Revista do GELNE, João Pessoa, v. 9 n.1/2 (2007)

July 19, 2017 | Autor: R. Gelne | Categoria: Lingüística, Letras
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GRUPO DE ESTUDOS LINGÜÍSTICOS DO NORDESTE













Vol. 9 - Nos. 1/2 - 2007

GELNE

REVISTA DO GELNE Dermeval da Hora (UFPB) Eliane Ferraz Alves (UFPB) Lucienne C. Espíndola (UFPB) Maria Elizabeth Affonso Christiano (UFPB) Marianne Bezerra Cavalcante (UFPB) (Organizadores)







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Revista do Gelne















Todos os direitos reservados ao GELNE









Editoração Eletrônica Magno Nicolau Realização Grupo de Estudos Lingüísticos do Norte e Nordeste (GELNE) www.gelne.org.br

Revista do GELNE - Grupo de Estudos Lingüísticos do Nordeste - Vol. 8 - Nos. 1/2 - João Pessoa: Idéia, 2007 (Publicada em 2008). Semestral ISSN 1517-7874 1. Língua - Lingüística - Literatura - Periódicos I. Grupo de Estudos Lingüísticos do Nordeste Endereço para correspondência: Mailing address Grupo de Estudos Lingüísticos do Nordeste GELNE/FALE/UFAL Campus A. C. Simões 57.072-970 João Pessoa-PB Fone/Fax: (82) 3214-1341 Site: www.gelne.org.br E-mail: [email protected]

EDITORA LTDA. (83) 3222–5986 www.ideiaeditora.com.br [email protected] Impresso no Brasil

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Dermeval da Hora (UFPB) Eliane Ferraz Alves (UFPB) Lucienne C. Espíndola (UFPB) Maria Elizabeth Affonso Christiano (UFPB) Marianne Bezerra Cavalcante (UFPB) (Organizadores)

Revista do Grupo de Estudos Lingüísticos do Nordeste - GELNE João Pessoa Vol. 9 Nos. 1/2 2007 ISSN 1517-7874



REVISTA DO GELNE













Vol. 9 - Nos. 1/2 - 2007







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COMITÊ EDITORIAL Américo Venâncio Lopes Machado Filho (UFBA) Dermeval da Hora (UFPB) – Presidente Dóris de Arruda Carneiro da Cunha (UFPE) José de Ribamar Mendes Bezerra (UFMA) Maria Elias Soares (UFC) Socorro de Fátima Pacífico Barbosa (UFPB) CONSELHO EDITORIAL Ana Maria Martins - Universidade de Lisboa Ataliba Teixeira de Castilho - USP Célia Marques Telles - UFBA Diana Luz Pessoa de Barros - USP Dino Preti - USP Ingedore Vilaça Koch - UNICAMP José Luiz Fiorim - USP Kazuê Saito de Barros - UFRN Luiz Antônio Marcuschi - UFPE Maria Aparecida Barbosa - USP Maria da Piedade de Sá - UFPE Maria do Socorro Simões - UFPA Sônia Maria van Dijck Lima - UFPB Stella Maris Bortoni-Ricardo - UNB GRUPO DE ESTUDOS LINGÜÍSTICOS DO NORDESTE Presidente Vice-Presidente Secretária Tesoureira Suplente-Secretária Suplente-Tesureira

Prof. Dr. Dermeval da Hora (UFPB) Profa. Dra. Ma. Elizabeth Affonso Christiano (UFPB) Profa. Dra. Socorro de Fátima Pacífico Vilar (UFPB) Profa. Dra. Lucienne C. Espíndola (UFPB) Prfa. Dra. Eliane Ferraz Alves (UFPB) Profa. Dra. Marianne Bezerra Cavalcante (UFPB)

CONSELHO TITULARES Prof. Dr. Antônio Luciano Pontes (UECE) Profa. Dra. Célia Marques Telles (UFBA) Profa. Dra. Maria Ester Vieira de Sousa (UFPB) Profa. Dra. Conceição de Maria de Araújo Ramos (UFMA) Profa. Dra. Maria Elias Soares (UFCE) CONSELHO - SUPLENTES Profa. Dra. Maria das Graças Carvalho Ribeiro (UFPB) Profa. Dra. Kasuê Saito Barros (UFPE) Profa. Dra. Márcia Manir Miguel Feitosa (UFMA) Profa. Dra. Maria do Socorro Oliveira (UFRN) Profa. Dra. Serafina Maria de S. Pondé (UFBA)

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O CARÁTER HISTÓRICO DOS GÊNEROS E DA REPRESENTAÇÃO DA ENUNCIAÇÃO Dóris de Arruda C. da Cunha (UFPE/CNPq)

07 ENUNCIAÇÃO, DIALOGISMO, DISCURSO E INTERDISCURSO: DESLOCAMENTOS E APROXIMAÇÕES Maria Ester Vieira de Sousa (UFPB)

21 O SUJEITO SUBMETIDO À LINGUAGEM Leda Verdiani Tfouni (FFCLRP-USP) Alessandra Fernandes Carreira (Universidade de Ribeirão Preto)

35 A METAENUNCIAÇÃO: UM PROCESSO PARAFRÁSICO EM ANÚNCIOS PARAIBANOS DOS SÉCULOS XIX E XX Ana Cristina de S. Aldrigue (UFPB) Maria das Dores O. de Albuquerque (UFPB)

53 A PREDICAÇÃO COPULATIVA EM PORTUGUÊS BRASILEIRO E EM ESPANHOL Denilda Moura (UFAL)

67 O PRONOME OBJETO E AS LÍNGUAS AFRICANAS NO PERÍODO COLONIAL Raimundo Enedino dos Santos (UNEB)/(OAU Ilê-Ifé, Nigéria)

77 OBJETOS-DE-DISCURSO NA CONSTRUÇÃO DO SABER EM AULA Jan Edson Rodrigues Leite (UFPB)

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SUMÁRIO









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OBSERVAÇÕES METODOLÓGICAS SOBRE A INTERPRETAÇÃO SEMÂNTICA E QUANTITATIVA DE QUANTIFICADORES NOMINAIS DO PORTUGUÊS Pedro Perini-Santos (PUC- Minas)

121 MARCAS DO INTERLOCUTOR EM CARTAS PRODUZIDAS NA QUESTÃO DE REDAÇÃO DO PSS 2008 DA UFPB Erivaldo Pereira do Nascimento (UFPB) Lucienne Espíndola (UFPB)

133 SOBRE OS MECANISMOS LINGÜÍSTICOS SUBJACENTES AO GESTO DE RASURAR Cristina Felipeto (UNCISAL) Eduardo Calil (UFAL)

147 PROJETOS DE ENSINO E RESSIGNIFICAÇÃO DA PRÁTICA DO PROFESSOR DE LÍNGUA MATERNA Ivoneide Bezerra de Araújo Santos (SECD-RN/CIC)

161 INTERATIVIDADE E ESTRATÉGIAS DISCURSIVAS NO PORTADOR DE AFASIA Marígia Aguiar (UNICAP) Moab Acioli (UNICAP) Maria de Fátima Vilar de Melo (UNICAP)

177 (RE)ESCREVENDO OU (RE)CRIANDO A HISTÓRIA: UMA DISCUSSÃO METODOLÓGICA SOBRE A UTILIZAÇÃO DOS TEXTOS LITERÁRIOS COMO FONTE HISTÓRICA Uyguaciara Veloso Castelo Branco (UFPB)

193 A “SÁTIRA QUE MORDE” EM ÁLVARES DE AZEVEDO E OUTROS ROMÂNTICOS Francilda Araújo Inácio (CEFET/PB)

211 DRUMMOND NA IMPRENSA: CRÔNICAS DISPERSAS Isabel Travancas (FCRB)

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Dóris de Ar Arrr uda CC.. da Cunha *











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O CARÁTER HISTÓRICO DOS GÊNEROS E DA REPRESENT AÇÃO DDAA ENUNCIAÇÃO REPRESENTAÇÃO (The Historical Character if Genres and of the Representation of Utterance) ABSTRACT This paper presents some results of studies on the different modes of representation of other utterances. From the analysis of a corpus constituted of literary and press genres from the 19th and 20th centuries. We will demonstrate that the modes of inscription of other utterances in the text vary according to the genre and historical moment. K eyw or ds ywor ords ds: genre, history, representation of enunciation. RESUMO Este artigo apresenta alguns resultados de estudos sobre os diversos modos de representação de outra enunciação. A partir da análise de um corpus constituído de gêneros literário e da imprensa, dos séculos XIX e XX, mostraremos que os modos de inscrição de outra enunciação no texto variam em função do gênero e do momento histórico. Palavras-chave: gênero, história, representação da enunciação.

1.

OBSERVAÇÕES PRELIMINARES: ALGUMAS OPÇÕES

Nossa pesquisa tem como objeto de reflexão o fenômeno dialógico no funcionamento da linguagem considerada como social, histórica, intersubjetiva, ideológica. Nessa perspectiva, analisar a linguagem é ir além da estrutura da língua e das leis de combinatória que a regem, para considerar a relação com o outro, a circulação dos discursos, a singularidade de cada situação sócio-histórica, o enunciado como evento, fato singular, resposta e tomada de posição num contexto de construção de sentido específico. Esta opção pode ser traduzida numa recusa do normativo, do homogêneo, do geral, bastante valorizado nas Ciências Humanas, para analisar a linguagem do ponto de vista da diversidade: 1. de sujeitos, singulares e heterogêneos do ponto de vista das posições sociais, cujos discursos se constroem num horizonte social revelando a pertença a um grupo ou ao contrário surpreendendo por não se adequar à expectativa em função deste horizonte; 2. diversidade de discursos, do ponto de vista dos modos de significar (em função da situação, dos interlocutores, dos temas, dos gêneros, dos atos de fala), da gestão do dito com o já-dito e com o não dito; * UFPE/CNPq.







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3. diversidade dos efeitos produzidos pela circulação dos discursos, pelas misturas de gêneros, pela diversidade de semiologias em jogo em cada evento, pelos diferentes movimentos discursivos do locutor.

2. GÊNEROS E REPRESENTAÇÃO DA ENUNCIAÇÃO Durante séculos, de Aristóteles a Hegel, os gêneros foram o objeto central da poética. Eram considerados invariáveis, definidos por regularidades de forma e de conteúdo, classificados em categorias e sub-categorias claras e mutuamente excludentes. Nos últimos vinte anos, a lingüística adotou o conceito, a partir dos escritos de Bakhtin, que não teoriza sobre os gêneros por eles mesmos, pois ele nega que sejam formas abstratas, mas sobre o funcionamento dos enunciados na interação verbal. Como se sabe, o seu ponto de partida é a ligação entre os gêneros e as diferentes esferas de atividade humana, ou seja, as atividades criam e condicionam os gêneros que por sua vez refletem as condições específicas e as finalidades de cada uma destas esferas não só pelo tema e pelo estilo, mas pelo todo composicional. Nesta perspectiva, a quantidade e a diversidade dos gêneros são inesgotáveis, tendo em vista as numerosas atividades humanas acompanhadas de discursos, que se realizam necessariamente na forma de gêneros, primários ou secundários. Por isso, a lingüística opõe a diversidade de gêneros à lista reduzida de tipos textuais, fixos e estáveis, descritos a partir da retórica (ADAM, 1992). É importante destacar que gênero e tipo são conceitos usados no estudo do texto, mas que esta dicotomia não faz parte do aparato teórico bakhtiniano, que considera os enunciados como relativamente estáveis, mas não discute forma dos tipos e seqüências textuais, justamente porque muitos enunciados não encontram lugar neste leito de Procusto. Discutimos aqui apenas alguns aspectos dessa concepção de gênero para o estudo da enunciação. 1. A relação entre linguagem, gênero e atividade humana é intrínseca e direta. “Estudar o discurso em si mesmo, sem estudar sua orientação externa, é tão absurdo como estudar o sofrimento psíquico fora da realidade a que está dirigido e pela qual é determinado” (BAKHTIN, 1993, p. 99). Lembrando que o discurso só se realiza na forma de gêneros. Por isso, é impossível elaborar um repertório dos gêneros, uma vez que a lista das atividades humanas é aberta. “À medida que a esfera da atividade humana se desenvolve e fica mais complexa, o repertório de gêneros vai diferenciando-se e ampliandose” (BAKHTIN, 1993, p.113). 2. Esta relação coloca em evidência o caráter histórico e plástico da construção composicional dos gêneros. Segundo Bakhtin (2003, p.

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3. A REPRESENTAÇÃO DA ENUNCIAÇÃO NOS GÊNEROS DO DOMÍNIO LITERÁRIO Os gêneros da literatura não fazem parte dos corpora de análise dos lingüistas, exceto para alguns teóricos da enunciação. No entanto, eles constituem, segundo Cunha (2001) e Koren (2002), um objeto de estudo privilegiado para os pesquisadores que se interessam pelas interações que estruturam a linguagem, pelos processos de escrita, notadamente os valores enunciativos da « machinaria textual » (CUNHA e ARABYAN, 2004) constituída pelo sistema tipográfico, pontuacional, a estrutura visual escolhidos pelo escritor para representar a enunciação dos personagens. Para Authier-Revuz (2004), a produção de imagem de outro discurso passa pela elaboração de formas e operações, de modo que não se pode escrever uma « gramática », mas apenas desenhar uma estruturação em zonas, operada na base de algumas operações e formas elementares. Nas obras do século XIX, a representação dos discursos dos personagens,

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285): “os gêneros discursivos /.../ com imediatismo, sensibilidade e plasticidade refletem a mínima mudança na vida social”. A vida do gênero literário, ainda segundo o autor, é constituída pela dinâmica do desenvolvimento da literatura: ele renasce e se renova em cada etapa deste desenvolvimento e em cada obra individual. Mesmo nos gêneros que parecem ter uma forma padrão, como os da administração pública, encontram-se movimentos diversos e por vezes inesperados, como mostra Silveira (2005). Tudo depende da relação entre os interlocutores, do propósito do locutor, da entoação expressiva, da temática, dos outros discursos sobre o mesmo objeto. 3. Há uma correlação entre gênero e representação das enunciações: em contextos epistemológicos (científicos e filosóficos) e retóricos (político ou judiciário), outras enunciações são introduzidas no discurso com fronteiras nítidas, devido à pressuposição de autenticidade e de fidelidade dos gêneros destes domínios; o discurso literário trata livremente outras enunciações, transmitindo as transformações na inter-orientação sócio-verbal. No corpus estudado, há uma diversidade de modos de inter-relações com outras enunciações, de modo que não se pode falar no abstrato de formas – discursos direto, indireto, indireto livre, formas mistas, narrativizadas – mas devem ser descritas na relação com os gêneros, de acordo com o momento histórico. Assim, a teoria dos gêneros pode ser enriquecida pelo estudo da representação dos discursos, uma vez que interpretar um texto é também reconstituir suas redes dialógicas.





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construída com a monstração das palavras, é duplamente marcada, sintática e tipograficamente. Diferentemente de períodos anteriores, em que a representação de outras enunciações, construída com a monstração das palavras, marcada por travessão simples ou duplos, fazia parte de um mesmo parágrafo, juntamente com ações, descrições e explicações, as vozes do romance no século XIX são separadas da narrativa por parágrafos de discurso atributivo. Alencar, Aluísio de Azevedo e Machado de Assis seguem este modelo: a réplica do diálogo é marcada com um travessão, sem aspas e o discurso do narrador forma um novo parágrafo. O discurso interior dos personagens podem permanecer na seqüência narrativa ou ser destacado por meio da mudança de parágrafo e de aspas. Vejamos alguns fragmentos de romance desses autores. Exemplo 1 (O guarani): Cecília prevendo o que se ia passar tinha-se escondido por detrás de seu irmão D. Diogo. - Peri, acreditas que D. Antônio de Mariz é teu amigo? Perguntou o fidalgo. - Tanto quanto um homem branco pode ser de um homem de outra cor. - Acreditas que D. Antônio de Mariz te estima? - Sim; porque o disse e mostrou. - Acreditas que D. Antônio de Mariz deseja poder pagar-te o que fizeste por ele, salvando sua filha? - Se fosse preciso, sim. - Pois bem, Peri; D. Antônio de Mariz, teu amigo, te pede que voltes à tua tribo. O índio estremeceu. Exemplo 2 (Uma lágrima de mulher): Rosalina, cujo coração pulsava cada vez mais impetuosamente, passoulhe um braço em volta do pescoço, e, com a mão livre messando-lhe os cabelos, entre o receio e o desejo, mais medrosa do que terna: - Estou triste! - Por quê? interrogou indiferentemente o pescador. Ângela ouvia com interesse esse diálogo. - Tenho medo de pedir-lhe uma coisa. - E por que tens medo? insistiu o velho sempre a fitar maquinalmente a estrada. - Porque vai ralhar comigo. - Então queres pedir-me alguma tolice?... - Não senhor!...

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No romance brasileiro do fim do século XIX, é portanto comum o uso da mesma convenção de representação de outra enunciação, que marcam a alteridade, o heterogêneo enunciativo. A escolha de dar a palavra a uma personagem se efetua por sinais tipográficos em função de parâmetros variáveis, como mostra Delesalle (2002), que são o uso feito pelos impressores em determinada época, os hábitos dos editores, a distribuição do texto numa página e eventualmente as indicações do autor. É importante destacar que, em alguns romances de Aluísio de Azevedo e de Machado de Assis, a imagem das enunciações é bem mais diversa, alternando discursos narrativisado, indireto e indireto livre, no interior de um parágrafo do narrador, segundo a convenção da época. Vejamos o exemplo. Exemplo 3 (Memórias póstumas de Brás Cubas): Enquanto ele restituía o livro à estante, relia eu o bilhete. Ao jantar, vendo que eu falava pouco, mastigava sem acabar de engolir, fitava o canto da sala, a ponta da mesa, um prato, uma cadeira, uma mosca invisível, disse-me ele: – Tens alguma coisa; aposto que foi aquela carta? – Foi. Realmente, sentia-me aborrecido, incomodado, com o pedido de Virgília. Tinha dado a Dona Plácida cinco contos de réis; duvido muito que ninguém fosse mais generoso do que eu, nem tanto. Cinco contos! E que fizera deles? Naturalmente botou-os fora, comeu-os em grandes festas, e agora toca para a Misericórdia, e eu que a leve! Morre-se em qualquer parte. Acresce que eu não sabia ou não me lembrava do tal Beco das Escadinhas; mas, pelo nome, parecia-me algum recanto estreito e escuro da cidade. Tinha de lá ir, chamar a atenção dos vizinhos, bater à porta, etc. Que maçada! Não vou. Em Memórias Póstumas de Brás Cubas, não são abandonados os recursos tipográficos para introduzir diálogos, mas o uso do discurso indireto livre e de variantes de discurso indireto dá uma imagem menos visível das enunciações dos personagens. Com isso, os comentários do narrador ganham novos meios de inserção no discurso dos personagens, caracterizando-se como estilo pictórico de enunciação. “O contexto narrativo esforça-se por desfazer a estrutura compacta e fechada do discurso citado, por absorvê-lo e apagar as suas fronteiras” (BAKHTIN, 1995, p.150). Vejamos agora um exemplo do que acontece com a representação dos discursos no mesmo gênero no final do século XX. Encontramos um funcionamento dialógico inesperado em diversos autores. As vozes sociais se sucedem em diálogos que não são separados da narrativa por alíneas, travessões

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Então pede... Promete não se zangar?... Sim! E quando souber que tenho um namorado? disse abaixando os olhos Rosalina, porém agora mais terna do que medrosa.



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ou aspas, ou seja, não são visíveis, mas se fazem ouvir claramente. E cada autor tem seu sistema.





Exemplo 4 (Agruras de um jovem escritor): /.../ e nesse instante a polícia chegou. Dois homens, um logo me perguntou quem eu era e o outro pegou na carta, os dois leram e não me deram mais importância, continuavam uma conversa anterior - até que um deles perguntou, ela andava nervosa ? – fizeram perguntas que eu não entendia, o tempo não passava, eu queria dormir, um me perguntou, o telefone está enguiçado? temos que chamar a perícia, e o outro disse, se matar por um raquítico desses, as mulheres são loucas, e saiu para chamar a perícia pelo rádio do carro, enquanto o colega ficou fumando calmamente – era uma manhã opressiva – da janela eu via todas as chaminés dos prédios de apartamentos, jogando uma fumaça branca no ar, milhares de lixeiras fumegantes, trazendo de volta pelo ar, como um anjo maldito, lixo jogado fora – meu corpo era raquítico, mas era meu assim como meu pensamento polifásico. /.../ e o policial que chefiava me intimou para depor no dia seguinte – o corpo seria autopsiado e depois ficaria à minha disposição – para quê ? – e lá se foram eles, levando a carta de Lígia – imaginei os jornais no dia seguinte, Linda Mulher se mata por Jovem Escritor – não tenho culpa do que aconteceu, disse o Jovem e Renomado Escritor ao ser entrevistado por esta folha, lamento muito a morte desta pobre e tresloucada criatura, é tudo que posso dizer – a reportagem desta folha descobriu que não é a primeira vez que uma mulher se mata de amor pelo Jovem Escritor, há dois anos, em Minas Gerais – não, Minas Gerais não ; melhor no Rio mesmo – há dois anos, no Rio de Janeiro, uma francesa, estudante de antropologia – chega de pensamento polifásico, pensei, e saí /.../ na minha cabeça uma névoa gostosa, Conrad dizendo que vivi tudo aquilo1... No trecho acima, vemos uma série de diálogos justapostos, intercalados pelo discurso interior do narrador-personagem, apresentados de forma inovadora. Podemos dizer que as inovações revelam a vontade dos grandes escritores de impor aos editores seu processo de escrita « extraordinário », seu sistema próprio de representação da enunciação, evidenciado pela materialidade textual – pontuação, códigos tipográficos, uso não convencional de maíusculas2 e 1

Essa última construção que mistura discurso direto e indireto vai totalmente de encontro à norma e os diversos estudos que se consagraram aos aspectos formais do discurso reportado. 2 Saramago insere os discursos citados por meio de maiúscula após uma vírgula: “A contagem estava terminada, o subchefe escrevia na guia, Recebi metade, e disse, Não traga mais nada enquanto não tiver notícias nossas, Acha que poderei continuar a fabricar, perguntou o oleiro, A decisão será sua, eu não me responsabilizo, E a devolução... (A Caverna).

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4. A REPRESENTAÇÃO DA ENUNCIAÇÃO NOS GÊNEROS DA IMPRENSA Comecemos esta análise observando o que acontece na imprensa do século XIX. Os jornais brasileiros deste período não eram organizados por cadernos, temas ou rubricas e gêneros como hoje. Encontram-se informações políticas, diplomáticas, econômicas, comerciais e marítimos; pequenos anúncios (venda de livro, de terras, de escravos), novelas e na parte Correspondência – cartas dos leitores. Segundo Fraga (2001, p. 57): quase tudo se podia fazer por meio das cartas; a carta era a notícia que, na falta de outra ‘fôrma’, servia e se adequava perfeitamente aos interesses dos escritores e às limitações da linguagem jornalística da época. Não havia ainda, como nas folhas atuais, o artigo de opinião, a página de política, de notícias das cidades, de lazer etc.; as correspondências reuniam diversos interesses, sendo, talvez, a seção de maior teor informativo daqueles impressos, já que ocupavam a maior parte do jornal.

Estas eram assinadas por pseudônimos ou por pessoas com algum prestígio social ou cargo público, que escreviam para se defender de acusações ou prestar algum esclarecimento. Devido à diversidade de finalidades, de temas, da relação entre os interlocutores, a circulação dos discursos é particularmente diferente. A maior parte responde a outras cartas já publicadas, funcionando como réplicas de um diálogo. Fazem menção ao conteúdo da carta a qual ela responde, e independentemente dos autores aos quais elas respondem, os destinatários são o redator ou o diretor do jornal, as pessoas envolvidas com os fatos alegados: em quase todos os casos observa-se o fenômeno de duplo endereçamento, o destinatário designado servindo de pretexto para uma tomada de posição pública. Como todas as cartas, a construção composicional é imprevisível, exceto o início e o fim. Entretanto, em função das características do gênero, os autores fazem citações para refutar ou justificar seus argumentos: há citações de autoridades, inclusive em latim ou da literatura universal. A maior parte busca negar o discurso citado e denegrir a reputação daquele ao qual elas respondem. Do ponto de vista da construção da imagem da enunciação de outrem, a

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minúsculas. Revelam também um «horizonte de recepção » e um « contrato de leitura » correspondente. No entanto, as mudanças mais inovadoras não são admitidas em outros gêneros nem na prática pedagógica, incluindo gramáticas, livros didáticos e outros manuais. Tem-se assim de um lado a norma, baseada na sintaxe, e usos na arte, onde todas as inovações são consideradas estilo do autor.





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maioria insere na forma indireta. Diferentemente dos gêneros da literatura, a mostração das palavras de outrem se dá por meio de hífens no interior de um parágrafo ou por dois pontos e aspas, com verbo locutório intercalado. Há muitas referências aos discursos das cartas precedentes. Vejamos os exemplos: Exemplo 5: O Capibaribe – 27/09/1848 Lendo o diário Novo n. 205 deparei com uma correspondencia, em que é fortemente calumniado, e insultado o vigario do affogado, e com quanto naõ precise elle de deffesa, e prefira antes, que se entregue ao despreso esse parto de miseraveis intrigantes, todavia direi sempre alguma coisa, para que se reconheça de quanto é capaz a alma pequenina de um inimigo rancoroso. Neste exemplo, aparece o início comum às cartas analisadas: na sua maioria, têm como objetivo responder a idéias expostas em cartas anteriores. Elas se iniciam fazendo menção ao conteúdo de outra carta, sem, contudo, retomar o seu conteúdo por meio do dialogismo mostrado. As cartas analisadas, de maneira geral, são construídas, em parte, a partir do dialogismo mostrado e, em parte, pelo dialogismo constitutivo. No primeiro caso, prevalece o discurso indireto introduzido pelo conector que; no segundo, prevalece a alusão ao discurso da carta anterior. Exemplo 6:

Gazeta Commercial – 19/09/1838 Diz o anonimo, Sr. Manoel Antonio da Silva, que eu dissera que o Batalhão de Itaparica era commandado por hum tenete Coronel de 1.ª L., que o General Callado mandára processar por fraco e cobarde, e que o 1.° Batalhão provisorio fóra commandado por elle que o emsmo General declara coberto de defeitos, entendendo até que devia ser retirado como perigoso. Parece á primeira vista, que eu quis fazer graves accusações á estes dous offiçiaes: porque, ommitindo o Jornal do Commercio parte do meu discurso que publicou, e todo hum outro, que tinha relação com este, apenas deixou vera odiosidade de expressões destacadas: por tanto devo explicar-me. Este exemplo apresenta o discurso indireto introduzido pela conjunção que, mais o itálico. A transmissão da voz do outro por meio do discurso direto se apresenta como uma forma secundária de representação dos discursos.

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Diario de Pernambuco – 08/01/1830 Na minha prezença rogou hum pobre matuto ao meu amigo, e estimavel Parocho Joaõ Paulo, que Deos haja, que lhe fosse escomungar as formigas, que lhe estavaõ dando cabo de uma rocinha: foi o meu virtuoso vigario por contentar o bom homem, e excomungou os malfazejos insectos: passados mezes, encontrando casualmente o matuto, perguntei-lhe pelo resultado da excomunhaõ – Agora (respondeo-me elle zangado) agora, Snr. Capitaõ, he que as drogas comem roça: applique (?). Vamos escumando o sarapatel. Aqui o discurso direto é introduzido por travessão, com o verbo discendi intercalado no interior do parágrafo. Difere do modelo regular encontrado nos romances da mesma época, em que a fala das personagens eram apresentadas, na maior parte da narrativa, por discurso direto, mas com a presença dos dois pontos, e, em seguida, o travessão indicativo de novo parágrafo, seguido da fala da personagem. Esse modelo descrito pela tradição gramatical não é regra na imprensa que faz uso de variantes dos esquemas de transmissão, utilizando travessão no interior do parágrafo.

Exemplo 8: O Cruzeiro – 09/02/1830 Em quanto ao dizer o Impavido, que o snr. Antero naõ pode ser demagogo; porque s. M.I. lhe deu medalhas, que o condecoraõ, repomdo com o Poeta Virgilio. Quid non mortalia pectora cogis Auri sacra fames? Tal he a natureza do homem, que os bens fisicos lhe causaõ males moraes. O homem huma vez saboreando-se com os bens, e com as grandesas, he atacado de huma enfermidade, que nada o satisfaz. “Elle, diz Seneca, vive infeliz no acanhado limite do mundo.” Alexandre era pobre, mesmo depois de ter vencido Dario, e as Indias: e houve tal, que depois de tudo possuir, ainda dezejava alguma (1) cousa. O homem passa do nada á possuir como dez; esforçasse a possuir como mil; e achando ainda hum vacuo em seu coraçaõ; maior esforço faz para possuir hum milhaõ. Nada lhe serve de obstaculo á sua avareza. O mesmo, que lhe deo mil e que lhe deo dez mil; este vem áser oseu maior inimogo, se nelle encontra o nosso ganhar o milhaõ: e por isso disse muito bem cicero: “Nisi

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Exemplo 7:





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homini deus placuerit, deus non erit.” Deos deixaria de ser deos, se naõ agradasse ao homem.





A citação em latim recebe um destaque na estruturação do texto. Na terceira linha deste exemplo, encontramos um modelo de discurso direto marcado por aspas e com o verbo discendi intercalado. Na penúltima linha, encontramos uma outra ocorrência de discurso direto. Desta vez, uma citação em latim, recebe além das aspas, a marcação com os dois pontos e itálico.

Exemplo 9: Diário de Pernambuco – 08/01/1830 Vou me pois ao meu – Escovas-botas – do Cruzeiro 173, como quem com bastante sede para aguçar o apetite abucanha huma cocada de laranja (exemplo de cathecreze n’Aula de Zuza: e como essa miserável produçaõ do Forca he hum verdadeiro sarapatel de sandices, de falta de (?), e de supina ignorancia, procurarei escuniar esse cozinhado, lançado fora as saborras (que he quaze tudo) para examinar taõ somente o que me diz respeito. Assevera o meu lacaio Xico, que eu dera por author do venenoso livro – Voz da Naturesa sobre a origem dos Governos – ao servilissimo litterato Jose Agostinho de: mente Snr. Lombriga, mente na forma do costume; o que eu disse foi, que talvez seja este padre o autor dessa obra, primeiramente porque apparece, como anonyma em hum estillo puro, e brilhante, muito analogo ao d’aquelle Escriptor, e em fim porque nunca vi essa obra citada em Publicista algum Francez, d’onde se diz traduzida; ainda dos mais chegados ao cogumelismo: suponho sim, mas naõ assevero: ergo o escovador das minhas botas he arengueiro, embrulhador, e mentirozo, quod erat demonstrandum.

O autor desta carta, que a assina sob o pseudônimo de Trambolhista, havia enviado uma carta, comentando o livro Voz da Naturesa, que, por sua vez, fora objeto de crítica do seu opositor, o Escova-botas, como tal ele o identifica. Agora, o Trambolhista retoma os discursos anteriores, desenvolvendo uma espécie de debate, em que entra em jogo o já dito, na sua relação com as posições ideológicas do Escova-botas. Inicia o parágrafo se dirigindo ao objeto da discussão: o Cruzeiro 173. Ao chamar o objeto proferido de “hum verdadeiro sarapatel de sandices”, o autor menciona o discurso da carta escrita pelo oponente para avaliá-lo: “lançado fora as saborras (que he quaze tudo) para examinar taõ somente o que me diz respeito”. Ao comentar a afirmativa feita pelo Escova- botas de que ele havia dado uma informação acerca do autor do referido livro, o Trambolhista desaprova o verbo utilizado pelo primeiro para fazer menção à sua fala. Na verdade, tratavase de uma suposição e não de uma afirmação contundente, isto visto da posição ocupada pelo enunciador primeiro do discurso. Para ele, tal interpretação devese às qualidades de arengueiro, embrulhador, e mentiroso do outro. Observa-

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Exemplo 10: Jornal do Commercio, Primeiro Caderno, p. 6. Recife, 3 de agosto de 2002 NOVO VÍRUS DA HEPATITE NO BRASIL Fiocruz identifica pela primeira vez o tipo 4 em paciente que não teria viajado à África, de onde a variedade é originária. Instituto diz que não há risco de contaminação. Rio – A fundação Instituto Oswaldo Cruz (Fiocruz) identificou pela primeira vez o vírus da hepatite C tipo 4, em um paciente do Hospital Universitário Gaffrée Guinle, na Tijuca (RJ). Entre os seis tipos conhecidos da doença, esse é um dos mais raros no País, pois é originário do Norte da África, região que recebe poucos visitantes do Brasil e de onde pouca gente viaja para o País.

“Essa nova manifestação da doença não reage ao tratamento convencional, que utiliza o interferon”, explicou o presidente do Grupo Otimismo, Carlos Varaldo, que criou essa organização não-governamental para defender os direitos dos portadores da enfermidade e divulgar as formas de deter o avanço da hepatite C. De acordo com a Fiocruz, não há risco de contaminação, pois é uma doença que se transmite pelo sangue, e suas causas estão controladas. Ainda segundo a fundação, é a primeira vez que o vírus tipo 4 é identificado no Brasil em paciente que não tenha ido ao Norte da África. “O único fator de risco encontrado foi uma transfusão de sangue feita pelo paciente no País, em 1985”, afirma a instituição. Varaldo explica que quase todos os casos de hepatite C conhecidos atualmente são resultados de contaminação ocorrida antes da década de 90,

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se aqui que no contínuo das variantes das formas de interação entre discursos, tudo depende do grau de distância criado pelo locutor em relação ao discurso original e ao interlocutor. Dessa forma, a retomada é um fenômeno aberto e dinâmico, ligado às múltiplas maneiras como os sujeitos falantes recebem e reorientam a fala de outrem. Quanto aos gêneros da impressa contemporânea, as formas de representação dos discursos de outrem distinguem notícias e artigos de opinião. Enquanto a maioria das notícias é construída por meio de discursos outros, tendo o jornalista o papel de articular as declarações e assim ter uma posição dominante nesta interação, o artigo de opinião faz pouco uso da citação de falas ou de ilhas textuais, mas é fundamentalmente dialógico, constituído por outros discursos mencionados, aludidos e antecipados que funcionam como argumento para sustentar os pontos de vista do jornalista. Isto porque, neste gênero, mencionamse os discursos já reportados pela mídia. Vejamos uma notícia:





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pois o vírus foi identificado em 1980, e o exame para detectá-lo só se tornou obrigatório no Brasil a partir de 1992. A doença é assintomática, mas ao longo dos anos afeta o fígado e pode levar à morte por cirrose hepática aguda. “Geralmente, é descoberta quando já está em um estágio avançado e pouco pode ser feito. O problema é que a doença se manifesta como cirrose mais de 20 anos depois, em 25% das pessoas contaminadas”, disse o dirigente da ONG. Neste caso, a detecção dos casos é mais importante do que a prevenção para tratamento prévio. Varaldo lembrou ainda que o Ministério da Saúde calcula em quatro milhões o número de pessoas contaminadas no Brasil pela hepatite C, das quais 1 milhão deve desenvolver cirrose. “Destas 75% têm o vírus tipo 1, 20% estão contaminadas com o tipo 3 e o restante está distribuído entre os tipos 2, 5 e 6, sobretudo esses dois últimos, que vêm da Ásia e aqui aparecem em São Paulo, onde há muitos descendentes de japoneses”, enumerou. Segundo Varaldo, no caso do tipo 4, por ser uma doença comum em países pobres, a indústria farmacêutica ainda não iniciou pesquisas para descobrir medicamentos que combatam a doença. Do ponto de vista do funcionamento dialógico, este gênero se caracteriza por visar à objetividade. Por isso, dá voz aos que estão envolvidos com os fatos relatados. Temos aqui um relato constituído de fragmentos de discursos, para tornar a informação mais “verdadeira”. Diferentemente dos gêneros da ficção, o jornalista marca a representação da voz de outrem com um verbo introdutor do ato de fala e das palavras parafraseadas ou citadas.

PALAVRAS FINAIS Estas análises levam a comentários que não são necessariamente conclusivos. Nos gêneros literários, há uma mudança evidente do modo de representação da enunciação. A convenção em que a enunciação alheia é marcada tipograficamente por meio de alíneas, travessões e paragrafação, sucedeu um outro modo de representação, marcado de outra forma, por meio de outro uso do código tipográfico e das formas da língua. Na imprensa, houve neste mesmo período uma grande mudança nos gêneros, que refletem as transformações na sociedade brasileira. Nos jornais do século XIX, os gêneros, os temas, as vozes que circulam refletem uma sociedade pouco organizada. Os debates por cartas de leitores refletem as mudanças nas relações sociais durante este período instável pós independência. Na imprensa atual, destaca-se a mudança nos gêneros, com as notícias e reportagens substituindo as cartas. Todas são plurivocais, mas com funções sociais e discursivas completamente diferentes, como são os dois gêneros. A diversidade de modos de representação da enunciação nos gêneros da imprensa e da literatura, nestes dois momentos, confirma o que postula Bakhtin (2003, p. 267): “as mudanças históricas dos estilos de língua são indissoluvelmente ligadas às mudanças dos gêneros do discurso”.

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Maria Ester Vieira de Sousa *







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ENUNCIAÇÃO OGISMO ENUNCIAÇÃO,, DIAL DIALOGISMO OGISMO,, DISCURSO E INTERDISCURSO: DESL OCAMENT OS E APR OXIMAÇÕES DESLOCAMENT OCAMENTOS APRO (En uncia tion, Dialo gism, Discour se and Inter -discour se: (Enuncia unciation, Dialogism, Discourse Inter-discour -discourse: dislocations and approximations) ABSTRACT On this paper I intend to re-start the polemics about a possible meeting between Bakhtin and the Discourse Analysis, through a discussion based on key-concepts from the “bakhtinian” theory and from the Discourse Analysis. For that, I chose the concepts of enunciation and dialogism, to one side; and the concepts of discourse and inter-discourse, to the other side. In order to consider the agreements and disagreements, we cannot forget to face the question of the subject and the language conception. However, more than present answers, I intend to establish some analysis about these discourses that do not stop touching each other. Keywords: Enunciation; Dialogism; Discourse; Inter-discourse. RESUMO Nesse artigo, pretendo reacender a polêmica acerca de um possível encontro entre Bakhtin e a Análise de Discurso, a partir de uma discussão baseada em conceitos-chave da teoria bakhtiniana e da Análise de Discurso. Para tanto, elegi, de um lado, os conceitos de enunciação e dialogismo e, de outro, os conceitos de discurso e interdiscurso. Sustentando os encontros e os desencontros, não podemos deixar de enfrentar a questão do sujeito e a concepção de linguagem. Contudo, mais do que apresentar respostas, pretendo estabelecer uma análise desses discursos que não param de se tocar. Palavras-chave: Enunciação; Dialogismo; Discurso; Interdiscurso.

Falar sobre encontros entre teóricos e teorias que se distanciam no tempo nem sempre se torna confortável, visto que se corre o risco de estabelecer uma leitura enviesada que depõe contra uns e contra outros. De qualquer forma, não falo de impossibilidades, por isso “vou pra rua e colho a tempestade”! A idéia é trazer para o centro desse debate a polêmica acerca de uma possível articulação entre o pensamento de Bakhtin e a proposta teórica da Análise de Discurso (AD). Para tanto, recuperarei aqui parte de uma discussão que iniciei em outro momento (SOUSA, 2000), dando-lhe, entretanto, um viés mais específico. Farei um recorte, que naturalmente escondem outras diferenças, a partir dos conceitos enunciados no título desse artigo: enunciação, dialogismo, discurso, interdiscurso. É preciso, antes de qualquer comentário (no sentido foucaultiano do termo), relembrar, por um lado, que Bakhtin apresentou parte de suas principais idéias no final da década de 20 e as décadas de trinta e cinqüenta do século XX e que * UFPB.







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seus escritos só obtiveram repercussão na Europa e na América nos anos setenta. Evidentemente, não cabe aqui discutir os motivos desse silêncio a que submergiu o nome de Bakhtin. Menciono esse aspecto para citar o que Roman Jakobson afirma no prefácio à edição francesa de Marxismo e Filosofia da Linguagem, em 1977, obra escrita em 1929: “[...] é pela novidade e originalidade que a obra mais surpreende o leitor de espírito aberto”. Essa avaliação pode perfeitamente estender-se a toda a obra de Bakhtin e não apenas aquele livro específico. Por outro lado, a tendência que se convencionou chamar de Escola Francesa de Análise de Discurso marcou o debate acadêmico da década de setenta e início da década de oitenta, especificamente na França, num outro cenário político e no interior de outras preocupações lingüísticas. Esse artigo é um exemplo da repercussão que essa abordagem obteve aqui no Brasil. Situo o terreno, mas, evidentemente, não tenho a pretensão de controlar os sentidos. Iniciarei mencionando dois conceitos básicos que são recorrentes no pensamento de Bakhtin: enunciação e dialogia. Para Bakhtin ([1929] 1986, p.98), a enunciação caracteriza a realidade da língua que é, necessariamente, de natureza social: “[...] todo enunciação é uma resposta a alguma coisa e é construída como tal”. A enunciação concretiza-se em unidades reais da cadeia verbal que não se confundem com frases, pelo contrário, a estrutura concreta da enunciação revela a natureza flexível e variável do signo. Nesse sentido, a enunciação reveste-se de um caráter de novidade (o acontecimento) e não apenas se limita a uma conformidade à norma. Concebida como uma réplica do diálogo social, diz Bakhtin ([1929] 1986, p.98): “[...] a enunciação é o produto de dois indivíduos socialmente organizados e, mesmo que não haja um interlocutor real, este pode ser substituído pelo representante médio do grupo social ao qual pertence o locutor.” Para a compreensão da natureza social da enunciação, é fundamental ter-se em mente a discussão que o autor estabelece acerca da noção de horizonte social ou auditório social. Esse horizonte determina a estrutura da enunciação, a partir do seu próprio interior. Nessa perspectiva, podemos adiantar que as palavras enunciação, interação verbal e discurso, em Bakhtin, muitas vezes se equivalem para circunscrever “a língua em sua integridade concreta e viva”, cuja materialidade depende de sujeitos sociais. É neste sentido que ele afirma: “[...] todo discurso é orientado para uma resposta e ele não pode esquivar-se à influência profunda do discurso da resposta antecipada” (BAKHTIN, [1934-1935] 1993, p. 89), já que o outro da enunciação é, igualmente, caracterizado como constitutivo do dizer. Em outras palavras, encontra-se representada nessa formulação a noção de alteridade discursiva que é, duas décadas depois, assinalada por Bakhtin ([1952-1953]1997, p. 321), nos seguintes termos:

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Para Bakhtin, levar em conta o interlocutor e seu fundo aperceptivo, construído a partir da imagem que o locutor (veja a expressão do meu ponto de vista) faz desse interlocutor, possibilita não apenas a escolha do gênero do discurso mas também a escolha dos recursos lingüísticos a serem utilizados. No entanto, a orientação dialógica atribuída ao discurso não se limita a essa relação entre sujeitos, mas diz-nos também do “encontro com o discurso de outrem no próprio objeto”: [...] todo discurso concreto (enunciação) encontra aquele objeto para o qual está voltado sempre, por assim dizer, já desacreditado, contestado, avaliado, envolvido por sua névoa escura ou, pelo contrário, iluminado pelos discursos de outrem que já falaram sobre ele. O objeto está amarrado e penetrado por idéias gerais, por pontos de vista, por apreciações de outros e por entonações (BAKHTIN, [19341935] 1993, p. 86).

Esse discurso que se instaura sempre na atmosfera do “já dito”, que não tem começo nem fim, já que projeta do seu próprio interior a sua réplica, a sua resposta antecipada, é o fundamento do princípio dialógico de Bakthin, noção que se acha constantemente retomada e desenvolvida no conjunto de sua obra. Iniciemos, então, as aproximações e os deslocamentos. No quadro teórico da Análise de Discurso (AD), o termo discurso passou a ser concebido enquanto uma instância da linguagem capaz de articular os fenômenos lingüísticos e os processos ideológicos. Neste sentido, as condições sociais de produção do discurso – contexto social e histórico, interlocutores, imagens sociais desses interlocutores, etc. – são constitutivos do dizer. Semelhante ao que afirma Bakhtin acerca da importância do horizonte social para a determinação da estrutura da enunciação, há, nesta concepção de discurso da AD, uma tentativa explícita de se romper com a dicotomia lingüístico/extralingüístico. Ocorre que o termo discurso está longe de apresentar uma noção consolidada e assentada. Nem sempre há um porto seguro em que possamos nos ancorar. Correndo riscos e não ouvindo os bons conselhos, buscarei, nesse primeiro momento, uma ancoragem – que, na verdade, não é segura – em Foucault, pelo viés que o (re)aproxima de nomes próprios da AD, como Pêcheux. Em Foucault ([1969]1987), a noção de discurso está articulada a vários outros conceitos: ao invés de uma delimitação dessa noção, tem-se uma ampliação do campo a partir do qual ela passará a ser concebida. Para esse autor, o discurso,

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Enquanto falo, sempre levo em conta o fundo aperceptivo sobre o qual minha fala será recebida pelo destinatário: o grau de informação que ele tem da situação, seus conhecimentos especializados na área de determinada comunicação cultural, suas opiniões e suas convicções, seus preconceitos (de meu ponto de vista), suas simpatias e antipatias, etc., pois é isto que condicionará sua compreensão responsiva de meu enunciado (Grifo meu).





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compreendido como prática, é o lugar de emergência dos conceitos e de constituição dos sujeitos:





O discurso [...] ao nível de sua positividade, não é uma consciência que vem alojar seu projeto na forma externa da linguagem; não é uma língua, com um sujeito para falá-la. É uma prática que tem suas formas próprias de encadeamento e de sucessão (FOUCAULT, [1969]1987, p. 193).

Assim, existem condições para que um discurso apareça, ou seja, “não se pode falar de qualquer coisa em qualquer época” ([1969]1987, p. 51) e não é qualquer um que pode falar qualquer coisa. A noção de prática discursiva – concebida como “um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que definiram em uma dada época e para uma determinada área social, econômica, geográfica ou lingüística, as condições de exercício da função enunciativa” (Foucault, [1969]1987, p. 136) – passa então a ser essencial para a compreensão da noção de discurso. As relações discursivas, que caracterizam o discurso enquanto prática, comportam, a um só tempo, o status do sujeito, o lugar institucional de onde ele fala e a sua posição como sujeito que interpreta, discorda, observa, ensina etc. Nas palavras de Foucault ([1969]1987, p. 61), no interior das práticas discursivas, o sujeito se revela disperso, “(...) nos diversos status, nos diversos lugares, nas diversas posições que pode ocupar ou receber quando exerce um discurso, na descontinuidade dos planos de onde fala”. É preciso acrescentar que as reflexões de Foucault acerca da noção de discurso rejeitam qualquer relação com um sujeito que livremente conhece e diz o que conhece. Do ponto de vista da análise, Foucault ([1969]1987) considera que é o enunciado, enquanto unidade elementar do discurso, que cabe descrever. Talvez a importância do enunciado para a análise a que o autor se propõe justifique o cuidado excessivo que ele revela para circunscrever a sua definição. Especificamente, nos interessa assinalar a distinção que ele estabelece entre de um lado o enunciado e de outro a frase, a proposição e o ato de fala. Segundo o autor ([1969]1987, p. 104), o enunciado possui um modo singular de existência que o diferencia dessas formulações estritamente lingüísticas: [...] está ligado a um ‘referencial’ que não é constituído de ‘coisas’, de ‘fatos’, de ‘realidades’, ou de ‘seres’, mas de leis de possibilidades, de regras de existência para os objetos que aí se encontram nomeados, designados, descritos, para as relações que aí se encontram afirmadas ou negadas. O referencial de um enunciado forma o lugar, a condição, o campo de emergência, a instância de diferenciação dos indivíduos ou dos objetos, dos estados de coisas e das relações que são postas em jogo pelo próprio enunciado: define as possibilidades de aparecimento e de delimitação do que dá à frase seu sentido, à proposição seu valor de verdade.

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Descrever uma formulação enquanto enunciado não consiste em analisar as relações entre o autor e o que ele disse (ou quis dizer, ou disse sem querer); mas em determinar qual é a posição que pode e deve ocupar todo indivíduo para ser seu sujeito (FOUCAULT, 1987a, p. 109).

O sujeito do enunciado, então, não é um indivíduo, mas uma função, uma posição que pode ser ocupada por indivíduos diferentes; função, no entanto, variável que pode continuar idêntica a si mesma ou se modificar indefinidamente. Ademais, para que haja um enunciado, torna-se necessário reconhecer a existência de um campo associativo que nos fala da relação entre enunciados, das margens que povoam todo enunciado (FOUCAULT, [1969]1987, p. 113114): Qualquer enunciado se encontra assim especificado: não há enunciado em geral, enunciado livre, neutro, independente; mas sempre um enunciado fazendo parte de uma série ou de um conjunto, desempenhando um papel no meio dos outros, neles se apoiando e deles se distinguindo: ele se integra sempre em um jogo enunciativo, onde tem sua participação, por ligeira e ínfima que seja.

Esse campo associativo, então, garante ao enunciado a sua regularidade, a qual não pode ser confundida com repetitividade, pois “um enunciado existe fora de qualquer possibilidade de reaparecimento” (FOUCAULT, [1969]1987, p. 101). Voltemos a Bakthin para lembrarmos que as suas formulações acerca da noção de linguagem e de seu princípio dialógico são basicamente sustentadas pela noção de enunciado. Essa constatação me permite estabelecer uma discussão a partir do que afirmam Bakhtin e Foucault acerca dessa noção. Vejamos. Bakhtin ([1952-1953]1997) considera o enunciado como uma unidade real da comunicação verbal. Se, para esse autor, como vimos anteriormente, a interação verbal é a realidade essencial da linguagem, essa se realiza através

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Observe-se que essa afirmação acerca do referencial do enunciado nada mais é do que uma especificação do que foi anteriormente definido como prática discursiva, conceito que tem sido retomado, no interior da AD, como a noção fundamental de formação discursiva (FD). Ou seja, tem-se que o enunciado se define em relação a uma FD e define essa própria formação. Estranha relação, mas devemos assinalar que se trata, como afirma o autor (1987, p. 135), de uma “lei de coexistência”. Uma outra perspectiva que Foucault utiliza para definir o enunciado diz respeito à relação que ele (o enunciado) mantém com o sujeito. Trata-se, antes, de uma função enunciativa que caracteriza a relação enunciado/sujeito. Neste sentido, não se trata de perguntar ao enunciado o que ele diz, mas de investigar o modo como ele diz o que diz:





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de enunciados. Dessa forma, para Bakhtin – assim como para Foucault – é o enunciado que deve ser objeto de investigação. Bakhtin (1997, p. 316) assim resume todas as particularidades de um enunciado: Um enunciado concreto é um elo na cadeia da comunicação verbal de uma dada esfera. As fronteiras desse enunciado determinam-se pela alternância dos sujeitos falantes. Os enunciados não são indiferentes uns aos outros, refletem-se mutuamente. São precisamente esses reflexos que lhes determinam o caráter. O enunciado está repleto dos ecos e lembranças de outros enunciados, aos quais está vinculado no interior de uma esfera comum da comunicação verbal. O enunciado deve ser considerado acima de tudo como uma resposta a enunciados anteriores dentro de uma dada esfera (a palavra ‘resposta’ é empregada aqui no sentido lato): refuta-os, confirma-os, completa-os, baseia-se neles, supõe-nos conhecidos, e, de um modo ou de outro, conta com eles.

