB é a perda do clítico (acusativo) de 3ª pessoa, sendo a pronominalização realizada por meio do pronome ele(s)/ ela(s), o que indica a neutralização da oposição nominativo vs. acusativo no nível morfofonológico – ou seja, a forma ele(s)/ ela(s) assume sincreticamente a função de sujeito e de objeto (direto), conforme ilustrado a seguir:13 (17) Maria viu eles (18) Eles viram Maria Nesse sentido, pode-se dizer que as operações do sistema computacional, que, por hipótese, licenciam respectivamente o sujeito e o objeto no PB, não possuem correlato morfológico para marcar em PF (isto é, no nível da forma fonética/phonological form) o contraste entre as funções gramaticais; em outros termos, pode-se dizer que não existem requisitos morfológicos de convergência no nível de PF para essas operações (cf. Chomsky (1995)). Uma conclusão natural em relação às construções com verbos perceptivos e causativos no PB, em face da reanálise do sistema de codificação da função gramatical de objeto direto, seria então a de que, nas construções sem a flexão, 13

A reanálise do sistema de pronomes objeto no PB é mais complexa, pois envolve, além do uso das formas citadas, a manifestação do chamado objeto nulo. Diversos estudos têm mostrado que a distribuição dessas variantes está encaixada não só na matriz social , como também na matriz lingüística, dependendo, portanto, de fatores sintáticosemânticos, como a referencialidade do objeto (cf. Cyrino (1994), para estudo detalhado sobre a manifestação do objeto nulo no PB em uma perspectiva diacrônica).

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o clítico acusativo em (15) é substituído pelo pronome ele(s)/ela(s). De fato, a ambigüidade é detectada independentemente do sincretismo na forma pronominal, no caso em que o constituinte está no singular, como em Maria viu/mandou o empregado varrer a casa. Vimos também que a tendência, na literatura, é considerar que a pronominalização por meio do clítico (acusativo), por um lado, e a substituição pelo sintagma no plural, por outro, constituem meios de detectar a existência dos dois mecanismos de geração das construções na língua. Essa critério é adotado desde a abordagem de Perini (1977), sendo mantido em estudo recente de Rodrigues (2006), acerca de verbos perceptivos no PB. Dessa forma, para discutir a variação na flexão do infinitivo no PB, bastaria reter a hipótese de que existem duas configurações, propondo-se que, na ausência da flexão, tem-se a configuração do tipo (14), ilustrada em (19), e na presença, tem-se a configuração do tipo (13), ilustrada em (20). (19) [Maria viu/mandou eles [correr]] (20) [Maria viu/mandou [eles estudarem]] No presente estudo, essa hipótese é investigada, considerando-se que a ambigüidade propiciada pelo sincretismo da forma pronominal ele(s)/ela(s) tem implicações adicionais. Bittencourt (1995) examina a sintaxe de construções causativas no PB em uma perspectiva diacrônica, sendo detectada a substituição gradual do pronome acusativo pelo pronome na forma nominativa. Nesse estudo, a autora postula que a manifestação da forma inovadora (nominativa) está encaixada em um conjunto de fenômenos que afetam a sintaxe de complementação no PB, entre os quais o mapeamento do objeto indireto em posição sintática de objeto direto. A análise de Bittencourt será retomada no âmbito de uma argumentação mais ampla, no sentido de demonstrar que as construções com verbo causativo também no PB apresentam-se em duas configurações distintas, a que se associam as inovações na codificação das funções gramaticais de objeto (direto e indireto). Antes, porém, de aprofundar essa discussão, cabe considerar outra possibilidade de análise em relação à variação na flexão do infinitivo, que é aquela em que a ausência da flexão é vista como decorrência da erosão do sistema flexional, no contexto estrutural ilustrado em (21). (21) [Maria viu/mandou [eles estudarØ/ estudarem]] Assumindo-se a abordagem minimalista, o que se observa em (21) é que a variação afeta o morfema flexional em um único contexto estrutural, o que pode ser caracterizado como a (tendência à) perda do correlato morfofonológico da operação sintática pela qual é licenciado o sintagma na posição sintática de sujeito da oração subordinada. Nesse sentido, supõe-se um paralelo com a

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variação na flexão no contexto das formas finitas, como em (22), amplamente discutida na literatura, em conexão com o desenvolvimento das características inovadoras da gramática do PB:14 (22) Os menino(s) estuda(m) muito A hipótese da (tendência à) perda da morfologia flexional do infinitivo no PB, conforme descrita em (21), é formulada, por exemplo, em Lightfoot (1991), na análise de construções do tipo Maria pediu pra mim sair, em que a ocorrência do caso oblíquo do sujeito (mim) é explicada em termos da reanálise da preposição para como licenciadora (excepcional) do sujeito da oração infinitiva, o que por sua vez decorreria da perda da flexão do infinitivo no PB (cf. Pires (2001), para a adoção desse pressuposto em relação ao português do Brasil, no âmbito de estudo translingüístico acerca de orações infinitivas e gerundivas; cf. ainda Botelho Pereira & Roncaratti 1993, para análise semelhante à de Lightfoot, com a utilização de dados reais de fala do português popular (do Brasil), o que permite uma visão ampla do fenômeno). Em estudos prévios de minha autoria (cf. Salles 1999, 2003, 2005a), considera-se, porém, que o surgimento da construção do tipo disse para (mim/eu) é independente da sintaxe do infinitivo flexionado, o que permite reter a idéia original da reanálise da preposição para, tal como proposta em Lightfoot (op. cit.), sem que seja invocada a manifestação da flexão do infinitivo como fator desencadeador (trigger) da reanálise.15 Assim, é possivel dar conta da ampla difusão da referida construção, ao lado da vitalidade do infinitivo flexionado, que parece incontestável, pelo menos em algumas variedades dialetais do PB. Em princípio, não haveria como excluir a possibilidade de analisar a variação na flexão do infinitivo em termos da configuração proposta em (21), assumindo-se que tal variação está associada a fatores semelhantes aos que propiciam a manifestação da variação em (22). Nosso entendimento é o de que a investigação dessa possibilidade requer o mapeamento das variáveis que condicionam a variação, em face da vitalidade da forma flexionada – o que remete à distinção no nível dialetal, amplamente reconhecida e mapeada nos estudos sociolingüísticos, em relação às formas finitas (cf. nota 14). Além disso, 14

Para estudo gerativista do enfraquecimento da concordância verbal no PB, veja-se Galves (1993), entre muitos outros estudos. Para estudos variacionistas (no quadro teórico laboviano) acerca da concordância verbal no PB, veja-se a ampla produção conjunta de A. Naro e M. Scherre, entre outros estudos. 15 De acordo com Salles (2003, 2005a), a reanálise de para está associada à erosão do sistema de oposição morfofonológica do modo verbal indicativo e subjuntivo no PB, de que resulta a substituição da oração finita (cf. (i)), pela oração infinitiva (cf. (ii)). (i) Maria disse-me que saísse (ii) Maria disse para eu/mim sair

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a adoção da análise que parte da hipótese de (tendência à) perda da flexão em uma mesma configuração nada tem a dizer a respeito da manifestação da configuração em (19). De fato, a relação entre a mudança na codificação morfofonológica da função gramatical de objeto (pela qual o clítico (acusativo) o(s)/ a(s) é substituído por ele(s)/ela(s)), supostamente um fenômeno associado à convergência na interface fonológica (PF), não deve ter impacto nas condições gramaticais que levam à geração da configuração em (19), na qual se pressupõe o fenômeno da união oracional. Conforme sucintamente sistematizado na seção anterior, as propriedades da configuração em (19), em particular as categorias envolvidas, são definidas em termos de propriedades sintático-semânticas, como a codificação do tempo, o mapeamento sintático de funções argumentais, sendo, portanto, difícil estabelecer uma implicação mútua entre a manifestação dessas propriedades e a distribuição das formas flexionais enquanto marcas morfofonológicas. Além disso, a explicação da variação em termos da (tendência à) perda da flexão do infinitivo não capta um aspecto importante, que é a manifestação estável das formas variantes, por um lado, e a ausência de restrições a sua distribuição, por outro. No âmbito da presente análise, propõe-se, portanto, que a flutuação na flexão do infinitivo se deve ao fato de haver configurações sintáticas distintas associadas a cada variante – e não (apenas) uma situação definida em termos de requisitos de convergência em PF – o que adicionalmente permite dar conta da estabilidade da variação. A hipótese de que duas configurações estão presentes, por sua vez, também requer justificativa. Como será demonstrado, as mudanças no sistema pronominal do português não se restringem à expressão morfofonológica das operações de licenciamento das funções gramaticais. Isso se evidencia quando se consideram construções como as ilustradas em (16), em que o argumento relevante é mapeado sintaticamente como um sintagma preposicional, o que, como vimos, está associado à transitividade do verbo no infinitivo. É o que será discutido na seção a seguir. 2.1 Implicações da sintaxe do objeto indireto para o surgimento de padrões inovadores na sintaxe do infinitivo flexionado no PB Entre as características inovadoras do PB, em comparação com o PE, no que se refere ao sistema pronominal, encontra-se a (tendência à) perda do clítico dativo de 3ª pessoa lhe(s). Entretanto, não se verifica, no caso do objeto indireto, a substituição da forma pronominal por outra forma a que se atribua algum tipo de sincretismo, como observado no caso do objeto direto (mas, em relação à complexidade da sintaxe do objeto direto no PB, veja-se também a nota 13). Além da (tendência à) substituição da preposição a pela preposição para,

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uma característica relevante é a ocorrência do elemento pronominal na estrutura preposicionada (cf. (23), em oposição a (24)):16 (23) Maria entregou o livro ao aluno/ para o aluno (24) Maria entregou o livro a ele/ para ele Embora o uso da forma ele(s)/ela(s) no interior do sintagma preposicional não represente exatamente inovação, na medida em que esta é a forma exigida nesse domínio sintático (e.g. para mim, para ti, para ele(a)(s)), o caráter inovador do PB, conforme observado por Torres Morais (2004), está em que a pronominalização na configuração preposicionada ocorre em substituição ao clítico, o que o distingue do PE, em que tal fenômeno é restrito ao contexto de redobro do clítico, ilustrado em (25) (cf. ainda Iseke Bispo (2004), Salles & Iseke Bispo (2005), Salles & Torres de Morais (em preparação)) (25) Maria entregou-lhe o livro a ele Retomando-se a construção causativa em (16), repetida como (26), em que o argumento relevante é realizado em uma configuração preposicionada e, quando pronominalizado, ocorre como um clítico dativo, verifica-se que, em face das inovações do PB em relação à sintaxe do objeto indireto, aparentemente não deveria haver restrição à geração dessa sentença. No entanto, os falantes do PB são unânimes em afirmar que (26a-b) não pertence ao seu repertório, sendo amplamente utilizada a construção em (27). (26) a. Maria mandou/fez varrer a casa ao empregado (PE/*PB) b. Maria mandou/fez-lhe varrer a casa (PE/*PB) (27) a. Maria mandou/fez o empregado varrer a casa (PE/PB) b. Maria mandou ele varrer a casa (*PE/PB) Na construção em (27), mais uma vez tem-se a situação de ambigüidade, em que o constituinte ‘o empregado’ pode ser realizado (i) no domínio sintático do predicado causativo; (ii) no domínio sintático do predicado subordinado, correspondendo, respectivamente, à construção com o infinitivo não-flexionado e flexionado. Além disso, é evidente a semelhança com as construções discutidas na seção anterior no que se refere à pronominalização do argumento (o empregado/ ele). Essa conclusão adquire respaldo quando se consideram as condições que 16

A distribuição da preposição a e para parece ter condicionamento dialetal, além de ser possível identificar condicionamentos lingüísticos. Esse aspecto não se mostra relevante para a presente discussão. A esse respeito, veja-se Salles & Scherre (2003), Iseke-Bispo (2004).

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determinam a não ocorrência de (26) no PB. Examinando-se mais detidamente as inovações do PB na codificação do objeto indireto, verifica-se que substituição da preposição a por para não é possível em (26), conforme ilustrado em (28).17 (28) *Maria mandou/fez varrer a casa para o empregado Como ressaltado em Berlinck (2000) e Torres Morais (2004), em construções bitransitivas no PB, a preposição para introdutora do objeto indireto codifica informação lexical de transferência – da mesma forma que na construção bitranstiva locativa a preposição codifica informação de localização, o que permite caracterizar a preposição nesses contextos como verdadeira preposição (em oposição a preposição funcional/dummy).18 Em Salles (2005b), observa-se que, com predicados bitransitivos, a substituição de a por para é restrita aos contextos em que existe a interpretação de transferência de posse, o que indica que propriedades léxico-semânticas do predicado estão associadas à manifestação desse traço inovador da gramática do PB (cf. ainda Esbrana (2005)). Em (28), a interpretação de transferência de posse não está disponível, o que vem confirmar a impossibilidade de utilização da preposição para nesse contexto. Nesse sentido, verifica-se que a (tendência à) perda da preposição a no PB propicia ampla reanálise no sistema gramatical, com diferentes conseqüências, dependendo da transitividade do verbo: (i) com verbos bitransitivos (em contextos de transferência de posse), tem-se a (tendência à) substituição da preposição a por para; (ii) com verbos monotransitivos, tem-se o mapeamento do argumento (interno) na posição de objeto direto. A situação em (ii) está ilustrada em (29) e (30). (29) Maria obedece ao pai/ o pai (30) Maria agradou ao filho/ o filho

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É interessante notar a aceitabilidade (para alguns falantes) da construção em (i), em que a ordem dos constituintes é (obrigatoriamente) diferente: (i) ? Maria mandou pra ele varrer a casa Tudo indica que nesse caso tem-se uma configuração semelhante à do tipo dizer para, citada anteriormente, em que a preposição para é introdutora da oração infinitiva. Nessa linha de análise, cabe ainda comparar com a construção com verbos volitivos, discutida Salles 1999, 2003, 2005a, cuja manifestação parece estar condicionada dialetalmente: (ii) Maria quer para o empregado/ ele varrer a casa 18 O contraste entre verdadeiras preposições e preposições funcionais/ preposições dummy encontra-se formulado no âmbito da Teoria Regência e Ligação em Chomsky (1986). Para um estudo do tema, tomando por base o PB, veja-se Salles (1992).

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Casos de flutuação de regência, como os ilustrados em (29) e (30), são amplamente citados na literatura19, mas o que é significativo em relação ao PB é que tal fenômeno assume manifestação (quase) categórica diante da ampla (tendência à) perda da preposição a, com conseqüências também para a sintaxe de pronominalização: verifica-se a (tendência à) perda do clítico (seja na forma acusativa o(s)/a(s), seja na forma dativa lhe(s), conforme citado), e a ocorrência nesses contextos dos pronomes ele(s)/ela(a) (ou do objeto nulo – cf. nota 13). Ainda em relação às construções de transferência de posse, cabe considerar que, além do uso da preposição para e da ocorrência do pronome na configuração preposicionada (o que se relaciona à (tendência à) perda do clítico dativo lhe), identifica-se outra característica inovadora do PB, que é o mapeamento dos argumentos em uma configuração referida na literatura como construção de objeto duplo (double object construction/DOC). A ocorrência de DOC é amplamente observada no dialeto mineiro do PB, tendo sido inicialmente discutida em Ramos (1992), no âmbito da reanálise do sistema de complementação do PB (em que se inclui a perda das construções de objeto direto preposicionado). (31) Pede seu pai um carro A construção em (31) é retomada em Bittencourt (1995) em conexão com a ocorrência do pronome na forma nominativa em construções causativas (cf. seção anterior). Além de assumir as conclusões do estudo de Ramos (1992), a autora menciona correlação estabelecida por Baker (1988) entre a ocorrência de DOC e a marcação do argumento interpretado como causado como acusativo, na construção causativa nas diferentes línguas, e sugere que a ocorrência da forma nominativa do pronome em construções causativas (como em Maria mandou ele varrer a casa) está associada à reanálise da função gramatical de objeto. Como observado em Salles (1997, 2005b), tal correlação é possível exatamente porque a função gramatical de objeto é realizada por uma forma pronominal não marcada para caso morfológico. De fato, essa correlação pode ser aprofundada, tomando-se por base estudo de Scher (1996), em que as construções DOC do dialeto mineiro são analisadas no confronto com construções de objeto duplo do inglês, bem como proposta de Salles (1997), segundo a qual a ocorrência dessas construções no PB permite estabelecer que o PB e o inglês fazem a mesma opção paramétrica

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Nesse caso, a preposição parece estar associada ao traço de animacidade, conforme observado em vários estudos. Em línguas como o espanhol, a preposição a codifica o traço de animacidade no objeto direto, em associação com outros traços, como referencialidade (cf. veo el coche/ niños/ al niño).

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em relação à codificação do objeto indireto.20 A análise de Salles (1997) fundamenta-se em proposta original de Kayne (1984) no sentido de distinguir as propriedades das preposições em inglês e francês em termos paramétricos, o que permite explicar a distribuição de DOC no inglês, mas não no francês (e demais línguas românicas), entre outras características que distinguem tipologicamente essas línguas. Em estudo posterior, Kayne (2000) retoma o contraste entre o inglês e o francês, considerando a manifestação da construção causativa em confronto com a ocorrência de DOC. Em particular, propõe que a opção paramétrica que determina a codificação da função dativo em francês determina ainda a ocorrência da causativa românica; inversamente, em inglês, a opção paramétrica que determina a ocorrência de DOC determina também a ocorrência da causativa nessa língua, a qual se distingue crucialmente da causativa românica.21 O contraste entre o francês e o inglês está ilustrado em (32) e (33), respectivamente. (32) a. Marie a donné le gâteau aux enfants b. Marie a fait manger le gâteau aux enfants (33) a. Mary gave the children the cake b. Mary made the children eat the cake Partindo do contraste em (32) e (33), proposto em Kayne (2000), e adotando a análise de Salles (1997) quanto à similaridade do padrão paramétrico 20

Em Roberts (1993), é aventada a hipótese de haver semelhanças entre o inglês e o PB no que se refere ao desenvolvimento diacrônico de algumas propriedades gramaticais. Essa semelhança é investigada em Salles (1997), em relação à sintaxe do objeto indireto. Em estudo subseqüente, é demonstrado que a comparação sem mantém em relação à sintaxe de complementação oracional, destacando-se interessantemente a vinculação entre a sintaxe do objeto indireto e a sintaxe de complementação (cf. Salles 2003, 2005a). A idéia de estabelecer correlação entre a sintaxe do dativo e outras propriedades inovadoras do português do Brasil, em particular no que se refere à sintaxe de complementação oracional, me foi apontada por Maria Luiza Rivero (c.p.), a quem gostaria de agradecer pela discussão a esse respeito, que motivou o aprofundamento da investigação nesse sentido. 21 Remetemos o leitor para Kayne (2000) em relação aos detalhes técnicos da implementação estrutural da análise, em que o autor adota proposta de Collins & Thráinsson (citados pelo autor) para a construção de objeto duplo, e assume que o objeto indireto é licenciado em uma projeção AgrOIP, gerada acima de VP, a qual, por sua vez, encontrase também presente na configuração causativa. Para o francês, Kayne propõe que a projeção AgrOIP seleciona uma projeção preposicional (PP), realizada pela preposição à (introdutora do argumento dativo). Operações de movimento, em que se inclui deslocamento de AgrOIP remanescente, produzem o resultado desejável no que se refere à linearização. Veja-se Andrade (2002) para os detalhes técnicos da aplicação da proposta ao PB, em oposição ao PE.

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entre o PB e o inglês na codificação do objeto indireto, Andrade (2002) demonstra que é possível estabelecer para o PB a mesma correlação proposta no estudo de Kayne: por um lado, não é encontrada a causativa românica (cf. (28)); e, por outro, em face da reanálise na codificação do objeto indireto, é encontrada a construção DOC (particularmente produtiva em algumas variedades do PB). Dessa forma, verifica-se que o PB pode ser incluído no padrão paramétrico do inglês, conforme ilustrado em (34). (34) a. Maria mandou/fez o empregado/ ele varrer a casa b. Maria deu ele a vassoura Nesse sentido, demonstra-se que a manifestação da construção com verbo causativo no PB relaciona-se às inovações do PB no que se refere tanto à sintaxe do objeto direto quanto a do objeto indireto, de que resulta a configuração com o infinitivo sem flexão, em que o argumento é mapeado no domínio sintático do verbo causativo/perceptivo. A ocorrência dessa configuração não exclui que seja gerada a configuração com o infinitivo flexionado, em que o argumento é mapeado no domínio sintático do predicado subordinado, um resultado desejável no âmbito da presente análise.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste estudo, investigou-se a questão da estabilidade na ocorrência da variação entre o infinitivo flexionado e não flexionado em construções com verbos perceptivos e causativos no português. Adotando-se pressupostos teóricos da gramática gerativa, demonstrou-se que tais construções são geradas em duas configurações distintas, a que se associam as formas com e sem flexão do infinitivo, separadamente. Em particular, tomou-se como ponto de partida construções em que existem evidências (morfofonológicas) de que a ausência de flexão está relacionada a determinado tipo de configuração. Tais casos estão, porém, restritos às variedades do português em que existe codificação morfofonológica das funções gramaticais (de sujeito e objeto direto e indireto). É o que acontece no português europeu (PE), em que, pelo menos na 3ª pessoa, o sistema pronominal apresenta formas distintas para codificar as funções de sujeito (ele(s)/ela(s)), de objeto direto (o(s)/a(s)) e de objeto indireto (lhe(s)). No português do Brasil (PB), diferentemente, tal argumentação não pode ser adotada, pois verifica-se a neutralização da oposição morfológica no sistema pronominal, no que se refere à codificação da função de sujeito e objeto direto, além de ampla reanálise no sistema de codificação (morfossintática) da função gramatical de objeto indireto. Nesse sentido, foram sistematizadas evidências quanto à existência de duas configurações para as construções com verbos

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perceptivos e causativos, em face das características inovadoras da gramática do PB, no que se refere à codificação morfossintática das funções gramaticais de sujeito e objeto (direto e indireto). Em particular, demonstrou-se a correlação entre a ocorrência da construção de objeto duplo no PB e a ausência da configuração associada à chamada causativa românica. Com essa abordagem, considera-se ser possível dar conta da estabilidade da variação entre o infinitivo flexionado e não flexionado em construções com verbos perceptivos e causativos, amplamente reconhecida não só na diacronia no português, mas também no confronto entre o PB e o PE. Ao postular-se que as formas variantes estão associadas a configurações distintas, é possível manter os pressupostos da teoria gerativa quanto ao caráter indesejável da opcionalidade, em face da organização do sistema em termos de oposições, ao mesmo tempo em que se explica o fato de que as formas variantes não se submetem aos processos usualmente constatados de especialização, ou a algum tipo de ‘bloqueio’, nos termos propostos por Aronoff em relação à aplicação de regras morfológicas que produzem formas (semanticamente) equivalentes. Essa análise não excluiu, porém, a possibilidade de que a (tendência à) perda da marca morfofonológica de flexão do infinitivo esteja associada a uma única configuração, o que remete a outro tipo de fenômeno, com motivações independentes das que foram citadas para dar conta da estabilidade na variação da flexão. Muitas questões permanecem em aberto no âmbito da presente discussão, algumas das quais foram citadas incidentalmente no decorrer da presente análise. Entre elas, destacam-se os detalhes do licenciamento de cada uma das configurações, no que se refere às propriedades sintático-semânticas das categorias envolvidas e aos fatores que determinam sua expressão morfossintática nas diferentes línguas/gramáticas, o que, por hipótese, se define em termos de opções paramétricas em articulação com os princípios invariantes da gramática universal (GU). A esses fatores se acrescentam aqueles que determinam a transmissão das formas lingüísticas no âmbito da comunidade de fala, o que remete às restrições impostas pela Faculdade de Linguagem na representação (mental) do input lingüístico (e também no processamento cognitivo desse input), bem como ao papel dos processos sócio-históricos no estabelecimento das condições que propiciam o contato de línguas e dialetos. A investigação de tais aspectos vai muito além do escopo do presente estudo, cabendo, portanto, o aprofundamento de inúmeras questões em pesquisas futuras.

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Marco Antonio Mar tins *

O CLÍTICO SE EM FLORIANÓPOLIS: UMA ANÁLISE DA ALTERNÂNCIA ÊNCLISE/PRÓCLISE NUMA AMOSTRA (SÓCIO-GEO)LINGÜÍSTICA (The Clitic Se in Florianópolis: an analysis of the Enclisis/ Proclisis Alternancy in a (socio-Geo) Linguistic Sample) ABSTRACT This text presents a study of the enclisis/proclisis alternancy of the clitic SE in transitive structures in a sample extracted from the corpus formalized by the Pilot Project (Socio-Geo) Linguistic Variation in Florianópolis. The results obtained suggest that, while the interpretation of reflexive se is associated to proclisis, the interpretation of indeterminate se is associated to enclisis. Social and linguistic variables, such as the type of verb and the speakers’ age, seem to be related to the different interpretations. Key-words: proclitic/reflexive SE; indeterminate/enclitic SE; linguistic change RESUMO Este texto apresenta um estudo da alternância ênclise/próclise do clítico SE em estruturas transitivas numa amostra extraída do corpus formalizado pelo Projeto Piloto Variação (Sócio-Geo) Lingüística em Florianópolis. De acordo com os resultados obtidos, parece que enquanto a interpretação do SE reflexivo está associada à próclise, a interpretação do SE indeterminado está associada à ênclise. Variáveis sociais e lingüísticas, tais como o tipo de verbo e a idade do falante, parecem estar correlacionadas às distintas interpretações. Palavras-chave: SE proclítico/reflexivo; SE enclítico/indeterminado; mudança lingüística.

INTRODUÇÃO O objetivo deste estudo desdobra-se em duas (grandes) direções1: (1) de um lado, apresentar o processo de constituição de um banco de dados: o Projeto Piloto Variação (Sócio-Geo) Lingüística em Florianópolis2. A elaboração * UFSC/CNPq 1 Agradeço a Edair Maria Görski (UFSC) pela leitura cuidadosa e pelas sugestões pertinentes, assim como pelas discussões acerca das “coisas da sócio” ao longo dos meus estudos no Programa de Pós-Graduação em Lingüística da UFSC. A responsabilidade pelo resultado final é, no entanto, apenas minha. 2 Tal projeto, resultado de uma atividade de pesquisa desenvolvida coletivamente pelos participantes da disciplina T.E. em Dialetologia e Sociolingüística: metodologias de pesquisa, do Programa de Pós-Graduação em Lingüística da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), realizada no segundo semestre de 2005, tem como objetivo organizar um corpus que contemple os pressupostos teóricos e metodológicos da dialetologia assim como da teoria da variação e mudança lingüística.

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do projeto inclui as diversas etapas de constituição de um corpus lingüístico tais como a delimitação das variáveis (lingüísticas e sociais) a serem estudadas, a sistematização de instrumentos de coleta dos dados e de controle das variáveis, a definição do perfil dos informantes, o contato com os informantes e a realização das entrevistas, para além da transcrição e do tratamento dos dados; (2) de outro lado, apresentar a análise dos dados coletados, no que tange às construções transitivas com o clítico SE, em uma amostra extraída do referido banco de dados. Mais especificamente, procuramos testar a hipótese de que enquanto SE enclítico está preferencialmente associado a construções de indeterminação, SE proclítico está associado a construções reflexivas. O estudo vem assim apresentado: faremos ainda nesta primeira seção (i) uma delimitação dos pressupostos teóricos que nortearam a elaboração do projeto e a análise dos dados, (ii) uma apresentação da metodologia de coleta e análise realizadas e ainda (iii) uma incursão aos dados analisados assim como ao processo de elaboração do Projeto Piloto Variação (Sócio-Geo) Lingüística em Florianópolis. Delinearemos na segunda seção a análise dos resultados em relação à interpretação atribuída pelos falantes florianopolitanos ao SE ora enclítico e ora proclítico em estruturas transitivas. Na terceira e última seção, sumarizamos os resultados obtidos, à guisa de conclusão.

1. PRESSUPOSTOS TEÓRICOS A elaboração do Projeto Piloto Variação (Sócio-Geo) Lingüística em Florianópolis respaldou-se na assunção de que é possível (e aconselhável) realizar estudos variacionistas que aproximem a geolingüística e a sociolingüística variacionista. Algumas palavras acerca de estudos que perpassem ambas as teorias devem ser ditas3. De acordo com Cardoso & Mota (2003, p. 38), “neste momento da história, é urgente que se enfrente a descrição da realidade lingüística brasileira no seu plano geográfico e o melhor caminho, para esse conhecimento de amplitude continental, parece ser o que propõe a Dialectologia”. A partir das palavras das autoras, e de um quadro de estudos sociolingüísticos já realizados nas diversas regiões do Brasil4, evidencia-se a necessidade de estudos cujo foco de interesse seja a delimitação e, sobretudo, a explicação (atreladas às diferenças diatópicas, diastráticas e diageracionais) dos vários dialetos do Brasil. Ferreira & Cardoso (1994), quando descrevem a história dos estudos 3

E a ver se a Dialetologia e sociolingüística variacionista (esta entendida no âmbito da teoria da variação e mudança) são, de fato, teorias distintas, ou diferentes enfoques sobre um mesmo objeto de estudo: a variação lingüística. 4 Ver, entre outros, Ferreira & Cardoso (1994), Margotti (2004).

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dialetais no Brasil, já apontam para o fato de que se faz necessário constituir um mapa lingüístico buscando descrever os diversos falares do nosso território, e que esse é um empreendimento que já rendeu muitos estudos acerca dos fenômenos da linguagem. No curso do tempo, e tendo em vista o grande avanço dos meios de comunicação no presente século, somos levados a crer que, como evidenciam Cardoso & Mota (2003), é chegado o momento de correlacionar os muitos resultados já descritos pelos estudos sociolingüísticos em busca de uma descrição e, sobretudo, de explicações (históricas, geográficas etc.) para os diversos dialetos do Brasil. Nas palavras de Margotti (2004), há fortes indícios de que, na perspectiva histórica, o estágio de difusão do português em cada área de contato com o italiano [contato pesquisado pelo autor] está, em parte, correlacionado ao tempo e à quantidade de contato, tendo em vista a urbanização e a presença de português dentro de cada ponto (MARGOTTI, 2004, p.216).

Com base na asserção do autor, e nos resultados obtidos pela pesquisa por ele realizada, podemos observar que o cruzamento de uma análise (teórica e metodológica) dialetológica com uma análise sociolingüística variacionista tende a enriquecer sobremaneira as reflexões acerca dos fenômenos de variação e mudança lingüística nas línguas naturais. Tendo em vista que é a correlação de forças (variáveis) diversas (regionais, sociais, culturais, étnicas, históricas, entre muitas outras) que configuram a realidade lingüística de um determinado grupo de falantes. Alguns pressupostos (basilares) da teoria da variação e mudança foram considerados na elaboração do Projeto Piloto Variação (Sócio-Geo) Lingüística em Florianópolis, tais como o conceito de comunidade de fala, as noções de redes sociais e comunidades de práticas, a seleção dos informantes e o planejamento da entrevista. Uma noção clara de comunidade de fala está vinculada, de acordo com autores como Guy (2000, 2001), Patrick (2002) e Wardhaugh (2002), entre outros fatores, à participação (ou não) de um indivíduo num determinado grupo observada a partir do uso (ou não) de traços lingüísticos específicos e compartilhados por esse grupo5. Ou seja, uma das principais características de uma comunidade de fala é o compartilhamento de uma determinada expressão ou estrutura – fonética, morfológica, sintática etc. Redes sociais e comunidades de prática são, respectivamente, os relacionamentos criados pelas pessoas para suprir as dificuldades da vida 5

Nas palavras de Wardhaugh (2002, p. 116), “a noção de grupo é definida por diversas razões: sociais, religiosas, políticas, culturais, familiares, vocacionais etc.”. Minha tradução.

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cotidiana, que podem variar de um indivíduo para outro e ser constituídas por ligações de diferentes tipos e intensidades (MILROY, 2004) e conjuntos de pessoas em torno de um empreendimento particular, por exemplo, um grupo de adolescentes, da igreja, da escola, do trabalho etc. (ECKERT, 2000, apud MILROY, 2004). Para Chambers (1995), os elementos que enriquecem as redes sociais são basicamente os mesmos em todo o lugar, sejam eles, o grau de parentesco, a ocupação (ambiente de trabalho) e a amizade. Estudos como os de Milroy (2004) mostram que quanto mais integrado o sujeito está a uma rede, mais freqüentemente tende a usar variantes local-regionais. De acordo com Altenhofen (2002), uma descrição mais segura da variação diatópica teria no mínimo o efeito beneplácito de aplacar a sensação de vácuo que, muitas vezes, acompanha as descrições pontuais. Segundo o autor, ainda, merecem destaque os seguintes questionamentos: Como se configura o contexto geográfico do uso de determinada variante e qual a sua amplitude ou “representatividade geográfica” e seu poder de difusão no espaço? Qual a sua relação com as outras áreas e pontos em contato? Quais unidades podemos abstrair da variação? A qual “variedade” se circunscreve o nosso [da geolingüística] objeto de estudo? (ALTENHOFEN, 2002, p. 116). Meu grifo.

A partir dos questionamentos suscitados por Altenhofen, especialmente quando o autor se atém àqueles atrelados à “variedade” específica dos estudos dialetológicos, nos remetemos aos resultados obtidos nos estudos “verticalizados” no quadro teórico da sociolingüística variacionista em busca de um ponto de diálogo entre os objetivos de ambas as teorias. Se o objetivo mais geral dos estudos dialetológicos é a descrição (e explicação) da variação sob o enfoque da macro-análise no eixo da arealidade, assim como sob o enfoque da socialidade, um possível diálogo entre os resultados obtidos em estudos na esteira de ambos os quadros teóricos apenas enriqueceria as análises lingüísticas. A descrição (como também a explicação, acredita-se) oferecida pelas análises pontuais da teoria da variação e mudança seria, seguramente, enriquecida com as análises cartográficas dos estudos dialetológicos.

2. METODOLOGIA Para a elaboração do projeto cada aluno-pesquisador elegeu um aspecto lingüístico (dividido em quatro módulos: Módulo I – fonético-fonológico; Módulo II – morfossintático; Módulo III – semântico-discursivo; Módulo IV – pragmático)

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a ser incluído nas entrevistas para coleta dos dados6. Formalizou-se uma Ficha do Informante para o registro dos dados sociais, culturais e econômicos dos falantes selecionados7. A concepção do projeto, tanto em termos teóricos, quanto em seus aspectos metodológicos, é resultado de discussões de todos os membros do grupo envolvido. As discussões foram norteadas por leituras de textos acerca dos pressupostos de ambos os modelos teórico-metodológicos utilizados. Dentro desse quadro, especialmente na esteira dos pressupostos da dialetologia, dir-se-ia que uma das preocupações centrais e primeiras dos estudos nessa linha de pesquisa seria mapear geograficamente, numa dimensão diatópica, um determinado dialeto8, ou uma variável lingüística qualquer. Foi esse o primeiro passo na elaboração do Projeto Piloto Variação (Sócio-Geo) Lingüística em Florianópolis: delimitou-se o espaço geográfico da cidade de Florianópolis (o que inclui a ilha e parte do continente); dividiram-se, então, de acordo com a disposição geográfica, dez localidades, numeradas do norte para o sul: 1. Ponta das Canas, 2. Ingleses, 3. Rio Vermelho, 4. Ratones, 5. Monte Verde, 6. Estreito, 7. Centro, 8. Costeira, 9. Ribeirão da Ilha e 10. Pântano do Sul9. Na seqüência, considerando o espaço geográfico a ser pesquisado e maior homogeneidade de parâmetros, decidiu-se que todos os informantes da amostra deveriam ter o seguinte perfil: (i) ter nascido e residido na mesma localidade até os 14 anos de idade; (ii) após os 14 anos, eventual residência fora da localidade não poderia ser superior a dois anos; (iii) ser filho de pais nativos do mesmo bairro ou arredores. Sumarizando, e considerando a pouca disponibilidade de tempo e as condições técnicas para a realização da pesquisa piloto ora apresentada, foram controladas tão somente as seguintes variáveis sociais: (i) Idade (dimensão diageracional): de 15 a 25 anos (GI) e de 40 a 60 anos (GII); (ii) Escolaridade (dimensão diastrática, circunscrita à escolaridade): para os informantes GI, 6

Neste estudo, em específico, apresento uma análise de um fenômeno morfossintático a partir de uma amostra extraída do banco de dados do Projeto elaborado. Para estudos que contemplem fenômenos fonético-fonológicos e semântico-discursivos remeto a Margotti; Martins; Monguilhott & Rost (2006). 7 Os procedimentos de elaboração do questionário foram norteados, entre outros, pelo estudo de Amaral (2003). 8 O que se entende (ou se define) ora por língua e ora por dialeto nos estudos lingüísticos parte, por sua vez, quase sempre, de conceitos que fogem aos domínios estritamente lingüísticos (ver, entre muitos outros, CHAMBERS; TRUDGILL, 1980 e COSERIU 1982). 9 As localidades de Ponta das Canas, Ingleses, Rio Vermelho, Ratones e Monte Verde ficam no norte da ilha; Estreito e Centro são localidades centrais, de modo que o Estreito está localizado na parte continental da cidade de Florianópolis; Costeira, Ribeirão da Ilha e Pântano do Sul estão geograficamente localizadas na parte sul da ilha de Santa Catarina.

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escolaridade de 3º e 4º ciclos do Ensino Fundamental (5ª a 8ª séries) e de nível superior e, para os GII, escolaridade de 1º, 2º ciclos do Ensino Fundamental (1ª a 4ª séries) e 3º e 4º ciclos do Ensino Fundamental ou de nível Médio; e (iii) localidade (dimensão diatópica), conforme os pontos já mencionados acima. Seguindo a metodologia de pesquisa de campo delineada pela sociolingüística variacionista, conforme Labov (1972, 1978), e aquela preconizada pela geolingüística, conforme, entre outros, Ferreira & Cardoso (1994), as entrevistas foram realizadas pelos alunos-pesquisadores nas localidades já especificadas. Os alunos-pesquisadores foram instruídos para seguir o Questionário elaborado em grupo. Em relação às questões voltadas à análise do clítico SE na fala de Florianópolis, durante a coleta dos dados, o informante deveria interpretar (a função de indeterminação ou reflexiva) de três seqüências pré-definidas (cf. especificado na seção a seguir).

3. A AMOSTRA O foco de análise deste estudo em específico são as interpretações atribuídas por falantes florianopolitanos ao SE ora enclítico e ora proclítico em estruturas transitivas; nosso objetivo, como já mencionado, foi o de delinear evidências empíricas, a partir de um teste de atitude, para a hipótese de que enquanto SE enclítico está preferencialmente associado a construções de indeterminação, SE proclítico está associado a construções reflexivas. De acordo com Galves (2001, p.148), apesar de a ênclise no Português do Brasil (PB) ser um fenômeno marginal, o SE indeterminador apresenta uma forte tendência a aparecer em ênclise, principalmente em fórmulas, como receitas culinárias ou no discurso pedagógico. A partir dessa propriedade do SE indeterminador enclítico, a autora aventa a possibilidade de que esse clítico, nestas circunstâncias, pode receber uma análise diferenciada dos demais clíticos no PB (cuja próclise tende a ser generalizada), podendo ser interpretado como um morfema inserido diretamente no verbo. A partir dessa perspectiva, como já dito, buscou-se na elaboração do projeto investigar qual a interpretação atribuída pelos falantes florianopolitanos ao clítico se quando enclítico e quando proclítico em construções com verbos transitivos diretos, conforme (1), (2) e (3), a seguir. Nossa hipótese geral, norteada pelo pressuposto teórico de que o SE proclítico e o SE enclítico possuem propriedades morfossintáticas distintas, é a de que, enquanto este está associado a estruturas de indeterminação, aquele está associado a estruturas reflexivas.

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(1) a. Matou-se o Joãob. Se matou o Joãoc. O João se matou (2) a. Se feriu a Mariab. Feriu-se a Mariac. A Maria se feriu (3) a. Penteou-se a meninab. A menina se penteouc. Se penteou a menina A amostra aqui analisada se constitui, nessa perspectiva, de respostas interpretativas de falantes florianopolitanos em relação à função (de indeterminação ou reflexiva) do clítico SE atrelada a sua posição na estrutura10. É importante salientar que consideramos apenas as interpretações das estruturas cuja resposta era imediata por parte dos falantes, de modo a atenuar a influência do questionário (e do entrevistador) em relação à interpretação da função do clítico SE nas estruturas supracitadas. Na seqüência, os dados foram categorizados de acordo com a metodologia da teoria da variação e mudança11 e submetidos ao sistema logístico VARBRUL (cf. PINTZUK 1988). A nossa análise levará em conta apenas a freqüência de uso das variantes analisadas correlacionadas às variáveis lingüísticas e sociais observadas, oferecida pelo aplicativo Mekecell do pacote estatístico VARBRUL.

4. ANÁLISE DOS RESULTADOS Com o objetivo de mapear a função que o falante atribui às construções transitivas com SE ora enclítico e ora proclítico bem como correlacionar tais funções a outras variáveis, organizamos os dados como uma variável complexa que agrega forma e função, com as seguintes variantes: (i) SE enclítico Indeterminador; (ii) SE enclítico Reflexivo; (iii) SE proclítico Indeterminador e (iv) SE proclítico Reflexivo 12. A fim de delinear as possíveis correlações entre a interpretação de cada uma dessas variantes e variáveis lingüísticas e sociais, controlamos os seguintes grupos de fatores: verbo da estrutura; idade (dimensão diageracional); escolaridade (dimensão diastrática) e localidade (dimensão diatópica). A distribuição geral dos dados pode ser observada na tabela 1, a seguir, na forma de resultados cruzados. Das 208 sentenças analisadas, 68 são de sentenças com SE enclítico e 140 são de sentenças com SE proclítico, como exemplificam (4) e (5), respectivamente. Observem-se os resultados. De um lado, enquanto em 57 das 68 sentenças analisadas com ênclise (84%) a função 10

Exemplos dos dados analisados podem ser observados nas transcrições em (4), (5), (6) e (7) na próxima seção. 11 Remeto a Mollica & Braga (2004) para uma descrição dos procedimentos metodológicos pertinentes a uma análise variacionista. 12 Essa concepção de variável expande sobremaneira o conceito inicialmente proposto por Labov (1972, 1982), uma vez que buscamos observar a variação no uso de uma forma específica correlacionada a uma função.

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atribuída ao clítico SE é a de Indeterminador, em 11 sentenças (16%) SE é interpretado como Reflexivo. De outro lado, das 140 sentenças com próclise analisadas, em 20 sentenças (14%) o clítico SE é interpretado como Indeterminador e em 120 sentenças (86%) como Reflexivo.

SE enclítico SE proclítico

Indeterminado 57/68 84% 20/140 14%

Reflexivo 11/68 16% 120/140 86%

Total 68 140 208

Tabela 1: Distribuição geral das interpretações de SE enclítico e de SE proclítico em Florianópolis

(4) Entrevistador– Então, a senhora me diz como que o João morreu, tá? Eu vou falar devagar cada frase. Matou-se o João. Informante – Ele foi morto. (5) E – Ok. Se matou o João. I – Ele se matou. Estreito – 52 anos, Feminino, Séries Iniciais. Temos, no trecho acima, duas interpretações diferentes para as construções sublinhadas: na primeira o sujeito é visto como indeterminado e na segunda, não; a indeterminação e a reflexividade são, então, atribuídas à posição do SE face ao verbo. De um modo geral, os resultados apresentados parecem confirmar a nossa hipótese inicial, ou seja, SE quando enclítico parece estar correlacionado a construções de indeterminação e quando proclítico a construções reflexivas. No que tange à correlação entre a variável lingüística verbo da estrutura e a função reflexiva ou de indeterminação atribuída pelos falantes florianopolitanos ao clítico SE, observamos, de acordo com os resultados da tabela 2, a seguir, que o verbo matar parece ser um contexto lingüístico favorecedor da interpretação de SE como indeterminador quando enclítico. Como exemplifica o trecho da entrevista transcrito em (6), é nas construções com o verbo matar que o falante parece perceber com mais clareza a função (reflexiva ou de indeterminação) do clítico na estrutura. A interpretação de SE como reflexivo, por sua vez, apresenta sempre um percentual mais alto quando este se encontra enclítico aos três verbos observados: matar (96%), pentear (92%) e ferir (86%).

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Indeterminador

Reflexivo

SE enclítico SE proclítico Total SE enclítico SE proclítico Matar Pentear Ferir

24/28 86% 20/31 65% 13/18 72% 57

4/28 14% 11/31 35% 5/18 32% 20

28 31 18 77

2/51 4% 3/38 8% 6/42 14% 11

49/51 96% 35/38 92% 36/42 86% 120

Total 51 38 42 131

Tabela 2: Interpretações atribuídas ao uso enclítico/proclítico de SE segundo o verbo da estrutura

(6) E – O que você entende disso que eu vou te dizer agora, ok? Matou-se o João. I – Matou-se o João. Tá. Eu entendo que alguém matou o João. E – Ok. Agora alguém diz: Se matou o João. I – Então ele se suicidou, né? E – O João se matou. I – A mesma coisa. E – A mesma coisa... I – Ele se matou. E – Ok. Agora tu conheces a Maria, certo? E alguém chega aqui e te diz: Se feriu a Maria. I – Se feriu a Maria. Aí eu vou entender que a Maria se machucou sozinha. Ela com alguma coisa... E – Feriu-se a Maria. I – Aí... Pra mim é ambígua, né? E – Por quê? I – Calma que essa aí tem que pensar um pouco. I – Pode dizer que alguém feriu a Maria ou a Maria se feriu. E – e A Maria se feriu. I – Aí está bem especificado que ela se machucou sozinha. E – Ok. Agora tem uma menina. Vai ter uma festa e alguém te diz assim: Penteou-se a menina. I – Alguém penteou. E – A menina se penteou. I – Então [tá]- que ela se penteou sozinha. E – E agora Se penteou a menina I –Aí também pode ser ambígua, na minha concepção, que alguém a penteou ou que ela se penteou sozinha. Ponta das Canas – 23 anos, Masculino, Ensino Superior em curso.

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Em relação às variáveis sociais, de um modo geral, observa-se na amostra que falantes mais novos e com mais escolaridade parecem ter mais facilidade para “compreender as regras do questionário” e, conseqüentemente, as respostas são mais automáticas, delineando, desse modo, com mais clareza a tendência geral dos resultados. Observamos na tabela 3 que falantes de 15 a 25 anos atribuem com mais freqüência uma interpretação de indeterminação ao SE quando enclítico (86%) em relação aos falantes de 40 a 60 anos (69%). Mais uma vez, como evidenciam os resultados, a interpretação de SE quando proclítico parece não estar correlacionada à idade, com percentuais na média de 94% e 92%. Em relação às correlações entre as interpretações atribuídas ao SE enclítico ou proclítico e o grau de escolaridade dos informantes, como mostram os resultados da tabela 4, a seguir, observamos que, apesar de os percentuais apontarem para os resultados gerais do estudo, a escolaridade não parece ser um contexto social significativo para a interpretação do clítico. Muito embora informantes com mais escolaridade atribuam com mais freqüência uma interpretação de indeterminação ao SE enclítico (76%). Indeterminador

De 15 a 25 anos De 40 a 60 anos

SE enclítico 24/29 86% 33/48 69% 57

SE proclítico 5/29 14% 15/48 31% 20

Reflexivo Total 29 48 77

SE enclítico 4/65 6% 7/66 8% 11

SE proclítico 61/65 94% 59/66 92% 120

Total 65 66 131

Tabela 3: Interpretações atribuídas ao uso enclítico/proclítico de SE segundo a idade Indeterminador

GI: 3º e 4º ciclos do Ensino Fundamental (EF)GII: 1º, 2º ciclos do EF GI: nível superior GII: 3º e 4º ciclos do EF ou Ensino Médio (EM)

SE enclítico

SE proclítico

20/28 71%

8/28 29%

37/49 76% 57

Reflexivo SE enclítico

SE proclítico

28

6/55 11%

49/55 89%

55

12/49 24%

48

5/76 7%

71/76 93%

76

20

77

11

120

131

Total

Total

Tabela 4: Interpretações atribuídas ao uso enclítico/proclítico de SE segundo a escolaridade

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Os trechos da entrevista transcritos em (7) e (8), relevantes para a discussão, parecem corroborar os resultados das tabelas 3 e 4 acerca das correlações entre a interpretação atribuída ao clítico SE e as variáveis idade e escolaridade. De um modo geral, informantes mais novos e com mais escolaridade tendem a compreender com mais facilidade “as regras do jogo” e interpretar com mais certeza e exatidão as sentenças do questionário. Observese (7) e as respostas imediatas às sentenças com o clítico. Em (8), no entanto, a informante com mais idade e baixa escolaridade até chega a interpretar a sentença, mas, o exercício do entrevistador para que a resposta fosse, finalmente, obtida foi bastante grande. Dados como (8) não foram computados em nossa análise, uma vez que a resposta do informante aparece a partir de certa interferência do entrevistador, fato este que distanciaria o dado obtido do vernáculo do falante13. (7) E – Agora você me diz como que o João morreu, ta? Matou-se o João. I – Deram uma facada no João E – Ok. Se matou o João. I – Um tiro na cabeça. E – Alguém deu um tiro ou... I – Ele deu um tiro na cabeça dele. E – Ele deu um tiro. O João se matou. I – O João deu um tiro na cabeça. E – Ok. Boa. Agora sobre quem penteou a menina, ta? Penteou-se a menina. I – Alguém penteou a menina. E – Ok. A menina se penteou. I – Ela estava em casa e penteou o cabelo. Ela sozinha. E – Ok. Se penteou a menina. I – A menina se penteou sozinha também. Ribeirão da Ilha – 25 anos, Masculino, Ensino Superior em curso. (8) E – Chega alguém aqui e lhe diz algo e eu gostaria de saber que a senhora entende disso que ele esta dizendo, ok? Matou-se João. I – Coitado! Né? Às vezes a gente tem essa expressão, né? [que]pouco eu tinha visto ele [e]- [ou]-... E – Mas como que ele morreu, daí? Matou-se o João. Mas daí

13

o o a a

Muito embora seja necessário considerar que a REAL definição do vernáculo é, antes, uma abstração (ver MILROY; GORDON, 2003).

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senhora vai pensar o que? Que ele se matou, ele cometeu suicídio, ou foi alguém que matou... I – Foi alguém é... E – O que a senhora vai entender? I – Vou perguntar: Como? E – E daí... Matou-se o João, o que a senhora entende? Que alguém matou ele ou... I – Que alguém matou ele. Matou. Coitado, né? Porque geralmente quando a [pessoa]- O João se matou; O Pedro se matou; de repente matou-se é porque foi alguém que matou, acho. Ingleses – 55 anos, Feminino, segunda série do Ensino Fundamental. Em relação aos pontos geográficos observados na grande Florianópolis (o que inclui a ilha e parte do continente), os resultados percentuais, apesar de refletirem também o fato de que quando enclítico o SE está associado a uma função de indeterminação e quando proclítico a uma função reflexiva, não se mostraram significativos no que se refere à interpretação da função do clítico SE nas estruturas analisadas.