Conforme Bakhtin, ter um destinatário é a condição de existência de um enunciado cujo limite, ou acabamento específico, é determinado pela alternância de sujeitos: “essa alternância ocorre precisamente porque o locutor disse (ou escreveu) tudo o que queria dizer num preciso momento e em condições precisas” (BAKHTIN, 1997, p. 299). Ademais, o enunciado, para que exista enquanto tal, além de estar ligado a enunciados que o precedem, supõe sempre uma atitude responsiva, ou seja, presume uma resposta com a qual também mantém uma relação constitutiva. Por um lado, observe-se que é esta particularidade do enunciado – manter com outros enunciados uma relação constitutiva – que também permite a Foucault ([1969]1987a) a afirmação de que não existem enunciados absolutamente neutros nem livres. Por outro lado, esta relação entre enunciados – que caracteriza o próprio princípio dialógico de Bakhtin – pode ser aproximada à noção de campo associativo em Foucault. Em ambos, trata-se de noções que definem o enunciado a partir de um domínio de coexistência, ou seja, não existe enunciado livre, mas sempre um enunciado relacionando-se com outros. Essa noção permite entender o enunciado como algo relativamente estável e, simultaneamente, exige que ele seja percebido como um acontecimento, compreensão que também está presente em Bakhtin ([1952-1953] 1997, p. 348): O enunciado nunca é simples reflexo ou expressão de algo que lhe preexistisse, fora dele, dado e pronto. O enunciado sempre cria algo que, antes dele, nunca existira, algo novo e irreproduzível, algo que está sempre relacionado com um valor (a verdade, o bem, a beleza, etc.). Entretanto, qualquer coisa criada se cria sempre a partir de uma coisa que é dada (a língua, o fenômeno observado na realidade, o sentimento vivido, o próprio sujeito falante, o que é já concluído em sua visão de mundo, etc.). O dado se transfigura no criado.

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Composta das mesmas palavras, carregada exatamente do mesmo sentido, mantida em sua identidade sintática e semântica, uma frase não constitui o mesmo enunciado se for articulada por alguém durante uma conversa, ou impressa em um romance; se foi escrita um dia, há séculos, e se reaparece agora em uma formulação oral. As coordenadas e o status material do enunciado fazem parte de seus caracteres intrínsecos.

Observe-se que a reflexão acerca dessa característica do enunciado – estabelecer-se sempre a partir de outros, na sua relação com outros enunciados, e ser sempre outro – cria um encontro, um eco entre os dois autores no mínimo interessante, já que o dizer de ambos consubstancia na prática a tese que estão defendendo. No entanto, apesar da possível aproximação que pode ser estabelecida entre ambos, não podemos esquecer que enquanto para Bakhtin o enunciado é uma realização individual – estabelecida, porém, sempre a partir de sua alteridade (do enunciado e do indivíduo) –, para Foucault, o enunciado denuncia sempre uma função-sujeito, uma posição que pode vir a ser ocupada por indivíduos diferentes. Trata-se, evidentemente, de concepções distintas de sujeito e de sua relação com a linguagem. Para ambos, contudo, o enunciado possui uma materialidade que não se reduz a uma forma gramatical ou lógica, tampouco é definida pela localização espaço-temporal. Antes, essa materialidade assinala a necessidade de o enunciado acontecer em um campo de estabilização. Para Foucault ([1969]1978, p. 119), a materialidade do enunciado, enquanto uma de suas condições de existência, é da ordem da instituição a qual define um campo de utilização que funciona como “regulador” da constância ou do desdobramento dos enunciados: Os esquemas de utilização, as regras de emprego, as constelações em que podem desempenhar um papel, suas virtualidades estratégicas, constituem para os enunciados um campo de estabilização que permite, apesar de todas as diferenças de enunciação, repeti-los em sua identidade; mas esse mesmo campo pode, também, sob as identidades semânticas, gramaticais ou formais, as mais manifestas, definir um limiar a partir do qual não há mais equivalência, sendo preciso reconhecer o aparecimento de um novo enunciado. Mas é possível, sem dúvida, ir mais longe: podemos considerar que existe apenas um único e mesmo enunciado onde as palavras, a sintaxe, a própria língua, não são idênticas (Grifo do autor).

Em outras palavras, a particularidade que permite a sua regularidade ou a sua modificação obedece a condições e possibilidades de utilização, chamadas

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É importante destacar, nessa afirmação, que o fato de o enunciado supor outros, apoiar-se em outros, não significa que mantenha com eles uma relação de pura reprodução. Tem-se, antes, uma (re)atualização, como também observa Foucault ([1969]1987, p. 113-114):





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de campo de utilização do enunciado: um conjunto de condições enunciativas que possibilitam a própria emergência do enunciado. São essas condições ou possibilidades de utilização que melhor distinguem o enunciado de uma noção estritamente lingüística, como a de frase ou de oração. É preciso, contudo, também acrescentar que esses esquemas de utilização, esse campo de estabilização sustentam-se (ou constituem-se) a partir de um já dito – o repetível de uma situação – que, por sua vez, constrói a possibilidade do diferente e cria outras possibilidades de significação. Essas noções nos permitem voltar a Bakhtin (1988), para quem todo dizer instaura um passado discursivo ao mesmo tempo em que formula do presente o seu futuro, a sua resposta antecipada. É, portanto, o deslocamento entre domínios diversos que cria o “novo”, o diferente. Ora, são preocupações semelhantes que vemos se desenhar nas formulações de Pêcheux ([1983]1997), exatamente em um momento em que o autor propunha uma revisão no seu próprio pensamento: [...] todo enunciado é intrinsecamente suscetível de tornar-se outro, diferente de si mesmo, se deslocar discursivamente de seu sentido para derivar para um outro (a não ser que a proibição da interpretação própria ao logicamente estável se exerça sobre ele explicitamente). Todo enunciado, toda seqüência de enunciados é, pois, lingüisticamente descritível como uma série (léxico-sintaticamente determinada) de pontos de deriva possíveis, oferecendo lugar à interpretação (PÊCHEUX, 1997, p. 53).

Esse é um momento em que a temática da heterogeneidade começa a ingressar no interior da AD, assinalada nessa citação, acredito, pela referência aos pontos de deriva que “abrem” a possibilidade para se pensar o equívoco, as diferenças, as contradições. Isto significa, inclusive, romper com a idéia de sentido primeiro e sentidos derivados, já que o discurso passa a ser pensado como efeito de sentido. E aqui recorro a Possenti (1993, p. 202) que assim precisa o sentido da palavra efeito: “o que se produz, na ordem da significação, pelo fato de ter acontecido um determinado enunciado em determinadas condições de enunciação”. No geral, podemos dizer que, para Bakthin, a noção de enunciado parece se justificar pela preocupação em descrever os gêneros do discurso – aliás, em alguns momentos, essas duas noções se confundem. O próprio Bakhtin (1997, p. 282) esclarece a importância do estudo que desenvolve: Uma concepção clara da natureza do enunciado em geral e dos vários tipos de enunciados em particular (primários e secundários), ou seja, dos diversos gêneros do discurso, é indispensável para qualquer estudo, seja qual for a sua orientação específica. Ignorar a natureza do enunciado e as particularidades de gênero que assinalam a variedade do discurso em qualquer área de estudo lingüístico leva ao formalismo e à abstração, desvirtua a historicidade do estudo, enfraquece o vínculo existente entre a língua e a vida.

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Descrever enunciados, descrever a função enunciativa de que são portadores, analisar as condições nas quais se exerce essa função, percorrer os diferentes domínios que ela pressupõe e a maneira pela qual se articulam, é tentar revelar o que se poderá individualizar como formação discursiva, ou ainda a mesma coisa, porém na direção inversa: a formação discursiva é o sistema enunciativo geral ao qual obedece um grupo de performances verbais - sistema que não o rege sozinho, já que ele obedece, ainda, e segundo suas outras dimensões, aos sistemas lógico, lingüístico, psicológico.

Conforme assinalamos anteriormente, em Foucault ([1969]1987), o sujeito é concebido como posição ou função que será exercida por indivíduos diferentes. Ocorre que esse exercício também passa a ser regulado por essa lei que determina a função enunciativa. Ou seja, tem-se no fundamental uma funçãosujeito exercida/assumida em/a partir de uma FD, enquanto limite para o próprio exercício. Evidentemente, neste conceito assim formulado, torna-se difícil pensar a diversidade dos acontecimentos discursivos. Aliás, esta é uma noção que, no desenvolvimento da própria AD, tem sido alvo de revisões. O próprio Pêcheux ([1983]1997, p. 56) faz uma autocrítica ao admitir que, no limite, o uso da noção de formação discursiva, advinda das formulações foucaultianas, poderia desembocar “em um apagamento do acontecimento, através de sua absorção em uma sobre-interpretação antecipadora”. Não haveria o novo, o acontecimento, mas apenas o dado, a repetição. Em todo o livro, Pêcheux (1997) empreende uma reflexão cujo objetivo central aponta para

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Verifiquemos que toda a questão da relação entre sujeito, linguagem e realidade é aqui assinalada como decorrente da compreensão da natureza do enunciado. Note-se que é no enunciado – e não na frase ou na oração – que se dá o contato entre linguagem e realidade; é o enunciado que emerge de um locutor em função de um ouvinte/destinatário e de uma conseqüente atitude responsiva (compreensão). Além disso, o reconhecimento da natureza sóciohistórica do enunciado restitui, na comunicação verbal e na própria vida, o papel do outro: é impossível conceber o sujeito sem levar em conta as relações que o ligam ao outro. Ao mesmo tempo, permite formular a própria relação entre enunciados, ou seja, o enunciado é inseparável dos elos que o ligam a enunciados anteriores e posteriores. Assim como o outro é constitutivo do ser, o discurso do outro e o discurso-outro são igualmente constitutivos de qualquer enunciado. Trata-se, como afirma Authier-Revuz (1982), de um duplo dialogismo, ou antes, de uma dupla orientação, interdependente: uma relacionada com os sujeitos do discurso e outra com o próprio discurso. Já para Foucault, toda discussão sobre o enunciado, suas modalidades específicas, sua regularidade acaba servindo a um outro propósito: circunscrever a noção de formação discursiva (FD). Senão vejamos o que diz o autor ([1969]1987, p. 134):





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a reformulação da noção de discurso. O discurso como estrutura e como acontecimento passa a ser reconhecido não apenas como o efeito de filiações sócio-históricas identificadoras, mas como trabalho que provoca uma agitação, um deslocamento nestes espaços estabilizados, nestas redes de memória. Ou seja, há, implicitamente, o reconhecimento do trabalho do sujeito no acontecimento, revelado através dos deslocamentos, conscientes ou não, que ele provoca nas redes de memória. Possenti (1993, p. 19) afirma que o conceito de FD “[...] que regula a referência à interpelação-assujeitamento do sujeito [...] tende a apagar, na análise, exatamente a diferença, pela própria noção de classe de equivalência”. Ainda segundo Possenti (1996, p. 39), a temática da heterogeneidade, que começou a ser desenvolvida no interior da própria AD, passou a corroer “as certezas sobre o sujeito assujeitado”, ao contemplar a dispersão e a descontinuidade nos/dos discursos. Disso, entretanto, não decorre que se tenha voltado a conceber o sujeito como o ser autônomo, independente, uno e transparente, que tanto tempo a lingüística acalentou. A própria noção de sujeito em Foucault tem permitido outras leituras em que a idéia de regularidade e unidade tem convivido com a noção de dispersão e diversidade. Neste sentido, entende-se que, apesar de sujeito e linguagem se constituírem no interior de uma formação discursiva – que também passa a ser concebida sob o signo da dispersão e da contradição –, eles não mantêm com essa formação uma relação de pura reprodução ou determinação. As transformações que se realizam no interior das formações são decorrentes do trabalho de sujeitos que, no exercício de suas funções, não são meros reprodutores de um discurso já dado. Parece que a concepção de FD quando remete apenas para um campo de regularidades pode encontrar uma correspondência possível em uma outra noção que parece ser mais precisa e menos polêmica: a de interdiscurso, enquanto memória discursiva, “redes de memória” que dão “lugar a filiações identificadoras” (Pêcheux, [1983]1997. p. 54) que, ainda assim, não podem nem devem ser consideradas como repetição. Antes, isso nos diz, como afirma Pêcheux (1977, p. 34), da necessidade universal de ‘um mundo semanticamente normal’ ou normatizado. Neste sentido, as instituições assumem um papel relevante, dado que funcionam exatamente para garantir essa aparência – continuamos não admitindo a idéia de pura identificação – de um mundo estabilizado, homogêneo. A noção de interdiscurso, portanto, traz para o campo da análise o discurso-outro, o discurso de outrem – “como lei do espaço social e da memória histórica, logo como o próprio princípio do real sócio-histórico” (PÊCHEUX, 1997, p. 55) – que evidentemente não é homogêneo, pois também sofre a influência do encontro com outros discursos e outros sujeitos. O reconhecimento desse discurso-outro – que aponta para as diferenças, para as contradições e/ou os equívocos nas/das práticas discursivas – passou a

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O objeto da lingüística (o próprio da língua) aparece assim atravessado por uma divisão discursiva entre dois espaços: o da manipulação de significações estabilizadas, normatizadas por uma higiene pedagógica do pensamento, e o de transformações do sentido, escapando a qualquer norma estabelecida a priori, de um trabalho do sentido sobre o sentido, tomados no relançar indefinido das interpretações.

Atente-se para o fato de que, com essa colocação, Pêcheux repõe em discussão uma das questões mais polêmicas no interior da Lingüística: a significação (o trabalho do sentido sobre o sentido e o trabalho dos sujeitos intérpretes). Esta preocupação, tão presente nos estudos lingüísticos atuais, também já era evidente nos escritos de Bakhtin, do final dos anos vinte do século XX. Segundo Bakhtin ([1929]1986, p. 132): [...] não tem sentido dizer que a significação pertence a uma palavra enquanto tal. Na verdade, a significação pertence a uma palavra enquanto traço de união entre os interlocutores, isto é, ela só se realiza no processo de compreensão ativa e responsiva. A significação não está na palavra nem na alma do falante, assim como também não está na alma do interlocutor. Ela é o efeito da interação do locutor e do receptor produzido através do material de um determinado complexo sonoro (grifo do autor).

Desse modo, a significação, como efeito da relação entre interlocutores, possui uma estabilidade e uma identidade que são igualmente provisórias. Estas são questões também presentes em Pêcheux (1997), quando ele discute a noção de discurso como estrutura e como acontecimento, conforme mencionamos anteriormente. Acreditamos que considerar a significação como o efeito da interação entre interlocutores significa postular que o analista deverá trabalhar no entremeio, buscando explicar o processo, o funcionamento do discurso como prática, como atividade interlocutiva que se realiza numa instância concreta de enunciação. Na perspectiva de responder à análise dessas significações estabilizadas, ao lado do conceito de interdiscurso, também o conceito de imagem, tal qual desenvolvido em Pêcheux (1993)1, possibilita compreender de forma mais clara a relação entre os sujeitos. Esse conceito demonstra que as antecipações, formuladas pelos sujeitos, assumem, nos processos discursivos, um papel 1

Conforme Pêcheux (1993, p. 82), nos processos discursivos, funciona “uma série de formações imaginárias que designam o lugar que A e B se atribuem cada um a si e ao outro, a imagem que eles se fazem do seu próprio lugar e do lugar do outro”.

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exigir mais da pesquisa lingüística que confessa a necessidade de outros procedimentos de análise. Em relação a essa questão, Pêcheux (1997, p. 51) assim se posiciona:





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relevante. Ora, em outras palavras, trata-se de considerar a alteridade entre sujeitos a que se refere Bakhtin. Embora as formulações de Bakhtin e Pêcheux mais uma vez se distingam pela concepção de sujeito que sustentam, imaginamos poder dizer que, para ambos, o jogo de imagens entre os interlocutores deverá ser concebido como mais um dos elementos essenciais das condições de produção do enunciado. Concordamos com Possenti (1993, p. 31) quando afirma que “invocar condições de emprego de enunciados como necessárias para sua interpretação não está no exterior da lingüística”. Parece ser isto também que, desde o final da década de 20, postulava Bakhtin ([1929]1986, p. 113) – em um trecho aqui já citado – quando se referia à “situação social mais imediata” e ao “meio social mais amplo” como algo que determina a estrutura do enunciado a partir de seu próprio interior. Ainda contemplando a perspectiva em que Pêcheux (1997) circunscreve o objeto da lingüística, veremos que o trabalho do sentido sobre o sentido, necessariamente, leva-nos a sempre duvidar do sentido a priori, quer seja lingüisticamente dado ou socialmente estabelecido. Portanto, o funcionamento discursivo, compreendido enquanto “modos de dizer”, está longe de representar a homogeneidade que às vezes se atribui ao sujeito e/ou à linguagem. Trata-se de um outro domínio, o do discurso, o da diversidade e “[...] o mundo do heterogêneo seria bem simples se pudéssemos completamente desintricar e colocar cada enunciado em seu exato lugar.” (FRANÇOIS, 1996, p. 43). Com certeza, não é isso o que ocorre, esse lugar exato ou próprio é igualmente provisório. E essa instabilidade nos amedronta. No interior da AD, a temática que aponta para a análise da diversidade, da dispersão e das descontinuidades enunciativas assume um deslocamento significativo com o conceito de “heterogeneidade”, desenvolvido por AuthierRevuz (1982). E aí sim, vale ressaltar: é com base nos trabalhos de Bakhtin – principalmente ao lançar mão de noções como dialogismo, plurilingüismo e pluriacentuação – e de Lacan, que Authier-Revuz (1982, 1990, 1994) desenvolve os conceitos de heterogeneidade mostrada e heterogeneidade constitutiva, os quais pretendem dar conta da diversidade da linguagem e do sujeito. Para Authier-Revuz (1990, p. 25), a heterogeneidade representada ou mostrada inscreve “o outro na seqüência do discurso”. A autora passa a estudar essa forma de heterogeneidade, dando especial atenção às formas de citação do discurso alheio (discurso direto, indireto e indireto livre), ao uso de aspas, às formas de comentário do discurso do outro, enfim, às formas de ajustamento do próprio discurso e do discurso do outro no um. Todas essas manifestações – que explicitamente alteram a unidade do discurso – revelam uma relação conflituosa entre o sujeito e a linguagem, com nuanças as mais diversas. As pesquisas de Authier-Revuz (1982, 1990, 1991, 1994) aprofundam, do ponto de vista da análise da materialidade lingüística, a análise que Bakthin

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corresponde a uma forma de negociação – forçada – do sujeito falante com esta heterogeneidade constitutiva – inelutável mas que é para ele necessário esquecer, desconhecer; e a forma ‘normal’ dessa negociação alia-se ao mecanismo da denegação.

Assim, ora o sujeito se revela incompleto (“eu não sei”, “não encontro a palavra adequada”), ora se lamenta da incompletude da linguagem (“não existe uma palavra adequada”). Já a noção de heterogeneidade constitutiva do sujeito e da linguagem é desenvolvida por Authier-Revuz (1990) a partir da noção de dialogismo em Bakthin – em que o discurso é compreendido como produto de outros discursos – e da abordagem do sujeito e da sua relação com a linguagem proposta por Lacan. Nessa perspectiva, todo enunciado se inscreve sobre (é atravessado por) outros enunciados; sob todo dizer outras vozes ecoam; o outro constitui o discurso, integra-o: trata-se de “um outro que não é o ‘duplo’ de um face a face, nem mesmo o ‘diferente’, mas um outro que atravessa constitutivamente o um” (AUTHIER-REVUZ, 1982, p. 121). Ou seja, trata-se de um outro necessário, até mesmo, ou principalmente, para que o discurso-um faça sentido. E lembramos que fazer sentido já supõe um outro a quem se deseja significar, um outro de quem se espera uma compreensão, uma atitude responsiva, como nos lembra Bakhtin. É, então, possível pensar com e contra os outros: qualquer das duas perspectivas exige o (re)conhecimento do um e do outro. Em outras palavras: se me fosse permitido dar um bom conselho (de graça) – a análise desse dizer enviesado já daria uma boa análise –, diria que o diálogo da AD com Bakhtin necessariamente precisa respeitar o lugar de um e de outro, para, então, puder pensar com e contra um e outro. Por fim diria que pensar com não significa ser igual a, assim como pensar contra não significa ser absolutamente diferente de.

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estabeleceu – priorizando a obra de Dostoievsk, em vários dos seus escritos – sobre as formas de apropriado do discurso do outro e do discurso-outro. É uma demonstração de que é possível pensar com os mestres e, seguindo seus ensinamentos ao pé da letra, ser diferente. Para observar mais de perto essa diferença, observemos rapidamente o que diz a autora sobre as noções que desenvolve, a partir dos ensinamentos de Bakhtin e Lacan. Conforme Authier-Revuz (1982), a heterogeneidade mostrada corresponde a uma forma de negociação com a heterogeneidade constitutiva, entretanto, aquela não pode ser considerada como espelho desta, no discurso, tampouco são independentes. Nas palavras da autora (1982, p. 143), a heterogeneidade mostrada





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REFERÊNCIAS













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O SUJEITO SUBMETIDO À LINGUAGEM (The Subject Submitted to the Language) ABSTRACT In this ar ticle, following as a matter the question of subjectivity, we will present an exposition about Ferdinand de Saussure´s theoretical postulations, as well as what we consider to be important considerations from contemporary authors. Such postulations permitted that other disciplines, especially the “French” Discourse Analysis (DA), as well as the Lacanian Psychoanalysis, could work with the matter of subjectivity from a formal point-of-view, avoiding, at the same time, a logical-positivist paradigm. In order to achieve this objective, the focus of attention will be the reflection about the status of language and of the subject, starting from the contributions of the Linguistics. Keywords Keywords: language; subject; Discourse Analysis; Lacanian Psychoanalysis, Linguistics. RESUMO Neste artigo, seguindo como rastro a questão da subjetividade, apresentaremos uma exposição sobre as postulações teóricas de Ferdinand de Saussure, bem como impor tantes considerações de autores mais contemporâneos. Tais postulações permitiram que outras disciplinas, especialmente a Análise do Discurso de “linha” francesa (AD) e a Psicanálise lacaniana, trabalhassem a questão da subjetividade de um ponto-de-vista rigoroso, mas sem ceder a um paradigma lógico-positivista. Para isso, o foco de atenção será a reflexão sobre o estatuto da língua e do sujeito, a partir das contribuições da Lingüística. Palavras-chave Palavras-chave: língua; sujeito; Análise do Discurso; Psicanálise Lacaniana, Lingüística.

“Há sempre algo de ausente que me atormenta.” Camille Claudel

A questão da subjetividade pode ser considerada o calcanhar de Aquiles nos estudos sobre a linguagem. Aquiles era filho da ninfa do mar Tétis e do mortal Peleu, o que o tornava também mortal. Sua mãe, para conseguir a invulnerabilidade de seu filho, mergulhou-o no rio Estige, no Hades (reino dos mortos), enquanto o segurava pelos calcanhares. Somente seus calcanhares, então, não foram banhados, não se converteram em imortais, tornando-se seu único ponto fraco. Todavia, paradoxalmente, os calcanhares foram um ponto de apoio para que sua mãe o segurasse durante o mergulho, impedindo sua morte naquele momento. Calcanhar necessário, poderíamos dizer... Talvez seja assim o sujeito nas Ciências da Linguagem: ponto fraco e *

FFCLRP-USP. Universidade de Ribeirão Preto.

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Leda Ver diani Tf ouni* erdiani Tfouni* Alessandr er nandes Car r eir a** Alessandraa FFer









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ponto de apoio. Apresentaremos aqui uma breve exposição comentada sobre as postulações teóricas de Ferdinand de Saussure (1915) a respeito da língua, as quais operaram uma denegação do sujeito nos estudos sobre a linguagem. Entretanto, como a denegação sempre implica o retorno do que foi negado, verificamos o retorno insistente da subjetividade nesses estudos. Esse resto que retorna tem sido o foco de atenção de disciplinas tais como a Análise do Discurso de “linha” francesa (AD), em diálogo com a Psicanálise lacaniana. Podemos dizer, então, que a Lingüística saussuriana inaugura um outro campo de investigação sobre o sujeito; afinal, denegar é também afirmar no plano da enunciação.

I. UMA QUESTÃO DE PARADIGMA O sujeito tem sido definido de diversas maneiras ao longo da história das Ciências Humanas, sendo estas definições determinadas pelas posições, no interior do discurso, a partir das quais se fala dele. Ao pretendermos falar do sujeito a partir de considerações que se fundamentam em colocações da Lingüística, é importante comentar, ainda que brevemente, a respeito da noção de sujeito vigente na época do surgimento desta ciência. No que tange a esta questão, Gadet e Pêcheux (1981) comentam que a passagem de uma forma-sujeito feudal para a forma-sujeito capitalista comporta o início do apagamento da diferença entre os sujeitos. A dominação social, no modo de produção feudal, apoiava-se justamente na estratificação de castas sociais, ou seja, na diferença. Prevalecia nas sociedades uma variedade de dialetos que compunham um mosaico impossível de ser juntado de maneira homogênea em uma língua única. Mas havia uma língua oficial valorizada, da qual apenas a nobreza se apropriava, criando uma barreira lingüística que separava a massa, impossibilitada de se comunicar segundo a visão dominante, daqueles capazes de compreender a retórica da religião e do poder da época. Disto tudo resultava que o corpo lingüístico durante o feudalismo era tão intocável quanto o corpo do rei (GADET e PÊCHEUX, op. cit.). Com o advento do capitalismo, a política burguesa transforma esta ordem através de uma interpenetração crescente das classes dominantes e dominadas, enxergando estas últimas como consumidores em potencial. Assim, a ordem é igualar, para melhor dominar. Esta transformação pode ser percebida pelos esforços crescentes na época no sentido de estabelecer os estados e as línguas nacionais através da alfabetização, isto é, pela promoção da aprendizagem e utilização legal destas línguas (GADET e PÊCHEUX, id.). Durante a colonização, isto pode ser percebido na imposição da língua do colonizador aos colonizados, havendo cartilhas elaboradas para ensiná-la, que visavam combater as línguas locais, o que se dava, sobretudo, através da catequização. As diferenças explícitas

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entre as castas no feudalismo (que falavam dialetos diversos) foram, então, absorvidas pela revolução burguesa através de uma universalização que fez o “cidadão” emergir com direitos e deveres iguais perante a lei (tal qual proclamado pela “Revolução Francesa”) e falante da mesma língua que seus conterrâneos. Auroux (1992) aponta a constituição das línguas nacionais e a tentativa de domá-las através da gramatização (criação da gramática e dos dicionários) como uma verdadeira revolução tecnológica que permitiu ao Ocidente exercer a sua dominação no planeta, uma vez que possibilitou o nascimento das ciências da linguagem e da escrita científica rigorosa. Isso também é apontado por Gadet & Pêcheux (1981), os quais afirmam que esta unificação forçada das diversas línguas locais em línguas nacionais criou um espaço político que permitiu o nascimento da Lingüística: ciência da língua e das línguas, da divisão sob a unidade. A nosso ver, é isto o que interessa à leitura estruturalista da língüística: uma língua una, passível de ser sistematizada; a língua ideal produzida pelo capitalismo. Constatamos, então, o que é apontado de maneira fascinante por estes autores: que a Lingüística, como qualquer ciência, é perpassada pela ideologia desde a sua fundação, ideologia esta que comporta uma noção de sujeito jurídico universal e de uma língua neutra e objetiva. Segundo Haroche (1992), o surgimento do “sujeito jurídico” está enraizado em uma passagem do discurso religioso para o discurso jurídico que fez com que o sujeito, a princípio etimologicamente definido como “submetido à autoridade soberana” (século XII), passasse a ser considerado como “pessoa que é motivo de algo” (século XVI). Trata-se, portanto, de um processo de individualização e responsabilização do sujeito por seus atos, o que a autora explora pela via da gramática, sobretudo abordando a noção de determinação do sujeito e o combate a toda e qualquer ruptura na linearidade do discurso (ambigüidades, incisas e elipses), ruptura esta muitas vezes considerada como um problema de gramática. Esta passagem, do discurso religioso para o discurso jurídico, encontra seus precedentes no século X, quando intensas modificações econômicas enfraqueceram o poder da Igreja, pois este era suportado por uma economia rural de subsistência na qual não havia a idéia de lucro, idéia essa que, a partir de então, tornava-se central na nova economia de caráter urbano e artesanal (HAROCHE, op. cit.). O advento desta estrutura econômica reorganizou as relações sociais, uma vez que não mais se tratava apenas de vassalos submetidos a senhores, mas também de artesãos e mercadores que buscavam, tal como a elite, o lucro. Disto resultou uma reivindicação desta nova classe trabalhadora por liberdade e igualdade de direitos, instaurando um avanço e uma fundamentação do aparelho jurídico que moldou o “sujeito-de-direito”: um sujeito responsável por suas ações, com direitos e deveres (HAROCHE, id.). Assim, de um sujeito submetido à lei divina, desembocamos em um sujeito submetido à lei dos homens, o que apenas muda a forma de sujeição ou a formasujeito. Porém, é interessante observar que o sujeito-de-direito, ao contrário do





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sujeito religioso vigiado por um deus onipresente, se representa como autônomo e responsável por seus atos. Haroche (id.) nos mostra que o fato de o sujeito assumir esta forma jurídica trouxe outras conseqüências para a Igreja, além do enfraquecimento de seu poder. Dentre estas, podemos destacar a crise da “Dupla Verdade”, que foi provocada pela contradição instalada na passagem do século XV para o XVI entre a fé e a razão, ou entre a até então suposta origem divina do saber e da verdade, e a origem humana dos mesmos, fundada no exercício da razão. No discurso religioso que vigorava soberano na Idade Média, esta contradição não constituía as relações entre sujeito e saber, uma vez que o primeiro estava subordinado completamente ao texto sagrado e aos dogmas da religião. Mas, no discurso jurídico, o sujeito é representado e se representa como autônomo, capaz de pensar por si e, logo, de contestar os dogmas. Diante disto, os textos sagrados até então lidos e interpretados de maneira homogênea, calcada no dogma, passam a ser interpretados de maneira diversa, o que instala uma polêmica, a respeito de qual seria seu verdadeiro significado, sua leitura oficial. Surge a necessidade de direcionar a leitura e, para isso, valorizase cada vez mais o texto bem escrito, sem ambigüidades. Cabe ao autor tal tarefa, ou seja, proporcionar ao leitor um texto claro e sem falhas, nem equívocos. Se o equívoco se instala para o leitor, portanto, a culpa é do sujeito-autor, de sua falta de técnica pessoal que não lhe permite controlar a linguagem. Trata-se, então, de uma concepção de sujeito responsável tanto por seus êxitos quanto por suas falhas e de uma concepção de linguagem neutra, um instrumento bastante perfeito que só precisa ser bem utilizado por este sujeito. Vale ressaltar que essas duas concepções irão influenciar os estudos sobre o sujeito e a linguagem até os dias atuais. Quanto a isto, Haroche (1988) comenta que o declínio da noção religiosa de sujeito, típica da Idade Média, desembocou na emergência de disciplinas que se propõem a estudar o próprio sujeito como um objeto da ciência, uma vez que ele passou a ser vislumbrado como um sujeito jurídico universal, passível de sistematização. Mas, por outro lado, uma vez responsabilizado por seu dizer e por seus atos, este sujeito também se tornou origem soberana e enigmática do que diz e do que faz; logo, ele seria impossível de ser apreendido sistematicamente. Com isso, pode-se constatar que, no século XIX, a subjetividade passou a ser: (...) considerada como inefável, em particular, no campo da Psicologia: o sujeito somente seria objeto de um saber na condição de que esta inefabilidade irredutível não seja [sic!], entretanto, levada em conta ou, pelo menos, problematizada como tal. Só o comportamento observável, em decorrência de sua visibilidade, pode pretender ser o objeto de um saber. O sujeito em sua opacidade torna-se, então, o

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Diante desta “tirania da transparência”, expressão cunhada por Courtine & Haroche (1988), Haroche (id.) afirma que restaram à Psicologia, projeto de ciência da conduta humana, dois caminhos possíveis: ou considerar a subjetividade como objeto de estudo, tomando-a como mensurável ao ser submetida a regras lógico-matemáticas, ou evacuar a questão da subjetividade (opaca, individualidade extrema) através do privilégio da observação do comportamento comum a todos os sujeitos (transparente). Em ambos os casos, porém, constatamos uma noção de sujeito livre como pano de fundo, pois a questão de o quê é um sujeito e como ele se constitui não é discutida, mas antes são considerados os efeitos da existência de um sujeito (comportamentos, percepções, personalidade; enfim, fenômenos) pressuposto como origem da significação. Percebemos, então, o efeito da noção capitalista de sujeito tanto no estudo da língua quanto no estudo do próprio sujeito. Consideramos que os estudos perpassados pela ideologia capitalista têm em comum a importância que dão aos dados unos, mensuráveis, sistematizáveis, o que se alicerça na (de)negação de tudo o que é heterogêneo, clivado. O sujeito capitalista pode ser equiparado, então, com o sujeito generalizável da ciência. Já a língua é considerada, nessa perspectiva, um instrumento neutro que comunica objetivamente o que esta ciência descobre a respeito do real. Por outro lado, há uma reflexão sobre o sujeito fundamentada em disciplinas que tomam a subjetividade de um ponto-de-vista diferente desse a que a Psicologia e a Lingüística têm-se filiado. A AD e a Psicanálise lacaniana permitem um resgate rigoroso do sujeito no discurso científico a partir da linguagem, sem, contudo, reduzi-los a objetos mensuráveis. A seguir, explicitaremos melhor isso mostrando que foi, por incrível que possa parecer, tomando a língua como sistema uno que Saussure abriu esse novo espaço de reflexão sobre o sujeito.

II. A EXCLUSÃO DO SUJEITO NA FUNDAÇÃO DA LINGÜÍSTICA De forma geral, podemos dizer que, tradicionalmente, a subjetividade tem sido considerada tanto como o que é circunstancial ou acidental, quanto como o que provém de uma motivação, intenção ou características pessoais (DE LEMOS, 1990). Esta visão de subjetividade engloba uma noção idealista de sujeito, na

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sujeito de um saber impossível, até mesmo de uma ignorância necessária. E essa mesma opacidade garante ao sujeito um espaço de liberdade: o caráter indizível e inefável de subjetividade ‘protege’, efetivamente, o sujeito de uma verdadeira injunção política e jurídica na transparência do ‘dizer tudo’ (HAROCHE, op. cit., p. 62).





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qual a linguagem serve apenas para expressar a subjetividade, esta última antecedendo lógica e ontologicamente a tudo (id., ibid.). Portanto, o sujeito tem sido considerado, via de regra, como aquele que porta o livre-arbítrio e que, soberano, utiliza a linguagem para se expressar. Trata-se do que ficou conhecido como “sujeito cartesiano”: pensante, unidade e origem da significação; sendo que noções extremamente abstratas como “pensamento” e “idéia” permeiam a sua definição. Segundo Lacan (1964), o sujeito cartesiano “(...) consiste em tomar esse eu do cogito (...) pela presença, no interior do homem, do famoso homenzinho que o governa, que é quem dirige o carro, o ponto dito, hoje em dia, de síntese” (p. 135). A pressuposição da existência deste “homenzinho” está presente de maneira clara na corrente racionalista do pensamento que predominou no século XVII, a qual considerava a linguagem como algo que deve ser regido por regras lógicas e racionais (língua ideal, sem equívocos) que lhe permitissem ser uma pura e fiel representação do pensamento (ORLANDI, 1986), ideal compartilhado pelos que lutam ainda hoje por uma língua neutra e universal (GADET e PÊCHEUX, 1981), que igualaria todos os homens1. No início do século XX, procurando escapar deste “subjetivismo abstrato” no estudo da linguagem – para utilizar a expressão de Mikhail Bakhtin (1981) – e, assim, garantir a cientificidade de sua nova ciência, Ferdinand de Saussure adotou uma abordagem sincrônica e excluiu do campo de estudo da Lingüística as questões relativas ao sujeito2 (PÊCHEUX, 1969; GADET, 1990, DE LEMOS, id.). Considerando que a linguagem é a língua mais a fala, a Lingüística consolidouse deixando de lado a variabilidade da fala (atribuída ao indivíduo falante) e focalizando-se na sistematicidade da língua, no repetível. Assim, para Saussure (1915), enquanto um conjunto de hábitos lingüísticos que permitem a uma pessoa compreender o outro e fazer-se compreender por ele, a língua é uma instituição semiológica social, é a parte social da linguagem, externa ao indivíduo e que não pode ser criada, nem modificada, por ele. Já a fala é um acessório, um resíduo que não deve ser considerado pela análise lingüística porque brota no indivíduo. Sendo os indivíduos diferentes entre si, a fala é considerada pura diversidade, impassível de sistematização e generalização, estando, por isso, fora da sistematicidade da língua, que a Lingüística elege como objeto de estudo, e fora da ciência. Desta forma, na Lingüística, sendo a origem da fala e controlando-a, o sujeito tem o estatuto de indivíduo soberano, de algo que é in(di)visível. 1

Gadet & Pêcheux (op. cit.) citam o esperanto como exemplo de busca deste ideal. Estou referindo-me aqui ao que ficou conhecido como o “Saussure diurno”, ou seja, aquele que se dedicou a este estudo sistemático da língua, estudo este que deu origem ao “Curso de Lingüística Geral”. Um “Saussure noturno”, menos conhecido, entretanto, não permaneceu insensível ao sujeito ao se deparar com os anagramas (ORLANDI, 1986, GADET, op. cit., HENRY, 1993). 2

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A “subjetividade” de que tratamos aqui é a capacidade do locutor para se propor como “sujeito”. Define-se (...) como a unidade psíquica que transcende a totalidade das experiências vividas que reúne, e que assegura a permanência da consciência. (...) É “ego” que diz ego. Encontramos aí o fundamento da “subjetividade” que se determina pelo status lingüístico da “pessoa” (BENVENISTE, 1958, p. 286, grifo nosso).

Esse sujeito da enunciação, que se diz em um tempo e lugar, apenas aponta para o indivíduo falante, que permanece inacessível enquanto tal, figurando como um enigma intocado. Veremos a seguir como este enigma permitirá o próprio resgate da subjetividade, pela AD e pela Psicanálise lacaniana, a partir de um outro ponto-de-vista. Tomar a língua como objeto fez perceber que ela tem uma ordem própria que é irredutível à ordem dos pensamentos e das coisas (DE LEMOS, 1990), ou seja, possibilitou perceber que a língua é um conjunto de sistemas que autoriza combinações e substituições (PÊCHEUX, 1969). Isso permitiu deixar de considerá-la apenas como algo que tem por função a expressão do pensamento, para tomá-la como passível de ser descrita objetivamente. Uma importante contribuição da Lingüística neste âmbito diz respeito à natureza do signo lingüístico. Segundo Saussure, o signo lingüístico tem a propriedade de unir um conceito, não uma coisa, a uma imagem acústica, o que o caracteriza como uma entidade psíquica de duas faces. O conceito é também chamado de “significado”, enquanto que a imagem acústica – ou a impressão psíquica do som – recebe o nome de “significante”. Para ele, ainda, há uma relação entre estes dois componentes do signo, sendo estes indissociáveis, inexistentes de forma isolada como as duas faces de uma folha de papel. Saussure também salienta que o signo é totalmente arbitrário, ou seja, não existe um laço natural entre o significante e o significado, mas sim uma convenção ou um hábito coletivo que o estabelece. Desta forma, a língua é considerada um artifício, é convencional, e não uma nomenclatura para o mundo, por ele motivada

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Apesar de seu esforço, a concepção saussuriana acaba por também abordar a língua de maneira idealista, pois a toma como uma unidade, uma forma invariante que não seria passível de acidentes diversos (MILNER, 1987). Porém, reconhecer que há algo que escapa a esta idealização, quer dizer, a fala, já marca uma diferença entre a Lingüística e as correntes racionalistas. Há um sujeito, a Lingüística o aponta, mas o concebe enquanto indivíduo soberano e inacessível em sua diversidade. Dentro disto, vale lembrar que um dos primeiros lingüistas, inclusive um dos mais citados, a fazer referência à subjetividade na linguagem, Émile Benveniste, a abordou apenas a partir da enunciação:





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(GADET, 1990). Assim, dentro da clássica distinção entre o convencionalismo e o naturalismo, Saussure filia-se ao primeiro (GADET, op. cit.).





Se com relação à idéia que representa, o significante aparece como escolhido livremente, em compensação, com relação à comunidade Lingüística que o emprega, não é livre: é imposto. (...) Um indivíduo não somente seria incapaz, se quisesse, de modificar em qualquer ponto a escolha feita, como também a própria massa não pode exercer sua soberania sobre uma única palavra: está atada à língua tal qual é (SAUSSURE, 1915, p. 85, grifo nosso).

Podemos perceber claramente que, embora o signo seja arbitrário, a língua, enquanto código, é imutável, ou seja, nós não podemos inventar palavras novas a cada momento, pois devemos utilizar as palavras disponíveis no léxico para haver comunicação com nossos interlocutores. Por outro lado, por paradoxal que possa parecer, na concepção saussuriana, a língua, apesar de intangível, é também alterável através da repetição dos elementos que a compõem (SAUSSURE, op. cit.). Desta repetição resulta um deslocamento da relação entre o significado e o significante que só pode ocorrer devido à arbitrariedade do signo (id., ibid.) já comentada: apesar de haver convenções que os ligam, estruturalmente um mesmo significante pode remeter a mais de um significado (como ocorre nas homonímias fônicas) ou um mesmo significado por ser representado por mais de um significante (no caso das sinonímias). Dor (1989), interpretando Saussure a partir de Lacan, afirma que é um “corte” que delimita a relação entre um significado e um significante, os quais, se isolados, são apenas duas “massas amorfas”. Este “corte” depende do contexto, entendendo contexto como a cadeia ou seqüência discursiva. Dor (op. cit.) ilustra esta questão do “corte” através dos enunciados “Eu a prendo” e “Eu aprendo”, que são homonímias fônicas, mas não sinonímias. Esta questão da delimitação na perspectiva lacaniana remete ao importante conceito de valor do signo estabelecido por Saussure: o signo adquire seu valor na relação com outros elementos da cadeia falada, ou seja, devido a um caráter linear do significante que, por ser de natureza auditiva, desenvolve-se ao longo do tempo. Assim, os elementos da língua têm uma relação solidária entre si, uma relação de interdependência, em que o valor de uma palavra depende da significação que lhe conferem a relação com todas as outras palavras do código e com todos os elementos da frase (RIFFLET-LEMAIRE, 1970). É importante salientar aqui que, pela teoria saussuriana do valor, não há nenhuma positividade na língua, apenas diferenças: (...) tout le système d’une langue s’organize en identités et en différences. Ce n’est pas par sa substance, mais en tant que non-b ou non-c qu’une unité a prend sa valeur. C’est là une conséquence de l’arbitraire radical: puisque le système ne

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Desta forma, a língua tem uma ordem interna de funcionamento que determina o valor dos signos (GADET e PÊCHEUX, 1981), independente do sujeito falante e do contexto situacional. É uma ordem que se impõe à revelia de qualquer controle externo: é o “real da língua” (MILNER, 1987). Esta questão do valor do signo lingüístico enquanto pura diferença é fundamental para a reflexão que propomos aqui, pois aponta para a inevitabilidade do deslizamento de sentido em todo e qualquer discurso, noção imprescindível à Psicanálise lacaniana e à AD. Porém, na opinião de Gadet e Pêcheux (op. cit.), tal questão tem sido esquecida ou negligenciada pela maior parte dos lingüistas, os quais têm salientado acima de tudo o conceito de arbitrariedade do signo. Trata-se, ousamos dizer, de um recuo diante da emergência deste “real da língua” e da preferência apaziguadora pelo estudo do imaginário que enlaça o significante ao significado, ou, como nos dizem Gadet e Pêcheux (id.), de um ceder da Língüística diante de seu próprio objeto (“o real da língua”), a qual se abandona às realidades psicossociológicas dos atos de fala. Prosseguindo a discussão, cabe aqui introduzir, em relação ao duplo estabelecimento do valor do signo (em relação ao código e à frase), considerações sobre os dois eixos da linguagem estabelecidos por Roman Jakobson (1995). Por ser a língua uma estrutura comum a todos os falantes, todo ato de comunicação implica a seleção de elementos disponíveis no léxico, ou seja, em uma operação vertical que se dá no que Jakobson (op. cit.) chamou de “eixo paradigmático” da linguagem, o eixo da língua4, no qual os termos estão em uma relação de similaridade por ausência. Este eixo remete à produção da metáfora, figura de linguagem marcada pela substituição de um significante por outro, mas ainda ligado ao significado a que o primeiro encontrava-se atrelado. Como exemplo, temos a substituição de “infância” (ausente) por “aurora”, mas 3

“(...) todo sistema de uma língua se organiza em identidades e em diferenças. Não é devido a sua substância, mas sim por ser não-b ou não-c que uma unidade a adquire seu valor. Esta é uma conseqüência do arbitrário radical: uma vez que o sistema somente é representado em relação a si mesmo, “na língua somente existem diferenças” (p. 166). Mas Saussure acrescentará imediatamente: “Há apenas diferenças sem termos positivos”, o que significa que não existe um primitivo na diferença. Todo termo é um lugar complexo de diferenças (...)” (GADET, id., p. 62, tradução nossa). 4 Por exemplo, no enunciado “Eu vi um menino correndo”, temos a seleção do pronome “eu” (e não tu, ele, nós, etc.), seguido pela seleção do verbo “ver” (e não olhar, espiar, etc.) que, por sua vez, é seguido pela seleção do artigo “um” (e não uns, uma(s), o(s), a(s)) e assim por diante.

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joue que par rapport à lui-même, “dans la langue il n’y a que des différences” (p. 166). Mais Saussure ajouetera aussitôt: “Il n’y a que des différences sans termes positifs”, ce qui signifie qu’il n’y a pas de primitif dans la différence. Tout terme est un lieu complexe de différences (...).3 (GADET, 1990, p. 62).





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mantendo o significado de “infância” (presente na ausência), ou seja, remetendo ao período inicial de nossas vidas. Jakobson (id.) também coloca que o ato de comunicação engloba uma operação horizontal que se dá no “eixo sintagmático” da linguagem, que é a cadeia sintática propriamente dita, o eixo da fala, no qual se dá a combinação dos elementos selecionados5, em uma relação de contigüidade, em presença. É interessante perceber que, embora não se possam criar palavras novas todo o tempo, a combinação de unidades lingüísticas comporta uma escala de liberdade ascendente, isto é, há maior liberdade (nunca total) na combinação de palavras do que na sua criação (combinação de fonemas). A produção da metonímia, figura de linguagem construída a partir de uma transferência de denominação de um termo para outro, e possível graças a certas condições de ligação em cadeia entre eles (parte pelo todo, conteúdo pelo continente, etc.), localiza-se neste eixo. O uso de “menor” para referir a crianças e adolescentes de rua, por exemplo, é uma metonímia, pois toma a faixa etária (parte) para designá-los como um todo. É possível relacionar os dois eixos da linguagem com a noção de valor do signo ao considerarmos a questão da significação. Segundo Gadet (1990), é o valor que o signo adquire pela diferença em relação aos outros signos que torna possível a significação, isto é, o enlace entre significante e significado. A diferença é a responsável pela unidade, pelo fato de um signo ser delimitado enquanto tal. Por outro lado, embora a significação dependa do valor que o signo adquire em uma cadeia de signos, pode-se dizer também que o valor é um elemento da significação e que ela o determina, pois o valor é uma potencialidade da língua, e a significação uma realização da fala, que põe essa potencialidade em ação (GADET, id.). Língua e fala remetem, respectivamente, ao eixo paradigmático e ao sintagmático na concepção de Jakobson (id.). Podemos, então, aproximar a noção saussuriana de valor do signo por diferença à contraposição entre os signos selecionados e os não selecionados (eixo paradigmático). Mas, os signos selecionados são combinados em uma seqüência falada (eixo sintagmático), ao longo do tempo, o que intervém secundariamente sobre o valor dos signos já constituído preliminarmente pela seleção, havendo uma espécie de retorno. Jakobson considera o funcionamento da linguagem nestes dois eixos apenas em dois casos específicos: a afasia, na qual há um comprometimento do funcionamento da linguagem em um destes eixos, e a linguagem poética, que ganha seu tom a partir das metáforas e metonímias. Apesar disso, tal como apontado por Lacan (1972-1973), podemos aproveitar suas colocações para o estudo da linguagem como um todo e para a abordagem da subjetividade. 5

Considerando os enunciados “Eu vi.”, “Eu vi um menino.” e “Eu vi um menino correndo.” percebemos como a colocação de novos signos ressignifica os anteriores, o que exemplifica esta relação de dependência semântica entre os elementos da cadeia sintática.

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Após estas considerações sobre a ordem da língua, é importante salientar que, apesar de sua valiosa contribuição, pode-se dizer que a Lingüística deixou um resto ao denegar, no ato de sua fundação, o sujeito (PÊCHEUX, 1969). Para remeter novamente a Bakhtin (1981), podemos dizer que a Lingüística, tentando escapar do “subjetivismo abstrato”, foi vítima de um “objetivismo idealista”. Isso significa que, procurando evitar a subjetividade, vista como caos, como ameaça para o rigor científico, a Lingüística acabou por optar pelo ideal da pesquisa objetiva, que se propõe, através de um rígido controle de variáveis, a obter resultados e conclusões fidedignos, generalizáveis e reproduzíveis. Segundo Milner (1995), a Lingüística deseja ser uma ciência e, por isso, é afetada por hesitações e equívocos que marcam a questão da ciência como um todo, sendo que as suas idas e vindas ao longo do tempo mostram isso. Este autor comenta ainda que a Lingüística encaixa-se no rol das Ciências Humanas e que, durante algum tempo, pensou-se que ela teria inaugurado um novo tipo de racionalidade, uma forma específica de ciência que diferiria das ciências naturais. Todavia, hoje em dia, ainda segundo Milner (op. cit.), é difícil acreditar que as Ciências Humanas possam ter uma epistemologia própria, o que impõe uma escolha fundamental: ou a Lingüística é humana, ou é uma ciência nos moldes das ciências naturais. Acrescenta, ainda, que o objeto das chamadas Ciências Humanas não é literalizável porque ele é humano, social ou histórico, ou seja, é imaginário. Percebemos que existe na história da Lingüística uma perseguição de um ideal que, por definição, é impossível de ser plenamente atingido no estudo da língua: a total objetividade, que lhe conferiria o estatuto de ciência. Como exemplo desta cientificidade, temos os trabalhos do lingüista americano Noam Chomsky que, filiado às correntes racionalistas, elaborou uma escrita formal rigorosa partindo da teoria matemática dos sistemas (ORLANDI, 1986). Segundo Milner (1995), Chomsky busca articular a Lingüística à ciência positivista, afirmando que: There is no reason to abandon the general approach of natural sciences when we turn to the study of human beings and society. Any serious approach to such topics will attempt (...) to adopt “the Galilean style6 (CHOMSKY, 1980, p. 219; apud MILNER, op. cit., p. 12).