CONCLUSÕES Em primeiro lugar, em relação ao processo de constituição do Projeto Piloto Variação (Sócio-Geo) Lingüística em Florianópolis, se faz necessário enfatizar que são inegáveis as contribuições pessoais, intelectuais e metodológicas, enquanto pesquisador e um profissional da linguagem, que o trabalho de campo proporciona. Além destas contribuições, e da experiência adquirida por cada aluno-pesquisador, constituiu-se um banco de dados de língua falada no município de Florianópolis que poderá ser utilizado futuramente para análise de outros fenômenos. O estudo da variação lingüística, assim como a formação de um banco de dados que contemple a língua falada (e, conseqüentemente, a heterogeneidade das línguas naturais), sob um olhar com fins casamenteiros entre os pressupostos da dialetologia e da teoria da variação e mudança é algo profícuo. No entanto, (como em todo casamento) se faz necessário desconsiderar alguns aspectos ora de um e ora de outro modelo, o que, por sua vez, permitirá um olhar mais acurado acerca de descrições e, sobretudo, de explicações sobre os estudos variacionistas. No que tange às construções com SE enclítico e proclítico na amostra analisada, de um modo geral, os resultados obtidos nas entrevistas realizadas trazem contribuições empíricas bastante significativas. A intuição dos falantes, nesse sentido, testada a partir das interpretações atribuídas às sentenças do

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questionário, corrobora a análise teórica aventada por Martins (2005) de que SE quando enclítico está associado a uma construção de indeterminação (formando um todo morfológico amalgamado ao verbo da estrutura, seguindo a análise de Costa & Martins (2003)) e quando proclítico a uma construção reflexiva. Em outras palavras, observa-se nos dados analisados que o SE enclítico e proclítico parecem ser realidades morfossintáticas distintas. Observamos ainda que as interpretações atribuídas pelos informantes florianopolitanos aos SE ora enclítico e ora proclítico parecem estar correlacionadas ao verbo da estrutura, de modo que em construções com o verbo matar, quando enclítico, SE é preferencialmente interpretado como indeterminador e quando proclítico como reflexivo. Esse resultado geral parece ser aquele corroborado também pelas interpretações atribuídas pelos informantes mais jovens e com mais escolaridade. É importante reter o fato de que, a partir da tabela 2, se observa claramente que a interpretação do SE reflexivo está mais polarizada: em torno de 90% associada à próclise (o percentual cai um pouco com o verbo ferir). Já a interpretação do SE indeterminado sofre mais flutuação: em torno de 70% associada à ênclise (o percentual sobe nos mais jovens). Tais resultados podem ser indícios de uma possível mudança em curso, ou seja, a correlação próclise/ reflexivo está mais bem estabelecida (especialmente com o item verbal matar) do que a correlação ênclise/indeterminado.

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María Josefina Israel Semino *

UNA OJEADA A UNA INTERFERENCIA PORTUGUESA EN LA PERÍFRASIS CASTELLANA: UN ABORDAJE PEDAGÓGICO A PARTIR DE LA LINGÜÍSTICA COGNITIVA (Focusing in Portuguese interferences on Castilian periphrasis: a pedagogical approach based on Cognitive Linguistics) ABSTRACT This paper aims to a) show very briefly the general profile of Cognitive Linguistics; b) present the traditional definition of Spanish and Portuguese pattern usage to the periphrastic form “ir + (preposition) + SN/Infinitive”; c) present some deviation cases which appear in Castilian practiced by Brazilian students who are studying Spanish, d) sum up the way Cognitive Linguistics approaches this construction, and, e) improve the traditional presentation of the pattern and understand and explain the deviation committed by Brazilian students. Key words: interferences, cognitive linguistics, linguistic contact. RESUMEN En este trabajo me propongo sucesivamente, a) trazar muy sintéticamente el perfil general de la Lingüística Cognitiva; b) presentar la forma en que tradicionalmente se define la norma española y portuguesa para el uso de la forma perifrástica “ir + (preposición) + SN/Infinitivo”; c) presentar algunos casos desviantes que aparecen en el castellano practicado por estudiantes brasileños que están aprendiendo el español, d) resumir la manera en que la Lingüística Cognitiva aborda la construcción considerada, y, e) pulir la presentación tradicional de la norma y tratar de entenderexplicar(me) los desvíos cometidos por los alumnos brasileños. Palabras-clave: interferencias, lingüística cognitiva, contacto lingüístico.

1 PERFIL DE LA LINGÜÍSTICA COGNITIVA En esta sección sigo al pie de la letra el resumen de las ideas centrales de la Lingüística Cognitiva (de aquí en más abreviada como LC) presentado por Maria J. Cuenca y Joseph Hilferty (1999, cap. 7). 1.0

Enfoque totalizante del lenguaje

La LC pretende realizar una descripción integrada de los diferentes aspectos que constituyen el lenguaje (él mismo íntimamente asociado al conocer), en oposición a los modelos que los analizan separadamente. Así, actividad corporal,

* Professora do Dep. de Letras e Artes – FURG; Doutora UAM, Espanha. E-mail: [email protected]

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conocimiento del mundo, léxico, morfosintaxis, semántica y pragmática, son para la LC un corpus único a ser estudiado como un todo articulado. 1.1

Limitación de la arbitrariedad del lenguaje

La LC comparte con Saussure la idea básica de que el lenguaje es simbólico y que hay arbitrariedad en la asociación, constitutiva del símbolo lingüístico, entre un componente semántico y uno fonológico. Así sucede que un concepto como “ver” recibe en inglés la forma fonológica-gráfica “see”, tan diferente del español y tan arbitraria como ésta. Pero la LC se diferencia de Saussure al sostener que la arbitrariedad cesa en este punto y más allá de él comienza la motivación, que hace que (tanto en español como en inglés) se use la expresión “ahora lo veo claro” (y no, por ejemplo, “ahora lo como claro”) para manifestar que se ha comprendido algo que antes era opaco a nuestro entendimiento; eso, porque, metafóricamente el “entender” es interpretado como una forma de “ver con el entendimiento”. También sostiene la LC que la centralidad del significado y la motivación vinculada a él no se detiene en las palabras sino que afecta también a unidades inferiores a las palabras, como los morfemas, y superiores a ella, como es el caso de la construcción que nos ocupa en este trabajo, según lo veremos después. De ahí que la iconicidad sea concepto importante en la LC, que no la restringe, como lo hace la tradición, a las onomatopeyas; la iconicidad ayuda a explicar, por ejemplo, por qué los pronombres son más cortos que los nombres comunes o los sintagmas nominales (SN) a los que equivalen: la causa está en que la reducción del significado léxico que ocurre en ellos se refleja en una reducción formal. 1.2 Significado no-objetivista omnipresente y vinculación indisoluble entre semántica y pragmática La LC sostiene que el significado es omnipresente en el lenguaje y debe serlo también en su estudio. Y agrega que cualquier diferencia de forma vehicula una diferencia semántica (distanciándose así de las tesis transformacionistas clásicas de Chomsky), lo que por su vez remite a la vinculación indisoluble entre semántica y pragmática; así no es indiferente semánticamente que un locutor prefiera una forma especial y no cualquiera de sus sinónimos eventuales para referirse a una persona o entidad (ejemplo: el doctor/el dentista/el sacamuelas). De ahí que la LC no concuerde con el abordaje objetivista-formalista del significado ni se resigne a reducirlo a un tratamiento por condiciones veritativas (según el clásico modelo propuesto por Rudolf Carnap y el Círculo de Viena, según el cual “el significado de una expresión es el método de su verificación”). La LC considera que el significado siempre está inmerso en el carácter enciclopédico e históricamente situado del conocimiento de los hablantes, y está

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íntimamente relacionado tanto a los procesos mediante los cuales éstos construyen conocimiento, como al contenido de este último. Considera también la LC que el significado figurado es tan importante como el literal y destaca la presencia asidua de la metáfora y la metonimia en el lenguaje cotidiano de todos los hablantes (ejemplos: la extensión analógica de “ver” a “entender”, como ya lo vimos, y el cotidiano pedido “pásame la sal”, donde hay metonimia del tipo contenidocontinente, porque lo solicitado, de hecho, es el salero). 1.3

Enfoque holístico de los componentes de la Gramática

Cuestionando el papel madre dado por Chomsky a la sintaxis, la LC considera que el léxico, la morfología y la sintaxis, como lo dice Langacker (1987, p. 35, apud Cuenca & Hilferty, 1999) “forman un continuum de unidades simbólicas que sirven para estructurar el contenido conceptual con finalidades expresivas...” por lo que “es incoherente hablar de la gramática separada del significado, y se rechaza la segmentación de la estructura gramatical en componentes discretos”. Como dicen Cuenca y Hilferty, la semántica y la fonología son los dos polos de las unidades estructuradas que forman la gramática; el léxico, la morfología y la sintaxis, constituyen un continuum de unidades simbólicas que estructuran el contenido conceptual. Así se establece el siguiente “principio de no-sinonimia”: si dos construcciones no son distintas sintácticamente, tienen que ser distintas semántica o pragmáticamente. 1.4 Carácter difuso del lenguaje En el lenguaje, como en la experiencia vital, casi todo es cuestión de grados. De ahí que las categorías lingüísticas no puedan ser delimitadas con tanta distinción como lo pretendió Aristóteles en su Lógica; porque ellas no caracterizan a partir de indiscutibles condiciones necesarias y suficientes sino que lo hacen por gradaciones y presentan entre sí límites difusos. Por eso los juicios de gramaticalidad no pueden caber en distinciones simplistas de gramaticalidad o agramaticalidad porque entre ambas hay diversos grados posibles. La categorización distingue entre formas prototípicas y otras no tanto. Aijmer (1985, p.11) nos recuerda que el concepto de “prototipo” fue introducido por el psicolingüista E Rosch; partiendo de una taxonomía en la que encontramos categorías de “nivel básico” (como por ejemplo “pájaro”) acompañadas de sus hipónimos (en el caso citado “gallina”, “águila”, “pingüino”, etc.), Rosch propone que (agregamos nosotros, para las personas del medio norteamericano medio) “gallina” es un miembro más prototípico de la categoría “pájaro”, que “águila” o “pingüino”; y que otras instancias de cada categoría están vinculadas al prototipo sobre la base de la similitud. También hay posiciones intermedias entre las categorías puramente

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funcionales (los morfemas) y las categorías puramente léxicas (como el nombre común); tales son las ocupadas por los pronombres y las preposiciones, entre otras; ellas no son carentes de sentido referencial, aunque no son tan plenas léxicamente, como el nombre común. La LC sostiene que únicamente una concepción difusa del lenguaje, siguiendo la hipótesis wittgensteiniana de los “parecidos de familia”, puede dar cuenta de la realidad de los matices y grados. En el caso considerado, como dicen Cuenca y Hilferty, sólo una concepción difusa del nombre y del pronombre que sitúe en dos extremos de un continuum el nombre común y los pronombres personales, y en una posición intermedia el nombre propio, puede dar cuenta de las particularidades semánticas y sintácticas de dicha clase.

2 LA PRESENTACIÓN TRADICIONAL DE LA PERÍFRASIS CON “IR” EN ESPAÑOL Y EN EL PORTUGUÉS DE BRASIL Tradicionalmente se enseña que, en español, la perífrasis con “ir” siempre lleva preposición, ajustándose a la forma “ir + preposición + SN o Infinitivo”. Se destaca en esa figura en especial el papel de la preposición “a”, presente tanto en las construcciones del tipo “ir + preposición + SN” (como en “voy a Madrid”), como en las del tipo “ir + preposición + Infinitivo” (como en “voy a llorar”). En la más reciente edición (2001) de “A Nova Gramática do Português Contemporâneo” (Cunha & Cintra, 2001), la mencionada perífrasis aparece sólo al pasar en la sección que lleva por título “Verbos auxiliares e o seu emprego” (p. 394 y siguientes). Allí, después de tratar de los “auxiliares de uso más frecuente”, que son “ter, haver, ser e estar”, se dice que “hay otros que pueden funcionar como auxiliares”, y entre los cinco que se mencionan explícitamente, aparece “ir”, con la aclaración de que, como los otros cuatro, “se ligan al Infinitivo del verbo principal para expresar matices de tiempo o para marcar ciertos aspectos del desarrollo de la acción”; de inmediato se dice que “ir”, además de usarse con el gerundio del verbo principal, es usado “con el infinitivo del verbo principal para expresar el firme propósito de ejecutar la acción, o la certeza de que ésta será realizada en un futuro próximo”, dándose los dos ejemplos que siguen (p. 397, las traducciones son nuestras, como las anteriores): Vou procurar um médico (Voy a llamar a un médico) O navio vai partir (El barco va a zarpar) Y acto seguido pasa ya a ocuparse de los otros cuatro verbos (“vir, andar, ficar e acabar”, o sea, “venir, andar, quedar y acabar”). A su vez, el “Manual de Iniciación a la Lengua Portuguesa” (Carrasco González, 1994) publicado en Barcelona, ni siquiera menciona nuestra perífrasis

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en la sección dedicada a “La conjugación de los tiempos compuestos y sus verbos auxiliares” (p. 63 y siguientes), donde, después de afirmar que en portugués “existen dos verbos auxiliares para la formación de los tiempos compuestos: ter e haver”, anuncia que en las páginas que siguen “damos la conjugación de los verbos auxiliares ter y haver, así como un ejemplo de la formación de los tiempos compuestos tomando al verbo cantar como modelo” (p. 63). En los manuales contrastivos la situación no es muy diferente. Milani (2000) dedica tan sólo un parágrafo (p. 281) a nuestra perífrasis, en la sección dedicada a la “Classificação das perífrasis verbais”, comentando, en el contexto de las “perífrasis do infinitivo” que “‘ir a + infinitivo’ indica [en español] uma ação que começa a realizar-se de fato ou intencionalmente. Mostra as previsões de quem fala sobre o que acontecerá no futuro ou adverte o interlocutor sobre algo ou perigo”; y propone los siguientes ejemplos: Va a llover Iba a salir cuando llegó Juan Desde el punto de vista normativo-pedagógico se destaca el conciso cuadro contrastivo elaborado por Di Lullo Arias, en su “Espanhol urgente para brasileiros” (2000:200) en el que, [sin especificar que se trata de la forma perifrástica que nos ocupa], advierte que en español “Ir está sempre acompanhado pela preposição a”, mientras que en portugués, “ir”, con otro verbo en infinitivo no se emplea con la preposición “a” (español: “voy a rezar”/ portugués: “vou rezar”), pero sí se la usa cuando [y notemos que aquí ya no se trata de la perífrasis considerada] hay “referencia a lugares” (español: voy a la iglesia/ portugués: “vou à igreja”), siendo que, cuando se combinan los dos usos, el español emplea la preposición “a” en los dos, mientras que el portugués sólo lo hace en el referido a lugares (español: “voy a la iglesia a rezar”/ portugués: “vou à igreja rezar”). Veamos a continuación el cuadro que Di Lullo Arias nos presenta en su libro: Espanhol

X

Português

Ir - Ir está sempre acompanhado pela preposição a. - Em referência a lugares: Voy a la iglesia. - Quando seguido de um verbo no infinitivo: Voy a rezar. - Quando assinala as duas situações: Voy a la iglesia a rezar.

Com outro verbo no infinitivo não se emprega a preposição a. Emprega-se a preposição a: Vou à igreja. Não se emprega a preposição a: Vou rezar. Só emprega no caso de indicar lugar: Vou à igreja rezar.

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Habría que agregar a lo dicho por Di Lullo que en el portugués brasileño, cuando hay referencia a lugares, además de “a” y su variante “à” (equivalente a la forma española “a la”) pueden aparecer otras formas, como las contracciones “ao” (cuando lo que sigue es un sustantivo masculino) y “na” (cuando lo que sigue es un sustantivo femenino), equivalentes a las formas españolas “al”, y “en la”, y también es usada la preposición “para” (cuando lo que sigue es un SN con nombre propio de lugar precedido o no de artículo); así son juzgadas gramaticales las expresiones del tipo “vou ao campo” (voy al campo), “vou à praia” / “vou na praia” (voy a la playa), y “vou para Madri” (voy a Madrid), “vou para o Casino” (voy a Cassino).[N.B. “Cassino” es el nombre de un balneario brasileño].

3 PRODUCCIONES CON DESVÍOS POR ESTUDIANTES BRASILEÑOS Hasta el siglo XV las perífrasis aparecían casi siempre sin preposición. Yllera (apud Santos Domínguez y Espinosa Elorza, 1996, p.80), comenta la falta absoluta de la preposición a en el Poema de Mio Cid en las perífrasis con el verbo ir. Ahora bien, desde el siglo XVI, la preposición es exigida por la norma. En mi experiencia como docente de español de universitarios brasileños he constatado la aparición, tanto en su producción oral como escrita, de una frecuente dificultad (sospecho que debido a fenómenos de interferencia entre ambas normas) en la forma perifrástica antes citada. Así, son frecuentes los casos de omisión de la preposición en la construcción “ir + Infinitivo”, aplicando al español la forma prevista por su portugués; y dicen y escriben, por ejemplo “voy llorar”, en vez de “voy a llorar”. [Por otro lado, en la otra construcción, con SN (referido a lugares), también sospecho que, debido a interferencias, aparecen expresiones como “voy en la playa”, con desvíos en el uso de preposiciones]. En un corpus de cuarenta textos breves en castellano, libremente producidos por veinte estudiantes brasileños de segundo año de la Licencia en lengua española (año 2001), son 23 las apariciones de la perífrasis que ahora nos ocupa; de ellos tan solo seis (26%) se ajustan al uso normativo, mientras que nada menos que 17 (64%) incurren en el desvío que consiste en omitir la preposición “a” (a lo que debemos sumar un último caso que en español todo indica que es agramatical; ver en el Anexo la lista completa de los casos). Hay que notar que dentro de los seis que se ajustan al uso normativo: a) cuatro incluyen al presente de “ir” y dos a su pasado simple, (ejemplos: va a morir, fue a estudiar). Nótese que en uno de estos 6 casos uno presenta un desvío consistente en la omisión del (o los) pronombre(s) personal(es) átono(s) requerido(s) por la norma española inmediatamente antes de la perífrasis comentada aquí (se trata de “(se me) Ø Ø va a pasar [el dolor]”).

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En los 17 casos que presentan desvíos la distribución (que incluye casos tanto de sujetos en singular como en plural), es muy pareja para las formas de “ir” en la perífrasis de marras, en presente (7 casos; ejemplos: voy esperar), pasado simple (4 casos; ejemplos: “tú fuiste viajar”, “[él] fue estudiar”), y futuro simple (6 casos; ejemplo: “iremos salir”). Por último vale la pena notar que también ocurren desvíos cuando hay lo que podríamos llamar una “seudointerpolación”; me explico: así como se denomina “interpolación” a la ocurrencia de un elemento entre el clítico y el verbo, podríamos llamar aquí “seudointerpolación” a la ocurrencia de algún elemento entre el auxiliar “ir” y la unidad compuesta por la preposición “a” y el verbo en infinitivo. En el corpus aquí considerado tres son los casos en que esto ocurre; dos con “ir” en presente: “…voy al centro hacer compras…”, “voy (Ø) la tienda Renner hacer compras…”, y uno con “ir” en futuro simple: “Yo iré al Cassino pasear por la playa”. [No podemos pasar por alto el hecho de que en el segundo de los ejemplos citados hay omisión de la preposición “a” incluso cuando hay referencia a lugar (la “tienda Renner”), o sea, cuando dicha preposición también es exigida por la norma portuguesa; ¿sería esto un “contagio” de la omisión que afectará inmediatamente a la forma perifrástica que la sigue?]. Con relación a la persona la distribución total de los casos es la siguiente: 10 en primera persona del singular, dos en segunda del singular, 9 en tercera del singular, 2 en primera del plural, y ninguna en segunda y tercera personas del plural; véase la siguiente tabla. Tabla 1: Distribución total de los casos con relación a la persona Persona 1ª 2ª 3ª

Singular 10 2 9

Plural 2 0 0

Acerca del amplio predominio de la primera y tercera personas del singular, hay que notar que, en buena parte, los textos del corpus son relatos que, por su tema y/o abordaje, así casi lo exigen. La ausencia en el corpus, tanto de la segunda como de la tercera persona del plural, ameritaría un análisis estilísticoliterario que excede las pretensiones del presente trabajo y también el alcance de nuestros conocimientos. En los usos normativos hay uno en primera persona del singular y cinco en tercera del singular. En los desvíos la distribución se muestra como sigue: siete en primera persona del singular, dos en la segunda y tres en la tercera del singular, y, dos en la primera persona del plural; véanse las siguientes tablas:

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Tabla 2: Total de usos normativos (U.N.) y desvíos en singular y plural Persona

U. N.

1ª Sing. 2ª Sing. 3ª. Sing. 1ª. Plural

1 2 5 2

Desvíos 7 2 3 2

Tabla 3: Porcentajes de desvíos en el total Persona

Porcentaje

1ª Sing. 2ª Sing. 3ª. Sing. 1ª Plural.

30.43 8.7 13.04 8.7

Cabe notar que si en los ejemplos de uso normativo hay amplio predominio de la tercera persona del singular sobre la primera, en los desvíos, los casos de la primera persona del singular son el doble de los de la tercera; pero la exigüidad de los casos en presencia nos impide que nos aventuremos a arriesgar cualquier deducción sobre esa asimetría.

4 LA LC Y LA PERÍFRASIS Según Corominas y Pascual (apud González Aranda, 1998, p. 69) el verbo ir de raíz latina ÏRE, como verbo de movimiento implica desde los primeros textos, de acuerdo con su significado, ‘moverse de un lugar hacia otro’ (DRAE), un punto desde donde se produce el movimiento y un punto a donde se dirige el mismo. Para presentar el abordaje de la LC, seguimos los pasos de Cuenca y Hilferty (1999, caps. 5, 6 y 7). La LC ha destacado el papel que en nuestras vidas tiene el llamado “esquema de trayectorias”, originado en la experiencia de ir de un lugar a otro y que comprende: un punto de partida (origen), un punto de llegada (destino), una serie de puntos contiguos que unen el origen al destino (trayecto) y el movimiento del que recorre ese trayecto (viajero). Véase la siguiente figura:

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Figura 1: Esquema básico

Origen

Trayecto

Destino

Sostiene también la LC que los diferentes sentidos de “ir + a + complemento” son, en cierto modo, emergentes del esquema de trayectorias. En la forma prototípica esta construcción gramatical toma la forma “ir + a + SN [Lugar]” y se interpreta como apuntando una meta (como en “voy a casa”); pero por otro lado, y menos prototípicamente existe el uso que expresa “futuridad”, que aparece bajo la forma de “ir + a + SV [Infinitivo]”(como en “va a llover”). Figura 2: Referencia al futuro

Punto de referencia

Pasado

Pasado

TIEMPO

TIEMPO

Futuro

Y aún existen otros dos usos, algo menos preeminentes, que están a medio camino entre los dos primeros, como sucede en “voy a ducharme” y en “no voy a discutir contigo”; una de las posibles lecturas del primer caso consiste en interpretarlo como una acción que se realizará al final de la trayectoria, como una finalidad; el segundo, en cambio, expresa intencionalidad. En conclusión, “ir + a + complemento” reviste cuatro significados, que forman un abanico de distintos sentidos. También se constata el uso de procedimientos metafóricos o metonímicos, como la extensión del sentido prototípico de “meta”, a causa de la conexión que hay entre los destinos y las intenciones (apareciendo entonces expresiones como “voy a cortarme el pelo” o “voy a comer”); de forma parecida hay una pérdida de atributos con respecto al uso meta-final, como sucede en “voy a decirte una cosa”, donde la meta se transforma en intencionalidad y futuridad, al tiempo que se pierde por completo la noción de movimiento; como dicen Cuenca y Hilferty, aquí el verbo “ir” ya no denota desplazamiento y sólo mantiene el sentido intencional inherente en toda la construcción. Ésta sufre una última extensión, a través de una metonimia del tipo “el todo por la parte”, por la

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que se conserva el atributo de futuridad, perdiéndose el de intencionalidad, como en “va a hacer buen tiempo la semana que viene”. Aquí hay una doble motivación apoyada en una lectura metafórica (derivada de la metáfora conceptual según la cual “el tiempo es espacio”, o, más concretamente, “el futuro es delante”). Ese vínculo pone de manifiesto, agregan los autores citados, un uso de meta con otro de futuridad: (1) a. Voy a mi pueblo b. Voy a llorar En estos ejemplos se percibe como, dada la correlación entre los destinos y la futuridad, establecemos correspondencias conceptuales entre el dominio del espacio y el del tiempo. Profundizando sobre el verbo “ir”, los autores citados constatan que ese verbo puede utilizarse como verbo principal (como en “Voy a clase”), o como verbo auxiliar en una perífrasis ( como en “voy a hacer un pastel”); aparentemente estamos ante dos palabras distintas: la primera, verbo principal, indica desplazamiento en el espacio, y la segunda corresponde a un verbo (semi) auxiliar que añade al significado del verbo principal (hacer) un matiz de inminencia temporal; la pregunta es: ¿la relación entre ambos usos remite a algún principio sistematizable?”. Los autores opinan que sí, porque, a través de los conceptos de metáfora y metonimia se percibe como de la idea de desplazamiento en el espacio pasamos a la idea de desplazamiento en el tiempo (con intencionalidad y futuridad incluidas). Y concluyen que en el enfoque tradicional del significado esa pregunta quedaría sin respuesta, pues no se considera allí la relación del significado con la cognición y tampoco la evolución diacrónica de las palabras. A ese respecto dice Sweetser (1988, p. 392, apud Cuenca y Hilferty, 1999, p. 159) refiriéndose al verbo go (“ir”) como auxiliar del futuro, paralelo a la perífrasis de inminencia “ir + a + infinitivo” del español: “...perdemos el sentido de movimiento físico (junto a todas sus posibles inferencias implícitas de fondo). Sin embargo, ganamos un nuevo significado de predicción futura o intención junto a sus posibles inferencias de fondo-. Así pues, no se puede decir que simplemente hemos ‘perdido’ significado; más bien, hemos cambiado la inserción de este esquema de imagen en un dominio de significado espacial, concreto, por su inserción en un dominio más abstracto y posiblemente más subjetivo”. Y concluye este autor que, con tal cambio de dominio cognitivo, hay aquí un proceso de pragmatización del significado. Este abordaje ha tenido eco en la última Gramática Descriptiva de la Lengua Española (1999), Gómez Torrego (Vol. 2, p. 3365) nos plantea que debemos incluir la perífrasis “ir + a + infinitivo” dentro del grupo aspectual porque, en su opinión, el aspecto, junto con el valor temporal de futuridad, son sus valores dominantes. Y agrega el autor que esta perífrasis también muestra en determinadas

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ocasiones los rasgos modales de ‘lo intencional’ (deóntico) y ‘la probabilidad’ (epistémico).

5 RE-PRESENTACIÓN DE LA NORMA ESPAÑOLA A LOS ALUMNOS BRASILEÑOS 5.1 A partir de la LC: cinco dimensiones del significado Basándonos en la LC es importante que dialoguemos con los alumnos brasileños acerca del hecho de que el significado es omnipresente en el lenguaje y debe serlo también en su estudio, por lo que cualquier diferencia de forma vehicula una diferencia semántica, lo que a su vez supone una vinculación indisoluble entre semántica y pragmática. En el caso de la perífrasis con “ir” parece necesario llamar la atención sobre el esquema de trayectorias que a través de ella encuentra expresión, haciendo notar los componentes de indicación de meta, intencionalidad, futuridad, y/o finalidad que hacen parte del significado de esa estrategia comunicativa. Ahora bien, como se dijo, la LC también considera que el significado siempre está inmerso en el carácter enciclopédico e históricamente situado del conocimiento de los hablantes, y está íntimamente relacionado tanto a los procesos mediante los cuales éstos construyen conocimiento como al contenido de este último. Joan L. Bybee y W. Pagliuca (1985, p. 65-66) dicen que en inglés así como en español y francés, la intención es una noción centrada en el agente, que está relacionada al tiempo futuro, que realiza la modalidad epistémica de la predicción; ejemplo donde “will” expresa la intención del sujeto sería “I’m going to paint the garage as soon as the weather is warm enough” (Voy a pintar el garaje tan pronto como el tiempo esté lo suficientemente cálido), al tiempo que expresa la predicción del hablante en “That cup of coffee’s going to spill if you aren’t careful” (Esa taza de café va a derramarse si usted no es cuidadoso). Ahora bien, dicen estos autores, esos sentidos evolucionan hacia otro diferente que expresa la volición del hablante; tal sería el caso en “Will you go to a movie with me?” (¿Vas a ir al cine conmigo?). Por su parte Aijmer (1985, p. 17) dice que el futuro de “will” se desarrolla en un sentido modal que expresa “alto grado de certeza”, por lo que vendría a significar “estoy convencido que...”. Hilferty y Cuenca comparten esta visión de Aijmer. Apartándonos de Hilferty y Cuenca, así como de los antes aquí citados Aijmer, Cunha y Cintra, cuando aquellos aluden, respectivamente, a la “inminencia temporal”, o “el firme propósito de ejecutar la acción, o la certeza de que ésta será realizada en un futuro próximo”, (y acercándonos a Aijmer cuando dice

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que, desde el antiguo inglés, “will” también podría asociarse a “probabilidad”, op. cit., p. 17), sospechamos que también hace parte de la estrategia comunicativa elegida a través de la perífrasis que nos ocupa, por lo menos en ciertos contextos comunicativos, un cierto margen de indefinición acerca de la efectividad de la acción pregonada; así por ejemplo decir “voy a llorar” no nos compromete a llorar efectivamente en lo inmediato; y a todos debe habernos ocurrido el caso de reencontrar a una amiga meses después de que ésta, habiéndose quejado de molestias, hubiere proclamado “voy a ir al médico”, y que sin embargo ahora nos confiesa que no consultó a ningún galeno (porque las molestias desaparecieron, o aun a pesar de la permanencia de éstas). [Podemos incluso extender nuestra sospecha a los usos no perifrásticos que refieren a lugares; así decir “voy a ir a Madrid” no nos compromete a llegar efectivamente a ese destino, (ya que algo muy importante, como un amor o una botella de vino, puede, por ejemplo, detenernos en el camino)]. Viene en apoyo la opinión de A. Martínez (s/f, p. 8), cuando dice que a la perífrasis de futuro le correspondería un grado de facticidad intermedia. Figura 3: Perífrasis: significados Modalidad epistémica: certeza; según yo: duda Intencionalidad

Trayecto espacial

Futuro

Perífrasis Finalidad

Volición

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Todos estos rasgos de indicación de meta, intencionalidad, futuridad, finalidad e indefinición (o “inminencia temporal”, si tuvieran razón Hilferty, Cuenca, Cunha y Cintra) parecen estar presentes tanto en el portugués como en el español, pero podemos sospechar que en este último es la presencia de la preposición exigida por la norma la que los representa de hecho en la cadena hablada o escrita. También vimos que según la LC el significado figurado es tan importante como el literal y destaca la presencia asidua de la metáfora y la metonimia en el lenguaje cotidiano de todos los hablantes. En el caso de la inocente perífrasis “voy a ir a Madrid” se esconde de hecho un recurso metonímico (del todo por la parte) ya que en realidad no tenemos como meta de nuestra trayectoria la globalidad de la ciudad de Madrid, sino un punto determinado dentro de ella (como puede serlo la casa de nuestros padres o la residencia universitaria donde nos alojamos). Aquí no parece tan plausible a la competencia comunicativa del hablante la exigencia de la presencia de la preposición en la norma española para realizar esta función; pero una dosis de normativismo no vendrá mal en este caso para recordar que esta ocurrencia no puede despegarse de los otros rasgos antes citados que sí la necesitan; y como la LC defiende un abordaje holístico del lenguaje, entre buenos entendedores pronto llegaremos al consenso. 5.2 Siempre con preposición A partir de lo anterior podemos, a) ya en posición normativa, que es la requerida para distinguir con claridad la norma española y la portuguesa, a los efectos de manejarlas por separado con igual destreza, b) y apoyándonos en el cuadro contrastivo propuesto por Di Llulo, para ampliar los horizontes después, podemos insistir (a base de muchos y variados ejemplos que pongan en acción los distintos componentes del esquema de trayectorias) sobre el hecho de la necesaria presencia de la preposición en todos los casos de la perífrasis española con “ir” (incluyendo aquellos en los que se pierde de hecho la connotación de desplazamiento en el espacio, según lo aclara la LC); luego podemos explorar la extensión de la regla a otros casos de perífrasis. 5.3 “En” para marcar meta-destino Ahora bien, complementando el “esquema de trayectoria” propuesto por Langacker (1987) podemos hacer notar que hay otro elemento que de él puede hacer parte y refiere al “medio de transporte”. Ahora bien, si la preposición “a” indica hacia la meta (destino) y también introduce la intencionalidad y futuridad, aún puede introducir en español el medio de transporte (como sucede en “voy a la playa a pie”). Pero esta función también puede ser desempeñada en español por la preposición “en” (como en “voy a ir a Madrid en ómnibus”. Mas ocurre

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que en los usos normativos del español (a diferencia de lo que sucede en el portugués del Brasil) la preposición “a” no puede ser sustituida en la función de introducir la meta-destino por la preposición “en” (como lo hacen, anómalamente, los alumnos brasileños al decir “voy en la playa”, en lugar de “voy a la playa”). Así, a) una mejor comprensión, por un lado, de los cuatro sentidos en presencia y, b) del esquema de trayectoria y sus componentes, y, c) el saber de la presencia necesaria de la preposición en la perífrasis española con “ir”, habrán de ayudar sin duda a los alumnos brasileños a mejorar su dominio contrastivo de tal forma; y, por extensión, también su dominio de las construcciones no perifrásticas con “ir”, referentes a lugares, evitando la interferencia motivada en la norma portuguesa brasileña.

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Anexo Usos Normativos (6): (se me) Ø Ø va a pasar [ el dolor], va a morir, fue a estudiar, voy a escribir, va a desarrollarse, fue a buscar.Las frases donde aparecen esas expresiones son las siguientes: * No, creo que va a pasar solamente por la noche. * Va a morir lamentándose por dejar el campo... * El relacionamiento permaneció hasta un día en que él se fue a estudiar en otra ciudad... * Voy a escribir para que los fantasmas de la relación me dejen continuar a vivir. * Con seguridad la tecnología vá a desarolarse (desarrollarse) cada dia más y la magia vá ganar nuevos adeptos, pues las personas quieren descubrir respuestas increíbles para fatos que la logica y la simplicidad explican... * Es un relacionamiento de mucho cariño y respeto hasta que un día, él terminó la carrera y se fue a buscar un empleo... Desvíos (17): voy esperar, voy visitarte, tú fuiste viajar, voy despierta-me, voy al centro hacer compras, voy la tienda Renner hacer compras, yo iré al Cassino pasear, iremos salir, iré viajar, iremos pasar, iré divertirme, voy tentar, fue estudiar, fue estudiar, fue estudiar, va ganar, ¿cuándo irás tener un niño? Las frases donde aparecen estas expresiones son las siguientes: * Paula:- Bueno Luana, me alegro de encontrarte, voy esperar que me visites así que pudieres y lleva tu niña porque quiero conozcerla. Luana:- Sí Paula, puedes esperarme, así que yo pueda voy visitarte y llevaré mí hijíta. * Juana – Yo tuvo en Porto Alegre, porque estaba enferma, mas ahora estoy bien. Laura – Mas tú fuiste viajar y encontraste tu casa desordenada y yo, que estoy siempre en casa pero mi marido y mis hijos hacen tanta desorden.

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* Yo mañana por la mañana voy despierta-me a las nueve y cuarto. * Después voy al centro hacer compras del Natal. * Voy la tienda Renner hacer compras para mi madre, mi padre, mi hermano y para mi sobriña. * A la tarde yo iré al Cassino pasear por la playa con mi novio. * A la noche, después de un buen baño, mis amigos y yo iremos salir a cenar. * En mis próximas vacaciones iré viajar a isla de Florianopolis conocer las maravillosas playas que existen por allá. * También iré divertirme con mi perrito que tendrá solamente seis meses. * Ahora estoy con mi madre y voy tentar llevar mi vida de una manera feliz. * María fue estudiar en otro país. * Él fue estudiar a otra ciudad y yo seguí viviendo mi vida acá. * María fue estudiar en otro país. * Ya que estas tan feliz, ¿cuando irás tener un niño?

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Erivaldo Pereira do Nascimento *

A MODALIZAÇÃO NO GÊNERO NOTÍCIA JORNALÍSTICA (The modalization in the discourse genre news) ABSTRACT News has been considered as a discourse genre that persecutes objectivity. Questioning this thesis, the main objective of this work is to show how argumentation is intrinsic to this discourse genre, through modalization. The hypothesis investigated is that the main semantic-discursive strategies of the genre are the polyphony of locutors and the dicendi verbs working as a discourse modalizor. Two theories were used to prove such hypothesis: the Theory of Language Argumentation and the Theory of Modalization. The corpus consists of 30 political pieces of news collected from O Estado de São Paulo and Folha de São Paulo, during the period before the presidential elections in 1992. The results not only proved the hypothesis but also showed that in the genre which was investigated the polyphony of locutors works as a modalizer and permits that the responsible locutor assumes different positions in relation to other locutors introduced in its text. The dicendi verbs also work as modalizors and contribute to this argumentative phenomenon inside the genre. Key-Words: Modalization, Argumentation, News RESUMO A notícia é considerada no meio jornalístico como um gênero do discurso de caráter informativo que persegue a objetividade. Questionando essa tese, o objetivo desse trabalho é mostrar que a argumentação é intrínseca ao referido gênero, através do fenômeno da modalização. Logo, postula que a modalização discursiva está presente na notícia, através da polifonia de locutores e dos verbos discendi. O referencial teórico que dá embasamento a pesquisa é a Teoria da Argumentação na Língua, de Oswald Ducrot e colaboradores, e a Teoria da Modalização, a partir de Koch, Castilho e Castilho e Cervoni. As considerações aqui apresentadas resultaram da pesquisa que deu origem à tese de doutorado “A polifonia de locutores – recurso modalizador – na notícia jornalística”, a respeito das estratégias argumentativas presentes no referido gênero do discurso. Na referida investigação, foram analisadas 30 notícias de cunho político veiculadas pelos jornais Folha de São Paulo e O Estado de São Paulo, em setembro e outubro de 2002. As principais conclusões a que se chegou foram que a notícia jornalística é um gênero do discurso que apresenta como principal estratégia argumentativa a polifonia de locutores, funcionando como modalizador discursivo, e que os verbos discendi corroboram essa estratégia, inclusive exercendo o papel de modalizadores avaliativos. Palavras-Chave: Modalização – Argumentação – Notícia

A notícia jornalística, diferentemente do que é proposto em manuais de redação de empresas jornalística, é um gênero do discurso marcado pela presença de elementos argumentativos. A pretensa objetividade desse gênero, muitas vezes denominado de informativo, é atenuada ou desfeita através de diferentes

* Doutor em Letras, área de Lingüística e Língua Portuguesa, pela Universidade Federal da Paraíba e professor adjunto da mesma instituição. E-mail: [email protected]

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estratégias semântico-argumentativas, tais como a polifonia, a modalização através de verbos discendi, os operadores argumentativos, o arrazoado por autoridade, entre outras. Esse fenômeno foi verificado nas pesquisas que deram origem à tese de doutorado intitulada “Jogando com as vozes do outro: A polifonia de locutores – recurso modalizador – na notícia jornalística”, que descreveu as principais características semântico-argumentativas do referido gênero. O corpus utilizado na investigação é composto por 30 notícias políticas coletadas de O Estado de São Paulo e a Folha de São Paulo, no período que antecede as eleições presidenciais de 2002. Neste artigo, trataremos especificamente da estratégia da modalização, como recurso semântico-argumentativo, no gênero em questão. Essa estratégia se dá basicamente de duas maneiras na notícia: através da polifonia e dos verbos dicendi. Pela polifonia, o locutor que se apresenta responsável pelo texto introduz relatos de outros locutores, em seu discurso, e assume diferentes posicionamentos sobre os discursos trazidos, ora se comprometendo com o dito, ora se distanciando. Os verbos dicendi funcionam como três tipos diferentes de modalização, inclusive apresentando avaliação sobre o discurso relatado. As duas estratégias, com efeito, contribuem para a comprovação da hipótese de que o gênero notícia é marcado pela argumentatividade.

1 TEORIA DA MODALIZAÇÃO Ingedore Koch (2002, p. 72) assinala que, na estruturação do discurso, a relação entre os enunciadores é freqüentemente projetada através de certas relações de modalidade e ainda acrescenta que o locutor manifesta suas intenções e atitudes diante do enunciado através de diferentes atos ilocucionários de modalização. A modalização consiste, portanto, em uma das estratégias argumentativas que se materializa lingüisticamente. Castilho e Castilho (1993, p. 217) afirmam que o termo modalização expressa um julgamento do falante perante a proposição. Lyons (1977, p. 329) afirma que, na lógica tradicional, o termo modalidade é utilizado para descrever a quantificação do predicado. O autor ainda acrescenta que o único tipo de modalidade reconhecido pela lógica tradicional é o que relaciona as noções de necessidade e possibilidade ao valor de verdade e falsidade das proposições, ou seja, a modalidade alética.

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The only kind of modality recognized in traditional modal logic is that which has to do with the notions of necessity and possibility in so far as they relate to the truth (and falsity) of propositions: aletheutic, or alethic modality. (1977, p. 328, grifo do autor)1.

Os lógicos relacionam a modalidade alética, segundo Lyons, mais à necessidade do que à possibilidade. Necessidade é definida em termos de verdade em todos os universos possíveis e possibilidade em termos de verdade em alguns universos possíveis (1977, p. 329). Cervoni (1989, p. 53) afirma que o termo modalidade implica a idéia de que uma análise semântica permite distinguir, em um enunciado, um conteúdo proposicional (dito) de um ponto de vista do falante sobre esse conteúdo (modalidade). Para o autor, a modalidade é constitutiva da significação fundamental do enunciado, o que a distingue da conotação. O autor (1989, p. 63) apresenta uma classificação, segundo a qual se pode distinguir o que é tipicamente modal do que é parcialmente modal e do que é possível e vantajoso excluir do campo das modalidades. O que é tipicamente modal, ele denominou de núcleo duro, o que é parcialmente modal foi denominado de modalidade impura. Dentro do núcleo duro foram incluídas as modalidades proposicionais e os auxiliares de modo, uma vez que ambos “têm uma significação essencialmente modal perfeitamente explícita” (CERVONI, 1989, p. 63). Ocorrem modalidades proposicionais em frases do tipo “(unipessoal) + é + Adjetivo + que P ou Infinitivo”, como no exemplo “É possível que as aulas comecem em julho”. Nesse caso, a modalidade expressa pela estrutura “é possível” incide sobre toda a proposição “que as aulas comecem em julho”. Com relação à modalidade impura, o autor afirma que essa inclui “os casos em que a modalidade é implícita ou mesclada num lexema, num mesmo morfema, numa mesma expressão, a outros elementos da significação” (ibidem, p. 68). Nesse grupo, estão incluídos alguns adjetivos avaliativos, como útil, agradável, interessante, grave, etc., os verbos dicendi, dos quais trataremos mais adiante, e os modos verbais. Segundo Lyons (1977, p. 331), todas as línguas naturais provêem seus falantes com recursos prosódicos (acentuação e entonação) com os quais eles expressam tipos distintos de enunciados epistêmicos. Alguns, mas nem todos, são gramaticalizados (categoria de modo), alguns são lexicalizados ou semilexicalizados (verbos modais – dever; adjetivos modais – possível; advérbios modais – possivelmente; partículas modais – talvez). 1

Tradução literal, nossa: O único tipo de modalidade reconhecida pela lógica tradicional de modo é aquela que tem a ver com as noções de necessidade e possibilidade na medida em que elas se relacionem com a verdade (e a falsidade) das proposições: modalidade aletética ou alética.

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Os modalizadores, elementos lingüísticos que materializam a modalização, são agrupados por Castilho e Castilho (1993, p. 222) em três tipos de modalização, revelando diferentes posições do falante em face da proposição ou do conteúdo da proposição ou enunciado: Modalização Epistêmica, Deôntica e Afetiva. A esse último tipo de modalização preferimos denominá-la, neste trabalho, de modalização avaliativa, em decorrência do corpus analisado, como explicitaremos mais a seguir. A Modalização Epistêmica ocorre quando o locutor expressa uma avaliação sobre o valor de verdade da proposição. Essa se divide em asseverativa, em que o falante considera verdadeiro o conteúdo da proposição, quase-asseverativa, em que o falante considera o conteúdo da proposição quase certo ou como uma hipótese a ser confirmada e por isso não se responsabiliza pelo valor de verdade da proposição e delimitadora, que estabelece os limites dentro dos quais se deve considerar o conteúdo da proposição. Os enunciados que seguem exemplificam a modalização epistêmica. O segundo tipo é denominado de Modalização Deôntica. Seus modalizadores indicam que o falante considera o conteúdo da proposição como algo que deve ou precisa ocorrer obrigatoriamente, de acordo com Castilho e Castilho (1993, p. 223). O terceiro tipo é denominado por esses autores de modalização afetiva, pois segundo eles se constitui naquela em que o falante verbaliza suas reações emotivas em face do conteúdo da proposição, excetuando-se qualquer consideração de caráter epistêmico ou deôntico. Castilho e Castilho (1993, p. 223) afirmam que essa modalização constitui a função emotiva da linguagem e se subdivide em dois tipos: subjetiva, que expressa uma predicação dupla, a do falante em face da proposição e a da própria proposição, e intersubjetiva, que expressa uma predicação simples, assumida pelo falante em face de seu interlocutor, a propósito da proposição. No entanto, preferimos denominar esse terceiro tipo como modalização avaliativa, porque mais do que revelar um sentimento ou emoção do locutor em função da proposição ou enunciado, esse tipo de modalização indica uma avaliação da proposição por parte do falante, emitindo um juízo de valor e indicando, ao mesmo tempo, como o falante quer que essa proposição seja lida. A modalização avaliativa excetua qualquer avaliação de caráter epistêmico ou deôntico. Dessa forma, temos o seguinte quadro, com cada um dos tipos de modalização:

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Tabela 1: Tipos de modalização Modalização

Imprime no enunciado

Epistêmica

Considerações sobre o valor de verdade do seu conteúdo proposicional.

Deôntica

O conteúdo proposicional do enunciado deve ou precisa ocorrer.

Avaliativa

Uma avaliação ou juízo de valor a respeito do seu conteúdo proposicional, excetuando-se qualquer avaliação de natureza epistêmica ou deôntica.

2 A POLIFONIA DE LOCUTORES COMO RECURSO MODALIZADOR O conceito de polifonia nos estudos de linguagem foi introduzido por Bakhtin, em problemas da Poética de Dostoiévski, quando o estudioso postulou a existência de dois tipos de literaturas: a dogmática, de tipo monológica, e a carnavalesca, popular ou polifônica. Na última ele inclui a obra de Dostoiévski. Na literatura polifônica, diz o autor, a personagem apresenta-se a si mesmo e é agente do seu próprio discurso, estabelecendo um diálogo constante com o autor da obra (BAKHTIN, 2002, p. 64). Ducrot (1988, p. 15) traz o conceito de polifonia para a Lingüística, a fim de questionar a unicidade do sujeito falante, pretendendo provar que o enunciado - manifestação particular ou ocorrência hic et nunc de uma frase – pode ser perpassado por mais de uma voz. Em outras palavras, o que Ducrot afirma é que o autor do enunciado não se expressa nunca diretamente, mas coloca em cena diferentes personagens lingüísticos: enunciadores (pontos de vistas) ou até outros locutores. E ainda acrescenta que a própria língua dispõe de recursos lingüísticos e fenômenos discursivos que permitem a construção de discursos polifônicos, tais como a pressuposição, a paráfrase, a negação, entre outros. O teórico distingue, portanto, três sujeitos da enunciação: O locutor (L), que é aquele que se apresenta como responsável pelo discurso e a quem se referem as marcas de 1ª pessoa do discurso; o sujeito empírico (SE), que é o autor efetivo, ou seja, o produtor do enunciado; e os enunciadores (E), que são pontos de vista que o locutor apresenta em seu discurso.(DUCROT, 1988, p. 16) Por conseguinte, Ducrot afirma que é possível identificar dois tipos de polifonias na língua: a polifonia de enunciadores e a polifonia de locutores. A polifonia de enunciadores ocorre quando, no mesmo enunciado, é possível identificar pontos de vista diferentes, colocados em cena pelo locutor responsável pelo discurso: “De uma maneira análoga, o locutor, responsável pelo enunciado, dá existência, através deste, a enunciadores de quem ele organiza os pontos de vista e as atitudes.” (DUCROT, 1987, p. 193). Ao colocar em cena esses enunciadores, o locutor assume diferentes

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posições com relação a esses enunciadores, ora aprovando-os, ora assimilandose a eles, ora se opondo a eles. E, como exemplo de polifonia de enunciadores, Ducrot cita a pressuposição, o humor e a ironia, a negação, os enunciados formulados com masPA, entre outros. A polifonia de locutores, por sua vez, é encontrada no discurso relatado, em que existem, pelo menos, dois locutores distintos. Nos enunciados com esse tipo de discurso, há uma pluralidade de responsáveis, “dados como distintos e irredutíveis” (DUCROT, 1987, p. 182). Ducrot afirma que o discurso relatado “procura reproduzir na sua materialidade as palavras produzidas pela pessoa de quem se quer dar a conhecer o discurso” (1987, p. 186), logo relatar um discurso é dizer que palavras foram utilizadas pelo autor desse discurso. A diferença entre o discurso relatado direto e o discurso indireto, de acordo com Ducrot, é que o primeiro daria a conhecer a forma, ou seja, dizer que palavras foram utilizadas pelo autor do discurso relatado, enquanto o segundo, o conteúdo. No entanto, o estilo direto pode visar somente o conteúdo, como assinala Ducrot (1987, p.187): “O estilo direto pode também visar só o conteúdo, mas para fazer saber qual é o conteúdo, escolhe dar a conhecer uma fala (ou seja, uma seqüência de palavras, imputada a um locutor).” O estilo direto, acrescenta o autor, implica fazer falar um outro e, desta maneira, atribuir-lhe a responsabilidade das falas. Para Ducrot, “isto não implica que sua verdade tenha uma correspondência literal, termo a termo” (DUCROT, 1987, p. 187). Por esse motivo, a diferença entre o estilo indireto e direto ultrapassa as barreiras da forma e do conteúdo. Nas nossas investigações a respeito do gênero notícia – parte das quais estamos publicando neste artigo –, temos verificado que, em cada um dos estilos, o locutor assume posições diferentes com relação ao relato: no direto, o seu comprometimento com o dito é qualitativamente menor. O exemplo abaixo, retirado do corpus da pesquisa em questão, mostra como ocorre o comprometimento com o dito: Exemplo 1 Na verdade, o tiroteio partiu mais de Serra, colocando Ciro na defensiva, a ponto de ter deixado sem resposta duas acusações de Serra de que mentira. Uma foi a de que não é fundador do PSDB, ao contrário do que diz sempre, e a outra a de que pagou antecipadamente a dívida do Ceará. (Folha de São Paulo, 05.08.2003)

No trecho acima, retirado da notícia sobre a repercussão do primeiro debate entre os presidenciáveis realizado na TV, o locutor responsável pela notícia L1 apresenta o ponto de vista segundo o qual José Serra travou um duelo verbal contra Ciro Gomes, principalmente na posição de acusador. Em seguida, apresenta o discurso de L2, José Serra, afirmando que Ciro não é fundador do PSDB e de que Ciro não teria pago antecipadamente a dívida do PSDB. Esse discurso

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aparece na forma indireta e introduzido por um verbo dicendi não-modalizador, “dizer”. Logo, a postura de L1 é de assimilação do discurso de L2. Isso se confirma por ter sido esse o discurso utilizado por L1 para justificar o ponto de vista apresentado anteriormente na notícia: Serra acusou Ciro de mentiroso. O exemplo a seguir, por outro lado, mostra como, através da polifonia, ocorre um distanciamento, ou não-comprometimento: Exemplo 2 O candidato a presidente José Serra (PSDB) convidou ontem a primeira-dama, Ruth Cardoso, para ocupar um ministério da área social, caso vença as eleições. “Ela vai me dar um puxão de orelha, mas queria expressar meu desejo de ter a Ruth no Ministério”, disse o tucano, ontem à noite, durante um comício para mulheres no Esporte Clube Pinheiros, em São Paulo. “Já imaginou Ruth e Rita (Camata,do PMDB, sua vice) no mesmo governo? Essa dupla é mais forte que Ronaldinho e Rivaldo.” (O Estado de São Paulo, 13.08.2003)

Essa notícia apresenta o ponto de vista segundo o qual o convite de José Serra (L2) para que a primeira-dama Ruth Cardoso faça parte do seu governo é uma estratégia de aproximação da imagem do candidato à figura de FHC. Daí justificar-se o afastamento de L1 do discurso de L2, José Serra. Ao trazer o discurso do presidenciável, na forma direta, L1 isenta-se do dito, atribuindo total responsabilidade ao segundo locutor. Para isso também contribui o verbo dicendi “dizer”, do primeiro grupo: com esse verbo L1 não modaliza o discurso de L2, apenas limita-se a apresentá-lo. Os exemplos acima demonstram como o discurso relatado pode revelarse uma estratégia de comprometimento ou distanciamento com o dito, logo, uma estratégia de modalização discursiva. No primeiro caso, de engajamento ou comprometimento com o dito, temos uma modalização do tipo epistêmica asseverativa, uma vez que a postura é de responsabilidade para com o dito e o locutor responsável o incorpora. No segundo caso, por sua vez, a modalização é do tipo epistêmica quase-asseverativa, uma vez que o falante se furta de qualquer responsabilidade sobre o caráter de verdade ou falsidade do dito, nos termos em que coloca Castilho e Castilho (1993, p. 222). Além do discurso relatado, a polifonia de locutores pode ocorrer, na notícia, através do arrazoado por autoridade e das aspas de diferenciação. Em ambos os casos, também é possível verificar posicionamentos do locutor responsável pela notícia com relação ao dito de outros locutores. Logo, é possível afirmar que a polifonia de locutores, no referido gênero, é uma estratégia de modalização, que, de acordo com os dados levantados na pesquisa, pode ser resumida no quadro a seguir:

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Tabela 2: Polifonia de locutores como modalização discursiva Estratégias com as quais se apresenta a polifonia de locutores discurso direto e o discurso direto ratificando o indireto com ou sem arrazoado por autoridade; aspas de diferenciação discurso indireto, acompanhado ou não com o arrazoado por autoridade

Tipo de modalização modalização epistêmica quase-asseverativa modalização epistêmica asseverativa

3 VERBOS DICENDI MODALIZADORES Um dos elementos lingüísticos que podem assumir, discursivamente, a função de modalizadores são os verbos. De maneira especial, os verbos dicendi exercem essa função, em concomitância com a polifonia de locutores. Travaglia (2003, p. 164) afirma que os verbos dicendi podem exercer três funções em um texto. A primeira é a de introduzir falas, “permitindo que se descrevam entonações, tons, altura de voz, etc. da fala, que não podem ser reproduzidos na língua escrita”. Como exemplos desse primeiro tipo de verbos ele cita sussurrar, sibilar, gritar, pedir num gemido, chamar desesperado (feliz, ansioso, calmamente etc.). O segundo tipo de verbos dicendi, de acordo com Travaglia, é aquele que serve para “dizer o tipo de fala que se produz”, a exemplo de perguntar, responder, redargüir etc. Por fim, o autor diz que há um terceiro tipo cuja função é “instituir perspectivas em que se deve tomar a fala” (idem). São exemplos desses verbos segredar, instilar, acalmar etc. Ora, uma vez que estabelecem perspectivas, esses verbos do terceiro tipo imprimem um ponto de vista do locutor perante o dito, ou mais especificamente, permitem que um locutor, ao trazer o discurso de um outro locutor, imprima como aquele discurso deva ser lido. Em outras palavras, o verbo adquire duas funções: a primeira é apresentar o discurso de um segundo locutor (L2), a segunda é indicar como o locutor responsável pelo discurso (L1) quer que o discurso desse segundo locutor (L2) seja lido. O exemplo abaixo, retirado do corpus da nossa investigação, ilustra bem esse caso. Exemplo 3 Ciro, por sua vez, acusou Serra de não ter apoiado o Plano Real. O senador retrucou que defendera tanto o Real que se tornara o candidato do principal responsável pelo plano, o presidente Fernando Henrique Cardoso. (Folha de São Paulo, 05.08.2003)

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No exemplo acima, o verbo “acusar”, além de introduzir o discurso de um segundo locutor (L2=Ciro Gomes), deixa claro que o locutor responsável pelo discurso (L1=jornalista) quer que o discurso de L2 seja lido como uma acusação. Logo, L1 direciona o olhar do leitor para o discurso de L2, ou seja, modaliza e direciona o discurso de L2. Aqui ocorre, portanto, um fenômeno discursivo bastante peculiar. Temos um discurso polifônico2 em que L1 coloca em cena o discurso de um L2, sendo uma polifonia de locutores, e, ao trazer o discurso do segundo locutor, L1 modaliza esse discurso, indicando como deve ser lido. Neves (2000) inclui os verbos dicendi em um grupo maior de verbos, por ela denominado verbos de elocução. Para a autora, esses verbos são “introdutores de discurso (discurso direto ou discurso indireto)” (p.47). Ela sugere que, no discurso direto, a responsabilidade do locutor é muito menor com relação ao discurso dos outros locutores que esse traz para o texto, no entanto, ela limita essa menor responsabilidade ao campo da correferencialidade e da dêixis. Acrescenta Neves que, entre os verbos dicendi, há alguns que “apresentam lexicalizado o modo que caracteriza esse dizer” (p. 48). Com essa afirmação de que os verbos desse grupo apresentam lexicalizado o modo que caracteriza o dizer, a autora sugere que esses verbos são elementos modalizadores, apesar de não falar categoricamente em modalização discursiva através dos verbos dicendi. Como exemplo ela cita verbos como queixar-se, comentar, confidenciar, observar, protestar etc., que podem também ser parafraseados por dizer uma queixa, dizer um comentário, dizer uma confidência, dizer uma observação, dizer um protesto etc. Cervoni (1989) considera que alguns verbos enunciativos, ou seja, verbos dicendi podem ser portadores de modalidade. Para o autor, determinados verbos como “afirmar, sustentar, confirmar, garantir, certificar, declarar, contestar, negar,” são portadores de uma síntese lexêmica do tipo enunciativo + modalidade. Enunciar Eu sustento que João é amável é “dizer mais” do que enunciar Eu digo que João é amável (ou Eu respondo que, Eu explico que...): sustentar é o equivalente de dizer + modalidade (noção de certeza) (CERVONI, 1989, p. 68).

Convém assinalar que o exemplo trazido acima, pelo autor, ocorre em primeira pessoa, revelando uma preocupação do autor de tratar a modalidade dentro do discurso do próprio locutor responsável pelo discurso, ou como um ato ilocutório, como se vê mais adiante. Não contempla, portanto, os casos do verbo dicendi nos textos em terceira pessoa, a exemplo do que ocorre na notícia jornalística. 2

A polifonia é aqui tratada a partir de Ducrot (1988, p. 16) para quem o autor do enunciado não se expressa nunca diretamente, mas põe em cena, no mesmo enunciado, um certo número de personagens lingüísticos.

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O autor ainda acrescenta que “dizer que, responder que, explicar que, não são de modo algum considerados como verbos modais; eles se limitam a explicitar as circunstâncias da interlocução” (ibidem, p. 69). Ainda com relação a essas formas, Cervoni acrescenta que embora elas se pareçam com as outras formas de modalidade, no sentido de que têm uma exterioridade com relação ao enunciado que lembra a exterioridade das modalidades proposicionais em relação à proposição (sic), essas estruturas se constituem em atos de linguagem. Resta a pergunta: se elas não são modalidades, o que são? Basta aceitar a idéia de que todo dizer é um fazer (cf. infra, cap. IV) para poder atribuir-lhes um lugar adequado na análise lingüística: elas fazem parte do ilocutório, são tipos de atos de linguagem (CERVONI, 1989, p. 75).

Com relação ao verbo “dizer”, a expressão “Eu digo que...”, segundo Cervoni é pouco corrente, uma vez que só é empregada quando se deseja insistir no fato de que se está enunciando alguma coisa (ibidem, p. 74). As classificações de Travaglia (2003) e Neves (2000) são bastante pertinentes e apresentam algumas características bastante relevantes dos verbos dicendi e/ou verbos de elocução. No entanto, as classificações propostas pelos dois autores não nos são satisfatórias, uma vez que não descrevem com precisão o funcionamento dos verbos dicendi modalizadores, como assinalamos anteriormente. Cervoni, embora considere a modalidade existente em alguns verbos enunciativos, também não nos é satisfatório, uma vez que considera a modalidade apenas em enunciados do tipo “Eu + verbo dicendi + que...”. Essa proposta do autor não é aplicável, portanto, aos fenômenos lingüísticos apresentados no corpus que analisamos. Por essa razão, apresentamos um quadro mais sintético dos verbos dicendi, que se aplique não somente a enunciações em primeira pessoa, mas também em terceira pessoa, a fim de dar conta da análise dos verbos dicendi na notícia jornalística. Assim, convém acrescentar que o referido quadro não se aplica necessariamente a outros contextos ou gêneros do discurso. Tabela 3: Classificação dos verbos dicendi Verbos dicendi 1. não-modalizadores, ou de primeiro grupo

dizer, falar, perguntar, responder, concluir etc.

2. modalizadores ou de segundo grupo

acusar, protestar, afirmar, declarar, etc.

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Os verbos dicendi de primeiro grupo, não-modalizadores, são aqueles que, por natureza, apresentam o discurso de um L2 (segundo locutor) sem deixar marcas ou avaliação do locutor que o apresenta (L1). Com esse tipo de verbo, L1 tende a manter-se afastado do discurso de L2. O segundo grupo de verbos dicendi, que aqui denominamos de modalizadores, é constituído por aqueles que além de apresentarem o discurso de um locutor (L2) assinalam uma avaliação, modalização ou direção desse discurso pelo locutor que o apresenta (L1). No gênero notícia, ocorrem os dois tipos de verbos acima assinalados. Nesse gênero, o locutor responsável pelo discurso, doravante L1, introduz o relato de outros locutores em seu discurso por diferentes formas e/ou estruturas lingüístico-discursivas, a saber: a) verbos dicendi não-modalizadores (falar, dizer, explicar etc.); b) verbos dicendi modalizadores (acusar, elogiar etc.); c) nominalizações de verbos dicendi modalizadores (crítica, promessa etc.); d) frases ou expressões modalizadoras (não se deu por vencido, não deixou por menos etc.); e) preposições (para, segundo etc.). Os verbos dicendi não-modalizadores ocorrem em casos como o seguinte, em que o verbo é utilizado apenas para apresentar o relato: Exemplo 4 Na visita ao mercado de Belo Horizonte, Ciro ficou o tempo todo abraçado à mulher. Dizia aos repórteres: “Somos um casal bastante feliz, dá para notar, não é? Costumamos brincar muito. Esta é uma mulher de extremo valor que Deus me deu de presente” (Folha de São Paulo, 01.09.2003).

No exemplo acima, o verbo “dizer” apenas introduz um relato sem emitir nenhuma avaliação ou juízo de valor sobre o discurso relatado. L1, ao trazer o discurso de Ciro Gomes, doravante L2, não modaliza o discurso através do verbo discendi, vale-se, no entanto, do discurso direto para assinalar o distanciamento. Os verbos dicendi modalizadores apresentados nas notícias analisadas, por sua vez, podem ser tanto epistêmicos, como avaliativos. Como epistêmicos, eles veiculam um grau de certeza sobre o enunciado de L2, por parte de L1, como se pode perceber nos dois exemplos abaixo. Exemplo 5 Antes de chegar ao clube, Ruth afirmou que fará tudo o que estiver ao seu alcance para garantir a eleição de Serra (Folha de São Paulo, 13.08.2003).

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No trecho acima, o locutor responsável pela notícia, doravante L1, introduz em seu discurso um segundo locutor (L2), a então primeira dama, Ruth Cardoso. Esse segundo locutor traz o ponto de vista segundo o qual fará tudo que estiver ao seu alcance para garantir a eleição do presidenciável José Serra, do PSDB. Esse relato de L2 é apresentado no estilo indireto, o que significa um comprometimento de L1 com o relato. A presença do verbo dicendi “afirmar”, modalizador epistêmico asseverativo, confirma esse comprometimento, uma vez que os asseverativos, como afirma Castilho e Castilho (1993, p. 223), implicam uma alta adesão do locutor com o conteúdo do dito. Exemplo 6 Passada a primeira semana do horário eleitoral gratuito, duas pesquisas apontam queda de Ciro Gomes (PPS) e crescimento de José Serra (PSDB) na disputa pela Presidência da República. (Folha de São Paulo, 28.08.2003)

No exemplo acima, o verbo dicendi “apontar” funciona como um modalizador epistêmico, do tipo quase-asseverativo, pois através dele L1 apresenta o discurso de L2 no campo da sugestão, ou seja, como uma hipótese, logo expressando uma avaliação sobre o valor de verdade do discurso do segundo locutor. Pode-se perceber, então, que não há o mesmo comprometimento de L1 com o discurso de L2, do exemplo anterior. Logo, os verbos dicendi modalizadores epistêmicos quase-asseverativos implicam um distanciamento polifônico (L1 distancia-se do discurso de L2). Já no exemplo que se segue, o verbo dicendi imprime um juízo de valor de L1 com relação ao discurso de L2. Exemplo 7 ‘Eu e Patrícia somos um casal bastante feliz’, reage candidato (Estado de São Paulo, 01.09.2003)

O exemplo acima é, portanto, um caso de modalização avaliativa, uma vez que, com o verbo dicendi reagir, L1 emite um juízo de valor a respeito do enunciado do outro locutor, indicando como esse deve ser lido. É importante ressaltar que essa avaliação sobre o valor de verdade ou juízo de valor expresso pelos verbos dicendi modalizadores é o modo como L1 decide veicular o ato de fala de L2, L3 etc. Convém acrescentar que estamos considerando como verbos dicendi quaisquer verbos que sejam utilizados por um locutor (L1) para apresentar o discurso de um outro locutor (L2), independente desses mesmos verbos serem utilizados, em outros discursos ou situações, com outros objetivos. Isso significa dizer, por outro lado, que há verbos tipicamente dicendi, como os verbos dizer, perguntar etc., e há verbos que em determinados contextos podem funcionar como dicendi ou não. Esses últimos são, portanto, verbos potencialmente dicendi.

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No entanto, há de se assinalar que além dos verbos dicendi, propriamente ditos, o locutor responsável pelo discurso (L1) pode se valer de outros recursos lingüísticos para introduzir outros locutores no seu discurso. Dentre esses recursos, encontram-se as nominalizações dos verbos dicendi, como no caso abaixo retirado do próprio corpus. Exemplo 8 Com o encontro, FHC deseja uma espécie de pacto de transição, sob o argumento de que interessa a todos evitar uma crise de proporções argentinas. No país vizinho, a economia derreteu e gerou crise institucional e social. (Folha de São Paulo, 14.08.2003)

No exemplo acima, L1, o locutor responsável pelo discurso, introduz o relato de um segundo locutor, o presidente Fernando Henrique Cardoso. Esse segundo locutor é introduzido não por um verbo, mas pelo substantivo “argumento”, que é uma nominalização do verbo dicendi argumentar, do segundo grupo. Logo, o nome “argumento” também modaliza o discurso de L2. A ocorrência de verbos dicendi modalizadores revela a ocorrência de um importante tipo de modalização discursiva presente no discurso da notícia: a modalização avaliativa. Com essa estratégia, o locutor responsável pela notícia (L1), ao trazer o discurso de outros locutores para o interior do seu discurso, indica como esse deve ser lido. Ocorre, por conseguinte, uma avaliação do discurso do outro locutor. Os verbos dicendi também podem funcionar como epistêmicos asseverativos ou quase-asseverativos. Como asseverativos eles asseguram o caráter de verdade do ato de fala exercido por um segundo locutor, no estilo direto, sem, no entanto, modalizar o conteúdo do dito desse mesmo locutor. Além disso, podem confirmar a atitude de assimilação do locutor responsável pelo discurso com relação aos outros locutores introduzidos em seu discurso – isso ocorre no estilo indireto. Já os verbos dicendi epistêmicos quase-asseverativos adquirem uma outra função. Eles são utilizados, no corpus, com o estilo indireto, para atenuar o caráter asseverativo desse estilo, isentando L1 de responsabilidade do dito dos outros locutores introduzidos em seu discurso. Convém ainda assinalar que o fenômeno da modalização, através dos verbos dicendi, ao modalizarem o discurso de um segundo locutor, age sobre a proposição como um todo. Nesse aspecto, enquadram-se perfeitamente no núcleo duro de que trata Cervoni (1989).

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CONSIDERAÇÕES FINAIS A principal conclusão que se pode tirar da investigação realizada, a respeito da notícia, é que se trata de um gênero do discurso cuja principal característica semântico-discursiva é a presença da polifonia de locutores, atuando como uma estratégia modalizadora, algumas vezes acentuada, outras, atenuada pelos verbos dicendi modalizadores. Sobre a polifonia de locutores, a principal e mais relevante consideração é a de que, nesse tipo de polifonia, o locutor responsável pelo discurso (L1) assume diferentes posições com relação aos outros locutores (L2, L3 etc.) que são introduzidos em seu discurso. Fenômeno similar ocorre na polifonia de enunciadores, quando L1 assume diferentes posturas com relação aos enunciadores introduzidos em seu discurso, conforme assinala Ducrot e colaboradores em seus mais diversos trabalhos. As posturas assumidas por L1 na polifonia de locutores são de engajamento (assimilação) e não-engajamento (não-assimilação). Com relação aos verbos dicendi, a conclusão mais relevante é que eles não são apenas meros introdutores de discurso ou relato. Além dessa função, eles são portadores de sentido e podem indicar o modo como esse discurso ou relato deve ser lido. Funcionam, nesse caso, como modalizadores epistêmicos ou avaliativos. Além disso, pode-se concluir que nem todos os verbos se propõem a essa função modalizadora. Há um grupo que serve exclusivamente para introduzir o discurso e assinalar as circunstâncias em que o relato foi produzido, indicando apenas os atos de fala: são os verbos dicendi não-modalizadores. No que diz respeito à ocorrência das estratégias de engajamento e nãoengajamento presentes no interior do gênero notícia, percebeu-se uma maior ocorrência das segundas em relação às primeiras (três de engajamento e sete de não-engajamento). Esse fato explica a necessidade da criação e da manutenção da imagem de neutralidade e objetividade no texto jornalístico, em especial no gênero notícia, para atender o status quo desse ramo de atividade humana, nos termos em que apresentam Medina (1988), entre outros estudiosos da área de Comunicação Social. Convém ainda ressaltar que as conclusões acima assinaladas convergem para uma conclusão maior, segundo a qual o fenômeno da argumentação, inerente à linguagem humana, mobiliza diferentes recursos semântico-discursivos e que esses recursos variam de um gênero do discurso para outro, dadas as funções de cada um e as esferas nas quais estão inseridos. Por essa razão, a argumentação não pode continuar a ser tratada como uma característica apenas de alguns gêneros do discurso. Da mesma maneira, não se justifica a divisão de gêneros informativos e gêneros opinativos, no universo jornalístico.

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REFERÊNCIAS BAKHTIN, Mikhail (2002 [1895-1975]). Problemas da Poética de Dostoiévski. Tradução por Paulo Bezerra. Tradução de Problémi poétiki Dostoiévskovo. 3 ed. Rio de Janeiro: Ed. Forense-Universitária. CASTILHO, A. T.; CASTILHO, C. M. M. de (1993). Advérbios Modalizadores. IN: ILARI, Rodolfo (org.) Gramática do Português Falado. Vol. II: Níveis de Análise Lingüística. 2 ed. Campinas: Editora da UNICAMP. CERVONI, Jean (1989). A enunciação. São Paulo: Ática. DUCROT, Oswald (1988). Polifonia y Argumentación: Conferencias del Seminario Teoría de la Argumentación y Análisis del Discurso. Cali: Universidad del Valle. DUCROT, Oswald (1987). O dizer e o dito. Revisão técnica da tradução Eduardo Guimarães. Campinas: Pontes. KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça (2002). Argumentação e Linguagem. 7 ed. São Paulo: Cortez. LYONS, John (1977). Semantics. Cambridge: Cambrigde University Press. MEDINA, Cremilda (1988). Notícia, um produto à venda: jornalismo na sociedade urbana e industrial. 2 ed. São Paulo: Summus. NASCIMENTO, Erivaldo Pereira do (2005). Jogando com as vozes do outro: A polifonia – recurso modalizador – na notícia Jornalística (tese de doutorado). João Pessoa: Universidade Federal da Paraíba. NEVES, Maria Helena de Moura (2000). Gramática de Usos do Português. São Paulo: UNESP. TRAVAGLIA, Luiz Carlos (2003). Gramática Ensino Plural. São Paulo: Cortez.

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Emilia Maria Peixoto Farias *

QUANTIDADE É ELEVAÇÃO VERTICAL: METÁFORA OU METONÍMIA? (Quantity is ver tical elevation: metaphor or metonymy) ABSTRACT The present work aims to discuss how metaphor and metonymy interact at the conceptual level in the emergence of the figurative language licensed by the primary metaphor QUANTITY IS VERTICAL ELEVATION. The analysis of the Portuguese and English metaphoric expressions will be based on the following works: Radden (2002), Grady (1997) e Lakoff (1987), Lakoff & Johnson (1980, 1999). Keywords: cognitive linguistics, primary metaphor, metonymy. RESUMO O presente trabalho tem como objetivo discutir como processos metafóricos e metonímicos interagem na geração da figuratividade da metáfora primária QUANTIDADE É ELEVAÇÃO VERTICAL. Para atingirmos nossos objetivos, utilizaremos como base para a análise das expressões metafóricas em português e em inglês, os princípios e a metodologia utilizados por Radden (2002), Grady (1997) e Lakoff (1987), Lakoff & Johnson (1980, 1999). Palavras-chave: lingüística cognitiva, metáfora primária,metonímia.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS A emergência de metáforas e metonímias conceptuais tem sido objeto de investigação dentro da rica e diversificada literatura a respeito da metáfora conceptual. Trabalhos relevantes como: Metaphor and metonymy in comparison and contrast, Dirven & Pörings (2003); How metonymic are metaphors?, Günter Radden (2003); Metaphor and metonymy at the crossroads: a cognitive perspective, Barcelona (2000); The interaction of metaphor and metonymy in composite expressions, Geeraerts (2003), onde é introduzido o termo metaphtonymy (metaftonímia); Clarifying and applying * UFC.

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the notions of metaphor and metonymy within cognitive linguistics: an update, Barcelona (2003); Metaphor in cognitive linguistics, Gibbs & Steen (1999) e Patterns of conceptual interaction, Ibánêz & Velasco (2002) mostram não somente como esses dois processos cognitivos interagem na emergência da figuratividade de conceitos mas, também, a tênue linha que separa metáfora de metonímia.

1. METÁFORA CONCEPTUAL: SUAS CARACTERÍSTICAS A tese central da metáfora conceptual defendida por Lakoff (1987), Lakoff & Johnson (1980, 1999) é da evidência da manifestação sistemática, ubíqüa e recorrente do pensamento metafórico na linguagem própria do dia-a-dia. Como afirma Gibbs (1994), expressões como não posso derrubar seus argumentos, ele chegou ao fim de sua vida, a inflação subiu e passe o sal, não podem ser interpretadas como manifestações “da mente poética” do homem. A metáfora conceptual deve ser entendida como uma matriz, um esquema ou padrão conceptual, sob a seguinte forma proposicional X É Y, em que X é elemento constitutivo do domínio-alvo e Y é elemento constitutivo do domínio-fonte. Outro pilar da teoria tem como base o princípio de que as metáforas estruturam em grande parte o pensamento e o raciocínio. Essas atividades cognitivas possibilitam a organização do conhecimento em domínios mais ou menos abstratos, onde os conceitos são acomodados. Os conceitos emergem, pois, do mapeamento ou correlações que se estabelecem entre domínios originando, assim, uma matriz, um padrão, melhor dizendo, um substrato conceptual que, ao seu turno, é gerado por bases físicas e pela experiência. O realismo corpóreo, embodied realism, adotado pelos autores considera que a nossa compreensão do mundo é modelada e limitada, em grande parte, por nossas faculdades perceptuais, pela conformidade anatômica de que somos dotados, por padrões de atividades neurológicas de nossos cérebros, bem como por experiências e ações situadas e definidas no mundo. O pensamento é também para os autores em grande parte inconsciente, isso significa que não temos acesso direto aos mecanismos envolvidos na produção e na construção do sentido. A consciência ultrapassa o universo fenomenológico da percepção e da razão, também corporificada, embodied, e perde sua natureza puramente metafísica, como acreditada ser anteriormente. Na perspectiva da metáfora conceptual, a identificação e descrição dos domínios fonte e alvo, envolvidos no processamento do pensamento metafórico, constituem uma etapa fundamental. Cada domínio possui princípios que merecem observação, pois possuem características distintas, além de contribuírem de forma qualitativamente diferente para o processo. Segundo Grady (1997), o domínio-fonte apresenta as seguintes

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características: tem conteúdo de imagem que possui nível esquemático de especificidade; abriga experiências simples, no sentido fenomenológico. Vale ressaltar que essas experiências estão ligadas a objetos ou ações dirigidas à realização de metas completas (gestalt experencial) de forma previsível; deve estar correlacionado de maneira estável e recorrente com outro domínio da experiência; deve referir-se a elementos universais da experiência do homem “que não seja aprendida” e abriga conceitos relacionais entre “propriedades de” ou “relações entre” objetos ou mesmo ações que os envolvam. Ainda em linha com o autor, o domínio-alvo, por sua vez, não possui conteúdo de imagem; não abriga percepções e sensações diretas do mundo; refere-se a unidades básicas “respostas cognitivas” de nossas experiências, cujo mapeamento com o domínio-alvo corresponde ao nível cognitivo mais baixo de acesso à consciência. Para Lakoff & Johnson (1980) o mapeamento entre os domínios fonte e alvo é estruturado de forma sistemática, resulta de correspondências ontológicas e epistêmicas entre as entidades de cada domínio incluindo suas respectivas ações e objetivos específicos. A linguagem seria, finalmente, o reflexo desses mapeamentos. Vejamos, então, como emerge o sentido a partir da proposta dos autores aqui discutidos e como podemos identificar, através de expressões lingüísticas, parte do processamento do pensamento metafórico presente na linguagem cotidiana. Tomemos como exemplo a metáfora DISCUSSÃO É GUERRA/ARGUMENT IS WAR. Certamente já nos deparamos com expressões como [Zanotto e Maluf (Lakoff & Johnson, 1980): p. 46]: 1. Seus argumentos são indefensáveis./Your claims are indefensible. 2. Ele atacou todos os pontos fracos da minha argumentação./He attacked every weak point in my argumento. 3. Suas críticas foram direto ao alvo./His criticisms were right on target. 4. Destruí sua argumentação./I demolished his arguments. 5. Jamais ganhei uma discussão com ele./I´ve never won an argument with him. 6. Você não concorda? Ok, atire! Ok, ataque!/You disagree? Okay, shoot! 7. Se você usar essa estratégia, ele vai esmagá-lo./If you use that strategy, he´ll wipe you out. Ele derrubou todos os meus argumentos./He shot down all my arguments. Através das expressões metafóricas acima, percebemos que todo o vocabulário licenciado para falar sobre uma DISCUSSÃO (domínio-alvo) originase em GUERRA (domínio-fonte). Senão, vejamos: numa discussão, usamos estratégias para defendermos nossos pontos de vista; atacamos os argumentos

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do nosso interlocutor que é, naquele momento, nosso adversário; os argumentos são o alvo dos nossos ataques; perdemos ou ganhamos com nossas armas, que são os argumentos, enfim, as correlações estabelecidas entre os dois domínios e a recorrência dessas correlações resultam na emergência do conceito metafórico. O mais importante é que, sequer, nos damos conta disso. Isto significa dizer que se trata de uma operação cognitiva legítima inerente à nossa forma de pensar e raciocinar a respeito das nossas experiências. Para Grady (op.cit: p.155) as faculdades que reconhecem similaridade, relação, inclusive de parte-todo são o fundamento de nossa arquitetura cognitiva.

2 METÁFORA PRIMÁRIA: SUAS CARACTERÍSTICAS Grady (1997: p. 20-25), ao rever a teoria da metáfora conceptual proposta por Lakoff & Johnson (1980), propõe uma nova abordagem para a metáfora. Sua proposta está ligada a aspectos não esclarecidos pela teoria, que incluem: a falta de base experencial clara entre domínios-fonte e alvo resulta na imprecisão de quais domínios servem para ser alvo, enquanto outros servem para fonte; a falta de consistência entre mapeamentos relacionados leva a pergunta “por que alguns elementos do domínio são mapeados, enquanto outros não o são?”; a não identificação dos fatores determinantes para a direcionalidade entre domínios; aos propósitos da metáfora e, finalmente, o que motiva a metáfora e como ela acontece, a partir da interação entre metáforas (GRADY, op.cit.: p. 10-14). Esses questionamentos levaram Grady (op. cit.) a propor um modelo de análise metafórica que visa estabelecer a relação entre experiências acumuladas pelo homem e a geração de metáforas primárias através da identificação de etapas intermediárias que incluem: basic events/eventos básicos, cognitive abilities and structures/habilidades e estruturas cognitivas, primary scenes and subscenes/ cenas primárias e subcenas, conceptual biding/conflação conceitual, deconflation/ desconflação, primary metaphors/metáforas primárias. Com base nesse modelo, descreveremos a metáfora QUANTIDADE É ELEVAÇÃO VERTICAL por meio da identificação dos mapeamentos das cenas primárias, levando em consideração a natureza dos conceitos-fonte e alvo. Com os resultados obtidos, poderemos verificar como metáfora e metonímia se correlacionam para a geração de metáforas primárias. Os eventos básicos são eventos específicos ou cenas ricas em conteúdo de imagem que ocorrem de forma regular em nossas experiências e estão relacionados a objetivos específicos. As habilidades e estruturas cognitivas são respostas (interpretações) às experiências perceptuais através de operações inatas. As cenas primárias e subcenas são o produto cognitivo resultante da experiência subjetiva dos eventos básicos. As cenas incluem tanto o aspecto

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perceptual quanto a resposta ao estímulo. As subcenas são as dimensões individuais e discretas de cada experiência. A etapa da conflação é a fase da correlação estreita entre nossas experiências fenomenológicas que levam à reprodução dessas associações gerando matrizes cognitivas de representação do mundo. A desconflação é a etapa de distinção entre os conceitos gerados por experiências distintas envolvidos no pensamento metafórico. A metáfora primária resultaria, então, da conflação entre dois conceitos distintos (conceito-fonte e conceito-alvo) emergentes das cenas primárias.

3 METODOLOGIA 3.1. O corpus Para a análise da metáfora, ora em discussão, utilizamos as seguintes expressões metafóricas: 1.

No ano passado, o crescimento das vendas de junho em relação a maio foi de 5%. (OPovo,CE, 26/05/04, p.26) 2. Indústria: mercado de tintas imobiliárias espera crescer 5%. (http:/ empresas.globo.com) (Fev 05, 2006) 3. Desemprego bate recorde. O desemprego atingiu em abril 13,1% da população economicamente ativa (...) O recorde anterior era de 13% (...)(OPovo,CE, 26/05/04, p.23) 4. Combustíveis podem subir até 15%. O relatório bimestral de avaliação de receitas e despesas do governo federal(...) reconhece que os preços dos combustíveis deverão crescer entre 5% e 10% nos próximos meses em razão do aumento do petróleo. (OPovo,CE, 26/05/04, p.23) 5. Dólar: Pela 1ª vez no ano moeda fica abaixo de R$ 2,20. (http:/ empresas.globo.com). (Feb 05, 2006); 6. A confecção Di Pérola prepara-se para ampliar a sua produção de 64 mil peças/mês para 100 mil peças/mês. (OPovo,CE, 26/05/04, p.22) 7. Segundo o governo do Estado, o Ceará pagou em oito anos em torno de 50% do que tinha do total de débito com a União. Com o novo escalonamento pretende pagar o restante em 22 anos e não mais em oito anos (...)(OPovo,CE, 26/05/04, p.21) 8. Eles fazem parte da alta sociedade. 9. Você está adquirindo um produto de alta qualidade. 10. House prices are rising/going up.(English Language and Culture, 1992:1042) 11. The government is determined to bring down inflation to below 5%. The annual rate of inflation was 10%. (Collins Cobuild, 1990:674) 12. We´re hoping for a large sale for our new product. (Collins Cobuild, 1990:1165)

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13. The elevation of boiling T is determined experimentally.(Base de dados British National Corpus) 14. Despite his elevation of Pamela from maid to lady ….(Base de dados British National Corpus) 15. Those who have known him from the earlier period, however, were less than enthusiastic about his elevation. (Base de dados British National

Corpus)

3.2 A análise A metáfora QUANTIDADE É ELEVAÇÃO VERTICAL conhecida também como MAIS É PARA CIMA (MORE IS UP) inclui-se no elenco de metáforas orientacionais em Lakoff &Johnson (1980) e está no rol das metáforas primárias em Grady (1997). A característica principal dessa metáfora está na emergência de seus conceitos com base em processos metafóricos e ou metonímicos. Os conceitos, aqui mencionados, resultam da combinação da experiência de base física, que inclui manipulação de objeto, interações perceptuais, criação de esquemas de imagem e interpretação de input sensorial, aliada à experiência cultural, resultando em instanciações coerentes, sistemáticas e recorrentes, como veremos a seguir. Grady (op.cit: p. 24) explica a emergência dessa metáfora por meio de uma rede esquemática que tem como alicerce a hipótese da semelhança. Essa hipótese destaca a percepção co-ocorrente e recorrente de aspectos comuns ou partilhados entre entidades. A representação esquemática em forma de pirâmide proposta pelo autor inclui a ativação da correlação e co-ocorrência entre três conceitos distintos: PILHA, no topo da pirâmide e QUANTIDADE e ELEVAÇÃO nos extremos da base. A motivação para essa metáfora está alicerçada por esses dois conceitos. Kövecses (2002: p. 70-71) explica que quantidade consiste em uma escala que tem MAIS e MENOS, ao passo que verticalidade inclui PARA CIMA e PARA BAIXO. Essas correlações se fundam na experiência, perceptual, biológica ou cultural. A metáfora primária estaria entre os dois conceitos da base. Todas as expressões apresentadas, de fato, revelam a correlação existente entre aspectos particulares da experiência que temos com “quantidade” e com “elevação vertical”. Com Grady (1997: p. 86), a cena primária emergente revela essas dimensões específicas como, por exemplo, perceber através de estímulo visual a maior ou menor quantidade de líquido em recipientes de formato diferente resultando na avaliação da quantidade. Essas noções de quantidade podem ser expressas por meio do volume que, por sua vez, pode ser medido ou contado para avaliarmos se o número de unidades ou a medida das coisas consideradas aumentou ou diminuiu. O aumento ou diminuição das unidades também pode ser expresso fazendo-se uso de escala

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da verticalidade e/ou da avaliação (axiológica), servindo como subcenas da cena primária maior. Nas subcenas entram detalhes particulares como: posição do nosso corpo, sensação da variação de calor e percepção visual do conteúdo, por exemplo. Esses detalhes ativam o ato físico correlato e recorrente da atividade cognitiva de distinguir aspectos da experiência. Da correlação emergem os conceitos que participam do mapeamento e da predição de expressões lingüísticas utilizadas na produção e interpretação do sentido. Vejamos como as expressões metafóricas revelam os aspectos anteriormente discutidos. Considerando os argumentos de Silva (2003), Radden (2002) e Taylor (1995), percebemos que a figuratividade dessas expressões pode ser distribuída em graus distintos no continuum literal ® figurado, onde se acham distribuídas metonímias e metáforas. As expressões de 1 a 7, em português, e de 10 a 12, em inglês, podem ser incluídas no continuum literal ® figurado e podem ser interpretadas como metonímicas ou metafóricas, pois encontram-se no estágio metonímico ® metafórico. Senão vejamos: no estágio metonímico, a interpretação sustenta-se na representação gráfica do crescimento das vendas, do mercado e dos preços, da queda do valor de moeda, de preços e da inflação, da ampliação da produção, como uma linha ascendente ou descendente traçada na vertical de um gráfico, com base ou na metonímia COISA POR SUA REPRESENTAÇÃO ou na ACIMA POR MAIS. A correlação aqui estabelecida é quanto mais a linha sobe graficamente mais aumenta o ganho ou o gasto de dinheiro. No estágio metafórico, a “altura” do preço, do investimento ou da taxa está correlacionada à “quantidade” de dinheiro, licenciando a metáfora MAIS É PARA CIMA. Segundo Kövecses (2002:148), “ a função principal da metonímia é prover acesso mental, cognitivo a entidade alvo que não está facilmente acessível.” As expressões 8 e 9, em português, e 14 e 15, em inglês, são aquelas cujo grau de metaforicidade é mais alto. Trata-se de um distanciamento grande entre conceito-fonte e conceito-alvo, por manifestar uma avaliação (axiológica), construída culturalmente. O ponto mais elevado “bom” manifesta o juízo de valor a ele atribuído. Temos, então, o licenciamento da metáfora BOM É PARA CIMA. A expressão 11, em inglês, the elevation of boiling T, é inteiramente metonímico, pois a verticalidade é aqui expressa por uma escala usada para dizer do efeito causado pela elevação da temperatura, que faz atingir o ponto de ebulição. A metonímia é, portanto, EFEITO PELA CAUSA. Vejamos como as expressões aqui discutidas podem ser distribuídas consoante processos cognitivos de base metonímica e metafórica:

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METONÍMIAFIGURADA 1 Alta temperatura

Expres. 11 (Eng.)

METÁFORA

2 3 Preços, inflação Alta qualidade, alta sociedade vendas, produção elevação para cima ou para baixo 1 a 7 (Port.) Expres 8 e 9 (Port.) 10 a 12 (Ingl.) 14 e 15 (Ingl.) Adaptado de Radden (2003:409)

CONSIDERAÇÕES FINAIS Com base nos resultados aqui apresentados, parece-nos que a metáfora QUANTIDADE É ELEVAÇÃO VERTICAL tem suas bases na interação metonímia-metáfora. Farias & Marcuschi (2006: p. 125) afirmam que essas expressões revelam também a metáfora MAIS É PARA CIMA e as metonímias EFEITO PELA CAUSA e COISA PELA SUA REPRESENTAÇÃO. Por não apresentarem limites bem definidos dentro do continuum de gradualidade figurativa, não podemos dizer com precisão qual desses processos cognitivos é a base dessa metáfora. Não está muito claro se temos uma metáfora de origem metonímica ou se temos uma metonímia de base metafórica. Mesmo, assim, aceitamos como uma hipótese forte a motivação por correlações experenciais metonímicas na geração da metáfora primária QUANTIDADE É ELEVAÇÃO VERTICAL.

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Eliane Fer raz Alves* Vítor Feitosa Nicolau 1 Janilda Anilde Guedes de Lima 2

METÁFORAS CONCEPTUAIS EM TEXTOS PRODUZIDOS NO PROCESSO SELETIVO SERIADO-2006 DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA (Conceptual Metaphor in Texts Produced During the Selective Process-2006 to Ingress at Universidade Federal da Paraíba) RESUMO Estudo lingüístico procedido em textos produzidos por candidatos ao processo seletivo seriado/2006, da Universidade Federal da Paraíba, realizado sob a responsabilidade da Comissão Permanente do Vestibular - COPERVE-UFPB. A partir de uma das duas temáticas propostas para a produção de texto, foi identificado um domínio fonte — concepção de astrologia — cujas derivações permitiram, na análise, alcançar domínios cognitivos derivados. Tal análise tomou por base estudos cognitivos de Lakoff e Johnson (1980;2002), que enfocam a natureza metafórica da linguagem. Palavras-chave: texto escrito, metáforas conceptuais, estudos cognitivos.

ABSTRACT This piece of work is based on student’s texts of a selective process in 2006, from the “Universidade Federal da Paraíba”, which is realized by a committee called “Comissão Permanente do Vestibular - COPERVE-UFPB”. The results obtained through the analysis in relation to texts production pointed out one origin domain – “Astrology” - in which variations there were possible to reach some derived cognitive domains. We took a stand for the theories spoused by both Lakoff and Johnson (1980;2002) that explain metaphor as an ever present cognitive phenomenon in our language. Key-words: written text, conceptual metaphor, cognitive studies.

O ensino de Língua Portuguesa no Brasil vem seguindo, desde o final do século XX e começo do século XXI, pelo menos em termos de orientação institucional, uma proposta metodológica sociointeracionista. Tal proposta toma como ponto de partida o texto, o discurso cuja abordagem se encontra entrelaçada em quatro eixos de ação: o que se preocupa com o desenvolvimento da linguagem oral, adequada às diversas situações comunicativas, o da leitura e da produção * UFPB 1 PIBIC/UFPB 2 PIBIC/UFPB

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de textos, quando é abordada a diversidade de gênero textual e, ainda, o da polêmica e propagada análise lingüística, quando o ensino de gramática na escola é discutido, com todos as suas vantagens e desvantagens. Para que seja vivenciada uma prática pedagógica centrada nestes quatro eixos, com seus múltiplos direcionamentos, esse ensino, de uma maneira geral, vem buscando seguir as orientações teórico-metodológicas propostas nos Parâmetros Curriculares Nacionais (1998). No que diz respeito ao ensino de Língua Portuguesa, a necessidade cada vez maior de informações lingüísticas atualizadas vem se tornando imprescindível. Ou seja, informações de base lingüística são requeridas por muitos educadores, em cursos de formação continuada, com o objetivo de que o fenômeno linguagem seja apreendido de forma mais abrangente, percebendo que uma língua não é uma realidade homogênea, mas sim um conjunto complexo de muitas variedades. Nesse sentido, a constatação de que os textos produzidos por alunos do Ensino Médio, principalmente os textos que resultam de um processo de avaliação, apresentam muitos problemas, no que diz respeito ao desenvolvimento das temáticas sugeridas, vem motivando os estudiosos da área de Lingüística a realizar trabalhos de pesquisa diversificados, com o objetivo de fazer com que o desenvolvimento de competências textuais escritas continue sendo o centro das atenções de quem se preocupa com uma melhoria do ensino de Língua Portuguesa. Estudos lingüísticos e de Lingüística Aplicada realizados por Kato (1987), Abaurre et al. (1995), Kleiman (1995), Preti (2000), Marcuschi (1999; 2000) e Bertoni-Ricardo (2006) entre outros, abordam essa questão, principalmente focalizando os processos de construção da escrita, os elementos que integram o fenômeno lingüístico caracterizado como texto/discurso e as causas de natureza lingüística ou não-lingüística que afetam esses processos cujos resultados, na maioria das vezes não satisfatórios, são comprovados em correções de produções textuais de vestibulandos. Nos últimos vinte anos, as pesquisas para o desenvolvimento de uma melhor competência textual escrita têm “provocado uma revolução na forma de compreender como esse conhecimento é construído” (Cf. PCNs, 1998, p.66 ) Nesse sentido, considerando a hipótese de que há motivações cognitivas de base cultural que afetam o processo de construção de leitura do mundo e, conseqüentemente, o processo de produção de textos escritos de alunos que concluíram o Ensino Médio, este estudo integra um projeto que tem como principal objetivo, identificar, analisar e categorizar as atualizações lingüísticas de construções metafóricas que permeiam textos produzidos por esses alunos, em situação de avaliação, no caso, no Processo Seletivo Seriado da Universidade Federal da Paraíba. (2006). Seguindo os direcionamentos teóricos da Lingüística Aplicada, partimos da constatação de que os alunos do Ensino Fundamental, do Ensino Médio e mesmo do Ensino Superior não só têm dificuldades para atribuir significados ao

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mundo escrito que está em volta deles (dificuldades de leitura), mas também e, talvez, principalmente, apresentam problemas no momento em que atualizam o que eles pensam, em forma de língua escrita. Embora tal constatação não represente, no meio educacional, nenhuma novidade, visto que a grande maioria dos alunos do ensino médio, conforme atestam institutos de avaliação, sentem dificuldades para produzir textos escritos de uma maneira geral, sabemos que há a necessidade de buscar, nas atuais teorias lingüísticas, um suporte científico para tentar compreender os variados processos de construção de sentidos. Uma das correntes lingüísticas que pode nos ajudar a compreender tais processos é a da Semântica Cognitiva cujas bases teóricas, na nossa concepção, podem estabelecer inter-relações entre a Lingüística e a Lingüística Aplicada. Esse tipo de semântica admite ser o significado (que é natural e experiencial) construído a partir de nossas interações físicas com o meio em que vivemos. O significado não está na correspondência entre palavras e coisas, mas no “corpo” que vive, que se move, que está em várias relações com o meio. Este tipo de Semântica tem se apoiado nas idéias de Lakoff e Johnson (1980;2002), lingüistas que enfatizam a metáfora conceptual como um processo lógico independente, em alguns casos, da estrutura do léxico. A perspectiva de análise cognitiva nos estudos lingüísticos toma como paradigma a idéia de que as expressões lingüísticas são derivadas de processos engendrados na mente, ditos figurativos, que se correlacionam com o contexto social no qual são produzidas. Logo, tais construções não dispõem de significados primários; pelo contrário, representam “pistas” para o processamento de diferentes significados pelos usuários. A respeito desse tipo de abordagem lingüística, faz-se necessário observar que, nos processos de construção metafóricos, caracterizados por Lakoff e Johnson (1980;2002) como estruturais, orientacionais e ontológicos, alguns lingüistas, como Murphy (1996), Glucksberg (2001) e Moura (2005) enfatizam que há uma versão forte da representação metafórica e uma versão fraca. Murphy (1996) ao distinguir essas duas versões, observa que, na versão forte, os conceitos são herdados de mapeamentos metafóricos (interpretados pelo receptor), ao passo que, na versão fraca dessa representação, os domínios conceptuais que entram no mapeamento metafórico já possuem uma estrutura organizada, ou seja, possuem uma estrutura independente. Sobre esta questão, Glucksberg (2001) esclarece que, embora as metáforas conceptuais obtidas após a análise de determinadas atualizações lingüísticas resultem de uma interpretação por parte do receptor, isso não representa um problema, pois as construções metafóricas verbais, enquanto expressões lingüísticas, caracterizam-se justamente por uma certa interação semântica entre tópico e veículo, a ser decifrada pelo receptor. Para este pesquisador, as metáforas não são entendidas por um processo de comparação ou emparelhamento de propriedades, ao contrário, são entendidas como asserções

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categoriais. Compartilhando e ampliando as idéias de Glucksberg, Moura (2005;2006) acrescenta dados substanciais à teoria deste estudioso, quando sugere que a identificação de tipos de combinação entre tópico e veículo é que orienta a interpretação das construções metafóricas. Assim, quando um candidato a uma das vagas de ensino superior, a partir da temática “A influência dos astros na vida das pessoas”, atualiza a idéia de “influência”, no caso, astral, e de “astrologia” com expressões escritas do tipo “impulsos elétricos”, “mistérios cósmicos”, em “Impulsos elétricos entrelaçamse arduamente por entre os sulcos cerebrais, a fim de decifrar os mistérios cósmicos.” (Redação 15, COPERVE-PSS2006/UFPB), podemos, a partir de registros lingüísticos dessa natureza, caracterizar a rede metafórica que pode ser estabelecida para a noção de “astrologia” , considerando, evidentemente, esses produtores de texto e a própria situação de avaliação. Após a análise realizada em 07 textos produzidos por alunos no PSS/ 2006, foram obtidos alguns mapeamentos metafóricos, como por exemplo:

Texto nº. 11 – Astrologia Título: Astros combinam com pessoas

Na concepção desse (a) vestibulando (a), a astrologia pode possuir três abordagens, podendo representar algo imaginário para o homem, pois pode ser “ilusões”, “sonhos”, e pode ser, também, algo que depende da intervenção divina: a “Mão de Deus”. O que se pode observar é que, em um mesmo texto, há uma sistematicidade da conceptualização metafórica – a rede metafórica – que nos permite compreender um conceito, no caso o de “Astrologia” em termos de outros.

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Por conseguinte, na atualização lingüística “astrologia é a mão de Deus”, a idéia de que ASTROLOGIA É INFLUÊNCIA QUE VEM DO ALTO, QUE ESTÁ ACIMA DAS PESSOAS, temos uma divinização de uma área de estudos, a “Astrologia”. A base cultural dessa atualização lingüística está relacionada com a posição onde “Deus” se encontra: em cima, no alto, em uma posição superior, ou seja, onde estão os astros. Por outro lado, em ASTROLOGIA É ILUSÃO, temos uma relação com o inalcançável, com o que está no alto, com o que não pode ser visto com facilidade.. Embora sejam metáforas conceptuais aparentemente diferentes, as atualizações lingüístico-discursivas para o termo “astrologia” têm uma base cultural comum: o fato dos “astros” estarem acima do homem, quer representando o inalcançável, quer significando algo que causa determinadas reações na “terra”.

Texto nº 2: Redação Nº 13 – Astrologia Título: A realidade da astrologia

Na concepção desse(a) vestibulando (a) a “astrologia” é apresentada como algo contrário a tudo que é de “Deus”, tudo que é “divino”. O interessante nessa produção textual é que, embora as atualizações lingüísticas pareçam negar a idéia de que ASTROLOGIA É INFLUÊNCIA QUE VEM DO ALTO, QUE ESTÁ ACIMA DAS PESSOAS, de que ASTROLOGIA É ILUSÃO, esse aparente antagonismo é representado por uma base conceptual comum, a de que a idéia de “astrologia” deve ser substituída pela idéia de ‘Deus” . Ou seja, “Deus” é que está no alto, acima de todos nós.

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Em “Metáforas da Vida Cotidiana”, Lakoff e Johnson (1980; 2002) apresentam um redirecionamento para os estudos acerca da metáfora. Embora a teoria proposta na obra seja apenas uma dentre as muitas teorias sobre metáfora que surgiram na década de 1970, ela tem amplo poder explicativo e, por isso, a publicação deste estudo provocou um forte impacto, desencadeando inúmeras pesquisas e consolidando uma ruptura paradigmática acerca do enfoque objetivista da metáfora, atribuindo-lhe um status epistemológico que rompe com a tradição retórica iniciada por Aristóteles, no século IV a.C. Ao apresentar as principais características da lingüística de base cognitiva Lakoff e Johnson (1980; 2002) contrapõem, inicialmente, em termos de bases filosóficas, duas linhas de estudo: a do chamado realismo objetivista à do realismo experiencial. A primeira estabelece uma relação quase perfeita entre linguagem e conhecimento do mundo, ou seja, a realidade é apreendida a partir de uma maneira única e correta, sem que dependa da experiência e da subjetividade do usuário de uma língua particular. A segunda, embora tenha em comum com o objetivismo, a crença na possibilidade de um conhecimento estável sobre o mundo, parte do princípio de que os conceitos não só se desenvolvem a partir do organismo humano, mas também a partir da experiência humana, individual e coletiva. Dessa maneira, na primeira, o pensamento, entendido como “razão” é literal – formado por proposições objetivas que podem ser verdadeiras ou falsas – e atomístico – formado através da combinação de símbolos primitivos, ou seja, a mente é concebida como uma máquina abstrata. Na segunda, o pensamento encontra-se enraizado não só no organismo, mas na experiência vivenciada pelos indivíduos. Nossa abordagem, no caso deste estudo, é conciliadora, visto que a organização do sistema conceitual de base experiencialista, proposta por Lakoff e Johnson (1980;2002), assenta-se em duas questões fundamentais: a estrutura desses conceitos e a significatividade. Por serem esses conceitos estruturados tanto internamente, quanto entre si, a organização do sistema conceitual decorre, também, de um funcionamento cognitivo cuja organização pode ser identificada e analisada. Em resumo, pode-se afirmar que a proposta desses téoricos, para quem a metáfora conceptual, consiste em um mapeamento sistemático entre dois domínios: o domínio–fonte (source domain) e o domínio-alvo (target domain), está centrada nas seguintes questões : a) a língua pode ser caracterizada através de modelos simbólicos, nos quais se dá uma relação entre informação lingüística e modelos cognitivos; b) os modelos cognitivos podem ser proposicionais, de esquema em imagem, metafóricos e metonímicos; c) a experiência é categorizada em termos prototípicos, e é desta categorização que resultam as estruturas radiais.