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“Não há nenhuma razão para abandonar o método de alcance geral das ciências naturais quando abordamos o estudo dos seres humanos e da sociedade. Todo tratamento sério destas questões tenderá (...) a adotar este “estilo galileano”.” (CHOMSKY, 1980, p. 219; apud MILNER, op. cit., p. 12, trad. nossa).

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III. A LIBERAÇÃO DE UM ENIGMA





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Assim, a teoria chomskyana funda-se na noção de completude, consistência e não contradição da língua, especificamente da sintaxe (GADET, 1978). Porém, como tudo que é denegado retorna insistentemente e se impõe como enigma para outro campo, a fala insiste em trazer elementos que não cabem nas categorizações lingüísticas, embora façam parte – indiscutivelmente – da língua (DE LEMOS, 1990)7. Quanto a isso, Gadet e Pêcheux (1981) nos dizem que há uma espécie de subversão social ou “dispersão anagramática” quando a “massa toma a palavra”, uma inovação neológica e uma transcategorização sintática que induzem na língua uma gigantesca agitação, a qual é comparável àquela realizada pelos poetas, embora em menor dimensão. Essas “novidades” surgidas na própria língua impelem à pesquisa de alguns lingüistas e também os confrontam com um sujeito que não se cala e, por isso, atrapalha. Em relação a estes elementos que escapam à categorização lingüística, Gadet (1978) comenta sobre fatos lingüísticos que resistem à descrição sintática, os quais podem ser visíveis ou não para a sintaxe, caracterizando-a como afetada por uma “dupla falha”. Coloca que os visíveis para a sintaxe correspondem aos fatos descritos nos trabalhos de Jean-Claude e Judith Milner, ou seja, fatos que, depois de uma análise sintática, não podem ser tratados a não ser através do recurso a conceitos abstratos, como o de sujeito da enunciação, especialmente aos indícios lingüísticos que apontam para tomadas de posição do locutor em relação ao que está sendo dito: (...) ces formes auraient pour particularité d’obliger à poser le locuteur ou le récepteur comme des sujets de désir, repérables en quelques points précis; donc à tenir compte de quelque chose dans la langue qu’ils désignent comme la place de l’inconsciente8 (GADET, op. Cit.., p. 512, grifo nosso).

Os fatos não visíveis para a sintaxe, comenta Gadet (id.), são aqueles estudados por Pêcheux, Foucault e Henry, os quais partem de uma concepção das relações entre língua, discurso e história e de uma análise epistemológica da Lingüística. Tal concepção permite definir os efeitos discursivos como ligados à inscrição do sujeito em um processo histórico. Desta forma, para Gadet (id.), a “dupla falha”, que afeta a análise e descrição sintática, que afeta a Lingüística, remete ao inconsciente, por um lado, e à história, por outro. Inconsciente e história são, portanto, integrantes de um 7

“Ele está de laranja nesta história”, que significa que alguém (ele) foi envolvido ou se envolveu ingenuamente em uma situação, é um enunciado bastante utilizado atualmente e que mostra isso. 8 “(...) estas formas teriam por particularidade a colocação obrigatória do locutor ou do receptor como sujeitos do desejo, reparáveis em quaisquer pontos precisos; portanto tendo a ver com qualquer coisa na língua que eles designam como o lugar do inconsciente” (GADET, op. cit., p. 512, trad. nossa, grifo nosso).

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“Entre o amor da língua materna e o desejo da língua ideal, a lingüística científica revela “estranhos parentescos com aquilo que ela procura excluir”.” (GADET & PÊCHEUX, id., p. 46, trad. nossa).

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real que não pode ser ignorado quando tratamos da língua porque colocam em jogo contradições. A maior dificuldade tem sido saber, entretanto, se é possível tratar destas duas falhas ao mesmo tempo, ou se apenas podemos abordá-las separadamente como se tem feito até o momento na maior parte dos trabalhos dedicados a este tema. Para nós, essa “dupla falha” remete à questão da subjetividade, pois o inconsciente e a história constituem o sujeito. Gadet (id.), por fim, salienta que esta “dupla falha” só pode ser apreendida no interior da sintaxe, pois se inscreve nela, quer seja de maneira visível ou invisível. Em um outro trabalho (GADET, 1980), ela nos mostra que as regras da sintaxe comportam tanto um movimento de contenção quanto um movimento de liberdade, um jogo que permite subverter a língua e fazer emergir uma “novidade” (metáforas, trocadilhos, lapsos, neologismos, etc.) em seu próprio interior. Gadet e Pêcheux (id.) também comentam a respeito do dilema da Lingüística diante da emergência do real não-sistematizável: “Entre l’amour de la langue maternelle et le désir de la langue idéale, la linguistique scientifique révèle d’étranges parentés avec ce qu’elle vit d’exclure”.”9 (p. 46). Estes autores consideram que uma língua idealizada, como a que a Lingüística, no ato de sua fundação, propõe-se a estudar, seria uma “língua mãe” de todos, universal, e que igualaria todos em sua estrutura objetiva e neutra, o que – como vimos afirmando – é um ideal impossível e sua abordagem está fundada na exclusão do sujeito. Contudo, a Lingüística, perseguindo a língua ideal ou língua mãe, deparase fascinada com “línguas maternas” extremamente particulares, não generalizáveis. Estas “línguas maternas” remetem a funcionamentos bastante peculiares da “língua ideal” nos sujeitos. A Lingüística não consegue se esquivar deste encontro porque a única maneira de estudar a estrutura da língua, que é seu objeto, é através de seu funcionamento, no qual ela se manifesta, mas que é também o que ela exclui. Além disso, por repetição, estes funcionamentos tão peculiares causam modificações na própria estrutura da língua, tornando-se, eles próprios, objetos de estudo dos lingüistas. Então, por gerar enigmas que impelem à pesquisa, podemos dizer que o que dá vida à Lingüística é, justamente, o que ela exclui: o sujeito com sua “língua materna”, que Lacan (1972-1973) chama de “alíngua”. Outro desprendimento interessante deste comentário soa paradoxal: a Lingüística tem um objeto ideal, sendo o ideal sempre inatingível, pois atingi-lo implica descaracterizá-lo enquanto tal. A Lingüística repousa, assim, no estudo de um objeto impossível e, por incrível que pareça, o descreve a partir de suas





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regularidades! É por a língua ser este objeto ao mesmo tempo inefável e passível de descrição (mas nunca de total objetivação), que ela é considerada por Milner (1987) como o único real existente. Milner (1977, apud GADET e PÊCHEUX, id.) também considera que a Lingüística, ao contrário da Psicologia, efetua uma evacuação da semântica com a pretensão de se livrar do sistema de representações que acompanha as estruturas. Perseguindo uma “limpeza” que separe o imaginário (representações) do simbólico (estrutura vazia), ela se constitui como ciência da língua em seu estatuto simbólico. Neste sentido, Henry (1993) comenta sobre um empreendimento da Lingüística de resistência ao psicologismo, termo que designa a imaginarização que, na maior parte das vezes, acompanha as abordagens do sujeito, e que consiste, essencialmente, em considerá-lo como origem e controlador da significação. Esse autor considera que a Lingüística, em certa medida, foi bem sucedida neste empreendimento, pois Saussure parece ter tido a sorte de atingir uma “fatia do real” através de sua descrição da língua como sistema, o que é inédito dentro das Ciências Humanas, apesar de tão perseguido. Em virtude da exclusão do que lhe dá vida, ou seja, do sujeito e do sentido, há mais uma implicação da Lingüística que merece ser comentada. Podemos dizer que a dicotomia língua/fala lançada por Saussure – além de trazer uma conseqüente exclusão da fala na análise Lingüística – autorizou, na história da ciência mais recente, a consideração do “(...) sujeito falante como (...) unidade ativa de intenções (...) tudo se passa como se a Lingüística científica (tendo por objeto a língua) liberasse um resíduo, que é o conceito filosófico de sujeito livre (...).” (PÊCHEUX, id., p. 71, grifo nosso). Assim, podemos dizer que a estruturação da Lingüística como ciência de certa forma autorizou a inclusão do sujeito psicológico nos estudos na área da linguagem, pois somente a pressuposição deste sujeito, “homenzinho” cartesiano, explicaria o caos que é a língua em funcionamento. Isso fez com que alguns lingüistas (por exemplo, Benveniste, 1958), passassem a se interessar pelos atos de fala (enunciação) e, conseqüentemente, pelo sujeito falante. Todavia, o que predominou foram estudos que desembocaram no “subjetivismo idealista” por considerarem o sujeito como a origem da significação10. Como nos diz Henry (op. cit.), devido à impossibilidade de isolar totalmente o sujeito e a produção do sentido da língua, há um clamor no próprio objeto da Lingüística pelo “psicologismo”. Por causa disto, também em outros ramos da Ciências Humanas, sobretudo na Psicologia, vemos o forte impacto deste resto, que reforçou a crença na existência de uma subjetividade abstrata e soberana, 10

Destaca-se, aqui, a “teoria da enunciação” dentro da lingüística, que considera o sujeito como aquele que se apropria das formas da linguagem para deixar sua marca pessoal (Orlandi, 1986).

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Saussure montre que l’homme n’est pas maître de sa langue. (...) en étudiant la langue comme un objet abstrait, un système dont les ressorts sont extérieurs à la fois à l’individu et à la réalité physique, la théorie saussurienne a produit un effet de déconstruction du sujet psychologique libre et conscient qui régnait dans la réflexion de la philosophie et des sciences humaines naissantes, à la fin du XIXe siècle12 (GADET, op. cit., p. 07, grifos nossos).

Esta colocação nos faz perceber que, curiosamente, a Lingüística, ao excluir o sujeito, também nos fornece um suporte teórico que permite tomá-lo a partir de uma nova perspectiva: o sujeito como controlador do sentido dá lugar a um sujeito que, ao valer-se dos signos, encontra-se em uma posição de submetimento à linguagem (DE LEMOS, 1990). Atualmente, podendo contar com as contribuições de Saussure, dentre outros, nós não devemos permanecer passivos diante da constatação de uma espécie de falha da restauração imaginária do domínio e da soberania do sujeito (HENRY, 1993). Assim, no campo das Ciências da Linguagem, podemos encontrar um outro caminho que vem sendo percorrido e que aponta para um resgate do sujeito sem, no entanto, tomá-lo como a origem da significação, produtor soberano do sentido, usuário deliberado da linguagem. Este caminho tem-se baseado na constatação de que a ordem do sentido não abarca uma construção teórica fácil porque, para isso, seria necessário que se admitisse a existência de uma metalinguagem (HENRY, op. cit.). Tem-se, ao contrário, partido da tese de que não há metalinguagem (ARRIVÉ, 1994; PÊCHEUX, 1990; LACAN, 1972-1973), ou seja, de que não existe um sistema universal para descrição do sentido. Sendo impossível sair da linguagem para falar sobre qualquer coisa, até mesmo sobre a língua, considera-se que o sujeito e o sentido não podem ser descritos objetivamente, já que estão submetidos ao 11

Temos como exemplo a “análise de conteúdo”, que, tão utilizada atualmente, procura “descobrir significados ocultos” nos enunciados via decifração, o que se dá pela criação de categorias em que os enunciados são enquadrados. Assim, os enunciados servem, nesta concepção, como expressão da subjetividade que lhe é anterior e mensurável pela análise. 12 “Saussure mostra que o homem não é mestre de sua língua (...) estudando a língua como um objeto abstrato, um sistema cujas competências são exteriores tanto ao indivíduo quanto à realidade física, a teoria saussuriana produziu um efeito de desconstrução do sujeito psicológico livre e consciente que reinava na reflexão da filosofia e das ciências humanas nascidas no final do século dezenove” (GADET, op. cit., p. 07, trad. nossa, grifos nossos).

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produtora deliberada do sentido e que seria um objeto de estudo por si só, passível de mensuração.11 Por outro lado, também é preciso levar em conta que:





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encadeamento de significantes da língua e, inclusive, emergem deste encadeamento, constituindo-se simultaneamente (ORLANDI, 1993). Dentro desta perspectiva, ao fundar a AD, Michel Pêcheux (op. cit.) propõe uma nova possibilidade de abordagem do sujeito à luz das descobertas da Lingüística, as quais permitem perceber que o sujeito não pode ser tomado a partir de uma perspectiva idealizada porque ele não tem poder de decisão sobre a significação. É na evolução da língua ao longo do tempo, já apontada por Saussure, que Pêcheux entrevê uma forma de criatividade não-subjetiva no próprio interior da língua, ou seja, uma criatividade que independe da vontade ou da razão de um sujeito, mas que é inerente à estrutura da língua e que permite a própria emergência do sujeito. Também perseguindo este resgate do sujeito à luz dos conceitos da Lingüística, Jacques Lacan nos mostra que Freud, contemporâneo de Saussure, concentrou-se no sujeito, mas não deixou de perceber o seu submetimento à linguagem. Faltava-lhe, contudo, o conhecimento das leis que regem a linguagem, das sistematicidades fonológicas, morfológicas e sintáticas que são as condições materiais sobre as quais se desenvolvem os processos discursivos (Orlandi, 1990) e que só começaram a ser estabelecidas mais precisamente a partir de Saussure. Retornando a Freud à luz da Lingüística, Lacan também trabalhou com este sujeito que emerge da/na linguagem. Enquanto, por volta da década de 60, Michel Pêcheux procura voltar a sua atenção para o sujeito e para a produção do sentido nos estudos sobre a linguagem articulando língua e ideologia, Jacques Lacan já o fazia desde cerca de duas décadas antes na Psicanálise, via articulação da língua com o inconsciente. Porém, mesmo perseguindo objetivos aparentemente diferentes, estes dois autores, aproximam-se por um pressuposto poderoso: o submetimento do sujeito à linguagem. Além disso, eles têm em comum o fato de abordarem as falhas que interferem no discurso e que são apontadas por Gadet (1978), embora cada um aborde uma destas falhas de maneira bastante isolada: Lacan volta-se para o inconsciente e Pêcheux para a história. Estamos, então, diante, de dois autores fundamentais para uma pesquisa não positivista e rigorosa sobre a subjetividade, ambos remetendo à Lingüística que, por esclarecer sobre a língua (sem sujeito, a-histórica), ajuda-nos a abordar a fala (há um sujeito do inconsciente, inscrito na história). É justamente nesta abertura que podemos abordar o discurso como acontecimento, como um trabalho que o acontecimento discursivo realiza sobre a língua e vice-versa (GALLO, 1994), que podemos encontrar o sujeito ou, como nos diz Lacan (1972-1973), podemos constatar que o sujeito emerge entre os significantes.

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A MET AENUNCIAÇÃO: UM PR OCESSO PPARAFRÁSICO ARAFRÁSICO METAENUNCIAÇÃO: PROCESSO EM ANÚNCIOS PPARAIB ARAIB ANOS DOS SÉCUL OS XIX E XX ARAIBANOS SÉCULOS (T he Metaen uncia tion: a par asal pr ocess (The Metaenuncia unciation: paraa phr phrasal process in PPar ar aiban ad araiban advv er tisings of the nineteenth and twentieth centuries) ABSTRACT This works aims at analyzing the language metaenunciation in paraphrasing enunciations of advertisements published in Paraiban newspapers of the nineteenth and twentieth centuries. The theoretical suppor t is based on Bakhtin’s postulates mainly on Dialogism, and the studies about the metaenunciation by Authier-Révuz (1982), as well as, there will be used postulates concerning the paraphrasing process according to Fuch’s view (1994). Keywords: Metaenunciation; Heterogeneity; Paraphrase. RESUMO Este trabalho objetiva analisar a metaenunciação da linguagem em enunciados parafrásicos de anúncios publicados em jornais paraibanos dos séculos XIX e XX. O aporte teórico ancora-se nos postulados de Bakthin, principalmente no dialogismo, e nos estudos sobre metaenunciação de Authier-Révuz (1982), assim como também utilizaremos postulados relativos ao processo da paráfrase na visão de Fuchs (1994). Palavras-chave: Metaenunciação, Heterogeneidade, Paráfrase.

Antes de discutir dialogismo, metaenunciação e paráfrase faz-se necessário definir e caracterizar o enunciado. Concebido por Bakhtin (2003, p.282) como unidade da troca verbal, o enunciado é uma ação que está relacionada a um produto da interação de dois indivíduos socialmente organizados. E mesmo que não haja um interlocutor real, na interação verbal, este pode ser substituído pelo representante médio do grupo social ao qual pertence o locutor. O enunciado caracteriza-se por permeiar toda e qualquer concepção de interação e possui duas particularidades: primeiro, a alternância dos sujeitos falantes, que transforma alguns enunciados em uma massa compacta rigorosamente circunscrita em relação aos outros enunciados aos quais ele está ligado; segundo, o acabamento do enunciado, que delimita aquilo que o locutor disse em um momento dado e em condições precisas. Depreendemos dessas particularidades, a ocorrência de um acabamento específico, o qual é determinado conforme a possibilidade de condicionar uma atitude responsiva ativa diante do enunciado aos interlocutores. Esta posição é muito importante ao caracterizar a noção de acabamento, porque associa a especificidade do oral à dimensão da interlocução. * UFPB.

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Ana Cristina de S. Aldrigue* Maria das Dor es OO.. de Alb uquer que* Dores Albuquer uquerque*





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Definido e caracterizado o enunciado, objeto de nossa análise nos anúncios publicitários, discutiremos o processo da metaenunciação da linguagem, buscando ressaltar duas diferentes formas de concepções do princípio dialógico bakthiniano que interessam a Authier-Révuz (1982, p.140): a do diálogo entre interlocutores e a do diálogo entre discursos, os quais ela menciona como interação e discursividade.

1. DO DIALOGISMO A METAENUNCIAÇÃO O dialogismo reconhecido como interação verbal entre interlocutores não só diz respeito ao diálogo face a face, a forma composicional dos enunciados reconhecidos pela lingüística da comunicação, mas é um princípio constituinte do sujeito e da linguagem. Por esta concepção, o discurso não pode ser individual, pois em cada palavra se intercalam duas vozes: a do eu e a do outro. Neste ponto, é necessário reconhecer o princípio da intersubjetividade como fundador da linguagem. Este princípio, segundo Authier-Révuz (1990b, p.27), problematiza o estatuto do sujeito do discurso reconhecido nas teorias de intenção ou orientação de um discurso a um objeto. Como pode ser demonstrado: “Eu me dou forma verbal a partir do ponto de vista do outro, e em definitivo, a partir do ponto de vista da comunidade a que pertenço (...) As palavras são sempre e inevitavelmente as palavras dos outros” (BAKHTIN, 1993, p.88). A segunda concepção de dialogismo, pela qual Authier-Révuz se espelha, é a do diálogo entre discursos. Segundo Bakhtin (op.cit., p.88), a construção do discurso está implicada pelo atravessamento de uma variedade de discursos, as palavras sendo já “habitadas” por outras ressonâncias. Nenhuma palavra é neutra, mas inevitavelmente carregada, ocupada, atravessada pela alteridade. Entre o discurso e o objeto, entre ele e o falante interpõe-se um meio difícil de ser penetrado, discursos alheios sobre o mesmo objeto, sobre o mesmo tema. Por esta concepção, qualquer discurso se orienta para o já-dito, para o conhecido, para a opinião pública. Ancorado por esses princípios, o outro é uma condição constitutiva do discurso de um sujeito falante (AUTHIER-REVUZ, 2004, p. 22). Mas como se poderá entender a conotação autonímica – campo do marcado e do explícito; aparente simplicidade de seu recorte linear do “um” e do “outro”. Nesta, as formas marcadas da “conotação autonímica”: forma mais complexa da heterogeneidade mostrada; o locutor faz uso, inscritos no fio do discurso, de palavras e, ao mesmo tempo, ele as mostra. Para demonstrar o uso da palavra e a sua amostragem, conforme o pensamento acima, destacamos o anúncio seguinte:

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Dele, destacamos os seguintes enunciados: EO – “...resolveu baixar o preço das bolaxas;” P1 – “sendo bolaxinhas de araruta”; P2 – “ditas de leite.”

Observando os dois enunciados que se retomam, o EO – “resolveu baixar o preço das bolaxas” e as paráfrases – “sendo bolaxinhas de araruta” e “ ditas de leite”, percebemos que as formas: sendo, o sufixo –inha e ditas, se reconstituem a partir do lugar estabelecido pelo histórico social, o de que a venda se realiza pelo evento demarcado pelo contexto comercial em decorrência da interação entre o enunciador e o comércio. Segundo Authier-Revuz (2004), os termos: autonímia e conotação autonímica pertencem à configuração teórica de Rey-Debove (1978), no campo da semiótica. A partir desses dois termos, a autora definiu, mais tarde, o objeto de seu estudo e privilegiou: a modalização autonímica. As formas marcadas da conotação autonímica, citadas por Authier-Revuz são: aspas (de diferenciação, de condescendência, de proteção, de questionamento ofensivo e de ênfase); itálico; entonação; fórmulas de comentário (glosa, retoque, ajustamento). Se voltarmos ao exemplo exposto anteriormente, veremos que o termo sendo pode suscitar uma negociação para o entendimento entre os interlocutores proporcionado pela lei do mercado. Este processo mostra o quando e o como, ou seja, o histórico-social vivido pelos interlocutores é quem vende; o processo social pelo qual quem tem o melhor e o mais barato. Nos estudos sobre modalização, Authier-Révuz demonstra que a construção do sentido de certas expressões lingüísticas se faz dependendo da posição do enunciador em relação ao mundo. Em relação à metaenunciação, Authier-Révuz (1995-1998) a considera como um discurso sobre a linguagem e sobre um outro dizer. A metaenunciação

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A Padaria á Vapor esta na | ponta... || Resolveu baixar o preço | das bolaxas para 6$000aar- | roba, e maças doces, sendo | bolaxinhas de Araruta, di- | tas de leite, e os afamados | Biscoutinhos para 9000 rs. | a arroba, tragão dinheiro. || Parahyba, 26 de Setembro | de 1892. || Foncêca Irmão e C.ª





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é auto-representação do dizer, e envolve a questão do sujeito e de sua relação com a linguagem. Para ela, a metaenunciação demanda diferentes níveis de reflexão dos sujeitos sobre a linguagem, o que envolve a língua e sua exterioridade. Ela está relacionada à tomada de um discurso, enunciado ou enunciação já construído, em especial, o discurso que pode ser constituído por uma memória cultural e histórica, no caso das paráfrases. No universo das paráfrases o processo lingüístico é colocado no campo da metalinguagem, especificamente, de âmbito metaenunciativo. Isto porque o uso do termo “meta” está imbricado na capacidade da linguagem de interpretar a si mesma, de saber sobre a e da linguagem, sendo capaz de reconstituir o que foi dito ou pensado. Para a autora, a reflexividade da linguagem é constituída pela configuração ou o desdobramento da modalidade autonímica. Esta reflexividade é representada como um modo de dizer complexo, desdobrado, em que a enunciação de um elemento X qualquer de uma cadeia associada a uma auto-representação da mesma realiza-se como retorno. Parece-nos perceptível que a questão de retomar viabiliza um modo de dizer, reconstruído por um dos termos da cadeia do enunciado e este termo, retomado, se torna um ícone de representação para que a linguagem seja reflexiva por natureza. Authier-Révuz (1998, p.184) propõe uma abordagem dos fatos metaenunciativos que consiste em: (1) partir sistematicamente das formas da língua – e não das categorias comunicacionais – ou seja, as ocorrências dos trabalhos sobre o metadiscurso; (2) explicitar os exteriores mobilizados nessa zona fronteiriça da lingüística que intervém na descrição. Nestes se inscrevem os pontos de incompletude, de falta – sem desembocar no horizonte “do objeto enunciativo global” onde se poderia registrar, interdisciplinarmente, o todo da enunciação. Para justificar a sua posição, ela dá atenção, além dos nomes de outros lingüistas, aos estudos de C. Fuchs sobre paráfrase e ambigüidade. O foco do trabalho de Authier-Révuz (1998 – 2004) está no fato de que os trabalhos sobre enunciação se justificam pelo objetivo de representar o que se considera irrepresentável, de modo que a sua proposta demonstra a irrepetibilidade do enunciado de acordo com as condições de produção. O seu trabalho sobre paráfrase respalda-se em Fuchs, ao registrar possibilidades de manifestações direcionadas por fatores não-lingüísticos, constituídos por relações bio-sociais.

2. O UNIVERSO DAS PARÁFRASES: CONCEITOS E FUNÇÕES Segundo Fuchs (1982), a paráfrase se manifesta não apenas pela estrutura lingüística, ela pressupõe também a situação em que os participantes se envolvem: o locutor com sua intenção e o alocutário com sua recepção e interpretação. Ela (1994, p.131) demonstra que os sujeitos se apóiam no parentesco semântico

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Conseqüentemente, a paráfrase não poderá, de modo algum, ser encerrada quer no sistema da língua (as relações de paráfrases não constituem uma propriedade intrínseca dos pares de seqüências, inscrita de modo estável na

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entre enunciados, para estabelecer uma relação de paráfrase, a partir de construção dinâmica e modulada. Para a autora tratar os enunciados aparentados como paráfrases é efetuar um julgamento de identificação fora de uma atividade discursiva em situação: a paráfrase não é, como tal, uma propriedade de formulações lingüísticas, mas o resultado de uma estratégia cognitiva da linguagem dos sujeitos (FUCHS, 1994, p.131). Entendemos que para trabalhar a proposta acima, Fuchs (1994, p.132) se afastou da concepção de paráfrase tida como um processo estático e expõe uma concepção dinâmica e aberta da significação. Dá um tom às paráfrases como partilhando um ar de família, quer dizer como sendo religadas pelas relações semânticas locais, de tipo associativo, construídas pelo jogo de interpretação. Essa noção de ar de família foi retomada por Fuchs (1994) de Wittgenstein, que a aborda em seu célebre exemplo dos jogos, ao trata da interação dos marcadores ou operadores. Ela vê o parentesco semântico suscetível de fundar uma relação de paráfrases parecida com a situação descrita por Wittgenstein. Os parentescos, denominados de similitudes, podem ser mais ou menos locais e são construídos ao final das interpretações dos enunciados. Nesses casos, Funchs (op. cit. 135) lembra que a significação global de um enunciado é o resultado da interação de marcadores que o compõem; esses marcadores correspondem a operadores diferentes, a partir dos quais, por encaminhamentos diferentes, podem ser construídos certos valores: “falar de parentesco, é estar em medida de considerar que os valores assim construídos em co-texto se identificam, se sobrepõem”. Por este princípio, a autora nos mostra que: é ao fim da interpretação que um certo parentesco pode ser estabelecido, por outro lado as diferenças de construção de valores resultantes não são sem importância, mas essenciais do ponto de vista do modo de construção de valores instaurados pela língua. Podemos confirmar que o estabelecimento das paráfrases se realiza pelo diálogo entre os sujeitos, isto é, os sujeitos são imprescindíveis. Elas não se reduzem ao que, costumeiramente, se entende por circunlóquios no âmbito puramente lingüístico. Três possibilidades se esboçam: a) relação entre uma identidade de conteúdo, a despeito de alterações de forma, o que corresponde à noção espontânea de paráfrase; b) relação de conteúdo que oscila desde o “deslizamento” eventual da reprodução até a deformação semântica, que implica dizer coisa totalmente diversa; c) relação de conflito entre os sujeitos, que podem ter opiniões diversas, um acolhendo, outro rejeitando determinada paráfrase.





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língua, tornando o objeto homogeneamente consensual entre os sujeitos), quer na variabilidade infinita dos fatos de discurso e das determinações extralingüísticas (cada um cabe sua interpretação e suas relações de paráfrase): a paráfrase é um fenômeno linguajeiro (quer dizer, uma atividade de linguagem empreendida pelos sujeitos nas situações de discurso dadas) que não é senão parcialmente lingüístico (isto é, apoiando-se nas relações complexas da língua, que contribuem para um julgamento de paráfrase, sem, todavia, determiná-lo de modo absoluto)1 (FUNCHS, 1982, p. 145). Fuchs (1985) demonstra as características das paráfrases de acordo com uma série de oposições: consciência lingüística dos interlocutores – produzir e identificar frases como tendo o “mesmo sentido” e, também, como produto das construções teóricas dos lingüistas; atividade lingüística dos sujeitos – trabalho de interpretação e reformulação, e, também, como objeto lingüístico resultante da atividade lingüística dos sujeitos; relação entre um enunciado, ou texto-fonte, e suas reformulações numa situação dada, e, também, uma relação entre os enunciados virtualmente equivalente na língua. Conforme as oposições apresentadas, podemos perceber a existência de várias direções para determinar ou identificar os enunciados parafrásicos. Quando trata da sinonímia, Fuchs (1994, p.131) demonstra que a autorização do núcleo semântico comum está na estabilidade do referente; no entanto, essa identidade referencial é uma condição necessária, mas não suficiente da sinonímia. A paráfrase é reconhecida por Fuchs (1985) como atividade de reformulação e pode ser analisada no plano do discurso. Por esse viés, o contexto, as circunstâncias e a situação específica do discurso são indispensáveis. Ela adverte para a necessidade de, quando no instante de se articular a língua e o discurso, reconhecer o que da interpretação e da reformulação é previsível para o lingüista. Afima que a atividade de reformulação que o sujeito realiza está entre a reprodução do conteúdo e sua deformação. Na reformulação, identificase a significação do texto-fonte à significação do novo texto; há um alto grau de variabilidade no texto final, mas se estabelecem limites de tolerância variáveis. Ao tratar da paráfrase como uma problemática enunciativa, devemos 1

Par voie de conséquence, la parphrase ne pourra pás non plus éter enfermée sois dans le systéme de la langue (les relations de paraphrase ne constituent pas une propriété intrinsèque des couples de sequences, inscrite de façon stable em langue, et faisant l ’objet d’um total consensus des sujets) soit dans la variabilité infinie des faits de discours et des determinations extralinguistiques ( à chacon son interpretations et ses relations de paraphrase): la paraphrase est um phénoméne langagier (c’est-à-dire une activité de langue menée par dês sujets dans dês situations de discours donèes), qui n’est que partiellement linguistique ( c’est-à-dire s’appuyant sur dês relations complexes em langue, qui contribuent à l’ètablissement d’um jugement de paraphrase, sans pour autant lê determiner absolument) (Fuchs, 1982, p. 176).

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Todo enunciado é um entre outros, pinçado pelo enunciador no pacote dos enunciados equivalentes possíveis, enfim todo enunciado faz parte de uma família de transformados parafrásticos; (mas) não existe enunciado que não seja modulado, isto é, que seja um fenômeno único (FUCHS, 1994, p.147).

Ao dar continuidade aos propósitos colocados acima, retomamos os dizeres de Authier-Révuz (1994, p.85): “A reflexão realizada parte do que está lingüisticamente apresentável, quando interage com o interpretativo através do texto, conivente aos fatos apontados pelas não-coincidências do dizer”. A reflexividade da linguagem, apontada por Authier-Révuz, fornece subsídio para entender como se processa o sentido de um enunciado, especificamente, um enunciado parafrásico. Nos estudos de Authier-Révuz (2004) também existe a percepção de que pela interlocução da linguagem, representada por fatos metaenunciativos como o texto, “a auto-representação opacificante do dizer em certas formas de “duplicação”, demonstra que certas formas de duplicação podem deixar o transparente opaco”. Formas de duplicação que autora denomina de reformulação metaenunciativas e, nesta perspectiva, apresenta os trabalhos sobre paráfrases de Fuchs (1982).

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alertar para a questão do parentesco semântico entre enunciados, pois devemonos preocupar também com as diferenças semânticas entre enunciados na produção de paráfrases. Para isto, Funchs (1994, p.130) aponta que a questão da escolha entre enunciados aparentados, concernentes não somente à atividade de reformulação parafrástica, mas, de modo mais amplo, a toda produção de enunciados: “construir um enunciado é sempre selecionar uma configuração particular, única, no interior de uma família potencial de enunciados aparentados”. Para entender como se realiza essa configuração, a autora (op. cit., p.133) lembra que a significação global de um enunciado resulta da interação de marcadores que o compõem; ora, estes marcadores correspondem a operadores diferentes, a partir dos quais, por encaminhamentos diferentes, podem ser construídos certos valores: “falar de parentesco, é considerar que os valores assim construídos em co-texto se identificam, se sobrepõem”. O corte considerado como co-texto é evidentemente variável: pode ser todo ou parte de marcador próximo ao enunciado ou, mais amplamente, os enunciados vizinhos. Os co-textos construídos a partir de dois marcadores diferentes, mas com valores que coincidem mais ou menos fortemente, são denominados de assimiladores de co-textos; outros, que não coincidem, são chamados dissimiladores. Funchs (op. cit., p.134) chama a atenção para uma certa margem de variação correlativa da margem interpretativa. Com base nos dois co-textos, o dos “assimiladores” e o dos “dissimiladores”, veremos o conceito de um enunciado:





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Para Authier-Révuz (2004, p.116), qualquer que seja a natureza da relação entre os elementos X e Y – identidade, implicação (...) – e o nível em que ela se estabelece – lingüístico, referencial, pragmático – os reformuladores constituem uma forma explícita, não ambígua, de predicação metaenunciativa de equivalência entre dois dizeres, o de X e o de Y. É nesse sentido que a autora concorda com Fuchs que, além das diferenças de níveis em que se estabelecem as relações de paráfrase, propõe uma “teoria unificada do funcionamento parafrástico” não “como propriedade intrínseca das expressões”, mas como “atividade metalingüística” dos sujeitos falantes, estabelecendo relações de identificação entre seqüências, atividade da qual as estruturas explícitas de reformulação são uma verbalização”. Podemos comparar as estruturas de reformulação transparentes que estabelecem explicitamente que dizer X é dizer Y; é ter dito Y com diversas relações semântico-lógicas. Excluir a identidade entre X e Y, ou os conteúdos de X e Y, é para salientar que essas relações são colocadas entre as coisas e não entre as palavras X’ e Y’. Dito de outro modo, ao predicar a equivalência de dois dizeres, o enunciador apóia-se numa rede de relações implícitas que leva a reconhecer como evidente, contrariamente, às formas que explicitariam essas mesmas relações. São dessas relações construídas interpretativamente que a predicação de identificação dos dizeres recebe seu nível transparente, não requerendo a consideração das próprias palavras. E paralelamente, por não serem predicadas, mas necessariamente construídas como subjacentes à predicação sobre o dizer, é que essas relações se encontram impostas como indiscutíveis na argumentação e na narração (AUTHIER-RÉVUZ, 2004, p.119). Authier-Révuz (op. cit., p.122) afirma que a fácil inscrição das estruturas de reformulações em cadeias argumentativas, em que figuram or (ora), donc (portanto), en effet (de fato), toutfois (todavia), manifesta nitidamente a interpretação dedutiva das relações em X e Y sob a representação da equivalência dos dizeres. Para ela (op. cit., p.132), a homogeneidade transparente e a heterogeneidade opacificante não dependem de uma posição binária discreta, mas de tendências para interpretar num sentido mais do que em outro, que pouco acusadas, podem deixar a escolha aberta, indecidível.

3. DAS ANÁLISES Para efetivarmos as análises dos anúncios publicitários, recorremos à nomenclatura, utilizada por Hilgert (1989): EO equivale a enunciado original e p equivale à paráfrase, mas se um EO se refletir em mais de um enunciado parafrásico, esse p receberá uma numeração correspondente, ou seja, será representado por p1, p2, p3... Veremos como se pode realizar o processo metaenunciativo da linguagem através das paráfrases nos anúncios a seguir:

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Anúncio nº 01

HOTEL DO NORTE || O abaixo assignado tendo fecha- | do o seu antigo estabelecimento - | Café Parahybano, scientifica aos | seus fregez[ ]s e amigos, especial- | mente aos do interior do Estado, | que acaba de abrir um confortavel | HOTEL com a denominação su- | pra, á rua d’Areia n.º 59 ( na casa | em que esteve outr’ora o Hotel | Parahybano) onde encontrarão, | apar das bôas acommodações e | melhor tratamento, a maior mo- | dicidade de preços ; alem de que, | o excellente banho frio, altamen- | te recommendavel na estação cal- | mosa em que nos achamos. || Tambem recebe-se assignatu- | ras. || Parahyba 27 de Setembro de 1892 | Leoncio Hortencio. EO – o seu antigo estabelecimento P1 – Café Parahybano P2 – um confortável HOTEL P3 – hotel do norte

Conforme os conceitos de paráfrase, apresentados no aporte teórico desse trabalho, demonstramos que EO “o seu antigo estabelecimento” foi parafraseado por três formas: p1 “Café Parahybano”, p2 “um confortável HOTEL” e p3 “hotel do norte”. Estes três enunciados parafrásicos demonstram o poder reflexivo da linguagem, utilizado pelo enunciador para registrar as possibilidades de reformulação de um enunciado num instante em que esse enunciador busca emitir seus enunciados utilizando o poder argumentativo da linguagem, como forma de chamar a atenção dos seus interlocutores para participarem de um determinado evento, no caso, o evento que viabiliza as questões comerciais. Vimos que o termo antigo determinante do EO – “o seu antigo estabelecimento” – foi retomado por um outro determinante, a marca lingüística confortável e esta retomada, com operador diferente, nos indicia a dizer que a intuição do enunciador era chamar a atenção dos seus clientes para estender os negócios ao maior público possível, isto também se nota na reformulação do nome do hotel que de paraibano passa para do norte. Agora este estabelecimento não só presta serviços aos clientes de um Estado mas aos de toda Região.







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Anúncio nº 02









O EXTRACTO COMPOSTO DE || Salsaparrilha || DO DR. AYER. || E’ um [rasura]terativo de tanta efficacia que expul- | sa do systema toda a especie de Escrofulas | Hereditarias, evita o contagio e neutra- | [rasura]sa os effeitos do mercurio; ao mesmo tempo | que vitalisa e enriquece o sangue, promovendo | as funcções naturaes do organismo e reno- | vando todo o systema. || Este grande || Remedio Reconstituinte || É composto da verdadeira Salsaparrilha | das Honduras, dos Ioduretos de Potassio e | Ferro, com outros ingredientes de grandes | qualidades reparadoras, cuidadosa e scientifi- | camente combinados. A formula de sua | composição é conhecida pelos medicos em | geral, dos quaes os mais eminentes receitam | a SALSAPARRILHA DO DR. AYER como um || Remedio Seguro || para as doenças provenientes de impurezas | do sangue. || Tem o mais alto gráo de concentração | possível, excedendo n’isto qualquer outra | preparação do seu genero que pretenda pro- | duzir eguaes effeitos, e por isso é o remedio | mais barato e efficaz para purificar o sangue. || PREPARADO PELO || Dr. J.C. AYER & Ca., Lowell. Mass., E.U.A. || Á venda nas principaes pharmacias e dro- | garias. || DEPOSITO GERAL || N. 13 Rua Primeiro de Março | Rio de Janeiro. Neste anúncio selecionamos os seguintes enunciados: EO – “ ...de tanta eficácia que expulsa do sistema toa espécie de Escrófulas Heraditárias”; P1 – evita o contágio, P2 – “neutralisa os efeitos do mercúrio” EO – “ao mesmo tempo que vitaliza; P1 – “e enriquece o sangue”; EO “grande remédio Reconstituinte” P1 – “remédio seguro” EO – “Salsaparrilha do Dr. AYER; P1 – “é o remédio mais barato e efficaz para purificar o sangue”.

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Anúncio nº 03 TOILETTE FAMILIAR || Explendido e variado sor- | timento de objectos de | alta phantasia || Broches | Pulseiras, Fichús de lã e seda | Cadeias | Ventarollas | Bonecas | Perfumarias | Lenços | Sabonetes | Crochees | Leuesq || Brinquedos para creanças e | muitos outros objec[ ]os de alta no- | vidade que só com a vista po[ ]e- | rão ser apreciados. || Leonardo José Pereira, propri- | etario deste estabelecimento; con- | vida ao respeitavel publico, e es- | pecialmente ás Ex.mas Sr.as Para| hybanas, á darem um passeio ao | TOILETTE FAMILIAR para exa- | minarem de visu tão lindo e varia- | dissimo sortimento. || Preços sem competencia || Mais baratos do que em outra | parte || AO TOILETTE FAMILIAR | RUA MACIEL PINHEIRO N.º1| ANTIGA CAZA DE BERNARD NORAT

EO - Explendido e variado sor- | timento de objectos de | alta phantasia || P1 | - Broches | Pulseiras, Fichús de lã e seda | Cadeias | Ventarollas | Bonecas | Perfumarias | Lenços Sabonetes | Crochees | Leuesq || Brinquedos para creanças P2 - e | muitos outros objec[ ]os de alta no- | vidade; P3 - tão lindo e varia- | dissimo sortimento EO - Leonardo José Pereira; P1 - propri- | etario; EO - TOILETTE FAMILIAR P1 - deste estabelecimento;

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Percebemos que o enunciador se utiliza do EO – “de tanta eficácia que expulsa do sistema toda espécie de Escrófulas Hereditárias” e o parafraseia com dois enunciados p1– “evita o contágio” e p2 – “neutralisa os efeitos do mercúrio”. As paráfrases são utilizadas para reforçar os efeitos de cura proporcionado pelo remédio anunciado pelo EO – “Salsaparrilha do Dr. AYER”. Este segundo enunciado é retomado por outro p1 – “é o remédio mais barato e efficaz para purificar o sangue”, o que dá ênfase as nuanças dos eventos comerciais, uma retomada incessante proporcionadas por marcas que caracterizam o bom desempenho do remédio como demonstrado no EO – “ao mesmo tempo que vitaliza mais” e em p1 – “e enriquece o sangue”. As marcas argumentativas vitalizam e enriquecem promovem o culto ao remédio para o interlocutor.





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Observamos que o enunciador para divulgar os seus objetos comerciais, se utiliza do EO - “Explendido e variado sor- | timento de objectos de | alta phantasia” – e o parafraseia por p1 - “Broches | Pulseiras, Fichús de lã e seda | Cadeias | Ventarollas | Bonecas | Perfumarias | Lenços Sabonetes | Crochees | Leuesq || Brinquedos para creanças”. São retomadas que explicam reforçam o propósito de convencer o leitor (consumidor). O mesmo acontece em p2 e p3, mas como se o processo de descrição dos objetos vendidos pela loja não fosse suficiente, o enunciador recorrer ao nome do proprietário da casa, pelo processo da justaposição do EO - “Leonardo José Pereira” e p1 “propri- | etário”, os quais são enfatizados por mais um EO – “TOILETTE FAMILIAR” e pelo p1 – “deste estabelecimento”. Anúncio nº 04 CANDIEIROS || PAD BIA A VAPOR || Fonseca, Irmãos & C.ª, tendo re | cebido de Hamburgo pelo ultimo | vapor inglez, uma remessa de | Candieiros, o que tem vindo de | mais chique a esta praça, rezolvem | vender barato, afim de chegar no- | va remessa. Tambem annunciam | que vendem tudo mais que é pre | cizo para ditos Candieiros, como | seja: pavios, chaminés e bocaes In | glezes Francezes e Allemãs. EO – “uma remessa de candieiros” P1 – “nova remessa” P2 – “ditos candieiros”

O enunciador parte do EO – “uma remessa de candieiros” para dois enunciados parafrásicos o p1 – “nova remessa”, constituído pela marca lingüística reconhecida por Fuchs como co-texto – nova – e o p2 – “ditos candíeiros”, no qual o termo ditos também funciona como elemento de retomada, elemento que no dizer Fuchs realiza o trabalho de interpretação do enunciado pelos interlocutores. Interpretação estabelecida pelo envolvimento com o históricosocial. No caso, experiências relacionadas ao mundo do comércio. A partir das análises realizadas, ancoradas no princípio de que o processo metaenunciativo da linguagem, proposto por Authier-Revuz (2004), pode ser observado consoante aos postulados de Fuchs (1994), no que diz respeito às

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REFERENCIAS AUTHIER-RÉVUZ, J. (1995). Les mots qui nevont pás de soi. Paris: Larousse. ______. (1998). Palavras incertas: as não-coincidência do dizer. Campinas: EDUNICAMP. ______. (2004). Entre a transparência e a opacidade: um estudo enunciativo do sentido. Porto Alegre: EDPUCRS. BAKHTIN, M. (VOLOSHINOV) (1999). Marxismo e filosofia da linguagem. Trad. Michel Laud e Yara F. Vieira. São Paulo: Hucitec. BAKTHIN, M. (2003). Estética da Criação Verbal. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes. FUCHS, C. A Paráfrase Lingüística: Equivalência, Sinonímia ou Reformulação? In: Cadernos Lingüísticos, 8: 129-134, 1985. ______. Paraphrase et Énonciation. (1994). Paris:Editions OPHRYS.

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paráfrases, sob a égide da perspectiva do dialogismo bakhtiniano (1999), notamos alguns traços do funcionamento discursivo nas paráfrases. Concluimos que este fato ocorre porque um dos dois termos é portador de modalidade autonímica: é o caráter “normal”, o “óbvio”. O emprego de uma palavra instrumento transparente fica suspenso pela modalidade autonímica: a “alteração” da transparência indica que, nesse ponto de seu dizer, o enunciador encontra “outro”. Como foi verificado, como por exemplo, no anúncio de n°01 pelos operadores, termo de Fuchs (1994), “o seu antigo estabelecimento”, retomado por “um confortável HOTEL”.





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Denilda Moura *











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A PREDICAÇÃO COPULA TIV TUGUÊS COPULATIV TIVAA EM POR PORTUGUÊS BRASILEIR O E EM ESP ANHOL BRASILEIRO ESPANHOL (La Prédica tion Copula or tug ais Prédication Copulatititivv e en PPor tugais Brésilien et en Espagnol) RÉSUMÉ Pour l’étude de la prédication copulative en portugais brésilien et en espagnol, on fait une discussion sur la fonction prédicative des phrases avec les verbes ser et estar (être) dans les deux langues en essayant de caractériser les types de prédicat permanent/éventif par rapport à sa distribution étant donné qu’en portugais brésilien et en espagnol ces verbes sont permutables dans des contextes similaires qui dépendent du caractère générique/non-générique des phrases. À partir des propriétés permanente/éventive et générique/non-générique des phrases avec ces verbes, on analyse la position des sujets aussi bien que le caractère multifonctionnel de la copule par rapport aux niveaux de leur structure syntaxique. lé Mots-c Mots-clé lé: l’accord, la prédication, le por tugais brésilien, l’espagnol RESUMO Para o estudo da predicação copulativa em português brasileiro e em espanhol, faremos uma discussão sobre a função predicativa de frases com os verbos ser e estar nas duas línguas tentando caracterizar os tipos de predicado permanente/temporário com relação à sua distribuição, tendo em vista que, em português brasileiro e em espanhol, esses verbos são permutáveis em contextos similares que dependem do caráter genérico/não-genérico das frases. A partir das propriedades permanente/temporário e genérico/não-genérico das frases com esses verbos, analisamos a posição dos sujeitos assim como o caráter multifuncional da cópula com relação aos níveis de sua estrutura sintática. ha Pala vr as-c as-cha havv e : concordância, predicação, por tuguês brasileiro, espanhol alavr vras-c

Objetivando uma análise comparativa da predicação copulativa em Português Brasileiro, de agora em diante, PB, e em Espanhol, realizamos uma discussão sobre a predicação copulativa, e em seguida fazemos uma discussão sobre a função predicativa e de identificação em sentenças com os verbos ser e estar nessas línguas, na tentativa de caracterizar os tipos de predicado permanente/temporário, referentes à sua distribuição, tendo em vista que no PB e no espanhol ser e estar são permutáveis em contextos similares dependendo do caráter genérico/não-genérico das sentenças (SOSCHEN, 2002)1. Com base nas propriedades permanente/temporário e genérico nãogenérico de sentenças com ser e estar, analisamos a posição dos sujeitos nessas sentenças, e o caráter multifuncional da cópula, em função dos níveis da estrutura sintática em que se encontram. * UFAL. 1 Agradeço ao Marcelo Sibaldo o acesso ao texto de Soschen (2002).







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A nossa discussão sobre a predicação copulativa leva em consideração aportes da gramática gerativa, em especial (CHOMSKY, 1993, 1995, 1998). Encerrando essa discussão, que busca uma explicação para a distinção das funções predicativa e de identidade, com ser e estar, nessas línguas, tecemos algumas considerações finais sobre o fenômeno analisado.

1. A PREDICAÇÃO COPULATIVA As duas funções básicas preenchidas por frases adjetivas (APs) são conhecidas como as funções ATRIBUTIVA e PREDICATIVA. As APs atributivas geralmente atribuem uma determinada qualidade ao nome, ou dão uma informação suplementar sobre um antecedente, por meio de um pronome relativo, em exemplos do tipo: (1) a – Menino inteligente b – Admiro Pixinguinha, que compôs Carinhoso. A frase verbal formada pela cópula (ser, estar, e outros) seguida de adjetivo (ou sintagma nominal) predicativo recebe a denominação de frase predicativa. Os exemplos a seguir ilustram esses tipos de frases: (2) a – João é [estudioso]. b – Paulo é [médico]. c – A criança está [no jardim]. d – A criança está [longe de casa] Nos exemplos acima, estudioso em (2a) e médico em (2b) estabelecem uma relação direta de predicação com o sujeito da frase matriz, com o qual estabelecem uma relação de concordância. E, nesse caso, em (2a), a frase adjetiva, e (2b), a frase nominal (NP) exprimem uma relação direta de predicadores do sujeito da frase matriz. Quanto a no jardim em (2c) e longe de casa em (2d), podemos verificar que a frase preposicional (PP) e a frase adverbial (AdvP) respectivamente, estabelecem uma relação de predicação com o sujeito da frase matriz, no entanto essas categorias gramaticais não impõem qualquer relação de concordância gramatical com o sujeito da frase matriz.2 Como anunciado acima, nesse texto priorizamos as construções em que as APs e as NPs exprimem função predicativa ou de identificação em sentenças de cópula com ser e estar. Como podemos verificar nos exemplos de (1)-(2), a 2

Para mais informações sobre as frases copulativas, ver Mira Mateus et al. (2003), Rothstein (2001, 2004), Moro (1997), dentre outros.

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(3) João é inteligente. (4) João é [AP t1 [A’ t2 inteligente ]] Nessa estrutura, o adjetivo recebe o traço forte [nominal-] quando é retirado do léxico, e [Suj, Adj] é elevado para Spec externo exigido pelo traço forte, entrando no domínio de verificação do adjetivo.3

2. OS PAPÉIS DE SER E ESTAR EM PB E EM ESPANHOL O PB e o Espanhol usam o verbo ser em frases de identidade: (5) Maria é / (* está) a mulher de Pedro (6) Carmen es / (* está) la señora de Garcia (SOSCHEN, 2002) Soschen (op. cit) destaca em sua análise sobre o hebraico e o russo que na literatura lingüística “propriedades permanentes” são associadas a predicados de espécie e de indivíduo, enquanto os predicados de fase exibem “propriedades transitórias”, no entanto certos predicados podem aparecer em sentenças com ou sem marcador genérico. E ilustra esse fato com os exemplos (7)-(8), em hebraico.

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Essa proposta de Chomsky (1995) admite haver um custo para essa análise, tendo em vista a introdução de um traço forte no Adjetivo. E esse traço foi necessário para que a derivação convergisse, ou seja, era necessário que o traço forte fosse selecionado, porque os traços [-interpretáveis] do adjetivo têm de ser verificados (e rasurados). No entanto, a posição “de base” do sujeito dentro do AP não era uma posição de verificação possível, por ser uma posição-è, e assim, o sujeito do adjetivo tinha de ser elevado para uma domínio de verificação “apropriado” do adjetivo, para que esse domínio fosse determinado pelo traço forte do adjetivo, cf. Chomsky (op. cit. nota 385, p. 476).

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concordância de adjetivos atributivos se dá com a cabeça nominal, e a dos adjetivos, com o sujeito. Em grande parte dos trabalhos sobre os adjetivos predicativos tem sido adotada a proposta da small clause, de Stowell (1981, 1991). Apesar disso, alguns problemas têm sido apontados nas análises sobre várias línguas. E, nesse sentido, Moro (1997: 255) constata que a cópula ainda é uma questão central, e que está inerentemente relacionada ao problema de encontrar uma teoria adequada para a estrutura da sentença. A partir da proposta de Stowell, com o apoio de pressupostos adotados em Chomsky (1995), a estrutura de uma construção adjetiva predicativa, como (3) é apresentada em (4):





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(7) Hanna (hi) yafa Hanna Pron linda “Hanna é linda”













(8) Dani Dani “Dani

(hi) haham Pron inteligente é inteligente”

Em PB e em Espanhol, as propriedades permanentes são construídas com o verbo ser, enquanto as propriedades transitórias são construídas com o verbo estar. Essa posição é assumida por Costa (1998) que atribui a diferença entre ser e estar ao contraste entre qualidades permanente e temporária expressas pelo predicado de uma sentença citando como exemplo uma frase como (9) em Português Europeu: (9) O café está / (*é) pronto4

(exemplo (7) de Costa, 1998)

Ainda sobre a assimetria “permanente / temporário”, podemos verificar que ser e estar são intercambiáveis em sentenças com certos predicados, como ilustrado em (10)-(11). Além disso, alguns predicados podem aparecer apenas com estar em Espanhol (por ex., preparado, abierto, etc), cf. Soschen (op. cit.). (10) O Paulo é doente (predicado permanente) (11) O Paulo está doente (predicado temporário) A fim de esclarecer alguns problemas com relação à distribuição de predicados, Soschen se propõe a analisar dados do hebraico e do russo, cujas línguas têm elementos copulares que se comportam de forma semelhante aos predicados com ser e estar em PB e em Espanhol, segundo a autora.

3. SENTENÇAS DE IDENTIDADE VS. SENTENÇAS PREDICATIVAS ADJETIVAIS O papel desempenhado por Pron em hebraico é semelhante ao de be, que é visto como uma marca de predicação, carecendo de conteúdo semântico em sentenças de identidade, como em “Mary is Mrs. Smith”. Partindo da hipótese de Rothstein (1995), dentre outros,5 mas fazendo referência à análise de Doron 4

Destacamos que esse fenômeno é igualmente válido em PB. Nessa análise, o sentido de be é uma “apply function”, como se tomasse os argumentos e . E, assim, a função da cópula é projetar um constituinte que fornece uma relação de predicação. 5

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(12) Maria Maria ‘Maria (13) Maria Maria ‘Maria

* (-) N-Pron é (-) N-Pron é

grazdanka Ivanova a Sra. Ivanova a Sra. Ivanova’ krasivaja bonita – fem bonita’

Na análise de Soschen, os dados do russo apoiam a idéia de que o papel da cópula é projetar um constituinte que favorece uma relação de predicação. Uma cópula verbal é representada pelo verbo byt’ (ser) em russo. A cópula é obrigatória no tempo passado e no futuro, como em inglês e em hebraico. A cópula russa concorda com o sujeito em número (no futuro e no passado), em pessoa (no tempo futuro), e em gênero (apenas no passado). No tempo presente, a forma est’ (é/são) da cópula verbal é obrigatoriamente ausente em frases nominais em russo moderno. Em vez disso, ela é representada por um elemento foneticamente vazio (cópula “ – “) ou substituída por um verbo javljat’sja (? be). A cópula é obrigatoriamente ausente no tempo presente.8 A partir da discussão sobre o papel do Pron em hebraico e em russo, a autora afirma que o Pron representa a realização dos traços de Agr no hebraico,

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Análise seguida por Rapoport (1987), Rothstein (1995), e Greenberg (1995). Em hebraico, o traço [+ tempo] exige uma especificação de [+ passado]. Como o presente não tem essa exigência, por não ser especificado para [+ tempo}, e é [+ tempo] que força a projeção de Infl (como cabeça de IP), Infl é opcional no presente, e torna aceitável a small clause. 8 Soschen apresenta evidências do russo antigo, para mostrar que a cópula existia no tempo presente e que ainda pode ser encontrada em textos antigos, e destaca, também, que a cópula verbal é preservada em outras línguas eslavas (pr ex., no búlgaro). Mas, atualmente, a cópula verbal do russo antigo é substituída, no russo moderno, pelo elemento N–Pron. 7

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(1983)6, em que a cópula pronominal (Pron) em hebraico é a realização de traços de concordância localizados em Infl, a cabeça de IP, Soschen defende que, em hebraico, as sentenças de cópula, no tempo presente, têm a forma de um pronome pessoal de 3ª pessoa, enquanto as sentenças nominais no passado ou no futuro se comportam como sua contraparte em inglês.7 No russo moderno, há uma marca não-visível que comporta traços semelhantes ao do Pron, em hebraico, (Null Pron, ou N-Pron). Essa marca é expressa graficamente com um “ – “ (hifen). Fonologicamente, ele corresponde a uma pausa semelhante ao que ocorre em alguns casos de elipse. Cf. (12) – (13):









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contrariamente ao Pron em russo, e sugere que nessa língua Pron é realizado em Infl. Com relação à opcionalidade da cópula, a questão considerada é a referencialidade. E, assim, na ausência de referência, a geração de Infl é opcional, tando em hebraico como em russo. Já o PB e o Espanhol exigem ser em sentenças genéricas. Genericidade é entendida numa perspectiva modal, se uma propriedade é verdadeira para uma pessoa / um objeto, então ela é verdadeira em todas as situações possíveis para essa pessoa / esse objeto. Já em hebraico, a distinção genérico / nãogenérico corresponde à presença / ausência do Pron e, em russo, de N-Pron. Em PB e em Espanhol, ser e estar são permutáveis em contextos similares dependendo do caráter genérico / não-genérico da sentença, respectivamente, cf. exemplos (10)-(11), aqui repetidos em (14)-(15): (14) O Paulo é doente (15) O Paulo está doente

(predicado permanente) (predicado temporário)

Cumpre destacar, ainda, o caráter “eventivo” de alguns predicados. Existe em hebraico uma classe de predicados que corresponde aos predicados que são expressos por formas reduzidas de adjetivos, em russo, os quais não podem aparecer junto com um marcador genérico, já que eles têm obrigatoriamente um sentido “eventivo”. Esses predicados correspondem aos predicados “temporários” no PB e em Espanhol, usados com estar, tais como: pronto, cansado, aberto, etc., em exemplos do tipo: “O menino está pronto / cansado”, “O restaurante está aberto”.

4. SUJEITO E POSIÇÃO DO SUJEITO A noção de sujeito é fundamental na lógica aristotélica e em quase todas as tradições ocidentais do pensamento sobre filologia e gramática, e é também usada em modelos de gramática da tradição gerativa. McCloskey (1997) destaca uma ampla série de fenômenos para demonstrar que a noção de sujeito é central nos estudos sintáticos: a) o sujeito como portador característico de certos papéis semânticos (Agente, Causa, e mais controversamente, Experienciador), e enfatiza que esses papéis são básicos porque nascem na estrutura com a função de sujeito externo, sendo selecionado pelo verbo; b) o sujeito é mais proeminente do que qualquer outro argumento do verbo principal, e sua proeminência é evidente em vários fenômenos: ele deve ligar pronomes reflexivos e recíprocos, o sujeito toma como escopo (domínio de c-comando) mais largo do que outro elemento em qualquer posição argumental; c) normalmente, os sujeitos são marcados na forma de caso, em que a marca morfológica deve estar sobre o

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5. ESTRUTURAS SINTÁTICAS A estrutura proposta por Stowell (1991), que é uma versão da teoria de Larson (1988) para a estrutura da frase, é assumida. De acordo com Larson, predicados são admitidos para gerar projeções máximas para acomodar todos 9

Rothstein (2004) estabelece uma diferença entre uma forma verbal (a cópula) e uma expressão de flexão, tendo em vista que em hebraico não há forma de cópula no presente, e o formativo flexional que representa a cópula é opcional nessa língua. E destaca, ainda, a flexão, por natureza, é um elemento gramatical, e não lexical.

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próprio sujeito, ou na forma de morfologia de concordância entre o verbo e o sujeito, ou por ambas, em algumas línguas ; d) toda oração deve ter um sujeito, de onde provém o Princípio de Projeção Estendida (EPP) na gerativa; e) sujeitos são quase sempre nominais; f) para o Autor, o fato de sujeitos serem quase sempre nominais não pode ser ignorado, e sustenta, ainda, que existem muitas operações gramaticais que criam sujeitos superficiais, promovendo nominais de outras posições, citando como exemplo, o caso das passivas, o alçamento de sujeito para sujeito, ou seja, o movimento de um sujeito da oração encaixada para a posição sujeito da frase matriz, com verbos como parecer, por ex., e o fenômeno da inacusatividade. Na perspectiva do modelo-IP da estrutura da frase, o sujeito é realizado como especificador de IP. Historicamente, tem sido admitido que o sujeito da predicação é realizado em posição pré-verbal e nenhuma exceção é admitida. Na proposição de Jespersen, isto resulta da definição do sujeito como o elemento que desencadeia concordância com o verbo. Na proposição de Chomsky, resulta de um enfoque configuracional para as funções gramaticais, cf. Moro (1997: 261). Na análise do sujeito de predicação, em hebraico e em russo, Soschen defende a existência de uma diferença estrutural entre sentenças com +Pron ou –Pron, isto é sentenças +Pron se realizam no nódulo Infl, seguindo Rapoport (1997) Rothstein (1995). Dessa forma, sentenças + Pron são cláusulas plenas e sentenças – Pron são small clauses matrizes. De acordo com Rothstein (1995), em sentenças predicativas o sujeito fica na posição interna a XP quando Pron está ausente, e ele é alçado para a posição de Spec de IP quando o nódulo Infl é realizado por Pron. Além disso, interpretações genérica/não-genérica correspondem às variantes com sujeitos externos/internos, conseqüentemente. Se admitimos a proposta de Soschen, acima explicitada, de que o papel de Pron é semelhante ao papel de ser e estar em Espanhol (proposta que nós ampliamos para o PB), as estruturas apresentadas a seguir permitem ilustrar as diferenças de interpretação genérica/não genérica, permanente/temporária, nessas línguas.9





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os seus argumentos. E isso é uma forma de evitar a geração de duas posições argumentais externas. De acordo com essa hipótese, nas sentenças em que Infl toma uma small clause como seu complemento, a saturação de um nódulo projetado por Infl, I’, é exigido, e uma small clause sujeito é alçada para Spec de IP. No entanto, em russo não existe a necessidade de uma posição de sujeito ser preenchida, então uma small clase sujeito, ou fica in situ ou é alçado para Spec de IP dependendo da interpretação. A estrutura (17) é proposta para ilustrar a diferença de comportamento entre formas longas e curtas de predicados adjetivais em russo, para uma frase do tipo apresentado em (16): (16) Dzon (-) scastlivyi Dzon N-Pron feliz ‘Dzon é feliz (uma pessoa feliz)’ (17)

IP u

I’ 3 (-) AP 3 NP A Dzon scastlivyi Nas sentences de identidade, nenhuma relação sintática ocorre entre o sujeito da sentença e um segundo NP (referencial). Então, um elemento adicional é exigido a fim de que relações de predicação sejam estabelecidas. Nas sentenças de identidade em hebraico, Pron projeta um constituinte que toma um NP póscopular como seu complemento sintático. Dessa forma, o NP é alçado ao nível de um predicado, e um NP sujeito satura esse predicado. Nos casos em que I’ toma uma small clause como seu complemento, um sujeito é alçado para Spec de IP. E, assim, para uma sentença como (18), em hebraico, é proposta a estrutura (19), a seguir. (18) Dani Dani ‘Dani

* (-) Mar Levin Pron Sr Levin é o Sr, Levin’ (19)IP 3 Dani I’ 3 * (-) NP Pron Mar Levin

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(20) O café está (*é) pronto Como vimos, a análise proposta sobre a multifuncionalidade da cópula depende da presença/ausência de (ao menos) dois níveis sintáticos em que a cópula encontra sua forma de expressão, ou seja, Infl e nível-V. De acordo com essa análise, a estrutura (21) a seguir ilustra a multifuncionalidade da cópula em PB e em Espanhol: (21)

IP 3 Suj I’ 3 Infl XP ser 3 (genérico, identidade) V XP estar (não-genérico) X e

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS Com base na análise de Soschen (2002), para o russo e o hebraico, em

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Essas estruturas são propostas por Soschen para o hebraico e o russo, a fim de estabelecer a diferença entre as frases predicativas e as frases de identidade. Para a Autora, seguindo essa proposta, o papel de ser em sentenças de identidade em Espanhol e Português é semelhante ao papel de Pron em sentenças do hebraico, e ao elemento –Pron, sem conteúdo semântico, em russo. Além disso, um dos papéis de ser em Espanhol e Português é semelhante ao de be, em Inglês, visto que ele representa uma marca de predicação sem conteúdo semântico, em sentenças de identidade, tais como “Mary is Mrs. Smith”. Conseqüentemente, uma das funções de ser é projetar um constituinte que fornece uma relação de predicação em sentenças de identidade. Como tem sido estabelecido, certos tipos de adjetivos comportam-se de forma diferente em contextos genérico / não-genérico, em russo e em hebraico, em que Pron e N-Pron são vistos como marcadores de genericidade. Por exemplo, trata-se de uma classe de predicados que não pode aparecer com esses marcadores, por ter um sentido “eventive”. Esses predicados correspondem aos predicados “temporários” em Espanhol e em Português usados com estar (por ex., pronto, enfadado, cansado, abierto em Espanhol). Cf. (20), a seguir:









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que dois níveis sintáticos são propostos, Infl e nível-V, foi possível estabelecer a diferença entre sentenças predicativas com ser e estar em PB e em Espanhol, tendo em vista a diferença entre sentenças com ser (sentido genérico/de identidade) e sentenças com estar (sentido não-genérico/”eventivo”). Na busca de uma solução unificada para as sentenças predicativas no PB, daremos prosseguimento a essa reflexão, a partir da hipótese de unificação de análise, de Adger e Ramchand (2003), com base em Chomsky (2000, 2001), que refutam hipóteses anteriores, baseadas em níveis sintáticos diferenciados para explicar a multifuncionalidade da cópula.

REFERÊNCIAS ADGER, D. & RAMCHAND, G. (2003) Predication and Equation. Ms. CHOMSKY, N. (1998). The Minimalist Inquiries: The Framework. MIT. ______. (1995).The Minimalist Program. Canbridge, Mass: MIT Press. ______. (2000). Minimalist inquiries: the framework. In R. Martin, D. Michaels, and J. Uriagereka (Eds) Step by Step: essays on Minimalist syntax in honour of Howard Lasnik, 89-115, Cambridge, MA: MIT Press. ______. (2001). Derivation by phase. In M. Kenstowicz (Ed.) Ken Hale: a Life in Language, 1-52, Cambridge, MA: MIT Press. CHOMSKY, N. & LASNIK, H. (1995). The Theory of Principles and Parameters. In Noam Chomsky. The Minimalist Program. Cambridge, Mass: MIT Press. HAEGEMAN, L. (1997). Elements of Grammar. Dordrecht, The Netherlands: Kluwer Academic Publisher. McCLOSKEY, J. (1997). Subjecthood and Subject Positions. In Liliane Haegeman (ed) Elements of Grammar. Dordrecht, The Netherlands: Kluwer Academic Publishers, 197235. MIRA MATEUS, M. H. et al. (2003). Gramática da Língua Portuguesa. 5. ed. Lisboa: Editorial Caminho. MORO, A . (1997). The Raising of Predicates. Predicative Noun Phrases and the Theory of Clause Structure . Great Britain: Cambridge University Press. MOURA, D. (2005). A variação em sintaxe. In Denilda Moura e Jair Farias (Orgs) Reflexões sobre a sintaxe do português. Maceió: Edufal, 47-72. ROTHSTEIN, S. (Ed) (1991). Perspectives on Phrases Structures: Heads and Licensing. San Diego: Academic Press, Inc. Vol 25. ______. (2004). Predicates and their Subjects. Dordrecht: Kluwer Academic Publishers. SCHROTEN, J. El género del nombre y su interpretación. Ms. Universidad de Utrecht, s/ d. SOSCHEN, A . (2002). On the distribution of copula elements in Hebrew, Russian and Spanish. Ms. STOWELL, T. The Alignment of Arguments in Adjective Phrases. In Susan Rothstein (ed) Perspectives on Phrases Structures. Heads and Licencing. San Diego Academic Press, Inc. Vol, 25. Syntax and Semantics, 1991: 105-135. ______. (1981. Origins of Phrase Structure. Doctoral dissertation, MIT, Cambridge.

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Raimundo Enedino dos Santos*









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O PRONOME OBJETO E AS LÍNGUAS AFRICANAS NO PERÍODO COL ONIAL COLONIAL (The Object Pronouns and the African Languages wishin the Colonial PPeriod) eriod) RÉSUMÉ Pour l’étude de la prédication copulative en portugais brésilien et en espagnol, on fait une discussion sur la fonction prédicative des phrases avec les verbes ser et estar (être) dans les deux langues en essayant de caractériser les types de prédicat permanent/éventif par rapport à sa distribution étant donné qu’en portugais brésilien et en espagnol ces verbes sont permutables dans des contextes similaires qui dépendent du caractère générique/non-générique des phrases. À partir des propriétés permanente/éventive et générique/non-générique des phrases avec ces verbes, on analyse la position des sujets aussi bien que le caractère multifonctionnel de la copule par rapport aux niveaux de leur structure syntaxique. Mots-c lé lé: l’accord, la prédication, le por tugais brésilien, l’espagnol. Mots-clé RESUMO Este trabalho discute o ambiente em que surge o objeto nulo não-referencial do português brasileiro. O artigo parte da problematização do fenômeno, para, em seguida, apresentar traços de línguas africanas que se assemelham ao PB e que podem ter favorecido o surgimento da inovação do clítico brasileiro, quando da aprendizagem da língua portuguesa pelos escravos em condições irregulares. Palavras-chave Palavras-chave: diversidade lingüística; clítico nulo; fonossintaxe; africanismos; diacronia.

Os estudos do objeto nulo (DUARTE, 1989; GALVES, 1989; OLIVEIRA, 1989; NUNES, 1996) e do enrijecimento da posição do clítico (LOBO, 1992; CYRINO, 1996; PAGOTTO, 1996) têm mostrado que esses fenômenos no português do Brasil (PB) diferem daqueles existentes no português europeu (PE). O trabalho de Cyrino data o momento na história da formação da língua em que surge a diferenciação das duas variantes. Neste trabalho, utiliza-se a concepção de aprendizagem incompleta no ambiente de colônia por parte dos povos africanos, para explicar as mudanças ocorridas. Quanto ao posicionamento do clítico, descreve-se como este traço lingüístico ocorre em línguas bântu, além de se discutir a hipótese de como o fenômeno começou a ser instaurado na língua portuguesa, durante o período de aquisição da língua por aloglotas. Além disso, descreve-se o preenchimento do objeto na língua iorubá e estudam-se as possibilidades de o processo de perda de tons ter contribuído para o surgimento do clítico nulo nas modalidades desconhecidas do português. Para o entendimento

* UNEB / Obafemi Awolowo University - OAU Ilê-Ifé, Nigéria.







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do fenômeno, aproxima-se a fonologia da sintaxe. Para a implementação da pesquisa, são utilizadas três línguas africanas para se estabelecer comparação entre elas e o português. As línguas escolhidas foram três das mais importantes línguas presentes no ambiente de colônia: o quimbundo e o umbundo, que pertencem ao grande tronco bântu; e o iorubá, pertencente ao ramo defóide.

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O PORTUGUÊS NO AMBIENTE DE COLÔNIA

O panorama atual dos estudos lingüísticos sobre o PB aponta para três vertentes teóricas, as quais tentam mostrar como a variante americana da língua se distanciou da européia. Em uma das correntes teóricas, apregoa-se que todas as alterações ocorridas na língua são frutos da deriva natural da língua, como em Silva Neto (1970), Anthony Naro e Marta Scherre (1993). Outra é da opinião de que o ambiente alterou o idioma, mas não concorda que isso se deva a qualquer intervenção causada por questão de etnia. É o caso de Tarallo (1996). Há ainda uma terceira corrente, segundo a qual foi justamente o elemento humano com toda a sua experiência de mundo que deu uma nova face para o PB. Dentre os defensores deste ponto de vista, podem ser citados os nomes de Coelho, Raymundo (1933), Mendonça (1933), Guy (1989), Baxter (1995), entre outros. Toma-se esta última visão neste trabalho. Para tanto, utiliza-se da perspectiva do aparato teórico da Sociolingüística. A língua portuguesa foi difundida em todo o território brasileiro graças ao elemento africano. Os números sobre o contingente de escravos de origem africana divergem de um para outro estudioso, mas é consenso que, em todo o período da colonização portuguesa, o homem africano e seus descendentes perfizeram um número muito maior do que qualquer outro grupo étnico aqui presente. É de se esperar que, ao adquirirem a língua portuguesa, os escravos tenham deixado impressões de seus idiomas. Para Castro (1980, p. 17), os afrodescendentes ladinos e crioulos eram bilíngües e participavam de duas comunidades lingüisticamente distintas: a que falava português e a que só utilizava as línguas africanas. Dessa forma, eles foram os grandes difusores das alterações operadas no idioma. Com a extinção do tráfico transatlântico, houve um crescimento substancial do tráfico interno. Dessa forma, os escravos que já haviam reconstruído a língua portuguesa foram o instrumento dispersor desse idioma (RIBEIRO, 1998; CASTRO, 2001). Para se ter uma idéia, a população escrava da Bahia, com o advento do tráfico interno, passou de 500.000 para 180.000 em 1894, conforme os números de Castro (2001). Os escravos foram levados para as regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste. Isso explicaria o fato de algumas estruturas lingüísticas serem comuns ao PB e desconhecidas no PE. Além disso, foi com o português desses escravos que o imigrante europeu manteve contato inicialmente.

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A APRENDIZAGEM DE UM IDIOMA

Atualmente a lingüística afirma que o falante não aprende só um número limitado de sentenças simples e daí passa a elaborar as suas próprias construções (LIGHTFOOT, 1991). No caso das crianças, a capacidade de aprendizagem é, segundo a teoria chomskyana, inata; e ela tem melhor potencial de aprendizagem até a segunda infância. Na versão mais atualizada da teoria de Princípios e Parâmetros, a aquisição ainda não é consenso entre os teóricos. Alguns advogam a teoria da maturação e outros a teoria da continuidade. Por sua vez, a teoria da maturação é bifurcada em, por um lado, teoria da maturação forte – que prega que o entendimento e a produção não podem ser caracterizados como gramática, e que nessa fase a gramática teria uma estrutura equivalente à de uma língua pidgin – e, por outro, a teoria da maturação fraca – que se caracteriza por atribuir à gramática infantil sub-configurações do modelo lingüístico do adulto. A teoria da continuidade defende a idéia de que a criança já traz consigo todas as características das línguas naturais. E explica que os seus enunciados podem ser truncados por portarem problemas de processamento ou de desconhecimento de itens lexicais (KATO, 1999). Para explicar como a criança desde cedo já produz uma gramática possível nas línguas naturais, Kato (1999) sustenta que há para todo parâmetro um valor default. Se há dados que contrariam esse valor no sistema, a criança remarca o parâmetro. A gramática da criança é denominada pela teoria gerativa como Gramática Universal (GU). Na nova versão da teoria, a GU é o estado S0 inicial. O que se conhece como língua alvo ou língua meta, no gerativismo, o sistema do adulto seria a língua-I. Não se pode perder de vista que a gramática gerativa, quando trata da aquisição lingüística, leva em consideração apenas um falante e o seu processo em particular. Haveria ainda que se resolverem os problemas de input, pois o ambiente não pode ser considerado preenchido apenas por um modelo lingüístico de um adulto apenas. Também é impossível afirmar-se que a língua a que a criança está exposta seja homogênea como um programa de computador, e que todos os falantes utilizem uma mesma versão. Kato (1999) afirma que, diferentemente de um conjunto de regras de uma gramática normativa, um falante adulto domina princípios e propriedades paramétricas cujos valores foram definidos pela língua do ambiente que lhe serviu de input. Isso quer dizer que a Criança não tem necessidade de ter instrutores, ela só precisa descobrir quais são os parâmetros existentes na língua-I. Segundo Kato (1995), há um determinado número de fenômenos que variam nas línguas, por essa razão circunscreve-se também o que a criança precisa adquirir. Algo que pode receber acréscimo da visão de Lopes (2001) quando considera que a criança parte de um modelo de “superlíngua” para uma “língua menor”, à medida que o amadurecimento lingüístico lhe traz a percepção de que as opções disponíveis





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em Forma Lógica estão restritas pelas representações encontradas em Forma Fonética para a língua específica a que está exposta. Em relação ao adulto, a aprendizagem de uma língua não poderá ser outra que não seja caracterizada como língua estrangeira. Kato (2001) afirma, então, que a fase em que a criança só domina nomes é superada pelo adulto, no processo de aprendizagem de língua estrangeira. A Teoria Gerativista é a base para a Hipótese do bioprograma de Dereck Bickerton (1981; 1984). Para ele, a criança deve ser vista como um ser dotado, por um lado, de um potencial genético adquirido pela espécie através da evolução (processo filogenético) e, por outro lado, como um organismo social crescendo no seio de uma comunidade humana particular (processo ontogenético). Assim ele chega à conclusão de que a ordem de formação da língua humana é a mesma ordem que os crioulos seguem, durante a sua invenção pelas crianças, no período em que a adquirem (BICKERTON, 1981). Por outro lado, para Thomason e Kaufman (1988) não existe história da língua sem a história de seus usuários. Em ambiente de contato, os falantes emprestam os seus conhecimentos prévios ao novo sistema que está sendo adquirido. Hildo Honório do Couto (1992) não vê necessidade de haver um pidgin para que o crioulo exista. Dessa forma, nota-se que a tese do bioprograma de Bickerton, que pensa o crioulo como uma nativização de um pidgin falado por apenas uma geração, não recebe crédito de vários segmentos dos estudos lingüísticos. Na crioulística, a aprendizagem e a transmissão da língua do colonizador pelos escravos são conhecidas como transmissão lingüística irregular (BAXTER, 1995). Isso significa dizer que o modelo a que as crianças tiveram acesso, no processo de aprendizagem, não era a variante européia da língua. É possível, portanto, que as crianças descendentes desses falantes da variável reconstruída da língua tenham parâmetros muito diferentes daqueles considerados canônicos da língua portuguesa. De acordo com Thomason e Kaufmann (1988), é através dos traços comuns entre a língua materna e a língua a ser apreendida que se dá o início da recepção da nova língua. Isso quer dizer que há uma probabilidade muito grande de se encontrar no PB traços de línguas africanas que foram faladas por escravos retirados da África e por seus descendentes. Lightfoot (1999) tem outra perspectiva de aquisição lingüística por falantes nativos de línguas crioulas, que não convergem com a de Bickerton. Para Lightfoot (1999, p. 170): Crianças crioulas, como todas as outras crianças, buscam pistas em seu ambiente. Elas interpretam o que ouvem, por mais empobrecido que isso seja, como pistas, e as convertem adequadamente em gramáticas.1 1

Optou-se pela tradução livre ao invés dos textos originais.

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A PROBLEMATIZAÇÃO SOBRE O OBJETO DIRETO

Pretende-se aqui mostrar apenas que existe uma discussão sobre quais teriam sido os fatores que se combinaram para a formação do preenchimento do complemento verbal tal qual ele se apresenta nos dias atuais. A inovação no PB é dada pelo uso diferente de pronome lexical ou nulo, ao invés de se utilizar o clítico. Acrescenta-se também uma possibilidade, não discutida anteriormente, sobre as características do pronome clítico de terceira pessoa em línguas africanas e as suas semelhanças com o que acontece no PB. Duarte (1989) percebeu que há um uso generalizado de categoria vazia no preenchimento de objeto no PB. Ela chegou à conclusão de que o não uso de clítico é estigmatizado em situação formal, tanto quanto também o é o uso desse tipo de pronome em situação informal. Acrescenta, porém, que a consciência do falante só delimita essa diferença em contexto de sentenças simples. A autora garante que a valorização do clítico é promovida pela escola, mas o falante não percebe o uso estigmatizado do pronome lexical em sentenças complexas. 2

Dados lingüísticos primários. Grafa-se o vocábulo bântu dessa forma para que se preserve a sua etimologia, pois em português o acento recairia sobre a última vogal, se assim não fosse escrito.

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Essa visão é devida ao fato de o autor não seguir o modelo maturacionista. Para ele, todas as línguas têm gramáticas personalizadas para cada indivíduo. Não há duas pessoas com a mesma gramática. As gramáticas são entidades individuais que pertencem às pessoas e não definem línguas. Dessa perspectiva, nenhuma criança ouve os mesmos estímulos que outras, estímulos que ele denomina de Primary Linguistic Data (PLD)2. A explicação para a intercompreensão de gramáticas distintas é a seguinte. Entre os falantes existem aqueles que dominam uma gramática a e outros que são usuários de um modelo b. Dentre eles, há aqueles que dominam as duas variedades de gramática. A isso ele chama de diglossia interna. Quando há alteração operada por esses falantes das duas gramáticas, a língua sofre mudanças. Assim, a mudança gramatical é sempre abrupta no processo de aprendizagem (LIGHTFOOT, 1999). Sabe-se que, dos grupos humanos que aportaram no Brasil, o que mais deixou suas impressões culturais, por todo o Brasil, foi aquele classificado lingüisticamente como bântu3. A respeito dele, Castro (1980, p. 16) afirma que: “Possivelmente, nos dois primeiros séculos, o quicongo e o quimbundo, seguidas pelo umbundo, foram as línguas numericamente predominantes na maioria das senzalas ou as de maior prestígio sociológico”. Além desse tronco lingüístico, neste trabalho, dá-se importância ao tronco defóide, onde se encontra a língua iorubá, cuja importância será tratada na seção 6.





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A categoria vazia no preenchimento de objeto no PB tem características semelhantes e diferentes daquelas pertencentes ao PE. Foi Galves (1989) que chegou à conclusão de que o PB, como língua orientada para o discurso, apresenta uma sistematização em relação às categorias vazias que o PE não conhece. No trabalho de Oliveira (1989), nota-se que o preenchimento do objeto por clíticos é insignificante, mesmo que se tenha levado em consideração a alta escolarização. Com base em seus dados, Oliveira afirma que essa é a comprovação de que está havendo o desaparecimento do clítico no PB. Nunes (1996) garante que o clítico acusativo de terceira pessoa só ocorre nas camadas mais instruídas. A busca para determinar quando o objeto nulo se instala no PB foi iniciada por pesquisadores como Cyrino (1996). Baseada na teoria gerativista, ela determinou que houve uma reanálise diacrônica, já que em PB o objeto nulo é uma categoria vazia e não uma variável, como ocorre no PE. Através de seus dados, ela descobre que o clítico de terceira pessoa é o primeiro pronome a cair, tal processo inicia-se pelo “o” proposicional. A partir da terceira do singular, estende-se para os clíticos de primeira e segunda pessoas, que, apesar de sofrerem redução, estes dois últimos tipos continuam sendo utilizados no PB. A autora datou o surgimento do objeto nulo a partir do século XVIII. A mudança de posicionamento do clítico é dada a partir do século XIX. Uma vez que a ênclise não tem que ver com a concordância verbal, Cyrino sustenta que a fixação de próclise ao verbo se deu a partir das locuções verbais. As crianças, ao ouvirem ênclise ao verbo auxiliar, reestruturaram a colocação pronominal como próclise ao verbo sem flexão. Essa mudança começa a ocorrer na primeira metade do século XIX. A autora crê que a mudança na posição dos clíticos, especificamente a perda da ênclise, está relacionada com o objeto nulo. Em 1992, Lobo compara duas sincronias do português para demonstrar as diferenças entre a língua falada no século XVI e o PB do século XX. Diferentemente, o seu posicionamento toma o sentido de que o cerne da questão é a liberdade que as palavras assumem em seu posicionamento na frase. Lobo até descarta a hipótese de Cândido de Figueiredo (1944), a qual pode ser considerada o início da versão crioulista para o fenômeno. Para ele, “uma das principais características das línguas bantas é o uso da antecipação dos pronomes, em vez da posposição, além de que os pronomes servem de prefixos aos verbos” (1944, p. 121). Lobo desautoriza Cândido de Figueiredo, alegando que ele tem uma argumentação falha, já que, após declarar a existência de uma posição fixa para as línguas bântu, contradiz-se ao dizer que a ordem das palavras nesse tipo de língua não é importante. O trecho a que ela se refere é o seguinte: “a disposição das palavras numa frase africana é de somenos monta para quem fala” (1944, p. 122). Certamente a indisposição dos estudiosos brasileiros para se avaliar as línguas africanas pode ter enviesado a argumentação de Figueiredo. Segundo a visão dada por Pagotto (1996), no português clássico havia movimento de clítico e movimento de verbo, tal mobilidade encontra-se perdida

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no PB. Sob orientação gerativista, Pagotto afirma que o movimento suplementar do verbo ocasiona a ênclise. Para a próclise ocorrer, era necessário que houvesse material lexical antes do verbo, no período que vai do século XVI ao XVIII. Com a perda do movimento do verbo, o clítico não mais pôde deslocar-se para a posição enclítica, restando-lhe a posição em que foi gerado: a próclise. O autor assume que o clítico perdeu a sua natureza funcional, porque passou por uma reanálise. No sistema, os clíticos que ainda resistem apresentam menos traços de concordância, portanto o perecimento é maior para os clíticos que mais apresentam essa característica. De acordo com o autor, nas locuções de voz passiva não parece ser possível intercalar um clítico. Além disso, a posição atual dos clíticos não permite que clíticos de concordância surjam entre dois verbos. A categoricidade da falta de movimento é algo acabado no PB e a sobrevivência dos clíticos ainda está por ser definida. Nunes (1996) é da opinião de que o século XIX é a data que marca o início do desaparecimento do clítico. A causa da mudança é devida à alteração na direção de cliticização fonológica. As primeiras ocorrências de próclise em relação ao verbo principal acontecem nas locuções verbais. De acordo com o autor, as crianças do século XIX estavam expostas a um sistema com um direcionamento de cliticização modificado, já que o sistema do PE e o do português antigo apresentam um resultado de cliticização fonológica da direita para a esquerda; diferentemente o PB registra uma estratégia da esquerda para a direita. O sistema apresentava um licenciamento de onset da sílaba para os clíticos de terceira, diferenciando-os dos demais clíticos. Dessa forma, as crianças optaram por eliminar os clíticos de terceira, já que a outra opção seria a reconstrução do licenciamento de onset. Para Nunes, o clítico necessita de qualquer material fonológico que o preceda. De acordo com sua visão, dessa maneira surgiram os pronomes clíticos nulos e a utilização de pronome lexical para a função de objeto. O autor não menciona o fato de ainda haver a existência dos clíticos de terceira que conservam o seu onset. É de se notar que a estrutura do clítico de terceira ainda apresenta a variação no onset: ora lo(s), la(s); ora o(s), a(s). Cyrino retoma o tema do objeto nulo em sua tese de doutorado publicada em 1997. Dentre as diferenças entre o PB e o PE, ela destaca o fato de que o objeto nulo é sempre possível na variante européia, desde que o seu antecedente seja não-específico. Diferentemente do PE, então, o PB apresenta objeto nulo nos casos em que o seu antecedente é um Sintagma Nominal (SN) [-animado]. Esta é considerada a inovação do PB, pois o objeto nulo em português ocorre desde o século XVI. A freqüência de ocorrência de elipse, porém, torna-se muito alta no PB. Conforme esse panorama, a criança defrontou-se com a possibilidade de escolha entre preencher ou elidir o pronome clítico. A autora afirma que algum fator não-sintático deve ter contribuído para a escolha. Vai mais além, apontando para um componente fonológico como a possível explicação para a opção do falante por não usar o clítico neutro, quando exposto à opção pela elipse. Seguindo essa linha de raciocínio, ela toma emprestada a hipótese





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de Nunes (supra) e recua a data para o século XVIII, por ter encontrado em Gregório de Matos clíticos de primeira e de segunda pessoas em início absoluto de versos. A mudança foi se instalando, a seu ver, entre os séculos XVII e XVIII, porque as crianças começaram a ouvir cada vez mais elipses sentenciais e cada vez menos clíticos neutros, estendendo a elipse para todos os clíticos de terceira, quando o SN antecedente era [-animado] e preenchendo o objeto com pronome lexical quando o antecedente era [+animado]. Cyrino não questiona o que levou as crianças a alterarem a direção de cliticização. Por sua vez, Santos (1998) mostra como a resolução dos choques de acento poderia demonstrar qual é o posicionamento do clítico nulo no PB. A observação passaria primeiramente pela comparação entre verbos transitivos e intransitivos. Estes últimos têm os seus choques desfeitos, mas àqueles isso só seria possível se o objeto ocorresse na sentença. Sem o aparecimento do objeto, os verbos transitivos não terão os seus choques desfeitos, pois o vestígio não o permite. Há caso em que os choques são desfeitos como naquele em que o objeto se move para a posição de Tópico e há um choque de acento entre o verbo e seu sujeito. No caso do objeto nulo, entretanto, o choque não é resolvido. Para a autora o objeto nulo seria um complemento inaudível, um pro, que ocorre sempre na posição de complemento de verbo, subindo apenas para checar caso e papel temático. Se essa descoberta não entra em choque com a hipótese de Nunes, pelo menos garante que o pronome clítico nulo permaneça na sua posição original. Por alguma razão ele não sofreu alteração. Kato afirma que houve uma reanálise no PB no que diz respeito aos pronomes. Para poder entender como o fenômeno de preenchimento de pronome em função de sujeito e o de apagamento de pronome como objeto estão relacionados, ela propõe que nas línguas naturais existem pronomes fortes e fracos. Os fortes são os pronomes default, possuem caso, e os fracos precisam ter a função checada. Em algumas línguas os pronomes fortes e fracos têm formas distintas. No PB existe a possibilidade de coincidência das formas forte e fraca. Esta última forma, na verdade, pode distribuir-se em pronome livre, clítico e afixo. Para Kato, o preenchimento ou não da posição de pronome, no PB, está relacionado com uma hierarquia referencial, cf. quadro abaixo, retirado de Kato (2003). Não-argumento

proposição/predicado

[-humano]

[+humano]

3.ª p.

3.ª p.

3.ª, 2.ª e 1.ª p

3.ª p. [-ref]

"

! [+ref]

QUADRO 1: Hierarquia referencial

Quanto maior for a referencialidade, associada com os traços [+humano] e de 1.ª e 2.ª pessoas, maior será o preenchimento com pronome lexical.

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O POSICIONAMENTO DO CLÍTICO EM LÍNGUAS BÂNTU



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Por ser um grupo muito numeroso e dos mais antigos a serem trazidos para o Brasil, o tronco lingüístico bântu é o que mais emprestou vocábulos ao PB. Castro (2001, p. 34) diz que “Entre os bantos, destacaram-se pela superioridade numérica, duração e continuidade no tempo de contato direto com o colonizador português, três povos litorâneos: 1) bacongo, 2) ambundo e 3) ovimbundo.” O povo umbundo teve presença maior no centro-sul do Brasil. Mostrar-se-á o comportamento dos clíticos em quimbundo e umbundo, para que se tenha uma idéia de como duas das línguas com maior expressividade no Brasil colônia como um todo apresentam traços lingüísticos que as aproximam do PB. Nessas línguas o verbo exige alguns pronomes complementos a ele antepostos, como se pode ver nos esquemas infra. Os pronomes pessoais em línguas bântu obedecem a uma divisão entre os pronomes absolutos, que designam as pessoas gramaticais, e os pronomes prefixos, que são posicionados em próclise. Independentemente de haver um SN ou um pronome absoluto como sujeito, o verbo exige a colocação de pronome prefixo com função de sujeito. Em seguida vem o pronome infixo em função de objeto. Isso quer dizer que ambos ocupam posições antepostas ao verbo. Vejamse os exemplos em quimbundo4, umbundo5: a) pronomes pessoais absolutos são os que designam as pessoas gramaticais: Quimbundo 1. 2a. 3ª. a

Singular eme ‘’ éie ‘’ muene (éie)

Umbundo Plural éxie enhe óuo (ó)

Singular ame ove eye

Plural etu ene ovo

QUADRO 2: PRONOMES PESSOAIS ABSOLUTOS

Valente (1964) informa que, além das afirmativas, os pronomes absolutos em umbundo também apresentam formas intensiva-interrogativas e negativas. b) pronomes pessoais prefixos são os que determinam o sujeito e ligamse ao verbo:

4 5

Dados retirados de Maia (1964). Dados retirados de Valente (1964).







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Quimbundo













Singular ngi ou ngó u o

1. 2a. 3ª. QUADRO 3: PRONOMES PESSOAIS PREFIXOS a

Umbundo Plural tu mu a

Singular ndi / nda o / wa o / wa

Plural tu / twa vu / vwa va / va

Já na estrutura verbal, em umbundo, apresentam-se formas afirmativas e negativas para o presente distintas do pretérito. No Quadro 2, apresentam-se apenas as formas afirmativas do presente e do pretérito, respectivamente. c) Pronomes Pessoas infixos são os que se colocam entre o prefixo e o radical do verbo e exercem função de complemento. Quimbundo Singular ngi ku (u) mu (u)

1. 2a. 3ª. QUADRO 4: PRONOMES PESSOAIS INFIXOS a

Umbundo Plural tu mu a

Singular Ndi Ku U

Plural tu ku va

Existem as especificidades de cada língua. Em quimbundo, por exemplo, o pronome reflexivo é posto como sufixo, enquanto em umbundo ele é posto antes do verbo. Esta, porém, não é a única maneira que o quimbundo apresenta pronome sufixos. Maia (1964) lista as exceções como no caso de complemento dos verbos ku-kala, ou ku-ete la, ou como complemento pessoal duplo. (i) “Os verbos ku-kala la ou ku-ete la (ter), se têm complemento que se lhes siga, levam sempre o pronome pessoal sufixo” (Maia, 1964: 40); (ii) mesmo que não haja complemento que lhes siga, usa-se esse tipo de pronome; (iii) empregam-se com o verbo du-ete la, na mesma situação dos verbos no item anterior; (iv) Quando um verbo tiver como complemento direto os pronomes clíticos diretos de terceira pessoa; (v) quando o modo imperativo tiver por complemento um pronome que não diga respeito à primeira classe; (vi) quando um verbo for acompanhado de complementos pronominais direto e indireto, o complemento indireto é Infixo e o complemento direto Sufixo. Maia (1964) observa que os pronomes pessoais sufixos, quando utilizados com outros verbos, perdem o “la” e chamam-se “Sufixos Inclíticos”. Neste caso, o verbo passa a ter “acento” predominante na última sílaba. As línguas bântu, aqui utilizadas, apresentam colocação pronominal à direita do verbo, inclusive com perda de sílaba do clítico. É verdade, entretanto, que

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Quimbundo éie o-ngi-sole (ou osole) tu me gostas / ‘tu gostas de mim’

Umbundo wa-ku-chy-avela ‘já to deu’

Esses dados podem estar indicando que a colocação pronominal antes do verbo pode ter sido ocasionada pelos falantes de línguas maternas do tronco bântu, quando aprenderam a falar a língua portuguesa. O caminho que eles tomaram para isso deve ter sido exatamente aquele que os pesquisadores elencados na Seção 4 supra apontam, i.e., através da colocação pronominal em locuções verbais, foi encontrada a similaridade necessária com as línguas bântu. Daí então o traço se estendeu para todas as situações de posicionamento de clíticos. A data dos estudos de Cyrino recua apenas até o século XVIII. Resta ainda descobrir que fator poderia ocasionar o desaparecimento do clítico de terceira, uma vez que ele existia nas línguas bântu e que, em alguns casos, era posposto ao verbo, sem contar que, dependendo do verbo, perdia a sílaba inicial. A diferença entre o quimbundo e o português padrão é que na língua africana a posição onde fica o clítico sem a sílaba inicial passa a ter acentuação ascendente, algo oposto à modalidade européia da língua, já que esta tem o clítico como palavra átona. Isso não explica, no entanto, qual teria sido o fator social que colaborou para o surgimento do clítico neutro. Esta é a proposta que se pretende abordar na próxima seção.

5

O PREENCHIMENTO DE OBJETO EM LÍNGUA IORUBÁ

Os povos iorubá foram os mais influentes a partir do século XVIII, na Bahia. Eles formavam o grupo mais numeroso de africanos de uma mesma etnia. Foram eles que desencadearam duas grandes greves, na cidade de Salvador, nesse século. Os estudos que afirmam a hegemonia dos iorubá (nagôs) começaram por Nina Rodrigues, Jacques Raimundo e Renato Mendonça, em 1933. Outros estudiosos chegaram a defender a dominação categórica dos iorubá nos estudos sobre a presença africana na Bahia, segundo Castro (2001). Ela alerta para o fato de os bântu serem mais antigos e atuarem numa área muito maior que os iorubá (1998). Apesar de entender que os cantos eram majoritariamente iorubá, ela pensa que havia cantos de falantes nativos de outras línguas africanas. Sobre isso, Reis (1993) informa que houve uma predominância de iorubás nos cantos, que embora fossem organizações de trabalho que tinham interesses econômicos, eram redutos de grupos étnicos.

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esses não são os traços mais preponderantes, mas servem para ilustrar como deve ter sido possível a assimilação entre os traços bântu e os portugueses. Resta observar como se apresentam os pronomes em sentenças retiradas de Maia (1968) e Valente (1964), respectivamente:









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Não é de se estranhar que nessas organizações a língua utilizada tenha sido o iorubá (nagô). Para aqueles estranhos aos grupos que se interessavam pelos cantos, havia uma necessidade urgente em adquirir a língua. Arthur Ramos (1937) declarou que “A língua nagô é, de fato, muito falada na Bahia, seja por quase todos os velhos africanos das diferentes nacionalidades, seja por grande número de crioulos e mulatos” (apud MEGENNEY, 1978, p. 31). Na verdade, ainda hoje o que se chama de língua iorubá padrão na Nigéria é basicamente o resultado da eleição do dialeto de Oió, centro do antigo império do mesmo nome. O nagô é um dialeto periférico que certamente possui suas especificidades, algo que precisa ser melhor explorado. Diante de todo esse quadro, é possível supor que houve uma redução de tons na língua iorubá (nagô) falada na cidade de Salvador, durante o processo de contato com outras línguas africanas e a língua portuguesa. Portanto o processo de complemento verbal na terceira pessoa do singular, que operava exclusivamente com tons, sofreu um abalo muito grande. Em outras palavras, o clítico complemento em iorubá consistia em desdobramento da vogal do verbo monossilábico. Nos casos em que os verbos são providos de tom alto (MI), acrescenta-se um tom médio (RÉ) à vogal duplicada: MO PA Á ‘Eu matei-o’

MO FÊ ÷ ‘Eu adorei-o’

MO RÍ I ‘Eu vi-o’

MO MÖ Ô ‘Eu soube-o’

Mo mú un ‘Eu bebi-o’

Já nos casos dos verbos com tons baixo (DÓ) ou médio (RÉ), o alongamento da vogal é feito com tom alto (MI), respectivamente: Mo dà á. ‘Eu traí-o.’

Mo «e é. ‘Eu fi-lo.’

No dialeto padrão do iorubá falado atual, no território nigeriano, os falantes costumam omitir o pronome objeto. Principalmente quando o verbo tem tom alto (MI), ocasião em que o objeto esperado é o tom de descanso. A situação precisa ser estudada com maior atenção, para que se possa saber qual a freqüência de apagamento com todos os três tons, pois os usuários da língua nem percebem o fenômeno. Com exceção da segunda pessoa do plural, que sempre ocorre com tom alto (MI), todos os pronomes objetos apresentam a mesma padronização em relação à alteração do padrão de tom, como o faz o alongamento vocálico. O complemento de terceira pessoa dos verbos complexos é feito através da forma do pronome que tem o mesmo talhe do pronome possessivo: Mo fêran rë ‘Eu

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6

Kato (2003, digitado) encontrou uma relação entre os pronomes possessivos e pronomes complementos, no momento em que propôs a existência de pronomes fortes e fracos. No PB o uso dele/dela ocorre com a perda dos clíticos. Isso quer dizer que a aparência com o PB também se opera aqui. Segundo Kato “os possessivos pré-nominais são pronomes fracos, como os clíticos, enquanto os possessivos pós-nominais são pronomes fortes como o objeto pronominal ele/ela no PB”.

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amei-o’. Exceto nas segunda e terceira pessoas do singular, todas as formas de possessivos equivalem às formas de complemento objeto.6 Os processos fonológicos ocorrem nas línguas em situação natural de transmissão, ao longo do tempo. Em uma situação de emergência processos dessa natureza podem ser acelerados. Déchaine (2001) afirma que os tons em iorubá obedecem à seqüência MI>DÓ>RÉ, isso significa dizer que o tom mais forte é o alto, seguido do tom baixo e, por último, fica o tom médio, o qual realmente não pode ser classificado como um tom e sim a ausência de marca de tom, o repouso. Essa informação é resultante de análises autosegmentais de tons em iorubá. Assim, a verdadeira hierarquia, ainda segundo a autora, seria mais bem apresentada da seguinte forma: MI>DÓ>Ø. Isso é importante para o estudo da perda dos tons. Para Déchaine (i) os clíticos em iorubá falham em testes sintáticos padrões de palavras independentes: eles não podem ser modificados, associados, focalizados ou topicalizados, já as formas independentes permitem todos esses processos; (ii) clíticos diferem dos pronomes independentes correspondentes em termos de sua prosódia, à maioria dos clíticos falta tom inerente, enquanto as formas independentes exibem constantemente uma melodia tonal DÓ/RÉ. Além do mais, clíticos apresentam padrão silábico V ou CV, enquanto os pronomes lexicais têm a forma plena VCV canônica de substantivos comuns. A realização de tom MI contextualmente determinado com objetos clíticos é o efeito do ECP (Princípio de Categoria Vazia) fonossintático. DÓ não é um controlador de prosódia. O único modo para satisfazer o ECP prosódico é inserir MI. Resultado, há expansão automática de DÓ sobre MI, produzindo tom ascendente de superfície. O clítico de terceira pessoa copia a vogal do verbo, assim é a cópia que é anfitriã do MI inserido, produzindo uma superfície de contorno ascendente. Déchaine é da opinião de que as línguas escolhem entre pronunciar os clíticos nulos ou apagá-los, ou seja, apagamento de elementos nulos é uma opção paramétrica. Dessa forma, a primeira perda dos clíticos no iorubá, em sua variante baiana, poderia estar sendo operada nos verbos de tom alto, para, em seguida, atingir os outros verbos. Esse processo poderia ativar o ECP (Princípio das Categorias Vazias). Como já foi dito, porém, a possibilidade de apagamento dos outros tons também é plausível para o período colonial brasileiro, a exemplo do que ocorre no território nigeriano.