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Muitas dessas idéias são ampliadas ou até mesmo, em termos, reformuladas por Johnson (1987) e Sweetser (1990), também adeptos de um cognitivismo lingüístico de base experiencial. Ambos igualam suas teorias à de Lakoff e Johnson (1980;2002) quando, em seus estudos, fornecem evidências de que o significado mais abstrato tem suas bases derivacionais em um significado sóciofísico, portanto, mais concreto. Assim, as atualizações de metáforas de base conceptual, identificadas e analisadas, encaminhou-nos para a constatação de que se faz necessário – a partir da identificação dos domínios cognitivos (mapeamentos metafóricos) considerando uma determinada temática – fazer com que os alunos, em processos de reescritura textual, desenvolvam as suas potencialidades cognitivas, ampliem suas concepções de mundo, para que possam participar de forma mais intensa do nosso mundo discursivo escrito. Concluímos esse estudo, fazendo uso das palavras de Vilela (2003), quando ressalta que a metáfora “não é apenas, nem sobretudo um produto da imaginação poética ou ornato retórico, assim como não é um simples uso extraordinário da língua ou algo apenas ligado a palavras, mas sim, algo que é típico da língua e da sua construção.”

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Lucienne Claudete Espíndola* Thiago Bar ros Mendes**

METÁFORAS CONCEPTUAIS EM EDITORIAIS COM TEMA SOBRE ECONOMIA1 (Conceptual Metaphor in Newspaper Editorial about Economy) ABSTRACT This article presents the first research results that aim to account the metaphoric linguistic expressions and its conceptual metaphor in journalist editorials, from the newspapers “Folha de São Paulo” and “Estado de São Paulo”, and also to investigate its discursive-semantic functions. The initial hypothesis of this research is that the editorial theme may determinate the kind of metaphor – structural, orientational and ontological – that it is in a higher and lower frequency actualized through such metaphoric linguistic expressions. The present results were obtained based on the Theory of Conceptual Metaphor, proposed by Lakoff & Johnson, in 1980. Keywords: Conceptual Metaphor; Discursive Genre; Argumentation. RESUMO Este artigo apresenta os primeiros resultados da pesquisa que tem por objetivo fazer o levantamento das expressões lingüísticas metafóricas e suas respectivas metáforas conceptuais, em editoriais jornalísticos da “Folha de São Paulo” e do “Estado de São Paulo”, e investigar as funções semântico-discursivas delas decorrentes. A hipótese inicial que norteou a pesquisa é que o tema do editorial pode determinar o tipo de metáfora – estrutural, orientacional e ontológica – que será atualizada, com maior ou com menor freqüência, por essas expressões lingüísticas metafóricas. Os resultados aqui apresentados foram obtidos à luz da Teoria da Metáfora Conceptual, postulada por Lakoff & Johnson, em 1980. Palavras-chave: Metáfora Conceptual; Gênero Discursivo; Argumentação.

INTRODUÇÃO Neste artigo, apresentamos resultados do projeto Metáforas, Gêneros Discursivos e Argumentação (MGDA), cujo objetivo é investigar a(s) função (ões) semântico-discursiva(s) das expressões lingüísticas metafóricas atualizadoras de metáfora conceptuais. Salientamos que a este projeto estão ligados subprojetos cujas pesquisas representam um desdobramento do projeto guarda-chuva.

* UFPB - E-mail: [email protected] * * PIBIC/CNPq/UFPB - E-mail: [email protected] 1 Primeiros resultados do subprojeto vinculado ao projeto Metáforas, Gêneros Discursivos e Argumentação, coordenado pela Profª. Drª. Lucienne C. Espíndola.

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Os resultados discutidos neste artigo são oriundos de um subprojeto que objetivou investigar a presença e recorrência de metáforas conceptuais em editorais. Nessa investigação, constatou-se que, em editorais cujo tema é economia, há predominância de metáforas conceptuais orientacionais; fato que gerou este artigo e uma nova investigação em curso. O aparato teórico, utilizado na identificação das metáforas conceptuais que subjazem as expressões lingüísticas metafóricas, é a teoria da metáfora cognitiva de Lakoff & Johnson (1980), para quem a metáfora não é um fenômeno puramente lingüístico, ela faz parte da experiência cotidiana e do fluxo da imaginação simbólica. Nessa perspectiva (cognitiva), a metáfora muda de status – de uma simples figura de retórica para o de uma operação cognitiva fundamental. E, assim, os dois autores conceituam a metáfora: o ato de “compreender e experienciar uma coisa em termos de outra” (18). Os referidos autores postulam três categorias de metáforas conceptuais: as estruturais – aquelas que estruturam um conceito em termos de outro e são responsáveis pela estruturação de nosso sistema conceptual (estruturam nosso modo de perceber, agir e pensar); as orientacionais – aquelas que organizam todo um sistema de conceitos com relação a outro, têm uma base em nossas experiências cultural e física, e estão ligadas à orientação espacial: em cima/ embaixo, dentro/fora, frente/trás, profundo/raso; e as ontológicas – aquelas que transformam conceitos abstratos em entidades – coisas ou seres (animais ou humanos).

1 TEORIA DA METÁFORA CONCEPTUAL As relações entre os fenômenos sociais deixam marcas no corpo da linguagem. A percepção dos nossos sentidos, nossa experiência de vida, todo o conhecimento prévio de mundo são fatores determinantes no momento em que utilizamos nos comunicamos. Nosso sistema lingüístico é ideologicamente estruturado e é utilizando esse argumento que Lakoff & Johnson, em 1980, defendem a idéia de que nós concebemos o mundo com base em nossas experiências corpóreas. Isso é refletido diretamente em expressões lingüísticas cotidianas por nós utilizadas. Sendo assim, podemos dizer que organizamos e estruturamos nossas idéias com base no caminho habitualmente trilhado e sabido. Os autores aperfeiçoaram essa questão ao descobrirem, analisando expressões lingüísticas do nosso dia-adia, que nosso sistema conceptual é organizado metaforicamente.

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“Os conceitos que governam nosso pensamento não são meras questões do intelecto. Eles governam a também a nossa atividade cotidiana até nos detalhes mais triviais. Eles estruturam o que percebemos, a maneira como nos comportamos no mundo e o modo como nos relacionamos com pessoas” (LAKOFF & JOHNSON, p.45-46, 2002).

A seguir, faremos um breve comentário sobre como eram concebidas as metáforas lingüísticas antes das descobertas postuladas e defendidas por Lakoff e por Johnson. Na tradição retórica, iniciada com Aristóteles, a metáfora era considerada um ornamento lingüístico, adequada a linguagens especiais, como a poética e a persuasiva, sem nenhuma importância cognitiva. O Objetivismo, no qual prevalecia a visão retórica da metáfora, dominou a cultura ocidental dos pré-socráticos até os dias atuais. Essa perspectiva proclamava a razão como único meio que o homem tinha para perceber a realidade, sua única fonte de conhecimento, seu único guia de ação e seu meio básico de sobrevivência. Quando se pretendesse falar objetivamente, a metáfora e outras linguagens figuradas deveriam ser sempre evitadas, distinguindo, assim, o que era literal do que era metafórico. Em 1980, com o lançamento do livro Metaphors We Live By, Lakoff e Johnson provocaram uma revolução nas pesquisas sobre a metáfora. Eles partiram da análise de expressões lingüísticas e deduziram um sistema conceptual metafórico que está implícito na linguagem e influencia nosso pensamento e nossa ação. Os sujeitos que utilizam o sistema lingüístico são receptores que processam as informações e geram saídas, baseadas em princípios gerais que são estabelecidos pelos próprios indivíduos, numa incansável atividade diária de interação comunicativa. E assim definem metáfora como “compreender e experienciar uma coisa em termos de outra” (LAKOFF E JOHNSON, 2002, p.18). Se a metáfora fosse apenas um fenômeno da linguagem, assim como era vista na tradição retórica, diferentes expressões lingüísticas metafóricas atualizariam diferentes metáforas. Sendo assim, a expressão “Suas críticas foram direto ao alvo” seria uma metáfora, a expressão “Destruí sua argumentação” seria outra metáfora, e assim por diante. Para Lakoff & Johnson (2002), essas expressões lingüísticas emergem a partir de uma metáfora exemplar, que norteia o sentido básico de cada uma delas. Por exemplo, a metáfora conceptual DISCUSSÃO É GUERRA se realiza em diferentes expressões lingüísticas metafóricas. Esses autores mostraram que a linguagem cotidiana é predominantemente metafórica e apenas parcialmente literal. Numa obra posterior, em parceria com Mark Turner, Lakoff (1989) mostra que o sistema metafórico é a base da compreensão e produção das metáforas do texto literário, destruindo a dicotomia linguagem literária/linguagem cotidiana. Como conseqüência, as idéias objetivistas de que a ciência se faz com a razão e o literal; e a poesia, com a imaginação e a metáfora perderam a validade.

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A compreensão do mundo passou a ser vista por meio de metáforas construídas com base em nossa experiência corporal, em fatores sociais e culturais pertinentes a uma dada comunidade. Nessa perspectiva, nossa corporeidade e nossa mente interagem para dar sentido ao mundo. Sendo assim, a metáfora tem seu valor cognitivo reconhecido, passando de ornamento retórico à operação cognitiva fundamental para a compreensão da realidade. Dito de outro modo, a metáfora não mais se constitui apenas como uma opção lingüística, mas como um instrumento de organização e produção cognitivas. A construção de metáforas e metonímias surge a partir da capacidade humana de categorização e organização dos conceitos mentalmente armazenados. Segundo Lakoff & Johnson (2002), a categorização é conseqüência das nossas especificidades corpóreas, sendo que o tipo de categorização que realizamos resulta das interações e ações que desempenhamos no mundo. Somos capazes de categorizar – criar classes – com base nas semelhanças e peculiaridades de substâncias concretas e atribuir significado àquilo que se considera existente apenas no domínio das idéias, sem qualquer base material. Para designar representações mentais complexas das formas como organizamos o mundo, Lakoff & Johnson (2002) desenvolveram o Modelo Cognitivo Idealizado (MCI). Um MCI é um todo estruturado complexo, um gestalt2, que usa quatro tipos de princípios estruturadores. Esses princípios estruturadores são os mapeamentos metafóricos, mapeamentos metonímicos, estruturas proposicionais e estruturas de esquema de imagem. A estrutura da metáfora é basicamente binária, composta por um domínio fonte (conceito definidor) e por um domínio alvo (conceito definido). Analisando as metáforas do tipo A é B (por exemplo, AMOR É VIAGEM, MENTE É MÁQUINA, IDÉIAS SÃO ALIMENTOS), perceberemos que B – o domínio fonte – é mais claramente delineado em nossa experiência e usualmente mais concreto em relação à A – o domínio alvo. Além disso, há sempre mais no conceito definidor do que se aplica tradicionalmente ao conceito definido. Por exemplo, na metáfora conceptual AMOR É UMA VIAGEM, o domínio fonte “viagem” norteia o sentido do domínio alvo “amor”, que é um conceito abstrato e menos concreto em nossa experiência. A estrutura da sentença metafórica é idêntica à da sentença literal. Compreender um conceito em termos de outro envolve ser capaz de sobrepor a multidimensional estrutura de parte do conceito do domínio fonte à estrutura correspondente do domínio alvo. Tanto na Teoria da Metáfora Conceptual como nos conceitos pertinentes a teorias de cunho cognitivo, aponta-se para o conceito de cognição incorporada, 1

Gestalts são maneiras de organizar as experiências em blocos estruturados. Na metáfora DISCUSSÃO É GUERRA, a gestalt da conversa é estruturada através de correspondências com elementos selecionados da gestalt da GUERRA (LAKOFF & JOHNSON, 2002).

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sócio-culturalmente determinada. A hipótese central é a de que na base das formas lingüísticas está a função pautada nas experiências e interações do homem com o meio. As atividades lingüísticas são processos de constante elaboração do mundo indispensáveis na construção do conhecimento, e as expressões lingüísticas resultam de atividades de sujeitos lingüísticos para a produção de sentidos convencionalizados. Partindo dos postulados de Lakoff & Johnson (2002), que afirmam que a geração da linguagem metafórica dá-se pelo mapeamento entre conceitos de domínios distintos, as metáforas são classificadas em: ontológicas, orientacionais e estruturais. A partir de nossas experiências com objetos físicos, podemos conceituar diversos eventos abstratos através das metáforas ontológicas. Para melhor exemplificar, Lakoff & Johnson consideram a experiência do aumento de preços como uma entidade que pode ser vista metaforicamente por meio do substantivo “inflação”. A metáfora ontológica INFLAÇÃO É UMA ENTIDADE fornece um meio de nos referirmos à experiência: “A inflação está fazendo estragos nos preços de mercadorias e da gasolina.” Nesses casos, conceber a inflação como uma entidade permite referirmonos a ela, quantificá-la, identificar um aspecto particular dela, vê-la como uma causa, agir em relação a ela, e talvez, até mesmo, acreditar que nós a compreendemos (LAKOFF & JOHNSON, 2002, p. 77). No entanto, Espíndola (2005), a partir de Barcelona (2003), afirma ser possível falar em dois tipos de metáforas ontológicas. No primeiro grupo, estão as metáforas em que um conceito abstrato é concretizado em um objeto, espaço etc. No segundo grupo estão as metáforas em que se constata a personificação, processo que pode ser atualizado de duas formas. A primeira é aquela em que uma experiência ou objeto físico é concebido como uma entidade animada (uso de características ou ações próprias de um ser vivo). Nesse caso, vamos observar uma animação (dotar uma experiência de traços de um ser vivo). Um dos exemplos de concretização da metáfora A INFLAÇÃO É UM ADVERSÁRIO (Lakoff & Johnson, 2002, p.88) mostra-nos que a inflação é tratada como uma entidade, no entanto devorar não é propriamente uma característica do ser humano, mas dos animais: A inflação está devorando nossos lucros. A segunda forma de personificação é a que personifica experiências – ou seja, essas experiências são concebidas como pessoas ou àquelas são atribuídas características destas. Nesse caso, constatamos, de fato, a humanização, como é o caso do exemplo apresentado pelos autores citados, para concretizar também a metáfora A INFLAÇÃO É UM ADVERSÁRIO: A inflação ludibriou as melhores mentes econômicas de nosso país. As metáforas orientacionais são as que organizam um sistema de conceitos em relação a um outro. São assim denominadas porque a maioria delas tem a ver com a orientação espacial do tipo: para cima – para baixo, dentro – fora,

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frente – trás, em cima de – fora de, fundo – raso, central – periférico. Essas orientações não são arbitrárias, pois elas têm uma base na nossa experiência física e cultural. A partir das metáforas conceptuais orientacionais BOM É PARA CIMA; MAU É PARA BAIXO, encontramos as seguintes atualizações lingüísticas: “Ele faz um trabalho de alta qualidade”; “As coisas estão o tempo todo indo para baixo”. Embora as oposições binárias para cima – para baixo, dentro – fora etc. sejam físicas em sua natureza, as metáforas orientacionais baseadas nelas podem variar de uma cultura para outra (LAKOFF & JOHNSON, 2002, p. 60). Algumas culturas experienciam conceitos diferentemente. Por exemplo, habitualmente, para nós o futuro é algo que está em nossa frente, não importa se estática ou dinamicamente. Para outras culturas, o futuro é algo que está atrás. Nessas culturas, as pessoas perceberão a orientação espacial de forma diferente. Conseqüentemente, as expressões lingüísticas serão adaptadas à base experiencial dessas culturas. Na metáfora estrutural, um conceito é estruturado metaforicamente em termos de outro. Esse tipo de metáfora está presente em nossa linguagem em uma enorme variedade de expressões lingüísticas. Para melhor exemplificar, Lakoff & Johnson consideram a metáfora conceptual TEMPO É DINHEIRO como um exemplo atual de nosso cotidiano. O domínio alvo dessa metáfora estrutura o conceito de boa parte das expressões lingüísticas que utilizamos para nos referir ao tempo. Por exemplo, em “Estou gastando meu tempo com você”; “Você está desperdiçando meu tempo”, notemos que o domínio DINHEIRO norteia a base de sentido para a compreensão da sentença metafórica. Assim, Lakoff & Johnson reformularam a forma de pensar a metáfora nos tempos atuais. Não se trata mais apenas de um recurso lingüístico utilizado pelos poetas. Seu valor cognitivo é alvo de pesquisas nos campos da lingüística e da cognição.

2 A METÁFORA CONCEPTUAL NO GÊNERO EDITORIAL – PRIMEIRAS IMPRESSÕES O corpus de nossa pesquisa foi constituído de 240 (duzentos e quarenta) editoriais, capturados dos jornais Folha de São Paulo e O Estado de São Paulo, entre 1° de agosto e 30 de setembro de 2006, em suas versões on-line. Nas tabelas que seguem, levantamos algumas expressões lingüísticas e suas respectivas metáforas conceptuais. Após cada expressão, identificamos o jornal, através de sua sigla – FSP para Folha de São Paulo e ESP para O Estado de São Paulo –, o título do editorial e sua respectiva data de publicação. As metáforas conceptuais encontram-se em caixa alta e centralizadas na primeira linha da tabela; as expressões lingüística atualizadoras dessas metáforas estão, logo em seguida, com destaque para os termos em negrito.

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Apresentamos, aqui, em editoriais cujo tema é economia, uma amostragem em que o tema pode ter determinado a grande incidência de uma das metáforas conceptuais (a orientacional) e respectivas expressões lingüísticas atualizadoras. Do jornal Folha de São Paulo POSITIVO É PARA BAIXO Queda do juro básico favorece realocação da poupança financeira na produção, via crédito; operação é decisiva (FSP, Para crescer, 17/08/06) A perspectiva de manutenção da bonança - embora não exagerada - na economia internacional sustenta no horizonte o cenário de queda da taxa básica de juros brasileira. (FSP, Para crescer, 17/08/06) Os candidatos à Presidência da República deveriam assumir, nesta campanha, um compromisso com a sociedade brasileira: é preciso baixar gradativamente a carga tributária, objetivo a ser atingido pelo corte de gastos públicos correntes. (FSP, Asfixia tributária, 22/08/06) A perspectiva de que o Estado absorverá cada vez menos recursos da sociedade, de que os juros podem continuar a baixar e de que o poder público investirá mais em estradas, ferrovias, portos etc... (FSP, Asfixia tributária, 22/08/06) Bancos que vinham trabalhando com taxas acima desse limite superior devem reduzi-las para poder usufruir da captação da poupança. E há estímulos adicionais para que as instituições baixem suas taxas. (FSP, Pacote habitacional, 14/09/06) Assim pode ser caracterizada a recepção ao que decidiu o Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central, que em sua reunião encerrada na quartafeira optou por reduzir a taxa de juros de curto prazo da economia em meio ponto percentual - de 14,75% para 14,25% ao ano. (FSP, Acerto nos Juros, 01/09/06) A opção por reduzir a taxa de juros básica em meio ponto representa, assim, um gesto bem-vindo, de mínimo bom senso. (FSP, Acerto nos Juros, 01/09/06) A queda nesse item de despesas do Estado também permitiria que o setor público voltasse a investir em infra-estrutura e acentuasse a redução dos juros. (FSP, Asfixia tributária, 22/08/06) A perspectiva de que o Estado absorverá cada vez menos recursos da sociedade, de que os juros podem continuar a baixar e de que o poder público investirá mais em estradas, ferrovias, portos etc. é condição necessária para que as empresas tomem a decisão de contratar mais trabalhadores e de ampliar seu parque produtivo. (FSP, Asfixia tributária, 22/08/06) Um dos argumentos mais invocados por essa corrente é a constatação de que a taxa de juros de longo prazo está mais baixa do que a de curto prazo, fato conhecido como “inversão da curva de juros”. (FSP, Risco de Recessão, 17/09/06)

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Percebemos que há um consenso nos exemplos apresentados de que a taxa de juros para baixo beneficia toda a população. Todas as expressões lingüísticas atualizam a metáfora conceptual orientacional POSITIVO É PARA BAIXO. NEGATIVO É PARA BAIXO Expectativas para o PIB de 2006 não param de cair; (FSP, Para baixo, 26/09/06) Se as estimativas se confirmarem, o país crescerá muito abaixo dos vizinhos latinoamericanos. (FSP, Para baixo, 26/09/06) Ao lado disso, as projeções para o PIB neste ano e no próximo vêm sendo revistas para baixo, indicando a persistência de um ritmo medíocre na atividade econômica, no emprego e na renda. (FSP, Acerto nos juros, 01/09/06) E as projeções de bancos e consultorias para o PIB neste ano e no próximo continuam a ser revistas para baixo. (FSP, Comércio fraco, 25/09/06)

As expressões lingüísticas metafóricas destacadas atualizam a metáfora conceptual orientacional NEGATIVO É PARA BAIXO. Nesse contexto, percebemos que há um consenso de que o PIB – Produto Interno Bruto – é negativo quando está direcionado para baixo. Nos dois grupos acima apresentados, constatamos que o tema do editorial deve ter determinado o tipo de metáfora – a orientacional –, uma vez que, nesses editoriais, a presença de duas metáforas orientacionais – POSITIVO É PARA BAIXO e NEGATIVO É PARA BAIXO – atualizadas por diversas expressões lingüísticas metafóricas – foi recorrente para falar da situação da economia em nosso país. jornal O Estado de São Paulo POSITIVO É PARA BAIXO Caem, enfim, e com rapidez, os preços do petróleo no mercado internacional - do recorde de US$ 78,69 o barril do tipo Brent, em 6 de agosto, para cerca de US$ 63, nesta semana. (ESP, Texto 10, 17/09/06) A notícia é alvissareira para a economia mundial e para o Brasil, pois reduz as incertezas dos consumidores, as pressões inflacionárias e, portanto, os riscos de novo aumento de juros básicos nos EUA. (ESP, Texto 10, 17/09/06) Com inflação baixa, é menos acirrada a luta pelas fatias do bolo econômico, também conhecida, no jargão dos economistas, como conflito distributivo. (ESP, Texto 16, 19/08/06) As negociações salariais foram facilitadas pela inflação declinante. (ESP, Texto 16, 19/08/06) As multas podem ser reduzidas em até 50% e, melhor ainda para o devedor, a correção do saldo devedor será pela TJLP. (ESP, Texto 18, 01/08/06)

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Nos exemplos apresentados, observamos, mais uma vez, a recorrência de expressões lingüísticas metafóricas que atualizam a metáfora conceptual orientacional POSITIVO É PARA BAIXO, nos editoriais do Jornal O Estado de São Paulo. Eventos econômicos são concebidos em termos orientacionais. Isso implica dizer que o tema do editorial – economia, no referido caso – pode determinar o tipo de metáfora que será atualizada com maior freqüência. Nos exemplos apresentados, os eventos são positivos quando são direcionados para baixo. Em nossa cultura, preços “caem”, incertezas e multas são “reduzidas” etc. POSITIVO É PARA TRÁS O recuo dos preços da gasolina foi justificado pela IEA por três fatores: o aumento do refino, o nível de estoques - os mais altos dos últimos cinco anos - e a certeza de que a mistura de etanol na gasolina permitirá uma redução dos preços dos combustíveis. (ESP, Petróleo em queda, 17/09/06)

O recuo dos preços é conceptualizado de forma positiva. No exemplo apresentado, a expressão lingüística metafórica atualiza a metáfora conceptual POSITIVO É PARA TRÁS. POSITIVO É PARA CIMA A recuperação dos salários contribuiu para a elevação das vendas do comércio varejista, agora menos dependente da expansão do crédito ao consumidor. (ESP, Texto 16, 19/08/06)A principal contribuição para o aumento do poder de compra dos trabalhadores tem sido o combate à inflação. (ESP, Texto 16, 19/08/06)

As expressões lingüísticas metafóricas destacadas atualizam a metáfora conceptual orientacional NEGATIVO É PARA CIMA. Nesse caso, eventos negativos são conceptualizados em termos orientacionais. Esses exemplos vêm ratificar nossa hipótese de que o tema pode ter determinado o tipo de metáfora conceptual atualizado lingüisticamente em editoriais cujo tema é economia.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES Com base nos dados apresentados podemos tecer considerações sobre dois pontos. Primeiro, sobre a tese de Lakoff & Johnson (2002) de que as metáforas conceptuais estão presentes em nosso cotidiano, atualizadas através de uma variedade de expressões lingüísticas. Em segundo lugar, sobre a hipótese

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levantada no início da pesquisa: o tema do editorial poderia ter determinado o tipo de metáfora conceptual atualizado com maior freqüência. No que diz respeito à tese dos referidos autores, nossa pesquisa a corrobora em editoriais jornalísticos, evidenciando que as metáforas do se ‘sabe’ são mais freqüentes, e que conceitos abstratos são abordados através do uso de metáforas conceptuais atualizadas lingüisticamente de forma sistemática. Sobre o tema do editorial poder ser um determinador da recorrência do tipo de metáfora conceptual, constatamos que, em editoriais cujo tema é economia, as expressões lingüísticas atualizadoras de metáforas conceptuais orientacionais predominaram. Nos referidos editoriais, quando o tema abordado é prejuízo, expressões lingüísticas metafóricas atualizam a metáfora conceptual orientacional POSITIVO É PARA BAIXO; quando o tema abordado é rendimento, grande parte dessas expressões lingüísticas atualiza a metáfora conceptual orientacional NEGATIVO É PARA BAIXO; e quando se trata de vantagem para o consumidor, a expressão lingüística encontrada atualiza a metáfora conceptual orientacional POSITIVO É PARA TRÁS. Ressalte-se que para falar de prejuízo, rendimento, vantagem para o consumidor, subtemas do tema economia, geralmente recorre-se às metáforas conceptuais orientacionais – pensamos –, porque falar sobre esses assuntos, em nossa cultura, na maioria das vezes, é situá-los em uma orientação espacial. A presença/recorrência de metáforas conceptuais orientacionais em editoriais cujo tema é economia reforçou ainda mais a nossa tese de que o tema/assunto poderá determinar, pelo menos, em parte o tipo de metáforas conceptuais atualizadas por expressões lingüísticas predominantes/recorrentes em determinado gênero discursivo. Salientamos também que o gênero também deve ser considerado fator importante nessa presença/ausência de determinadas metáforas, uma vez que ele determina como um tema será abordado em função do público-alvo, do suporte entre outros fatores. Nesse sentido, a hipótese que gerou este artigo mostrou-se produtiva nos editorais integrantes do nosso corpus, cujo tema é economia. Porém, estamos iniciando um subprojeto que dará continuidade a essa investigação, para que possamos passar de uma hipótese para uma afirmação com dados mais consistentes.

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REFERÊNCIAS BARCELONA, Antônio (2003). Metaphor and metonymy at the crossroads. New York. ESPÍNDOLA, Lucienne (2005). A Metáfora Ontológica na Publicidade. In: Revista do GELNE – Grupo de Estudos Lingüísticos do Nordeste. João Pessoa: Idéia, 2005. LAKOFF, G.; JOHNSON, M. (2002 [1980]) Metáforas da Vida Cotidiana. (Coordenação da Tradução Mara Sophia Zanotto) Campinas, SP: Mercados de Letras; São Paulo: EDUC. LAKOFF, George; TURNER, Mark. (1989) More than cool reason: a field guide to poetic metaphor. Chicago: University of Chicago Press. MACEDO, Ana Cristina Pelosi Silva de. & BUSSONS, Aline Freitas. (2006) Faces da Metáfora. 1a. ed. Fortaleza: Artes Gráficas. MELO, José Marques de. (1985) A opinião do jornalismo brasileiro. Petrópolis: Vozes.

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Fabiana Lins Browne Rego* Glória Maria Monteiro de Car valho*

O ESTUDO DA SINGULARIDADE DA FALA DA CRIANÇA: A QUESTÃO DA SUBJETIVIDADE DO INVESTIGADOR1 (Study on children’s speech singularity: a matter of researcher’s subjectivity) ABSTRACT This study investigates echolalia in autism by comparing echolalic children’s utterances with those of children with no obstacle in language acquisition. It also intendes to investigate the effects that echolalic verbalization causes on the researcher. Two groups of subjects were selected for follow-up: Group A - consisting of children without difficulties in their linguistic course and Group B - consisting of autistic teenages . The confrontation with blocks of utterances of a certain autist, despite their echolalic nature, indicated that, in rare moments, there seemed to be connections of parts of those blocks. Such block connections, however, were not enough to be qualified as a move - pointed in Group A children’s speech - defragmentation and restructuring of verbal strings. The confrontation beteween the two groups(A and B) also made it possible to discuss the effects that the echolalic verbalization causes on the researcher. Key words : Autism. Echolalia. Language Acquisition. Researcher. RESUMO Pretende-se investigar a ecolalia, no autismo, comparando-a com produções verbais de crianças que não apresentam obstáculos na aquisição da linguagem, tentando através desse confronto discutir o efeito provocado no investigador. Foram acompanhados dois grupos de sujeitos: o Grupo A - formado por crianças sem dificuldades em sua trajetória lingüística e o grupo B - composto por adolescentes autistas. O confronto com as verbalizações de um autista, indicou que, embora se tratasse de blocos ecolálicos, parecia existir, em raros momentos, uma junção de partes desses blocos. Tal junção, entretanto, não chegou a configurar um movimento – apontado na fala das crianças do grupo A – de fragmentação (desestruturação) e reestruturação de cadeias verbais. Esse confronto ainda tornou possível uma discussão acerca do efeito que tais verbalizações provocam no investigador. Palavras-chave: Autismo. Ecolalia. Aquisição da Linguagem. Investigador.

INTRODUÇÃO Leo Kanner (1997/1943) descreveu um quadro clínico, a partir de um estudo com onze crianças gravemente enfermas e sua descrição permanece, em alguns aspectos, válida até a atualidade. Em tal quadro clínico, o traço patognomônico do autismo seria a inadaptação no que concerne ao estabelecimento de relações. * UFPE 1 Este texto foi produzido a partir de questões levantadas em trabalho apresentado no XIX Jelne (Rego, Lima & Carvalho, 2002), fazendo parte de Projeto de Pesquisa financiado pelo CNPq.

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Quanto à linguagem dessas crianças, o referido autor a definia como tendo uma marca de auto-suficiência, sem valor semântico ou caráter de comunicação. Não haveria, portanto, diferença considerável entre aqueles autistas que, de algum modo, verbalizavam e aqueles que apresentavam mutismo. Ainda no que se refere à linguagem no autismo, Kanner (1997/1943), Lasnik-Penot (1997), dentre outros autores, observaram que as repetições verbais, nos autistas, possuíam um caráter rígido e estereotipado, o que não acontece com a criança que não apresenta esse distúrbio do funcionamento psíquico. Desse modo, “a fala do autista é um eco de tudo o que já lhe pôde ser dito” (Kanner, 1943/1997, p. 115). Segundo Lasnik-Penot (1997), as referidas verbalizações não poderiam ser chamadas de repetições, no sentido metapsicológico do termo, uma vez que elas têm a tendência de se tornarem estereotipias. Explicando um pouco melhor, “essas repetições consistem num esvaziamento do ato, de tudo o que é de um valor pré-simbólico, restando apenas um vestígio de um trabalho humano que apenas começou a acontecer” (Lasnik-Penot, 1997, p. 16). Pode-se, ainda, dizer que não se poderia falar em repetição, mas sim, em reprodução verbal. O objetivo geral deste trabalho foi, portanto, o de trazer para o campo da Aquisição de Linguagem, questões colocadas pela investigação das verbalizações, no autismo, destacando o efeito que tais verbalizações provocam no investigador. Tal objetivo se fundamenta na proposta de autores, como por exemplo, Lier-De Vitto (1994), para quem uma abordagem da patologia contribuiria para uma melhor compreensão do funcionamento psíquico do sujeito, justamente, em virtude dos efeitos produzidos pela patologia sobre esse funcionamento.

O ENIGMA DA FALA DA CRIANÇA Propõe-se que, ao mesmo tempo em que uma abordagem das verbalizações da criança diagnosticada como autista produz efeitos sobre o campo da Aquisição de Linguagem, sob a forma de um surgimento de novas questões, a rigidez daquelas verbalizações se tornaria ainda mais visível, quando nos voltamos para a fala das crianças cujo percurso lingüístico é considerado normal. Para De Lemos (2002), esse percurso se caracteriza como mudanças de posição da criança, numa estrutura em comparecem três pólos: a fala do outro, a língua e a própria fala da criança, sendo cada uma das posições caracterizada pelo predomínio de um desses três pólos sobre os outros dois. Assim, colocando muito sucintamente, numa primeira posição, a fala da criança seria constituída

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por fragmentos da fala do outro (mãe), fala essa que estaria predominando, nesse momento. Numa segunda posição, estaria predominando o funcionamento estrutural da língua, ou seja, cadeias verbais se aproximariam (metonimicamente) na fala da criança e se cruzariam, havendo substituição (metafórica) de significantes, em alguns pontos dessas cadeias. Tais cruzamentos poderiam, então, dar lugar ao aparecimento de erros. Uma terceira posição seria marcada, empiricamente, pela diminuição dos erros e, dentre outras manifestações verbais, pelo aparecimento de pausas, hesitações correções e auto-correções, o que estaria indicando a fala da criança como sendo o pólo dominante. Recortando a segunda posição, a qual nos interessa mais de perto, vale destacar que os erros produzidos pela criança podem ser previsíveis – a partir de uma regra ou padrão lingüístico, como é o caso do uso de fazi, em vez de fiz – ou imprevisíveis. Esses últimos foram concebidos por Lemos (2002) como um efeito de enigma, ou efeito de estranhamento provocado, no adulto, pela fala da criança. Trata-se de combinações imprevisíveis, pouco comuns, de significantes e, nesse sentido, tornam, especialmente, visível a singularidade da fala da criança, ou seja, a diferença que tal fala representa – em relação ao falante/adulto – em seu momento de mudança. Foi esse tipo de enigma/produção estranha que se recortou da manifestação verbal do sujeito que não apresenta dificuldades em seu percurso lingüístico. No que diz respeito ao autismo, seriam as verbalizações reprodutivas/ ecolálicas que, de modo especial, provocariam um efeito de estranhamento no outro, embora, ao que tudo indica, esse efeito possua um caráter bem diferente daquele mencionado acima. Talvez se pudesse pensar num efeito de estranhamento produzido por uma reprodução verbal (ecolalia) que excluiria o outro, conforme a concepção de Jeruzalinsky (1984), o que, por sua vez, implicaria em conceber o autismo como um obstáculo à aquisição da linguagem. Nesse sentido, especificando um pouco mais o objetivo geral deste trabalho, pretende-se confrontar as produções verbais ecolálicas do autista com o enigma ou produção verbal estranha da criança que não apresenta obstáculo em sua trajetória lingüística, discutindo o efeito que essas verbalizações provocam no investigador. Para atingir o objetivo proposto, foi constituído um corpus a partir de dois grupos de sujeitos (A e B). O Grupo A é composto de gravações em áudio de uma díade (mãe-filho), fazendo parte do Banco de Dados do Projeto de Aquisição de Linguagem do Instituto de Estudos da Linguagem–IEL/UNICAMP. A criança é do sexo feminino e estava com um ano e dois meses quando se iniciaram as gravações as quais ocorreram semanalmente, estendendo-se por três anos. O

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Grupo B é constituído por um acervo de registros em vídeo de cindo adolescentes – diagnosticados como portadores de autismo – com idade média de doze anos e de ambos os sexos. Foram filmadas, quinzenalmente, durante trinta minutos, em média – sessões de terapia em grupo (numa Instituição especializada no atendimento de autistas, na cidade de Recife), das quais também participavam duas terapeutas e uma estagiária. Vale ressaltar que foi feito um recorte da fala de um dos adolescente pela peculiaridade da sua linguagem, predominantemente, ecolálica.

LEVANTAMENTO DE QUESTÕES SOBRE OS BLOCOS VERBAIS ECOLÁLICOS De um modo geral, num primeiro olhar sobre os dados, pôde-se observar que as verbalizações de Pedro eram, visivelmente, marcadas pelo caráter rígido e estereotipado já referido por Kanner (1997/1943). Essa rigidez se traduz numa produção ecolálica caracterizada por reproduções verbais insistentes que aparecem como um eco da fala do outro. Tais reproduções, por sua vez, surgem como blocos que fecham o dizer do autista, no sentido de que não permitiriam a entrada do outro, como pode ser apontado no exemplo abaixo: Episódio 1 (P = Pedro – nome fictício de adolescente autista; T = terapeuta) T: Botar brinco, cortar cabelos....... P: Vidróóó. Viiiiidro. Vriiiidróóóóó P: Luííza, Luíííza T: Chama pedro para brincar. Chama João para brincar. P: Vríído. Vídroo... P: Vríiiido. Vídroo. Vrído.V´vídroo. O vidro do carro. Viiiiidroooooo, vídro, vidro, vidro

Ao que tudo indica, a verbalização ecolálica do autista (vidro) estaria se constituindo como uma barreira às tentativas de entrada da terapeuta. Em outras palavras, essa ecolalia estaria funcionando como uma maneira de excluir o outro, segundo a proposta de Jeruzalinsky (1984). Tais reproduções, por sua vez, ocorrem, em grande parte das vezes, desvinculadas do contexto, ou seja, daquilo que configura a sessão. Por exemplo, no episódio 1, o tema discursivo da sessão era a montagem de uma peça teatral e se falava sobre quem seriam os atores e atrizes. No entanto, Pedro insistia em reproduzir o termo vidro e não respondia às tentativas da terapeuta de fazê-lo entrar no discurso da brincadeira, portanto no circuito da linguagem. Vale ressaltar que o primeiro olhar sobre os dados de Pedro nos levou a uma espécie de subordinação à sua fala ecolálica, de modo que se tornou difícil fazer uma outra leitura. Tudo parecia indicar que aqueles

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dados ratificavam a descrição de Kanner no seu artigo de 1943: tudo parecia caótico, intraduzível e sem sentido. A fala parecia cristalizada, rígida e causava, nas investigadoras, um sentimento de estranhamento que não era traduzível em palavras. No constante retorno aos dados, entretanto, pôde-se apreender um aspecto intrigante o qual merece ser apresentado e discutido, neste momento. Trata-se da observação de que, no meio de uma verbalização marcada pela rigidez e estereotipia, havia indícios de um certo deslocamento nos blocos verbais. Em outras palavras, percebeu-se que, em alguns momentos, a criança parecia realizar um deslocamento e uma junção de blocos, isto é, de certo modo, parecia haver algum tipo de cruzamento de blocos. Mas, de que forma ocorreria esse cruzamento? O extrato abaixo parece poder ilustrar uma tal suspeita de cruzamento: Episódio 2 P: O relógio, o relógio Tá tudo quebrado P: Tá tudo quebrado T: O relógio não está quebrado não. O carro quebrou, o carro de mainha quebrou P: O carro quebrou P: O carro quebrou T: O carro quebrou P: O carro todinho T: O carro da sua mãe não quebrou e você vai deixar de vir prá cá não. P: O carro tá tudo quebrado. T: Tá nada P: Quebrou P: O carro quebrou P: Tá tudo quebrado

Nesse momento, Pedro desloca a expressão tá tudo quebrado – usada em várias outras ocasiões – e faz uma cisão na expressão ecolálica o carro/ quebrou, realizando o que se poderia chamar de uma recombinação desses blocos, tendo como resultado uma expressão estranha O carro tá tudo quebrado. O interessante é que, embora haja uma indicação de movimento na fala de Pedro, ainda não se pode falar em mobilidade; a linguagem ainda é rígida, como se os blocos tivessem se movimentado e se juntado – carregando sua marca de rigidez – formando uma nova expressão, diferente daquelas, normalmente, encontradas na sua verbalização. Pode-se perguntar: não se estaria, então, diante de um paradoxo – uma mobilidade rígida? Mobilidade, porque Pedro parece conseguir quebrar os blocos fazendo

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uma recombinação, porém rígida, pois o resultado dessa operação ainda possui um caráter rígido. Outro exemplo permite ilustrar o exposto: Episódio 3 T: Ah tu queres aprender Pedro. P: Quebrou o carro de mainha quebrou T: Oh Liliane, toda vez que Pedro fala, do jeito que ele fala, da vontade dele de aprender a dirigir esse carro do pai e da mãe, ele vem logo com essa história de quebrar o carro. (.............................) P: Quebrou o carro, o carro tá tudo quebrado, quebrou Pedro quebrou, de jeito maneira

Novamente, no episódio 3, Pedro faz a mesma junção do episódio 2; no entanto ele inclui a expressão de jeito maneira a qual é recorrente em sua verbalização, produzindo uma espécie de desarmonia na frase. Essa desarmonia estaria, portanto, indicando aquilo que estamos chamando de junção de blocos, ou melhor, uma não fragmentação e não reestruturação de partes de cadeias verbais produzidas anteriormente.

A FRAGMENTAÇÃO COMO MARCA DA DIFERENÇA Com base no que foi discutido acima, o caráter de rigidez da junção de blocos parece não permitir, ainda, a entrada da fala do outro, retendo a marca de exclusão que seria característica dos blocos verbais. Em contraposição às referidas junções, pôde-se observar, na criança que não apresenta um obstáculo na sua aquisição da linguagem – especificamente, no que diz respeito às produções que causaram estranhamento – a característica de fragmentação e de reestruturação de significantes, através de processos metonímicos e, sobretudo, metafóricos, conforme apontado por De Lemos, (2002). Veja-se, por exemplo, o extrato abaixo: Episódio 4 ( C – 2;0.15 ) C: Qui, Qui,Qui, aqui é sagadu. Qui o tio Marcio? M: O tio Mácio tá guiando o carro. C: Tá? M: Tá. C: A tia Lílian tá Qui, guiando o carro? M: Não. A tia Lilian tá conversando cum tio Márcio. C: Onde ela tá? Onde, ela tá fazendo?

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A característica de fragmentação das cadeias verbais produzidas, anteriormente (quer pela mãe, quer pela criança), teria permitido, portanto, que a criança estabelecesse relações, fizesse articulações entre as palavras e frases, ou seja, aproximasse cadeias (metonímia) e substituísse significantes, nessas cadeias (metáfora). Pode-se perceber que a criança realiza uma desestruturação das cadeias verbais presentes na fala da mãe para, posteriormente, reestruturálas, tendo como resultado uma produção estranha, singular, de caráter equívoco. A partir desse momento, levanta-se um questionamento: o que, de fato, caracterizaria as produções estranhas dessas crianças (como, por exemplo, no episódio 4) e o que as tornaria diferentes daquelas produzidas por Pedro? A tentativa de resposta poderia estar relacionada a essa característica de fragmentação que parece permitir, à criança, fazer verdadeiras transformações nas cadeias verbais do outro (falante). Desse modo, a fragmentação permitiria o equívoco, ou seja, a possibilidade daquela produção assumir vários significados, o que parece não acontecer com a verbalização do autista, mesmo quando, nela, têm lugar deslocamentos e junções.

O INVESTIGADOR DIANTE DAS VERBALIZAÇÕES ECOLÁLICAS Poderíamos não ter avançado nessa discussão se nos cristalizássemos na concepção clássica de ecolalia: palavras ouvidas e repetidas como papagaio proposta por Kanner (1997/1943). Poderíamos até mesmo reproduzir, ecolalicamente, o que nos disse esse autor, já que foram encontradas, em Pedro, produções que corroboravam aquilo que, normalmente, entende-se por ecolalia e por funcionamento autístico. O confronto com a criança considerada normal também tornou mais evidente o efeito patológico da ecolalia. No entanto, tal confronto nos permitiu enxergar um movimento na fala de Pedro, que nos indagou e, de certa forma, surpreendeu. Assim, pudemos fazer algumas considerações acerca do que acontece com o investigador que pretende estudar a linguagem do autista. Em primeiro lugar, poderíamos pensar que, por seu caráter de rigidez, a ecolalia, via de regra, não é acolhida como fala e, conseqüentemente, a criança autista não é reconhecida como falante pelo investigador. Em outras palavras, podemos dizer que entraria em curso um processo de negação radical que ratifica a idéia de que os autistas são seres sem linguagem e inacessíveis aos contatos humanos. Tais idéias poderiam atravessar o imaginário do investigador que se defronta com o autismo, levando-o a uma expectativa negativa que cristalizaria essa linguagem num lugar de impossibilidade. Dessa forma, pode-se sugerir que o investigador que pretende investigar a fala de uma criança autista precisaria se despir, ao máximo, dos conceitos pré-estabelecidos acerca do autista e do seu funcionamento lingüístico, devendo estar preparado para o novo.

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Segundo Frithz (1995, apud Tafuri, 2003), atualmente, a grande maioria dos autores cognitivistas considera difícil avaliar a competência lingüística das crianças autistas porque, em alguns momentos, elas demonstram um grau surpreendente de competência lingüística, como se fosse por acidente. Dessa forma, poderíamos supor que tais acidentes podem ser, na maioria das vezes, ignorados pelos pesquisadores, ou seja, relegados a um lugar desprovido de valor, isto é, fora do olhar do investigador. Lemos (2002) nos mostrou que a psicolingüística higienizou a fala da criança em fase de aquisição de linguagem, deixando de fora aquilo que ela chama de resto (as produções imprevisíveis), ou seja, produções que não deixariam claro que a criança estaria respondendo a um padrão estrutural da língua e que não se curvam à demanda de regularidade do saber. Ao que parece, no campo de estudo da linguagem da criança autista, houve uma espécie de higienização às avessas: essas supostas competências são postas de lado e se trabalha em cima daquilo que é irregular. Em outras palavras, o olhar incide sobre aquilo que essas crianças não têm. Podemos refletir que o investigador, que se defronta com a linguagem do autista, deveria se dispor a acolher a possibilidade do imprevisível da competência lingüística na sua fala. Poderíamos supor, ainda, que, no autista, a competência se torna o próprio imprevisível, pois ela emerge numa fala de onde só esperávamos insuficiência, falta e deficiência.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Vale destacar que, a partir do confronto que se tentou fazer, neste trabalho, não se poderia negar a proposta de Jeruzalinsky (1984), segundo a qual as verbalizações do autista excluem o outro, nem tampouco se pretende propor que esse sujeito tenha, de fato, sido capturado pelo equívoco. Mas, certamente, os movimentos vislumbrados, na verbalização de Pedro, parecem apontar para algo, isto é, o aspecto analisado, anteriormente, indicaria, talvez, aquilo que LasnikPenot (1997) chamou de vestígio de um trabalho humano que apenas começou a acontecer, o qual o investigador deve estar preparado para acolher. Um tal vestígio, contudo, não seria concebido, negativamente, como índice de uma perda ou de uma não aquisição. Conforme a proposta aqui assumida, trata-se de um vestígio que estaria indicando a positividade de uma aposta, ou melhor, estaria indicando um movimento evanescente, o qual, embora não seja suficiente para quebrar os blocos ou rochas das verbalizações do autista, permitiria abrir alguma fenda nesses blocos. Uma tentativa de saída, quem sabe?

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REFERÊNCIAS DE LEMOS, C.T.G. (2002) Das vicissitudes da fala da criança e de sua investigação. Cadernos de Estudos Lingüísticos, 42, 42-69. _____ (2001). Sobre fragmentos e holófrases. Anais do III Colóquio do LEPSI - Laboratório de Estudos e Pesquisas Psicanalíticas e Educacionais sobre a Infância – USP, São Paulo. JERUZALINSKY, A. (1984) A Psicanálise do Autismo. Porto Alegre: Artes Médicas. KANNER, L. (1997 [1943]) Os distúrbios autísticos do contato afetivo. In: P.S. Rocha, (Org.) Autismos. S. Paulo: Editora Escuta, pp.111-170. LASNIK-PENOT, M.C. (1997) Rumo à Palavra: três crianças autistas em psicanálise. São Paulo: Editora Escuta. LEMOS, M.T. (2002) A Língua que me falta: uma análise dos estudos em aquisição de linguagem. Campinas: Mercado de Letras. LIER-DE VITTO, M.F. (1994) Aquisição da linguagem, distúrbios de linguagem e psiquismo: um estudo de caso. In: Lier-De Vitto (Org.) Fonoaudiologia: no sentido da linguagem. S. Paulo: Cortez, pp.135-144. TAFURI, M.I. (2003) Dos sons à palavra: explorações sobre o tratamento psicanalítico da criança Autista. Brasília, ABRAFIPP. REGO, F.L.B., LIMA, D.M. & CARVALHO, G.M.M. (2002) Ecolalia e autismo: uma investigação no campo da aquisição de linguagem. Trabalho apresentado no XIX Gelne – Jornada de Estudos Lingüísticos. Fortaleza, Ceará, setembro de 2002

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Josalba Ramalho Vieira *

A LEITURA DE POESIA EM SALA DE AULA: QUESTÃO DE GÊNERO OU DE MÉTODO? ABSTRACT The research focus has been defined by my own teaching experience in which I observed a high degree of silence and embarassment concerning the textual genre of poetry reading on the par t of both students and teachers in undergraduate teacher trainning programmes (Cursos de Letras). The first step of this inquiry has been the discussion of the possible reasons for this problematic relationship with this textual genre. It is developed here a critical intervention in an English as foreign literature classroom within a Curso de Letras. The proposal included poetry reading moments followed by oral discussion in small groups mediated by the teacher. Although this teaching approach has brought some conflicts to the center of interaction, specially due to some paradigmatic changes concerning both specialist’s and learners’s roles, the readers´s change in relation to reading poetry is translated by a wide range of meaning negotiation and by socialization of readings. Key words: Reading; Poetry; Metaphor; Classroom interaction in English as a foreign literature; Teacher education. RESUMO O foco desta pesquisa foi definido a partir da minha experiência de ensino, na qual constatei um alto índice de silêncio e constrangimento por parte de alunos e professores de Letras em relação a textos poéticos. A primeira etapa nesta investigação envolveu a discussão dos possíveis fatores desta relação problemática com este gênero textual. Desenvolvo aqui uma proposta de criação de um cenário de intervenção, em uma sala de aula de literatura em língua estrangeira de um curso de Letras, visando prioritariamente oferecer momentos de leitura de textos poéticos seguidos de discussão em pequenos grupos mediada pela professora e/ou pela professora assistente. Embora a proposta tenha trazido à tona conflitos decorrentes de mudanças paradigmáticas tanto no papel da especialista quanto nos papéis dos aprendizes, a mudança de postura frente ao gênero poesia traduziu-se na ampla negociação do sentido e na socialização das leituras. Palavras-chave: Leitura; Poesia; Metáforas; Interação em sala de aula de inglês como literatura estrangeira; Formação do professor.