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Algo relacionado ao apagamento de sujeito e objeto em línguas africanas é um fenômeno conhecido como verbos seriais. Gregersen (1977), no seu panorama sobre as línguas africanas, afirma: Um traço distintivo de muitas línguas do Oeste africano é a construção verbal múltipla, conhecida na literatura como verbos seriais. [...] Tais construções têm sido analisadas como a redução ou compressão de um número de cláusulas, cujos sujeito e objeto são os mesmos (1977, p. 49-50).

É de se notar que o autor refere-se ao fato de haver uma recorrência desse fenômeno em várias línguas africanas. Isso significa dizer que não interessa a especificidade de uma língua, mas o caráter geral que um determinado fenômeno possa ter para poder ser transmitido por falantes diversos. Não se ouve muito falar em apagamento de sujeito ou de objeto em línguas africanas. A tradição em lingüística considera tal fenômeno como sendo de verbos seriais. Isso implica dizer que a discussão sobre a língua iorubá leva a uma taxonomia que traz pouco fruto para este trabalho. Entretanto, é preciso reconhecer que junto à aparente justaposição de verbos, há uma verdadeira complexidade semâtico-lexical que já foi discutida por vários lingüistas e retomada por Láníran e »ónaiya (1988), de onde se percebe a confirmação de que existe um fenômeno chamado construções em verbos seriais. Neste trabalho, a despeito da complexidade do fenômeno em iorubá, a abordagem considera que as posições de sujeito e objeto não são preenchidas, às vezes simultaneamente, em iorubá, a depender do contexto, como se pode ver nos seguintes exemplos: (1) Ó lÍ ra ilá. ele foi comprou quiabo ‘Ele foi comprar quiabo.’ (2) Ó ra ilá j¹. ele comprou quiabo comeu ‘Ele comprou quiabo e comeu.’ No exemplo (1), o segundo verbo (ra) não apresenta preenchimento da posição de sujeito. Já no exemplo (2), o primeiro verbo apresenta as duas posições preenchidas, enquanto o segundo verbo, que tem o mesmo sujeito e o mesmo objeto, por questões sintático-semânticas, não tem nenhuma das posições preenchidas. Para que não haja dúvida de como uma sentença em iorubá pode apresentar dois verbos em parataxe com elipse de sujeito e/ou complemento é de bom alvitre que se informe a respeito do fato de que esse tipo de sentença

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(1a) Ó lÍ ‘Ele foi.’ (1b) Ó ra ilá. ‘Ele comprou quiabo.’

(2a) (2b)

Ó ra ilá. ‘Ele comprou quiabo.’ Ó j¹ ilá . ‘Ele comeu quiabo.’

Há ainda a possibilidade de se retomar o sujeito sem que ele tenha sido citado na sentença anterior. Aqui se opta por apagar a posição de sujeito do último verbo em função de se saber o beneficiário da ação do verbo anterior, tanto quanto a posição de objeto, como se pode averiguar no exemplo a seguir: (3) Ó ra ilá fún mi j¹. Ele comprou quiabo para mim comeu ‘Ele comprou quiabo para eu comer.’ Tal construção costuma ocorrer na modalidade oral do português brasileiro. Pode-se notar que é perfeitamente aceita na língua iorubá. Tal traço é perfeitamente dividido entre o português e o iorubá. Aquela é considerada língua pro-drop, enquanto esta apresenta morfologia fraca e, conseqüentemente, não deveria apagar a posição de sujeito. Láníran e »ónaiya (1988, p. 42), todavia, afirmam “Pelo fato do iorubá ser uma língua pro-drop, não é necessário repetir o sujeito na estrutura coordenada, mesmo quando se apaga o conector”. Isso quer dizer que cada vez mais se torna necessário debruçar sobre as línguas africanas para se descobrir quais estruturas lingüísticas podem ser consideradas possíveis e/ou compatíveis com a língua portuguesa (ou mais amplamente com as línguas européias modernas). De acordo com Déchaine (2001), o ECP fonossintático é um dos mecanismos de recuperabilidade na GU (Gramática Universal). A aprendizagem do iorubá era obrigatória para que fosse possível ingressar nos cantos, como já foi visto. O que se pode dizer é que os africanos de origens diversas tiveram dificuldades em assimilar o sistema de tons iorubá que não era composto por dois tons como nas línguas bântu (CASTRO, 2001, p. 33), mas sim por dois tons e uma pausa, como o quer Déchaine. Além do mais, já havia na própria língua a possibilidade de expressão nula tanto do objeto quanto do sujeito. Dessa forma, houve uma queda generalizada do complemento clítico de terceira pessoa, em iorubá, com conseqüente repercussão para a língua portuguesa falada pelos afro-descendentes.

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complexa é o resultado da junção de duas sentenças simples, que muitas vezes o falante aciona para que, em alguns casos, haja a eliminação de ambigüidade ou ênfase. Assim, os dois exemplos poderiam ser ditos da seguinte forma:









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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS









Durante a exposição dos dados teóricos por todo este trabalho, fez-se uma tentativa de demonstrar como os africanos falantes de línguas dos troncos lingüísticos mais influentes, bântu e defóide, reconstruíram a língua portuguesa, emprestando-lhe as estruturas de suas línguas maternas. Para tanto, foram utilizados os traços gramaticais do português – o preenchimento dos clíticos e o surgimento do clítico nulo – e estabelecido um confronto com os dados das línguas quimbundo, umbundo e iorubá. As coincidências podem não ter sido criadas pelos escravos, no momento da aprendizagem. Foi graças ao novo ambiente em que a língua se instalou, porém, que se criaram situações para que o clítico nulo tomasse as dimensões constatadas pelos estudos lingüísticos atuais. Sugere-se também que a ocorrência da generalização do fato no português foi possível graças à dispersão dos falantes da variante afro-brasileira do português, ocasionada pelo tráfico interno de escravos, no momento da proibição do tráfico transatlântico.

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Jan Edson Rodrigues-Leite *











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OBJETOS-DE-DISCURSO NA CONSTRUÇÃO DO SABER EM AULA (Discour se-objects in Kno wledg uction) (Discourse-objects Knowledg wledgee Constr Construction) ABSTRACT This article discusses sociocognitive approaches to knowledge acquisition in Portuguese lessons focusing mainly on the process of reference to objects of everyday life through categorization and manipulation of discourse-objects. It assumes interactional conversation as the basic locus for negotiating collectively knowledge and for dealing with the rather abstract and fuzzy concepts of cognitive reality. Keywords: Conceptualization; Referenciation; Discourse-Objects; Interaction RESUMO Este ar tigo discute enfoques sociocognitivos da aquisição do conhecimento em aulas de Português, destacando principalmente os processos de referência aos objetos da vida cotidiana, através da categorização e manipulação dos objetos-de-discurso. Assumimos a interação na conversa como o ‘locus’ básico para a negociação coletiva do conhecimento e para se lidar com os conceitos bastante difusos e abstratos da realidade cognitiva. Palavras-chave: Conceptualização; Referenciação; Objetos-de-discurso; Interação

INTRODUÇÃO “Os objetos-de-discurso não se confundem com a realidade extralingüística, mas (re)constroem-se no próprio processo da interação. Ou seja: a realidade é construída, mantida e alterada não somente pela forma como nomeamos o mundo, mas, acima de tudo, pela forma como, sociocognitivamente, interagimos como ele: interpretamos e construímos nosso mundo por meio da interação com o entorno físico, social e cultural” (KOCH, 2003).

A análise dos processos de categorização, feita do ponto de vista sóciocognitivo, permite mostrar que as categorias são sempre construídas em um contexto interacional, de forma situada e para fins práticos. A questão da adequação referencial, neste sentido, não pode ser vista a não ser como concebida em si mesma, construída local e interativamente e não dada por critérios a priori em relação com uma realidade independente (Cf. MARCUSCHI, 2001, KOCH, 2001, MONDADA, 1994, 2001).

* PROLING/ UFPB.







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A referenciação, assim concebida, não privilegia a relação entre as palavras e as coisas, mas a relação social intersubjetiva, na qual as versões do mundo são publicamente elaboradas e avaliadas em termos de sua adequação às finalidades práticas e às ações em curso dos enunciadores. Os objetos-de-discurso, para este efeito, não são concebidos como expressões referenciais em relação especular com os objetos do mundo ou com sua representação cognitiva, mas como entidades que são interativamente e discursivamente produzidas pelos participantes no desenrolar da enunciação. Em outros termos, o objeto-dediscurso não remete à verbalização de um objeto autônomo e externo ao discurso e também não é um referente a ser codificado lingüisticamente (Cf. MONDADA, 2001, MARCUSCHI, 2001, KOCH, 2001, 2003). Se a análise interacional é vital para se argumentar em favor do caráter dinâmico e construído das categorias, ela não resolve o problema das marcas lingüísticas que são observadas nesta construção. Com efeito, torna-se necessário atentar para a forma como a categoria permite progressivamente a inferenciação. (Cf. MONDADA, 1994, p. 98). A análise dos processos inferenciais permitiria conceber os conhecimentos lexicais não como um dado regulador da língua, mas como um material constantemente re-trabalhado durante o discurso. A interação produzida através das trocas conversacionais é dotada de algumas propriedades dialógicas que permitem ao analista chegar aos processos de inferência de sentido. Uma destas propriedades é a possibilidade de negociação das interpretações entre falante e ouvinte, cujos julgamentos são confirmados ou mudados segundo as reações que eles produzem no interlocutor. Assim, não é possível que um único enunciado produzido pelo falante seja suficiente para que o ouvinte faça inferência de tal ou qual interpretação. A segunda propriedade é a afirmação de que a conversação contém, em si mesma, evidências internas do que será seu resultado. Gumperz (1982, p.114) dá como exemplo dessa propriedade a possibilidade de os participantes compartilharem ou não das convenções interpretativas, ou de serem bem sucedidos ou não em atingir os fins da teoria comunicativa. As propriedades do discurso são, assim, estabelecidas pelos participantes, de forma situada e não de forma geral, atenta às contingências da interação. Estas contingências emergem no desenvolvimento seqüencial em que os tópicos são introduzidos e desenvolvidos de forma colaborativa. Pode-se dizer que tanto em caso de acordo como de desacordo na construção colaborativa, os objetosde-discurso são coletivamente elaborados pelos participantes. Esta co-elaboração é possível graças à forma como os participantes mobilizam os recursos gramaticais na interação face a face. Mondada (2001, p. 7) insiste no caráter dinâmico e localmente construído dos objetos-de-discurso na interação social, na análise menos voltada para os seus conteúdos semânticos do que para os processos através dos quais os participantes os elaboram discursivamente. Os objetos-de-discurso são antes de

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1. O ENFOQUE SÓCIO-COGNITIVO À CONSTRUÇÃO DE OBJETOS-DE-DISCURSO Um dos problemas levantados para estudo dos tópicos discursivos e dos objetos-de-discurso é o da especificação dos efeitos de estruturação observáveis no discurso que remetem aos processos cognitivos. A escolha e a formulação de um objeto-de-discurso implicam em processos de categorização ligados não somente à denominação do objeto, mas, mais amplamente, à sua forma discursiva. A problemática da construção dos eventos comunicativos corresponde em grande parte a uma questão de conceptualização dos fenômenos para certos fins práticos. Neste quadro, Coulter (1983, p. 123) sublinha o interesse no que Wittgenstein chamou de critérios para a conceptualização prática da vida ordinária. “Os critérios são evidências defensáveis e convencionais para a constituição de fenômenos e são indissoluvelmente ligados à distribuição diferencial dos interesses práticos na existência social”. As categorias ordenam, assim, a descrição dos acontecimentos em questão; elas são também os processos genéricos de controle social; organizam e regulam a forma como se constrói um novo saber. Os dispositivos de categorização são contextualmente pertinentes, dependem da atividade em curso e de suas finalidade práticas. No curso das atividades, os falantes elaboram objetos-de-discurso que são, assim, dispositivos praxeológicos que se prestam aos processos de referenciação, construídos localmente para atender às contingências comunicativas dos falantes. Através deles, os objetos de conhecimento vão sendo introduzidos, reconceptualizados, ou abandonados, de acordo com as exigências contextuais e provisórias da interação face a face. A análise dos eventos abaixo mostra como estes movimentos acontecem à medida que os participantes da aula se engajam em atividades coletivas e negociam os sentidos destas atividades, no curso das quais focalizam determinados objetos e constroem as conceptualizações necessárias para o significado das ações discursivas. É dessas conceptualizações que emergem os objetos-dediscurso necessários para a construção do conhecimento.

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tudo definidos pelos interactantes – antes mesmo do que pelo analista da conversação. Os participantes recorrem aos recursos gramaticais que utilizam para os fins práticos, improvisando-os de forma situada, explorando-lhes as propriedades típicas, mas também fazendo emergir de outros princípios de ordem, de forma local, contingente, e ligada à ação.





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Transcrição1: ‘Borra’ | Aula de Português| Ortografia e Compreensão Semântica| Revisão)













1.A= 2.P= 3.A= 4.P= 5.A= 6.AA= 7.A= 8.P= 9.A1= 10.P=11 12.A1= 13.A1= 14.P= 15.A= 16.P= 17.A2= 18.P= 19.A= 20.P= 21.A1= 22.A= 23.A2= 24.P= 25.A1= 26.A= 27. P= 28.A= 29.A= 30.P= 31.A2= 32.P= 33.A= 34.A= 35.P= 36.A= 37.A= 38.A= 39.P= 40.A= 41.P= 42.A1= 43.A= 44.P= 45.A= 46.A1=

ô tia ô tia...] bórra num é você bórra alguma coisa? o dicionário pode lhe dar muito conceito sobre a palavra bórra o meu dicionário tá dizendo que borra e::::h / e:::h (3s) Diz! é que eu tem/ ((risos)) Aqui sem/sem se-di-men-to de alguma... fezes... o outro é re-si-du-o Resíduo achei tia borra primeiro você/ primeiro tá dizendo pode ser fezes... então borra pode ser fezes ...qual o outro exemplo que você tem aí? [resíduo/resíduo pode ser resto/que mais? o meu também tem resíduo] (falas simultâneas de alunos e professora) “que fazem tecidos mais grosseiros” ((lendo)) De que fazem tecidos mais grosseiros Tia... tia... sedimento de um liquido... [quer dizer que borra/ Fezes... resíduo] ((lendo)) Ah:: resto de um líquido... né? ... resíduo... fezes como assim? [resíduo resíduo de seda]... resíduo de seda de que se fazem // como ela é? é toda fofinha Fofinha Fofinha [fofinha... lisinha... macia] agora é/ quem ta com jeans? Ela! [Juliana quem ta]com malha? e::u e::u moleton? Eu pronto/moleton e malha ... pega no teu moleton Eu num tenho menti::ra Vai no que for ... pega no teu short/é macio como seda? Não [é::::h Na::o] Pega agora na tua camisa é mais dura do que [(xxx) (falas simultâneas de alunos) Peraí] compara a tua camisa com a tua bermuda ... tem diferença? Tem! Tem pouquinha então olha ... a camisa/macia/ a camisa é um pouquinho grossa mas ela é macia o calção é mais áspero (falas simultâneas de alunos e professora) o short é mais grosso e a camisa é mais fina

Exemplo 1 1

Convenções da transcrição utilizadas: 1. (...) = qualquer pausa; 2. (XXX) = trecho não compreensível; 3. ::: = alongamento de vogal; 4. PAgina = ênfase; 5.fa-zer = silabação; 6. ((comentários))= comentários do observador; 7. [ ] = sobreposição de voz localizada; 8. A= aluno; 9. P= professor.

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A discussão deste evento se inicia sobre a grafia de palavras com dígrafo ‘rr’. Mais uma vez, ao procurar no dicionário o sentido de uma das palavras introduzidas por P, o aluno se depara com uma cujo significado é duplo. A introdução desta palavra na discussão em curso consiste na confrontação que o aluno faz entre um sentido já conhecido por ele, para o qual ele pede a confirmação de P (linha 1), e outro sentido apresentado pelo dicionário. Ao invés de responder ao pedido de confirmação feito pelo aluno, P (linha 2) introduz na discussão a funcionalidade do dicionário de poder fornecer muitos conceitos e significações para uma palavra, ao fazer isso rejeita a significação de A como a única possível. No entanto, P parece prever que a solicitação do aluno deve-se à estranheza de ter encontrado uma significação imprevisível para o termo em questão. As expectativas de P se confirmam quando A (linha 3) reluta em dizer a significação encontrada para a palavra em foco, utilizando marcadores de hesitação (alongamento vocálico) por mais de três segundos. Ao notar que a hesitação de A é resultado da significação exótica da palavra no dicionário, P insiste (linha 4) que A revele esta nova concepção. Mais uma vez, porém A se recusa a revelar a conceptualização encontrada, alegando ter perdido a página que a contém (linha 5). Isto causa o riso dos outros alunos (linha 6), já que eles parecem saber o conteúdo que A não quer revelar, e como o próprio A, parecem temer um futuro estranhamento de P ante à significação em questão. O aluno finalmente cede à pressão, descontraído pelos risos dos colegas, e resolve revelar o conteúdo em foco (linha 7), que se trata dos sedimentos de fezes e resíduo. O motivo da relutância de A foi o fato de ser responsável por trazer à aula uma palavra considerada grosseira, o que poderia ser uma atitude de desrespeito à professora, e causar algum tipo de constrangimento. Aparentemente, as suspeitas de A quanto à primeira parte do conceito são confirmadas, já que a única parte do enunciado que P ratifica é justamente aquela que contém ‘resíduo’ apenas (linha 8). No entanto, após outro aluno encontrar o mesmo conceito, P faz a relação dos possíveis significados para o termo, incluindo a noção de fezes e resíduo, porém focalizando, mais uma vez, o item resíduo (linhas 10 e 11). Neste momento a discussão sobre a noção de ‘sedimentos de fezes’ é abandonada e a noção de resíduo é reconceptualizada em outra entrada para o termo borra encontrada no dicionário por A1 (linha 12) ‘de que se fazem tecidos mais grosseiros’. Apesar disto, outras noções continuam disputando o foco da discussão como aquela introduzida na linha 15, por exemplo, ‘sedimento de um líquido’, ou mais uma vez a noção de ‘fezes’ re-introduzida na linha 17, interrompendo a tentativa de conceptualização de P (linha 16) do exemplo anteriormente dado por A na linha 15. Na linha seguinte (18) P ratifica tanto 15, quanto 17 repetindo o turno dos alunos A e A2 ‘resto de um líquido, né?’, ‘resíduo, fezes’.





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Apesar de todas estas noções entrarem em negociação como objeto-dediscurso focalizado, é a noção de resíduo que é eleita por P e AA para ser expandida como objeto de conhecimento e introduzir nova conceptualização, através da pergunta de A (linha 19) ‘ ‘como assim resíduo?’ A professora aproveita a inclusão desta categoria no discurso em desenvolvimento para reconceptualizar a noção introduzida anteriormente na linha 14 como referência aos tecidos grosseiros fabricados a partir da ‘borra’. Neste momento, um novo objeto-de-discurso é mobilizado na construção do conhecimento sobre a significação de resíduo e borra – a noção de resíduo de seda. É interessante, neste ponto, como P interrompe seu próprio turno de explicação do que é resíduo de seda para perguntar aos alunos ‘como ela é?’. Neste caso, ela refere-se à própria seda e não ao seu resíduo – processo de referenciação que não causa problema aos alunos, em função das estratégias já utilizadas na aula para decompor o objeto-de-discurso em categorias isoladas. Por causa disto é que os alunos qualificam ‘ela’ como sendo lisinha e fofinha (linhas 21-23), processo de adjetivação compatível com a seda. Após ter construído a referenciação da categoria seda – parte do objetode-discurso necessário à compreensão do objeto de conhecimento em foco, P compara a sensação da seda, descrita pelos alunos anteriormente, à sensação do jeans (linha 24), da malha (linha 27) e do moletom (linha 30) para que os alunos sejam capazes de identificar a diferença entre a seda e seu resíduo. Para construir este objeto-de-discurso, os alunos em nenhum momento tiveram real acesso à sensação da seda nem de seu resíduo, mas puderam, através de suas experiências pessoais, construir para fins práticos uma relação de identidade em que puderam projetar tecidos finos como o da camiseta (linha 39) no domínio da seda, e tecidos grossos como o da bermuda, calção, ‘short’ (linhas 41, 45, 46) com o domínio dos resíduos de seda. Deste modo, os objetosde-discurso são construídos coletivamente pelos interactantes para explicar uma realidade provisória, praxeológica, que atende às demandas comunicativas locais.

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2. ELABORAÇÕES COLETIVAS NEGOCIADAS LOCALMENTE PELOS PARTICIPANTES DA INTERAÇÃO





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Transcrição: “Borra de Vinho” | Aula de Português| Ortografia e Compreensão Semântica| Revisão 1. P=234

5. A= 6. P= 7. P= 8. A= 9. A= 10. P= 11. A= 12. P=13

14. A= 15. P= 16. A= 17. AA= 18. P= 19. A= 20. P= 21. AA= 22. A= 23. A= 24. P= 25. A= 26. P= 27. A= 28. A= 29. P= 30. A= 31. P=

(...) pronto/aí ela definiu num instante/o short é mais grosso e a camisa é mais fina/ um mais fino e outro mais grosseiro ... olha borra então pode ser fezes já pensou olha ... quando vocês não usam a borracha/ quando vocês não usam a borracha (falas simultâneas de alunos) O caderno fica [sujo você bo:::rra me::smo] (falas simultâneas de alunos e professora) Eu quero novos conceitos da palavra borra aqui::: (falas simultâneas de alunos) Ô tia ... aí eu fui procurar borra encontrei a palavra borrão ... aí encontrei borrar aí encontrou borra Foi olha aqui... nesse dicionário aqui tem ((lendo)) sedimento de um líquido como tem no seu a::h fezes... ah/borra... bôrra... no caso seria... do vinho... que isso quer dizer gente? (o restinho) do vinho O restinho?... quem já viu alguém fazendo vinhos? Eu já Eu ... eu (falas simultâneas de alunos e professora) ta /e eles usam tudo? eles usam uva tudo [da uva? Na::::o] É::::h Sei não O que é que eles usam? O li:quido/só o líquido E o que é que fica? O caroço ... a casca O caroço É o resíduo Tia ... o que é que tiago disse (falas simultâneas de alunos) É o que sobra exatamente (falas simultâneas de alunos e professora) (...)

Exemplo 2

Dando continuidade à construção de objetos-de-discurso para a elaboração de versões do conhecimento em ação na sala de aula, P retoma da questão da ‘borra’ como sendo ‘fezes’ ao fazer a analogia das ações dos alunos ao não utilizarem a borracha quando cometem um erro ao escrever no caderno com as ações fisiológicas de defecar. Assim, P se apóia na construção de uma metáfora conceptual ‘borrar é defecar’ que se traduz em ‘sujar o caderno de tinta é sujálo de fezes’ (linhas 2 e 3).







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Tal concepção é tomada de forma mais branda pelo aluno (linha 5), no sentido usual de sujar, porém P exagera a entoação dos termos ‘borra’ e ‘mesmo’, alongando a primeira vogal de cada palavra, para indicar que o sentido pretendido por ela é o metafórico. Deste modo, observamos P operar uma reconceptualização da significação da palavra ‘borra’ através de uma operação mental de integração conceptual, cujas projeções e seleções, a partir dos dois sentidos de borrar ‘sedimento de fezes’ e ‘manchar o caderno à tinta’, resultam em um espaçomescla contendo a metáfora conceptual descrita acima. Dado o caráter verdadeiramente exótico da conceptualização de P, justifica-se a relutância inicial de A de introduzir o conceito em primeiro lugar, conforme observado na análise da transcrição anterior. Um novo objeto-de-discurso é introduzido nas linhas 12 e 13 – ‘borra de vinho’, cuja significação começa a ser negociada imediatamente após sua inserção, quando A apresenta ‘restinho’ do vinho (linha 14) como tentativa de conceptualização. No turno seguinte de P (linha 15) a repetição da fala de A em entoação descendente de pergunta indica uma ação de reparo de P quanto à propriedade do termo ‘restinho’. P, deste modo, leva o aluno a reparar seu próprio turno ao responder a questão colocada, porém como a pausa entre a pergunta e a continuação do turno de P é curtíssima (aproximadamente meio segundo), o aluno não é capaz de efetuar o reparo. O encadeamento de P neste mesmo turno é uma pergunta ‘quem já viu alguém fazer vinho?’ que é seguida pelas respostas dos alunos em termos de sim ou não (linhas 16, 17). P intercala questões entre as respostas dos alunos, que expandem a pergunta inicial no tocante ao objeto em foco. Uma destas questões retoma a noção de borra como resíduo (linha 18) ‘eles usam tudo?’ e introduz uma seqüência de perguntas e respostas que têm por finalidade negociar as versões que os alunos possuem sobre o tópico com as que o próprio P apresenta. Assim, as respostas de AA encaminham para a construção do objeto em discussão: linha 19 = eles usam uva; linha 21 = eles não usam tudo da uva; linha 25 = eles só usam o líquido; linha 27 = sobram o caroço e a casca. Na linha 29, P efetua a compressão de todos os processos mencionados pelos alunos na palavra ‘resíduo’. Neste exemplo, P conduz os alunos a tomarem suas próprias respostas como solução para a construção do significado do objetode-discurso em evidência. O exemplo revela a dinâmica com que os falantes processam as categorias e conceptualizações existentes na língua com a finalidade de elaborar versões locais da realidade de objetos de conhecimento. Os movimentos de objetos-de-discurso vão além da simples transição de tópicos da conversação, inseridos pelos participantes no curso da interação. São negociações efetuadas in situ, dependentes do contexto local e do conhecimento em construção. Os exemplos aqui analisados refletem o saber como objeto de construção coletiva, manipulado pela ação conjunta dos indivíduos, que o consideram no limiar de processos mentais e processos sociais, e que não existe de forma independente do indivíduo socialmente inserido.

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3. OBJETOS DINÂMICOS MOBILIZADOS NA CONSTRUÇÃO DE VERSÕES DA REALIDADE





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Transcrição: “Academia Brasileira de Letras” | Aula de Português| Ortografia e Compreensão Semântica| Revisão 1. P= 2. A= 3. A1= 4. P= 5. A= 6. P=7 8. AA= 9. P= 10. A= 11. P= 12. A=13 14. A1= 15.P= 16 17. A= 18. P= 19. P= 20. P=21 22. A= 23.A1= 24.A2= 25. P=26 27. A= 28. P= 29. A= 30. P= 31.A1= 32. P= 33.AA= 34. P=35 36.AA= 37. P= 38.A1= 39. P= 40.A1= 41. P=42 43.A2= 44. P= 45.AA= 46. A= Exemplo 3

Olha tem bô::rra e as pronúncia [borra borrar] bôrra? É / antigamente bórra e borra É/ah gosto... mariele/ó::::olha o ó... ó:::/pode fazer ... [óóó::::::h ... ôôô:::::::h Óóó::::::h ... ôôô:::::::h] Tem diferença? Tem Um é mais aberto o outro é mais fe-[cha-do chado]((alunos brincam fazendo os sons óóó::::::h ... ôôô:::::::h)) E porque bórra aqui ta [com acento? cristiano] ... calma/com licença/com licença/ a-na-ca-ro-li-na-pres-ta-a-ten-ção/felipe ... david ... elisiane olha pro quadro/humberto levanta o corpo ... anderson! tia por que o ó de borra não tem acento? Pois é/ antes tinha o acento (2s) mas ... resolveram tirar o acento existia uma lei/ ((professora faz silêncio de 15’’ para os alunos prestarem atenção)) em 1943 ... olha só em 12 de agosto de 1943 ... a academia brasileira de letras ... já ouviram falar na academia brasileira de letras ... num é? Não eu já ... eu já eu já ouvi na televisão (...) com’eu falei pra vocês é::h em 12 de agosto de 1953... a academia brasileira de letras se reuniu/ 12 de agosto? criou o vocabulário ortográfico [da língua portuguesa... É o aniversário] de (xxx) da academia de ciências de lis-boa... onde é que fica lisboa? em Portugal E porque será que/ na inglaterra também ô... ulisses / e porque será que eles pegaram o vocabulário da academia de ciências de lisboa e trouxeram para ser analisado aqui na/ [porque lá tinha mais palavras que aqui? academia brasileira de letras] porque lá tinha mais palavras que aqui? será? porque queriam (xxx) (falas simultâneas de alunos) porque será que eles trouxeram o/a/o vocabulário ortográfico de portugal para ser analisado com o vocabulário ortográfico/ eu sei! pra dizer que tem as mesmas [línguas A::::h] porque nós temos (falas simultâneas de alunos) [porque portugal é muito (pequeno) porque portugal (fala) português ] (...)







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A professora retoma a discussão das palavras anteriormente conceptualizadas em aula (as versões de borra, transcrição 8), desta vez introduzindo o tópico da alternância entre duas modalidades da mesma palavra, uma das quais aparece no material didático, grafada com acento circunflexo ‘bôrra’, sendo pronunciada com vogal O fechada, enquanto a outra é grafada sem acento, tendo a vogal O pronúncia aberta. Imediatamente A (linha 2) relaciona a segunda versão do substantivo apresentado com o verbo discutido em sala, ‘borrar’, enquanto que A1 (linha 3) faz a opção pela primeira versão da palavra, focalizando o objeto através da repetição do mesmo seguido de entoação interrogativa, a qual demanda uma explicação da parte de P. Ato contínuo, a professora inicia uma conceptualização do termo escolhido por A1, introduzindo uma contextualização histórica da sua grafia. No entanto, é seguidamente interrompida por A que insiste na opção da alternância dos dois termos (linha 5). P opta por fazer uma tarefa explicativa desta alternância (linhas 6 e 7), exagerando a pronúncia da vogal O aberta e fechada, para que os alunos repitam e percebam por si sós a diferença entre os dois termos. Ao escolher os dois objetos ao invés de apenas um, P privilegia a questão fonológica e os traços dos fonemas em análise (linha 9). A conceptualização dos termos se dá, assim, em vista da análise segmental de abertura e fechamento da vogal O (linha 11). A1, porém, insiste na questão ortográfica e focaliza mais uma vez o termo acentuado com circunflexo (linha 14). Na seqüência, A faz uma escolha oposta à do primeiro aluno, segundo a qual questiona a ausência de acento no item cuja vogal O tem pronúncia aberta (linha 16). A escolha de A1 é aquela que recebe a ratificação de P, que retoma seu turno interrompido (linha 4) para falar da questão histórica do uso e queda do acento circunflexo de ‘bôrra’. Na tentativa de explicação deste fato, P introduz o objeto ‘Academia Brasileira de Letras’ (linhas 20-21), o qual apesar de não ser do domínio de todos os alunos (linha 22) não é definido pela professora, que simplesmente retoma a questão histórica da data da reunião da ABL para deliberação sobre a queda dos acentos. Na linha 27, A focaliza a data da reunião por uma questão diferente das razões que P apresenta – em virtude do aniversário de outro aluno. Este foco, porém, é imediatamente abandonado devido ao encadeamento de turnos de P que, na linha 28, traz à cena um novo objeto – o ‘vocabulário ortográfico da língua portuguesa’, na linha 30 dá continuidade ao turno anterior, referindo-se, desta vez, à ‘Academia de Ciências de Lisboa’ – objeto que vem contribuir para a conceptualização do conhecimento em construção sobre o vocabulário ortográfico. Em seguida, P associa os dois objetos trazidos à discussão – ABL e ACL – para contextualizar a necessidade da segunda na reforma promovida pela

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primeira (linhas 34-35). Seu turno é intercalado por uma nova tentativa de conceptualização que constitui a primeira versão do objeto-de-discurso em foco: ‘lá tinha mais palavras do que aqui’ (linhas 36 e 38), fazendo alusão ao lugarcomum de que a língua portuguesa européia é mais completa que a língua portuguesa brasileira. Esta versão inicial sofre um reparo de P (linha 39) em termos de um marcador de dúvida, feito através do verbo ser na terceira pessoa singular do futuro do presente do indicativo em entoação interrogativa que põe em xeque a informação veiculada por A1. O aluno, entretanto, inicia uma correção à sua versão, numa tentativa de colocar outra resposta em foco, porém é interrompido pelas vozes simultâneas de seus colegas, o que resulta em um enunciado inacabado (linha 40). A2 apresenta, por sua vez, uma segunda versão para o questionamento de P, reiterado nas linhas 41 e 42, segundo a qual demonstra uma visão unificante do português europeu em relação ao português brasileiro – ‘pra dizer que tem as mesmas línguas’ (linha 43). Esta versão começa a ser ratificada por P que encadeia um turno iniciado por uma marca de confirmação de que A2 encontrou a solução (linha 44), o marcador vocálico alongado ‘a::h’ – outra forma para o conhecido a-ha! ou eureca! – porém, é interrompido pelas falas de outros alunos, alguns dos quais encadeiam duas outras versões para o objeto em discussão. AA sugerem que pelo fato de Portugal ser muito pequeno há a necessidade de filiação/ acordo daquele país com o Brasil para fins de padronização da língua (linha 45), enquanto A sugere uma outra forma de enunciar a segunda versão que reflete a língua comum como esquema explicativo para a união da ABL e ACL na criação do vocábulo ortográfico – ‘porque Portugal fala português’ (linha 46). Os objetos-de-discurso são, assim, entidades constituídas pelas formulações discursivas dos participantes da interação. É para o evento discursivo específico que são levantados, delimitados, desenvolvidos e transformados os objetos-de-discurso que não lhe são pré-existentes nem têm estrutura fixa, mas que emergem e se elaboram progressivamente na dinâmica discursiva.





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4. NEGOCIAÇÕES CONTEXTUAIS DOS OBJETOS-DEDISCURSO





Transcrição: “Acentos Diferenciais” | Aula de Português| Ortografia e Compreensão Semântica|Revisão 1. P=2345

6. A= 7. A¹= 8. A²= 9. A³= 10. P= 11. A= 12. A1= 13. P= 14. A¹= 15. A²= 16. P= 17. A= 18. P= 19. AA= 20. P= 21. AA= 22. P= 23. A= 24. P= 25. A= 26. P=

pronto/ então veja bem/ segundo... segundo... segundo essas normas... tá certo? esses acentos (xxx) acentos chamam-se/chamam-se acentos diferenciais caíram... tá certo? caíram/ então a única solução que você tem pra descobrir é pegando o dicionário/ olhando a sua frase/ olhando seu texto e percebendo/ será que eu vou lê esta palavra aqui como bórra ou bôrra? (falas simultâneas de alunos) Borra Borra Borra Borra Borra/ porque essa aqui é borra? por causa (das palavras) [porque vem por causa das palavras derivadas]/ então o significado dessa palavra aqui é o quê? ah por isso que no dicionário tem duas vezes [a palavra É borra de errar de errar] /man-[man char] manmanchar! Ó borracha... / o que é que a borracha faz? Apaga Apaga a mancha... borrar é o nome/ É erra erra... isso É o nome do verbo [que borra É o nome do verbo]... e borrachudo?

Exemplo 4

A fala de P das linhas 1-5 reintroduz objetos-de-discurso previamente construídos – é o caso de ‘essas normas’, cuja referência é dada na construção de ‘novo vocabulário ortográfico (confira análise da transcrição 10); ‘esses acentos’ não possuem um referente delimitado, mas remetem a todos os exemplos elaborados por P e AA no curso das atividades em análise (bôrra, João Pessoa, etc.). Neste momento, ‘normas’ e ‘acentos’ são reapresentados com a finalidade de demonstrar que somente através do uso do dicionário é que o aluno pode chegar a uma versão correta da localização e qualidade do acento na palavra cuja pronúncia é duvidosa. A focalização do objeto ‘dicionário’ não encaminha o evento a uma construção de conhecimentos enciclopédicos, mas a uma tentativa de construção do modus operandi no contexto local – utilizando conhecimentos procedimentais para a elaboração de objetos-de-discurso.

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1. ‘esta palavra aqui’, dita pela professora, está situada em um contexto aparentemente bem definido e delimitado, sendo objeto de uma referência direta – refere-se a uma palavra, escrita no quadro negro, acompanhada de outras palavras, formando um bloco (borra – borrar – borracha – borrachudo). Assim, o fechamento ou abertura da vogal O é definido com base no contexto imediato em que ‘borra’ relaciona-se tão somente com palavras com as quais mantém uma relação de similaridade. 2. ‘esta palavra aqui’ para alguns alunos é tomada como referente ao que a professora de fato enuncia (motivo 1) enquanto que para outros alunos ‘esta’ e ‘aqui’ são relativizados às condições contextuais mais amplas que já foram objeto de discussão em aula (sendo as transcrições 8, 9 e 10 exemplares). Assim, nem ‘esta’ tem como referência direta a palavra que a professora aponta no quadro-negro, nem ‘aqui’ tem como referência direta a localização exata, no quadro-negro, do ponto em que a palavra se encontra.

A sobreposição de respostas diferentes se dá por uma razão simples: ‘esta palavra aqui’ como objeto-de-discurso relacionado ao motivo 1 é exatamente a versão já enunciada, e sua discussão ocorre através da relação de uma palavra escrita no quadro, inserida num bloco de outras palavras que lhe são adjacentes, para a qual a professora quer uma pronúncia com base estrita em sua localização. No entanto, a mesma palavra, como objeto-de-discurso relacionado ao motivo 2, está localizada no contexto mais amplo da aula no qual já foi alvo de discussão, inclusive quanto a significações exóticas e, por isso, marcadas (o que ativa mais contundentemente a memória de A e A2). Isto faz com que ‘esta palavra’ se torne um objeto de referência difuso, não-homogêneo, e, embora se trate apenas de um grupo nominal, ativa inúmeras significações. A palavra ‘aqui’, ao invés de referir-se apenas a um ponto no quadro, refere-se também ao uso de ‘borra’ no

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‘Será que eu vou ler essa palavra aqui como [bórra] ou como [bôrra]?’ Mais uma vez P apresenta o tópico já introduzido na linha 1 da transcrição 10 acerca da pronúncia do termo borra. Esta pergunta tem por função fazer com que os alunos consultem o dicionário e construam um conhecimento procedimental sobre a atividade em questão. Assim, a escolha por uma ou outra pronúncia é também a escolha de qual explicação mais se adequa ao contexto de uso. Obviamente, não é a mera consulta que define de uma vez por todas a possível literalidade da palavra como tendo um conceito ou outro, mas são as negociações localmente efetivadas que tornam os objeto-de-discurso em debate, verdadeiros objetos de conhecimento publicamente construídos e distribuídos entre os participantes da interação local. Isto se torna mais evidente nos turnos de respostas dos alunos, os quais, embora tenham consultado o dicionário, não são capazes de chegar a um consenso quanto à pronúncia da palavra (linhas 6-9). Dois motivos são apontados para esta falha:





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contexto de aula. ‘Aqui’ parece engatilhar muito mais a inferência sobre a sala de aula, o contexto de uso do termo ‘borra’, a localização deste uso na memória dos alunos, do que um mero endereço no quadro ou no dicionário. No entanto, a opção borra (com O tônico aberto) é ratificada pela professora e focalizada no restante da atividade, ao ser retomada por P (linha 10), que encadeia uma pergunta ‘por que essa palavra aqui é borra?’, a qual se trata de um esquema explicativo do referente contextual utilizado para se optar por este item e não o outro (bôrra). Neste caso, a escolha por uma pronúncia define que o contexto a ser focalizado é o endereço da palavra no quadro, em conjunto com as outras palavras que lhe são adjacentes (borrar – borracha – borrachudo), o que virtualmente elimina a possibilidade de apreciação da outra versão contextual que incluía as demais conceptualizações discutidas na aula. Assim, o objeto-de-discurso é definido de forma a privilegiar uma versão com referente bem definido – o que não significa que os alunos tenham sido forçados a escolhê-la, mesmo que muito tenham optado por outra – ratificada pelo discurso de P por corresponder a objeto da agenda de aula previamente definida, a relação de borra com as demais palavras que lhe são derivadas. Tal contexto não é apenas validado segundo os propósitos da aula, como também reforça o caráter institucional das ações do professor em sala de aula. Os alunos podem falar sobre quase tudo, porém é P quem define, em função de planejamento prévio, mas também em função de certas demandas locais do discurso, o que deve ser ou não focalizado. Assim, o objeto-de-discurso caracterizado acima pelo motivo 2, apesar de ser aparentemente produtivo, é desfocado em função de sua pouca relação com o tema central da aula. Além disso, aquela versão representa um parêntese na discussão que foi inserido pela inserção de um turno de um aluno (Cf. transcrição 8, linha 1) que, por um momento, foi privilegiado por P, mas que neste segundo momento é abandonado para que a agenda de aula – a construção de um conhecimento gramatical bastante específico – possa ser retomada. Deste modo, o turno de P (linha 10) não somente resolve o impasse da pronúncia da palavra em questão, mas também dá continuidade a uma discussão que havia sido abandonada, lembrando aos alunos da razão daquele termo em relação aos outros que lhe acompanham. Definido o contexto 1 como o mais adequado, passa-se a investigar a relação da palavra com as demais. A linha 11 é ilustrativa do fato de que ‘borra’ só tem razão de estar neste contexto por causa das palavras relacionadas a ela. O mesmo argumento é introduzido na linha 12 e completado através do encadeamento de P (linha 13), que retoma a noção de derivação anteriormente discutida, porém abandonada em virtude da digressão acerca de ‘bôrra’. Após negociação das questões contextuais, P e AA são agora capazes de promover a conceptualização de borra através da consulta ao dicionário. Observe que o uso

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A conceptualização se estende de forma a associar o item borra com as palavras borrar e borracha, de forma a deixar evidente que a escolha de borra ao invés de bôrra é devida à agenda de aula da professora e que o contexto para a conceptualização é aquele mais específico de um grupo de palavras escritas no quadro-negro. Isto fica claro na linha 20 ‘ó borracha, o que é que a borracha faz’ – em que a professora introduz o termo que até então não havia sido mencionado nesta rotina, para realçar sua função como instrumento de apagar manchas, ou seja, apagar borras, para em seguida introduzir o item ‘borrar’ (22 – ‘borrar é o nome’; 25 – ‘é nome do verbo que borra’). O que é construído até aqui se refere a um conjunto de palavras com fortes ligações semânticas entre si, assim como uma identidade morfológica que as põe em um único contexto. Essas ligações são descobertas pelos alunos à medida que a conversação avança e são negociados os contextos de uso dos objetos-de-discurso postos em ação da aula.

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do dicionário só tem razão de ser depois que os problemas contextuais e de referência são solucionados. A conceptualização, efetivada por A2 na linha 15 e pelo encadeamento de turnos e A e P até chegar na linha 19, revela que esta operação só foi possível graças à verificação de qual palavra consultada no dicionário fazia referência ao objeto-de-discurso em foco, no quadro de palavras derivadas borra, borrar, borracha, etc. Esta atividade contou com os seguinte passos: 1. definição de um contexto em que borra é lida com ô (fechado); 2. definição de um contexto em que borra é lida com O (aberto); 3. ratificação de 2 pela professora; 4. relação do objeto-de-discurso com as palavras que lhe são adjacentes (a questão da derivação); 5. associação de uma das entradas encontradas no dicionário com o objeto localizado em um campo semântico semelhante.





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5. OBJETOS-DE-DISCURSO E REFERENCIAÇÃO LOCAL









Transcrição: “Borrachudo” | Aula de Português| Ortografia e Compreensão Semântica|Revisão 26. P= 27. A= 28. A= 29. A¹= 30. A²= 31. A¹= 32. A= 33. P=34

É o nome do verbo]... e borrachudo? É:::h É uma borracha [grande É uma borracha grande?] É o pirralho que faz a borracha borrachudo... borrachudo é / (falas simultâneas de alunos e professora) tia... tia... tia... eu achei no dicionário e tem duas vezes a mesma palavra calma... calma... calma/ agora não vamos pegar no dicionário/ daqui a pouco vocês vão pegar... olha/ 35. A= o chiclete é borrachudo 36. A= achei tia... achei tia 37. A¹= ô tia... ô tia... por isso que tem duas vezes a mesma palavra no dicionário 38. P= [tá certo 39. A1= que olhando] eu achei bem umas cinco vezes aí tem de significado diferente 40. P= Diferente 41. AA= achei/ achei professora 42. A= tia achei (falas simultâneas de alunos) 43. P= calma fui/ calma/ calma/ calma/ calma/ calma priscila... com licença com licença você 44 vai ter outra oportunidade... se controle ((lendo)) bor-ra-chu-do que/ (3s) borrachudo... 45 bem aqui em priscila diz o seguinte “nome... comum... a vários... mosquitos... 46 hematófagos”/ peraí/ borrachudo aqui é nome de um mos[quito 47. AA= quito] 48. A1= tia ... (agente) chupa-sangue 49. A= peraí ... professora! 50. A= É o drácula 51. P= eu vou pegar o teu camila/ olha esse daqui diz o seguinte ((lendo)) 52. A= É o drácula 53. P= bor-ra-chu-do 54. A= Achei 55. P= A mesma coisa/ deixa eu pegar o de camila/ calma calma calma / 56. A= Achei 57. P= ah/ a mesma coisa/ alguém tem/ alguém tem conceito diferente? 58. A= eu! o meu tia 59. A= ei ... tia ... o meu ... tia 60. P= calma! mas é a mesma coisa 61. A= sendo que/ 62. P= ah! Tia aloisia encontrou/ calma 63. A= bicho que chupa sangue/ a mesma do meu ... tia 64. P= alguém só um momentinho/ com licença 65. A= carla ... tia 66. P=67 carla? o seu é diferente? que tem em seu dicionário algum conceito diferente da palavra borrachudo que não seja inseto 68. A= Eu 69. P= Você 70. A¹= já disse humberto ... oxe! 71. P= [humberto/ 72. A= chupador de sangue] 73. P= mas isso é um inseto ... humberto (falas simultâneas de alunos) 74. A¹= ficou de toca 75. A= tôca o que? me dá a toca Exemplo 5

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‘Borrachudo’ é a última palavra do bloco anterior e abre uma longa seqüência de negociações e inferências sobre o sentido de objetos diversos. Ao invés de chamarmos o termo objeto-de-discurso é preferível afirmar que ele engatilha um conjunto de tópicos que vão se tornando objetos-de-discurso à medida que as focalizações saem de um item para recair noutro. Deste modo, a atividade de aula transcorre como um grande mercado de significações que são leiloadas, trocadas, abandonadas e retomadas a cada movimento de focagem de um objeto-de-discurso e desfocagem de outros. As versões construídas para ‘borrachudo’ são ‘borracha grande’ e ‘agente que faz a borracha’. A primeira conceptualização (linha 28) é introduzida com base em uma interpretação do sufixo ‘-udo’ como aumentativo, por identificação com o uso de ‘-udo’ em palavras como ‘cabeludo’, ‘ossudo’, ‘narigudo’, etc. Esta versão é avaliada por outro aluno (A1), que se utiliza da repetição do enunciado anterior seguido de entoação interrogativa ascendente, o que indica uma demanda de reparo do enunciado produzido. Este tipo de procedimento é comum nas ações de reparo, sendo amplamente usado por professores. A segunda versão apresentada para o conceito (linha 30) ocorre a partir de uma colocação inadequada do sufixo de profissão ‘-eiro’ no item em questão. Esta colocação não aparece expressa no enunciado, mas o seu produto ‘é o pirralho que faz a borracha’ revela a interpretação inadequada do sufixo ‘-udo’ por ‘-eiro’. Mais uma vez A1 encadeia um turno em seqüência à fala anterior (linha 31). A discordância, desta vez, não é efetivada por ação de avaliação ou reparo, mas pela tentativa de introdução de outra versão. Esta é produto da consulta que o aluno faz ao dicionário, como fica evidenciado nas linhas 37 e 39 em que A1 afirma ter encontrado várias significações diferentes para ‘borrachudo’ sem, contudo, enunciá-las. A tentativa de apresentação de nova versão feita por A1 (linha 31) é interrompida pelas vozes simultâneas da professora e de A que diz ter achado o significado no dicionário. O fato de P não ter autorizado até aquele momento a consulta ao dicionário (linhas 33 e 34) pode também ter sido a causa pela qual A1 não continuou o encadeamento iniciado na linha 31. Uma outra versão é antecipada por A (linha 35) que desta vez não se trata de uma tentativa de definição do termo, mas utilização dele como adjetivo qualificador de chiclete. Em outros termos, o que A parece inferir é que, ao invés de se considerar a palavra como um objeto determinado, talvez se devesse considerá-lo como um determinante, ou seja, uma qualidade. Dada a insistência dos alunos em definirem ‘borrachudo’ segundo o dicionário, P faz a leitura de uma definição pronta encontrada por uma aluna ‘mosquitos hematófagos’ (linhas 45-46). A introdução de novo foco ao objeto produz, de fato, a passagem para um novo objeto-de-discurso em que alunos e professora se concentram na recontextualização de borrachudo como mosquito. Isto se reflete nas linhas seguintes em que os alunos retomam as versões feitas





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anteriormente mediante o uso do dicionário para ratificar a escolha deste novo objeto. A1 que já havia discordado das versões propostas por A e A2 (linhas 28 e 30) e tentado propor uma outra versão, sendo porém interrompido antes de concretizá-la, retoma-a na expressão ‘agente chupa-sangue’ (linha 48), conceito também encontrado por A3 que reclama com a professora pelo fato de não ter podido enunciá-lo devido à antecipação de A1 (linha 49). Interessante neste episódio é a reconceptualização proposta por A nas linhas 50 e 52, segundo a qual ‘mosquito hematófago’ (chupa-sangue) e ‘borrachudo’ são projetados em ‘drácula’ (outro possível agente chupa-sangue) numa tentativa de dar novo foco ao objeto-de-discurso em desenvolvimento. Todas as demais tentativas de fazer referência a ‘borrachudo’ não são suficientes para desfazer a focalização de mosquito hematófago, noção que é reiterada nas linhas 63 (‘bicho que chupa sangue’) e 72 (‘chupador de sangue’) segundo a mesma noção de inseto apresentada por P (linha 73) e, por isso, relacionada em identidade com o objeto em foco. P incita AA a buscar novas versões com vistas à passagem para um novo objeto-de-discurso, que é possivelmente parte da agenda de P e que ela deseja ver negociado. Este episódio demonstra o caráter contextualmente dependente dos objetosde-discurso que não remetem à mera verbalização de um objeto autônomo, apresentado como se fosse externo ao discurso em desenvolvimento, nem são referentes definidos que podem ser codificados lingüisticamente. Os objetos que constituem os tópicos do discurso são tratados e manifestados pelos participantes a propósito dos quais constroem localmente o conhecimento.