INTRODUÇÃO No antigo Egito, a escrita era considerada como um presente do deus Tot à humanidade. Considerada uma invenção, assim como outros artefatos humanos, a escrita era um diferencial que afastava os homens dos animais e que os aproximava da divindade. Esse artefato, no entanto, podia ser usado como remédio ou como veneno. Era fundamental saber quem administrava e qual a dose prescrita (Cf. RIBEIRO, 1993). Esse antigo mito egípcio serve para ilustrar a motivação que me levou a realizar esta pesquisa no Brasil. O que me moveu * UFSC

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foi a percepção de que a leitura (uma das faces da escrita), sobretudo a leitura de textos literários, apesar de poder ser prescrita como remédio tanto para o(a) futuro(a) professor(a) de Língua estrangeira (LE, doravante) como para o de Língua materna (LM doravante), vinha sendo usada como veneno. Poderia atuar como remédio se possibilitasse a percepção da responsabilidade pela construção da língua com a qual o futuro professor pretende trabalhar. Porém, atua como veneno na medida em que pode ser usada para sacralizar convenções ou para proteger esse gênero textual como se este fosse um objeto sagrado de acesso limitado aos iniciados. A literatura prescrita como remédio pode ajudar o professor a perceber a língua não só como convenção, mas também como invenção. Ou, como pensava o escritor argentino Jorge Luis Borges, pode-se perceber que o livro não é espelho, mas é algo acrescentado ao mundo. Inventado, portanto. Consequentemente, o ato de ler ou de escrever é marcado pela insegurança e pela aventura. O ensino de literatura como veneno pode ser detectado desde a formação básica do futuro professor. Dentre as doses mais elevadas de veneno, encontrase a poesia. Alguns indícios desse envenenamento foram objeto de uma pesquisa anterior (cf. VIEIRA; VERAS, 1994/1996). Descrevia-se aí uma relação altamente intoxicada entre mais de nove mil leitores e uma poesia. Como foi esse trabalho que possibilitou o amadurecimento da idéia desenvolvida nesta pesquisa, ela será detalhada a seguir. A pesquisa mencionada acima discutiu uma questão de leitura que dizia respeito a um poema que constava na prova de inglês do vestibular da UNICAMP/ 93.1 O problema que se observou era que tanto a banca examinadora quanto os professores de colégios pré-vestibulares (cursinhos) esperavam um alto índice de acertos para uma questão, na qual havia uma pergunta sobre um pequeno poema da escritora americana Emily Dickinson. Porém, contrariando as expectativas, aquela foi a questão com o maior índice de respostas em branco de toda a prova de inglês. Os professores dos “cursinhos” publicaram suas críticas à prova. Referiam-se ao poema como sendo, além de muito fácil, ‘super batido no 2º grau’. A partir da leitura desse comentário, foi solicitado à Coordenação Acadêmica da Comissão Permanente para os Vestibulares da UNICAMP (CONVEST) acesso aos dados referentes a esta questão. A expectativa da Banca Examinadora em relação ao poema era de 70% de acertos. De um lado um texto considerado conhecido, do outro uma expectativa bastante

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A questão era : “ Esse poema de Emily Dickinson (1830-1886) apresenta duas maneiras de se encarar as palavras. Explicite-as indicando qual é a da autora.” O poema era: “ A word is dead/ when it is said ,/some say./ I say it just/ Begins to live/That day.”

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otimista dos examinadores. Porém, dentro de um total de mais de nove mil candidatos, o resultado percentual geral, apresentado na figura 2 abaixo, relativo à questão 25 foi: Tabela 1 Notas

Percentagem

Nota 5 (máxima)

34,5%

Notas de 1 a 4

22,5%

Notas zero

25%

Respostas em branco

18%

Essa questão apresentou, além de o mais alto índice de respostas em branco, um dos mais altos de notas zero em toda a prova de inglês do vestibular 93. Ou seja, dos quase nove mil alunos, um total de 42% deixaram a questão em branco ou obtiveram zero em suas respostas. Esta discrepância, entre a expectativa dos que ensinam/avaliam e a performance dos que aprendem/são avaliados, estimulou a reflexão sobre o significado do espaço em branco que se impunha entre o leitor e o texto poético. No caso do poema em questão, o problema não parecia estar em uma simples questão de desconhecimento de língua inglesa, pois a relativa facilidade da questão chamou a atenção dos professores de “cursinhos” que declararam nos jornais ser o poema “um fator de desequilíbrio” na prova, referindo-se ao fato do seu vocabulário ser reduzido e simples, quando comparado aos outros textos mais longos e de vocabulário mais técnico. Onde estava o problema, então? A pesquisa apontava para o gênero textual, pois para preencher o espaço em branco daquela questão, na prova do vestibular, o candidato necessitava colocar-se no lugar da incerteza da poesia, que exige que o leitor assuma sua subjetividade, e os alunos, em geral, não são ensinados a fazer isso na escola. Além disso, a pesquisa (op. cit.,16) salientava que mesmo entre os candidatos que obtiveram a nota máxima, não houve espaço para questões de metalinguagem ou de metáfora. Os resultados da pesquisa acima podem ser melhor entendidos quando observados à luz de trabalhos como o de Averbuck (1993: 64) que trata, em especial, da leitura de poesia em LM na escola no contexto brasileiro e corrobora a constatação da situação crítica da poesia em sala de aula: quer por sua dificuldade quer pela incompreensão da maioria dos professores – a poesia entra na escola marginalmente e os contatos

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que as crianças estabelecem com textos poéticos são (...) raros. A autora acredita que, em se tratando da exclusão da Arte de roteiros programáticos, a escola espelha a atitude da sociedade em geral que é utilitarista. Afirmando que ler um poema é buscar, necessariamente, um (dos) sentido(s), Averbuck (op.cit., 69) define o papel da poesia na escola da seguinte maneira: neste estatuto de ampliação do psíquico, individual e de cognição do universo, o social, realizado pela linguagem, coloca a importância do espaço a ser concedido à poesia na escola e sua verdadeira necessidade numa ação formadora. Para a autora (op. cit., 70), a poesia tem uma natureza discursiva que revela o trabalho da linguagem sobre si mesma, e o papel do professor seria o de um iluminador de caminhos para que a aventura da leitura aconteça.2 Pensando na carga de criatividade e de invenção da linguagem escrita, quer seja ela poética ou não, é fundamental que haja momentos de percepção da natureza essencialmente inventiva do texto durante a formação do professor de LE (e também de LM). Nos cursos de Licenciatura em Letras, o ensino de literatura é obrigatório tanto em LM como em LE. Ou seja, mesmo que a maioria dos aprendizes de Letras (Inglês) optem por tornarem-se professores de língua estrangeira, terão que se deparar com textos literários. No contexto de ensino de LE, existem até mesmo propostas (cf. BRUMFIT e CARTER, 1986) que advogam que o ensino de literatura deva ser inserido no contexto de ensino de inglês como LE.3 Vários autores, que tratam da questão do ensino de literatura, concordam com o fator de risco, sobretudo na leitura de textos poéticos, e buscam alternativas para atenuar a sensação de insegurança que pode acompanhá-lo (chegando até mesmo a transformar-se em pânico). Chiappini e Marques (1993) indicam a atividade em grupo como forma de evitar o isolamento e aumentar a motivação. Lajolo (1993) defende um intricamento de vozes e textos. McNeil (1988) sugere o ato de experienciar o texto, ou seja, fazer o texto mudo falar dialogicamente com os aprendizes, através dos diários dialogados. Brumfit e Carter (1986) sugerem que os professores apenas criem as condições para uma leitura bem sucedida, pois há um número incontável de respostas adequadas, apesar de o poder do professor estar sempre presente na decisão e na escolha dos textos. 2 3

Cf Parmigiani (1997) sobre ausência/presnça de poesia na escola no ocntexto brasileiro Alguns dos motivos mais ressaltados para se aliar literatura ao ensino de línguas são 1) literatura proporciona leitura de texto autêntico; 2) sensibiliza o aprendiz para os esquemas convencionais da língua comum e ajuda a encorajar nos aprendizes a habilidade de inferir sentidos através da interação com o texto; 3) oportuniza momento genuíno de trabalho em grupo assim como exploração aberta de caráter individual; 4) proporciona percepção das funções da linguagem. Cf. Brumfit e Carter, op. cit. (Ver também a esse respeito Adam, 1991:7 e Besse, 1989).

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Sobre este ponto, Long (1986) alerta para o fato de os leitores, mesmo os adultos, não estarem habituados a fazer sentido do texto, já que são freqüentemente guiados pelo professor durante a leitura. Ler por conta própria é como jogar: um arriscar-se permanente, no qual o jogador está sempre ativo e alerta. No jogo da leitura, é preciso que o leitor forme conjecturas para preencher os brancos do texto, ele deve aceitar modificálos, e colocá-los em questão no decorrer da leitura. É nesse momento que o leitor se implica no texto, pois preenchendo os brancos ele traz para o texto suas próprias representações. Porém, na medida em que o texto as invalida, o leitor também se distancia dessas representações. Dessa forma, ele pode se ver lendo: Esta aptidão de se perceber dentro do processo no qual se participa é um momento central da experiência estética, afirma Iser (1985, 242)4. Também para o futuro professor é essencial desenvolver tal aptidão, que pode ser relevante para a prática de um ensino reflexivo. A leitura de literatura pode se tornar uma aliada na formação de melhores professores. Egan (1988, 64), por exemplo, reflete sobre o fazer sentido do texto literário e conclui que isto envolve não apenas o aprender, mas também a atividade construtiva do indivíduo, pois nos leva a observar aqueles elementos proeminentes em nossa construção de sentido, tais como, narrativa, metáfora, analogia. (...) Alguma sensibilidade para a linguagem, então, deve acompanhar-nos em qualquer tópico escolhido. Diante do poético, por exemplo, o professor precisaria se expor a reconhecer, de uma forma acentuada, que ele pode não saber “a resposta”, pois não há uma só alternativa de leitura. A leitura de literatura pode fornecer a intuição da quase infinita interpretabilidade da linguagem de que os textos são constituídos (LAJOLO, 1993.,51). Além disso, o professor precisa se expor, e expor seus alunos, à pluralidade das respostas possíveis e ao risco inerente a essa multiplicidade. Para escapar desse risco ele pode se submeter a um script de autoria alheia, para cuja compreensão ele não foi chamado (LAJOLO, op. cit.,15). Há sempre um roteiro fornecido pelos críticos de plantão, encontrado facilmente nos livros didáticos. No entanto, é sabido que não se pode exigir do leitor comum que domine termos técnicos, por isso entendo, assim como Lajolo (op. cit., 50), que

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Todas as citações de textos cujos títulos se encontrem no original inglês, francês ou espanhol foram traduzidos para o português pela própria pesquisadora, salvo quando explicitado outramente.

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o reconhecimento e a nomeação dos processos formais agenciados por um texto não são fundamentais para que o dito texto seja fruído pelo leitor. Familiaridade com processos formais é da competência, se não do especialista, ao menos do professor de literatura do segundo grau. Se assim não fosse, a fruição de poesia estaria proscrita a todos aqueles que nunca passaram por um curso de Letras.

Assumindo o fato de que mesmo aqueles que passaram, ou passam, por um curso de Letras podem não ter a competência que Lajolo advoga para os especialistas, então torna-se necessário, hoje, buscar subsídios de como essa competência se instaura durante a formação desses futuros especialistas, no momento mesmo em que se dá a leitura poética. A literatura conhecida nos cursos é, em geral, a narrativa. A poesia precisa vencer mais barreiras que a ficção para entrar nos currículos. Há um temor generalizado a seu respeito. Uma prova contundente desse quadro se encontra na observação feita por Zanotto (1992, 244) em relação ao desempenho de participantes, professores de LM, em uma pesquisa sobre leitura em LM. Ao solicitar que lessem tipos diferentes de texto, a autora conclui que, em geral, houve uma insegurança na leitura do texto poético: Pela entrevista retrospectiva com os que fizeram protocolo, com exceção do [participante] No. 6, todos os outros revelaram não ter hábito de ler textos poéticos e apresentaram inclusive certa resistência para a leitura desse tipo de texto (sem grifo no original).

Em outra pesquisa, confirma-se essa primeira evidência. Dessa vez, consolida-se a resistência ao texto poético por parte de sujeitos, também professores, no momento da opção entre fábula e poesia (CAVALCANTI; ZANOTTO, 1994,151): eles preferem claramente a fábula, deixando uma lacuna na área da poesia, o que leva as pesquisadoras a redesenharem a pesquisa. Por isso, concordo com Zanotto que os futuros professores precisam ter a competência metafórica desenvolvida para que possam desenvolvê-la junto aos seus futuros aprendizes, evitando assim a resistência ao poético. A leitura como decodificação, a concepção majoritária encontrada na escola, parece embasar dois motivos mais aparentes para a escassez de leitores de poesia entre professores e aprendizes de Letras. O primeiro envolve a natureza da poesia que apresenta, por excelência, uma linguagem plural que exige do leitor um maior poder de decisão diante das possibilidades de leitura, das polissemias e das ambigüidades; ou seja, o caráter extremo da pluralidade poética encontra considerável resistência por parte de professores que têm visões unívocas e decodificadoras dos sentidos. O segundo envolve o ensino de leitura de poesia na escola e na universidade, pois não é comum dar ao aprendiz a chance de co-construir sentidos, nem a opção de decidir os possíveis significados

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do poema. Para o professor, que também foi ensinado a não decidir, é preferível que todos façam a mesma leitura que, freqüentemente, é aquela que o livro didático oferece como resposta (ZANOTTO, 1990, 118). Na escola, anula-se a ambigüidade, o meio-tom, a conotação – sutis demais para uma pedagogia do texto que consome técnicas de interpretação como se consomem pipocas e refrigerantes (LAJOLO, op. cit., 16). Uma reclamação que se faz constante por parte de adolescentes, mesmo quando lêem poesia em língua materna na escola, é a falta de certeza sobre as respostas válidas – as suas respostas normalmente não correspondem às do professor.5 Também aprendizes universitários de inglês instrumental, com os quais tive contato, não se sentem à vontade quando se trata de ler poesia; em depoimentos informais eles alegam que não sabem fazer isso nem em português e que apenas precisam aprender a ler textos técnicos. Mas até mesmo os graduandos de Letras fazem esse tipo de reclamação. Pode-se entender que o público de adolescentes em escolas secundárias e os alunos de inglês instrumental (normalmente graduandos de áreas técnicas) considere dispensável a leitura de poesia. No entanto, que ocorra esta mesma indisposição, e até mesmo constrangimento, em relação ao poético, por parte de professores de LE em formação inicial (Graduação em Letras), é um fato no mínimo intrigante. É indubitável que existe um embaraço em relação à poesia como gênero textual por parte de professores e aprendizes de LE nos cursos de Letras. Não são poucos os depoimentos de colegas que declaram não se sentirem à vontade para propor um poema como texto a ser discutido em aula. Mesmo entre os professores de literatura, a poesia é, em geral, evitada quando possível pelo seu caráter desconcertante. Ora, considerando que os alunos do curso de Letras serão futuros professores de língua e/ou literatura, então essa resistência se torna preocupante, e deveria se tornar objeto de estudo por parte dos pesquisadores na LA. É exatamente esta a justificativa desta pesquisa. Foi esta ‘pedra’ no meu caminho como professora de inglês como literatura estrangeira6 (LitLE, doravante), que também incomodava meu caminho como professora de inglês como LE, que motivou esta pesquisa. Em resumo, o contexto de ensino no qual estava inserida levou-me a optar por uma investigação sobre como os professores de LE em formação inicial (alunos de um curso de Letras) lêem textos poéticos e como eles reagem ao caráter eminentemente criativo e arriscado que se revela mais fortemente 5

Numa última perspectiva, lembra Lajolo, “o desencontro literatura-jovens que explode na escola parece ser um mero sintoma de um desencontro maior, que nós – professores – também vivemos. Os alunos não lêem, nem nós (...) Mas, ao contrário de nós, os alunos não estão investidos de nada (op. cit.: 16). 6 Adoto a denominação usada por Zyngier (1994) a partir de Birell (1989).

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neste tipo de escrita. Acredito que a leitura de um texto poético seja um momento privilegiado para observar como a percepção dos graus de risco e de invenção da leitura se concretiza, sobretudo, na construção dos enunciados metafóricos, por parte dos aprendizes. 1.1 O problema de pesquisa Tentando combater a resistência à leitura de poesia, procurei princípios norteadores para a minha prática pedagógica que apontaram para a utilização de procedimentos didáticos que concebessem o professor como facilitador de tarefas de leitura (cf. VIEIRA, 1996 e 1999). Essa opção, já muito reiterada no ensino de LE, ainda não encontra eco no âmbito do ensino de literatura e, portanto, tornou-se um item desafiador na prática didática. Os resultados desses procedimentos se mostraram efetivos em sala de aula de LE, por isso optou-se por investigar uma intervenção crítica no contexto de LitLE que implementasse a leitura como um processo não centrado no professor. Assim, tomando como ponto de partida o problema acima identificado, esta pesquisa originou-se da necessidade de investigar como ocorria a interação entre leitores durante a leitura de textos poéticos quando havia a intermediação de um(a) professor(a) durante tarefas especialmente desenhadas. Poucos são os trabalhos que, além de fazer uma ponte entre língua e literatura, discutem o papel do ensino de literatura na formação do professor de LE. Na verdade, existem mais indicações de como usar textos literários na sala de língua estrangeira do que como usar textos literários na própria sala de aula de LitLE sob uma perspectiva mais centrada na interação. Essa realidade pode ser confirmada por pesquisas tais como as de Zyngier (1994), numa perspectiva dos estudos de literatura no Brasil e as de Brumfit & Carter (1986), numa perspectiva dos estudos de língua no exterior. As pesquisas atuais não tratam do problema específico abordado nesta pesquisa, apesar de serem excelentes contribuições para diminuir o abismo existente entre ensino de língua e literatura. Pesquisas como a de Brumfit e Zyngier, apesar de introduzirem questões relevantes acerca do ensino de literatura dentro do âmbito da sala de LE, não focalizam a interação na sala de aula de LE, nem na sala de LitLE. Pesquisas na área da Nova Retórica e da Estilística (CARTER e SHORT, 1989) se aproximam da proposta desta pesquisa, uma vez que se preocupam com o processo de construção de significado de textos poéticos por parte de leitores reais. Porém, não contemplam o aprendiz/leitor/professor em formação inicial, mas sim leitores já especialistas (no caso, os pesquisadores). Mais perto do escopo desta pesquisa estão os Estudos Empíricos de Literatura (STEEN, 1994), que privilegiam leitores/aprendizes reais de LE lendo textos literários e focalizam a leitura de metáforas. O trabalho de Steen, no entanto, não se concentra na leitura de textos poéticos, mas opta sobretudo pela prosa. No

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contexto brasileiro, a pesquisa de Zanotto (1992,1995b,1997a, 1997b, 1998), que se ocupa com leitores reais e enfatiza a leitura de metáforas em textos poéticos em língua materna, traz importantes subsídios para esta pesquisa. No cenário internacional, a pesquisa de Lakoff e colaboradores se coaduna com a proposta desta pesquisa, ao trazer mudanças paradigmáticas para o estudo da metáfora, apesar de não se ocupar com leitores reais nem com leitura em LE. Esta pesquisa está, portanto, ancorada em 1) uma teoria interativa da leitura (CAVALCANTI, 1989); 2) nos estudos empíricos de literatura (STEEN, op. cit. e ZANOTTO, op. cit.); e 3) nos estudos sobre metáforas conceituais (LAKOFF e colaboradores, 1980, 1989, 1993). Dessa forma, esta pesquisa pretende estabelecer ligações entre as pesquisas feitas com leitores reais processando textos em geral e os trabalhos desenvolvidos nessa linha investigando pessoas lendo textos literários, focalizando a leitura de metáforas. Além disso, 4) esta pesquisa não investiga leitores reais isoladamente, pois não traria à tona questões envolvidas diretamente com o ensino de literatura. Portanto, esta pesquisa aborda a leitura como um problema da relação entre a linguagem e outros funcionamentos cognitivos de uma perspectiva da interação (GUMPERZ, 1982), que de acordo com Kleiman (1998,65) é um dos aspectos que ainda deixam a desejar nas pesquisas em leitura em LA na década de 90. Em resumo, esta pesquisa pretende realizar uma análise interacional da leitura de literatura em sala de aula de LitLE, seguindo a proposta de Bloome e colaboradores (1993) de pesquisar o “evento social de leitura” como um todo. Portanto, levando em conta a não existência de pesquisas que aliem investigações tanto acerca da leitura feita por leitores reais, quanto acerca dos leitores reais lendo poesia, como acerca dos leitores/professores reais em formação inicial lendo poesia em sala de aula de literatura em LE, foi elaborado e investigado um projeto de intervenção crítica em sala de aula baseando-se em algumas concepções atuais sobre os tópicos apresentados acima. 1.2 O contexto de pesquisa Propor uma intervenção crítica em uma sala de aula de LitLE, e não em uma de LE, poderia implicar maiores impedimentos para a concretização da pesquisa. Os professores de LitLE, em geral, são bastante fechados à pesquisa colaborativa, talvez devido à falta de conhecimento acerca das pesquisas atuais em LA que cada vez mais indicam a sala de aula como campo essencial para entender o contexto de ensino-aprendizagem (Cf. CAVALCANTI e MOITA LOPES, 1991). As chances de encontrar um(a) professor(a) ministrando aulas de LitLE que imediatamente aceitasse a proposta do trabalho de pesquisa pareciam pequenas. Porém, felizmente, essa dificuldade inicial não se comprovou. A primeira professora procurada aceitou, no primeiro contato, a minha entrada como pesquisadora em sua sala.

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Após o acerto inicial, foi negociada a intervenção e decidida a inclusão de alguns procedimentos para a leitura de poesia (o que não implicava a total modificação do seu programa de ensino, já que a negociação da pesquisa se deu quando o ano letivo a ser observado já havia começado). O objetivo principal dessas intervenções era construir uma interação leitor/texto/professora de forma a: 1) redistribuir os papéis atribuindo ao leitor mais autonomia, à professora menos poder e ao texto mais chances de pluralidade; e 2) proporcionar uma situação rotineira que servisse de base para a análise interacional do evento de leitura que incluísse leitores/texto/professora. Assim, as tarefas se constituíram em atividades rotineiras. Durante o ano da pesquisa, de acordo com as principais características da pesquisa-ação resumidas por Cavalcanti (1996,180) e baseadas em Cohen e Manion (1980), houve avaliação contínua, que levou a incorporação imediata de resultados parciais, e houve também flexibilidade, que levou a constante revisão de práticas de ensino/aprendizagem e dos objetivos e desenho de programas educacionais. Durante as aulas, participei como professora assistente, atuando como instigadora da fala dos leitores, e monitorando as tarefas. A minha participação efetiva enquanto professora assistente em sala de aula, sobretudo durante as tarefas de leitura, tornou-se um novo elemento e, consequentemente, também entrou na análise da interação que ampliou o foco para incluir leitores/texto/ professora e professora assistente (pesquisadora). As sessões de observação e de coleta de dados foram feitas em uma Instituição que oferece, dentro do Curso de Letras, duas disciplinas de LitLE. Dessas, apenas uma disciplina, oferecida no último ano, foi observada. 1.3 As perguntas e os objetivos de pesquisa Como foi dito anteriormente, o ponto de partida para esta pesquisa foi a constatação do silêncio e do constrangimento dos alunos e professores de Letras diante do poético. Decidiu-se, então, investigar uma intervenção crítica que apresentasse uma metodologia de ensino de literatura que proporcionasse a observação de interação face-a-face entre leitores em momentos de leitura de textos poéticos na sala de aula. As perguntas de pesquisa surgiram do acompanhamento das aulas durante as quais foi possível fazer análises exploratórias da primeira intervenção que tinha uma estrutura de tarefa acadêmica chamada de leitura de poesia e discussão em pequeno grupo. As primeiras análises pareciam indicar que se tornava fundamental investigar em detalhes a interação entre os leitores para tentar descrever essa intervenção como um evento social de leitura (BLOOME & EGAN-ROBERTSON, 1993). Um estudo, com este escopo, pode trazer implicações para a pesquisa em leitura na LA, assim como para as pesquisas sobre ensino e leitura de Literatura, e talvez também possa iluminar o debate

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acerca dos estudos sobre a Metáfora. O objetivo da investigação encaminhoua para uma pesquisa de natureza etnográfica, por isso fez-se necessário lançar mão, além de teorias sobre a leitura (Cavalcanti, 1989; Cap. II) e sobre a metáfora (LAKOFF, op. cit.; STEEN, op. cit.), do embasamento teórico da pesquisa sobre Etnografia Escolar (ERICKSON, 1996), para proceder à análise dos dados. No contexto brasileiro, ainda são poucas as pesquisas que estudam a dificuldade de entender sentidos metaforicamente em língua materna (Cf. LOBATO, 1997) ou em LE (cf. NARDI, 1993). Investigar-se-á como leitores, que supostamente têm problemas de leitura quando defrontados com textos poéticos, procedem para realizar tarefas de leitura com esse tipo de texto. Em outras palavras, esta pesquisa estuda as práticas específicas do uso da linguagem em um contexto específico, inserindo-se assim no âmbito atual da pesquisa em LA que tente relacionar questões específicas a uma noção mais ampla de construção social. Além disso, a pesquisa estabelece uma ponte entre leitura de metáforas e a formação de professores, esperando que os pesquisadores na área de metáfora e aqueles na área de formação de professores vislumbrem as correspondências possíveis entre esses dois domínios, a fim que os alunos e futuros professores possam experimentar novas metáforas na sala de aula.

2 A LEITURA NA ESCOLA Dentre as pesquisas realizadas no Brasil sobre o ensino de literatura, vale retomar aqui a pesquisa de Bordoni e Aguiar (1993,22) que aponta para a surpreendente constatação de que na 1a série do 1o grau, o gênero preferido dos alunos é o poema [assim como na 5a série]. Esta constatação ecoa o que dizia Drummond de Andrade (1974, 16): Por que motivo as crianças, de modo geral, são poetas e, com o tempo, deixam de sê-lo?(...) não estará na escola, mais do que em qualquer outra instituição social, o elemento corrosivo do instinto poético da infância (...)?

A metáfora usada por Drummond corrobora a metáfora da escrita como veneno, usada por Ribeiro a respeito do mito egípcio sobre a invenção da escrita. O contexto de intervenção de pesquisa desta pesquisa pretendeu colocar a possibilidade da leitura de poesia como remédio que possibilitasse aos professores em formação inicial a diversidade de interpretações que pode ser tanto maior quanto menor for a influência/presença do autor que pode pretender desautorizar alguns leitores7. A visão de leitura da qual compartilho, na qual há sentido, apesar

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cf. Harold Bloom, Folha de São Paulo, 29/10/1995: pode-se traçar um paralelo entre a angústia/limitação do autor, descrita por Bloom, com a autoridade excessiva do professor que desautoriza leituras pouco ortodoxas, porém adequadas, na sala de aula.

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de ser fonte de problema (REDDY, 1979/1993; SPERBER E WILSON, 1984; CAVALCANTI, 1989), pois os sentidos são indeterminados, e consequentemente as divergências de leituras são esperadas, pressupõe que, se há convergência de leitura, ela deva ser construída com gasto de energia e esforço por parte daqueles que desejam interagir. Uma vez que o ensino de leitura e, mais especificamente, de literatura nas escolas é profundamente influenciado por teorias sobre leitura, é fundamental traçar um breve histórico das concepções de leitura encontradas nas escolas hoje, enfatizando o contexto brasileiro. Apresento abaixo posições sobre a leitura na escola encontradas em autores que focalizam a leitura de diferentes pontos de partida, uns a partir da Lingüística (ORLANDI, 1983), outros a partir da Lingüística Aplicada (CAVALCANTI, 1992) e alguns a partir da Literatura (PERINI, 1987; LAJOLO, 1993; ZILBERMANN, 1993). Para Cavalcanti (op. cit., 224), a leitura, no 1o e 2o graus, tem se pautado por uma visão tradicional, na qual o texto é focalizado como um objeto determinado e a leitura consiste na análise e decodificação desse objeto, não havendo, assim, um espaço para a subjetividade do leitor. Além disso, como complementa Lajolo (op. cit, 21), é impossível esquecer que somos herdeiros de uma tradição educacional pobre e improvisada, a qual precisa ser o contexto de qualquer avaliação do que se tem feito ou dito até agora. É dentro dessa tradição que se localiza o problema da leitura e, em especial, da leitura de literatura na escola. Perini (op. cit.,109-110) lembra que o aprendiz típico já viveu várias tentativas e fracassos de leitura. E aponta essa história como causa para conclusões do tipo: não gosto de ler, leitura não é para mim, eu não preciso ler. Ninguém tem coragem de dizer que não sabe ler. Consequentemente, o professor que, por seu papel social, é obrigado a cumprir sua tarefa sem admitir falhas estruturais de formação, refugia-se nos manuais e nos livros didáticos à procura de guias autorizados que complementem sua formação. Nem sempre o professor se reconhece na descrição feita acima. É mais comum encontrar colegas que tentam camuflar, mais para si do que para os outros, sua frágil formação atrás da roupagem do poder. Dentro da sala de aula, são suas as primeiras e as últimas palavras. É preocupante o poder do professor em determinar as “boas e legítimas leituras”. Esse poder baseia-se na relação necessariamente assimétrica na qual o saber do professor é dominante ao saber do aprendiz. No entanto, é necessário lembrar que, na maioria das vezes, o próprio professor representa, não a sua própria voz, mas aquela do crítico ou a do livro didático. Como muito bem explica Cavalcanti (op. cit., 223): Enquanto se aceitava que a leitura era unívoca e que o critério para avaliar a univocidade era o texto na perspectiva do autor do livro didático ou, eventualmente, na do professor, tinha-se um chão firme para o ensino, embora fosse este o reflexo de uma visão distorcida de leitura.

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Orlandi (op.cit.,70) não esquece do outro lado da questão – a imprevisibilidade, pois para ela, há algumas leituras previstas, mas há muitas possíveis. Ou seja: as leituras têm suas histórias no plural. Esses aspectos são enfrentados cotidianamente pelos professores. Diante deles, muitas vezes se angustiam, procurando respostas para questões tão antigas como ‘Onde está o sentido?’, ‘Quem é o autor?’, ‘Qual o papel do leitor?’, etc. Esses questionamentos são fundamentais e as respostas que cada professor dá a eles se constitui na sua crença sobre o ato de ler e de ensinar a ler. Zilbermann, investigando acerca da crise interna do sistema de ensino, aborda a perspectiva didática da leitura. Para a autora, o maior problema dos livros didáticos é que eles excluem a possibilidade de interpretação e, consequentemente, exilam o leitor, posto que a interpretação é imobilizada quer em respostas fechadas que implicam em geral em escolhas simples, quer em fichas de leitura, que não levam em consideração a experiência pessoal com o texto. A autora tenta unir as dimensões cognitiva, social e pedagógica da leitura, apontando para uma possível solução para a crise que se abate sobre as escolas brasileiras. Fica evidente que a leitura ocupa um lugar de destaque no contexto de aprendizagem e, por conseguinte, a leitura de literatura não poderia deixar de ser influenciada pela crise atual da leitura na escola. Lajolo (op. cit., 119) afirma também que a leitura de literatura está ligada aos esquemas prévios dos leitores: a substituição (...) de certos códigos de leitura por outros, os mais desejáveis em termos de rendimento e eficiência escolar, tal como ela é concebida (...) pode se constituir uma violência (...) se na sua prática a escola desconsiderar as experiências prévias e imagens de leitura e de literatura que sua clientela alimenta. É preciso, pois, investigar que tipos de problemas ocorrem no momento mesmo em que se lê literatura durante interação face-aface levando em consideração as pessoas e seu relacionamento com a leitura. Uma visão de leitura que produz um ensino que não autonomiza o leitor e não permite o risco é incompatível com a poesia, pois este gênero textual traz para a sala de aula um alto grau de indeterminação. Além disso, o texto poético, lugar-tenente das metáforas não-convencionais, constrange professores e silencia alunos se encarado na perspectiva da visão decodificadora de leitura, mas ao mesmo tempo pode instaurar a autonomia e explicitar o processo de intersubjetividade subjacente a qualquer leitura, se visto de uma perspectiva interativa. Permitir a co-construção de leitura de poesia em sala, em pequenos grupos, sem o controle excessivo do professor, pode ser um recurso rico em desdobramentos para a pesquisa e para o ensino de leitura de literatura. Por isso, esta pesquisa observará como aprendizes de Letras lêem um texto poético, em pequenos grupos, como eles reagem ao caráter eminentemente criativo e arriscado que se revela mais aparente neste tipo de escrita. Esta pesquisa

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observará ainda como a especialista/professora assistente intervém durante a leitura. O texto poético parece ser um local privilegiado para verificar o grau de autonomia de leitura destes aprendizes. A autonomia pode ser observada, sobretudo, na co-construção dos enunciados metafóricos.

3 A LEITURA COMO EVENTO SOCIAL Conceber a leitura como um processo interativo-bidirecional, e também intersubjetivo e co-construído, no qual os sentidos são indeterminados, implica ampliar o universo de pesquisa em leitura para incluir o contexto sociocultural no qual esta leitura ocorre. É imprescindível levar a investigação para a própria interação entre as pessoas lendo. Por isso, apresento nesta seção a contribuição que Bloome e colaboradores (1983, 1989, 1991, 1993) trazem para os estudos sobre leitura ao incorporar e focalizar, no contexto da sala de aula, a interação entre pessoas durante o ato de ler. Para Bloome e Bailey (1989, 201) não é mais possível discutir questões lingüísticas sem investigação etnográfica, sem situar o uso da linguagem, sem ver o evento como primário. Ao mudar o foco da análise, que não mais se restringe à interação entre o leitor e o texto, Bloome amplia as possibilidades de pesquisa nessa área. Analisar a leitura, a partir do modo como as pessoas interagem entre si no momento mesmo em que estão lendo, é investigar a leitura assumindo sua natureza social. Em outras palavras, conceber a visão de leitura como interativa preocupando-se em investigar tanto os componentes lingüísticos quanto a concretude do leitor leva necessariamente a uma pesquisa aplicada (na LA) ou empírica (como preferem chamar nos estudos literários). Nesse sentido, é fundamental detalhar a proposta de pesquisa de Bloome. Em diversos trabalhos, Bloome explora o conceito de leitura como evento social. O conceito de evento, resumido em Bloome e Bailey (op. cit., 185-187), é entendido como A interação face-a-face de pessoas em uma seqüência discursiva que tenha um começo, meio e fim reconhecidos. Os eventos são, assim, construídos pelas ações e reações das pessoas em relação umas as outras. (...) Eventos também se referem a interação das pessoas com o meio ambiente social (...) Em todo evento, as pessoas estão negociando suas identidades e relações sociais.

Bloome acredita que os diversos eventos de leitura, na sala de aula, em casa ou no ambiente de trabalho, são social e culturalmente constituídos e sugere estudos micro-etnográficos para entender o fenômeno. Para Bloome, o leitor interage não só com o texto, mas também com o autor, com outros textos e com as pessoas em volta no momento da leitura, por isso todos esses elementos

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devem ser levados em conta na pesquisa sobre leitura. É necessário focalizar a relação entre as pessoas envolvidas no ato de ler, pois assim, como em outros atos sociais, a leitura é vista como uma atividade pela qual as pessoas se orientam em direção às outras, adquirem status ou posição social adquirem acesso a compensações ou privilégios, e se engajam em vários tipos de interação social (1983,165). Bloome sugere que os eventos de leitura se constituem de várias pessoas interagindo tanto umas com as outras quanto com o texto. Ao encarar a leitura como evento social, abre-se o campo para o pesquisador observar a relação entre a forma como os eventos são construídos e os aspectos cognitivos aprendidos pelos atores através da atuação no evento. Bloome resume em duas as premissas básicas que embasam o conceito de leitura como evento social: 1) os processos cognitivos em jogo no evento de leitura se conectam tanto ao contexto social como à estrutura do evento; e 2) as habilidades cognitivas aprendidas durante a atuação no evento dependem da natureza do mesmo. Bloome e Bailey (1989, 183) afirmam que: por conceber o evento como primário, as pessoas e a linguagem são definidas como inerentemente sociais e orientadas para o outro; o sentido é localizado no evento mais do que na cabeça das pessoas. Além disso, ao enfatizar o evento a pesquisa é forçada a interrelacionar as bases teóricas e as realidades do evento em si (incluindo as realidades das interpretações).

Como é possível perceber, a posição de Bloome está plenamente de acordo com os postulados de pesquisa na área da Sociolingüística Interacional, que vê os eventos comunicativos como construídos pelos participantes engajados em situações face-a-face. Essa visão de Bloome sobre interação social é ampla e também abriga a noção de intertextualidade, que descreve um dos processos sociais e culturais envolvidos na forma como as pessoas agem e reagem em relação aos textos; Bakhtin, (1935/1981) e Bloome (1983). É na interação que se encontra a significação mesma do evento, é através dela que alguns sentidos são mais determinados e é aí que se adquire a consciência da indeterminação do sentido. A interação busca uma convergência de definições partilhadas sobre o evento. O contexto do evento tanto é pano de fundo (background) como cena (foreground), pois o sentido refere-se ao contexto e é construído na evolução deste. Os eventos de leitura também podem ser inseridos nessa noção de contexto, já que o sentido em um evento de leitura é construído através da negociação do contexto do evento. Nessa mesma linha, algumas pesquisas recentes em LM no Brasil, como a de Zanotto (1997a) e Canolla (1997) vêm investigando a leitura, sobretudo de textos literários, como evento social. Esses trabalhos apontam para a filiação de Bloome tanto às pesquisas em Sociolingüística Interacional (GUMPERZ,

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1982), como às pesquisas de perspectiva sociointeracional (BAKHTIN, 1981 e VYGOTSKY, 1991). A forte influência da Sociolingüística Interacional nos trabalhos de Bloome sobre letramento está ancorada, primeiro, na necessidade de pesquisas multidisciplinares e, em segundo lugar, na ênfase dada hoje ao particular, ao invés da ênfase na generalização. Bloome e Bailey (op. cit., 182) declaram que: Mais que uma busca por universais, há hoje uma ênfase crescente no específico: o que acontece em um lugar específico, em um tempo específico, com um grupo específico de pessoas engajadas em uma atividade e em um evento específico.

O que torna o lugar, o tempo, o grupo, a atividade e o evento específico importante para a pesquisa é justamente o que isso significa para as pessoas envolvidas, para os outros e para os outros eventos. Bloome afirma estar interessado em estabelecer as bases para uma nova direção nas pesquisas em Lingüística e Educação. Como já foi dito anteriormente, seu projeto de pesquisa envolve, além das noções de evento e especificidade, o conceito de intertextualidade (Cf. BLOOME E EGAN-ROBERTSON, op. cit., 308) que é definido como uma co-construção social, localizada na interação, durante a qual textos são justapostos em níveis múltiplos. Porém, para que exista intertextualidade, é necessário que os participantes da interação proponham esta justaposição e que ela seja reconhecida durante a interação e tenha significado social. Por exemplo (BLOOME, op.cit., 330), os leitores podem usar a intertextualidade para 1) auto-definir seus papéis; 2) estabelecer grupos; 3) identificar e validar eventos prévios como fonte de conhecimento; 4) construir, manter e contestar ideologia cultural das interações em sala.

4 A INTERVENÇÃO NO CENÁRIO DE PESQUISA Pela dificuldade de encontrar um contexto de ensino que apresentasse uma proposta metodológica privilegiando o ensino de literatura centrado no leitor, optei por uma observação participativa com intervenção tanto na proposta do conteúdo do curso como na escolha metodológica. Constatei, após observação em outros contextos de ensino de LE, que a metodologia de leitura de literatura podia ser definitiva para mudar a situação generalizada de constrangimento e silêncio, sobretudo, diante de textos poéticos. Tomou-se por base autores como Lajolo (1993) e Braga e Busnardo (1993) para implementar a proposta de intervenção. Lajolo vê, no jogo da leitura, leitor e escritor reunindo-se pelo ato radicalmente solitário da leitura (op. cit., 52). O que interessa aqui é como os aprendizes são ajudados a desempenhar seu papel nesse ato, muitas vezes, solitário. Ou seja, como o professor, considerado um leitor maduro pelos seus

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aprendizes, os ajuda a tornarem-se maduros também. Utilizo aqui o conceito de Lajolo (op.cit.,.53) para “leitor maduro”: é aquele para quem cada nova leitura desloca e altera o significado de tudo o que ele já leu, tornando mais profunda sua compreensão dos livros, das gentes e da vida (...) O privilégio da leitura do mestre decorre do seguinte fato: geralmente, a leitura do leitor maduro é mais abrangente do que a do imaturo.

No contexto de ensino de literatura em LM, Lajolo acredita que é necessário que o professor não seja ele mesmo um mau leitor, portanto ele precisa ter gosto pela prática da leitura. Dentro do contexto de leitura instrumental de LE, Braga e Busnardo (op. cit., 3) propõem, numa linha Vygotskiana, que haja intervenção do professor de forma a acelerar e a avançar o processo de aprendizagem de leitores adultos de LE através de procedimentos em sala de aula que fomentem o conhecimento metacognitivo e metalingüístico. A proposta de intervenção do professor, um leitor maduro, objetivando o avanço da leitura adaptou-se bem à sala de aula de literatura em LE durante a formação inicial (Curso de Letras) de professores. A formação inicial se constitui num espaço essencial no qual o futuro professor pode aprender a ser um bom leitor, já que muitos dos aprendizes desses cursos possuem problemas de leitura decorrentes do nível anterior de ensino. No caso específico do contexto de intervenção (leitura de poesia e discussão em pequenos grupos), devido à falta de familiaridade com a tarefa, a atividade foi desenhada de forma a proporcionar ajuda do tipo andaime (“scaffolding” para VYGOTSKY, 1991), na qual os aprendizes atingem objetivos e resolvem tarefas sendo auxiliados. Nesse sentido, o próprio trabalho em grupo proporciona a ajuda dos pares, e, além disso, admite também a ajuda concomitante das professoras. O programa do curso foi sendo re-elaborado durante negociação e reflexão com a professora responsável, dentro da proposta de pesquisa-ação. A metodologia privilegiava a leitura de textos poéticos e discussão em grupo, porém, tanto ficção quanto drama, assim como aulas expositivas, seminários, e leitura extra-classe também foram utilizados. A discussão de textos poéticos foi realizada em pequeno e grande grupo. Como já foi dito anteriormente, a participação de Clara em sala se deu tanto como observadora silenciosa como colaboradora efetiva (professora assistente) na realização de tarefas que envolviam leitura e discussão em grupo, desenhadas especialmente para a pesquisa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS A sala de aula de língua estrangeira tem recebido inúmeros pesquisadores interessados em observar as condições de ensino-aprendizagem. Por sua vez,

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dentre os pesquisadores de literatura, é muito baixo o número daqueles que buscam, na sala de aula de literatura, respostas para questões que são comuns à área de leitura e de literatura, como, por exemplo, conhecidas dificuldades que os aprendizes de LE têm em relação à leitura de enunciados metafóricos. Estabeleceu-se aqui uma tentativa de diálogo entre a Literatura e a Lingüística Aplicada acerca da leitura de enunciados metafóricos em textos literários em sala de aula. A co-construção deste diálogo não se trata de coisa óbvia ou de fácil aceitação. Aqueles que hoje estão empenhados nesse diálogo muitas vezes sentem-se no limbo. Nem estão no ‘centro’ da Literatura, nem no ‘centro’ da LA, mas na própria relação entre as duas áreas. Essa posição remete, algumas vezes, a flutuações de identidade: os pesquisadores da Literatura os vêem como lingüistas aplicados que tocam a Literatura tangencialmente, enquanto os lingüistas aplicados os vêem como estudiosos da Literatura que se desviam da Lingüística Aplicada. Estar no limbo tem também suas vantagens. Do limbo se ganha distanciamento do emaranhado das respectivas áreas, repleto de questões específicas, obtendo-se uma visão mais abrangente, pois a exposição à multiplicidade leva a um distanciamento tremendamente salutar do pesquisador em relação ao seu próprio universo de referência (SIGNORINI, 1998,108). No Brasil, a pesquisa sobre o ensino de literatura em LM tem contribuído para um entendimento mais amplo sobre a questão da leitura em geral. Esta pesquisa pretendeu demonstrar como a pesquisa sobre o ensino de LitLE pode fazer o mesmo. Compreender como aprendizes de graduação lêem literatura em inglês está necessariamente ligado ao tipo de relação que tiveram com literatura em língua materna na escola. Por isso, o âmbito desta pesquisa envolveu um olhar sobre os resultados das principais obras acerca do ensino de literatura em LM no Brasil. Esta pesquisa pretendeu ser a concretização de uma espécie de ponte necessária entre Literatura e Lingüística Aplicada. Outros autores já recorreram à analogia da ponte (cf. CELANI, 1998) para falar da própria natureza da pesquisa em LA. Esta pesquisa tentou se pautar pelo princípio de que os estudos da literatura precisam ser empíricos, por isso envolveu necessariamente fatos sobre as ações das pessoas durante a leitura, investigando leitores reais e situados. O contexto de pesquisa delimitou, forçosamente, seu escopo. Foi dentro de um contexto interventivo de ensino de inglês como literatura estrangeira que esta pesquisa realizou investigações acerca do ato de ler e de falar sobre textos poéticos. Partindo de análises preliminares dos dados obtidos neste contexto, focalizei um dos tipos de evento. Buscando instrumentos para investigar a questão da leitura no contexto de sua ocorrência, optou-se por uma adaptação do protocolo verbal em grupo (Brown & Lytle, 1988), também chamado de discussão espontânea do texto em grupo (Zanotto, 1990). Nesta pesquisa, o procedimento é denominado de leitura

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de poesia e discussão em pequenos grupos. O instrumento permitiu a constituição de tarefas de leitura nas quais os leitores, em pequenos grupos, liam um mesmo poema e discutiam sobre esse texto comum. Ou seja, verbalizam para os colegas como estavam fazendo sentido do texto, explicitando problemas, discutindo soluções, externalizando opiniões, etc., sem recorrer sempre à professora, que atuava como facilitadora da tarefa. Gravadas em áudio e/ou em vídeo, tarefas desse tipo possibilitaram, para fins de pesquisa, investigar os processos dos leitores, dentro de atividades de leitura que ocorreram naturalmente (Brown & Lytle, op. cit.). Além disso, esse recurso permitiu aliar a busca por um instrumento que viabilizasse um grau mínimo de introspecção por parte do leitor investigado, ao mesmo tempo, que não desvinculasse esse leitor do seu contexto de aprendizagem.

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Tânia Aires Costa *

DIÁRIO DE LEITURA COMO INSTRUMENTO DE AÇÃO DIDÁTICA: UMA EXPERIÊNCIA (Reading diary as instrument of didactic action: an experience) ABSTRACT This article has as specific purpose to accomplish a critical and reflexive analysis of an experience involving the daily reading discursive genre as an alternative form of didactic action for the development of teachers’ literacy, in a maternal language initial formation teachers’course, in Natal/RN. Therefore, we will lean on in the literacy concept as a social practice (KLEIMAN [1995] 2001), in the discursive genre conception of the Bakhtinian base and in the reading diary understanding of a genre whose main objective is to maintain, reflexively, a dialogue with the author of the text (MACHADO, 1998). For the proposed analysis, we will use, as an instrument, four teachers in formation reading diaries passages and we will focus how the dialogue between reader and writer is evidenced. Keywords: literacy – teacher’s formation – reading diary. RESUMO Este artigo tem por objetivo precípuo realizar uma análise crítico-reflexiva de uma experiência envolvendo o gênero discursivo diário de leitura como uma forma alternativa de ação didática para o desenvolvimento do letramento do professor, em um curso de formação inicial de professores de língua materna, em Natal/RN. Para tanto, nos apoiaremos no conceito de letramento como prática social (KLEIMAN[1995] 2001), na concepção de gênero discursivo de base bakhtiniana e na compreensão de diário de leitura como um gênero cujo objetivo maior é manter reflexivamente um diálogo com o autor do texto (MACHADO, 1998). Para a análise a que nos propomos, utilizaremos, como instrumento, trechos de diário de leitura de quatro professoras em formação e focalizaremos como se evidencia na escrita delas o diálogo entre leitor e escritor. Palavras-chaves: letramento – formação de professor – diário de leitura.

Aprende-se a ler lendo e refletindo sobre o lido. (KLEIMAN)

INTRODUÇÃO Tanto no âmbito da pesquisa acadêmica quanto na sociedade de um modo geral, tem-se discutido a qualidade da formação leitora dos professores que atuam na educação básica e daqueles que buscam a formação profissional. As discussões levadas a termo na esfera mais restrita da formação acadêmica tomam, por um lado, como ponto principal do debate a crítica à “falta de desenvolvimento das competências leitoras”, reconhecendo-se assim, um “despreparo” dos professores alunos para dar conta, conforme o esperado, das * IPESP - RN

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leituras dos textos ali exigidas. Por outro lado, o debate pauta-se no pressuposto de que todo leitor tem sua história de leituras e, portanto, isso deve ser levado em consideração, do mesmo modo que se advogam a busca de alternativas que possam, de fato, contribuir para o letramento daqueles que freqüentam os bancos escolares. Exemplo disso é o gesto de Kleiman (2001) que não só reconhece que a academia tem feito pouco no sentido de levar em consideração a origem dos professores que lá chegam, mas também conclama que, na sala de aula universitária, sejam desenvolvidos programas de formação culturalmente sensíveis, além de admitir que ali também é, potencialmente, um contexto de comunicação intercultural. É justamente nesta segunda perspectiva que se insere este artigo. Nele, buscamos descrever de modo crítico-reflexivo uma experiência envolvendo a adoção do gênero discursivo diário de leitura como uma forma alternativa de ação didática para o desenvolvimento do letramento do professor em formação inicial, com relação aos textos de circulação na esfera acadêmica. Conforme nos ensina Bazerman (2005, p. 23): “(...) numa sala de aula, o trabalho de um professor freqüentemente serve para definir gêneros e atividades, e, fazendo isso, criar oportunidades e expectativas de aprendizagem”. Para efetivar o que nos propomos, faremos, inicialmente, uma breve apresentação de alguns construtos teóricos do trabalho, quais sejam: o conceito de letramento, o conceito bakhtiniano de gênero discursivo e o conceito de diário de leitura. Em seguida, exporemos a análise e discussão de trechos do diário de leitura de quatro (4) professoras alunas, focalizando as marcas discursivas que evidenciam a relação dialógica entre leitor e autor. O artigo termina com considerações sobre os resultados preliminares dos dados observados. A motivação para intervir na formação leitora nos nossos professoresalunos adveio dos depoimentos informais e orais com relação às dificuldades em compreender satisfatoriamente os textos apresentados à medida que algumas disciplinas que compõem o currículo do curso iam sendo estudadas e também da expressa preocupação dos professores – especialmente os de língua portuguesa – com essas dificuldades. Foi visando justamente essa intervenção que propusemos a prática do diário de leitura. Com isso, objetivávamos que o diário funcionasse como um instrumento de ação didática e que proporcionasse aos alunos um “pensar sobre suas próprias ações verbais, e não simplesmente sobre o conhecimento em si mesmo” (MACHADO, 1998, p. 240). Consideramos que a adoção do diário de leitura, com o propósito de desenvolver as práticas de leitura dos nossos professores-alunos, é uma prática de letramento necessária, pois, como afirma Mey (2001), a ação necessária deve ser avaliada de acordo com as necessidades daqueles que devem agir. Além disso, concordamos com Kleiman(2001) quando afirma que o professor tem que mostrar, através das atividades que realiza, que vale a pena ensinar, aprender e praticar a leitura.

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A referida experiência foi desenvolvida com professores alunos do 3º período do curso de Letras do Instituto de Educação Superior Presidente Kennedy localizado em Natal – RN. Mais precisamente, nas aulas de Semântica por nós ministradas. Os conteúdos da disciplina foram estudados utilizando-se, além dos procedimentos comuns em eventos de aula, o instrumento diário de leitura, o qual serviu para o registro dos diálogos reflexivos entre leitor e autores dos textos.