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6. OBJETOS-DE-DISCURSO À AÇÃO DO CONHECIMENTO





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Transcrição: “Cheque Borrachudo”| Aula de Português| Ortografia e Compreensão Semântica|Revisão 76. P= 77. P1= 78. AA= 79. P= 80. A= 81. P=82

Com licença que aloísia está lendo um conceito ... diga querida ... redonda e inchada ... em forma de uma borracha cheia ((lendo)) viu?? redonda [e inchada em forma é o que eu já tinha falado] olha/ mas é que eu queria juntamente/ eu queria juntamente é::: ... é::: levantar essa discussão ... entendeu? 83. A= porque musquito hein tia? 84. P=85 porque existe um mosquito chamado borrachudo que também pode ser é::: um objeto revestido de borracha 86. A= no meu tem/ 87. A= tia ... tia 88. A¹= Pneu ... tia 891. A= o meu tem/... 90. P= tem outro/ uma vez eu recebi um cheque borrachudo 91. A= um cheque borrachudo? 92. P= é um cheque borrachudo/ o que quer dizer isso? 93. A= que não rasgava 94. P= Não 95. A= um cheque de muito dinheiro? 96. A¹= de pouco? 97. A²= cheque borrachudo é cheque em branco 98. A= um cheque de [muito dinheiro 99. P= a:::::h ... muito pelo contrário] 100. AA= um cheque de pouco ... de pouco 101. AA= de pouco ... tia 102. P= Pior/ pior ainda ... pior 103. A= um cheque de um centavo em branco 104. A= Pior 105. A= um centavo 106. A¹= um cheque [em branco 107. P= não!] isso era bom demais 108. A= um cheque de um centavo 109. P= levanta a mão 110. A= não recebeu o dinheiro do cheque 111. P= ah isso mesmo/ não descontei o cheque ... sabe porquê?/ [porque não tinha/ 112. A= porque não tinha nenhum dinheiro 113. P=114 não tinha fundos na conta]/ chama-se cheque bor-ra-chu-do ... porque é que é borrachudo? 115. A= igualzinho ao de Humberto 116. A= porque é um cheque que 117. P= me empresta a borracha (falas simultâneas dos alunos)) 118. P=119 olha ... olha o cheque borrachudo o que é que ele faz/ olha o cheque borrachudo o que é que ele faz (( professora atira a borracha na parede e ela volta)) 120. A= Póim póim 121. A¹= ixe ... pular 122. A²= vai-se embora 123. P= embora? será que vai embora? 124. A²= Joga pra lá pr’ocê vê ... joga pra lá prevê se num vai-se embora 125. P= Olha ... olha ... olha só 126. P¹= Bate e volta 127. A= é o brinquedo/[ bate e volta 128. P= ele vai e volta] (falas simultâneas dos alunos)) 129. A= é um cheque falso/ um cheque falso (falas simultâneas dos alunos)) 130. P=131 depois você brinca com o borrachudo (xxx) calma ... olha a hora/ olha a hora/ vamos lá (falas simultâneas dos alunos)) Exemplo 6







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Um novo gatilho de inferências é disparado pelo uso do item ‘borrachudo’, de forma a construir/ pôr em foco um novo objeto-de-discurso. A professora insiste em que novos conceitos sejam encontrados pelos alunos para o termo em questão. Este enfoque promove uma conceptualização totalmente diferente da que vinha sendo construída até então e tem a ver com uma discussão que P supostamente quer promover, embora não tenha dado indícios iniciais nesta direção. Um participante da aula, uma professora em papel de observadora, apresenta a noção dicionarizada ‘redonda e inchada em forma de uma borracha cheia’ (linha 77) a qual é ratificada por P e enseja um gatilho que leva os alunos a elaborarem diversas acepções de ‘ borrachudo’. Esta acepção coloca em foco ‘borrachudo’ como sendo a) redondo; b) inchado e c) em forma de borracha. Segundo a fala de P (linhas 81 e 82), essa era a significação pretendida por ela, ou seja, a discussão da forma e material, ao invés da mera discussão do inseto, feita anteriormente. Em referência ao enunciado de P, uma aluna toma a discussão como exclusivamente voltada ao termo mosquito. Isto se dá porque essa discussão ocorreu de forma mais demorada, daí a inferência da maior importância do conceito de hematófago feita por A. A justificativa dada por P é que as duas discussões são importantes, embora ela venha a priorizar a última. É importante notar que o relativo ‘que’ utilizado por P na linha 84 não é referência ao termo ‘mosquito’, mas ao item lexical ‘borrachudo’. Assim, no decorrer da atividade os itens relativos à forma de borrachudo são comprimidos em ‘um objeto revestido de borracha’ (linhas 84 e 85). Numa tentativa de expansão e mesmo de definição deste novo objeto A1 exemplifica o conceito ‘revestido de borracha’ através do item ‘pneu’, o qual apesar de poder ser incluído na negociação local, é reparado por P e não aceito (linha 90 - ‘tem outro’), justamente porque a discussão que a professora possivelmente planejara começa a se desenvolver através da conceptualização nas linhas 84 e 85. Assim, na linha 90 a professora corrige a introdução que A1 faz do item ‘pneu’ utilizando outro exemplo que em sua opinião é mais apropriado para a discussão em curso: ‘uma vez eu recebi um cheque borrachudo’. Observe que, do ponto de vista dos encadeamentos dos tópicos e das ações em sala de aula, A1 tem toda razão de supor que o exemplo ‘pneu’ seja também apropriado, primeiro porque P ratifica uma noção de borrachudo que evidencia sua forma (inchado, redondo, em forma de borracha); depois porque P reconceptualiza a noção apresentada como ‘objeto revestido de borracha’. Estas duas ações são suficientes para ensejar um encadeamento de A1, que ilustra a reconceptualização de P ‘objeto revestido de borracha’ através do exemplo ‘pneu’. Entretanto, ao enunciar ‘tem outro... cheque borrachudo’ (linha 90), P coloca cheque e pneu como exemplos de objetos revestidos de borracha. P o faz

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desconsiderando as propriedades físicas de ambos os objetos, mas colocando em foco propriedades praxeológicas, ou seja, em um nível de conceptualização cheque e pneu são objetos completamente inidentificáveis entre si em vista de suas funções sócio-culturais, propriedades físicas como tamanho e material de confecção, etc. Em outro nível, apesar de permanecerem incompatíveis, cheque adquire uma das propriedades de pneu, devido ao desvio de uma de suas funções e propriedades. É fundamental relatar aqui que o empréstimo desta característica em nenhum momento acontece no domínio físico nem em termos absolutamente concretos. A propriedade borrachudo aplicada a cheque só é possível em um domínio onde os objetos possam ser integrados sem a consideração de seus traços puramente físicos. Assim, a projeção de borrachudo em cheque só é possível em um espaço mental em que traços de cheque sejam perdidos e outros sejam adquiridos, assim como o qualificador borrachudo perca características e ganhe outras. O aluno A estranha a versão apresentada por P exatamente em virtude de uma qualificação tão imprevisível para o termo cheque confrontada com o conhecimento prévio que possui sobre o item (linha 91). Reconhecendo o estranhamento de A, P ratifica seu enunciado anterior e sugere a focalização da significação apresentada como atividade a ser desenvolvida em aula (linha 92). A primeira tentativa de conceptualização de A é exatamente a de atribuir uma propriedade física da borracha ao papel do cheque: ‘não rasgava’ (linha 93). Tal enunciado é um produto possível da projeção seletiva entre os dois domínios de cheque e borracha. No entanto, não é este tipo de operação que resolve a questão posta por P e ela mesma é ágil em rejeitar a versão de A através da interposição de uma partícula negativa entre os dois turnos de A, que procede ao auto-reparo de seu turno.





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Figura 1: Reconceptualização de Objeto-de-discurso

Desta vez A opta pelo produto de uma mescla entre os domínios anteriormente citados ao concluir que as características físicas do cheque só podem ser alteradas em um domínio mental e que seus traços gerais permanecem intactos. Como um dos efeitos da borracha é a expansão e inchaço – termo já introduzido por P – o aluno conclui que essa expansão opera um aumento no valor do cheque, já que não pode aumentar o próprio tamanho do cheque (justamente porque propriedades físicas, como a possibilidade de rasgar-se, não foram alteradas). Esta operação apresenta altíssima complexidade cognitiva, que esboçamos no esquema a seguir:

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Ao se tornar borrachudo, o cheque: 1. Pode ser rasgado SIM Então pode se expandir no tamanho (propriedade elástica da borracha se atualiza na forma do cheque)

NÃO Então pode se expandir no valor (propriedade elástica da borracha se atualiza na função do cheque) 2. É um cheque de muito dinheiro

Esquema 1: Complexidade cognitiva na elaboração de objetos-de-discurso

À operação mental feita por A (linha 95) se encadeiam duas outras versões para ‘cheque borrachudo’: ‘pouco dinheiro’ (linha 96) e ‘cheque em branco’ (linha 97). A primeira delas, assim como a anterior ‘um cheque de muito dinheiro’, é enunciada em forma de pergunta e só a confirmação/ ratificação feita pela professora seria capaz de focalizá-la na discussão. Já a segunda versão, ao contrário, trata-se de uma afirmação ou asserção e em si constitui o próprio foco. Na linha 98, A continua reafirmando a versão que pôs em foco na linha 95, a despeito de posições diferentes de seus colegas (linhas 100, 101), e somente a abandona quando a correção de P é iniciada na linha 99 – um marcador de desapontamento (a::h alongado em entoação descendente) seguido por uma sugestão de resposta ‘muito pelo contrário’. É esta última fala de P que encoraja os demais alunos a focalizarem a versão de A1 (linha 96) em que afirma ser um cheque de pouco dinheiro, ou seja, o contrário da versão sustentada por A (linhas 95, 98). Esta versão também sai de foco quando P (linha 102) enuncia que se trata de algo pior do que um cheque de pouco valor. Isto produz tanto a volta à cena da versão de A2 (linha 97) a respeito de cheque em branco, quanto uma nova versão de ‘cheque de um centavo em branco’ (linha 103), além de outra versão de ‘cheque de um centavo’ (linhas 105, 108). Estas versões permanecem pouco tempo em foco já que são corrigidas enfaticamente por P (linha 107) através da inserção da partícula negativa além da avaliação da qualidade da resposta de A2 na linha 106, quanto a borrachudo ser um cheque em branco, pelo uso da expressão ‘isso era bom demais’ (linha 107). Quase imediatamente a esta enunciação, outra possibilidade de conceptualização surge com A (linha 110) ‘não recebeu o dinheiro do cheque’ ao que P ratifica de pronto e apresenta como novo foco as razões pelas quais não recebeu o dinheiro. A resposta óbvia é imediatamente fornecida por A (linha 112) e ratificada por P (linha 113) que promove a reconceptualização do enunciado ‘não recebeu o dinheiro do cheque’ para ‘não tinha fundos’. Assim, chega-se ao que P considera uma versão final de cheque borrachudo.







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Entretanto, como não ficou clara a razão de se usar o termo ‘borrachudo’ para referir-se ao cheque, ainda mais quando foram enfatizadas propriedades formais e materiais, P utiliza uma borracha, com as características enunciadas anteriormente para que os alunos visualizem as propriedades de um cheque borrachudo como idênticas às propriedades de uma borracha (117-119). A partir desta ilustração, os alunos são capazes de contextualizar os movimentos traçados pela borracha como correspondentes às propriedades de um cheque borrachudo, quais sejam, o efeito sonoro (póim, póim, linha 120), a ação de pular (linha 121), e a ação de ir embora (linha 122). Naturalmente é a terceira opção que será focalizada por P, justamente porque é a mais aproximada da idéia de um cheque borrachudo, e porque P pretende uma exatidão quanto à atividade descrita pela borracha, que não consiste apenas em ir embora, como contextualizou A2 (linha 122). Apesar do reparo, A2 insiste em que a atividade descrita seja a de ir embora, já que o exemplo só dá margem a esta. Mais uma vez, P procede à exemplificação (linha 125) e desta vez surge uma nova opção de contextualização – ação e reação (‘bate e volta’, linha 126). Deste modo ‘cheque borrachudo’ comprime no nível lexical uma complexa operação de integração conceptual em que os objetos-de-discurso são focalizados a partir do acionamento de espaços mentais responsáveis pela construção de categorias e conceptualizações que, por sua vez, operam no nível discursivo sendo aceitas ou refutadas, feitas objetos de concordância ou de discordância, focalizadas e desfocadas, enfim, negociadas segundo as expectativas dos falantes e as necessidades locais do contexto, de forma que das muitas versões discutidas, uma rede conceptual seja formada e o conhecimento seja conjuntamente construído.

COMO CONCLUSÃO Toda a análise feita mostra como as estratégias da maioria dos professores analisados são sempre as de envolver os alunos em uma atividade em que eles possam construir algum conhecimento. Os dados observados demonstram que os professores parecem ter em mente que o melhor resultado da aula é sempre aquele que surge quando se parte do que o aluno já conhece. Eles sempre procuram agir desse modo, instigando o aluno a dizer mais coisas, a questionar espontaneamente, a produzir novos temas. Assim, são levados pelos caminhos da reformulação, da correção, da revisão, da analogia, da associação, da reutilização, da reconceptualização etc. Neste processo, porém, nota-se uma imensa perda do rumo da aula e um grande desvio dos tópicos existentes em uma agenda prévia. Apesar de nossas análises centrarem-se no processo de construção do

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conhecimento, e procurarmos perceber como as atividades colaborativas de negociação de categorias, modos de interagir e objetos-de-discurso são relevantes para o sucesso deste processo, não há como negar que uma certa sistematização e organização do desenvolvimento da aula são necessárias para que a construção seja efetivada. A desconsideração de que um tema de aula precisa ser desenvolvido, através de planejamento prévio, além de negociações locais, pode levar a uma situação de desfocagem dos objetivos da aula, produzindo uma série de discussões desconectadas entre si, em que os alunos impõem uma agenda paralela àquela que o professor deveria cumprir, e este cede aos questionamentos e provocações surgidos através de diálogos mal dirigidos, institucionalmente descontextualizados, sem propósitos funcionais. Tal situação, interacionalmente produtiva em contextos espontâneos, opera uma remodelagem do contexto institucional escolar que é pouco adequada ao processo de aprendizagem do aluno, já que enquanto alguns dialogam com mais freqüência com o professor, outros simplesmente recebem uma carga informativa improdutiva, dada a variedade de assuntos discutidos na aula. O fluxo da aula, que é dinâmico, instável, local, embora sofra coerções do contexto institucional, passa então a ser caótico, desorganizado e inapreensível para a maioria dos participantes. Não há razão em pensar que a interação não possa se dar em situações de intensa sistematização e organização. Não é muito produtivo inclusive para fins didático-pedagógicos fazer de um ambiente institucional, como a aula, um lugar de intensa espontaneidade. A construção do conhecimento é um processo que ocorre na coordenação das ações dos indivíduos agindo em conjunto, e coordenação pressupõe um funcionamento articulado dentro de uma atividade ordenada. Assim, a aula deve privilegiar o conhecimento do aluno, mas deve também encaminhá-lo para as formas do saber que constituem não apenas instrumento de sociabilização, mas modos de apreensão sistemática da realidade sócio-política, histórica, econômica, lingüística etc. para fins de sobrevivência e evolução cultural da espécie em um meio de alta competitividade.





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REFERÊNCIAS













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Pedro Perini-Santos *







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OBSER ODOLÓGICAS SOBRE OBSERVVAÇÕES MET METODOLÓGICAS A INTERPRET AÇÃO SEMÂNTICA E QQUUANTIT TIVAA DE INTERPRETAÇÃO ANTITAATIV QUANTIFICADORES NOMINAIS DO PORTUGUÊS (Methodolo gical Obser v a tions Concer ning the (Methodological Concerning pr eta tion aabout bout Nominal Semantic and Quantita Interpr preta etation Quantitatititivv e Inter Quantif ier or tuguese) Quantifier ierss in PPor ABSTRACT The aim of this paper is to present an analytical methodology to be used in some Portuguese nominal quantifiers’ description. I claim that when a nominal quantifier occupies a reference function, it means that it has a strong semantic charge. On the other hand, once in an exact numerical function, this quantifier has not the required semantic charge to be in that reference function. K eyw or ds ds: Quantification; Reference; Methodology. ywor ords RESUMO O objetivo deste artigo é a apresentação de metodologia analítica a ser aplicada na descrição de alguns quantificadores nominais do português. sustento que um quantificador nominal pode ocorrer em função referencial, sendo que, em casos como esse, o quantificar manifesta forte carga semântica. Em situação inversa, o quantificador em exercício de função de numeração exata não exerce função semântica de referência. Palavras-chave Palavras-chave: Quantificação; Referência; Metodologia.

Neste artigo, proponho-me a descrever a interpretação referencial de alguns itens lexicais nominais do português que possuem acepção de quantificação1. Esses itens serão denominados QUANTIFICADORES NOMINAIS e serão notados como QNs. Há outras palavras de características mórficas nominais que também possuem acepção quantitativa, mas não foram consideradas neste estudo. Restringi a pesquisa aos itens lexicais quantificadores que numeram entidades. Para deixar nítida esta distinção, observemos o enunciado (1), logo a seguir:

* PUC- Minas. 1 Este artigo resulta de discussões sobre referência e qualificação desenvolvidas com os professores Mário Alberto Perini e Yara Liberato, durante a redação de minha dissertação de mestrado entre 1999 e 2000. A responsabilidade pelo que aqui está publicado, no entanto, é inteiramente minha.







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(1) Vários elefantes e algumas emas causaram altos e sérios estragos no circo do Seu Léo.













As noções de quantificação dos itens que aparecem em negrito e daqueles que aparecem sublinhados são diferentes: • •

Vários e algumas quantificam as entidades “elefantes” e “emas”. Altos e sérios não quantificam “estragos” em termos numéricos, mas em intensidade.

Itens como os altos e sérios não são considerados. O objetivo deste trabalho é de cunho metodológico. Gostaria de apresentar uma metodologia a ser aplicada em pesquisas empíricas ulteriores. Para apresentar tal propósito, o texto será organizado da seguinte forma. Inicialmente, exponho as definições de referência e de quantificação. Em seguida, proponho os traços descritivos que permitem a distinção entre essas duas funções. Em um terceiro momento, organizarei os exemplos pensados em quatro grupos de interpretação distintas, e chamo a atenção para alguns contra-exemplos, que não põem em xeque a hipótese proposta. Nos comentários da conclusão, finalmente, ressalto o valor metodológico e conceitual do presente estudo, cujo tema central, aqui repetido forma mais detalhada, é: a interpretação de QNs como referência segue tendência contrária a sua precisão numérica.

1. OS QNS EM ACEPÇÃO REFERENCIAL Sustento a possibilidade de haver uma interpretação referencial2 para os QNs. Essa idéia é contrária ao que Hugo Mari (1979) apresenta: (...) julgamos que as palavras que compartilham da noção de quantidade (...) comportam-se uniformemente em relação às suas possibilidades semânticas de expressar quantidade, em função do próprio caráter de acidente desta noção. Assim existe uma semelhança na forma de indicar quantidade em pares de palavras como: comprimento/vários, estreito/três, encurtou/às vezes. Em cada um destes 2

Sobre a noção de referência, “referir significa apontar uma entidade/objeto/indivíduo determinado no ‘mundo’ através do uso de ‘expressões referenciais’” (A. L. Müller, 1993:273) Ainda: há uma importante discussão sobre o tema que foi apresentada por J. Macnamara em R. Jackendoff et al. (1999). Macnamara discorre sobre o reconhecimento de referência. Segundo ele, a percepção da referência e sua posterior qualificação por crianças podem ser associadas aos mecanismos cognitivos da visão. Sobre o tema, ver R. Langacker (1987); G. Kleiber (1994); e K. Fraurud (1996).

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Parece-me que os quantificadores podem exercer função referencial e que não se limitam ao exercício de papel acessório. Pelo que compreendi, “ser acessório” significa que os QNs apenas poderiam ocorrer acompanhando um outro termo dentro da estrutura sintagmática que desempenha a função referencial ou de forma anafórica. Em (2-3), porém, parece-me possível a interpretação de função referencial para os QNs todos e alguns, mesmo se ocorrem, hipoteticamente, fora de contexto anafórico: (2) Todos chegaram. (3) Alguns topam tudo. Como será discutido mais adiante (cf. seção 3.1), os QNs em (2-3) possuem informação semântica suficiente para o exercício de referência.

2. DESCRIÇÃO DOS QNS EM QUATRO GRUPOS DISTINTOS Entre os QNs, há traços semânticos particulares que possibilitam sua distribuição em grupos lexicais de interpretações distintas. Estabeleci quatro grupos de acordo com os traços semânticos de Carga Semântica Própria, notada como , e de Noção de Quantificação Própria, .

2.1. OS TRAÇOS DESCRITIVOS E , E OS GRUPOS DE INTERPRETAÇÃO A é a informação de natureza referencial fornecida pelo QN. Nos substantivos coletivos, como em arquipélago e cardume, por exemplo, aquilo a que os QNs se referem é precisamente interpretado. Arquipélago se refere a “ilhas” e apenas a “ilhas”; cardume, a “peixes” e apenas a “peixes”. Cardume e arquipélago são quantificadores com uma forte dosagem de ; o que pode ser indicado pelo fato de não aceitarem um SP incompatível com a sua natureza semântica:

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vocábulos, há uma representação subjacente da noção de quantidade, mas em nenhum destes casos, a quantidade pode ser concebida independentemente das ações, dos objetos e dos conceitos que são acidentalizados. (...) a quantidade em si é um acessório, é abstrata e assume forma representativa e referencial, na medida em que atua sobre outros elementos (p. 68).





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(4) *SN [Um cardume SP[de livros]]3 (5) *SN [Dois arquipélagos SP[de músicas]]













Por outro lado, existem outros quantificadores com uma fraca. Para três e dúzia, não há a possibilidade de interpretação referencial. Em contrapartida, essas palavras possuem um efeito de quantificação exato. São quantificadores de alta dosagem de . Sabe-se que três refere-se a um conjunto de 3 elementos e dúzia a um conjunto de 12 elementos. As variações na intensidade das taxas de e de nos QNs serão indicadas seguindo uma escala de 1 a 4. Essa escala numérica não deve ser compreendida como uma seqüência de valores discretos. Os valores de 1,2,3 e 4 indicam pontos nas variações contínuas de e a serem comparados 4. Marcam-se os QNs de alta carga semântica própria como . Os QNs que possuem baixa carga semântica própria como . Marcam-se os QNs de alta precisão quantitativa como . Os QNs que possuem muito baixa precisão de quantificação como . Assim, aplicando o modelo aos exemplos até aqui examinados tem-se: arquipélago e cardume: três e dúzia: Dentro de um espectro de quatro conjuntos, esses exemplos pertencem a grupos dos extremos opostos de variação dos índices de e de . Os QNs de posição intermediária foram locados em outros dois grupos. Em um primeiro grupo intermediário, encontram-se QNs como muitos e alguns que mesmo localizados em início de enunciação podem exprimir referência a pessoas. Esses itens marcam uma boa dosagem de , mas com um grau de precisão inferior ao grupo dos substantivos coletivos. Proponho que grau de de muitos e alguns é inferior à taxa do primeiro grupo porque a imagem que os itens cardume e arquipélago criam é menos passível de variações do que a imagem criada por muitos ou alguns. Em outras palavras, parece ser mais imediata a interpretação de arquipélago como referente a “ilhas” do que alguns como referente a “seres humanos”. No que tange à quantificação, muitos 3

Como indicação de que não se trata de um constrangimento de ordem formal, aponto para o fato que as formas adjetivas para (4), ou seja, (4’) * Um cardume livresco e para (5), (5’) * Dois arquipélagos musicais serem igualmente inaceitáveis. 4 Sobre o tema ver H. Mello. A autora sustenta não haver classes sintáticas e lexicais discretas; propõe que se adote um modelo de squiches; explica ela: “...as palavras, assim como as funções sintáticas, compõem um quasi-continuum, em oposição à classificação discreta tradicional. Um squich é uma matriz que evidencia o grau de pertinência de uma dada forma em uma dada classe, ou seja, através de um squich, pode-se perceber que há, por exemplo, diferentes graus de nominalidade...” (Mello, 1990:128).

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alguns e muitos: O segundo grupo intermediário possui caracterização quantitativa semelhante ao anterior. A diferença entre esses dois grupos está ligada à . Hordas e bandos, exemplos desse grupo, têm os seguintes traços semânticos: hordas e bandos: Possuem a mesma e uma mais significativa. Hordas e bandos possuem traços semânticos que permitem a interpretação referencial humana, sendo que a ela acrescenta-se a atribuição de valor pejorativo ao grupo humano designado, como se percebe em na comparação entre (6) e (7-8): (6) Alguns entraram no shopping. (7) Bandos entraram no shopping. (8) Hordas entraram no shopping. Ao se escutar (6), não se cria outra imagem a não ser de pessoas que entraram no shopping. Considerando-se os exemplos (7) e (8), percebe-se que há influência das expressões bandos e hordas na imagem do grupo humano em questão. Por esse motivo, são QNs com uma dose de mais forte. 2.2. OS GRUPOS Seguindo as dosagens de e reconhecidas nos exemplos acima, pode-se constituir quatro grupos de QNs. Apresentados na ordem decrescente da propriedade e crescente de , os grupos são os seguintes: Grupos Características Exemplos

1

2

3

4









Centenas

Todos

Bandos

Rebanhos

Milhares

Alguns

Quadrilhas

Arquipélagos Frotas

Dois

Vários

Corjas

Três

Poucos

Hordas

Cardumes

Dúzias

Muitos

Levas

Manadas

Tabela: Grupos de QNs a partir de traços e

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e alguns não permitem uma interpretação quantitativa exata como três e dúzia o fazem. No entanto, em situações de uso, os interlocutores têm alguma noção do que venham a ser as quantidades relativas a muitos ou a alguns. São QNs que apresentam e parciais:









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Os elementos do GRUPO 1 apresentam o traço com o índice 1, mas possuem clara exatidão na quantificação, ou seja, com índice 4. Ao se utilizarem os quantificadores desse grupo, não há referência possível a não ser em situações anafóricas5. De acordo com a notação proposta, pode-se dizer que o GRUPO 2 é caracterizado pelas dosagens e . A noção de quantificação, mesmo que imprecisa, permanece presente. Ou seja, muitos e poucos quantificam de alguma forma, mas sem a exatidão. Esse segundo grupo possui traço semântico , uma vez que sempre se tem conotação referencial humana se ocorrer em início de conversa. Elementos locados no segundo grupo são descritos por Perini et al. (1996) da seguinte forma: (...) a palavra poucos não dá nenhuma indicação do referente ou referentes a que se aplica; na verdade, vale para qualquer referente. Seu significado é puramente quantitativo. Mas não se pode negar que o sintagma poucos em [Poucos votaram em mim] tem um referente (algo como “poucas pessoas”; assim, é forçoso admitir que o sintagma tem um centro de referência atribuído pelas regras sêmicas (p. 86).

Nesse aspecto, eu seria mais assertivo do que os autores citados; segundo os quais, é forçoso admitir que é possível reconhecer a referência. A meu ver, como se nota em (9-11), mesmo em um hipotético início de conversa, esses quantificadores engendram a interpretação de referência humana6: (9) Muitos entraram no shopping sorrindo. (10) Poucos entraram no shopping sorrindo. (11) Todos entraram no shopping sorrindo. O GRUPO 3 pode ser descrito como dosados de e . A informação quantitativa é igualmente pouco definida, se comparada com a precisão quantificativa do primeiro grupo. No entanto, nota-se um nível mais elevado de informação semântica. Esses termos designam entidades humanas e atribuem julgamento de valor ao grupo humano referido. Trata-se de uma coloração pejorativa. Assim, os grupos 2 e 3 se assemelham no traço , mas se distinguem na . Parece-me de muito difícil a aceitabilidade de SNs como (12) (13) 5

?? Hordas de freiras foram à missa. ?? Hordas de benfeitores à missa.

Sobre o tema, ver L. Fulgêncio (1983) e Y. Liberato (1997) O reconhecimento da natureza humana pode se justificar pelo efeito de cristalização, ou seja, a ocorrência de expressões que não geram novas expressões por analogia ou por algum outro processo, cuja ocorrência é condicionada a contextos de uso limitados e replicatório. Sobre o tema, ver G. Dostie (2002), P. Perini-Santos (inédito). 6

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(14)

Um bando de meninos entrou no cinema.

Nesse caso, ou interpreta-se meninos como outro grupo humano socialmente marginalizado, como se fossem “meninos de rua” ou atribui-se aos “meninos” alguma característica supostamente típica desse grupo. Este é um caso possível de LEXIFICAÇÃO NOMINAL. Para Leonard Talmy (2001), em cuja obra reconheço o conceito de lexificação, uma expressão exerce valor lexificado a partir do momento em que ativa automaticamente um esquema causal sem a necessidade de serem explicitados todos os elementos que dele participem. A partir da definição de Talmy, pode-se pensar em lexificação VERBAL. No caso das expressões bando e hordas, reconheço o caso de lexificação presente em itens nominais; por isso, o termo lexificação nominal. A análise da interpretação pejorativa dos itens do terceiro grupo se aproxima metodologicamente do que fizeram Perini et al. (1996) na descrição da ordenação anteposta ao núcleo do SN para alguns adjetivos. Em sua publicação, é descrita como de difícil aceitabilidade a anteposição ao núcleo do SN dos adjetivos cruel, em (15) e musculoso, em (16): (15) ?? Uma cruel mãe (16) ?? Um musculoso professor Não é nosso objetivo discutir essa questão, mas valho-me do comentário dos pesquisadores para reconhecer como os aspectos semântico-pragmáticos fazem parte do funcionamento de uma língua: Em todos os casos de anteposição livre do adjetivo verifica-se a presença do seguinte ingrediente semântico: há uma expectativa de que a qualidade expressa pelo adjetivo seja particularmente adequada à entidade expressa pelo substantivo (...) A natureza dessas expectativas é uma questão interessante a investigar. Certamente não se trata de crenças puras e simples (...) Trata-se de estereótipos culturais, que, no entanto, como estamos vendo, têm relevância para a análise da língua (Perini et al., 1996: 63).

Talvez não possa designar exatamente como estereótipos, mas há uma expectativa cultural de que “freiras” sejam pessoas boas e que “meninos de rua” sejam marginais. A aceitabilidade ou a recusa do QN bandos anteposto a esses dois itens em função de núcleo do SN é uma indicação da existência de julgamento social.

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uma vez que social e culturalmente esses grupos humanos são considerados como conjuntos pessoas corretas. Essa carga de julgamento moral, que se caracteriza pela atribuição de pejoratividade ao grupo designado, se faz ainda mais clara em (14):





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Os elementos do GRUPO 4 possuem os traços . Este é um conjunto marcadamente específico em sua carga semântica e quase vazio em sua quantificação. No que concerne a quantificação, o máximo que se pode afirmar é que esses itens denotam grupos não unitários. Apenas se utilizam termos coletivos quando se tem um conjunto com mais de um elemento a ser designado. Se considerarmos os exemplos abaixo, infere-se apenas que arquipélago, cardume e frota designam conjuntos não unitários de “ilhas”, “peixes” e “automóveis”, respectivamente: (17) O arquipélago mais em moda hoje se encontra no Golfo de Benin. (18) Um cardume apenas já encheu a geladeira da loja. (19) A frota americana invadiu o Iraque. Em contrapartida, arquipélago, cardume e frota possuem uma elevada dosagem de , já que se referem estritamente a um tipo de entidade. Nos exemplos (17-19), este fato é claro, se pensarmos que arquipélago, cardume e frota são interpretados em função referencial específica: (20) * Dois arquipélagos de músicas povoam as rádios. (21) * Um cardume de livros foi lido nas férias. (22) * Uma frota de pizzas foi servida no jantar de casamento do Ernesto e Cristina. Outra indicação de sua alta marcação de faz-se perceptível na inaceitabilidade dos exemplos (20) e (22), se considerados em sentido denotativo. Claramente, ocorre incongruência semântica.

3. COMPARANDO OS GRUPOS Temos a descrição das dosagens de e dos quatro grupos. O próximo passo a ser dado é a comparação entre os valores indicados. Nessa comparação, nota-se que há uma relação inversamente proporcional entre e : o grupo que possui um maior índice terá um menor índice . Os quatro grupos e respectivos índices descritivos foram dispostos no gráfico a seguir:

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4 3 2 1 0

grupo 1

grupo 2

grupo 3

grupo 4

NQP

4

2

2

1

CSP

1

2

3

4

Gráfico: Comparação semântica dos quantificadores (em índices de e ) Os valores dos índices de e de entre os grupos 1 e 4 são inversamente proporcionais. Entre os grupos 2 e 3, não se tem clareza na relação de proporcionalidade inversa dos índices, posto que o valor da é o mesmo. O sentido de queda da dosagem da em direção ao último grupo, no entanto, confirma a hipótese proposta. Além disso, há uma tendência de crescimento do grupo 2 em direção ao grupo 3 nos valores da . O objetivo desta descrição não nega a necessidade de se proporem explicações para os fatos constatados. Questões como “Por que ocorre esta relação inversa entre e ” “Como funciona nossa mente nesse caso” são perguntas que só podem ter lugar depois que se tem uma descrição do fato de haver esta relação inversa entre e .

4. CONTRA-EXEMPLOS No caso específico da análise dos quantificadores, surgiram dois contraexemplos para a hipótese proposta acima apresentada. Casal e par são dois quantificadores que possuem altas dosagens de e . Casal pode ser descrito como um QN de natureza ; ou seja, casal é um item lexical bastante exato a informação quantitativa e possui também um índice elevando de carga semântica, 7. Casal sempre se refere a duas entidades vivas que tenham alguma relação de união e necessariamente de sexo diferente. Assim, um casal de irmãos se interpreta irmãos como “um irmão + uma irmã”. Essas considerações justificam a

7

A presença da preposição de nestes exemplos de QNs não afeta a hipótese proposta. A função desta partícula junto aos quantificadores é discutida em G. Fauconnier (1977) e em P. Perini-Santos (2007), onde se encontra listada vasta literatura a respeito.







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caracterização de casal como da palavra que se confirma na série de exemplos (22-28):





(23) (24) (25) (26) (27) (28)

Um casal de namorados despertou a atenção de Nuno. Um casal de patos vive nos jardins do Palácio. Um casal de amigos tira fotos no jardim da casa do bispo. Um casal de velhos passeia pela praça. * Um casal de mesas está em promoção nas Lojas Americanas. * Um casal de automóveis da FIAT foi lançado no Salão do Automóvel. (29) * Um casal de irmãs brigou na festa. Os exemplos (27-29) dão indicação da inaceitabilidade de casal antecedendo entidades não-vivas, como em (27) e (28), ou do mesmo sexo, como em (29). O valor da não tem a precisão de nível 4, posto que se tem uma caracterização parcialmente restritiva para o tipo de entidade que pode acompanhar este QN. Par é o segundo contra-exemplo. Esse QN se caracteriza pelos índices . A quantidade pode ser avaliada como precisa. No entanto, creio que se justifica a aplicação do índice em 3, porque pode haver alguma indeterminação quantitativa na palavra par. Em (30), par quer dizer ‘algumas vezes’. (30)

Um par de vezes ele passou por aqui.

A atribuição do índice , inferior ao índice de casal, se deve ao fato de par aceitar uma gama de entidades mais vasta do que exemplo anterior: (31) (32) (33) (34) (35) (36) (37) (38)

Um par de sapatos/meias/calças Um par de amigos/namorados Um par de mesas/cadeiras Um par de brincos/anéis Um par de samba/de forró Um par de óculos/lentes Um par de Ases/Reis (de Copas) Um par de jarros/enfeites

Ainda está por serem descritas as restrições de uso do QN par. Apenas listo, nos exemplos (39-41), alguns enunciados que me parecem de difícil aceitabilidade:

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Provavelmente, par deve ter alguma exigência semântica específica que o torna especializado na numeração de duas unidades que tenham alguma relação de complementação entre elas. Necessariamente, um par de “brincos” é composto por dois brincos a serem usados conjuntamente; o que não ocorre em (39-41). Para alguns autores, casos como esses são irregularidades8.

5. COMENTÁRIOS CONCLUSIVOS Esse texto é uma proposta metodológica para a descrição dos QNs. O seu propósito só se justifica se for feita a coleta de dados e a confirmação empírica, e não intuitiva, de sua adequação em corpus de uso lingüístico9. Provavelmente, as diferenças entre os quatro grupos não se façam reconhecer com tanta clareza. Penso na possibilidade de interpretação dos QNs com as marcações de a . Por outro lado, a hipótese sobre a relação inversa entre as noções de quantificação e de referência tem valor conceitual em si própria. Trabalhos com conclusões semelhantes quanto às funções de referência e de qualificação foram propostos para a descrição de sintagmas nominais, notados como SN (cf. Perini et al., 1996, dentre outros). Resumidamente, os autores sustentam a idéia de os termos nominais possuírem a potencialidade de exercerem ou a função ou a função , ou seja, se o termo encontra-se em uma primeira função, não pode exercer uma segunda função. São, portanto, categorizações excludentes. A interpretação que ofereço para os QNs, porém, aceita situações de exercício simultâneo de funções de numeração e de referência, porém com possível variação de em graus de interpretação, sendo esses com relação inversa: a presença de uma alta ocorre concomitantemente a uma baixa marcação de , e vice-versa. Nesse sentido, a inibição de função dupla, digamos, nos pontos extremos da variação entre e , justifica-se por essa posição ela própria e não pela demarcação de limites discretos.

8

Como pode ser lido em M.A. Perini et alli: “A língua não se compõe apenas de regularidades; inclui também, em proporção desconhecida, casos particulares, exceções, irregularidades etc. (...) a língua compreende um componente anomalístico. Essas anomalias são tradicionalmente colocadas no léxico; assim, um item pode ser marcado como exceção a uma regra.” (1996:133). 9 Sobre o tema, ver M. Barlow (2000).

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(39) ?? Um par de almôndegas (40) ?? Um par de ônibus (41) ?? Um par de laranjas





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MAR CAS DO INTERL OCUT OR EM CAR ODUZID AS NNAA MARCAS INTERLOCUT OCUTOR CARTTAS PR PRODUZID ODUZIDAS QUESTÃO DE REDAÇÃO DO PSS 2008 DA UFPB (T he Inter locutor Pr esence in Letter oduced bbyy (The Interlocutor Presence Letterss Pr Produced Students at PSS 2008 at UFPB)

ABSTRACT This article aims to present a qualitative analysis in a sample corpus of letters produced by students attended to UFPB, at PSS 2008. These letters correspond to the second question from the exam of writing. Our analysis concerns about the presence of the interlocutor (auditorium), which functions as a direction to the locutor to decide what and how to produce their text. We tried to identify how the interlocutor is linguistically present or not in students writing, using the concept of discourse genre from Bakhtin (2000), Marcuschi (2000) and the auditorium concept from Perelman (1999).We also made a reflection if the lack of vocative in writing or the lack of the interlocutor into the text work as a prove that the students do not have knowledge about this discourse genre. Despite being a sample corpus, the analysis shows the student’s knowledge level about the discourse genre called letters. K eyw or ds: discourse genre letters, writing, interlocutor. ywor ords:

RESUMO Este artigo apresenta amostragem de uma análise qualitativa das cartas produzidas por candidatos ao PSS 2008 da UFPB, as quais foram escritas como respostas à questão número dois da Prova de Redação. Nossa análise está centrada na figura do interlocutor (auditório), cuja função – entendemos – é a de direcionar o que e como o locutor deverá produzir determinado texto. Buscamos identificar como o interlocutor está lingüisticamente marcado ou não nas produções dos candidatos; e, a partir dessa constatação, partindo da concepção de gênero discursivo de Bakhtin (2000), Marcuschi (2000), de auditório de Perelman (1999), refletirmos se, de fato, as produções cujo interlocutor não aparece na forma de vocativo, nem mesmo no corpo do texto por alguma pista lingüístico-discursiva, refletem o (des)conhecimento do candidato em relação ao gênero car ta. Mesmo sendo uma amostragem, a análise revela-nos o nível de conhecimento dos candidatos que participam desse concurso no que diz respeito ao gênero discursivo carta. Pala vr as-c ha alavr vras-c as-cha havv e: gênero car ta; produção escrita; interlocutor.

Entre as mudanças propostas pelo Ministério da Educação (MEC) para o ensino de Língua Portuguesa no Ensino Médio, como também no Fundamental, está a inserção do gênero textual/ discursivo na sala de aula. Quando se pensa no trabalho com textos, outro conceito indissociável diz respeito aos gêneros em que eles se materializam, tomando-se como pilares seus aspectos temático, composicional e estilístico (PNC+, p.77).

Essa inserção, no Ensino Médio, vem sendo implantada, de forma mais * UFPB.

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Erivaldo Pereira Do Nascimento * Lucienne Espíndola * *





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sistemática, depois da publicação dos PCNs+ (2002); porém, ainda pouco se sabe sobre essa inserção, que não é apenas uma mudança de nomenclatura, mas uma mudança de concepção de linguagem, de texto, enfim, um mudança na concepção de ensino de língua materna. Nossa investigação, de certa forma, revela um pouco dessas mudanças que vêm sendo implementadas, principalmente no estado da Paraíba, uma vez que, no PSS da UFPB, a maioria dos inscritos é oriunda das escolas de Ensino Médio desse estado. A amostragem apresentada por nós diz respeito a uma das características primordiais do gênero textual/discursivo1 carta: a presença do interlocutor (auditório) marcada ou não lingüisticamente nas produções dos candidatos ao PSS 2008 da UFPB. Partimos das características do gênero carta postuladas por Bakhtin (2000) e Marcuschi (2000) e elegemos o vocativo como sendo o principal traço desse gênero, marcado lingüístico-discursivamente. Salientamos que o interlocutor é a bússola na produção de qualquer gênero e que, entre aqueles que o apresentam marcadamente, a carta, parece-nos, seja um dos mais representativos. Nesse contexto, a partir de Perelman (1999), para quem o auditório é o conjunto daqueles a quem o locutor pretende persuadir, passamos a ‘olhar’ o nosso corpus: as cartas produzidas pelos candidatos. Os resultados revelamnos textos com a presença do interlocutor marcada pelo vocativo, textos com a ausência de um vocativo, entretanto com o interlocutor marcado discursivamente no corpo da carta.

1. O GÊNERO DISCURSIVO CARTA (CARACTERÍSTICAS ESTRUTURAIS E DISCURSIVAS) A concepção de gêneros aqui adotada se inscreve em uma perspectiva interacional da língua, que leva em conta o caráter social e subjetivo da linguagem. Bakhtin (2000, p. 279) considera os gêneros do discurso tipos relativamente estáveis de enunciados. Qualquer enunciado considerado isoladamente, é claro, individual, mas cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, sendo isso que denominamos gêneros do discurso (grifo do autor).

Além da relativa estabilidade, Bakhtin destaca o caráter sócio-histórico para a definição dos gêneros do discurso. Ele afirma que cada esfera da atividade 1

Neste artigo, não faremos distinção entre gêneros textuais, gêneros do discurso e gêneros discursivos, tratando um termo por outro, embora conscientes das diferenças terminológicas.

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Ignorar a natureza do enunciado e as particularidades de gênero que assinalam a variedade do discurso em qualquer área do estudo lingüístico leva ao formalismo e à abstração, desvirtua a historicidade do estudo, enfraquece o vínculo entre a língua e a vida (2000, p. 282).

Ressalte-se que, para esse autor, o enunciado é um todo comunicativo, marcado pela enunciação e que se relaciona com outros enunciados. Dessa maneira, Bakhtin diferencia o enunciado da oração: esta não é um todo e não permite uma resposta ou uma reação, embora seja inteligível. O enunciado, por sua vez, é entendido como “uma unidade da comunicação verbal” (2000, p. 295) e é determinado por três fatores: o tratamento exaustivo do objeto, a intenção do locutor e a sua estruturação em um gênero do discurso (idem, p. 299). E esses gêneros, conforme sua complexidade e esfera de uso, foram classificados por Bakhtin em dois grandes grupos: gêneros primários (simples) e gêneros secundários (complexos). Os primários são aqueles da vida cotidiana e mantêm uma relação imediata com as situações nas quais são produzidos. Os gêneros secundários, por sua vez, aparecem nas circunstâncias de uma situação cultural mais complexa e relativamente mais desenvolvida. Marcuschi (2000) sugere que os gêneros primários estão mais associados aos textos orais, enquanto os textos escritos correspondem, principalmente, aos gêneros secundários. A classificação dos gêneros do discurso ainda não é um problema resolvido pela Lingüística Discursiva ou pela Lingüística Textual. A própria denominação como gêneros do discurso não é unanimidade, pois coexistem termos como gêneros discursivos e gêneros textuais. Adotamos, no entanto, a nomenclatura bakhtiniana, que nos parece mais adequada à perspectiva teórica que assumimos.

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humana “comporta um repertório de gêneros do discurso que vai diferenciandose e ampliando-se à medida que a própria esfera se desenvolve e fica mais complexa” (idem, p.279). Essa posição do autor estabelece uma relação muito direta entre os processos de formação dos gêneros e as ações humanas. De acordo com Marcuschi (2000, p. 24), Bakhtin aproxima a língua à vida humana de tal maneira que uma penetra na outra e, quando alguém escolhe um gênero, nunca o fará como um fato individual, mas coletivo, pois o gênero é uma forma de inserção social e de execução de um plano comunicativo intencional. Para Bakhtin, a variedade dos gêneros do discurso pressupõe a variedade de intenções da pessoa que fala ou escreve. Dessa maneira, ele insiste na diversidade dos fatos sociais emitidos pelos mais diversos grupos e, conseqüentemente, nos fatos de linguagem. Portanto, como dependem da intenção e dos fatos sociais, os gêneros do discurso são infinitos e heterogêneos (Bakhtin, 2000, p. 279). Para Bakhtin, uma concepção clara do enunciado e dos gêneros do discurso é indispensável para qualquer estudo lingüístico.





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Depois de Bakhtin, vários estudiosos propuseram diferentes classificações para os gêneros do discurso. Entre eles, Beaugrande (1980), Van Dijk (1985), Adam (1993). As diferentes classificações, de acordo com Marcuschi (2000, p. 62), são baseadas em diferentes critérios e adotam diferentes perspectivas teóricas: “Os critérios variam, as classificações variam e não se tem uma noção clara do que seja um tipo como tal”. Ainda consciente da dificuldade de sistematizar e tipificar os gêneros, Marcuschi também apresenta um quadro, sistematizando os gêneros em duas modalidades da língua – oral e escrita – organizados em treze domínios discursivos: científico, jornalístico, religioso, da saúde, comercial, industrial, instrucional, jurídico, publicitário, lazer, interpessoal, militar e ficcional (2000, p. 107 ss.). O autor ordena nesses domínios discursivos os mais diversos gêneros, desde as conversas espontâneas até os mais elaborados textos orais e escritos de nossos dias. A carta, uma vez que está presente em diferentes instâncias da vida social, é um gênero que perpassa diferentes domínios discursivos. Exatamente por isso, encontramos diferentes cartas, em diferentes domínios. Para exemplificar, se pensarmos na vida familiar, teremos a carta pessoal, a carta de amor, no domínio jornalístico, por exemplo, teremos a carta do leitor, a carta ao leitor; já no domínio comercial, teremos a carta comercial, o memorando, entre outros exemplos. A carta é considerada por Bakhtin (2000, p. 281) como pertencente ao universo dos gêneros primários. No entanto, ao afirmar que os gêneros secundários (romance, teatro, discurso científico, discurso ideológico etc.) absorvem e transmutam os primários, que, por conseguinte, se transformam dentro dos secundários, o autor nos abre espaço para compreender o fenômeno da carta não só poder transmutar por diferentes gêneros como também entender por que há uma enorme variedade de cartas circulando nos mais diferentes meios sociais. Com a própria evolução das instâncias sociais, não é de se estranhar que esse gênero tenha sofrido variações para se adaptar às diferentes necessidades de cada uma dessas instâncias. Assim, é possível afirmar que há alguns subgêneros de carta que pertencem ao universo dos gêneros primários, e nesse caso incluímos as cartas pessoais, de amor, de família etc. Mas também há as cartas que se inserem nos gêneros secundários, como é o caso da carta oficial, da comercial, da carta ao leitor. No entanto, há algumas características que parecem essenciais e necessárias a todos os subgêneros de carta que circulam nas diferentes instâncias e domínios discursivos, decorrentes do caráter formulaico do gênero. Os gêneros ditos formulaicos, de acordo com Silva (2007, p.12), são aqueles vistos como exemplares que seguem um padrão formal de construção, como é o exemplo da carta, da ata de reuniões, do parecer etc. As características mais comuns na estrutura composicional do gênero carta, apontadas em diversos manuais de redação, são: local e data, vocativo, objetivo da carta, desenvolvimento, despedida e/ou desfecho, assinatura. A

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2. O INTERLOCUTOR COMO NORTEADOR DA PRODUÇÃO TEXTUAL A partir do momento em que se concebe a linguagem como forma de inter-ação, todos os envolvidos nesse jogo – o da interação – devem ser considerados tanto no momento de produção quanto naquele da recepção. Ou seja, (...) as condições de produção (tempo, lugar, papéis representados pelos interlocutores, imagens recíprocas, relações sociais, objetivos visados na interlocução) são constitutivas do sentido do enunciado: a enunciação vai determinar a que título aquilo que se diz é dito (KOCH, 1992, p.14).

Abordamos, aqui, o papel do interlocutor na produção de um texto, salientando que, quando o elegemos, todos os outros fatores das condições de produção estão sendo contemplados, mesmo que indiretamente. Em outras palavras, a construção do texto (em geral) é influenciada direta ou indiretamente pelos (possíveis) leitores. Para alicerçar essa postura, recorremos a Perelman (1999), para quem o interlocutor corresponde ao auditório, que o define: Se quer definir o auditório de forma útil para o desenvolvimento de uma teoria da argumentação, deve-se concebê-lo como o conjunto daqueles que o orador quer influenciar pela sua argumentação (p.33).

Embora saibamos que Perelman estava postulando a importância do auditório (interlocutor) para a argumentação, sabemos, hoje, que a importância do interlocutor não está restrita a um gênero textual, mas tornou-se imprescindível para a leitura e a produção de qualquer gênero. Alguns gêneros não trazem, textualmente marcados, os seus interlocutores (auditório), no entanto, sabemos que todo texto tem um interlocutor previamente definido e que, em função desse leitor, é que serão feitas as escolhas lingüísticodiscursivas. É o caso dos gêneros jornalísticos e dos literários em que o interlocutor

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presença do vocativo assinala, na carta, a sua característica discursiva essencial, que é a presença marcada do interlocutor. O gênero carta possui um estilo próprio que ainda é determinado pela presença dessa relação discursiva entre locutor e interlocutor. E as outras características são decorrentes dessa relação. A escolha no tratamento (formal, informal), a presença de determinadas informações relacionadas, por exemplo, à presença ou não do endereço no corpo da carta, telefone, um desfecho formal, uma despedida informal, entre outros.