LOCUS DE ONDE FALAMOS Neste trabalho nos apoiaremos no conceito de letramento como prática social (KLEIMAN, 2001[1995]), no conceito de gênero discursivo de base bakhtiniana e no conceito de diário de leitura como um texto produzido por um leitor à proporção que lê, tendo em vista dialogar de forma reflexiva com o autor, conforme advoga Machado (1998; 2001; 2006 no prelo). Desse modo, teceremos breves considerações sobre tais conceitos. Para Kleiman (2001[1995] p. 19) letramento é “um conjunto de práticas sociais que usam a escrita, enquanto sistema simbólico e enquanto tecnologia, em contextos específicos, para objetivos específicos”. Ou seja, são práticas que ocorrem nas mais diferentes situações, nos diversos contextos e nas diferentes atividades da vida das pessoas. Ainda segundo a autora, o surgimento desse conceito adveio da necessidade de se separar os estudos sobre a alfabetização, no sentido restrito, dos estudos/ pesquisas sobre as práticas letradas socialmente determinadas. Vale ressaltar que, no Brasil, o termo letramento só recentemente foi introduzido no discurso de especialistas das áreas de educação e de lingüística. Ou seja, foi na segunda metade do século passado, precisamente, em 1986, que o termo letramento surgia no cenário educacional brasileiro. Segundo Matêncio (2003, p. 1), existem, há bastante tempo, no Brasil, textos que tematizam a questão do letramento, sem, contudo, mencioná-la explicitamente. Para sustentar a afirmação, a autora cita um trecho da conferência de abertura do 1º Congresso de Leitura do Brasil, realizada por Haquira Osakabe, em que ele deixa explícito que “escrita e leitura são formas através das quais o sujeito se constitui enquanto tal pela linguagem”. Desse modo, Matêncio reafirma que, sob essa perspectiva, “escrita e leitura são compreendidas como práticas de linguagem que possibilitam formas específicas de o sujeito estabelecer relações sociais e construir sua identidade”. De fato, nas duas últimas décadas do século passado, o modo de pensar em relação à leitura e à escrita vem-se transformando bastante. Estudiosos têm mudado suas visões no que se refere à linguagem e ela passa a ser vista como um processo dinâmico em contextos significativos da atividade social em todos

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os seus aspectos, quer sejam eles: familiares, comunitários, profissionais, religiosos etc. Mas, então, qual é a origem do termo letramento? É possível assumirmos uma concepção única dessa palavra? Kleiman (1995) e Soares (1998), ao discutirem a origem do termo letramento, afirmam que este começou a ser utilizado, no Brasil, por especialistas das áreas de educação e das ciências lingüísticas a partir da publicação da obra de Mary Kato – No mundo da escrita: uma perspectiva psicolingüística, 1986 – em que a autora afirma que a língua falada culta é conseqüência do letramento. Ainda na mesma década (80) surge na área educacional o livro Adultos não Alfabetizados: o avesso do avesso (1988) de autoria de Leda Verdiani Tfouni, em que a referida autora, logo na introdução do livro, apresenta a distinção entre alfabetização e letramento. Ao confrontar alfabetização e letramento, Tfouni (1995, p. 20) destaca o caráter individual da primeira e o social do segundo: A alfabetização refere-se à aquisição da escrita enquanto aprendizagem de habilidades para a leitura, escrita e as chamadas práticas de linguagem. Isto é levado a efeito, em geral, por meio do processo de escolarização e, portanto, da instrução formal. A alfabetização pertence, assim, ao âmbito do individual. O letramento por sua vez, focaliza os aspectos sócio-históricos da aquisição da escrita. Entre outros casos, procura estudar e descrever o que ocorre nas sociedades quando adotam um sistema de escritura de maneira restrita ou generalizada; procura ainda saber quais práticas psicossociais substituem as práticas “letradas” em sociedades ágrafas.

Para Matêncio (2003), a investigação acerca da relação entre alfabetização e letramento implica que sejam revistos e redimensionados vários outros conceitos tais como: o de ler e escrever, o de língua escrita e língua falada (e de suas relações), o de práticas orais e de práticas escritas de produção de textos. Conseqüentemente, exige, também, que se repense o que é ensinar e aprender uma língua e seus usos. Em 1995 e 1998, Angela Kleiman e Magda Soares lançam Os significados do Letramento e Letramento: um tema em três gêneros, respectivamente, contribuindo, assim para as discussões e reflexões teóricas e metodológicas acerca do fenômeno letramento. Ainda, segundo Kleiman, inicialmente os estudos sobre letramento enfocam-no a partir do século XVI, no momento em que a escrita passou a ser introduzida/exigida nas sociedades industrializadas de forma mais significativa, transformando, assim, as relações entre os indivíduos e o meio em que vivem. Daí, então, e segundo a referida autora, os estudos que contemplavam o letramento preocupavam-se em examinar a expansão da sociedade que, de certa forma, acompanhou a introdução e o desenvolvimento dos usos da escrita. Na realidade,

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esse desenvolvimento social ocorreu em função de vários marcos históricos daquela época, tais como: emergência do Estado como unidade política; a formação de identidades nacionais não necessariamente baseadas em alianças étnicas ou culturais; as mudanças socioeconômicas nas grandes massas que se incorporavam às formas de trabalhos industriais;a emergência da educação formal (KLEIMAN, 2001[1995] p. 16).

Todos esses marcos históricos e sociais fizeram com que a escrita ganhasse importância cada vez mais acentuada na sociedade. Já com relação aos impactos dos estudos do letramento no ensino, essa pesquisadora aponta que: 1. as práticas de leitura e de produção de textos escritos são extremamente abrangentes; 2. a relação entre oralidade e escrita não é de opostos, mas de um contínuo; 3. as práticas de uso da escrita são dependentes do contexto (KLEIMAN, 2002, p. 45). Considerando esse último ponto, podemos inferir que o letramento é determinado tanto do ponto de vista contextual como do ponto de vista cultural, “pois os impactos da escrita diferem de sociedade para sociedade e de grupo para grupo dentro de uma mesma sociedade” (KLEIMAN, 2001, p. 92-93). Quanto ao conceito de gêneros discursivos, estes são compreendidos como realizações das interações produzidas na esfera de comunicação verbal. Segundo Bakhtin (2000, p. 302): Os gêneros do discurso organizam nossa fala da mesma maneira que a organizam as formas gramaticais (sintáticas). (...) Se não existissem os gêneros do discurso e se não os dominássemos, se tivéssemos de criá-los pela primeira vez no processo da fala, se tivéssemos de construir cada um de nossos enunciados, a comunicação verbal seria quase impossível.

Para ele, cada esfera da comunicação social apresenta “tipos relativamente estáveis de enunciados”. Desse modo, como são heterogêneas as esferas sociais, heterogêneas serão também os gêneros realizados nessa sociedade. Apesar dessa heterogeneidade, Bakhtin estabelece uma diferença entre dois tipos de gêneros: primários e secundários. O autor considera gêneros primários todas as circunstâncias em que uma comunicação verbal é realizada espontaneamente, tais como a réplica do diálogo ou a carta. Já os gêneros secundários são aqueles que aparecem em circunstâncias de comunicação mais complexas, como é o caso de um romance, do discurso científico, entre outros. Sendo assim, os gêneros primários e secundários possuem determinados referentes, uma determinada forma de composição e um determinado estilo. Ainda conforme Bakhtin, cada indivíduo produz enunciados; estes podem transformar-se em gêneros. Ou seja, os usuários de uma determinada esfera social de atividade produzem enunciados, que por sua vez gerarão gêneros, os

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quais possuirão um tema, um estilo e uma composição que refletem a esfera social no qual são produzidos. Vale ressaltar que a concepção de linguagem – decisiva para o trabalho em sala de aula – aqui adotada filia-se à concepção bakhtiniana de linguagem, já que para esse filósofo, a verdadeira substância da língua é constituída pelo fenômeno radical da interação verbal. (BAKHTIN; VOLOCHINOV, 1999, p.123). Ou seja, a interação é entendida como constitutiva e sustento da condição humana. Dessa maneira, a interação pela linguagem é um acontecimento que reúne dois ou mais sujeitos, e tal relação é sempre mediada pelo signo ideológico. A palavra, em sua expressão tanto oral como escrita, é o elemento semiótico material que torna viável a interação entre sujeitos. Com relação à leitura, entendemos que esta não é aceitação passiva, mas construção ativa. É no processo de interação desencadeado pela leitura que o texto se constitui. Nessa perspectiva, concordamos com Faraco ( 2000, p. 101), posto que para esse autor ler pressupõe uma compreensão responsiva, o que implica reagir ao texto, darlhe uma resposta, identificando as vozes sociais que o compõem, e concordando com elas, ou delas discordando; rindo delas, emocionando-se com elas, aplaudindo-as, rejeitando-as, assimilando-as, repetindo-as, redizendo-as, assimilando-as, parodiando-as.

Enfim, a leitura é entendida como atividade interlocutiva e nesse processo o leitor mobiliza diversas capacidades de linguagem que envolvem diferentes tipos de conhecimentos: conhecimentos de mundo, conhecimentos sobre o funcionamento da linguagem e sobre os gêneros discursivos. Sobre o conhecimento dos gêneros, Machado (2006) nos informa que é quase consensual entre os pesquisadores do ensino e aprendizagem de língua materna e estrangeira a tese de que se tivermos conhecimento sobre o gênero discursivo ao qual o texto a ser lido pertence, isto pode facilitar a leitura. No tocante ao diário de leitura, cumpre esclarecer que se trata de “um novo instrumento semiótico”, como bem nos informa Machado (1998) em sua obra O diário de leituras: introdução de um novo instrumento na escola. Ainda segundo a autora, os diários de leitura “configuram-se como artefatos disponibilizados pelo professor para os seus alunos, artefatos esses, que podem, quando apropriados pelo aluno, constituíremse em verdadeiros instrumentos tanto para o desenvolvimento de suas capacidades de leitura quanto para a instauração de novos papéis para o professor e para os alunos nas aulas de leitura” (MACHADO, no prelo, p.2).

Continuando, a referida pesquisadora lembra-nos que a produção de diário

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é uma prática social bastante recorrente entre escritores, cientistas e filósofos, os quais salientam a importância do seu uso para o desenvolvimento da escrita, do trabalho intelectual e para o desenvolvimento pessoal. Prova disso é o que nos assevera o pesquisador da educação Zabalza (2002, p. 17): Nos contextos de formação, os diários dos estudantes são particularmente importantes (na minha opinião, são evidentemente necessários) quando eles devem enfrentar suas aprendizagens práticas, ou quando estão diante de situações reais de aprendizagem profissional ou pessoal (...)

Bazerman (2006, p. 16) comenta que “a escrita de diários tem sido incorporada até na prática terapêutica para pessoas que sofreram traumas ou que estão passando pelas principais transições da vida”. Kleiman (1999) destaca um aspecto relevante acerca do diário de leitura. Para ela, a utilização do diário de leitura, diferentemente de outros gêneros escolares, possibilita uma situação de produção de textos através da construção ao invés da reprodução, esta última tão comum na situação escolar. Assim, foi considerando o diário de leitura como um instrumento importante e eficaz para o desenvolvimento do letramento dos nossos professores-alunos que o adotamos em sala de aula. Acreditamos plenamente como Machado – nossa experiência demonstrou – que a introdução do diário de leitura em contexto escolar pode sim levar alunos e professores a outras formas de conduta durante a atividade de leitura e conduzilos a uma compreensão mais ativa.

CONTEXTUALIZANDO A EXPERIÊNCIA Os dados aqui apresentados foram gerados a partir dos textos produzidos entre 22 de maio e 12 de julho de 2006, período em que ministramos a disciplina Semântica para a referida turma. Os sujeitos da experiência são quatro professoras alunas com faixa etária entre 30 e 50 anos, estudantes do 3º período do curso de Letras (formação inicial) de uma instituição de nível superior da rede estadual de ensino – Instituto de Educação Superior Presidente Kennedy – localizada em Natal – RN. Todas exercem o magistério, com experiência de sala de aula variando entre 6 a 20 anos. Para o desenvolvimento do trabalho explicitamos, no primeiro encontro, o nosso objetivo com a inserção do diário de leitura no plano de curso da disciplina. Em seguida, realizamos uma discussão, a partir dos conhecimentos prévios dos professores-alunos, acerca do gênero diário e, especificamente, sobre o diário de leitura. Após essa sondagem, iniciamos um breve estudo sobre o diário de

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leitura, tendo como suporte teórico o texto de Anna Raquel Machado, O diário de leitura: ferramenta para uma leitura crítica do texto. Esse estudo consistiu em leitura, discussões e exercícios envolvendo o tema. É importante ressaltar que os professores-alunos também receberam informações precisas sobre a forma de execução da atividade proposta, considerando-se o tempo e o espaço destinados para sua realização, período de entrega para leitura pela professora, discussão dos textos (individual e em grupo). Outro ponto bastante enfatizado foi quanto ao objetivo da leitura que seria realizada pela professora. Dessa forma, ficou assegurado que a escrita do diário seria feita livremente, pois a leitura da professora não tinha por objetivo corrigilo, mas, essencialmente, perceber a interlocução do diarista com o texto lido. Para ratificar o que dissemos, expusemos explicitamente a afirmação de Machado: o professor pode desviar seu olhar do produto final da leitura como um fim em si mesmo, para observar o aluno, considerando com alguém que se encontra em um processo de desenvolvimento de suas capacidades internas, que são relacionadas diretamente ao desenvolvimento de novas relações sociais desencadeadas na atividade de produção e discussão dos diários.

Sobre a realização da atividade propriamente dita, foram dadas as seguintes instruções: os professores-alunos registrariam o que julgassem mais interessante no texto, tanto em relação à forma quanto ao conteúdo, e relacionariam as informações contidas no texto com outros conhecimentos que já possuíam. Também foram orientados para que expusessem suas impressões sobre os textos lidos.

ANALISANDO OS DIÁRIOS DE LEITURA A análise aqui relatada contempla fragmentos de quatro diários de leitura, focalizando as marcas discursivas que evidenciam a relação dialógica entre leitor e autor. Fragmento 1 No primeiro olhar ao título do texto “Objeto da Semântica”, de Helena Marques, fiquei pensando que iria apropriar-me de uma definição clássica da Semântica. No entanto, para minha surpresa, “não há consenso quanto à delimitação do que seria objeto da Semântica”. Isabel, 30 anos, 6 de magistério – Ensino Fundamental.

Diferentemente de outros gêneros relacionados à leitura como o resumo,

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por exemplo, no diário de leitura a escrita é mais subjetiva, o que podemos constatar neste primeiro fragmento, através das marcas lingüísticas de 1ª pessoa como: “fiquei”, “me”, e “minha”. Ao mesmo tempo, observamos que o gênero permite ao escritor uma atitude questionadora e um movimento reflexivo sobre o texto lido. Observamos aqui indícios de uma compreensão responsiva ativa (BAKHTIN, 2000), revelada no diálogo estabelecido com o texto-fonte, ao utilizar o discurso do outro aspeado, reconhecendo a autoria das palavras alheias em “não há consenso quanto à delimitação do que seria objeto da Semântica”. Constatamos ainda uma quebra de expectativa da leitora, ao enunciar “para minha surpresa”. Esse procedimento instaura no texto da aluna diarista um importante movimento reflexivo o qual demonstra que ela, efetivamente, não está apenas em processo de compreensão do texto, mas também construindo um novo conhecimento sobre ele. Vale dizer que uma importante função do ler e escrever na experiência que ora empreendemos é ensinar a pensar, a refletir e construir o conhecimento. Fragmento 2 Na disciplina Lingüística vimos a importância das contribuições de Saussure nos estudos do signo. À medida que meus olhos iam percorrendo esse texto, me veio recordações, embora vagas, de estudos realizados em Semiótica e Lingüística. Então, percebi a importância do conhecimento prévio na leitura de um texto. Genilda, 45 anos e 13 de magistério – atua no Ensino Fundamental.

No fragmento em análise, observamos que, além de aumentar o repertório dos alunos, as atividades de leitura facilitam a aprendizagem, gerando as condições necessárias para que ele estabeleça conexões entre as diversas informações, ampliando assim, as suas capacidades de análise e síntese. É interessante notar a constatação feita pela aluna-diarista sobre a importância do conhecimento prévio para a leitura, ratificando, desse modo, o que Kleiman (2000) assevera sobre isso. Conforme a referida autora, a compreensão textual demanda do leitor um conhecimento prévio. A aluna constrói, a partir de sua experiência leitora, um conhecimento relevante para a atividade de leitura, reiterando aquilo que as pesquisas têm defendido. Fragmentos 3 Lendo esse texto, percebi que o objeto de estudo da Semântica é algo ainda indefinido, e segundo a autora, não é uma tarefa fácil. Fala, também, como já vimos em textos anteriores, de três formas de fazer semântica: a Formal, a da Enunciação e a Cognitiva. Silene, 50 anos e 16 de magistério – atua na EJA

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Podemos observar nesse fragmento de diário de leitura não só a manifestação da compreensão do texto, mas também as relações que a aluna-diarista estabelece entre o texto lido e outras leituras já realizadas. Desse modo, podemos afirmar que a escrita do diário de leitura possibilita ao aluno estabelecer relações significativas entre as suas experiências prévias de leitor e a informação proporcionada pelo texto, ao longo da leitura. O uso da leitura considerando-se a atividade de escrita reforça a idéia de que estas atividades são complementares e, ao mesmo tempo, denotam que tarefas de escrita específicas podem ajudar os alunos a se tornarem leitores mais perceptivos e podem ajudar a destruir a tendência à falta de articulação ou à vagueza que resultam de uma leitura puramente privada (BAZERMAN, 2006, p.39). Fragmentos 4 e 5 Não estou preocupada por está com as idéias embaraçadas sobre esse assunto, pois ainda há muitas leituras e estudo pela frente. Nesse dia li o texto “O Objeto da Semântica” de Maria Helena D. Marques. Ao fazer a primeira leitura pude perceber que o texto não era fácil de ser compreendido, seria necessárias várias leituras. Jane, 40 anos, 20 de magistério – Ensino Fundamental

Outro dado interessante que podemos observar com relação à escrita do diário de leitura é que ele permite ao aluno a reflexão sobre o processo de (in)compreensão da leitura realizada. No fragmento 5 acima, a aluna-diarista reconhece que ainda “está com as idéias embaraçadas”, mas mesmo assim demonstra uma auto-estima elevada. Sua autoconfiança repousa na convicção de esse “embaraçamento” será superado à medida que outras leituras sejam realizadas. O diário de leitura também possibilita ao aluno explicitar suas estratégias de leitura. É o que podemos constar no fragmento 6, quando a aluna-diarista reconhece a necessidade de ler o texto mais vezes para compreendê-lo satisfatoriamente. De fato, a releitura é uma estratégia relevante para a busca da compreensão. Se em outras situações da vida social uma única leitura é suficiente, no texto da esfera acadêmica é comum a atividade de releituras.

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Fragmento 6 e 7 Uma das coisas, no meu entendimento, de grande importância que eu li no texto, é a atenção que os estudos mais recentes estão dando aos aspectos da competência comunicativa dos falantes como objeto de estudo semântico. Li esse texto com curiosidade, pois me pareceu estranho, a começar pelo título: Tradição e evolução dos estudos semânticos, por que no meu entendimento a preocupação com as questões semântica era algo recente, portanto, falar em tradição me causou estranheza. Genilda, 45 anos e 13 de magistério – atua no Ensino Fundamental.

Um dos aspectos mais relevantes na escrita do diário de leitura é que ele permite ao aluno assumir e expressar um ponto de vista. Assim, nos fragmentos acima, ao registro do conteúdo do estudo, soma-se o posicionamento da alunadiarista – “no meu entendimento” – evidenciando, justamente o seu posicionamento sobre o texto lido. Nesse sentido, importa frisar: “ (...) na medida em que tentam conciliar o que eles lêem com o que eles já pensam, os alunos começam a explorar suas pressuposições e modelos de pensamento” (BAZERMAN, 2006, p. 40). Ao registrar a expressão “que eu li no texto”, o diário assume “a função de testemunha de leituras e de reflexões que as leituras produzem” (MACHADO, 1998, p.33). Outro dado importante é – reafirmamos – que o diário de leitura apresenta-se como gênero bastante subjetivo, distinguindo-se, portanto, da costumeira produção acadêmica e tornando visível esse aspecto tão pouco explorado no processo de ensino e aprendizagem da escrita. Além disso, podemos observar que o diário de leitura possibilita ao aluno expressar sua reação à leitura. Note-se que no fragmento 7 a aluna-diarista informa não só o modo como leu o texto, mas ainda registra o seu estranhamento diante do título. Essas reações nos remetem a opiniões previamente formadas, experiências, observações e outras leituras já realizadas. Segundo Bazerman (2006), as anotações de reações concorrem para que os alunos dêem sentido para as suas próprias opiniões e identidades, contrastando com o que eles já pensam.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste artigo tivemos a intenção de realizar uma análise critico-reflexiva sobre uma experiência envolvendo o gênero discursivo diário de leitura como um instrumento de ação didática para o desenvolvimento do letramento do professor em formação inicial em um curso de língua materna. Para finalizar, gostaríamos de ressaltar dois pontos que consideramos de suma importância. O primeiro refere-se à necessidade de que sejam levadas em consideração, nas salas de aula dos cursos de formação, especialmente nas de língua materna, as histórias de leitura dos nossos alunos. Não é aceitável a afirmação tão recorrente de que eles não são leitores. O fato é que muitas vezes não estão familiarizados com os gêneros discursivos de circulação na esfera acadêmica. Concordamos com Britto (2003, p.187) quando propõe: “há que fazer uma distinção fundamental entre a afirmação de o estudante não sabe ler e escrever e a de que ele não domina um tipo particular de discurso (...)”. O segundo ponto que queremos destacar é que cabe a nós, professores, considerando as necessidades dos alunos, buscar formas alternativas de trabalho que lhes possibilite desenvolver suas competências leitora e escritora. É preciso ajudá-los a descobrir motivos para se interessarem pelos textos que lhes são pouco familiares. São fundamentais ações didáticas que, de fato, sejam significativas para os nossos alunos. Acreditamos que a adoção do diário de leitura pode ser uma alternativa de ação didática para o desenvolvimento do letramento – com relação aos textos de circulação na esfera acadêmica – do professor em formação inicial. Acreditamos também que o trabalho realizado teve um significado importante para os nossos professores-alunos e isto fica evidente no seguinte registro do diário de leitura de uma das nossas alunas-diaristas: “Estou gostando de realizar essa tarefa, pois está me ajudando a desenvolver mais a leitura, a reflexão e a escrita”.

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BRITTO (2003). Contra o Consenso: Cultura Escrita, Educação e Participação. Campinas, SP: Mercado de Letras. KATO, Mary. (1986) No mundo da escrita: uma perspectiva psicolingüística. São Paulo: Ática. KLEIMAN, Angela B. (Org.) ([1995] 2001A). Os significados do letramento: uma nova perspectiva sobre a prática social da escrita. Campinas, SP: Mercado de Letras ______. (2000). Texto & Leitor: aspectos Cognitivos da Leitura. 7ed. Campinas, SP: Pontes. _______. (1999) Delta, v. 5, n. 2. _______ ; MORAES, Silvia E. ( 2001B) Leitura e interdisciplinaridade: tecendo redes nos projetos da escola. Campinas, SP: Mercado de Letras. ______. ( 2001C) A Formação do professor: perspectivas da Lingüística Aplicada. Campinas, SP: Mercado de Letras. ______. (2002) A competência leitora: desafios para o professor. Congresso Brasileiro de qualidade na Educação. Formação de professores. Brasília. MACHADO, Anna Raquel ( 1998). O diário de leituras: a introdução de um novo instrumento na escola. São Paulo: Martins Fonte. ______(no prelo). Diários de leituras: a construção de diferentes diálogos na sala de aula. ______; LOUSADA, Eliane; TARDELLI, L. S. (2005). Resenha. São Paulo: Parábola Editorial. MATÊNCIO, M. L. (2003) Letramento e competência comunicativa: a aprendizagem da escrita. Disponível em: http://www.letramento.iel.unicamp.br/pesquisa_pucmg/ pesquisa_matencio/l Acesso em: 11 out.2006. MEY, Jacob L. (2001). As vozes da sociedade. Campinas, SP: Mercado de Letras. SOARES, M.B. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêtica/CEALE. TFOUNI, L. V.(1988). Adultos não-alfabetizados. O avesso do avesso. Campinas, SP: Pontes. ______. Letramento e alfabetização (1995). São Paulo: Cortez. ZABALZA, Miguel (2002). A. Os professores. Revista Pátio, v. 6, n. 22, jul/ago.

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Regina Celi Mendes Pereira *

AS MÚLTIPLAS FACES DA INTERAÇÃO 1 (Interaction in its multiple aspects) RESUMO Neste trabalho foram considerados processos interativos em três diferentes contextos de uso da linguagem: formas de interação entre emissor (autor) e receptor (leitor) de cartas pessoais antigas; a estrutura de par ticipação e interação entre apresentador-participante em um programa de TV; e as interações diárias entre professores de uma mesma escola na construção conjunta do conhecimento. Procuramos investigar sobre o que existe no componente cultural humano que preserva (mesmo em contextos distintos) a integridade conceitual de um fenômeno. Palavras-chave: interação, linguagem, cognição, construção ABSTRACT Interaction has been considered in this work in three different contexts of language use: interaction between the writer and the reader of ancient personal letters; the structure of participation and interaction between the presenter and the audience in a tv program; and the daily interactions among teachers from the same school during a collective construction of knowledge. We have tried to investigate about what does exist in human cultural component that preserves (even in different contexts) the conceptual integrity of a phenomenon. Key- words: interaction, language, cognition.

INTRODUÇÃO Desde o momento em que Bakhtin (1929) defendeu a noção de interação verbal como uma propriedade constitutiva da língua, muitos questionamentos já foram feitos em torno dos processos interativos nos contextos de uso da linguagem. Nos últimos anos, no entanto, o termo tem recebido um maior reconhecimento e tem-se acentuado entre lingüistas, pesquisadores e professores o interesse em compreender, analisar e aplicar as estratégias interativas na dinamicidade das relações que envolvem a linguagem. Em conformidade com essa tendência, este trabalho destina-se a apresentar e refletir sobre os processos interativos em diferentes contextos de comunicação humana.

* UFPB 1 Uma versão deste trabalho foi apresentada no VII Congresso Brasileiro de Lingüística Aplicada, organizado pelo LAEL – PUC/SP, em outubro de 2004, em uma sessão temática intitulada “A interação em diferentes instâncias comunicativas”, onde foram apresentadas situações interacionais em diferentes contextos de comunicação.

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Pretendemos, especificamente, analisar os pontos convergentes do processo interativo em diferentes instâncias de comunicação lingüística: formas de interação entre emissor (autor) e receptor (leitor) de cartas pessoais antigas; a estrutura de participação e interação entre apresentador-participante(s) em um programa de TV; e finalmente, as interações diárias entre professores de uma mesma escola na construção conjunta do conhecimento. Interessa-nos investigar sobre o que existe no componente cultural humano que permite (mesmo em contextos distintos) manter a integridade conceitual de um fenômeno.

1 A PROPÓSITO DA INTERAÇÃO Em texto recente, Morato (2004) apresenta uma esclarecedora retrospectiva do papel que a interação tem desempenhado na condução dos estudos e pesquisas com a linguagem. A autora salienta a presença da concepção interacionista em várias áreas de investigação lingüística como a Sociolingüística, a Pragmática, a Psicolingüística, a Semântica Enunciativa, a Lingüística Textual e a Análise do Discurso – essa diversidade será melhor ilustrada na análise dos trabalhos aqui cotejados. Hoje não é mais possível, pacificamente, estudar a língua como fenômeno imanente e isolado de suas condições de produção e utilização, que envolvem o contexto (lingüístico e extralingüístico), falantes e situação de comunicação. Uma vez aceita a tese bakhtiniana da interação como propriedade constitutiva da linguagem (já mencionada no início deste trabalho), torna-se até um pouco redundante o próprio título dessa sessão temática “Processos interativos em diferentes instâncias de comunicação”, uma vez que nos parece quase impossível falar de comunicação humana, sem que esteja subjacente a essa idéia a noção de interação. A interatividade é um pré-requisito da vida em sociedade. O desenvolvimento da linguagem só foi possível devido ao fato de os seres humanos terem a capacidade de interagirem uns com os outros. Partindo inicialmente da necessidade na execução de tarefas básicas de sobrevivência, passando pelo instinto de reprodução, até evoluir para necessidades mais complexas de comunicação, o homem não pode prescindir das relações com seus pares. Mesmo admitindo a existência dessas outras instâncias interacionais na vida humana, as nossas reflexões, neste momento, só contemplam as peculiaridades da interação verbal. Nesse domínio, Morato (2004, p.323) define interação como a base de construção do conhecimento e da dupla natureza da linguagem (cognitiva e social). Nesses casos, outro aspecto que merece esclarecimento é o que diz respeito a um certo mal-entendimento de que relações interativas seriam necessariamente positivas ou harmônicas. Existem produtivas interações verbais

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que são construídas em situações de conflito – desde que não seja essencialmente destrutivo – e conseguem realizar valioso intercâmbio cognitivo entre seus interlocutores diretos ou indiretos. Citemos como exemplo o caso das interações desenvolvidas em tribunais onde advogados de acusação e defesa debatem-se vigorosamente, construindo argumentos convincentes, elaborando réplicas e tréplicas e outros recursos verbais ou não verbais próprios ao gênero julgamento. Uma outra situação de conflito que promove valiosas trocas verbais é a que diz respeito às respostas indignadas dos leitores em reação a determinadas reportagens ou entrevistas publicadas em revistas ou jornais. Nessas situações específicas, onde os interlocutores indiretos sentem-se afrontados a ponto de escreverem demonstrando sua posição contrária ao que está sendo veiculado, podemos reconhecer como a interação foi bem sucedida, a despeito de ter sido gerada por interesses contrários. Esses exemplos deixam bem claro que o maior obstáculo à interação é a completa indiferença. É falar e não ser ouvido, perguntar e não obter resposta, é escrever um texto que não será lido – mesmo sendo aquele texto também fruto de interações passadas, mas que uma vez constituído como tal, passa a solicitar um leitor potencial, caso contrário a corrente de interação será quebrada. A esse respeito, ou seja, que qualquer texto, mediata ou imediatamente, constitui-se em meio a um rico contexto de intercâmbio com os outros, Beth Brait (2002, p.144-45) em um texto onde faz ponderações em torno das noções bakhtinianas de interação, assim se posiciona: A perspectiva do outro enquanto discurso e interdiscurso, enquanto constitutivo da linguagem, na medida em que o autor situa o texto impresso, ou suas diferentes formas de produção, circulação e recepção em diferentes esferas, como resposta a outras interações da mesma natureza e, ao mesmo tempo, como decorrente de um estilo ou de um confronto de estilos ou problemas científicos, por exemplo. Essa característica dialógica da linguagem será, evidentemente, estendida para qualquer enunciação, para todas as formas de interação verbal, reforçando a idéia de que há necessidade de diferenciar, e ao mesmo tempo de integrar sem identificar, a situação específica em que se dá a interação, e que é necessariamente integrante dessa interação e não simplesmente sua causa, de um contexto histórico, cultural e social mais amplo.

Tomando essas questões como eixo norteador de nossas reflexões, passamos, então, a analisar as três situações interativas, identificar as suas semelhanças e buscar eventuais diferenças entre elas.

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2 SITUAÇÃO DE INTERAÇÃO A – ESTRUTURA DE PARTICIPAÇÃO NO PROGRAMA MAIS VOCÊ. A produção, realização e gravação desse programa constituem um evento comunicativo de particular interesse para nossa análise devido à variedade de elementos em interação existentes na situação. Além disso, as interações desenvolvidas ao longo do programa não são essencialmente espontâneas (mesmo considerando a “espontaneidade” da apresentadora e do participante ratificado (cf. GOFMAN, 1988), representado pelo Louro José), o que torna a situação ainda mais especial. Vejamos o fragmento de uma cena do programa que foi gravado na época do carnaval. Depois de cantarem uma música carnavalesca, Ana Maria se dirige ao louro José. a) uma conversa com o Louro: - Ah! Vou te mostrar... (Ana Maria) - Confete, serpentina? (Louro José). - Vou te mostrar, vou abrir. Esse aqui é teen, não esse é espermicida. Sabe o que é espermicida? (Ana Maria) - O que diz aí? (Louro José) - Olha, vem vê de perto (Ana Maria). - É uma camisinha. (Louro José) - Pensei que cê Ia dizer que era um chapeuzinho. (Ana Maria) A estrutura geral do programa é previamente planejada, e até os improvisos na fala da apresentadora e do Louro José, que eventualmente ocorrem, também não podem fugir do formato previsto para o programa. A apresentadora tem de seguir o roteiro (script) previsto para o programa (nesse caso específico, o objetivo é divulgar e alertar para os riscos de não usar camisinha) mesmo que em determinados momentos ela se envolva em algumas situações que fujam um pouco do controle da produção. Essa situação pode ser criada quando algum telespectador, através do telefone, assumir momentaneamente a condução das intervenções verbais, ou algum entrevistado direcionar o assunto da conversa para algum outro tema que não seja o pretendido pela produção. No entanto, um profissional competente na área (nesse caso, Ana Maria Braga) sempre consegue retomar o controle da situação, reconduzindo a participação dos interlocutores ao patamar desejado. Existem dois eixos principais de interação no programa: 1) apresentadora x louro José e 2) apresentadora x platéia. Há ainda dois outros eixos paralelos e que ocorrem eventualmente: 1b) Louro José x platéia e 2b) agente da produção do programa x a apresentadora. Esse último eixo interacional é mais discreto, e serve para ratificar o controle a que esse evento comunicativo está submetido. Exemplificamos a seguir:

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2) apresentadora e telespectador (platéia) - Alô! - Quem tá falando? (Ana) - É a Fernanda! - Oi Fernanda aqui é a Ana Maria Braga tudo bem? - Ai é a Ana Maria Braga! Marina, consegui!!!! (Fernanda) - Yes (Ana) - Consegui também! (Louro) 1b) Louro José e platéia X Louro José e Ana Maria - Vamo lá, dinheiro para o povo, é agora! (Louro) - É agora, vamo resolver o problema da conta. - Quem quer dinheiro, rarai!!!! (Louro) (risos dos dois). - Tá doido Louro José, heim Louro José? 67 o último nº 67. Nossa o pessoal desse estado aqui tá com o dedo no telefone, na hora que eu falar assim valendo, eles tum. - Já ligaram! (Louro)

A direção do programa tem um objetivo bem determinado: criar um formato típico de programa que atraia o telespectador, conquiste um determinado público, mantendo uma boa audiência. Para alcançar esse objetivo, são utilizadas estratégias interacionais que visam garantir uma aproximação maior com esse público, fazendo-o participar diretamente (por telefone ou cartas), ou indiretamente (participação revelada pelos índices de audiência). A oscilação para mais ou para menos nos níveis de audiência, associada às correspondências recebidas pela apresentadora ou outras pessoas participantes do programa, apresentam-se como as formas de mensuração para atestar o êxito da interação entre apresentadora e público. Apesar de em muitos casos não haver uma resposta concretamente verbalizada, os índices comprovam que há um número de pessoas que efetivamente interage com a apresentadora: anotam receitas, telefonam, escrevem, enviam e-mail etc. Certamente existem ainda outras formas de reagir aos estímulos fornecidos pelo programa, porém escapam completamente do alcance de nossa observação e controle. Aqueles que não emitem quaisquer reações de resposta ao programa são os que obviamente não lhe assistem.

3 SITUAÇÃO DE INTERAÇÃO B: AUTOR (EMISSOR) E LEITOR (DESTINATÁRIO) DE CORRESPONDÊNCIAS ANTIGAS Nesse contexto específico de interação verbal, viabilizado por textos escritos, selecionamos duas ocorrências específicas: a primeira gerada por uma

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situação de conflito, e a segunda motivada por necessidades burocráticas onde fossem pouco relevantes marcas explícitas de interação, justificada pelo caráter impessoal da correspondência comercial. No primeiro caso temos a reação indignada de um leitor do Diário de Pernambuco que fora impedido de entrar em um baile de máscaras realizado no Teatro Apollo. O texto – uma carta ao leitor de 1850 – foi concebido, então, em função dos acontecimentos vivenciados pelo autor. Dizendo de outra forma, o texto foi fruto de interações conflitantes em que o autor esteve envolvido. jJIAKIU DE PERNAMBUCO (30) 11/02/1850 Correspondencia. OS CONVITES PARA O BAILE MASCARADO – NA DIRECÇÃO’ DO THEATRO D’APOLLO.

He pena, Srs. Redactores, que uma sociedade como he’a do theatro d’Apollo que na escalla das corporações que tende a apresentar divertimentos particulares merece elevada consideração, seja regida (com honrozas excepções) por uma direcção composta de pessoas tão alheias aos predicados da delicadeza, e por isso predispostos sempre á pratica de factos tão escandalosos que terão, quando imparcialmente, combinados de innoduar para sempre seus respeitaveis autores, e envergonhar aquelles que talvez por inexperiencia ou bôa fé os ~7ô11oôa.fám na posição de administra(?) corpo brioso, e do qual Tabusão: continuadamente – Iie~ o caso Promovendo a ~ireeçã~ da sociedade H. Theatral um baile de mascarados facultou, como póde vâr-se no abaixo~assignado, que distribuiram, entrar por complemento do mesmo, pessoas que não fossem socios, e recebendo de muitos os competentes dez mil réis – reprovaram a proposta desse mesmo convidado; não Srs. Redactores, porque a melhor conducta e as mais 1bellas.qualidades não assistissem ao pretendente, mas pelo unico fim de consumar a vingança de particulares dessenções menos presando dest’arte, não 50 seus merecimentos, mas tambem menos prezando a fé que um socio deve Ter quando indica um convidado para uma função na casa que como aos Srs. directores igualmente lhe pertence, e ainda mais, Srs. Redactores, não se circums~creveu unicamente este comportamento mesquinho e indecoroso n’um simples convidado, mas se estendeu áfamilias de singular tratamento, e que tem ingresso nos divertimentoS de casas respeitablissimas, cujo zêlo por sua honra se acha collocado muito além daquelle de que pôdem dispôr alguem que por desgraça pozeram em sua mão os meios para obrar tão ~obardê e mesquinhamente – SrS. redactores, para bem conhecer-se esta verdade pura,

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basta ter conhecimento de que se aprovava por valimento d’este ou daquelle, o individuo que na reunião antecedente fôra plenamente reprovado, e que taV.. quem ousa tanto fle capaz ce tudo. Um dos membros, Srs redactores, n’uma das reuniões de que tenho fallado, ouvindo a reclamação d’uma reprovação de convidado, em que o reclamante se dispunha a provar sua inteira capacidade, respondeu – seja bôa ou má sua conduô~, nem todos estão diabelit&dos a ir a um baile – 4júaes. serão pois, Srs. redactores, os quisitos precisos para tal fim além de probo e honrado? Parece que só os saberá ãquelle, que pouco caso faz da honra. Queiram pois, Srs. redactores, inserir no seu Diario estas poucas linhas, e assim obrigarão o seu constante leitor – Uni dos que obteve um R. A propósito de nossas reflexões em torno de uma concepção de linguagem como ação situada, “cuja unidade de análise é a atividade desenvolvida pelos sujeitos no decurso da interação” (MORATO, 2004. p.327), consideramos esse um exemplo legítimo para a consistência de tal concepção. Segundo Morato, a noção desse termo – ação situada – refere-se a toda ação humana que dependa estreitamente das circunstâncias materiais e sociais nas quais se desenvolve. No nosso entendimento, a linguagem se enquadra perfeitamente nesta categoria de ação, e ainda que tenhamos salientado a pertinência do exemplo representado pela carta ao leitor, toda e qualquer ação de linguagem está incluída nesse grupo. Percebemos claramente no texto as marcas de dialogismo entre o seu autor empírico e o os redatores do jornal. Apesar dessa situação de interlocução não se configurar como uma legítima situação de interação face a face, fica evidente que o autor se posiciona tendo em vista a reação do interlocutor, instigando-o a tomar determinadas atitudes. Vejamos alguns exemplos: Ex. 1: He pena, Srs. Redactores... Ex. 2: SrS. redactores, para bem conhecer-se esta verdade pura, basta ter conhecimento de que se aprovava por valimento d’este ou daquelle... Ex. 3: Queiram pois, Srs. redactores, inserir no seu Diario estas poucas linhas, e assim obrigarão o seu constante leitor – Uni dos que obteve um R.

O segundo caso – em que consideramos a carta comercial – também vem ratificar o nosso entendimento de que são as relações existentes entre os interlocutores de um evento comunicativo, juntamente com suas respectivas peculiaridades, que determinam a natureza da enunciação. Até mesmo a ausência de marcas explícitas de interação, conforme mencionamos acima e exemplificaremos no texto abaixo, servem como indicadores interacionais, na medida em que revelam o grau de interatividade presente na relação. Vejamos a carta:

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(C 146) – TENDO O MUNICIPIO DE CABACEIRAS Tendo o Município de Cabaceiras sido desligado do de São João, e deixado de ser o cabeça do Termo, posteriormente a Resolução de 21 de Abril do anno passado mandada observar no presente por Portaria de 31 de Janeiro ultimo, relativamente a ordem de Substituição do Juiz de Direito da 2ª Câmara; ordena o Presidente da Província que em vez do Juiz Municipal de Cabaceiras, entenda-se o do Termo de S. João, advertindo que o do Brejo só terá o 1º lugar, conforme areferida Rezolução, quando provido nos termos da Lei de 3 de Dezembro de 1841. Villa do Conde 7 de Novembro de 1843 Illmo Sr Jose Franco de Moura Jr Chefe de Legan e ComeSupor inte Braz Ferrª Maciel Pinheiro Tene Corel Come

O objetivo da carta, o assunto, o nível de aproximação entre as partes envolvidas, o posicionamento dos interlocutores, bem como o próprio gênero – apesar de não pretendermos focalizar neste trabalho a questão dos gêneros textuais – todos esses elementos contribuem na construção da linguagem e na caracterização do enunciado.

4 SITUAÇÃO DE INTERAÇÃO C – CONSTRUÇÃO PARTILHADA DE CONHECIMENTOS ENTRE PROFESSORES DE UMA MESMA ESCOLA Certamente, as duas primeiras situações não negam a possibilidade de que existam naqueles contextos condições efetivas para que ocorra a construção de conhecimento por parte de seus inter-actantes. O que se configura nesta situação C, que a distingue das demais, é o locus específico onde se dá a interação: ambiente institucional formal onde se constrói e transmite conhecimento – escola e universidade. Existem dois tipos bem definidos de relações produtivas nesse corpus. O primeiro, conforme veremos no exemplo, caracteriza efetivamente um caso de interação harmônica na construção conjunta de conhecimento. Excerto D ( Aula 1) Profa. Liana: (...) ensinar é uma arte... eu acho que é até um senso comum... é uma arte que deve ter muita consciência..a gente tá mexendo com vidas que de repente a gente vai determinar né ? Prof. Henrique: tá formando opinião... Profa. Liana: tá formando opinião.. consciência..então isso aí. Prof. Henrique: [isso aí é..

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Profa. Liana: [isso aí é complicado Profa. Sílvia: é complicado... uma responsabilidade tremenda Prof. Henrique: com certeza Profa. Liana: acho que o professor deveria ser valorizado bem mais por conta disso porque é um peso muito grande a gente tem que ser um pouco de.. de psicólogo Profa. Sílvia: de tudo Prof. Henrique: é.. de tudo.. Profa. Sílvia: sociólogo.. antropólogo.. Prof. Henrique: pedagogo Profa. Liana: consultor sentimental... ainda hoje mesmo uma aluna veio desabafar comigo... achei o máximo ..

Cada professor contribui na composição do que seja o papel/função do professor. O interessante nesse segmento interacional é que as opiniões não se contrapõem, as falas vão sendo incorporadas na composição coletiva de um discurso único. Essa constatação nos remete ao que Morato (2004) identifica como uma associação entre as noções de ação situada e cognição situada, fundamentada na interdependência da ação e da reflexão, e baseada no argumento de que o contexto social, onde a atividade se desenvolve, é parte essencial e não coadjuvante dessa atividade. Para Mondada e Pekarek (2000, p.154-5, apud MORATO, 2004, p. 327-328): A cognição pode ser compreendida como situada em dois sentidos: de uma parte, ela pode ser considerada como enraizada na interação social (ROGOFF, 1990); de outra parte, ela pode ser compreendida como estando ancorada nos contextos institucionais e culturais mais largos (COLE, 1994 e 1995; WERTSCH, 1991a e b); a abordagem sócio-cultural procura reunir esses dois aspectos em um modelo coerente (...) A atividade, enquanto processo dinâmico situado nas estruturas sócio históricas, encontra-se assim apresentada como ponto de partida para o estudo do funcionamento mental. Nesses termos, encontra-se ao mesmo tempo estabelecida a concepção de cognição como prática, distribuída, emergente das atividades locais, que não somente se opõe à sua modelização tradicional e individualizante em termos de interioridade e de intencionalidade, mas que, mais geralmente, se recusa à separação entre o que relevaria do domínio do desenvolvimento individual, cognitivo e autônomo, e do que relevaria do domínio da atividade coletiva, interativa e social.

Certamente, muitas das opiniões expressas pelos professores, reproduzem essa dicotomia entre os limites do que emerge do desenvolvimento individual, cognitivo e autônomo, e o que emerge do domínio da atividade coletiva, interativa e social.

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Em relação ao segundo segmento interacional selecionado, podemos observar que, apesar de termos mais uma construção conjunta de conhecimento, surge a figura de um facilitador que vai conduzindo a atividade de construção cognitiva. As intervenções não são tão livremente posicionadas como no primeiro caso, existe o ‘regente’ que vai direcionando as respostas em direção à elaboração de um conceito didático. Excerto E ( Aula 7) Facilitadora 7: vocês conhecem material para o ensino de línguas..como é que vocês vêm esse material? No que isto implica? Profa Danusa: é produzir um material bem próximo à realidade deles de acordo com o nível deles .. que eles se interessem.. Facilitadora 7: o que significa “que eles se interessem”? Profa. Sílvia: que desperte o interesse do aluno Facilitadora 7: e o que é que despertaria? Profa. Liana: materiais próximos ao jeito de falar dos alunos... eu sempre tento trazer alguma coisa diferente, alguma coisa jornalística... mas.. quando eu vejo os alunos estão fazendo relação com a malhação da vida..((todos riem))

Ainda que seja uma interação mais controlada (um professor de cada vez vai dando sua colaboração na elaboração do conceito), em ambas as situações, o desenvolvimento da ação de linguagem, bem como a construção cognitiva dos conceitos, só foram possíveis devido à natureza das relações estabelecidas entre os participantes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS A análise dos três episódios interacionais ratifica a nossa concepção de que há uma imbricação perfeita entre os três fenômenos essencialmente sociais envolvidos no processo: linguagem, cognição e interação. Apesar de termos focalizado três contextos interacionais bem distintos entre si, existe um aspecto central que é comum a todos eles: o exercício da linguagem (em suas variadas versões) e o desenvolvimento cognitivo só são possíveis em meio a relações entre indivíduos, e entre os indivíduos e o contexto circundante. Nós já nascemos seres cognitivos e é essa a condição que nos permite desenvolver a linguagem. A cognição é inerente ao ser humano, mas é também uma capacidade que se desenvolve na interação social, e, contanto que não haja qualquer patologia mental, não se pode dizer que existem humanos mais cognitivos do que outros. O que realmente existe são determinadas estratégias (lingüísticas ou não) que fornecem mais estímulos cognitivos ao indivíduo do que outras,

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levando-o a desenvolver sua forma de percepção dos acontecimentos do mundo (Cf. PEREIRA, 2005). É a interação, portanto, que permite que a cognição e a linguagem se desenvolvam. Não se tem notícia de que possa haver cognição humana ou atividade de linguagem que prescinda das trocas simbólicas efetuadas entre os indivíduos. Faz-se oportuno, mais uma vez, retomar as palavras de Morato (1996, p.18) que definem exemplarmente essa ligação: “ não há possibilidades integrais de pensamento ou domínios cognitivos fora da linguagem, nem possibilidades de linguagem fora de processos interativos humanos”. Concluímos então, que é este componente cultural humano que permite – a despeito das diferentes acepções do termo interação e sua ocorrência em contextos distintos – manter a integridade conceitual de um fenômeno.

REFERÊNCIAS BRAIT, B. (2002). Interação, gênero e estilo. IN: D. PRETI (org.) Interação na fala e na escrita – Projetos PARALELOS - NURC/SP, 5: 144-145. GOFMAN, E. (1988). A situação negligenciada. IN: RIBEIRO, B. T.; GARCEZ, P. M. (orgs.). Sociolingüística interacional: antropologia, lingüística e sociologia em análise do discurso. Porto Alegre: AGE. MONDADA, L.; PEKAREK, S. (2000). Interaction sociale et cognition située: quels modèles pour la recherche sur l’acquisition des langues? AILE, 12: 154-5. MORATO, E. M. (1996). Linguagem e cognição: as reflexões de L. S. Vygotsky sobre a ação reguladora da linguagem. São Paulo: Plexus.. ______ (2004). O interacionismo no campo lingüístico. IN: F. MUSSALIM; A. C. BENTES (orgs) Introdução à Lingüística – fundamentos epistemológicos. São Paulo: Cortez Editora. PEREIRA, R. C. M. (2005). A concepção de letramento na escola: dimensão social e cognitiva. IN: Língua, Lingüística e Literatura: revista do DLCV/UFPB. João Pessoa/ Santa Maria: Pallotti, vol. 1, n. 3.

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María del Pilar Roca Escalante* Rocío Serrano Cañas **

PROBLEMAS E ENCAMINHAMENTOS DE UMA PROPOSTA DE ENSINO E/LE DENTRO DE UM ENFOQUE PRAGMÁTICO ABSTRACT This ar ticles repor ts on preliminary conclusions derived from a project aimed at teaching Spanish as a foreign language to two groups. One taught at UFPB and the other at a public high school in João Pessoa during 2005-2006. In this specific paper, we will focus on both teacher’s and students’ functions as well as on contradictions that emerge during foreign language practice as regards underlying concepts of acquisition and learning. Keywords: Language teaching; Pragmatics; Language acquisition. RESUMO Esse artigo apresenta as primeiras conclusões do projeto desenvolvido em uma turma da extensão da UFPB e outra turma da escola de Ensino Médio da Rede Estadual durante o ano 2005 e 2006, segundo o enfoque pragmático. Nesse trabalho será apresentada a problemática referida à função do aluno e do professor, assim como as contradições que apresentam as concepções de aquisição e aprendizagem na hora de serem levadas à prática no ensino da língua estrangeira. Palavras –chave: Ensino de língua; Pragmática; Aquisição de línguas.