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não está marcado lingüisticamente, mas os textos são produzidos, considerando sempre um interlocutor (virtual): pela faixa etária ou pela área de atuação profissional e/ou área de interesse. A definição (escolha) do interlocutor vai definir o quê e como dizer, não diminuindo a importância dos outros fatores (objetivos, tempo, espaço, suporte etc.) que necessitam ser considerados pelo locutor (produtor do texto) no momento da produção. Saliente-se que todos esses fatores serão filtrados pela definição do interlocutor, mesmo que virtual, pois é possível ter os mesmos objetivos junto a interlocutores diferentes, e, conseqüentemente, argumentos e formalizações lingüístico-discursivas diferentes. Outros gêneros textuais são produzidos com seus (possíveis) interlocutores marcados textualmente. Entre eles, situamos a carta, que traz o destinatário (interlocutor) indicado textualmente. A importância do interlocutor marcado através do vocativo fica evidente quando, por meio do vocativo, é possível determinar a que subgênero uma carta pertence: carta pessoal, carta do leitor, carta ao leitor, carta aberta, carta comercial etc. Nesse grupo de gêneros, o papel do interlocutor é vital, pois, se este não for marcado adequadamente, o leitor pode ser levado a inferências não confirmadas após a leitura de determinado texto. Considerando o gênero carta, o vocativo inadequado pode levar o leitor a classificar uma carta em um subgênero, porém as características lingüístico-discursivas não a confirmam nesse subgênero. No entanto, é preciso salientar que somente a presença de um vocativo adequado não garante que o texto possa ser caracterizado como carta, pois, apesar da invocação de um interlocutor, é possível que no corpo da carta não se encontre nenhuma marca que estabeleça o diálogo entre locutor e interlocutor. Assim, na produção de qualquer gênero, conhecer o interlocutor é condição sine qua non para se tomar decisões do tipo: o que dizer, como dizer. Portanto, a não-presença do interlocutor na carta, não necessariamente através do vocativo, retira desse gênero textual a sua função discursiva essencial: estabelecer uma comunicação ou interação com alguém, a fim de dar conhecimento a respeito de algo ou atingir algum objetivo específico. Aliás, a característica dialógica dos gêneros formulaicos é perceptível, a partir de Silva (2007, p. 24), quando a pesquisadora afirma que, “nos gêneros formulaicos, padronizados, haverá um direcionamento, instruído pela intenção do locutor, para o qual deve convergir a percepção do outro.”. Logo, a presença do outro (o interlocutor) é importante não somente para que a carta chegue a seu destino, mas, principalmente, como elemento determinante para que o locutor elabore sua argumentação e seu discurso.

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A proposta da segunda questão da prova de redação do PSS 2008 da Universidade Federal da Paraíba apresentou um texto publicitário com o título “O que faz você Feliz?” e o seguinte comando: Esse texto apresenta uma série de elementos e situações que podem levar as pessoas a se sentirem felizes. Nele, o leitor, por vezes, é interpelado sobre a seguinte pergunta: “O que faz você feliz?”Considerando que uma empresa realizará um concurso para premiar o(a) candidato(a) que melhor responda, por meio de uma carta, à pergunta “O que faz você feliz?”, e supondo que você participará desse concurso, redija seu texto, observando as seguintes orientações: • Siga a estrutura padrão de uma carta; • Dirija sua carta ao gerente da empresa; • Use a norma culta da língua escrita; • Redija sua carta com, no mínimo, 10 linhas e, no máximo, com 15; • Assine sua carta usando o pseudônimo “O(A) Sonhador(a)”.”

Antes de apresentarmos os resultados da análise, é preciso salientar que o comando da questão determina o interlocutor da carta (o gerente), conseqüentemente o nível de formalidade a ser impresso na carta, uma vez que se trata de uma interação entre duas pessoas que não se conhecem, além de estar essa carta situada em uma esfera pública. Além disso, o interlocutor (o gerente) deve ser tratado com a formalidade e o respeito que o cargo exige, nem mais nem menos. Portanto, a resposta à pergunta “O que faz você feliz?” deve ser pensada como adequada a uma situação pública e formal e, ao mesmo tempo, deve atender ao tema proposto. As produções textuais analisadas por nós, neste artigo, são as apresentadas como resposta a essa questão, sobre as quais teceremos alguns comentários que devem ser considerados como resultado de uma análise qualitativa das referidas produções, salientando que nosso olhar centrou-se em como o interlocutor está materializado ou referido nessas produções. A referência ao interlocutor é feita lingüisticamente de várias maneiras no material produzido pelos candidatos, como se pode observar a seguir, sendo o vocativo a forma mais recorrente, com a presença de referência ao interlocutor também no interior do próprio texto, mas em número mais reduzido.

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3. A PRESENÇA DO INTERLOCUTOR NOS TEXTOS PRODUZIDOS POR CANDIDATOS NO PSS 2008: UMA AMOSTRAGEM





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3.1 O INTERLOCUTOR MARCADO LINGÜISTICAMENTE APENAS PELO VOCATIVO





Convém assinalar que, na maior parte das cartas, o uso do vocativo, ou de algo equivalente, é a única forma de identificação do interlocutor. Nesses casos, a referência é feita através do vocativo, ou de um endereçamento ocupando o lugar do vocativo, sem nenhuma outra forma de identificação do interlocutor no corpo da carta. O vocativo é lingüisticamente atualizado de diferentes formas: a) b) c) d) e)

Sr. Gerente Prezado Sr. Gerente Prezado Gerente Prezado Gerente da Empresa Caro Gerente

Todos esses usos traduzem um tratamento respeitoso e formal para com o interlocutor. As formas acima – Senhor, Prezado (senhor), Caro (senhor) – são adequadas à situação descrita no enunciado da questão de redação, uma vez que o produtor do texto (candidato) deve se dirigir a um gerente de uma empresa, até então desconhecido, a fim de participar de um concurso público. O tratamento formal, nesse caso, mais do que adequado, se faz necessário. O uso acima revela, inicialmente, a consciência dos candidatos no que diz respeito ao contexto discursivo, à utilização do gênero e da linguagem adequados a esse contexto. Mesmo que no decorrer da carta esse interlocutor marcado pela função social que ocupa na empresa não seja mais referido, o uso dos vocativos acima nos permite afirmar que esses candidatos têm, no mínimo, o conhecimento de que para que um texto seja caracterizado como carta, pelo menos o vocativo precisa estar lingüisticamente marcado em um espaço já determinado. Em outras palavras, o gênero carta tem uma estrutura ‘estética’ socialmente (re)conhecida. Em alguns textos, os candidatos substituíram a função do interlocutor por um nome próprio fictício, criado por eles, como apresentado e nos exemplos abaixo: f) Prezado Sr. Antônio Pereira g) Senhor Paulo do Nascimento Silva h) Prezado Gerente Pedro Nos exemplos f e g, pode-se perceber que os candidatos simulam uma situação real de comunicação, tratando, inclusive, o interlocutor por senhor, além de dar-lhe nome e sobrenome, imprimindo à interação uma certa formalidade.

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i) Ilmº Sr. Gerente j) Exº Sr. Gerente Nesses casos, os elementos lingüísticos utilizados no vocativo imprimem um tratamento de formalidade excessiva para a situação comunicativa. Tratar por ilustre ou por excelência um gerente de empresa não é o que se espera, já que esses tratamentos são reservados, na nossa sociedade, para autoridades civis socialmente reconhecidas. Outro problema de tratamento bastante peculiar se pode perceber, ainda, nos exemplos abaixo: k ) Olá, Sr. Gerente l) Querido gerente O exemplo k mostra claramente uma confusão entre formalidade e informalidade. O candidato trata o interlocutor por senhor, mas utiliza uma saudação bastante informal: olá. No exemplo l, outro fenômeno de informalidade aparece: o locutor escolhe uma forma utilizada em contextos informais e de intimidade para se referir ao interlocutor. O uso de “querido” é inadequado à situação comunicativa, no entanto poderia funcionar como forte elemento argumentativo, uma vez que pode ser uma estratégia de tentativa de aproximação do locutor com o interlocutor. Porém, a continuidade do texto não confirma a utilização desse termo como estratégia argumentativa, confirmando a inadequada utilização do tratamento. Isso revela, a priori, a dificuldade de os candidatos lidarem com diferentes interlocutores em diferentes situações de formalidade. As ocorrências de j a l levam-nos a presumir que o gênero carta, embora considerado um dos mais utilizados socialmente, não tem ainda sua forma de produção muito clara, porque também não parece clara sua importância social nos espaços onde se dá sua circulação – pelo menos não pelos candidatos a esse exame seletivo. Tal constatação sugere que a noção de gênero discursivo adotada pelos documentos oficiais do MEC ainda não está bem sedimentada, principalmente porque esse gênero apresenta subgêneros de acordo com o meio onde circula e com o interlocutor a quem está endereçado. Acrescente-se que o gênero carta não se concretiza somente pela presença de um vocativo, mas é necessário que o corpo do texto apresente características de uma interação pública ou pessoal (diálogo) entre, pelo menos, duas pessoas.

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No entanto, o exemplo h mostra alguma dificuldade em lidar com a formalidade marcada pelo tratamento, uma vez que é utilizado só o primeiro nome para se dirigir ao interlocutor, o que não seria adequado para a situação de formalidade que se exige em uma carta dirigida a uma instituição (empresa). Ainda aparecem no corpus outras formas de vocativo, tais como:





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Verificamos, ainda, o vocativo, ligado ao corpo do texto, como é possível observar nos dois exemplos abaixo:





m) Caro Sr. Gerente, são ínfimas as situações que me trazem felicidade... m) Querido gerente do Pão de Açúcar, o que me faz feliz é estar reunido... O que se pode perceber, nessas duas ocorrências, é que os candidatos não dominam as características formais do gênero, uma vez que, em ambos os casos, o vocativo não está separado do corpo do texto, mas dele faz parte. No exemplo m, o locutor trata o seu interlocutor de forma ‘aceitável’, no entanto, no exemplo n, ocorre exatamente o que se deu no exemplo l comentado acima: o locutor trata o locutor de maneira íntima e bastante informal, quase que fugindo do subgênero solicitado. Outra ocorrência não menos comum, no corpus, é o vocativo substituído por um endereçamento, ou se confundindo com este: o) Ao Sr. Gerente, p) Ao gerente da Empresa Pão de Açúcar q) Para: Sr. Gerente Maurício Lima Nesses exemplos, o que se percebe é a substituição do vocativo por um endereçamento. Nos casos em que esse fenômeno acontece, é exatamente no local em que deveria figurar o vocativo que aparecem as formas acima, marcadas pelas preposições a ou para. Constata-se uma mistura de endereçamento e vocativo, uma vez que, em alguns desses casos, essa é a única forma pela qual o produtor do texto assinalou a presença do interlocutor. Outras formas lingüísticas foram utilizadas como forma de referência ao interlocutor, como a de endereçamento abaixo, porém em menor número: s) Dirigida ao senhor Abílio Diniz t) Do Diretor da Escola Sabedoria Ao Gerente do Pão de Açúcar Pedro Vaz de Lima Prezado Sr No exemplo s, fica clara a intenção do endereçamento, mas também aparece o tratamento e esse ocupa, no corpo do texto, a posição de vocativo. Já no exemplo t, além do endereçamento, há o vocativo. Esse caso revela uma variação de algumas cartas comerciais e oficiais, em que aparecem o vocativo e o endereço, na folha da própria carta. Percebe-se, ainda no exemplo t, a preocupação de identificar instituições, o que remete para a carta comercial ou oficial, fugindo um pouco da proposta de redação do concurso.

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3.2 O INTERLOCUTOR MARCADO LINGÜISTICAMENTE TAMBÉM NO CORPO DA CARTA O gênero carta requer que o interlocutor, marcado inicialmente pelo vocativo, seja o interlocutor com quem o locutor vai dialogar, mesmo que a distância, no decorrer do texto. Espera-se que esse interlocutor (auditório) seja interpelado no decorrer da carta através de marcas lingüístico-discursivas as mais diversas. No entanto, muitas vezes, como vimos, no primeiro grupo, esse interlocutor marcado pelo vocativo não mais é interpelado no decorrer da carta. Muito embora a única referência ao interlocutor, na maior parte dos textos produzidos, seja a presença do vocativo ou do endereçamento, em algumas correspondências analisadas, o locutor também se faz presente no corpo do texto, assinalado por diferentes formas lingüístico-discursivas. Quando isso ocorre, o locutor do texto estabelece um diálogo permanente com o interlocutor do texto, muitas vezes deixando registradas suas intenções. Os exemplos abaixo demonstram esse fenômeno: u) Senhor gerente, é com imensa alegria que lhe escrevo esta carta, respondendo sua pergunta, “o que me faz feliz?” [...] Terminando essa carta lhe digo: não importa onde eu esteja, o que importa é ser feliz acima de tudo. Nesse fragmento, a marca do interlocutor, através das formas em negrito (destacadas por nós), demonstra a tentativa de o locutor manter esse diálogo com o seu interlocutor desde o início do texto. Essa estratégia permite ao primeiro uma maior aproximação com o segundo (destinatário), e funciona como estratégia argumentativa, uma vez que, criando aproximação, sem, no entanto, ferir a formalidade que o gênero e a situação requerem, o locutor apresenta-se mais persuasivo, aproximando-se do seu interlocutor. A presença do interlocutor, marcada no interior do corpo da carta, também funciona como uma estratégia de persuasão no exemplo: v) Como vai? Estou escrevendo esta carta, para dizer-lhe que me sinto muito feliz participando deste concurso, e também para falar das coisas que me fazem feliz...

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Mais uma vez, pelas ocorrências, constata-se o desconhecimento por parte de alguns candidatos da variedade de cartas que circulam socialmente, bem como quando usar adequadamente cada uma dessas variedades, sem incorrer em erro. Percebe-se que a carta é levada para a sala de aula, mas talvez ainda não seja trabalhada na perspectiva de gênero discursivo.





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Além de estabelecer contato, o locutor traz o diálogo para o nível da oralidade com a pergunta dirigida ao interlocutor: “Como vai?” Essa pergunta, no entanto, não prejudica a formalidade do texto no contexto, mas funciona como estratégia discursiva, objetivando aproximação entre locutor e interlocutor. Essa estratégia também é perceptível quando o locutor expressa para o interlocutor sua felicidade em participar do concurso. participando deste concurso, e tambarta, para dizer-lhe que me sinto muito feliz correpondha da prs abaixo: x) Fazer coisas simples é o que me faz feliz. Gerente, espero que goste dos meus argumentos. Nesse fragmento, fica nítido que o locutor utiliza a expressão “Gerente” para chamar a atenção do seu interlocutor, garantindo não somente a compreensão do dito, mas chamando a atenção para os argumentos apresentados a seguir, que, por sua vez, funcionam como uma estratégia argumentativa para deixar clara a intenção do locutor de vencer o concurso em questão. Estratégia semelhante se percebe no trecho abaixo, retirado de uma outra carta: z) Certo que, V. Sr. me escolherá para exerce este, cargo. Atenciosamente, Nesse exemplo, o locutor se refere ao interlocutor de maneira bastante persuasiva, escolhendo um modalizador epistêmico asseverativo (certo que)2 e utilizando um tratamento bastante formal (V. Sr. – por V. Sa.). Essa estratégia revela a intenção do locutor bem como mantém o diálogo iniciado no texto, através do vocativo. Mesmo que em número bem menor, as cartas que apresentaram o interlocutor marcado no vocativo e no corpo do texto revelam-nos um melhor domínio do gênero carta por parte dos candidatos, uma vez que evidencia que o diálogo (interlocução) não é garantido somente pela marcação do vocativo. Interagir com alguém através de uma carta requer muito mais do colocar adequadamente o vocativo, mas também estabelecer e manter o diálogo do início ao fim do texto.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES As observações aqui apresentadas devem ser lidas como primeiras por 2

Modalizadores epistêmicos asseverativos ocorrem quando o falante considera verdadeiro o conteúdo da proposição, ocorrendo um alto grau de adesão do falante com relação ao dito.

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1) lingüisticamente apenas pelo vocativo; 2) lingüisticamente também no corpo da carta. Saliente-se que a segunda forma, que dá conta do conceito de carta na perspectiva de gênero discursivo, apareceu em número muito menor. Essa constatação permite-nos questionar se, no Ensino Médio, a noção de gênero está sendo trabalhada ou se ainda prevalece a noção de tipo, que privilegia somente a estrutura canônica de um texto. Os dados nos apontam um desconhecimento de grande parte dos candidatos do que seja o gênero carta e suas características semânticodiscursivas e sociais. Esse desconhecimento revela-se pela predominância de cartas com o interlocutor marcado apenas no vocativo, o que mostra o desconhecimento da necessidade de o diálogo não só começar pelo vocativo mas também ter continuidade no decorrer do corpo da carta, através de diversas marcas lingüístico-discursivas. Ressalte-se que nossa pesquisa é de caráter qualitativo, mas os resultados podem ser um alerta de como o ensino do gênero vem acontecendo nas escolas de Ensino Fundamental.

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resultarem de uma análise qualitativa em um corpus que, embora tenha sido produzido por alunos advindos de escolas diversas do Ensino Médio, é o produto de um processo seletivo. A partir do conceito de carta na perspectiva de gênero discursivo, podese afirmar que não só a determinação prévia do destinatário (interlocutor) mas também sua presença marcada lingüisticamente no vocativo e no corpo da carta são critérios imprescindíveis nesse gênero. E foi a partir desse conceito que “olhamos” as cartas produzidas pelos candidatos. Os dados revelaram-nos os que o interlocutor está marcado, nas cartas, predominantemente, de duas formas:





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REFERÊNCIAS













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SOBRE OS MECANISMOS LINGÜÍSTICOS SUBJACENTES AO GESTO DE RASURAR (The Subjacent Linguistics Mo asing) Movvements to the Act of Er Erasing) ABSTRACT The objective of this work is to investigate the subjacent movements to the act of erasing produced by pairs of students while combining and writing a story invented in the scholar context. However, in this work the erasures focused attest the presence of the equivocal as a language constituve and the sense produced from here. The methodological procedure how the data were collected, consisted in filming a pair of students from the moment in which they combined an invented story, to the moment of writing and concluding it. The registers named by Lacan as Real, Symbolic and Imaginary revealed themselves essential in the development of the work, since they join unconcious, subject, language and discourse. The example shows that the erasure is not, in spite of the students intentions, instrument of “correction”. It is desired to show that the erasures made by the students point to a movement that searches the similarity, to the recognition between to what is said/written and about what “should” be said/written. However, the “listening”, efect of this recognition, does not flow in the same direction, because there are erasure cases that englobe not only a “listening” but also what here is named “equivocal-listening”: the student when searching similarity, the unit of chunks of language, sometimes erases what is already “correct”, producing this way a equivocal. Keywords Keywords: Erasure, equivocal, scholar context. RESUMO O objetivo deste trabalho é investigar os movimentos subjacentes ao gesto de rasurar produzidos por duplas de alunos enquanto combinam e escrevem histórias inventadas em contexto escolar. Entretanto, focamos as rasuras que atestam a presença do equívoco enquanto constitutivo da língua e do sentido que aí se produz. O procedimento metodológico através do qual os dados foram coletados consistiu em filmar uma dupla de estudantes desde o momento em que combinavam uma história inventada até o momento de escrevê-la e concluí-la. Os registros nomeados por Lacan como Real, Simbólico e Imaginário revelaram-se essenciais no desenvolvimento do trabalho, uma vez que é possível através deles articular o inconsciente com o sujeito, com a língua e com o discurso. O exemplo mostra que a rasura não é, a despeito das intenções dos estudantes, instrumento de “correção”. Pretendemos mostrar que as rasuras feitas pelos estudantes apontam para um movimento que busca a semelhança, através do reconhecimento sobre o que foi dito/escrito e o que deveria ter sido dito/escrito. Entretanto, a “escuta”, efeito deste reconhecimento, não caminha sempre nesta direção, uma vez que há rasuras que atestam o que aqui chamamos de “escuta equivocante”, pois, o aluno, ao procurar a semelhança, a unidade, por vezes rasura o que estava correto, produzindo um equívoco. Pala vr as-c ha alavr vras-c as-cha havv e : rasura, equívoco, contexto escolar.

Neste artigo apresentamos os resultados de uma investigação em que abordamos a questão da rasura e os mecanismos lingüísticos que a ela estão subjacentes. Tentaremos mostrar, de um ponto de vista lingüístico-discursivo, o * UNCISAL ** UFAL

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Cristina Felipeto * Eduardo Calil **









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que pode levar um aluno a voltar-se sobre o que disse ou escreveu e promover uma rasura. Vale apontar que as rasuras têm uma forte relação com aquilo que “parece estar errado”, pois o sujeito apenas rasura o que disse ou escreveu quando é afetado pelo seu dizer ou pela sua escrita, o escutando1 como “errado” (mesmo que não o esteja, de fato) ou insatisfatório e o reformulando. Como diz Willemart (1996, p. 02), a rasura “assinala em primeiro lugar uma atitude negativa, um ‘não gosto disso’, uma impressão de falta ou de falha na escritura que empurra a mão para suprimir a escrita anterior por uma razão muitas vezes desconhecida pelo próprio escritor”. Certamente que colaboram para este movimento questões gramaticais, estéticas e padrões exigidos pelo gênero textual em questão. Para tratar das relações entre as rasuras, seus mecanismos e o aluno que escreve, assumimos uma perspectiva que considera sujeito e língua como mutuamente se constituindo e a língua, enquanto aquilo que, no dizer de Milner (1983, p.19), “suporta o real da alíngua2”. Se a língua suporta (no duplo sentido de sustentar e, ao mesmo tempo, sofrer os efeitos) a alíngua, isto equivale a dizer que a língua toca o Real, que na língua há o equívoco enquanto efeito deste Real, provocando o duplo sentido e quebrando os estratos. Entendemos a rasura3 tanto como um gesto que, no processo de escritura 1

A noção de “escuta” foi proposta por Lemos (1999) e remete à psicanálise, no que ela se difere do ouvir. 2 Lacan (1985, p.180) forja o termo alíngua (lalangue) para nomear o não-todo, o que resiste a ser apreendido em uma totalidade e afirma que “o que se sabe fazer com alíngua ultrapassa de muito o que podemos dar conta a título de linguagem (...) uma linguagem sempre hipotética com relação ao que a sustenta, isto é, alíngua. M. T. Lemos (1994, p.39) aponta, na alíngua, “a amarração fundamental entre desejo e língua, sujeito e significante”. Já Milner (1987, p.18), afirma que alíngua é o que de fato se fala, e é “aquilo pelo qual, de um único e mesmo movimento, existe língua (ou seres qualificáveis de falantes, o que dá no mesmo) e existe inconsciente”. 3 Tomamos a rasura escrita como um movimento que altera a primeira escritura, seja através de substituições, acréscimos, deslocamentos e supressões. A escritura que se ausenta na 2a versão também é considerada rasurada. Já na rasura oral há uma irreversibilidade do dizer: anula-se, apaga-se, ao mesmo tempo em que se “acumula” o dizer, isto é, “corrigir” oralmente é continuar falando, é acrescentar ainda mais. Não há como suprimir as palavras e a sintaxe da correção oral: eles são seus instrumentos. Assim, se a imprevisibilidade que surge na escrita pode ser apagada, rabiscada, no oral, ela permanece inscrita inevitavelmente no desenrolamento temporal da cadeia. Afirma Calil que “as rasuras orais [...] parecem trazer uma particularidade para as reformulações orais, pois o fato de os alunos estarem falando algo para ser escrito interfere na própria possibilidade de enunciação. Não se reformula considerando somente aquilo que se acabou de falar, mas também aquilo que já foi efetivamente escrito e que pode sofrer diferentes formas de rasura escrita ou, ainda, aquilo que se disse em relação ao que poderá ser escrito” (2003, p. 31-32).

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1. A RASURA E SUAS FORÇAS PROPULSORAS Interessa-nos, neste trabalho, abordar a relação entre a rasura e o equívoco, mostrando, a partir de então, quais são as forças que propulsionam a reformulação, as rasuras efetivadas por um falante ou escrevente. Para tanto, partiremos de uma hipótese, a saber, que a rasura está diretamente ligada a um “sentimento de estranheza” do escrevente. Assumimos, a partir de Freud (1969) que o “estranho é aquela categoria do assustador que remete ao que é conhecido, de velho, e há muito familiar”. A quebra desse familiar, que produz estranhamento, vai convocar o sujeito ou o outro que com ele interage ou a quem ele se dirige. É no estranhamento que vemos o ponto de partida para que se produza um efeito de retorno, sem o qual não há rasura, naquilo que o equívoco já se fez presente ou poderá, a partir da rasura, se instalar. Porém, é preciso apontar que o sentimento de estranheza não ocorre somente quando se tem a produção de um erro; pode-se estranhar uma forma de expressão, uma construção sintática, questões textuais, traduzidas, por exemplo, com a preocupação em evitar a repetição de um item lexical, etc. Tais rasuras não estão necessariamente ligadas a um “erro”. Novaes (1996) aponta a dimensão sedutora do estranhamento. Quando não conseguimos amarrar o que o outro ou nós mesmos dizemos em uma unidade de significação, esse dizer nos convoca, nos interroga, nos seduz, na medida em que encontramos, em nós mesmos, um sentido excedente, uma falta de sentido

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Calil (2004), já aponta o fato da equivocidade acarretar um processo de rasuramento. Nesse sentido, “a rasura, apesar de aparentemente indicar o controle do autor sobre o texto, na verdade o ultrapassa” (op. cit. p. 100), isto é, o gesto de rasurar supõe algo anterior que vai muito além da possibilidade de domínio do sujeito.

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de textos em sala de aula, busca a semelhança, a unidade do dizer, quanto aquilo que, ao procurar fazê-lo, isto é, ao buscar aproximar-se da forma “certa”, “correta”, também acaba produzindo um “erro” ou um equívoco. Fenômeno essencial do processo escritural, a rasura produz uma tensão entre o conhecido e o desconhecido, entre o esperado e o inesperado, entre o previsível e o imprevisível. Mas, ela também surge de um equívoco que irrompe no momento da escritura4, no intuito de barrar a forma que foi escrita sem a intervenção voluntária do sujeito. Entrevemos, então, dois movimentos no que tange às rasuras: um que provoca o equívoco e outro que é por ele provocado. Desse modo, o equívoco, provocado pela e provocador da rasura será abordado aqui como uma das peças que movimentam o jogo lingüístico subjacente ao gesto de rasurar.





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ou, mais que isto, uma possibilidade recalcada da língua5. Freud, ao definir o estranho como algo “que deveria permanecer oculto, mas veio à luz”, afirma que: O efeito estranho da epilepsia e da loucura tem a mesma origem. O leigo vê nelas a ação de forças previamente insuspeitadas em seus semelhantes, mas ao mesmo tempo está vagamente consciente dessas forças em remotas regiões do seu próprio ser.

Assim, ao estranharmos o dizer de um louco6, o que nos assusta e ao mesmo tempo nos convoca, pelo que nela escutamos, é o fato de percebermos que o que foi dito por ele poderia ser dito por nós, no sentido de que reconhecemos aí a materialidade da língua, por tratar-se de uma possibilidade dela esquecida7. A fala de um esquizofrênico, por exemplo, frustra-nos por não haver “qualquer movimento de retorno exigido pela promessa de sentidos que não se cumpre” (NOVAES, 1996, p. 83), pois o esquizofrênico, como a autora mostra, não se estranha, nem escuta o estranhamento vindo do outro8. Em um sentido diferente, poderíamos também dizer que a fala da criança nos interroga, como têm procurado mostrar alguns pesquisadores em aquisição de linguagem9. Ademais, a criança também não escuta o estranhamento vindo do outro no momento inicial de sua fala que Lemos (1992, 1995, 1999, dentre outros) caracteriza como sendo a 1a posição. Aqui, sua fala é predominantemente metonímica, seus significantes vêm do outro e a contenção da deriva é feita através das interpretações da mãe, a qual assegura que o deslize não seja indefinido. Para exemplificar o que estamos querendo dizer, recorremos a um diálogo entre mãe (M) e filha (Ma) analisado e apresentado por Lemos (1999), na qual a primeira busca colocar a fala da segunda em uma cadeia textual-discursiva:

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Segundo M. T. Lemos (1994, p.104), essa possibilidade “só nos é revelada na poesia, no chiste, no sintoma – ou seja – nas dobras da alíngua”. 6 Trata-se de um dizer que não faz elo, laço social, um dizer puramente metonímico ou metafórico, que desliza sobre o fluxo do discurso sem estancar, sem formar unidades de significação socialmente partilhadas. 7 Um dizer em uma língua desconhecida pode provocar riso, desdém, descaso, mas estranhar a própria língua pode causar espanto, perplexidade, “desconforto”, como diz Novaes (1996, p.99). 8 Ainda segundo Novaes, ibid. (101), “a inacessibilidade aos dizeres nas esquizofrenias vem da inacessibilidade a uma estrutura em que nem tudo está simbolizado – a estrutura psicótica”. O dizer esquizofrênico mostra-se impermeável a qualquer tentativa de atribuição de sentidos pelo outro. 9 É o que Lemos procura mostrar em seus trabalhos e o que M. T. Lemos assume como hipótese inicial em sua tese (1994). Vide Bibliografia.

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Chamamos a atenção para as várias tentativas por parte da mãe de significar o que, na fala da criança, ainda é desprovido de significação. Primeiramente, interpretando o “pô” ou “bô” como “quebrou”; em seguida, como o verbo “pôr” e, finalmente, como uma forma reduzida de um nome próprio, “O Pô”. É através dos esforços de interpretação da mãe que os significantes da criança vão passando da ordem de indeterminados para determinados – tanto semântica, quanto fonológico e sintaticamente. Apesar da atribuição de sentido por parte da mãe, até mesmo de sua correção, a criança não escuta, permanecendo impermeável e não identifica, ainda, qual enunciado seu provocou estranhamento no outro. Quem estranha é a mãe. É neste sentido que estamos falando em “sentimento de estranhamento”: uma relação entre sujeito, língua e sentido que produz a possibilidade subjetiva da escuta. O estranhamento demanda um retorno sobre o dito (de si mesmo ou do outro), já que algo se produz como diferença na língua já estabilizada. Portanto, para escutar a diferença é preciso estar na e escutar a semelhança, pois, como diz Novaes (1996, p. 99): Algo totalmente desconhecido suscitaria sensações de curiosidade, de indiferença, ou até mesmo de escárnio... Mas o efeito de estranhamento não. Ele provoca desconforto. A minha língua me causa desconforto. Estranhar a própria língua é estranhar o colo da mãe.

Esta metáfora entre estranhar, língua e colo da mãe precisa bem este “sentimento de estranhamento” que trazemos aqui à discussão. Algo que tem o semblante familiar, com o qual nos identificamos, mas que simultaneamente produz-se como falta ou como excesso, demandando daquele que escuta uma (nova) significação. E esse algo é bem da dimensão do equívoco. Entendemos o equívoco, a partir de Milner (1983), como aquilo que, na língua, provoca o 10

Este dado foi extraído de Lemos (1995); os números entre parênteses referem-se à idade da criança neste momento, na sequência (Ano; mês:dias).

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(1)10 Ma (1;8:6) se aproxima da televisão e sua mãe (M) tenta afastá-la do aparelho. Ma: não/não/pô (ou bô) M.: quebrô sim. Ma: a pô. M: é, vai pô. Você não sabe por. Ma: a pô. M: O Pô vem aqui amanhã. Amanhã o Pô com a Titê vai levá a Mariana na praia. M: iáiá/iáia M: Ai que gostoso que a Titê vai chegar, né filhinha?





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duplo sentido e quebra os estratos, podendo abarcar tanto o um a mais de sentido, quanto aquilo que pode não apresentar sentido algum. Lembramos aqui o que diz o autor: “...uma locução, trabalhada pelo equívoco, é ao mesmo tempo ela mesma e uma outra” e “o equívoco se resolve em um fantasma11 nascido da conjunção indevida de vários estratos” (1983, p.13, o destaque em itálico é nosso). Sem negar que a língua seja um objeto único e regular, Milner ainda afirma que a língua, enquanto estrutura, possui um ponto de falta irremediável, o que a torna um meio singular de produzir equívocos. Uma das propriedades que o autor atribui à língua é o seu aspecto dentelé12. Podemos imaginar então uma correia que, embora apresente uma série de dentes muito próximos, interligados e articulados, não se pode deixar de observar um espaço, uma lacuna entre cada um deles. Assim, ao mesmo tempo em que a metáfora do dentelé deixa ver tanto a linearidade da linguagem quanto os termos dispostos em uma relação sintagmática (metonímica), ela quebra com o seu semblante homogêneo, pois o espaço entre cada um dos dentes traz à cena a relação paradigmática (metafórica), onde os termos que permanecem in absentia podem interferir na estabilidade da cadeia. Aqui, chegamos à seguinte formulação: a rasura porta um “sentimento de estranhamento”. O estranhamento convoca uma relação entre algo familiar, semelhante e, ao mesmo tempo, diferente, faltoso, além de ter como motor de propulsão um equívoco, algo imprevisível ou inesperado. Três noções são, portanto, capitais para se compreender este “jogo” subjacente ao gesto de rasurar: (I) o equívoco que, segundo Milner, suspende os estratos da língua, confunde os sentidos. Este equívoco pode suscitar um (II) estranhamento enquanto algo que nos convoca através de uma diferença, uma inquietude, na medida em que reconhecemos aí uma possibilidade esquecida/recalcada da língua. Estranhamento este que pode levar o sujeito a uma (III) escuta, a qual efetiva um retorno sobre o dito/escrito, condição de toda forma de rasura, seja oral ou escrita.

2. “A DEUS SAPINHO”: O JOGO HOMONÍMICO NA PRODUÇÃO DO EQUÍVOCO E DA RASURA Os estudos que têm discutido o problema da reformulação imputam-lhe a idéia de “adequação” progressiva entre o que se disse/escreveu e o que realmente “se pretende” dizer ou escrever, apagando assim um funcionamento que é tanto lingüístico quanto discursivo e que incide sobre aquele que escreve. Na vertente psicológica, a “reformulação” do erro (estando o estatuto da rasura já aí suposto) é sinal de uma atitude reflexiva do sujeito sobre a linguagem. É o que testemunham Lier-de-Vitto e Fonseca (1997, p. 51) quando afirmam que: 11 12

“Fantôme”, “fantasma”, “aparição”. Milner (2002, p.146).

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Disto segue a idéia de que no “erro” há “falha”, distorção entre a intenção do dizer e do que foi dito. Para o pesquisador que adota isto como pressuposto, se ali há “falha”, na rasura, ao contrário, há um movimento em direção ao “acerto”, à adequação. Tratamento bem diferente é dado por alguns pesquisadores da Crítica Genética, dentre os quais destacamos aqui os trabalhos desenvolvidos por Willemart e alguns já citados anteriormente neste trabalho. Em seus trabalhos, as rasuras deixadas nos manuscritos literários funcionam como “senhas” para compreender os mistérios que envolvem o processo de criação literária e os caminhos trilhados pelo autor. Segundo o autor, o que os manuscritos revelam são situações sitiadas de angústia vivenciadas pelo escritor e os projetos e planejamentos que o autor faz antes de escrever não impedem que ele perca – ao menos em parte – sua autonomia durante o processo de escritura, passando inclusive a depender dela. O escritor, ao entrar no “labirinto inantecipado da criação” (1991, p.65), não pode prever o que fará, por onde irá. Submetendo-se ao imprevisível processo de criação, sente dificuldades em encontrar uma saída, apesar das prévias anotações e planejamentos que faz. “Não há antes, não há um momento determinado que precede o acontecer poético. Há o silêncio” (1991, p.72). A rasura pode, portanto, provocar o silêncio, abrir um buraco, instaurar um vazio, um nada, deixando o autor como que desabrigado, mas pode também transgredi-los, transformando-se em origem de toda criação. Neste sentido, a rasura traz, paradoxalmente, o silêncio e a voz (d’Outro). Segundo o autor, “a rasura cria um espaço de tempo que pode ser preenchido por um silêncio de segundos ou anos, silêncio de espera no qual vão se engolfar ruídos, lembranças, ritmos, variações, idéias, etc. É um momento de padecimento no qual o escritor sofre a paixão da ignorância” (2002, p. 80, ênfase em itálico nossa). O dado que apresentaremos abaixo13 mostra bem, a nosso ver, esta sensação de desabrigo, de desamparo, de vazio, a partir da rasura (oral ou escrita) 13

Este dado faz parte do banco de dados “Práticas de textualização na escola”, organizado desde 1996 pelo professor e pesquisador Eduardo Calil. O banco possui, hoje, mais de 1500 manuscritos, pertencentes a diversos gêneros discursivos, escritos por alunos de 1a a 8a séries do ensino fundamental e coletados em escolas públicas e particulares da cidade de Maceió (AL), Rio Largo (AL) e São Paulo (SP). O banco conta também com, aproximadamente, 80 filmagens de práticas de textualização, nas quais alunos, a partir da solicitação de professores, escrevem histórias, fábulas (narrativas e ficcionais) ou poemas inventados. Maiores informações podem ser acessadas no site: www.cedu.ufal.br/ grupopesquisa/manuscritosescolares.

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Na área da aquisição da linguagem, as reformulações/correções/auto-correções são, em regra, tomadas como evidências empíricas de uma capacidade que se diz metalingüística. Tal expressão é utilizada para designar um momento na história do desenvolvimento em que a criança dá sinais de estar “monitorando” a linguagem.





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produzida por um sujeito sobre o próprio dizer ou pelo dizer de um outro. Neste episódio, F e R estão escrevendo a história inventada “A princesa e o sapo”, sendo que, neste momento, F está narrando e R está escrevendo. Trata-se da história de uma princesa que saiu para passear na floresta e se perdeu dos seus amigos. Encontrando um sapo, pediu-lhe que lhe informasse o caminho certo. Após o sapo tê-la ajudado, ela disse “adeus, sapinho...”. O diálogo que se segue diz respeito justamente a esta despedida: Fragmento14 (1) F: “(continuando) então ela encontrou... e então... então... (2) R: “(escrevendo) [e en..]..” (3) F: “(impaciente) bote o ‘t’! (R escrevendo ‘então’ e F continuando) [e en tão ela] encontrou... controu...[ela encoc encontou] e disse... adeus sapinho! (repetindo) então ela disse... adeus sapinho! mais caiu né uma bruxa... (novamente percebe que R. não companhou, repetindo, enfática) adeus sapinho! adeus sa..pi..nho...(R. continuando a escrever) [ela falou a deus] deus, é? (diz F, impaciente)” (4) R: “(referindo-se ao ‘r’ que falta na palavra ‘encontou’) Deus! não tem o ‘r’ não, Deus!...” (5) F: “é ‘d’? (referindo-se ao “d” em maiúsculo)” (6) R: “(impaciente) é deus, chama...” (7) F: “óia, deus....” (8) R: “(revelando angústia) óia aqui... deus... chama a tia!” Chama a tia!” (9) F: “(chamando a professora) ô tia! (a professora se aproxima) tá certo a palavra ‘deus’, ‘adeus’?” (a professora pede para que as crianças leiam para ela, e as alunas começam a reler a história) (10) R: “encontrou... e então ela falou a deus... não tá certo?” deus... Não tá certo?” (11) Professora: “adeus no sentido de ‘tchau’? então é junto... tem que colocar junto, tá certo? mas só que tem que ficar junto ‘a’..’deus’, ..se você separar é outro termo” (12) R: “então vai ter que riscar, né? (Ela liga ‘a’ e ‘deus’ com um tracinho)”. (F. 7;3. R. 7;11) É interessante observar que, em um primeiro momento, há certa indeterminação de “adeus”, pois, isolado do que o cerca, pode ser tomado como:

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Quando o nome do aluno aparecer sublinhado, significa que é ele quem está escrevendo. Já o colchete, mostra o que o aluno está escrevendo naquele momento.

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Inicialmente, R não descola para o “adeus”, no sentido de despedida, o que parece estar relacionado à indiscutível homofonia entre as formas acima expostas. Tanto que, quando F (turno 3) questiona impacientemente “Deus, é?”, R (turno 4), acredita que ela está se referindo ao “r” que faltava na palavra “encontou”, inclusive, utilizando “Deus” como uma interjeição: “Deus! Não tem o “R” não, Deus!.”. O “momento de padecimento no qual o escritor sofre a paixão da ignorância” sugerido por Willemart é aqui vivido por R, a qual, jogada ao vazio da escritura precisa desfazer a relação imaginária (de semelhança) provocada pela homofonia entre os elementos acima para refazer o sentido da frase já colocado em questão por F. Poderíamos dizer que R, em um primeiro tempo, não consegue enxergar nenhuma diferença entre “a Deus” e “adeus”. Sua compreensão parece ser desencadeada por F (turno 3) que insiste em mostrar o equívoco e R passa, assim, a tentar compreender o que ela aponta. A homonímia é, entretanto, uma barreira a qual ela não consegue (ainda) transpor. Todavia, após a interferência da professora (turno 11), R reconhece a diferença e conclui. Este tempo, que é lógico, estaria indicando o movimento significante: um significante que se descola de sua face imaginária (signo), fazendo signo em outro lugar. O estranhamento de R e o de F são de ordens diferentes. F estranha a quebra sintática e semântica provocada pela entrada de “a Deus” e reconhece o equívoco produzido por essa entrada, rasurando-a oralmente, questionando e cobrando de R uma reformulação. R, no entanto, estranha inicialmente o estranhamento de F, já que para ela não parece haver incoerência entre sua escritura e o sentido aí produzido. Mais detalhadamente, divisamos, no diálogo entre as alunas, dois momentos que contribuem para o descolar de R: Primeiro, é a escuta do professor (turno 11) – “adeus no sentido de ‘tchau’?” – e, segundo, a relação deste outro sentido que surge, agora, estabelecendo uma relação de oposição com o que seria previsível na continuidade da cadeia (“adeus, sapinho”). Desse modo, é apenas num só-depois que se vai criar, na relação de semelhança, uma diferença guardada pela posição que “adeus” ocupa na cadeia. É através dos efeitos restritivos da cadeia que deve emergir a diferença, obliterando-se a semelhança. Saussure ([1916] 1995), ao discorrer sobre a delimitação das unidades, nos apresenta as sequências homofônicas si je la prends e si je l’apprends, cuja determinação só pode ocorrer pelo sentido que a elas se atribua, sendo este

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(1) “a Deus”: encontrou o sapo e disse (dirigiu-se) a Deus; (2) “adeus”: forma de despedida que, segundo o Aurélio, significa “Deus te acompanhe”, “vá com Deus”; (3) “ah, Deus!”: a interjeição “ah” dá mais força e realce às palavras a que se junta. Esta expressão geralmente externa aflição, surpresa.





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“se” o lugar próprio do sujeito enquanto efeito do significante; é ele quem faz o recorte da “massa amorfa de sons” (significantes) de que fala Saussure no Curso, corte este que pode incidir sobre qualquer ponto da cadeia. Assim, um termo adquire o seu valor dependendo da posição que ocupa na cadeia e das relações que mantém com outros através de movimentos de ampliação e de restrição (1995) produzindo tanto a unidade quanto a ruptura. Como diz Milner (1983, p. 07), “a partir do dito de que há semelhante, concluiríamos que há dessemelhante, e disso, que há relação, posto que baste que dois termos sejam considerados semelhantes e dessemelhantes para que uma relação seja definível”. Isto é, para que um termo seja considerado dessemelhante é preciso que uma relação seja posta e, para que um termo seja reconhecido como semelhante é preciso considerar, sempre através da relação, sua dessemelhança. Encontramos aqui e com toda força, o peso da argumentação saussureana ao definir a língua como um sistema de puros valores. Ao fazê-lo, afirma Saussure: A idéia de valor, assim determinada, nos mostra que é uma grande ilusão considerar um termo simplesmente como a união de um certo som com um certo conceito. Defini-lo assim seria isolá-lo do sistema do qual ele faz parte; seria acreditar que se pode começar pelos termos e construir o sistema fazendo a soma destes, ao passo que, ao contrário, é do todo solidário que se deve partir, para obter, por análise, os elementos que ele encerra ([1916] 1995, p. 132, ênfase nossa).

Ora, “adeus” só adquire sua forma quando faz oposição não apenas com o que vem antes (“disse”) na cadeia. Aliás, até aqui nenhum problema, pois “dizer” distende-se tanto para “adeus”, “ah, Deus” ou “a Deus”. Apenas quando entra em relação com o que vem depois (“sapinho”) é que, por um efeito de retorno, “adeus” opõe-se a “disse” e adquire o seu valor. Ou seja, “sapinho” restringiu a continuidade de “ah, Deus” e “a Deus” na cadeia, muito embora “disse” tivesse ampliado/projetado sua entrada. Entretanto, R não reconhece, num primeiro instante, a diferença implicada na semelhança. É que elas (semelhança e diferença) precisam ser escutadas. Como diz Lemos, para que a criança possa passar do ouvir para o escutar e para o escutar-se, ela tem que passar pelo ‘dessubjetivar’ desse outro enquanto ‘esfera de onde se fala’ e se significa, assim como pelo ‘desobjetivar’ da cadeia sonora em sua projeção-transformação em ‘imagem acústica’15.

Sendo assim, a criança, ao recortar essa “massa amorfa de sons”, no instante em que o som detém-se fazendo beira, litoral com o que o segue ou 15

Lemos, Cláudia T. G. de (1996, p.10-11).

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3. A HOMONÍMIA SE FAZ PARA QUEM A ESCUTA: HOMONÍMIA NO “JOGO”? O reconhecimento, diz Calil (1999, 2007) ao apontar a interferência da homonímia na estabilidade da cadeia, já é efeito destas relações, efeito que a própria linguagem produz sobre aquele que diz e escreve. A opacidade de “adeus”/”a Deus” e o equívoco daí resultante, são produzidos pela homofonia. F a escuta; R também, ainda que seja através da escuta do outro. Assevera Novaes que: A homonímia se configura pela virada de uma coisa noutra coisa, de um efeitosujeito em outro e para isso é preciso que aquele que diz ouça, escute o que é dito e se espante, como nos lapsos, nos atos falhos, na prática psicanalítica, nos chistes e em todas as situações em que o que é dito é ouvido [diríamos, escutado] como uma outra coisa no instante da nomeação (1996, p. 116).

Entretanto, se porventura o sujeito não escuta, como poderia chamar de homonímia o que não se reconhece como semelhança (ou diferença)? Gostaria de apontar que a homonímia se faz, como efeito, para quem a escuta, quer dizer, as homonímias são homonímias porque aquele que as escuta assim as autentica, como homonímias. Assim, quem valida a homonímia como tal é o mesmo que demanda significação, seja o sujeito que escreve, que fala, um outro que com ele interage ou o pesquisador. O reconhecimento da semelhança é o que provoca a ruptura que abre para o momento (indeterminado) em que o sujeito escuta, então, a diferença. Virou homonímia, cessa-se o estranhamento. Entretanto, se esta história fosse “lida” para o professor, oralmente não haveria erro ou poderia não haver o reconhecimento da homonímia. A ausência de escuta da homonímia pelo próprio sujeito ou pelo professor pode fazer com que o equívoco produzido pela homonímia permaneça somente na esfera do erro gráfico ou gramatical. Na escrita desta história, entretanto, a homonímia produz uma quebra sintática, mas não há erro ortográfico ou gramatical, há apenas incoerência/ruptura de sentido provocada por esta quebra. 16

Arrivé, Michel (1999, p.99).

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precede, faz com que a significação, que antes estava “no limbo”, “sofrendo a sua paixão”, como diz Arrivé16 efetue-se, para fazer surgir um sentido outro. Momento da escuta, da mudança de posição na estrutura na qual está inserida. Se não há o reconhecimento de relações de diferença e semelhança, através de um tempo lógico próprio a cada sujeito, ele não desloca. Se for necessário que o sujeito reconheça a produção da homonímia para que desloque, como no caso de F e R, então a homonímia implica que se a escute.





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Mas, qual a relação entre o jogo subjacente à rasura e a homonímia? A relação está em que a homonímia engendra o jogo. O equívoco irrompe na língua através da homonímia, da homofonia, confundindo som e sentido, suspendendo os estratos (classes, propriedades, etc.). Neste sentido, o equívoco instaura-se a partir de uma torção daquilo que, na língua, está imaginariamente cristalizado. Se retomarmos os eixos metafórico e metonímico como aquilo que responde pelo funcionamento da linguagem, observamos que é no eixo paradigmático (metafórico) que se encontra a possibilidade de um significante substituir a um outro, por qualquer ordem de semelhança. Sendo assim, o equívoco, enquanto o que está na base de toda produção de rasura, é inerente ao próprio funcionamento da linguagem. Este equívoco pode produzir um estranhamento, condição para que haja um retorno sobre o que foi dito ou escrito. Gostaríamos de concluir dizendo que, diferentemente do que ocorre no dado aqui apresentado e nas produções de escritura a dois em sala de aula, nos dizeres esquizofrênicos a situação é totalmente outra. Lá, como atesta Novaes, “não há efeitos de estranheza sobre os próprios sujeitos” (1996, p. 82), já que o sujeito esquizofrênico não é afetado pelo seu dizer nem pelo estranhamento que vem do outro. Para ele, não há a possibilidade de ressignificar, de reformular, nem de sair do pântano de sua enunciação fragmentária e angustiante. É a escuta que tira o sujeito deste pântano do (não fazer) sentido. Através da rasura (oral ou escrita) tentamos amarrar o que dissemos ou escrevemos em uma unidade de significação, de modo que ela sempre ocorre como efeito de algo que falta para que o que foi dito/escrito faça sentido.

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PROJETOS DE ENSINO E RESSIGNIFICAÇÃO DA PRÁTICA DO PR OFESSOR DE LÍNGU TERN PROFESSOR LÍNGUAA MA MATERN TERNAA (Pr ojetc of Teac hing and RRessignif essignif ica tion of Teac her’ (Projetc eaching essignifica ication eacher’ her’ss Ma ter nal Langua actice) Mater ternal Languagge Pr Practice) ABSTRACT Considering that the teaching of maternal language has the purpose to expand the students’ linguistic activities, explaining them the important role of the writing in the learned societies, enlarging, therefore, their possibilities of social participation, this article has as an objective analyze linguistic practices which are developed from a teaching project as a strategy for the development of the reading and written competence of students from basic education (intermediate teaching level). For that, we considered the language in a discursive and declaring perspective of Bakhtinian base and the contribution of the learning studies. Keywords: literacy – teaching project – teaching of maternal language. RESUMO Considerando que o ensino de língua materna tem por objetivo expandir as atividades lingüísticas dos alunos, explicitando-lhes o importante papel da escrita nas sociedades letradas, ampliando, assim, suas possibilidades de participação social, este artigo tem por objetivo analisar práticas lingüísticas desenvolvidas a partir de um projeto de ensino como estratégia para o desenvolvimento da competência leitora e escritora de alunos do ensino médio. Para isso, consideramos a linguagem numa perspectiva discursiva/enunciativa de base bakhtiniana e a contribuição dos estudos de letramento. Palavras-chave Palavras-chave: letramento – projetos de ensino – ensino de língua materna.

A discussão em torno das práticas de letramento oferecidas aos alunos do ensino médio (EM) atesta a necessidade de ressignificação do ensino da escrita em nossas escolas. Do ponto de vista sintático-semântico-pragmático, algumas publicações já apontaram a “inabilidade” dos alunos para produzirem textos escritos (PÉCORA, 1999; COSTA VAL, 1999; GARCEZ, 1998). Relatórios de pesquisas produzidos por bancas de correção de provas de vestibulares indicam a “ineficiência” de alunos egressos do EM para usar recursos da língua adequados à interlocução, o desconhecimento da diversidade dos gêneros discursivos e a conseqüente “incompetência” desses alunos para a resolução das chamadas questões discursivas. Outras pesquisas apontam a necessidade de percebermos no texto do aluno não somente a sua dimensão formal, mas também os aspectos discursivos, * SECD-RN/CIC.