I CONTEXTUALIZAÇÃO a. Apresentação: projeto, público, objetivos e conteúdos. O projeto de pesquisa ação, Para a elaboração de uma proposta de ensino ELE dentro de um enfoque pragmático (PROBEX/UFPB), foi coordenado pela profª Drª Mª del Pilar Roca Escalante (DLEM/UFPB), foi aplicado pela professora leitora pelo convênio AECI/UFPB, Rocío Serrano Cañas, e contou com a colaboração de uma bolsista (PROLICEN) e uma voluntária

* UFPB ** Leitora convênio UFPB–AECI

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(aluna de PROLING/UFPB), ambas com a função de observadoras1. Este grupo é o que, doravante, será denominado equipe de trabalho. O projeto foi aplicado em uma turma de extensão da UFPB e uma turma piloto de uma escola pública de Ensino Médio durante os cursos de 2005 e 2006. Os objetivos propostos no projeto foram: a. sensibilizar o aluno para entender os elementos que permitem adaptação no discurso; b. capacitar o aluno para entender, absorver e responder às variantes de uso da língua; c. acionar no aluno a habilidade de escuta e resposta para a negociação de sentidos no uso da língua. Os conteúdos propostos no projeto foram: a. lingüísticos-discursivos: · sentido (sintaxe) · categorias (morfologia) · pronúncia (fonética) · significado (semântica) b. comunicativo-situacionais: · indivíduo / sociedade · valores / convenções c. atitudinal-capacitativos: · lidar com o novo ou diferente · desenvolver a escuta, a observação e a reflexão · ênfase no processo de trabalho a longo prazo

b. Parâmetros teóricos: No século XVI, o comentarista Juan de Valdés (1590-1541) opunha seu enfoque pragmático à visão gramatical defendida por Antonio de Nebrija (14441522), o autor do primeiro dicionário e da primeira gramática em língua castelhana. No seu tratado sobre o ensino da língua, Valdés considerava a fala de uma determinada comunidade culta como o referencial que legitimava as escolhas lingüísticas. Já para Nebrija o modelo estabelecia-se a partir da gramática latina. Esse jogo de referências aos modelos próprios ou alheios transluzia, logicamente, uma ideologia. Na escolha entre um ou outro modelo definia-se uma identidade 1

A bolsista Silvia Ribeiro é aluna do curso de letras, bacharel em Direito e mestre em Letras (UFPB); a voluntária Yarana Serrano Gomes é graduada em Letras e Filosofia (UFPB) e aluna do mestrado do programa da Pós-Graduação em Lingüística PROLING (UFPB)

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diferente. Enquanto Valdés entendia a língua como um contínuo diálogo entre a comunidade de falantes que fazia consciente o mundo imediato através da língua, Nebrija atribuía ao castelhano os parâmetros de uma língua morta. Para o aprendizado da língua, Valdés defendia a negociação de sentidos ao passo que Nebrija a memorização de estruturas preexistentes cuja aplicação automática daria resultados constantes. A filosofia valdesiana era de ordem espiritual ligada a um ambiente que mais tarde daria lugar à mística castelhana, cujo sucesso se deveu ao uso íntimo da língua simples, direta, no seu relacionamento com a divindade. Já Nebrija desenvolve seus princípios filológicos como companheiros do Império e tem objetivos formadores de índole moralizantes que iriam identificar os fins educativos com os fins patrióticos. Isto é, na concepção nebrijense, o menino ia à escola não só para aprender conhecimentos, mas para aprender comportamentos moralmente aceitos pelo projeto do Império nascente. Valdés reflete no seu Diálogo de la lengua sobre questões espirituais de conseqüências políticas, ao passo que Nebrija o faz de questões estatais com implicações religiosas. O pressupostos nebrijenses, de cunho moralizante, foram do gosto de muitos outros humanistas da época: filólogos, gramáticos e pedagogos concordaram e aplicaram seus critérios, tanto na língua castelhana como na portuguesa. A Gramática da língua portuguesa, 1539, de João de Barros, junto ao resto da sua obra, é um exemplo dessa influência que determinaria uma simultaneidade entre o ensino da gramática, do catecismo e dos princípios patrióticos. Humanistas de renome na cultura hispânica o seguiram nas suas colocações didáticas, como Luis Vives (1492-1544), autor de Disciplinis Libris e Lingua Latinae exercitatio, no qual se menciona expressamente as correlações estabelecidas na escola entre o correto e o moral. Como é fácil concluir, Nebrija era secundado por aplicar no ensino da língua castelhana conceitos da língua latina, que na verdade não era uma língua, mas um sistema de pensamento construído a modo da Koiné, depois de séculos de ensino de línguas que só eram estudadas para ler textos, mas sem precisar dominar a oralidade. A presença direta dos princípios nebrijenses nos métodos de ensino aprendizagem de línguas é constante até meados de século XX, só sendo aparentemente dribladas na segunda metade, sob o enfoque métodos comunicativos. As diferenças, contudo, serão apenas formais, pois se tratam, no fundo, de gramáticas situacionais desde que continuam privilegiando conteúdos e contextos preestabelecidos. É na crítica aos princípios nebrijenses como este projeto se desenvolveu e ainda se desenvolve. No aprofundamento teórico do projeto partimos do pensamento valdesiano para oferecer alternativas que substituam os princípios gramaticais nebrijenses porque estes, na verdade, operam como uma tampa para o desenvolvimento do pensamento no estudo das línguas vivas. O projeto

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visa o avanço teórico paralelo à prática da atuação em sala de aula, tentando ensaiar modos a conduzir os alunos desde sua natural preocupação pelos significados à procura de percursos maiores que envolvem a produção de sentidos. É uma realidade de todos conhecida que há alunos que apreendem mais rápido que outros. Por isso, cada vez mais os profissionais estão levando essas diferenças em consideração para administrar o conteúdo das disciplinas em diferentes tempos e adequando às idiossincrasias cognitivas de cada aluno. Os profissionais sabem que existem alunos que apreendem quase que sozinhos e outros que precisam da presença constante do professor. Na necessidade de encontrar dicas para a ação em sala de aula, durante a aplicação do presente projeto foi surgindo outra figura que começou a fazer parte dos fundamentos teóricos em paridade com os autores supracitados. Estamos-nos referendo a Juan Huarte de San Juan (1529?-1588), fundador da psicologia diferencial e iniciador da formação profissional vocacional. Huarte de San Juan publicou no ambiente avançado da Universidade de Baeza Examen de ingenios em 1575. Para Huarte de San Juan, a aprendizagem na verdade era um desenvolvimento da criatividade inata dos seres humanos. Suas colocações foram aproveitadas por Noam Chomsky em Language and mind (1968) como parte dos seus fundamentos teóricos. Mas a grande pergunta com a que a equipe de trabalho se defronta é como lidar com os alunos que têm a habilidade de apreender sozinhos em um sistema que privilegia a figura centralizadora do professor? Desvendar os problemas dessa pergunta será um dos assuntos a serem trabalhados durante a segunda fase do projeto (2006-2007).

II AVALIAÇÃO DO PROCESSO DE APLICAÇÃO DO PROJETO. PROBLEMAS E ENCAMINHAMENTOS II. 1- Delimitação de problemas teóricos II. 1.- (a) A função do termo convenções. O projeto foi elaborado em base a uma série de perguntas referidas aos relacionamentos que se estabeleciam entre o indivíduo, a sociedade, os valores e as convenções e como isso poderia afetar à aprendizagem ou aquisição da língua (termos que, pela sua vez, também deveriam ser definidos durante o processo de reflexão teórica). Durante a aplicação do projeto, surgiram problemas de ordem conceitual e prático. Determinados conceitos demoraram a serem compreendidos pela totalidade dos membros que formaram o grupo de trabalho vinculado ao projeto. Essas dificuldades eram devidas à formação prévia dos integrantes do grupo e

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tinham cunho ideológico. A discussão sobre os conceitos básicos que seguravam o projeto foi extremamente positiva, porque antecipou e ensaiou soluções a problemas que iriam acontecer em sala de aula e afetaria à produção dos alunos cuja análise era uns dos objetivos do projeto. Com efeito, a definição positiva do conceito convenções foi questionada em várias ocasiões, porque entre os membros da equipe de trabalho estava sendo entendido como sinônimo de estereótipo, tópico ou mesmo preconceito cultural o que poderia atrapalhar o desempenho bem sucedido dos alunos, já fosse com medidas inibitórias ou com faltas de atenção a assuntos que faziam parte da língua, tais como significados que a comunidade de falantes concedia às palavras (significados sem precisar de contextos), estilo (colocações e ordens de elementos da frase preferidas) ou mesmo ortografia. Depois de várias discussões, ficou esclarecido que convenções deveria ser entendido como acordos temporários e dirigidos a lidar com o caos de maneira provisória, porém permitindo as associações livres do pensamento que todo usuário da língua faz. Convenções eram, portanto, conseqüência de uma operação intelectual enquanto que os valores eram forças gravitantes que mantinham uma comunidade unida a partir de uma experiência comum. Dessa maneira ficou esclarecido que o problema não eram as convenções per se, mas o fato de considerá-las absolutos. A compreensão do termo fez o projeto fluir desde que assuntos como a aprendizagem da norma, estilo, ortografia era conseqüência da compreensão formal que cada comunidade faz do seu momento histórico e que podem ser discutidas entre as partes. As convenções constituíam, portanto, a formalização de uma seqüência dentro do contínuo sincrônico da língua. As dificuldades iniciais sobre a compreensão e função do termo puseram em sobre-aviso a equipe de trabalho sobre a necessidade de fazer entre os alunos um processo paralelo para que fosse entendido que o alvo do projeto era o próprio indivíduo como articulador dos relacionamentos que ele estabelecia na sua visão do mundo. No projeto, a sintaxe foi definida como a manifestação das próprias relações, a própria maneira de pensar, a impressão mental do caráter único de cada indivíduo. Dessa maneira esclareceu-se como era de relevante a compreensão prática dos termos postos em jogo para uma aquisição da língua eficaz, isto é, coerente com as intenções comunicativas do falante. Estas discussões prévias ajudaram, portanto, a detectar vários assuntos da maior relevância para o projeto: quando o aluno estava se relacionando com a língua como um produto acabado, repetível e sem qualquer atividade criativa pela sua parte? e quando estavam sendo ativados os processos de pensamento que o projeto considerava essenciais para a aquisição eficaz da língua? Isso também mostrou a influência de questões ideológicas, tais como a descoberta de que os alunos envolvidos no projeto consideravam a língua estrangeira como um conjunto de gramáticas normativas ou situacionais, ao passo

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que a sua língua mãe tinha nuances e dinâmicas que lhes permitia maior flexibilidade – ou mais estratégias – para esconder a sua identidade no seu raciocínio. O fato deles não disporem na língua alvo desse domínio de negociação de identidades fazia eles acreditarem que não conseguiam falar pelo fato de não dispor de uma gramática. Na linguagem dos alunos, portanto, gramática era o conjunto de declarações elaboradas pelo professor a modo de categorias. Assim os alunos mostravam acreditar e assumir que os relacionamentos na língua não poderiam ser livres, mas monitorados pelo professor e recolhidos impressos num livro ou em material xerocado. Não cogitavam que eles podiam ter a sua própria sintaxe, o próprio código de relações entre as partes da realidade material com a qual conviviam, e se jogavam erradamente no imediatismo da aquisição da forma como uma maneira de evitar vazios que lhes obrigassem a uma não habitual busca de sentidos. O projeto defrontou-se com que nem sempre os alunos que estudavam uma língua estrangeira se relacionavam com ela como uma língua viva. Por isso era necessário definir o conceito de língua.

II. 1.- (b) Conceito de língua que ia ser trabalhado no projeto. Problemas de avaliação na produção dos alunos A partir dos parâmetros teóricos que seguram o projeto, nos quais se diferenciava entre língua romance, no caso a espanhola, aquela que não era reduzível às regras (VALDÉS) e língua latinizada ou morta, passível de ser explicada em gramáticas (NEBRIJA), o grupo de trabalho ligado ao projeto estabeleceu logo de inicio a necessidade de que a língua fosse entendida como língua viva (o equivalente a língua romance no contexto valdesiano) e, portanto, deveria ser adquirível. Esse conceito teórico monitorou também a pergunta de que deveria ser avaliado na produção dos alunos e como. Além dos alunos envolvidos no projeto, avaliações mais recentes e específicas referidas a estudantes brasileiros (RAJAGOPALAN, 2003) trouxeram esclarecimentos sobre o relacionamento que estabeleciam com a língua estrangeira, tratada em muitos casos como língua exótica ou de prestigio social e não como língua de cultura. Os critérios de avaliação complicaram-se pelo fato de existir alunos que tinham uma aparência de evolução, por ter facilidade para apreender rapidamente a parte convencional da língua, entendida como forma fechada, ou estarem costumados pela tradição de ensino a dar maior importância a essas questões, mas não eram tão habituados a produzir além do previsível – assumir riscos nas associações, revelar a própria sintaxe e responder por ela. Por todo isso, os critérios de avaliação foram levados para questões de

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coerência interna do texto, de maneira que os alunos deveriam produzir sempre a partir dos discursos orais e escritos próprios. Assim, o professor virou leitor dos textos elaborados pelos alunos e puxava assuntos desde a produção deles, para que continuassem a linha dos seus assuntos, interesses ou pensamentos. Isso permitiria a equipe de trabalho observar a coerência, o que supostamente levaria a ter uma melhor compreensão do sujeito e ao desenvolvimento da língua a partir de pressupostos internos do aluno. A avaliação da coerência interna seria, portanto, uma maneira do aluno manifestar a sua identidade dentro do seu texto e com o menor número possível de interferências do professor para evitar inibir seu sistema de relações discursivas, que iriam encher de consertos e desfigurar a voz do aluno (o que foi definido na apresentação conjunta de três membros da equipe no IV SENALE, na UCP como usurpação do discurso).

II. 1.- (c) Definição de pragmática O projeto partiu do conceito de pragmática que entende língua como patrimônio universal dos indivíduos em sociedade para se comunicarem genuína e livremente. A pragmática revela como os usuários se relacionam com a língua e quais sãos os relacionamentos feitos dentro do discurso de cada falante. Desse modo, o projeto visava direcionar os alunos desde a busca circular de significados para a busca espiral de sentidos. Esta definição, que estava presente desde o início do projeto, procurava uma maneira eficaz de educar os alunos para entrarem nos seus processos de pensamento e produzir a partir deles. A aquisição da língua seria a conseqüência de um percurso pessoal e cheio de tarefas intransferíveis. Mas esse conceito trazia a tona a disjuntiva entre ética e moral, tão presente nas filosofias de ensino. Desde que a moral é uma disciplina que decide o que está certo e errado poderia ser ensinada, ao passo que a ética era uma dimanação livre e voluntária do indivíduo. Assim, o projeto defrontou-se com sérias questões ontológicas. Sendo a pragmática uma prática livre e voluntária, como poderia ser ensinada? Por enquanto, a conseqüência mais imediata é que a atuação em sala de aula deveria encaminhar os alunos para a observação, para a produção a partir de seus valores assumindo as suas contradições e que elas deveriam ser o combustível do seu próprio sistema de relações discursivas, sem qualquer tipo de avaliação moral das relações colocadas em jogo. E isso levou a outro termo que criou confusão no início: o conceito de sintaxe.

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II. 1.- (d) O sentido da sintaxe no projeto e os caminhos para articular uma possível avaliação da evolução do aluno O conceito de sintaxe adotado é complexo e amplo porque bate nas entrelinhas dos fundamentos teóricos do projeto, embora não seja um absoluto. A causa se deve a que é o princípio que rege o movimento das idéias e isso remete às experiências mais do que às definições fechadas. Alguns membros do grupo ficaram logo de inicio estagnados no manuseio do termo porque estavam acostumados a entendê-lo como um sistema fixo e determinado de macrocategorias, ao passo que o conceito de sintaxe aplicado no projeto driblava qualquer tentativa de ser preso às estruturas preelaboradas. À luz do acontecido em sala de aula, a equipe de trabalho considerou o termo sintaxe como um sistema de relações lingüísticas de livre escolha com repercussões sociais e individuais. É importante lembrar que o enfoque e os termos incluídos no projeto estão em uma interfase lingüístico-filosófica na qual podem ser observados, mas não apreendidos na sua totalidade. E isso é especialmente adequado no caso do conceito de sintaxe. O autor principal que fundamenta nossa pesquisa ação, Juan de Valdés, é um pensador da linguagem desde aspetos profundamente espirituais com implicações políticas numa época na qual dizer religião era dizer política. É nele que nosso projeto se baseia. Seu conceito de sintaxe passa às vezes como sinônimo de estilo, ou mais profundamente, como uma adequação entre o que se quer dizer e a forma. Isto é, como uma continuidade entre pensamento e ação. Por isso era tão importante no projeto o desenvolvimento do diálogo contínuo entre o professor e os alunos. As causas eram fundamentalmente duas. Por uma parte interessava desenvolver uma escrita que lembrasse uma prática da oralidade previa e, em segundo lugar, porque só uma memória de uma fala anterior poderia verificar a coerência do que um aluno dado estava colocando por escrito. Era obvio que a presença do aluno durante o semestre era indispensável para poder fazer uma mínima avaliação sobre a coerência entre suas colocações orais, menos atentas à forma, e sua escrita. O compromisso com a assistência era essencial.

II. 2- Avaliação de problemas práticos No que se refere às práticas em sala de aula, uma das perguntas mais freqüentes durante as discussões da equipe de trabalho foi: qual é a função do professor? e por tanto, qual é a função do aluno? Desde o inicio um dos objetivos fundamentais da aplicação do projeto foi observar e revisar os hábitos de trabalho em sala de aula, para o qual a professora privilegiou a auto-escuta e

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a auto-observação da sua atividade. Além disso, o silêncio converteu-se em um recurso criativo na comunicação com os alunos, uma vez que permitia tomar distância em relação aos processos vivenciados em sala de aula e definir espaços de trabalho. É importante salientar que o projeto aplicado na turma de Ensino Médio foi concebido a partir de duas perguntas que remetiam à língua desde sua dimensão pragmática: o por quê e o para quê. As perguntas são de enorme relevância visto que dão mobilidade ao espírito de ensino dentro do animus do aluno envolvido. O por quê remete à questões históricas inconscientes, ao passo que o para quê direciona para o futuro.

II-2 (a) Qual é o trabalho do professor em sala de aula? II.-2 (a). 1.-Assimilação de conceitos Na primeira fase, as práticas em sala de aula foram orientadas para a compreensão pragmática de questões lingüísticas, seguindo a definição de pragmática proposta no projeto, isto é: o uso lingüístico no qual se manifestam a identidade e os valores de uma comunidade de falantes. A tese principal do projeto é que o conhecimento dessa prática lingüística faz possível o processo de aprendizagem que leve aos alunos à produção cultural. Nesse primeiro momento, a atividade da professora estava relacionada com a preparação de materiais que permitissem aos alunos refletirem sobre o uso real da nova língua e, ao mesmo tempo, orientassem sua produção oral e escrita. O objetivo era que os alunos pudessem se tornar falantes autênticos da nova língua e para isso deveriam conhecer a dinâmica cultural que envolvia o uso da língua alvo. Isto só poderia acontecer se entrassem em contato com o contexto real no qual a comunicação acontecia. As expectativas dos alunos foram preenchidas no primeiro semestre quando as práticas foram semelhantes às práticas tradicionais. A professora era o centro organizador das atividades, determinando o material didático, os conteúdos a serem aprendidos e o tempo estimável para ter resultados. Isso revelava que os alunos consideravam a professora portadora dos modelos e das diretrizes gramaticais necessárias para ter um uso correto da língua. O fato dos alunos se relacionarem com a língua como um artifício gramatical, remetia diretamente à concepção da língua apresentada na Gramática Castellana (1492) de Antonio Nebrija. Segundo o filólogo, o castelhano devia ser reduzido ao artifício das regras, uma vez que tinha atingido seu máximo explendor. Dessa maneira, Nebrija entende que a arte da gramática preservaria o romance da corrpução do tempo e garantizaria sua uniformidade, convertendoo em uma língua morta, isto é, fora do devenir histórico: “...como vemos que se

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ha hecho en la lengua greiga y latina, las cuales por aver estado debaxo de arte, aunque sobre ellas an passado muchos siglos, toda vía quedan en una uniformidad” (Nebrija, p.16). Os alunos do projeto tinham hábito de aprendizagem da língua materna, isto é, estavam habituados a conhecer e pensar a língua unicamente desde a dimensão formal. Eles se relacionavam com a língua como um conjunto de categorias fechadas e marcadas por valorações normativas referidas ao correto/incorreto. Este hábito convergia com as práticas nebrijenses de ensino. Dessa maneira, foi observado que os alunos se relacionavam com o espanhol (LE) como uma língua inerte (o latim), objeto de fantasias exóticas (RAJAGOPALAN, 2003) (é uma língua bonita, gosto do som da língua, sempre sonhei estudar espanhol...), e não como veículo de comunicação legitimado pelo uso que a comunidade de falantes vem fazendo dela historicamente. Nesse sentido, um dos conceitos que foram mais discutidos no projeto foi o de convenção em relação ao conceito de valor. Na verdade, os dois conceitos eram complementares. A convenção é resultado de um pacto temporal que permite organizar em cada momento o aparente caos do contínuo vital e o valor é aquilo que mantêm a identidade de uma comunidade concreta. Em razão desta discussão, entraram em tensão duas tendências nas práticas em classe: por um lado, as questões formais (convenções gramaticais) foram trazidas à tona, porém antes de escutar as associações mentais de cada aluno (valores). Pouco a pouco, a professora foi dando prioridade à experiência do aluno como usuário da língua, o que permitiu trabalhar as convenções gramaticais a partir das necessidades comunicativas do aluno e da negociação de sentidos.

II.-2 (a). 2 .-Relacionamentos com a língua O fato de a língua ser o meio para o desenvolvimento da individualidade revelou-se como uma questão de ordem ética. Por isso, a ênfase na prática em sala de aula passou do uso da língua para o individuo como usuário da língua. Este deslocamento já estava se produzindo desde o inicio do curso, pois o diálogo de sentidos foi a atividade motriz das práticas. A pergunta que desencadeava a reflexão sobre o uso que o aluno fazia da língua era ¿qué quieres decir cuando dices...? Essa pergunta provocava dois movimentos. O primeiro acionava um impacto emocional (prosódia semântica) e o outro, posterior, acionava a sintaxe. Esses dois movimentos permitiam trabalhar as associações mentais de cada aluno e começar a explorar a conflituosidade que se revelava na sua expressão. O conflito nos coloca sempre diante de duas perguntas de ordem histórica: a pergunta do passado, por quê? e a pergunta do futuro, para quê?. O trabalho pragmático da língua contempla estas duas perguntas levando em conta o individuo

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como usuário, por quê uso a língua, para quê uso a língua? Quando falamos de trabalho pragmático da língua estamos falando, portanto, de um trabalho da história de indivíduos e sociedades, levando em conta sua conflituosidade.

II.-2 (a). 3 -. Situações reais e desenvolvimento da oralidade O objetivo do projeto era facilitar o surgimento de situações reais em sala de aula, nas quais os alunos pudessem trabalhar o uso da língua. Nas discussões da equipe de trabalho foi-se percebendo que as atividades realizadas em sala de aula não estavam conseguindo dar conta do que chamavamos de situações reais de comunicação2. No fundo os contextos apresentados também eram artificiais, pois pertenciam a um universo de produção textual externo ao aluno. Esses materiais textuais poderiam atuar como modelos desviando a atenção do aluno do que deveria ser o ponto principal: o desenvolvimento de um uso próprio da língua estrangeira, a partir do trabalho dos sentidos elaborados pelo universo de valores deles. Por isso, no decorrer das práticas compreendeu-se que o contexto real de comunicação estava determinado pela experiência do aluno como usuário da nova língua, partindo das necessidades e das capacidades dele. A oralidade tinha um papel fundamental no relato que o aluno fazia da sua experiência, uma vez que o projeto considera a oralidade requisito para desenvolvimento do individuo em sociedade. Nesse sentido, uns dos postulados principais do Diálogo de la Lengua, é sin afectación ninguna escrivo como hablo (p. 233), o qual oferece uma revisão da função da oralidade essencial para a aplicação do projeto em sala de aula. O fato de entender a escrita como um auxílio (ferramenta técnica) da oralidade permite ao aluno trabalhar a coerência entre o que fala e escreve, aprofundando e amadurecendo na escrita os pontos de interesse e os processos de pensamento manifestados na oralidade. Na primeira fase do projeto, os momentos de fala ainda estavam ajustados à atividade criada pela professora em classe. De fato, um dos dilemas ainda por resolver é de que maneira deixar fluir a oralidade dos alunos. A equipe de trabalho entendeu que a experiência real em classe referia-se à reflexão sobre a língua. Isto definia uma nova dinâmica pedagógica. Entrava-se, assim, na seguinte fase do projeto.

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Os materiais orais eram transcrições de situações informais recolhidas no banco de dados da RAE (Real Academia de la Lengua). Os materiais escritos materiais foram recolhidos de imprensa e Internet (revistas, jornais, bate-papo, e-mails).

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II.-2 (a). 4.- As operações práticas para o surgimento da voz em primeira pessoa O desempenho oral e escrito do aluno foi o material didático principal do curso. Assim, a atividade da professora durante esse semestre seria a de criar contextos de trabalho, nos quais os alunos pudessem desenvolver sua experiência como usuários da língua. O principal objetivo agora era conseguir o emprego da primeira pessoa como manifestação da individualidade. Isso fez surgir o problema da vivência emocional a ele vinculada. Com efeito, durante a primeira fase, a equipe de trabalho tinha diagnosticado uma profunda inibição da primeira pessoa que se manifestava de diferentes formas: fuga do compromisso com o que se estava falando, especulação com tópicos gerais na hora de se comunicar, ideologização do discurso e contradições internas. A primeira proposta foi que os alunos escolhessem um assunto relevante do seu cotidiano e fizessem um diário pessoal onde recolhessem impressões, sensações, observações e desse material partissem para a discussão em grupo e para a escrita de textos individuais. A proposta estava orientada para que cada aluno desenvolvesse sua capacidade de auto-aprendizagem e seu próprio processo de trabalho da língua estrangeira, deixando-os livres na procura das suas necessidades comunicativas. Haveria registros quinzenais em grupo nos quais se recolheria o que tinha se falado na sala, para assim ativar a memória e a manifestação da primeira pessoa. Mas no decorrer do semestre foi observado que os temas escolhidos versavam sobre assuntos tipificados pela Mídia. Portanto, o que estava se chamando de contextos de trabalho no fundo eram macroatividades planejadas previamente, com o conseguinte risco de direcionar o trabalho da língua para gêneros que os alunos não tinham escolhido3. O objetivo do projeto era que a sala fosse o contexto real do uso da língua. Durante essa segunda fase ficou claro que a função do professor é orientar o aluno na definição dos seus interesses e objetivos e fazê-lo consciente dos seus processos de pensamento e suas manifestações emocionais. Dessa maneira, cada aluno foi determinando qual era o trabalho que queria fazer. A equipe 3

Esta questão foi discutida durante o primeiro ano de aplicação do projeto na Escola de Ensino Médio, uma vez que a proposta de trabalho em sala de aula estava relacionada com o conceito de letramento. Durante as práticas pode-se comprovar que o fato de promover a produção em gêneros textuais preestabelecidos pelo professor, era também uma proposta de corte estruturalistas. O aluno não chegava ao gênero por ele próprio, a partir das necessidades e da experiência como usuário da língua, e sim pelos critérios do professor. Nessa linha está também o que temos mencionado em relação ao postulado valdesiano de escrivo como hablo, privilegiar a fala é a única maneira de poder negociar com as convenções, nesse caso com os gêneros textuais.

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entendeu que o respeito ao tempo de cada aluno era essencial no processo de aquisição da língua estrangeira. II.-2 (a). 5.- Definições de tarefas, delimitações de espaços Os hábitos dos professores são fruto da formação cultural e estão enraizados no inconsciente. No imediatismo da atuação em classe, atuam crenças que fazem do professor o centro operador e modelo, produzindo-se nas maiorias das vezes uma usurpação de espaços, tempos, tarefas do aluno. Conforme se foram aplicando os critérios do projeto, os silêncios em classe aumentaram. Isso criou uma distância a partir da qual os alunos reconheceram seu espaço e sua função, ao tempo que permitia fluir o pensamento. Nesse sentido, como já foi mencionado anteriormente, a reformulação do papel do professor está particularmente ligada à reformulação que este tem com a língua, os silêncios de repente se tornaram parte da atividade lingüística em sala de aula e adquiriram um valor criativo e libertador. A proposta que Juan de Valdés realiza no Diálogo de la Lengua é um apoio fundamental ao projeto. Nele são apresentados os traços principais de uma nova maneira de encarar a atividade pedagógica que está determinada por como Valdés se está relacionando coma língua. As estratégias usadas (vazios de informação, devolver a pergunta ao discípulo, direcionar dos significados aos sentidos, orientar o discípulo para a observação da escuta e a observação da língua) são atípicas na época na qual Valdés escreve, pois o referencial se encontrava submerso em práticas humanísticas representadas por Nebrija. A equipe entendeu que essa seria a chave da realização prática do projeto, pois nenhuma transformação pode acontecer na dinâmica da sala de aula sem primeiro passar pela reformulação do relacionamento que o professor estabelece com a língua e a linguagem. II-2 (b) Qual é o trabalhado do aluno em sala de aula II.-2 (b).1.- Conceito de gramática Desde o início do curso, as monitoras foram observando a reação dos alunos diante da nova proposta e comprovou-se como eram quebradas suas expectativas sobre a função do professor e sobre o que era aprender uma língua estrangeira. No início, todos os alunos pediam gramática, o que era equivalente a pedir exercícios estruturais controlados, explicações descritivas e normativas da língua, modelos textuais. Porém quando os alunos falavam de gramática incluíam nela o estilo do professor. Segundo o observado, os alunos acreditavam que o professor deveria organizar seu processo de conhecimento e pensamento.

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Dessa forma, inibe-se a capacidade do aluno para vivenciar seus vazios, necessários para desenvolver sua autonomia no processo de aquisição da língua e sua capacidade criativa nos processos de pensamento e conhecimento. Nessa segunda fase, a equipe decidiu retirar todo tipo de material alheio à produção do aluno. Cada um trazia os recursos que tinha (dicionários, gramáticas, tabelas de verbos) e o trabalho oral e escrito tornou-se combustível da aquisição da LE. Tentou-se que as convenções gramaticais fizeram parte do diálogo e que a produção partisse dos pontos de interesse do aluno. Mas poderia ser formulada a seguinte pergunta: de que maneira o aluno aciona a sua capacidade de observação e escuta para levantar suas próprias perguntas em relação às convenções formais? Mas esse deslocamento foi realizado com vários momentos de crise nos quais os alunos manifestavam seu malestar pela falta de atividades e materiais (textos, música, filmes,...). A resposta da equipe em todo momento foi focalizar o trabalho que cada aluno estava realizando, voltando a atenção para o que era de fato relevante. Como já foi dito anteriormente, tratava-se de dar ao aluno seu espaço, suas tarefas, seu papel. Claramente no projeto, a função do aluno é a de aproveitar sua experiência como usuário da língua de forma consciente, detectar suas contradições e conflitos e trabalhá-los para a construção de um discurso próprio e coerente.

II.-2 (a). 1- Problemas na concepção do eu. As dimensões do indivíduo. Em relação à manifestação da individualidade, um dos problemas detectados foi o fato de vários alunos a confundirem com intimidade. Com efeito, através das conversas com os alunos e das suas manifestações na textura da sua produção se revelou que não existe uma vivência da primeira pessoa poliédrica, o que dificulta a manifestação das várias maneiras de entender a individualidade (desde o eu intimo ao eu público). Isto provoca, na maioria das vezes, uma fuga através do uso das formas da impessoalidade, pois é a maneira de falar ou escrever sem ter que mostrar diretamente a dimensão individual, que eles interpretam como referida à intimidade. As conseqüências são muito graves, pois a inibição da primeira pessoa acaba formando indivíduos imaturos no seu desenvolvimento da língua e da linguagem; indivíduos que vão ter que atuar na sociedade sem saber lidar com as diferentes gradações da primeira pessoa e sem estabelecer um compromisso pessoal com sua realidade. Portanto, este problema, junto com a construção de um discurso coerente por parte do aluno, serão abordados nas seguintes fases do projeto.

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II.-2 (b).2.- A pragmática operativa. Habitualmente, ao colonizar os espaços de trabalho do aluno, ao controlar seus processos de pensamento e ao direcionar sua atividade lingüística, o que se estava fazendo é impedir que ele desenvolva a responsabilidade de uma forma autônoma. Nesse sentido, é importante esclarecer que quando se fala da função do aluno, faz-se necessário que ele se responsabilize pelo que faz, pelo que pensa, sente e fala, pois é a única maneira de que possa amadurecer realmente sua experiência como usuário da língua e por tanto sua individualidade, proposta essencial dentro do enfoque pragmático. É importante lembrar aqui que os objetivos propostos no projeto já estavam encaminhados nessa direção, embora foram aprofundados com as discussões e as práticas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS O projeto agora apresentado considera a oralidade como uma ferramenta pedagógica fundamental nos processos que facilitem a aquisição da língua em sala de aula. No uso didático da oralidade aparecem elementos filosóficos, pragmáticos e discursivos que confluem fazendo com que se levantem questionamentos sobre as práticas educativas até agora mantidas em classe. Um ensino que faz ênfase em gêneros textuais inibe a oralidade, fonte da evolução das línguas vivas, e envolve o aluno em processos contraditórios que negam a sua experiência lingüística e a sua percepção da realidade individual e comunitária, afastando-o da chance de colaborar nas práticas que definem a sociedade na qual se encontra submerso. Por outra parte se faz necessário definir o que é experiência real em sala de aula. A proposta do projeto é fazer da reflexão do uso da língua a oportunidade para suscitar experiências nas que participem os alunos. A reflexão do professor sobre como se relaciona com a língua é também fundamental para que a experiência em sala seja real.

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REFERÊNCIAS CAÑAS, Rocío Serrano. Repercussões do ideal formal no processo de aquisição da LE. . In: XXI Jornada Nacional de Estudos Lingüísticos, 2006, João Pessoa: Idéia. Sessão coordenada. p. 2513-2518. 1 CD ROM. ESCALANTE, María del Pilar Roca. Negociação de sentidos no ensino/aprendizagem de uma língua estrangeira. In: XXI Jornada Nacional de Estudos Lingüísticos, 2006, João Pessoa: Idéia. Sessão coordenada. p. 1930-1935. 1 CD ROM. _____.La interferencia de las emociones em el aprendizaje de uma lengua extranjera. Letr@ Viv@, João Pessoa, v.1, n.3, 2001. p. 97-106. GOMES, Yarana Serrano. Pratica de observação em sala de aula. In: XXI Jornada Nacional de Estudos Lingüísticos, 2006, João Pessoa: Idéia. Sessão coordenada. p. 3039-3044. 1 CD ROM. HUARTE DE SAN JUAN, Juan. (1989) Examen de ingenios. Madrid: Cátedra. NEBRIJA, Antonio, Gramática de la Lengua Castellana. Disponível em: Acesso em: 19 jun.2005. RAJAGOPALAN, Kanavillil (2003). Por uma lingüística crítica. Linguagem, identidade e a questão ética. São Paulo: Parábola. RIBEIRO, Silvia Renata. Reflexões acerca das relações entre LM e LE em aulas de E/ LE. In: XXI Jornada Nacional de Estudos Lingüísticos, 2006, João Pessoa: Idéia. Sessão coordenada p.2727-2732. 1 CD ROM. VALDÉS, Juan. (2003) Diálogo de la lengua. Madrid: Cátedra. VERSCHUEREN, Jef. (2002) Para entender la pragmática. Madrid: Gredos.

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Glícia Azevedo Tinoco *

PROJETOS DE ENSINO COMO ALTERNATIVA DIDÁTICA DE ARTICULAÇÃO ENTRE SABERES ACADÊMICOS E SABERES EXPERIENCIAIS DE PROFESSORES EM FORMAÇÃO. (Teaching projects as a didactic alternative that makes possible the ar ticulation among academic knowledge and experimental knowledge of teachers in formation) ABSTRACT Studies in the area of the Applied Linguistics have been evidencing the impor tance of considering teachers’ knowledge and achievements for the development of united and reflexive actions (former and teachers in formation) that put the theory in function of the pedagogic practice (KLEIMAN [1995] 2001). Allying to these studies, we intend to analyze the relevance of the teaching projects as a didactic alternative that makes possible the articulation among academic knowledges, more specifically the new studies of literacy, and experimental knowledges, produced by teachers in formation and their students from fundamental and intermediate teaching levels, in the development of teaching projects. Therefore, we will discuss the data of three literacy events (two of them related to a same project) developed in a public school of a rural area in the state of Rio Grande do Norte, Brazil, during the “Supervised Phase I” of the course of Letters (PROBÁSICA/UFRN). Our intention is to demonstrate the ressignification that was reached from the understanding of three fundamental concepts for the work with maternal language, which are: text, reading and writing. Keywords: teaching projects, knowledge mobilization, teachers’ formation. RESUMO Estudos na área da Lingüística Aplicada têm evidenciado a importância de se considerar os saberes e os fazeres dos professores no desenvolvimento de ações reflexivas conjuntas (formadores e professores em formação) que coloquem a teoria em função da prática pedagógica (KLEIMAN [1995] 2001). Aliando-nos a esses estudos, pretendemos analisar a relevância dos projetos de ensino como alternativa didática que possibilita a articulação entre saberes acadêmicos, mais especificamente os novos estudos do letramento, e saberes experienciais, produzidos por professores em formação e seus alunos de ensino fundamental e médio, no desenvolvimento de projetos de ensino. Para tanto, discutiremos dados de três eventos de letramento (dois dos quais relacionados a um mesmo projeto) desenvolvidos em escola pública do agreste do RN no decorrer do “Estágio Supervisionado I” do curso de Letras (PROBÁSICA/ UFRN). Nossa intenção é demonstrar a ressignificação alcançada na compreensão de três conceitos fundamentais para o trabalho com língua materna, quais sejam: texto, leitura e escrita. Palavras-chave: projetos de ensino – mobilização de saberes – formação de professores

* UFRN / UNICAMP

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INTRODUÇÃO Na sociedade grafocêntrica em que vivemos, chega a ser um truísmo afirmar que a escrita tem um papel central nas diferentes esferas de atividade humana. Todavia, cabe à escola sistematizar o processo de ensino-aprendizagem da linguagem escrita e é exatamente no desempenho dessa função que tal agência social tem sofrido sérias críticas, principalmente após a divulgação dos resultados (quase sempre negativos) de diferentes exames (SAEB, SARESP, ENEM, PISA) em torno das capacidades de leitura e de escrita de estudantes brasileiros. Nesse contexto, um acirrado debate acadêmico na área da formação do professor e nos estudos de letramento tem sinalizado a necessidade de ressignificação do ensino de linguagem escrita. Para esse debate, colaboramos, inicialmente, a partir da análise das estratégias de ensino de linguagem escrita, desenvolvidas por uma professora-agente de letramentos1 em uma ONG de Natal/RN (TINOCO, 2003); nos últimos anos, preocupam-nos três questões centrais: como, na formação de professores de língua materna, o trabalho com a escrita é desenvolvido; que mobilizações os professores em formação fazem de suas experiências como graduandos para sua atuação profissional em sala de aula, enquanto profissionais responsáveis, por excelência, pela condução do processo de ensino-aprendizagem da escrita; como os projetos de ensino subsidiam (ou não) a ampliação de conceitos centrais para as aulas de língua materna, quais sejam: texto, leitura e escrita. Em torno dessas questões é inegável a influência de diferentes iniciativas de várias instituições no desenvolvimento do trabalho docente. Dessas iniciativas, salientaremos algumas que estiveram em maior ebulição nas décadas de 80 e 90 cujos reflexos são atuais: divulgação de pesquisas acadêmicas na área do ensino de leitura e de produção textual, bem como sobre letramento; disponibilização de acervos bibliográficos (PNSL, PNBP, PNBE, PNLD) para a formação do acervo escolar e, algumas vezes, para o acervo particular do aluno; exigência de formação em nível superior para professores de todos os níveis de ensino (LDB 9.394/96); indicações de reformulação curricular (PCN, 1997); oferecimento de cursos presenciais, semipresenciais ou virtuais de formação inicial, continuada e em serviço a professores de norte a sul do Brasil. Além disso, há as forças do interior da escola (o projeto políticopedagógico, as crenças da equipe pedagógica, os projetos que a escola desenvolve, os interesses do público que atinge) e as experiências de vida e de 1

Um professor-agente de letramentos é, segundo Kleiman (2006), um mobilizador, dos sistemas de conhecimento pertinentes, dos recursos, das capacidades dos membros da comunidade (...) um promotor das capacidades e recursos de seus alunos e suas redes comunicativas para que participem das práticas sociais de letramento, as práticas de uso da escrita situadas, das diversas instituições.

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letramento de cada professor nas esferas do lar, da religião, da comunidade em que vive e/ou trabalha, da atuação sindical que exerce, dos diferentes espaços de socialização de que participa. Tudo isso compõe um complexo mosaico (TINOCO, no prelo) que pode justificar algumas das mobilizações de saberes realizadas por determinados professorandos (e não por outros) em sua própria prática pedagógica (sobre a heterogeneidade dos saberes docentes ver TARDIFF, 2001; RAFAEL, 2004). De fato, professores e alunos ao mesmo tempo em que estão sujeitos a todas essas pressões agem sobre a confluência de forças entre a ciência, a formação acadêmica, as leis, as iniciativas governamentais, as ações escolares e as experiências pessoais e, nesse movimento dialético e dialógico, o processo de ensino-aprendizagem se desenvolve.

1 CONTEXTUALIZAÇÃO Os dados deste artigo foram gerados no ano de 2005, no pólo de Nova Cruz (município que agrega um total de 36 professorandos, vindos de escolas públicas locais e de outras cidades da região agreste norte-rio-grandense), durante a disciplina “Estágio Supervisionado I”, do curso de Letras do PROBÁSICA, um programa de formação inicial de professores em atividade na Educação Básica, mas sem formação específica, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Desse grupo constituído por vinte e nove mulheres e sete homens (mais uma vez a feminilização da educação brasileira é comprovada), todos são norterio-grandenses com faixa etária média de 40 anos; trinta professores (83,3%) têm, em média, 19 anos de atividade em sala de aula; a faixa salarial média varia entre 1 e 2 salários mínimos2. Entre eles, apenas cinco são solteiros (4%); vinte e três não escolheram ser professores (63%), mas foi essa a opção de emprego que lhes apareceu; trinta e cinco desses professores (97%) representam a pessoa mais escolarizada da família.

2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICO-METODOLÓGICA A compreensão de que diferentes concepções de linguagem escrita (expressão do pensamento – instrumento de comunicação – lugar de interação) balizam diferentes processos de ensino-aprendizagem nos conduz a perceber a relevância das pesquisas na área de formação de professores que ressaltam 2

Estamos tomando como referência o salário mínimo de trezentos reais, em vigor na época em que nossos participantes de pesquisa responderam ao questionário (1o semestre de 2005).

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não ser o trabalho em sala de aula uma pura aplicação de teorias e métodos. Isso implica dizer que repensar a formação do professor (inicial, continuada, em serviço) não significa apenas empreender alterações curriculares. Mais do que a proposição de modelos teórico-metodológicos é relevante que a formação de professores contemple a reflexão sobre as tentativas de mobilização dos saberes acadêmicos para a prática em sala de aula, uma vez que, nesse processo, é perceptível a presença de diferentes propósitos comunicativos (na perspectiva de SWALES, 1990) particulares a cada grupo de professores e alunos (entendidos como uma comunidade discursiva específica, também segundo SWALES, 1990). É analisando esse movimento entre a sala do curso de formação e a sala de aula de ensino fundamental e médio que percebemos que o fluxo de paradigmas, evidente no desenvolvimento das ciências, também o é no âmbito do ensino, ou seja, nas décadas de 60 e 70, orientava-se o trabalho docente para que se concentrasse na classificação das palavras e da oração; nos anos 80, o privilégio passa a ser o uso do texto; no final da década de 90, o trabalho preferencialmente sugerido é com os gêneros discursivos. Todavia, assim como não se pode falar em total ruptura de paradigmas de uma década para outra, haja vista o movimento de coexistência e de disputa epistemológica de alguns paradigmas em relação a outros em um mesmo período, não se pode supor a transposição do discurso científico para o discurso pedagógico. Perdura uma forte tensão entre uma tentativa de acompanhamento das discussões acadêmicas, uma tímida aproximação entre o trabalho do professor de línguas e o do lingüista aplicado3 e um movimento de resistência de alguns profissionais da educação que questionam a validade de alguns construtos teóricos na prática cotidiana vivenciada entre professores e alunos de ensino fundamental e médio. Com efeito, assim como existem cientistas da linguagem que, envolvidos com o trabalho SOBRE a linguagem, pouco têm a dizer a respeito de graves problemas sociais, que envolvem necessariamente questões lingüísticas, há professores de línguas que por vezes se perguntam acerca da funcionalidade de determinadas questões teóricas para o equacionamento de problemas no ensino de línguas. Entretanto, a articulação entre o pensar SOBRE linguagem e o pensar EM linguagem, ministrando aulas SOBRE linguagem, mediadas PELA linguagem,

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Sob hipótese alguma estamos desconsiderando as pesquisas realizadas por sociólogos, antropólogos, psicólogos, pedagogos, fonoaudiólogos, entre outros profissionais que têm influência significativa na reflexão em torno da ressignificação do ensino de línguas e, especificamente, do ensino de linguagem escrita, nosso interesse maior. Entretanto, estamos assumindo que as pesquisas dos lingüistas aplicados tendem a se aproximar mais das questões de linguagem que preocupam os professores em atividade na educação básica e a apontar possíveis caminhos teórico-metodológicos para o ensino de línguas, uma vez que seu foco na linguagem lhes permite observar questões que poderiam ficar obscurecidas a outros profissionais.

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além de enriquecedora, é completamente viável; todavia, requer uma formação reflexiva, crítica e de ação social. Atingir essa meta não é tarefa fácil. Várias pesquisas e publicações vêm confirmando que, para muitas escolas brasileiras, quer públicas ou privadas, o trabalho com língua materna ainda é o de exploração de regras gramaticais (ILARI e POSSENTI, 1987; SILVA, 1994; POSSENTI, 1996; KLEIMAN, 1999; APARÍCIO, 1999; RAFAEL, 2001; NEVES, 2002). Nossos dados de pesquisa também revelam que 100% de nossos professores em formação privilegiam, em suas aulas, o ensino de gramática através de exercícios de metalinguagem, ora por meio de estruturas sintáticas desconexas, ora a partir do texto-pretexto, ora camuflando esse objeto de ensino (a gramática) dentro de um projeto de ensino. Para tentar alterar esse estado de coisas, nossa ação no curso de Letras do Probásica se concentrou, inicialmente, em debater com os graduandos acerca da leitura e da escrita do entorno: do campus universitário, da cidade de Nova Cruz e das cidades circunvizinhas, do caminho que cada um realizava para chegar até a sala de aula de formação e da profusão de textos escritos que nos rodeiam nesses diferentes percursos. Para tanto, utilizamos fotografias desses vários locais, a fim de sensibilizá-los a perceber a sociedade grafocêntrica em que estamos mergulhados. Essa sensibilização inicial abriu espaço para o estudo do conceito de letramento, entendido como um construto que envolve práticas sociais ancoradas na leitura e na escrita (STREET, 1993; KLEIMAN [1995] 2001). Na tentativa de mobilizar os graduandos a perceber a escrita nas práticas sociais de suas comunidades, envolvemos tais professores e seus alunos de ensino fundamental e médio em projetos sobre patrimônios municipais (por eles escolhidos) que teriam, como atividade de culminância, o encaminhamento de relatório para o Concurso Nacional Tesouros do Brasil, o qual se destina à valorização do patrimônio histórico, natural, artístico e afetivo brasileiro. Em função das ações de leitura e escrita dos projetos, outros conceitos foram discutidos, quais sejam: de gênero discursivo, noções de texto, leitura, escrita, erro e reescrita. Neste artigo, daremos visibilidade a três dos diversos eventos de letramento vivenciados no decorrer do Estágio Supervisionado I. O primeiro foi desenvolvido em uma 4a série do ensino fundamental por um grupo de professorandas antes do engajamento delas em um dos projetos do Concurso supracitado e os dois outros eventos são de um mesmo projeto, desenvolvido por uma das professorandas do mencionado grupo, em uma turma de Educação de Jovens e Adultos.

3 ANÁLISE Nossa análise está estruturada em função de três indagações centrais: os

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professores operam mobilizações que indiciam aproximação dos saberes acadêmicos? Em que os estudos de letramento podem ajudar na ressignificação do ensino de linguagem escrita no âmbito escolar? Transformar os projetos de ensino desses professorandos em objetos de reflexão do curso de formação viabiliza uma aproximação mais efetiva entre os saberes acadêmicos e os experienciais? No início do semestre (2005.1), solicitamos aos professores em formação que nos trouxessem um plano de aula de produção de textos escritos e os dados de sua planificação. Dentre os vários grupos, selecionamos para análise o plano apresentado pelas professorandas Alva, Maria e Elba4: muito assíduas, questionadoras e ávidas, segundo elas próprias, por sugestões de “renovação didática”. Evento 1 AULA DE PRODUÇÃO DE TEXTO Escola Estadual Profa Joana Arruda – Professoras: Alva, Maria e Elba. Turma: 30 alunos de 4a série, com faixa etária entre 09 e 11 anos. Nova Cruz, maio de 2005. 1 – Objetivo da atividade: ler para escrever. 2 – Solicitação aos alunos de seus conhecimentos prévios sobre Monteiro Lobato. 3 – Estabelecimento de relações entre o livro “Reinações de Narizinho” (uma parte desse livro foi lida em aula anterior) e a minissérie infantil “Sítio do Pica-pau Amarelo”, produzida pela Rede Globo. 4 – Leitura compartilhada de um trecho da obra: A fada que tinha idéias, de Fernanda L. de Almeida. 24a. Ed. São Paulo: Ática, 1998. 56 pág. 5 – Indagações para a turma após a leitura: * Por que é importante ler? * Por que é importante escrever? 6 – Dinâmica: cada aluno escreve em um papel uma palavra que lembre o Sítio do Pica-pau Amarelo; recolhem-se os papeizinhos e cola-se tudo em uma folha de papel madeira. 7 – Comentários (das professoras) acerca da biografia de Monteiro Lobato. 8 – Leitura compartilhada: O saci, de Monteiro Lobato. 56a. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994, 46 pág. 9 – Solicitação de comentários dos alunos acerca da compreensão do texto lido. 10 – Produção de texto Imagine que você é Monteiro Lobato e escreva um episódio do Sítio do Pica-pau Amarelo, que ainda irá passar na Rede Globo. Obs.: Como o tempo avançou, a finalização do texto ficou como dever de casa.

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Para preservar a identidade dos participantes de nossa pesquisa, utilizamos pseudônimos.

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O resultado dessa aula foi a produção de trinta redações. Para a apreciação da formadora e dos colegas, as professorandas escolheram uma redação (produzida pela aluna Daiany, 10 anos, não-repetente) que lhes parecia “sem pé nem cabeça” e direcionaram ao grupo a seguinte indagação: “como corrigir tantos erros?”. Redação 1 Leitura falando sobre o Sítio do Pica-pau Amarelo As história das eleições O coronel teudorico emventon de se prefeito iai ficou desputido com seu elias é emtão eles ficarão desputindo porque o coronel teudorico queria gaia mais elias também queria gaia é emtao tinha uma caixa detro da Ingreja é emtão o padri galago a caixa no lado de fora é depois o padri galago a caixa na mão o coronel teudorico galacava 1 real é seu elias galacava 3 reais é assifoi e doi colocado diero na caixa um dia seguite o coronel teudorico lavol muitos prezetes para a turma do Sítio para a dona benta o coronel teudorico deu para ela um televisao para dona benta mais a televissao estáva quebrada mudando de asuto o coronel teudorico deu um boneca para narizinho mudando de asuto o coronel teudorico deu um carrio de controle para pedrinho mudando de o coronel teudorico deu um avental para tia nastásia a tia nastásia adoro na frete do aventau tia a cara dele mudando de asuto o coronel teudorico deu um bone para emilia a emilia ficou comraiva é depois a vovó dona benta mandol o coronel teudorico leva tudo de volta porque estava tudo quebrado é emtao ele calago tudo no camião e levou. FIM. ASS: DEAF

Na tentativa de construir resposta(s) coletiva(s) a essa indagação, propusemos a realização de uma sessão reflexiva inicialmente sobre o plano de aula, de cujos itens ressaltamos alguns pontos: · o objetivo da atividade parece refletir a compreensão de que ler e escrever são processos complementares; entretanto, é importante salientar que são processos distintos, razão por que escrever bem requer um exercício sistematizado e não apenas a leitura de uma diversidade de textos de diferentes gêneros (conforme uma leitura simplista dos PCN de Língua Portuguesa pode evocar); · a solicitação do conhecimento prévio dos alunos sobre Monteiro Lobato é uma estratégia de ensino que favorece o debate em torno do livro lido na aula anterior e da minissérie Sítio do Picapau Amarelo; todavia, na seqüência, a leitura de um livro de outro autor (recomendado pelo PNBE 2003) pode sugerir a compreensão de que escrever bem se vincula a ler textos de autores de prestígio, compreendidos como “modelos de boa escrita”. Emerge daí a concepção de ensino da escrita como um processo natural de assimilação de bons modelos;

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· as indagações “Por que é importante ler? Por que é importante escrever?” sugerem a mobilização das reflexões em desenvolvimento no curso de formação para a sala de aula de 4a série, mas ficaram vazias de sentido, uma vez que não estavam em função de um exercício de reflexão maior (algumas crianças responderam: “para colocar o pensamento no papel”, “para arrumar emprego”, “para aprender mais” e tudo foi aceito como adequado sem qualquer debate); · a dinâmica de composição de um campo semântico em torno da minissérie infantil Sítio do Picapau Amarelo, no caso, a técnica “brainstorming” ou “tempestade de idéias”, uma atividade para explorar a potencialidade criativa das pessoas, antecede algumas atividades que também não sistematizam o ensino de escrita; · a própria proposta de produção, por sua vez, desconsidera, primeiro, a impossibilidade de as crianças, ao se imaginarem sendo Monteiro Lobato, escreverem com um estilo próximo ao dele; segundo, Monteiro Lobato não escreveu episódios da minissérie infantil em questão; terceiro, não se escreve um gênero através da leitura de outro. As professoras leram um conto e solicitaram um episódio de minissérie de televisão. Em suma, no evento 1, não houve sistematização do ensino de escrita. A escrita foi compreendida como um processo criativo e individual cuja materialidade é o texto-produto que o aluno, por mérito próprio, deve atingir. Na indagação inicial que as professorandas lançam para o grande grupo, subjaz a compreensão de que ao professor cabe ler cada uma das redações entregues, corrigir problemas de dimensão formal e dar uma nota compatível com o número de erros apresentados. Daí a preocupação em saber como deveriam proceder para corrigir todos os erros das trinta redações, o que implica uma visão de erro não como hipótese para o acerto, mas como algo a ser extirpado. O que fazer com todo esse material? Por onde começar? Eram as principais indagações do grande grupo. Em primeiro lugar, ser leitor dos textos dos alunos, não avaliador tão-somente. Tentar atribuir sentido(s) ao texto, ser colaborativo, considerar o intuito discursivo desse escrevente, o seu querer-dizer. A partir disso, coletivamente fizemos uma atividade de reescrita cujo resultado foi o seguinte:

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Presente de grego Próximo ao Sítio do Picapau Amarelo em um arraial chamado Tucano moravam o Coronel Teodorico e o Sr. Elias, dono de uma bodega. Ambos sonhavam ser o primeiro prefeito daquela localidade. A campanha eleitoral se iniciou com a formação das equipes responsáveis pela organização do pleito. O padre, aproveitando a situação, trouxe a caixinha de oferta para os candidatos fazerem a sua doação. O coronel Teodorico colaborou com R$ 1,00 e o Sr. Elias, por sua vez, com R$ 3,00. Um dia, o coronel visitou o sítio e levou presentes para a turma. Para Dona Benta deu uma televisão, que estava quebrada; para Narizinho, uma boneca; para Pedrinho, um carrinho de controle; para Tia Nastácia, um avental, que, como era tempo de eleição, tinha a cara dele; para Emília, um boné. Ela ficou com raiva porque gostaria de ter ganhado uma boneca. Como Dona Benta percebeu que os presentes tinham sido dados por interesse político, resolveu devolvê-los. O coronel colocou tudo no caminhão e levou de volta. Alunos de Letras (Nova Cruz/RN). Maio de 2005.

Após essa atividade de reescrita, as professorandas perceberam que, embora a versão coletiva tenha se aproximado mais das convenções de um texto escrito do que a versão original (da aluna da 4ª série), ainda assim não correspondia à proposta por elas formulada: não se configurava como um episódio de minissérie de televisão nem como um conto no estilo de Monteiro Lobato, tratava-se de uma redação escolar, na qual a seqüência narrativa era predominante. Depreende-se daí que escrever é muito mais do que desenvolver a criatividade. O exercício da escrita está associado a uma série de restrições que precisam ser explicitadas: quem escreve o quê, para quem ler, a partir de que propósito comunicativo, quando e onde escreve, dispondo de que recursos lingüísticos e extralingüísticos, com que tipo de engajamento em torno do tema e a partir de que gênero. Nesse sentido, tal exercício de reescrita foi particularmente interessante para despertar, nos participantes, a necessidade de investirem em uma análise mais crítica da linguagem, que envolve, por exemplo, a percepção dos mecanismos de textualização e as questões discursivas que do texto emergem. De fato, se por um lado, substituir palavras por sinônimos ou mudá-las de uma posição para outra implica uma série de alterações no projeto de dizer de alguém; por outro, aprender a reescrever reescrevendo propicia um metaconhecimento importante para o trabalho em sala de aula e para o reposicionamento do papel do professor diante dos textos dos seus alunos: de avaliador para leitor, colaborador. Pensando a escrita como um processo complexo, a correção da dimensão formal (preocupação maior das professoras até então) passa a ser apenas UM dos pontos a analisar, não o mais importante.

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Refletir crítica e coletivamente sobre a própria ação desencadeou um processo de ressignificação conceitual e metodológica em termos de ensino de escrita a essas professorandas? Sim e não. Vejamos o porquê no evento 2. Evento 2 Escola Estadual Joana Arruda – Professora Alva Turma: 20 alunos de educação de jovens e adultos, com faixa etária entre 20 e 45 anos. Nova Cruz/RN, 06 de junho de 2005. 1 – Leitura em voz alta do título da matéria “Alunos criticam pronúncia de um professor”, extraída do jornal local “Gazeta do Agreste”, seção Educação, de maio de 2005. 2 – Levantamento das expectativas dos alunos acerca do texto a ser lido. 3 – Entrega de um exemplar do jornal para cada grupo. 4 – Leitura compartilhada em pequenos grupos. 5 – Debate em grande grupo. 6 – Produção de texto Mediante matéria jornalística extraída da seção “Educação” do jornal Gazeta do Agreste, de maio/2005, trazendo no contexto a afirmação: “A obrigação da escola é preparar para a vida e não para o vestibular”, escreva, diante dessa afirmação, o que você espera da escola. Obs.: A matéria foi selecionada em vista de o fato ter ocorrido na cidade de Nova Cruz e estar vinculado ao interesse direto do aluno que freqüenta o ensino médio visando um preparo à efetivação de um vestibular. A atividade transcorreu de forma bastante satisfatória, tendo em vista a participação da grande maioria da turma e ainda o desempenho coletivo quanto à execução da atividade. Os alunos apresentaram uma maior disponibilidade em escrever decorrente talvez da familiaridade com o tema trabalhado.

A culminância dessa aula foi a produção de vinte comentários de diferentes tamanhos (de um só período a vários parágrafos), gêneros (bilhete direcionado à professora, redação, artigo de opinião) e propósitos comunicativos (alguns aderem à proposta e oferecem sua opinião, outros apenas criticam a escola e nada escrevem sobre o tema em pauta, outros criticam o professor mencionado na matéria, mas não se posicionam quanto ao que esperam da escola). Essa aula se desenvolveu em um período em que, no curso de formação, as leituras sobre letramento já haviam avançado um pouco mais e a Profa Alva e seus alunos estavam engajados em participar do Concurso Nacional Tesouros do Brasil, razão por que escolheram a Estação Ferroviária como patrimônio da cidade de Nova Cruz/RN. Entretanto, devido à forte resistência dos alunos ao serem informados de que seriam os agentes dos textos a se produzir (ou seja, não se tratava de uma atividade escolar cujos focos são a cópia e a memorização

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de informações, mas de um levantamento de dados em campo), aliando traços identitários de leitora do jornal de maior circulação na cidade de Nova Cruz e de profissional ávida por textos interessantes para suas aulas, a Profa Alva seleciona uma matéria do jornal “Gazeta do Agreste” (da semana anterior à aula) com o objetivo de persuadir seus alunos quanto a: primeiro, alunos de escola pública têm legitimidade para “aparecer” em jornal impresso; segundo, é um equívoco achar que o que está escrito é “a verdade”, muitas vezes é necessário escrever e reescrever diversas vezes para que se aprimore o “projeto de dizer”. Isso é constitutivo da escrita em qualquer esfera de atividade, seja na escola ou fora dela, como deveria ter procedido o jornalista que produziu a matéria em análise, a fim de não fazer uma escolha lexical tão equivocada (de pronunciamento para pronúncia, conforme nos mostra o anexo). Essa aula certamente sinalizou aos alunos a necessidade de repensarem certos “mitos” em torno da linguagem escrita, tais como o da superioridade da linguagem escrita sobre a oral (OLSON, 1997) e o da superioridade de nível (ou grau) de letramento de um profissional do jornalismo, leitor e escrevente autorizado da esfera da mídia, em relação a alunos e professores, nem sempre vistos da mesma forma, mas que naquela aula estavam analisando as escolhas lingüísticas, a focalização e os efeitos discursivos de uma matéria recentemente publicada no jornal da cidade. Os avanços desse processo são significativos: a concepção de leitura como construção de sentidos ao texto; a desmistificação da escrita; o desenvolvimento da criticidade em torno da temática, da articulação textual proposta pelo jornalista, do posicionamento do professor e dos alunos mencionados na matéria; a proposta de produção se vincula a um dizer sobre a vida real e aos interesses desses escreventes-estudantes (não se trata de imitar um modelo de escrita); além disso, solicitar a opinião dos estudantes significa valorizar a contrapalavra deles acerca do tema em questão. Porém, no evento 2, perduram alguns ranços: a atividade de culminância dessa aula foi a realização de uma redação, produzida individualmente e entregue à Profa Alva para a atribuição da nota. Embora a seqüência natural para uma aula de leitura tão interessante fosse a produção de uma carta coletiva, fruto de diversas versões analisadas em grande grupo, encaminhada para o jornal “Gazeta do Agreste”, comentando a matéria lida e discutida em sala de aula, a força da tradição continua a mover uma boa parte das aulas de produção de textos escritos e com essa não foi diferente.

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Evento 3 Escola Estadual Joana Arruda – Professora Alva Turma: 20 alunos de educação de jovens e adultos, com faixa etária entre 20 e 45 anos. Nova Cruz/RN, junho – outubro de 2005. Projeto “Estação ferroviária de Nova Cruz: trilha de encontros e saudades”. 1 – Busca de depoimentos de pessoas que vivenciaram a época em que o trem estava em funcionamento, ou que, de alguma forma, tiveram acesso a relatos nem sempre documentados, mas testemunhados por pessoas próximas. 2 – Levantamento bibliográfico sobre a estação ferroviária de Nova Cruz. 3 – Coleta de fotografias antigas e recentes da estação junto à comunidade. 4 – Produção e realização de entrevistas. 5 – Organização de todo o material coletado. 6 – Apresentação dos dados para as outras salas da escola. 7 – Produção de um artigo coletivo sobre o projeto, a ser publicado no jornal Gazeta do Agreste. 8 – Produção do relatório para o Concurso Nacional Tesouros do Brasil. 9 – Envio do relatório.

O primeiro ponto a se destacar é que o evento 3 traz um plano que não se restringe a uma aula, mas se desdobra em muitas, intimamente relacionadas e com um fim social que ultrapassa a escrita para avaliação do professor. Outra questão interessante é o tom afetivo expresso no título do projeto, que nos remete a um trabalho de pesquisa de cunho muito mais intimista que documental, razão por que a Profa Alva orienta seus alunos para a busca de depoimentos de pessoas que vivenciaram a época, ou seja, que podem colaborar na produção de uma versão não-oficial da história da Estação Ferroviária de Nova Cruz. Desse direcionamento subjaz o viés vislumbrado pela professoranda para a agência dos estudantes: importa o que as pessoas têm a dizer sobre a estação ferroviária, não a fidedignidade dos dados sobre esse patrimônio. Para a realização dessa pesquisa, o grupo se dividiu na busca de dados sobre a linha férrea com familiares e amigos; juntos, compartilharam a leitura de matérias sobre a linha férrea de Nova Cruz, extraídas de jornais diversos (Tribuna do Norte, Diário de Natal, Gazeta do Agreste) de diferentes épocas; leram também o que os livros que tematizam a cidade de Nova Cruz registram sobre a estação ferroviária; assistiram a uma palestra da Prof a Karla Azevedo 5; analisaram fotografias antigas e recentes da estação. 5

A Profa Ms. Karla Azevedo desenvolveu sua pesquisa de Mestrado em Ciências Sociais/ UFRN sobre a cidade de Nova Cruz. No primeiro semestre de 2005, ela aceitou nosso convite para proferir uma palestra aos graduandos do PROBÁSICA. A gravação dessa palestra foi cedida para exibição nos grupos de alunos de ensino fundamental e médio envolvidos nos três projetos de Nova Cruz.

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A partir desses subsídios documentais, que aproximam o trabalho em sala de aula dos textos reais (não didatizados), produzidos em diferentes esferas de atividade, respondendo a diferentes situações de comunicação, os alunos começaram a preparar, coletivamente, as perguntas a serem feitas nas entrevistas com as pessoas que se dispuseram a rememorar os anos de funcionamento da estação ferroviária, o que desencadeou o registro de histórias não-oficiais, carregadas de grande emoção em torno dos significados do trem e da linha férrea na vida de cidadãos nova-cruzenses que, em geral, não têm voz nos documentos oficiais: donas de casa, ex-maquinistas, moradores da circunvizinhança da estação. No desenvolvimento desse projeto cujas metas eram fortalecer um movimento comunitário em torno da criação de um museu na estação ferroviária e divulgar uma história não-oficial da linha férrea da cidade em Nova Cruz, localmente, por meio de um artigo coletivo (professora e seus alunos) no jornal “Gazeta do Agreste”, e nacionalmente, por meio do Concurso Tesouros do Brasil, não se pode afirmar a inexistência de percalços. A pesquisa em jornais, revistas e livros, o empréstimo de material fotográfico, as longas conversas com moradores da cidade na busca de adesão à pesquisa, as posteriores entrevistas coletivas, a produção de poemas, relatos e cartazes, entre outras ações, representam um árduo trabalho de campo, para o qual professora e alunos se lançaram pela primeira vez. Entretanto, todo esse árduo trabalho de leitura e escrita se justifica por propiciar aos alunos (e por confirmar na professora) a compreensão de que a linguagem escrita é parte indissociável de nossa vida em diferentes esferas da atividade, não se trata de um exercício escolar tão-somente. Além disso, a multiplicidade de textos verbais e não-verbais em sala de aula trouxe aos momentos de leitura e escrita em sala de aula muito mais dinamicidade e interesse, inicialmente por se tratar de uma temática que os envolve por completo, depois por haver um projeto de leitura e escrita que oferece a esse grupo a condição de agentes de um dizer cujas ações não se limitam à esfera escolar: não se tratava de atribuição de nota, mas de fazer conhecer, local e nacionalmente, um pouco da história de Nova Cruz.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS A análise dos dados evidencia que a mobilização de saberes realizada pela Profa Alva contempla movimentos de aproximação de saberes acadêmicos, mas também traz movimentos de afastamento que representam o ir-e-vir próprio de quem está em processo de testagem entre o novo e o já experimentado, o sabido e o a saber, o feito e o “fazível”. Nesse processo não linear, mas progressivo, são perceptíveis algumas

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ressignificações. Em relação ao texto “apropriado” para a aula de leitura: ao uso de textos literários foi acrescentada uma matéria de jornal, depois foram incorporadas as fotografias, outras matérias de jornal, uma palestra, o que implica abrir-se para uma concepção mais abrangente de texto (unidade de sentido em ação, que pode ser verbal e/ou não-verbal). No tocante à leitura, do ponto de vista da aprendizagem, vinculavam-na ao exercício de localização de informações superficiais e à assimilação de um modelo para a conseqüente produção escrita; do ponto de vista do ensino, tratavam-na como um exercício docente de busca e marcação de erros nos textos dos alunos, que se seguia ao planejamento de aulas para a correção desses problemas (em geral, restritos à dimensão formal). Entretanto, o evento 2 demonstra uma aula de leitura em que o debate em torno dos sentidos possíveis do texto lido é o ponto central. Os reflexos dessa ampliação conceitual são muitos: a leitura passa a ter um fim que não se esvazia em si mesma (nas práticas de letramento escolar, é comum ler para mostrar que sabe decodificar), a leitura está atrelada a objetivos bem definidos (ler para conferir hipóteses lançadas pelo título, para se posicionar em relação ao pronunciamento do professor mencionado na matéria, para analisar as opções realizadas pelo escrevente da matéria), a leitura é tida como um processo que leva ao engajamento temático e à produção escrita (embora no evento 2 essa produção ainda seja individual e destinada à avaliação da professora). A ressignificação da linguagem escrita é sinalizada no evento 3, que indicia os movimentos coletivos de estudantes e professora na produção de textos escritos que comporiam a ação social de participar de um concurso e dar à comunidade visibilidade dessa participação. Nesse ponto, interessa ressaltar a parceria entre professora e alunos no sentido da construção coletiva, o que a desloca da posição de uma professora-avaliadora para uma professora-agente de letramentos. Com efeito, os indícios de mobilização de saberes analisados nesses três eventos nos subsidiam a afirmar que a articulação entre os estudos de letramento (realizados no curso de formação), o desenvolvimento de projetos de ensino nas escolas e a reflexão em torno desses saberes e fazeres apresentam duas implicações: uma forma exitosa de encontrar sentido para o ensino de escrita é procurar razões fora da sala de aula para que os alunos leiam, escrevam e desenvolvam sua oralidade a partir de práticas sociais por eles vivenciadas; o estabelecimento de relações de diálogo e de fortalecimento entre universidade, professores em formação e/ou em atividade na educação básica, alunos e comunidade pode nos fazer perceber as chaves que viabilizariam brechas alternativas na configuração de uma nova formação de professores, de uma melhor prática pedagógica, que responda aos anseios do tempo em que vivemos, quais sejam: um ensino de língua que considere as variações, os usos e as funções sociais da leitura, da escrita e da oralidade. Para tanto, é necessário repensar o formato conteudístico do curso de formação e sua tendência a apontar “soluções” teórico-metodológicas

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homogeneizadoras. Urge trazer para o centro dos debates nas diferentes atividades do curso de formação a reflexão sobre a prática pedagógica situada, ou seja, a vivência de ensino-aprendizagem dos professores em formação a partir mesmo de todas as suas contradições, angústias e incertezas. Afinal, esses professores em formação podem subsidiar seus professores-formadores e, juntos, numa seqüência de ações reflexivas, chegarem a um bom termo quanto a que perspectivas lhes são úteis para o contexto de ensino no qual estão inseridos. Certamente toda essa mobilização de saberes pode oferecer subsídios concretos para a melhoria da qualidade do trabalho de docentes que realmente estejam comprometidos com as camadas populares e com a luta contra as desigualdades sociais, empreendimento para o qual acreditamos ser a linguagem escrita um instrumento de significativo poder.

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ANEXO 1 – Jornal Gazeta do Agreste, maio de 2005 – Especial II anos – Pág. 04 – Seção Educação. Alunos criticam pronúncia de um professor Segundo alunos da Escola Estadual Rosa Pignataro, um professor, em sala de aula, criticou o cursinho que está sendo realizado para alunos vestibulandos da EERP. De acordo com os alunos, o professor afirmou que o cursinho não servirá para nada, e que a obrigação da Escola é preparar para a vida, e não para o vestibular. Os alunos não concordaram com a opinião dele, e disseram que a Escola tem a obrigação de preparar o alunos para o vestibular. Um curso pré-vestibular é uma forma de estender mais os conhecimentos de um alunos, para tornar mais fácil o acesso à universidade. O professor que criticou o curso também se recusou a participar do mesmo, foi o que disseram alguns alunos. Aproveitando o ensejo, os estudantes da Escola pública agradeceram a direção que incentivou bastante a realização do cursinho pré-vestibular.

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Maria das Graças Targino * Osvaldo Balmaseda Neyra **

IDIOMAS NUM MUNDO GLOBALIZADO: O CASO DO ESPANHOL (Languages in a Globalized World: the spanish case) RESUMO Disserta sobre o risco da universalização lingüística face ao processo de globalização, com a extinção de numerosos idiomas, mesmo no âmbito brasileiro. A partir de então, contrapõe a hegemonia do inglês à expansão global do espanhol, no contexto do Brasil, e também dos Estados Unidos da América e da internet, explorando os fatores intervenientes para tal propagação. Discute possíveis ameaças à integridade do espanhol. Universalização lingüística; Espanhol – expansão; Inglês – expansão. ABSTRACT It talks about the risk of a linguistic universalization as a consequence of the globalization, which would lead to the extinction of many languages, even in the Brazilian scenario. Based on that, it puts the English hegemony against the Spanish global expansion, taking into account Brazil, United States and the internet. It also explores the factors involved in this propagation, as well as it discusses possible threats to the integrity of Spanish language. Linguistic universalization; Spanish and expansion; English and expansion

INTRODUÇÃO Muito tem-se escrito e discutido sobre o processo de globalização. Surgem movimentos antiglobalização, que tentam alertar para o fato de que se trata de uma moeda de duas faces. Ao mesmo tempo em que concorre para a consolidação de uma civilização com chance de acesso igualitário a aplicações tecnológicas e a informações em todos os níveis, pode atuar de forma nefasta, como por exemplo, concorrendo para a universalização lingüística. Esta, além de eliminar diversidades culturais e étnicas, acarreta a morte das línguas que não se “modernizarem”. Essa preocupação alcança tal nível, que tem sido o

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Universidade Federal do Piauí – [email protected] Ministerio de Educación Superior, Cuba – [email protected] . A primeira autora, em 2007, está se transferindo, transitoriamente, para outro país. No caso de endereço convencional, há pouca agilidade para os residentes em Cuba, em geral (segundo autor). Por esta razão, solicitamos contato via e-mail [email protected] ou [email protected]

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tema central de eventos internacionais, como a Conferência de Língua e Tecnologia 2000 e das Jornadas Internacionais de Línguas e Culturas Ameríndias, a cada ano (BALMASEDA NEYRA e TARGINO, 2006). Sob esta perspectiva, discorremos acerca do extermínio veloz das línguas do mundo em contraposição à hegemonia do inglês, analisando a expansão do espanhol, em países, como Brasil e Estados Unidos da América (EUA), e no espaço cibernético. Evidenciamos o fato de que ameaças à integridade e à estabilidade dos idiomas, ou, mais especificamente, do espanhol, representam, igualmente, ameaças à integridade e à estabilidade de povos e nações. É a percepção das línguas como elemento cultural, que interage com as demais manifestações culturais, e assim, são mais bem assimiladas numa conjuntura ampla.

1) A EXTINÇÃO DE IDIOMAS: UM POUCO DE NÓS SE ESVAI A constatação de que, no decorrer do tempo, a humanidade tem aniquilado cerca de 30 mil idiomas representa significativa perda dos valores humanistas e culturais. E o pior, esta redução não cessa. Os lingüistas calculam que, anualmente, pelo menos 20 línguas desaparecem. Mesmo assim, enquanto discussões acerca da proteção ambiental expressam preocupação exaustiva e justificada acerca da preservação de espécies da flora e da fauna, a inquietação acerca do que acontece com a língua, embora seja uma das características distintivas do ser humano em relação aos outros animais, ocupa pouco espaço na mídia, na academia, na política, enfim, no nosso dia-a-dia. A sociedade assiste indiferente ao fim veloz de idiomas, talvez, face ao nível precário de conscientização. As denúncias, quase sempre, restringem-se aos lingüistas. Stephen A. Wurm, por exemplo, no Atlas de las lenguas del mundo en peligro de desaparición, prevê que, ao final do século XXI, a humanidade terá perdido a metade das línguas atualmente existentes. O Summer Institute of Linguistics (SIL), mantenedor da excelente base de dados, Ethnologue: languages of the world, com a identificação de seis mil 800 idiomas, estima que 95% dentre eles, são falados tão-somente por 4% da população mundial. Apenas na Austrália, a voracidade do inglês “venceu” mais de 150 línguas de grupos aborígines, e muitos outras estão ameaçadas de desaparecer, tal como ocorreu com o latim em relação às línguas dos povos colonizados e o espanhol, no caso dos povos conquistados e colonizados na América. Estudo da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco) também constata riscos de extinção, na Espanha, para o galego, o basco, o asturiano e o aragonês, e na França, para o gascão. Em se tratando do Brasil, onde é possível ter existido cerca de mil e 200 línguas antes da chegada dos portugueses, segundo levantamento efetivado nos

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anos 90, sob a responsabilidade da Universidade de Brasília, restavam, à época, mais ou menos 189 línguas vivas. Isto corresponde ao extermínio de, no mínimo, 85% da diversidade lingüística do Brasil, o que, para Cunha (2004), reflete a redução dos povos indígenas. Este parece ser o destino de muitas outras línguas, como consulta ao site da Promotora Española de Lingüística (Proel), http://www.proel.org/mundo.html pode complementar. O sabanê, alvo de estudos no sentido de salvaguardá-la, é um bom exemplo. Até 70 anos atrás, a tribo contava com, aproximadamente, 20 mil indivíduos. Hoje, são menos de 100 índios que vivem no norte de Mato Grosso, na área de transição entre a floresta amazônica e o cerrado. Dentre esses, somente 15 dominam o sabanê, com a agravante de que todos com menos de 40 anos só falam o português. Um outro exemplo que nos remete à realidade nacional é que, dentre o financiamento da Fundação Volkswagen, na Alemanha, para documentar oito línguas em extinção, três estão em terras brasileiras. É o caso do trumai, adotado, no momento, por menos da metade dos 120 índios que vivem no Xingu. Tendo, inevitavelmente, como pano de fundo, a globalização, há fatores distintos que explicam senão o aniquilamento, no mínimo, o desgaste que atinge os idiomas: (a) redução de crianças que aprendem a língua dos pais; (b) contato com culturas mais agressivas; (c) diversidade que caracteriza a sociedade contemporânea, aliada, paradoxalmente, a flagrante empobrecimento cultural; (d) avanço veloz das novas tecnologias de comunicação, responsáveis por leituras mais rasas e produção de textos com menos originalidade. Além desses elementos, há forma ainda mais “moderna” de corrosão dos idiomas, vinculada à expansão da internet. É o denominado internês. Caracteriza-se pelo uso excessivo de padrões reduzidos de expressões e / ou jargões, compreensíveis para grupos reduzidos. A este respeito, lingüistas, professores, pais e a sociedade em geral se posicionam, de forma controversa. Alguns o visualizam como evolução natural das línguas ou expressão jovial, com gosto de modismo e de quebra de convenções. Outros o percebem como prova cabal da falta de capacidade das gerações jovens se expressarem, conduzindo à deculturação da sociedade. De qualquer forma, diante de textos como este, em “português”, há sempre reações, de deleite ou indignação: “Oh, num eh q ti dexando isso aki que dize q eu eskeci o q vc fez viu!” De qualquer forma, é indiscutível que o desaparecimento de um idioma significa a perda da cultura do seu povo, dentro da assertiva de que com a extinção de idiomas, um pouco de nós se esvai. Afinal, o termo – língua – nomeia o conjunto de palavras e expressões utilizadas por determinado povo ou nação, independente do seu caráter escrito. Não podemos fundir a idéia de língua com a sua expressão somente escrita. Isto é negar o poder dos nãoalfabetizados exprimirem idéias e pensamentos. Em sentido oposto, é preciso valorizar a oralidade, as tradições repassadas de gerações para gerações, como

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prescrito por Kofi Ann, Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), quando afirma: Em África, diz-se que, quando morre um ancião, desaparece uma biblioteca [...] Sem os conhecimentos e a sabedoria dos anciãos, os jovens nunca iriam saber donde vêm ou qual a comunidade em que se inserem. Mas para que os idosos tenham uma linguagem que os jovens entendam, devem ter a oportunidade de continuar a aprender ao longo da vida. (CENTRO DE INFORMAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS EM PORTUGAL, 2002, p. 3).

Tudo isto reforça o nascimento de novas e diferentes disciplinas lingüísticas como forma de compreender as distintas facetas que o estudo da linguagem comporta. São problemas particulares, estudados pela etnolingüística, sociolingüística, lingüística aplicada e descritiva. Outras disciplinas, como gramática, pragmática e semiótica abordam o estudo diacrônico e sincrônico da linguagem humana. A propalada neurolingüística avança nos estudos da relação entre linguagem e doenças relativas à leitura e à escrita, como dislexias e agrafias. A lingüística quantitativa lança mão de técnicas estatísticas para estudar a freqüência e a distribuição de dados dentro do universo da linguagem, e assim por diante...

2) DIMENSÕES DA PRESENÇA DA “LÍNGUA IMPERIAL” Em meio à possibilidade de universalização lingüística, as línguas mais difundidas, com as quais a metade da população se comunica, são: chinês (um bilhão e 200 milhões); inglês (478 milhões); hindi (437 milhões) e espanhol (392 milhões), ressaltando-se que chinês e hindi são línguas nacionais. Seguem o russo, o árabe, o português e o francês com 284, 225, 184 e 125 milhões de falantes, respectivamente. Levantamentos realizados por órgãos mundiais, como a Unesco, dão conta do inglês como o idioma oficial ou semi-oficial de mais de 60 países, com destaque em mais de 20, o que garante a sua penetração em todos os continentes, como a segunda língua mais falada do mundo, abaixo do mandarim. Este é adotado em poucos países, dos quais a China responde por 836 milhões de falantes. Além dos 478 milhões de pessoas que têm o inglês como língua materna, mais 300 milhões o utilizam como segunda língua e mais 100 milhões o falam fluentemente como idioma estrangeiro, o que representa aumento de 40%, desde os anos 50, acrescido de 500 a 750 milhões de indivíduos que têm noções de inglês. É o inglês a principal língua do controle aéreo, do comércio exterior, dos eventos internacionais, da medicina, da diplomacia, das competições esportivas internacionais, das telecomunicações, da música pop, da informática, da internet, da academia, da cultura de massas, da ciência e tecnologia (C&T). Dois terços

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dos cientistas escrevem em inglês. Três quartos da correspondência mundial estão em inglês. Dentre as informações disponibilizadas em redes eletrônicas, cerca de 80% são redigidas em inglês. Então, publicar em português como forma de enaltecer o Brasil ou em inglês, como forma de internacionalizar a produção exige posição sólida. Ao se destinar exclusivamente ao público brasileiro, aparecer somente em periódicos em português e desenvolver temáticas locais, o pesquisador brasileiro isola a ciência nacional do cenário universal, além de perder prestígio. Por outro lado, orientação mais internacionalista, ao mesmo tempo em que oportuniza a projeção ampla do saber gerado pelos cientistas brasileiros, compromete a sua repercussão local. Trata-se de uma deliberação que exige o enfrentamento de questões, como as propostas por Castro (1986): “Se para Camões o português era o túmulo da literatura, não será menos verdade que o português será o túmulo da ciência brasileira?” (p. 217) ou “O que é melhor, ser peão de uma ciência sofisticada ou rei de um arremedo tupiniquim de ciência?” (p. 197). E, em se tratando ainda do português frente às dimensões da presença da “língua imperial”, como adendo, acrescentamos que muito tem sido feito para expandi-lo. Com este intuito, e para promover a cooperação política, social, econômica e cultural entre os países que mantêm o português como idioma oficial, em 1984, é instituída a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), com sede em Lisboa. Posteriormente, em 1986, ano em que Portugal se integra à União Européia (UE), ele passa a figurar como uma das línguas oficiais da Comunidade Econômica Européia (CEE). E desde dezembro de 1990, está em fase de implantação um projeto de reforma ortográfica para padronizar a escrita nos países que integram a CPLP, quais sejam: Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe, Portugal e Brasil. Mas, o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa tem caminhado lentamente. Ademais, na Ásia, o único lugar onde o português sobrevive é Goa (Índia), onde está sendo substituído pelo inglês, pois em Damão e Diu (Índia), Java (Indonésia), Macau (colônia portuguesa), Sri Lanka e Málaca (Malásia), são falados dialetos que mantêm do português quase que só o vocabulário, com marcantes variações gramaticais. Na África, além de Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau e Moçambique, em São Tomé e Príncipe, a língua oficial é o português, mas no cotidiano, a população recorre aos dialetos forro e monco. O alcance do português é, pois, limitado, embora seja a sétima língua mais falada no mundo. São nações pouco representativas no cenário de C&T, e, por conseguinte, no fluxo da comunicação científica. É a polarização da ciência pelos países hegemônicos. Isto é, a supremacia do inglês vincula-se ao poderio econômico, político, cientifico, tecnológico e cultural dos EUA, o que justifica a alcunha atribuída ao inglês de “língua imperial”. À medida que se posiciona como língua universal, torna-se fator de expansão dos valores e conhecimentos a ele associados, em todas as instâncias.

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3) EXPANSÃO GLOBAL DO ESPANHOL Porém, apesar da primazia do inglês e de estar distante de um alcance onipresente, por conta de ser, à semelhança do português, o idioma de nações com desempenho secundário na economia global e na produção de C&T, a expansão global do espanhol é inquestionável, inclusive, no âmbito do Brasil, dos EUA e da internet. Dentre as causas de propagação, está o incremento exponencial da população hispânica na América Latina, a partir dos anos 50 do século passado, aliado aos processos massivos de migração dos latinos ou hispânicos para os ditos países centristas, sobretudo, para os EUA. São quase 400 milhões de pessoas que falam o espanhol em 21 países, onde é a língua oficial, numa área geográfica que totaliza 11 milhões de km2, com a ressalva de que nas Filipinas, onde o espanhol constitui língua nativa, durante o século XX, o inglês se impôs sobre o espanhol, a tal ponto que, hoje, há somente cerca de três milhões de falantes em espanhol. No restante do mundo, 24 milhões de indivíduos mantêm o espanhol como língua materna e outros milhões o adotam como segundo idioma. Mesmo no Canadá, no mínimo, em quatro províncias, é ele a segunda língua, aquém do inglês e francês. No extremo Oriente, conta com cerca de 70 mil estudantes, graças à intensificação das relações comerciais desses países com a América. No Japão, 60 mil universitários estudam espanhol e em dezenas de instituições de ensino superior, há departamentos de língua espanhola. No caso da China, a cada ano, cresce o número de alunos e professores, já na casa de milhões. A Coréia do Sul mantém mais de 50 centros de educação superior voltados para o seu ensino. São dados que permitem afirmar que o espanhol está, em maior ou menor proporção, em 160 países dos diferentes continentes, com o prognóstico de que, dentro de quatro ou cinco décadas, serão 500 milhões de indivíduos falando o espanhol. Além do mais, junto com o árabe, o português e o suaíli, o espanhol é um dos idiomas oficiais de organismos internacionais, como Unesco, ONU, Organização Pan-Americana da Saúde, Organização dos Estados Americanos e Organização da Unidade Africana. Depois do francês e do inglês, é o idioma mais requisitado por quem atua em instituições européias. Aliás, a Tabela 1 expõe a distribuição da população que fala espanhol, em países distintos e continentes.

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PAÍS México Colômbia Espanha Argentina Peru Venezuela Estados Unidos América Chile Equador Cuba Guatemala Bolívia República Dominicana El Salvador Honduras Paraguai Nicarágua Porto Rico Costa Rica Uruguai Panamá Guiné Equatorial

POPULAÇÃO (MILHÕES)

% MUNDIAL

102.255.000 45.255.057 40.406.294 39.248.000 23.191.000 26.021.000 44.136.929 15.795.000 10.946.000 11.285.000 14.325.000 7.010.000 8.850.000 6.859.000 7.267.000 5.503.000 5.503.000 4.017.000 4.220.000 3.442.000 3.108.000 1.120.061

26,06% 10,52% 10,27% 9,02% 6,76% 5,76% 5,63% 3,75% 3,00% 2,75% 2,75% 2,13% 2,00% 1,62% 1,50% 1,50% 1,25% 1,00% 0,95% 0,80% 0,75% 0,12%

Fonte: Disponível em: . Acesso em: 2 jan. 2007. TABELA 1 – DISTRIBUIÇÃO DA POPULAÇÃO QUE FALA ESPANHOL

Como o português, o espanhol data de uns 10 séculos atrás, com base no latim vulgar, falado por comerciantes, colonos e soldados, sendo introduzido na Península Ibérica pelo Império Romano. Com o tempo, se enriqueceu com o aporte de mil 250 palavras de origem árabe e centenas de outras, provenientes do grego, do godo, do provençal, do catalão, do basco, do francês, do italiano e do inglês. No momento, conta com patrimônio lexical de, aproximadamente, 83 mil e 500 palavras, e a sua ortografia está de tal forma consolidada, que, desde 1815, as suas regras ortográficas têm sofrido apenas algumas alterações, como inevitável a qualquer idioma. Assim, se o peso demográfico tem sido decisivo para a difusão do espanhol, a sua quase homogeneidade atua como fator preponderante para o avanço. É a oportunidade de compreensão por todos os falantes, não obstante as mudanças semânticas e variações fonéticas entre os distintos povos que o têm como língua oficial. Nessa luta pela unidade e integridade, sob a ótica da estreita relação entre comunicação e cultura, a imprensa e os meios de comunicação muito têm

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contribuído para garantir a unidade do espanhol, por seu nível de alcance. Permitem o acesso e a utilização do idioma por um público gigantesco, disperso não somente nos 21 países, onde o espanhol é a língua número um, como também nas demais nações, em que é conhecido e falado.

O ESPANHOL NO BRASIL No caso do Brasil, a adoção de línguas estrangeiras sempre esteve condicionada a fatores políticos, sociais, técnicos, culturais e econômicos. A princípio, além da primazia da influência lusófona, as publicações de maior penetração foram em francês, de ensino obrigatório nas escolas até os anos 50, marcando um período mais humanista. Na década seguinte, tem vez uma educação mais técnica, sob forte interferência da cultura norte-americana, transformando o inglês em idioma obrigatório. Nos anos 70, como decorrência da assinatura do Acordo Nuclear entre Brasil e Alemanha, em Bonn, em 1975, com o intuito de fomentar a cooperação entre as instituições de pesquisa científica e tecnológica, há maior interesse pelo alemão. De forma similar, e considerando a força da televisão como formadora de opinião, novelas e seriados também influenciam a busca por cursos de idiomas estrangeiros. Exemplos significativos são o seriado Italianos Graças a Deus e as telenovelas O Rei do Gado e Terra Nostra (TV Globo), que, à época, despertam o interesse pelo italiano. Na atualidade, o inglês continua à frente, seguido pelo espanhol, sobretudo, por conta do Projeto de Lei No 3.987. De 7 de julho de 2000, prevê o ensino do espanhol como de oferta obrigatória pelas escolas brasileiras, embora a matrícula do aluno seja opcional. No caso do nível fundamental, da 5a até a 8a série, é facultada a sua inclusão nos currículos. Trata-se de projeto a ser implementado no prazo de cinco anos, porque o Governo reconhece que requer a formação de cerca de 250 mil docentes, em âmbito nacional. O interessante é que a justificativa do referido projeto enfatiza três pontos inter-relacionados. Primeiro, o reconhecimento da relevância do espanhol no cenário mundial contemporâneo. Em segundo, a consolidação do Mercado Comum do Sul (Mercosul). Decorridos praticamente 10 anos da sua assinatura, figura como bloco econômico favorável ao incremento do fluxo comercial dentro dos países que o compõem (Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai), gerando novos paradigmas de eficiência, produtividade e competitividade. É a constatação de que a língua atua como instrumento na integração dos países nos mercados econômicos mundiais ou setoriais, como Mercosul, Nafta e UE. E, de fato, o Mercosul faz crescer o número de profissionais que dominam o espanhol. Se, hoje, é impossível a inserção no mercado de trabalho, sem conhecimento do inglês, também é utópico sucesso no contexto do Mercosul,

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sem o domínio da área específica de cada profissional, cultura geral e humanística, domínio da informática e do idioma espanhol. O terceiro aspecto refere-se ao isolacionismo do Brasil, que permanece fechado em si mesmo, rodeado de nações, onde o espanhol é a primeira língua, recorrendo, quando muito, ao “portunhol”, inadequado à comunicação científica e / ou empresarial.

O ESPANHOL NOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA: MANCHA LINGÜÍSTICA EM EXPANSÃO É possível que, nos próximos 50 anos, mais de 10% dos quase 500 milhões de pessoas que falam espanhol, espalhados nos mais diferentes recantos do universo, vivam nos EUA. Com isto, a chance de alastramento da cultura hispânica e de melhores condições para inserção no processo de globalização se acentuam. Atualmente, residem nesse país, segundo dados da enciclopédia Wikipédia (http://pt.wikipedia.org), 42.687.224.070 de indivíduos (cerca de 14.07% da população total, dados de 2005) de origem hispânica ou latina, dentre os quais 22 milhões e 500 mil falam, com regularidade, o espanhol. Trata-se de um montante equivalente aos que habitam a Argentina, o que conduz Carlos Fuentes a designar tal população de “mancha lingüística em expansão”. Confirmando a estreita vinculação entre comunicação e cultura, a expansão quantitativa dos meios de comunicação reforça a penetração tanto do espanhol como também da cultura dos povos hispânicos nos EUA. Com transmissão em espanhol, são mais de 500 estações de rádio e 159 de TV, além de três cadeias televisivas e numerosos canais musicais especializados em música latina. São cinco grandes jornais diários, e cerca de 500 periódicos e de 250 revistas. Há, ainda, progressiva melhoria de qualidade de vida da comunidade hispânica, em termos econômicos, o que corresponde a maior poder aquisitivo. Daí, passa a figurar como mercado potencial atraente, apto a consumir produtos, serviços e informações, de preferência, na língua materna, ao tempo em que passa a exercer influência no consumo cultural do povo norte-americano, seja na música popular, nas artes plásticas, na literatura, em nível não alcançado por outros grupos de imigrantes há mais tempo ali assentados. Isto favorece a sua integração à sociedade local. A preferência pela cultura hispânica, por exemplo, está presente nas edições do Prêmio Grammy Latino, desde setembro de 2000. Grandes editoras, como a McGraw Hill, lançam publicações bilíngües em inglês e espanhol, e revistas de renome internacional, como People, Newsweek, Selecciones e Times também estão em espanhol. Tudo isto justifica o fato de o espanhol ser o idioma estrangeiro mais estudado e utilizado nos EUA, como segundo idioma: (a) 61% dos universitários o selecionam como segunda língua; (b) no ensino secundário, é ministrado em

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mais de quatro milhões de centros de ensino, sendo preferido por 93% dos alunos; (c) no ensino fundamental, é estudado por 80% dos educandos; (d) 12 mil e 500 pessoas são membros da Associação Norte-Americana de Professores de Espanhol e Português; (e) a Academia Norte-Americana de Língua Espanhola mantém atuação reconhecida.

O ESPANHOL NA INTERNET Sem dúvida, a Rede concorre para a massificação das línguas, a partir do momento que oportuniza o avanço de idiomas de “primeira grandeza”, sobretudo o inglês, primeiro lugar dentre as 11 línguas mais usadas: inglês (40,02%); chinês (9,8%); japonês (9,2%); espanhol (7,2%); alemão (6,8%); coreano (4,4%); francês (3,9%); italiano (3,6%); português (2,6%); holandês (2,1%); russo (2%), enquanto outros idiomas dispersos somam 8,2% (GÓMEZ ALADILLO, 2007). Porém, a bem da verdade, o inglês vem cedendo espaço para outros idiomas. No caso do espanhol, a sua presença tende a aumentar. A prova está que, agora, há mais buscadores específicos em língua espanhola, além de jornais, revistas especializadas e emissoras de rádio do que há cinco anos. E uma demonstração dos esforços no sentido de manter crescimento sistemático é a ofensiva para incorporar o ñ, letra emblemática do idioma, nos domínios da Rede e / ou nos e-mails. Porém, o maior obstáculo é que ainda existem poucos usuários latinoamericanos na internet. Apesar das divergências entre as fontes, estima-se que totalizam mais ou menos 26 milhões. Isto porque, os hispânicos não são grandes usuários das novas tecnologias de comunicação, além de ser pouca expressiva a produção científica em espanhol. Além disto, as ferramentas tecnológicas, grosso modo, não são fabricadas por indústrias hispânicas, o que equivale, inevitavelmente, a preço mais alto e, portanto, à utilização mais restrita. Ainda de natureza econômica, está o fato de que muitos países latino-americanos não dispõem de fundos suficientes para elaborar conteúdos próprios ao espaço virtual. Segundo dados do Instituto Cervantes e da Asociación Hispanoamericana de Centros de Investigación y Empresas de Telecomunicaciones, o percentual de indivíduos conectados à Rede, na maioria dos países da América Latina, ao final de 2002, não atingia 10% do total da sua população. Por conta disto, o Instituto Cervantes (instituição pública espanhola, de 1991, com o fim de difundir o ensino do espanhol e a cultura hispânica) efetiva estudo para prover a internet com produtos de qualidade. O seu centro virtual (www.http.cvc.cervantes.es) dispõe de mais de oito mil páginas, onde é possível ter acesso a foros e material didático sobre o espanhol. A Real Academia Española (RAE) também tenta contribuir, ampliando o número de bases de dados e de

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obras de referência em espanhol, além de ferramentas que favorecem consultas mais ágeis e buscadores capazes de localizar as páginas em espanhol ou traduzilas. São iniciativas que exigem a participação de universidades, empresas e institutos de pesquisas, reforçando a pertinência da Red Iberoamericana de Ciudades Virtuales, a qual poderá gerar quantidade significativa de conteúdos em língua espanhola. Em suma, o espanhol na internet oferece oportunidade de conectar diretamente milhões de pessoas, sem a necessidade de tradução, compartindo bens e serviços, o que significa suprir demandas não apenas culturais, mas também relativas aos conhecimentos econômicos, científicos e tecnológicos. Na medida em que isto ocorre, se consolidam a perdurabilidade e o valor do espanhol dentre os idiomas de maior difusão no espaço virtual.

CONSIDERAÇÕES FINAIS AMEAÇAS À INTEGRIDADE DO ESPANHOL Há fatores demográficos e da própria estruturação do espanhol que facilitam o seu crescimento planetário, comprovado pelas cifras milionárias que circundam as empresas que editam escritores de língua espanhola, tanto na Espanha como na América Latina, e também pela presença crescente do espanhol na Rede, e pela concessão de prêmios Nobel de Literatura, nas últimas décadas, a autores de obras em espanhol, a exemplo do Pablo Neruda (1971) e do colombiano Gabriel Garcia Márquez (1982). Em contraposição, há riscos que ameaçam a sua integridade, ante a ofensiva do inglês, que, em apenas 50 anos, colocou na boca dos hispânicos tantas palavras, como o árabe, em oito séculos. Isto justifica a contaminação do espanhol falado nos EUA, originando o dialeto chamado de code-switching ou spanglish ou espanglish ou espanglés. A maioria dos hispânicos que fala espanhol nos EUA não o faz como nos países onde ele é língua nativa. Mescla palavras do inglês com o espanhol, de modo que o spanglish contém quantidade elevada de anglicismos castelhanos. Além do mais, o spanglish não consiste em fenômeno lingüístico homogêneo. As regiões / locais onde é falado e a origem do imigrante são determinantes. Exemplificando: o spanglish (o cubonic), falado em Miami, não é o mesmo que o nuyorricam (Nova York) ou o chicano ou tejano, de Los Angeles. Mas, o spanglish tem avançado tanto na fala como na literatura. Já possui dicionários, o seu uso está se alastrando na mídia e escritores começam a utilizá-lo em suas obras, como o faz a porto-riquenha Ana Lydia Vega. Afora o spanglish, as tecnologias de informação têm provocado a adoção de palavras estrangeiras, sobretudo do inglês. Muitas são recentes, mesmo na língua anglo-saxônica, surgidas para designar novos objetos, conceitos ou

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realidades. Outras resultam da fusão de palavras, como bit (binary digit). Diferentes “empréstimos” lingüísticos advindos das novas tecnologias estão presentes, com freqüência, no cotidiano, tais como: acessar um sítio web; oferecer um curso on-line; escrever um e-mail, comprar uma motherboard etc. São tão freqüentes esses termos, que alguns se “castelhanizam”, como cliquear. Há quem denomine de ciber-espanglish esta curiosa combinação de espanhol com vocábulos de inglês de teor tecnológico. O terceiro elemento que ameaça a integridade do espanhol é a possibilidade de deterioração da língua, face ao uso abusivo de abreviaturas ou outras estruturas simplificadas de palavras ou orações, para reduzir tempo e espaço nas mensagens enviadas por e-mails ou nas conversas eletrônicas. É o processo de expansão do denominado internês, antes mencionado. A tudo isto, soma-se a pobreza cultural, que acompanha muitos produtos culturais, ou melhor, pseudoculturais, disponibilizados na internet ou veiculados nos canais televisivos de fala espanhola. De qualquer forma, lingüistas mais otimistas opinam que essas ameaças constituem um processo natural e irreversível. Acrescentam que o idioma espanhol tem assimilado numerosos vocábulos de outros idiomas e nunca desapareceu. Ao contrário, enriqueceu o seu patrimônio lexical. Mesmo assim, governos, escritores, mestres, professores e comunicólogos devem estar atentos para que a diversidade da comunidade hispânica enriqueça e não empobreça o espanhol, no sentido de que prossiga sendo aglutinante de um mosaico de culturas, de línguas comerciais e de signos, como língua franca da própria globalização.

REFERÊNCIAS BALMASEDA N., Osvaldo e TARGINO, M. das G. (2006). Extinção e expansão de línguas num mundo globalizado: o caso do espanhol. In: TARGINO, M. das G. Olhares e fragmentos: cotidiano da biblioteconomia e ciência da informação. Teresina: Edufpi, p.245-266. CASTRO, C. de M. (1986). Há produção científica no Brasil? In: SCHWARTZMAN, S., CASTRO, C. de M. (Org.). Pesquisa universitária em questão. Campinas: Unicamp, p. 190-224. CENTRO DE INFORMAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS EM PORTUGAL (2002). Construir uma sociedade para todas as idades. In: SEMINÁRIO EUROPEU SOBRE A FORMAÇÃO EM GERONTOLOGIA SOCIAL: UMA EXIGÊNCIA PARA A QUALIDADE, Lisboa. CUNHA, R. (2004). Visões de mundo ameaçadas de extinção. Ciência e Cultura, Vol. 56, N. 4 (9-10). GÓMEZ ALADILLO, F. (2007). La expansión del español en internet. Disponível em: . Acesso em: 12 jan. 2007. WURM, S. A. (2001). Atlas de las lenguas del mundo en peligro de desaparición. Genebra: Unesco.

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NORMAS PARA APRESENTAÇÃO DE TRABALHOS Os trabalhos enviados serão submetidos ao Conselho Editorial desde que estejam de acordo com as normas elencadas a seguir: · Os trabalhos devem ser enviados em 3 (três) vias digitadas em Times New Roman, corpo 12, Word, acompanhado de cópia em disquete ou CD com etiqueta identificando o(s) autor(es); · Os trabalhos devem ser precedidos de uma lauda contendo título do trabalho (em português e em Inglês), nome do(s) autor(es), nome da instituição à qual pertence(m) e endereço para correspondência; · Os trabalhos devem ser acompanhados de um resumo em Português e em Inglês (até 300 palavras). Seguindo o resumo, em linha separada, devem constar as palavras-chave; · As ilustrações (tabelas, gráficos, fotos, etc.) devem ser colocadas em seus lugares definitivos com títulos na parte inferior; · As notas devem ser digitadas no rodapé, numeradas em arábico. A nota para o título deve ser indicada com uso do asterisco. Não devem ser utilizadas notas para referências bibliográficas, apenas eventuais explicações. Para referências, devem ser feitas no corpo do trabalho (ex.: Jakobson (1952, p. 3). Caso o sobrenome do autor esteja entre parênteses, utilizar caixa alta (ex.: (JAKOBSON, 1952, p. 3)); · As referências bibliográficas e outras: digitar a palavra REFERÊNCIAS. Os autores devem estar em ordem alfabética, sem numeração das entradas e sem espaço entre eles. Os títulos de livros e revistas devem vir em negrito. Na segunda entrada do mesmo autor, utilizar um traço de 06 toques. A data identificadora da obra deve estar entre parênteses após o nome do autor. Mais de uma obra no mesmo ano para o mesmo autor, identificar com letras minúsculas após a data. · Exemplos de referências: LABOV, William (2001). Principles of linguistic change: social factors. Oxford: Blackwell Publishers. PATRICK, Peter L. (1991). Creoles at the intersection of variable processes: -t,d deletion and past-marking in the Jamaican mesolect. Language Variation and Change. Cambridge: Cambridge University Press, p. 171-189. · As citações com até três linhas devem estar entre aspas e no corpo do trabalho. Com mais de três linhas devem adentramento à esquerda de 04 cm, e corpo 11, sem adentramento à direita; · Extensão dos trabalhos: Artigos, entre 10 e 15 páginas; Resenhas, entre 3 e 5 páginas. · Os originais enviados não serão devolvidos.

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