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investigando heterogeneidades, processos de significação e marcas de subjetividade, aspectos que podem contribuir com uma maior autonomia do produtor para emitir pontos de vista e valores construídos socialmente (OLIVEIRA, 2001; LIMA, 2001; SANTOS, 2004). Como vimos, as pesquisas têm ampliado o seu olhar sobre a escrita escolar e sinalizado a busca de melhorias para o ensino da produção textual escrita. Mas é preciso ir além. No âmbito da Lingüística Aplicada, a necessidade de ressignificação do ensino da língua materna na escola tem sido objeto de discussão e de reflexão em uma considerável produção teórica. Observamos mais recentemente, nesse mesmo campo de pesquisa, um crescente número de estudos sobre os saberes mobilizados nas práticas escolares sobretudo nos estudos que têm a formação de professores como foco, conforme atestam Bazarim (2005) e Tinoco (no prelo). Contudo, ainda é relativamente pequeno o número de trabalhos, cuja temática verse em torno de experiências com transposição didática. Convém ressaltar que empreender esse tipo de transposição em procedimentos pedagógicos não é tarefa das mais fáceis para os professores, nem na escola pública, nem muito menos na escola privada. Naquela encontramos obstáculos nas condições materiais, por exemplo, mas encontramos, sem sombra de dúvida, uma maior autonomia para agir. Nesta, embora disponhamos de uma gama de recursos didáticos e das mais modernas tecnologias de ensino, encontramos dificuldades de outra natureza. Dentre essas dificuldades, destacamos a relutância de muitos professores em se engajarem nas atividades interdisciplinares. Isso configurou-se num dos maiores obstáculos enfrentados e, certamente, em um dos pontos negativos da experiência. A despeito dos documentos oficiais proporem como objetivo de ensino a formação de leitores e escritores nas diversas áreas de conhecimento, no EM, isso não tem se efetivado; da mesma forma que o trabalho com projetos interdisciplinares ainda é algo incomum. Embora a fragmentação de saberes não faça nenhum sentido, a escola não tem levado em consideração que um estudo interdisciplinar permite a criação de um novo objeto, sem que este pertença especificamente a uma disciplina. Não queremos com isso dizer que todos os projetos aglutinem todas as disciplinas, mas que, na medida do possível, um mesmo objeto seja investigado em diversas áreas do conhecimento. Se a escola considerasse o papel dos projetos interdisciplinares como elementos facilitadores nas situações de ensino e de aprendizagem de leitura e de escrita ela teria maiores chances de sucesso no desenvolvimento dessas práticas. Nessa linha de reflexão, a escola precisa rever suas estratégias de ensino e delinear novas propostas, capazes de dinamizar as ações pedagógicas, de modo que permitam envolver um maior número de alunos em torno de uma problemática, fortalecendo neles o seu papel de agente, à proporção que possibilita

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examiná-la de forma mais ampla, a partir do conhecimento produzido nas mais diversas áreas. É preciso ter clareza de que saberes e objetos de ensino devemos lançar mão para garantir a eficácia das práticas pedagógicas. Nos projetos de ensino, a aprendizagem se dá de maneira situada, de modo que a situação na qual os alunos aprendem tem um relevante papel no que eles aprendem. Nessa perspectiva situada de cognição, os alunos não são meros participantes. Nela considera-se a interação de uns com os outros, dos indivíduos com os materiais ou com os sistemas de representações. As atividades de sala de aula devem ser consideradas autênticas, favorecendo as habilidades de pensamento e de resolução de problemas fora da sala de aula. Assim, a escola deve ser um espaço favorável à eqüidade e à emancipação dos sujeitos. Para que isso se concretize, o aprendizado deve se situar no centro do processo educacional, envolvendo, se possível, alunos, professores, família e comunidade num processo de aprendizagem que contemple a reflexão, o questionamento, a criatividade, a colaboração, a exploração e a descoberta (HERNÁNDEZ, 1998). Nessa perspectiva, desenvolver ações didáticas mais significativas no EM implica romper com normas institucionais, dominar saberes necessários ao saberfazer, romper com forças que atuam no controle das ações de professores e alunos, impondo limites às atividades de sala de aula. Implica, dentre outras coisas, reconhecer a escola como um espaço de ação que remete a movimento. Para isso, é necessário alimentar no cotidiano escolar o sentimento de coletividade, de modo que todos os envolvidos no processo de ensino e aprendizagem possam, conjuntamente, atuar para imprimir novos sentidos ao processo de letramento dos alunos. Assim, a responsabilidade de formação de leitores e produtores de textos não cabe apenas ao professor de língua materna. O desenvolvimento de experiências como a que ora socializamos exige uma postura crítica, reflexiva e, sobretudo, engajada, à medida que persegue um ideal de formar sujeitos-agentes, construtores de sua cidadania. Isso tudo exige bastante não só dos professores e alunos mas também da própria escola que muitas vezes não se dispõe a relativizar o seu poder de decisão sobre aquilo que se faz na sala de aula, nem tampouco fora dos seus muros. Um trabalho nessa perspectiva demanda, antes de tudo, que se altere a quietude do espaço escolar, dinamizando as ações que ali se desenvolvem. Consideramos relevantes relatos de experiências dessa natureza, não só por contribuírem com a reflexão e a discussão sobre novas formas de pensar o ensino da língua materna na escola, mas também porque através desses trabalhos podemos encorajar outros professores ao empreendimento de atividades pedagógicas mais coerentes com um ensino da língua capaz de dar respostas às novas demandas sociais, atendendo às necessidades pessoais dos alunos. Além disso, achamos importante uma maior aproximação entre a produção acadêmica e a produção escolar. É necessária a divulgação de experiências bem sucedidas





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que apontem não apenas o caminho a ser seguido, mas que mostrem efetivamente como fazer, isto é, como desenvolver ações pedagógicas mais eficazes. Neste artigo, temos por objetivo relatar uma experiência de transposição didática, analisando dados gerados a partir do desenvolvimento de um projeto de ensino que consideramos exitosa, já que registramos ações pedagógicas que oportunizaram aos alunos vivenciar eventos de letramento para além da esfera escolar.

1. FUNDAMENTANDO A EXPERIÊNCIA Um ensino da escrita que se encaixe em uma perspectiva discursiva impõe-nos a necessidade de um suporte teórico que permita ampliar a visão que se tem da língua. A experiência que ora socializamos está ancorada na concepção de linguagem de base bakhtiniana em cuja essência a língua é entendida como ação social e a linguagem como uma atividade constitutiva e produto histórico e social, que tem no dialogismo o seu princípio fundador (BAKHTIN, 1999, 2000). Conceber a linguagem como um conjunto de práticas sociointeracionais, desenvolvidas por sujeitos historicamente situados pressupõe um tratamento pedagógico diferenciado daquele que ainda lhe é dado em algumas salas de aula, onde se desconsidera que ler pressupõe uma atitude crítica diante do texto, buscando perceber valores, visões de mundo e intenções de quem o produziu. Pressupõe também uma compreensão responsiva ativa, reagindo e dando respostas que se manifestam quando concorda ou discorda dele, quando o refuta ou se emociona com ele. Quanto à escrita, para transformá-la numa atividade efetivamente geradora de sentidos é preciso romper com o artificialismo que lhe impõem as práticas de linguagem costumeiramente desenvolvidas nas salas de aula, de maneira que, ao final do EM, os alunos dominem práticas de escrita e de leitura que lhes sejam úteis ao efetivo exercício de cidadania, que lhes permitam operar com as informações ao discutir questões relativas aos complexos movimentos de uma sociedade em mudança. Para isso, os alunos precisam saber se posicionar por escrito, relacionando dados e opiniões. A escola deve, então, ser espaço de debate e argumentação política e, sobretudo, oferta dos bens culturais, disponibilizando-os aos aprendizes. Assim, o livro didático não pode ser o único instrumento de acesso a esses bens. É preciso expô-los a diversos recursos como livros, jornais, revistas, internet, etc. A escrita não pode sair do vazio. Ela deve ser um trabalho coletivo cujo método deve se pautar na sistematização, de modo que o amadurecimento dessa produção esteja intimamente ligado ao desenvolvimento da competência leitora dos estudantes, os quais precisam ver a língua funcionar com os efeitos de

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sentido produzidos nas diversas versões de um mesmo texto. Enfim, escrever significa atividade, significa ter um leitor que não é necessariamente o professor. Isso demanda sujeitos-agentes, ativos na construção, negociação e transformação do mundo social (BARTON; HAMILTON e IVANIC, 2000). Também buscamos apoio nos estudos de letramento, entendido como prática social (KLEIMAN, 1995), ancorada nos usos da leitura e da escrita, que se tornam relevantes para nós por abrir novas perspectivas para uma reflexão crítica sobre as práticas letradas propostas pela escola. Esses estudos propõem que se considerem os usos sociais da escrita, tomada como instrumento de poder e inclusão social. Ao atribuir novos sentidos ao ler e ao escrever, a escola assume um maior engajamento na produção de práticas emancipatórias, oferecendo ao aluno possibilidades de compreensão e intervenção na sua realidade social e pessoal (KLEIMAN, 2005). Na perspectiva do letramento, as práticas são situadas. A situação modela as atividades, determinando atitudes e comportamentos, dependendo das instituições em que se realizam. Nessa direção, o trabalho escolar deve considerar as práticas de outras instituições, delas se aproximando (KLEIMAN, 2006). Neste trabalho, a idéia de prática situada torna-se relevante, posto que, na experiência que desenvolvemos, os alunos participam de eventos mediados pelas práticas de leitura e de escrita, cujas funções e características ligam-se à instância social em que ocorrem. A utilização dos gêneros dá-se de forma situada, modificando-se e transformando-se, quando necessário, assumindo o papel de matriz sócio-histórica para os alunos envolvidos na situação. A imersão dos sujeitos em práticas situadas pode levá-los aos discursos institucionais mais amplos, como o da política, por exemplo, interferindo nas ações e atitudes desses sujeitos. Dessa forma, eles rompem fronteiras e migram de um espaço micro para um macro, entretecendo fios discursivos distintos, por isso é importante considerar o que dizem e fazem com os textos que produzem (BARTON; HAMILTON e IVANIC, 2000). Apoiamo-nos ainda na abordagem social de gênero proposta pela nova retórica, por considerar o caráter dinâmico, interativo e agentivo do uso dos gêneros. Ademais, torna-se bastante relevante neste estudo a concepção de estudantes agentes, capazes de perceber na escrita uma poderosa ferramenta para realizar coisas e marcar presença no mundo, como propõe Bazerman (2006). Uma abordagem de gênero como ferramenta para fazer coisas no mundo faz uma grande diferença no ensino e aprendizagem da leitura e da escrita, pois rompe com uma visão reducionista que contempla apenas os aspectos formais em detrimento de outros aspectos ligados aos usos, que atendam a necessidades pessoais dos alunos. Nesse sentido, o gênero é um meio para a agência social. Assim sendo, ele deve ser ensinado em situações concretas de uso. Aprendendo a usar criativamente a escrita, os alunos entendem mais facilmente que o seu domínio pode lhes dar empoderamento e condições para a





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ação sobre o mundo e para interagir e cooperar com os outros. A idéia de agência impõe ao ensino da escrita novas perspectivas, à medida que supera o artificialismo das atividades de escrita oferecidas pela escola. De acordo com os pressupostos da nova retórica, a eficácia do ensino da escrita está ligada ao saber consciente aquilo que se faz e à capacidade de fazer adequadamente as escolhas. Segundo Bazerman (2006), isso se insere nos domínios retóricos. Uma abordagem retórica ocupa-se do significado das práticas e de como usá-las em contextos específicos. Isso justifica a sua importância para o trabalho que ora desenvolvemos.

2.CONTEXTUALIZANDO A EXPERIÊNCIA Ao educador crítico cabe a tarefa de questionar a certeza das coisas e de desvelar a realidade, investigando-a; além disso, buscar respostas e possíveis soluções para os seus problemas de ensino e de aprendizagem do aluno. Por isso optamos pelo enquadramento teórico-metodológico da Lingüística Aplicada que nos permite também examinar a base ideológica do conhecimento que produzimos (PENNYCOOK, 1998). Neste artigo, apresentamos um relato crítico-reflexivo de alguns resultados de uma experiência com um projeto de ensino, utilizado como estratégia para o desenvolvimento da competência leitora e em particular da competência escritora dos alunos de duas turmas do segundo ano do EM de uma escola da rede privada de Natal – RN. O projeto político-pedagógico da escola, construído coletivamente, ancorase numa concepção de ensino em que a responsabilidade e a autonomia dos estudantes são trabalhadas na perspectiva de desenvolvimento integral do cidadão, oferecendo-lhe condições de se posicionar e de se representar como sujeito crítico em relação à realidade que o cerca. Os dados apresentados foram gerados no ano letivo de 2005 e constam de produtos de diversos gêneros discursivos, cujo processo de produção foi encaminhado com o propósito de circulação social, resultando em publicações no site do colégio e num dos principais jornais que circulam em Natal – RN. Nossa experiência profissional tem constatado que o ensino da produção textual escrita na perspectiva dos gêneros1 discursivos aponta para resultados mais satisfatórios no ensino de língua materna, uma vez que coloca o aluno em contato com a diversidade de textos que circulam socialmente. Buscando a ressignificação das práticas de leitura e escrita no EM, 1

O conceito de gênero aqui adotado é construído num viés sócio-histórico e discursivo, cujo domínio permite a participação em diversas situações que demandem os usos da linguagem.

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3. A DINAMIZAÇÃO DOS GÊNEROS As aulas são normalmente combinadas e planejadas com a participação dos alunos. Deles são solicitadas pesquisas em jornais, revistas, sites, livros etc., que possam fundamentá-los para a produção textual. Desse modo, leitura e escrita são consideradas práticas complementares. De posse do material pesquisado, a leitura se dá de diversas maneiras: silenciosa, oral, em roda de leitura ou de forma dirigida. Um traço interessante é

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desenvolvemos nos últimos três anos o projeto de ensino Produções textuais escritas: práticas discursivas para a participação social, cujo objetivo geral é ampliar a competência discursiva dos nossos alunos, trabalhando o texto numa perspectiva multissemiótica, pois acatamos como legítimo o pressuposto de Vieira (2005) de que as práticas de letramento devem associar ao texto uma diversidade de recursos gráficos, de cores e, principalmente, de imagens que tanto seduzem os alunos nos dias atuais. Para isso contamos com a diversidade de recursos didáticos que nos oferecem as modernas tecnologias educacionais. A experiência tem se mostrado bastante significativa, à medida que tem nos impulsionado a pensar e repensar, planejar e replanejar as nossas ações didáticas. Por ter sua origem ligada às necessidades de melhores respostas às exigências sociais em relação ao domínio da leitura e da escrita, o projeto busca desenvolver no aluno um sentimento de co-responsabilidade no seu processo de aprendizagem, estimulando-o a participar ativamente das ações dele suscitadas. Isso se dá sem que necessariamente as atividades desenvolvidas estejam vinculadas àquelas que compõem a nota trimestral do aluno, mas sempre traduzimos aspectos positivos do seu desempenho qualitativo naquilo que concerne à construção de valores e atitudes. Os temas trabalhados não são preestabelecidos por nós. Eles têm sido considerados a partir da discussão e do debate de idéias que circulam na mídia e que despertam o interesse do aluno. São normalmente temas da atualidade; como veremos mais adiante na descrição do processo de produção dos gêneros. As atividades desenvolvidas no projeto constam de práticas de leitura e de produção textual. Além disso, a seleção dos conteúdos de análise lingüística tem se adaptado às necessidades do projeto. Muitas escolas, por força da tradição ainda consideram que o objeto de ensino não é leitura e escrita, mas a língua. No nosso caso, o trabalho com projetos permitiu-nos ampliar a compreensão de que, se o objeto fundamental são essas práticas, a língua passa a se incluir num todo maior. Assim, trabalhamos a gramática voltada aos propósitos da interlocução. A seguir apresentaremos, em linhas gerais, como se desenvolve o trabalho com essas práticas, a partir do relato de uma das experiências vivenciadas pelos alunos.





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a socialização do material, de modo que em grupo ou individualmente, durante as atividades, os alunos têm acesso a diferentes gêneros em diferentes suportes. Assim sendo, visto num viés sócio-histórico, o gênero pode orientar as ações dos alunos, conforme nos adverte Kleiman (2006). Os procedimentos utilizados impõem uma certa dinamicidade à ação pedagógica e gera motivação à participação coletiva nas atividades. A motivação dos alunos pode ser observada no interesse pela leitura dos vários textos que circulam na sala, podendo ser explicada a partir do que propõe Bazerman (2006, p. 48), ao afirmar que ler é “profundamente interessante se os alunos vêem uma conexão entre o texto e alguma tarefa em que estão engajados ou entre o texto e algum assunto sobre o qual estão pensando no momento”. Nesse processo de dinamização dos gêneros, nós também levamos para a sala de aula alguns materiais para contribuir com a formação leitora dos alunos e com o debate e a discussão sobre o tema escolhido. Também temos o cuidado de observar atentamente o material selecionado por eles para analisar a adequação e a pertinência em relação aos nossos objetivos, considerando as situações de comunicação e a circulação dos textos produzidos. Temos a clareza de que os objetivos traçados devem levar a resultados efetivos de melhorias nas competências relacionadas ao ler e ao escrever. Entendemos, portanto, que não podemos nos permitir a espontaneidade de práticas que não condizem com a responsabilidade que temos de formar o aluno numa perspectiva mais crítica. O que temos observado em relação às práticas de leitura desenvolvidas é que elas têm agradado cada vez mais aos alunos. Observamos uma certa autonomia deles para sugerir leituras e atividades, ao mesmo tempo, nós temos adquirido também uma crescente autonomia em relação ao uso do livro didático, à medida que trazemos para a sala de aula os textos que circulam em outras esferas sociais. Dessa forma, observamos evidências de melhorias na formação leitora dos alunos e temos a clareza do papel ativo que eles têm no seu processo de aprendizagem; porém reconhecemos a responsabilidade que temos em relação a isso, pois como afirma Bazerman (2006, p. 33) “é dentro do professor, o qual se posiciona na conjunção de forças acima e abaixo e ao lado, que as situações de aprendizagem são estruturadas. É na interseção de forças de todas as forças que a sala de aula acontece”. É importante que a formação do professor lhe permita elaborar situações efetivas de aprendizagem. O trabalho de ensinar demanda um conjunto de saberes específicos que precisam ser dominados pelo docente para nortear a sua ação didática. A exposição dos alunos à diversidade dos gêneros que são lidos tem se mostrado muito positiva, porque possibilita tanto a apreensão das marcas textuais e discursivas que caracterizam esses gêneros, como o espaço no qual circulam. Isso confirma a tese defendida por Kleiman (2006) de que tomar a prática social

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4. A ESCRITA IMBUÍDA DE AGÊNCIA No que se refere às atividades de produção textual escrita, há uma preparação prévia do aluno, que o fundamenta para os momentos de escritura. Assim, durante o ano letivo de 2005, quando foi realizado no Brasil o referendo popular sobre o desarmamento, registramos uma experiência com o ensino de escrita que marcou nossa memória profissional. Ao longo desse ano, os meios de comunicação destacaram o assunto e a discussão chegou naturalmente à sala de aula. A temática foi espontaneamente incorporada às nossas discussões e quase tudo que circulava na mídia chegava à sala de aula, quer seja em textos escritos em revistas e jornais, quer seja nos discursos que (re)produzíamos. De modo que os alunos sugeriram a organização de um debate em sala de aula. A produção desse gênero sedimentou a construção dos pontos de vista dos alunos. Evidentemente, formaram-se grupos favoráveis outros desfavoráveis ao desarmamento. Isso nos pareceu ser muito salutar. Na aula subseqüente ao debate, sugeriram-nos a realização de uma eleição simulada e uma pesquisa de opinião. Os alunos deliberaram que deveríamos incluir não só os alunos, mas também professores e funcionários. A pesquisa foi realizada com os diversos segmentos da comunidade escolar. O resultado apontou a vitória do SIM, isto é, da posição favorável ao desarmamento, embora tenha sido registrada uma diferença muito pequena em relação ao NÃO. Também foi sugerida uma pesquisa online no site do colégio, no qual familiares, amigos e os próprios alunos pudessem votar. Acatada a idéia, buscamos apoio no laboratório de informática, que estabeleceu conosco uma parceria muito produtiva, organizando juntamente com os alunos um fórum online. Ainda realizamos, nesse laboratório, aulas de leitura, para que os alunos tivessem acesso não só ao que circulava nos jornais locais mas também nos jornais de maior circulação nacional como A Folha de São Paulo, O Globo, dentre outros.

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como ponto de partida no trabalho em sala de aula mobiliza gêneros de diversas instituições, promovendo o desenvolvimento de competências básicas para a realização de ações desenvolvidas. Em síntese, as leituras realizadas têm como objetivo último possibilitar ao aluno ter o que dizer e como dizer nos gêneros que produz. No âmbito das atividades do projeto, os alunos aprendem a ler por meio de muitas leituras, do conhecimento de diversos autores, produzido em diversos setores da cultura escrita. Enfim, utilizam a escrita como meio de (re)construir conhecimento. Dessa maneira, observamos nos sujeitos alguns comportamentos leitores como: comentar os textos lidos, indicar outros textos, consumir informações, etc.





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Em face das crescentes exigências do mundo contemporâneo, o qual nos expõe constantemente a imagens, fazendo com que o aspecto visual seja preponderante, a escola não pode mais se restringir ao texto verbal escrito, ainda que lhe seja imprescindível. É indispensável que a imagem seja melhor inserida no contexto escolar, posto que a internet exerce uma grande atração sobre os estudantes. Eles gostam de navegar, de descobrir novos endereços, de se comunicar com outros colegas. Sendo assim, sugerimos o acesso a outros sites, um deles de charges, tendo em vista a relevância desse gênero para a formação do ponto de vista dos alunos sobre o tema em estudo. Desde o advento da televisão, a internet parece ser a mídia mais sedutora, por isso não podemos prescindir da integração de mídias no ensino, que pode se configurar numa boa aliada para estimular a formação de leitores e escritores. Nesse processo, cabe ao professor o papel de agente de inovações (KENSKI, 2001). Ele deve tornar conhecido o desconhecido. Expor o aluno às novidades, às informações para que se dê a efetiva aprendizagem. Após as aulas de leitura no laboratório de informática, podemos dizer que nesse ponto do estudo da temática os alunos já estavam imersos num turbilhão de idéias de tal modo que demonstravam bastante familiaridade com o tema. Surgiu, então, a idéia de realizarmos uma mobilização na rua com a intenção de formar a opinião da população e conseguir a sua adesão ao posicionamento favorável ao desarmamento. Isso implicou a deliberação de algumas ações: uma eleição simulada com os transeuntes que circulam na avenida onde se localiza a escola e nas adjacências, a produção de uma carta coletiva para ser entregue à população e algumas faixas para a mobilização na rua, oportunidade em que entregariam o documento à população. Inicialmente, todas as atenções se voltaram para a produção da carta. Sugerimos que fosse uma carta aberta, gênero que se adequaria melhor à situação comunicativa. Planejamos algumas aulas para revisarmos a estrutura da seqüência argumentativa, outros aspectos da argumentação e as características do gênero a ser produzido. Cumprida a etapa de fundamentação teórica, cada aluno escreveu uma carta aberta. Havia sido acordado que a escola sairia às ruas com um posicionamento favorável ao desarmamento, tendo em vista ela desenvolver um trabalho na perspectiva de uma educação voltada para a construção da paz, sendo pioneira na luta pela paz em Natal. Nessa decisão, pesou muito o poder de persuasão dos vários alunos que pertenciam ao Grupo de Jovens e ao Departamento Pastoral, pois eles têm uma vivência maior de engajamento nas causas humanitárias e mais experiência com o protagonismo juvenil, por participarem muito mais de eventos como congressos e fóruns estudantis. Todos os alunos foram estimulados a participar, mas respeitamos a posição daqueles que não quiseram aderir à idéia. Instaurada a situação de comunicação, a carta aberta foi produzida num

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processo que passou por várias fases: individualmente num primeiro momento e, posteriormente, em sessões de escrita colaborativa em dupla, depois juntando duplas em grupos e por fim dos diversos grupos formou-se uma equipe de cada sala que juntou os produtos de cada grupo num só. Finalmente, um grupo de seis alunos (três de cada sala) reescreveu a versão final e submeteu-a à apreciação do grande grupo, o qual deliberou o encaminhamento do documento aos Departamentos de Redação dos principais jornais da cidade. Enquanto isso, outro grupo já tomara a iniciativa de produzir várias faixas e de solicitar à Direção da escola a reprodução de duas mil cópias da carta para ser entregue à população, nas ruas circunvizinhas, no centro da cidade, onde se localiza o colégio. O mesmo grupo sugeriu ainda que a carta fosse remetida à revista Veja. No dia 18/10/05 um dos alunos enviou um e-mail à revista e no dia 20/10/05 recebeu um retorno acusando o recebimento da sugestão de publicação, a qual não chegou a se concretizar. O relato das experiências vivenciadas pelos alunos por si só depõem a favor do trabalho com projetos de ensino, uma vez que a aprendizagem se dá no processo de produzir, levantar hipóteses, pesquisar, criar, descobrir, compreender e (re)construir conhecimentos. Os projetos abrem a possibilidade para que os alunos leiam e aprendam para outra atividade a ser realizada, a produção da carta aberta, por exemplo. Sendo assim, eles não lêem apenas para aprender a ler. Constatamos que é possível fazer os alunos circularem com desenvoltura entre as práticas letradas de instituições diversas, como fizeram ao escrever para a redação de uma das revistas de maior circulação no país. É preciso considerar que eles conhecem as práticas de uso da escrita da mídia, da família, da igreja, dentre outras, e que sabem acioná-las quando necessário. A escola deve, portanto, valorizar a diversidade dos usos da escrita do cotidiano. Deve ensinar a usá-la de forma criativa. Deve fazer os alunos entenderem o poder da escrita, motivando-os a aprender a escrever de forma efetiva. Agindo assim, ela estará transformando os estudantes em agentes, capazes de deixarem suas marcas no mundo, capazes de compartilhar pensamentos ao interagir com outras pessoas, influenciando-as, cooperando com elas (BAZERMAN, 2006). A mobilização organizada pelos alunos, no dia 20/10/2005, foi um grande exemplo de protagonismo: empunhando faixas e gritando palavras de ordem entregaram o documento (a carta aberta) aos transeuntes, argumentando em defesa do desarmamento. No mesmo dia, um dos maiores jornais da cidade publicou a carta aberta. A publicação causou um grande impacto nos alunos, os quais se sentiram prestigiados e deram depoimentos de sua satisfação e do reconhecimento da importância desse evento para a aprendizagem da escrita. Após a realização do





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referendo, reunimo-nos com as duas turmas para avaliar o evento e as atividades desenvolvidas. Os alunos foram unânimes em afirmar que aprenderam muito. A ação dos alunos nesse evento coloca-os efetivamente na condição de agentes, revelando que de fato a leitura e a escrita preparam os indivíduos para uma atuação comprometida com o seu contexto. Quando devidamente orientados, os alunos sentiram-se “chamados” a assumir atitudes engajadas e responsáveis em relação à realidade que os circunda. Nesse sentido, estamos certos de que a apatia e a alienação atribuídas aos estudantes do EM podem ser superadas. Os estudantes demonstraram um protagonismo em potencial que precisa ser estimulado pela escola. Dessa forma, concordamos com Bazerman (2006, p. 13) ao afirmar que “permanecemos agentes em toda nossa escrita; nossos textos são atos de nossa vontade, motivados pelos nossos desejos e intenções”. A experiência revelou que, do ponto de vista pedagógico, a saída são as práticas e vivências que levem à construção de valores, de pontos de vista e de visões de mundo que respaldem e estimulem a participação ativa e solidária e o envolvimento dos alunos, quer seja na resolução de problemas reais da instituição escolar, quer seja nos problemas sociais mais amplos. Evidentemente, no EM, isso não pode se dar através de experiências simuladas de educação para a cidadania, mas por meio da sua participação ativa e efetiva em determinadas atividades como a manifestação realizada pelos alunos a favor do desarmamento. Oportunizar aos alunos a experiência com as práticas sociais de leitura, de escrita, de fala e de análise lingüística que rompam com o tradicional artificialismo das práticas escolares é um objetivo a ser perseguido no EM. Ao discutir o papel da escola no processo de letramento dos alunos do EM é preciso considerar que uma das lições mais preciosas deve ser a de ensinar que ler e escrever são práticas imprescindíveis na sociedade grafocêntrica em que vivemos, viabilizam o acesso ao conhecimento e aos bens culturais, estabelecem relações entre a escola e o que há fora dos seus muros. Atribuindo novos significados a essas práticas, a escola pode ser vista de forma efetiva como um espaço produtor de cidadania. Os exemplos da produção de gêneros diversos aqui apresentados, o processo do qual resultam a mobilização e a construção de saberes aí implicados atestam que a escola, muito criticada atualmente pela artificialização no trato com as questões de linguagem, pode suplantar a crise ora enfrentada, à medida que se abrir à analise crítica, à reflexão e à implementação de novas estratégias que viabilizem a autonomia de alunos e professores, que fortaleçam as práticas emancipatórias através do estímulo às ações coletivas. De fato, a produção da carta aberta e a mobilização dos estudantes em defesa do desarmamento ilustram e revelam a necessidade de ampliação e qualificação das formas de acesso dos alunos aos diferentes textos, em diferentes suportes, bem como da produção de práticas discursivas voltadas para as suas

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ALGUMAS CONCLUSÕES Neste artigo, analisamos práticas de letramento desenvolvidas com alunos do EM. Para isso, discutimos o papel dos estudantes-agentes vinculados a projetos de ensino e a necessidade de ressignificação das práticas de letramento escolar. Os dados apresentados demonstram que os projetos de ensino podem contribuir com a formação de leitores e produtores de textos multissemióticos de diferentes gêneros, à medida que oportunizam trazer para a sala de aula práticas sóciohistóricas reais por eles vivenciadas. Evidenciam também a necessidade de repensar as práticas de letramento na escola, considerando os sujeitos para além da sua condição escolar, levando em conta suas necessidades de participação social, através dos usos da linguagem. Observamos ser necessário um redimensionamento nos conteúdos do EM de modo que as práticas de letramento sejam vivenciadas na perspectiva de uma educação emancipatória com vistas ao exercício efetivo de cidadania. Nesse sentido, é imperioso implementar práticas pedagógicas inovadoras, apoiadas nas modernas tecnologias, buscando melhorias para as práticas de leitura e escrita, de modo a torná-las significativas para os alunos. Para isso, é imprescindível que a formação do professor seja repensada de modo a favorecer a busca de estratégias e alternativas que possibilitem a ampliação do letramento do aluno e do professor, conseqüentemente com experiências mais exitosas no ensino de língua materna na escola. Em síntese, é importante que as ações do professor sejam fundamentadas em conhecimentos que possam ser mobilizados, permitindo-lhe a busca de novas estratégias de ensino, mais adequadas a esse tipo de prática, os estudos de

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necessidades reais de usos e de participação social. Dessa forma, cada vez mais eles estarão sendo fortalecidos pelos reflexos daquilo que os usos sociais da escrita podem lhes oferecer: a capacidade de transformação por meio das condições de pleno exercício de cidadania. A partir da avaliação coletiva das ações desenvolvidas com o projeto, pudemos constatar que a abordagem do uso social da escrita no EM pode ser um diferencial para o desenvolvimento da competência leitora e escritora dos alunos, à proporção que gera situações de aprendizagem em que todos, coletivamente, atribuem mais sentido a um conhecimento novo, construído a partir das experiências vivenciadas anteriormente. Diante do exposto, as práticas de letramento escolar podem ser desenvolvidas sem que necessariamente se restrinjam àquele ambiente. Na escola, os alunos aprenderam para a vida. Através das atividades que envolveram o ler e o escrever, eles reconheceram o valor e a importância dessas práticas sociais para a construção do conhecimento que produzem.





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letramento, por exemplo. A escola precisa dar outras respostas às demandas sociais, relacionadas ao ler e ao escrever, contribuindo de forma efetiva com a imersão dos alunos no universo das práticas letradas. Na perspectiva do letramento, o trabalho com os usos sociais da escrita permite suplantar as práticas tradicionais de leitura e escrita, muitas vezes mecanizadas e distanciadas do universo social dos alunos, oferecendo outras perspectivas metodológicas para o trabalho com a linguagem, concebendo-a como prática sócio-histórica.

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INTERA TIVID ADE E ESTRA TÉGIAS DISCURSIV AS INTERATIVID TIVIDADE ESTRATÉGIAS DISCURSIVAS NO POR ASIA PORTTADOR DE AF AFASIA (P ar kinsonians Discour se: some (Par arkinsonians Discourse: par alinguistic str gies) paralinguistic straa te tegies) ABSTRACT The viewpoint adopted for this research is that of language as a symbolic process which takes social context as subject historical constitution. The conditions of language processing and situational context as well as interpersonal relation are considered. This kind of relation is taken as a concept based on which the analysis will be developed while trying to show how people are made understood during interaction, how they know they made themselves understood by the other and that they are acting coordenatively and cooperatively and which usage are they making of their linguistic knowledge and non-linguistic knowledge to create mutual and adequate comprehension and the strategies they are using to solve interactional conflicts. This paper aims to discuss the aphasic discourse process organization, par ticularly some of the paralinguistic factors in order to understand the strategies used by this subject to compensate some difficulties in his aphasic condition during interaction. Its relevance lays on that in identifying some discourse characteristics of the speaker we will be able to offer strategies for the overcoming of those difficulties faced by this subject. Keywords Keywords: aphasia, interaction, paralinguistic factors. RESUMO A Análise do Discurso procura compreender a língua fazendo sentido, enquanto processo simbólico que parte do contexto social constitutivo do homem e da sua história. São consideradas as condições de produção da linguagem, a situação na qual foi produzido o dizer e a relação interpessoal. É essa relação que vai orientar a análise dos aspectos da conversação que tentam esclarecer como as pessoas se entendem ao interagir verbalmente, como sabem que estão se entendendo e agindo coordenada e cooperativamente, como usam seus conhecimentos lingüísticos e outros para criar condições adequadas à compreensão mútua, como criam, desenvolvem e resolvem conflitos interacionais. Neste trabalho, levanta-se a possibilidade de um estudo sobre o discurso do afásico, na tentativa de entender como esse discurso é organizado e como se dá o processo de interação em seu ambiente social, para verificar como se dá o uso de estratégias com recursos paralingüísticos para compensar dificuldades próprias da doença que possam vir a interferir na interação verbal. A relevância do trabalho está em identificar características e oferecer estratégias para a superação das dificuldades enfrentadas por esse sujeito. Palavras-chave Palavras-chave: afasia, interação, recursos paralingüísticos.

A linguagem humana é uma aptidão essencial para que haja a interação social, que consiste em produzir, enviar, receber e reagir à comunicação. É através da linguagem que construímos uma identidade e nos tornamos um “ser social”. *

UNICAP. Trabalho elaborado com a participação dos alunos Izabella Cristina de Aguiar Gomes, Cinthia Gomes da Silva e Júlia da Silva Marinho, Bolsistas PIBIC/UNICAP/CNPq, a quem agradecemos.

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Marígia Aguiar * Moab Acioli * Maria de Fátima Vilar de Melo *









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A linguagem constitui o mais difundido e eficaz instrumento natural de comunicação à disposição do homem. Quando ocorrem distúrbios na comunicação, a identidade do individuo é comprometida, passando ele a perder espaço e atuar cada vez menos em seu círculo social. Neste trabalho, enfoca-se a linguagem do afásico, ou seja, do portador de alterações na expressão da linguagem falada e/ou escrita, adquiridas como conseqüência de lesão em áreas cerebrais responsáveis pela fala, escrita e ou pela compreensão das mesmas. Essa patologia é resultado, quase que invariavelmente, de uma degeneração neurológica na região responsável pela produção da linguagem. Estudos sobre distúrbios de linguagem em pacientes que sofreram acidente vascular cerebral favoreceram o conhecimento sobre a localização cerebral da linguagem. Esses estudos fizeram ressurgir a hipótese de campo agregado, em uma teoria do funcionamento cerebral que torna ainda menos interessante a individualidade das células neurais, a teoria de ação de massa, que evidenciava a massa cerebral para o funcionamento do cérebro e não seus componentes neuronais (KANDEL; SCHWARTZ; JESSELL, sd). Estudos mais recentes mostram que regiões distintas e localizadas no cérebro realizam operações elementares e as faculdades mais elaboradas são propiciadas pelas conexões em série e em paralelo de diversas regiões cerebrais. Os processos individuais são contínuos e indivisíveis, compostos por elementos independentes, processadores de informação, que regem até a mais simples tarefa cognitiva. Essa rede promovida pelas conexões neurais favorece a manutenção de uma faculdade, ainda que determinada área tenha sido lesionada (MURDOCH,1997). A comunicação pela linguagem falada constitui uma característica do ser humano. A produção de um discurso implica um saber da língua e um saber do mundo. Luria (1986) destaca a concepção de sistema funcional, considerando as funções cognitivas na linguagem (fala, leitura e escrita) como sistemas complexos organizados socialmente. O desenvolvimento dessas funções é resultado de relações estabelecidas pelos sujeitos em suas vivências e práticas sociais estruturadas na e pela linguagem: O mundo que o sujeito constrói em seu relato depende em grande medida de suas escolhas lexicais, de suas intenções discursivas, do reconhecimento de implícitos culturais, do reconhecimento de elementos temáticos, do tipo de relação interlocutiva que estabelece com os outros, de coordenadas dêiticas de que lança mão para transformar “referentes” em objetos do discurso (MONDADA & DUBOIS, 1995, apud KOCH, 2002).

Para a linguagem oral ou escrita fluir, faz-se necessária uma intersecção do sujeito com o discurso social, atrelado a uma rede de significantes na qual esse sujeito se reconheça. Durante toda a vida, as pessoas desenvolvem um

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1. O TEXTO DISCURSIVO DO AFÁSICO O afásico sofre uma ruptura no processo lingüístico, sendo obrigado a reorganizar a forma como vinha lidando ou utilizando os símbolos em seu modo de funcionamento nos diversos campos da linguagem. Ao adotar o ponto de vista de que a afasia resulta de alterações (seja de origem articulatória e/ou discursiva) de processos lingüísticos, é preciso ater-se ao estudo da linguagem não apenas no que diz respeito aos seus traços sintático-semântico-léxicofonêmico, mas também aos traços paralingüísticos. A Afasia, conseqüência de lesão cerebral nas áreas relacionadas à comunicação (fala) e a sua representação simbólica (compreensão e interpretação), pode ser originada por diversas causas: desordens vasculares, traumatismos que atingem o hemisfério esquerdo, processos inflamatórios, escleroses disseminadas e encefaloses, abscessos e gomas, tumores e hematomas (MURDOCH,1997). Resulta em uma séria perturbação na linguagem, caracterizada por distúrbio de expressão e recepção do código simbólico da linguagem oral e/ou escrita, estritamente. Os mecanismos lingüísticos são alterados em todos os níveis, tanto em relação à produção de fala quanto aos aspectos interpretativos desta. A fala pode se apresentar incoerente e incompreensível, em alguns casos, embora a compressão da mensagem emitida por outro seja conservada; em outros casos, a compreensão é completamente afetada, porém há fluência na fala. Cada caso vai depender da localização da lesão no cérebro. Os afásicos podem apresentar instabilidade no uso de palavras e dificuldades em selecionar as que deseja usar, não estando este processo relacionado com crises amnésicas. Para alguns, é custosa a pronúncia de fonemas, e costumam repetir partes de palavras ou distorcer e suprimir as mesmas, o que não significa gagueira ou deficiência física, capaz de comprometer sua articulação. Muitos passam a falar de forma “telegráfica”, embora sem perder a compreensão da complexidade da língua. Não são acometidos de deficiência mental, apesar de apresentar discurso desconexo com a realidade e incapacidade de estabelecer uma relação de sentido entre as palavras e as coisas do seu meio. A definição de afasia, portanto, exclui perturbações da função da linguagem causadas por confusão mental, e as dificuldades na comunicação causadas por surdez, cegueira, disartria ou hemiplegia. O afásico constrói o seu pensamento de forma desviada, as palavras que necessita naquele momento de fala não lhe chegam adequadamente, não são

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‘dicionário cerebral’ e, por mecanismos complexos, acessam esse ‘dicionário’, traduzindo as palavras que aí se encontram em diferentes formas de expressão. Neste processo, está a compreensão destas expressões.





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selecionadas nem ordenadas como o normal. Por isso, sua fala é reduzida e simplificada ao máximo ou desviada semântica, fonêmica ou morfologicamente da linguagem normal. Há um déficit na compreensão, o que torna necessário o uso de pistas, repetições, apoios e ordens bem curtas e objetivas como recurso para que possa se expressar. Dependendo do local e da extensão da lesão cerebral, o indivíduo pode apresentar um ou mais sintomas. Dentre eles, estão perda total ou parcial da linguagem quanto a: ! articulação de palavras; ! expressar-se verbalmente; ! nomear objetos, repetir palavras, contar; ! noção gramatical; ! interpretar o que ouve – fica “surdo” às palavras, não reconhece seus significados; ! ler; ! escrever; ! organizar gestos para representar ou comunicar o que quer. Pela determinação do local exato da lesão, a afasia pode ser classificada como afasia de Broca, afasia de Wernicke e afasia total. A afasia de Broca é uma afasia emissiva, com maior déficit na expressão do sujeito do que na sua compreensão. Devido à lesão ocorrer nos centros neurológicos ligados à coordenação dos movimentos responsáveis pela emissão dos sons para determinada comunicação, o paciente é impossibilitado de executálos. Associado a isso, há a limitação no uso da linguagem em função de um vocabulário reduzido, fazendo com que o uso das palavras seja estereotipado, com a freqüente utilização de jargões (utilização de mesma palavra ou frase curta para situações diversas de comunicação). A fala é telegráfica, com predominância de morfemas lexicais (substantivo, adjetivos e verbos), e dificuldade na construção de frases gramaticalmente corretas. A escrita também é comprometida, embora esse sujeito seja capaz de efetuar a leitura silenciosa. Além disso, fazer cálculos torna-se uma atividade mais difícil. O distúrbio é acentuado por fatores psicológicos, e o sujeito, por não ter consciência da sua limitação, sofre com a tentativa frustrante de corrigir os erros durante a fala. A afasia de Wernicke é uma afasia de natureza receptiva, apresentando um déficit de compreensão maior do que de expressão, sem dificuldades na articulação das palavras. A compreensão gráfica é comprometida, embora em menor grau que a oral. Neste tipo de afasia, o paciente apresenta discurso fluente e abundante, fala jargonofásica e uso de neologismos, além de um comprometimento tanto da compreensão quanto da expressão. Não há, necessariamente, uma ruptura no processo lingüístico. O afásico, nesta condição, é obrigado a

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2. INTERAÇÃO E LINGUAGEM NO AFÁSICO É na interação pela linguagem que os interlocutores expressam, interpretam e negociam os signos verbais de acordo com a situação discursiva. A negociação do sentido é o que mais interessa no processo interlocutivo, pois é quando se tem uma interpretação do uso dos papéis no momento da enunciação, e a definição de quem domina ou não o turno, ou se há obediência às exigências constantes no uso dos turnos na conversação face a face (KOCH, 1997; MARCUSCHI, 1986). Nesse processo, o sujeito se realiza. Como na afasia há uma alteração no funcionamento da linguagem, o que se percebe é um deslocamento do próprio sujeito de sua posição de falante competente, comprometido ao nível do intradiscurso, a dispersão dos sentidos que não encontra unidade, e quando, eventualmente, a encontra, trata-se de uma unidade em que a heterogeneidade está dominada por um discurso desorganizado. Como conseqüência, há um comprometimento da relação discursiva e o sujeito afásico “fica a mercê de seu intérprete”. A afasia desencadeia um processo de deslocamento de sentidos de uma zona de sentidos para a outra. Conseqüentemente, a linguagem (efeito de sentidos) se apresenta diferente do esperado pelo interlocutor que se vê impossibilitado de interpretá-la. Embora o afásico possa formular enunciados com efeitos de sentidos, a repetição histórica de seus deslizamentos se inscreve no discurso, levando seu interlocutor a interpretá-lo como quem fala, mas não sabe o que diz. Além disso, sabe-se que o discurso caracteriza-se pela produtividade e criatividade, entendendo-se aqui a produtividade ou paráfrase como a dimensão técnica da linguagem. A criatividade ou polissemia, por outro lado, consiste na ruptura com o processo de produção dominante. É a transformação. Na afasia, observa-se um desequilíbrio entre esses dois processos de forma que a

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reorganizar a forma como vinha lidando ou utilizando os símbolos em seu modo de funcionamento nos diversos campos da linguagem. Dada a dificuldade na organização desse discurso, tende a falar mais devagar. É capaz de emitir perfeitamente palavras, mas não consegue compreender o que lhe é solicitado e nem mesmo sua própria fala. Tem dificuldades em expressar o que quer, mesmo com gestos. Esses pacientes não têm consciência do seu déficit, tornando a recuperação mais difícil. A afasia total compromete todas as formas e níveis de linguagem, fala, leitura e escrita. Há um comprometimento tanto da emissão quanto da recepção. Não há comunicação com este paciente, constituindo-se a forma mais grave de afasia, em especial por geralmente vir associada a comprometimentos neurológicos e motores. O sujeito perde a capacidade de utilizar a linguagem para representar ou autorizar as representações sensório-perceptivas do mundo.





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criatividade se sobrepõe à produtividade. Sendo patológica essa criatividade excessiva, há uma alteração na inteligibilidade do discurso, e o terapeuta, na busca de manter o equilíbrio em seu discurso, explora exacerbadamente essa produtividade. Considerando que o discurso é um conjunto de enunciados que derivam da mesma formação discursiva social, analisar o discurso do sujeito afásico (como qualquer outro discurso) significa observar o uso da linguagem em suas determinações concretas. No entanto, como o discurso só se dá no discurso do outro, somente analisando a relação discursiva se poderá entender o funcionamento discursivo dos dois interlocutores: o que fala e o que quer falar. A fala constitui uma habilidade inerente ao homem – embora os órgãos do aparelho fonador desempenhem atividades secundárias no ato da fonação, emitir sons constitui uma atividade que todo individuo normal nasce “programado” para fazer. No processo de desenvolvimento dessa habilidade, marcas de interatividade são estabelecidas. Da mesma forma que na modalidade oral, o texto escrito apresenta traços de interatividade que determinam uma relação direta do escrevente com seu interlocutor. Entretanto, como a interatividade concretamente inscrita na textualidade foi investigada quase que exclusivamente na fala, o seu desconhecimento na escrita levou alguns autores a requererem que a escrita não mostrasse marcas de interatividade explícita. Com isso, a escrita caracterizou-se como linguagem do distanciamento e a fala, como linguagem da proximidade (MARCUSCHI, 1999/2002). Porém, é indispensável ter presente que, quando se escreve, escreve-se para alguém e este alguém (o outro, o interlocutor) se encontra presente no horizonte do escrevente. De acordo com Marcuschi (1999), isto é equivalente ao princípio do dialogismo como fenômeno universal, em todos os usos da língua, seja na fala ou na escrita. Este princípio diz respeito à interlocução, também presente na escrita. Para Vygotzky (1988), a linguagem oral funciona como uma espécie de elo intermediário (cf. Santana, 2002, ao fazer referência ao trabalho de Lacerda, 1993), exercendo um papel no processo de distinção entre oralidade e escrita, as quais possuem características distintas. Koch (1998) e Marcuschi (1994, 1995) consideram fala e escrita como duas modalidades distintas, cujas características vão sendo definidas num continuum de pólos marcados como + formal e – formal, referindo-se, respectivamente à escrita e à fala, a serem definidas pelo distanciamento/proximidades entre elas. A oposição distanciamento-proximidade é tomada como uma das bases para identificar diferenças entre a fala e a escrita, fundadas na natureza do envolvimento implicado em cada modalidade. A fala tem como característica o envolvimento com o interlocutor, e a escrita, o envolvimento com o conteúdo. No entanto, não se pode esquecer que a interatividade é uma propriedade geral de todo e qualquer uso da língua e não de uma das modalidades de uso. Pois

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a. Indícios de orientação diretiva para um interlocutor determinado (referência ao leitor com marcas por vezes nítidas, como em uma carta, por exemplo); b. Indícios de premonição face a leitores definidos (cujas formas de manifestação são muitas; às vezes constituem uma união de elementos que constroem um ciclo completo). A característica desses indícios é que resultam de uma ação dialógica em que o escrevente envolve o seu interlocutor diretamente na construção do argumento;

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ninguém escreve/fala sem ter em mente um leitor/ouvinte, o que se expressa como propriedade dialógica da linguagem, no dizer de Barktin (1929). O interdiscurso acontece numa acentuada articulação entre os interactantes na relação do sujeito com o seu discurso e com o provável discurso do outro (MARCUSCHI, 2002). Pode-se afirmar que não há gramática sem discurso nem discurso sem gramática, mas gramática e discurso, entendendo-se por gramática a sintaxe da língua, tendo como unidade a frase ou sintagma; como sintaxe da textualização de unidades suprafrasais, e, ainda, na acepção de Wittgenstein (apud MARCUSCHI, 2002), a gramática de uma palavra com os processos de construção de sentido e não propriamente questões de sintaxe. De acordo com Marcuschi (1999), o que essas três noções de gramática possuem em comum são as regras, ou, melhor dizendo, regularidades, embora essa noção de regra não seja a única. De uma forma geral, regra constitui uma espécie de norma, ‘indicação de caminho’. Na escrita, marcas ou indícios evidenciam atos de interatividade, sugerindo uma relação direta e intencional do autor com o suposto leitor. Essa relação, ainda segundo Marcuschi, manifesta-se como um tipo de envolvimento interpessoal, podendo se apresentar de formas diferentes, com intensidade variada nos diversos gêneros textuais, tendo em mente que o escrevente sempre desenha um leitor para seu texto, mesmo que seja um leitor genérico. Os indícios/pistas da interatividade são constituídos por expressões ou formas lingüísticas que subentendem a presença de um leitor ao qual o escrevente está se referindo de maneira clara, naquele momento. A ocorrência dos indícios de interatividade no texto escrito se dá como requisito da textualização. Um exemplo típico de interatividade é a carta pessoal, a qual detém marcas de interatividade e evidências claras. Já a notícia jornalística destina-se a uma audiência com a intenção de informar um leitor desconhecido. Neste caso, a interatividade vem menos marcada na própria textualidade, pois não há um movimento diretivo concreto com o leitor. Marcuschi (1999, p.6) propõe algumas particularidades de como a interatividade se manifesta na escrita bem como suas marcas ou indícios, e destaca:





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c. Indícios de suposição de partilhamento ou de convite ao partilhamento (supõe um determinado leitor que partilha conhecimento específico, dialogando com ele. O caso dado como exemplo é o artigo científico); d. Indícios de fala de um interlocutor com o qual se dialoga (presença da alteridade ou proposição de uma alteridade efetiva, com é o caso de um texto com situação extrema); e. Indícios de oferta de orientação e seletividade (uso de dêiticos textuais, notas de pé de página, etc., como indícios claros de interatividade). Para Marcuschi (1999, p. 13), “as marcas de interatividade na escrita e na fala atuam como operadoras de orientação cognitiva, propondo perspectivas de interpretação preferencial por parte do escrevente/falante”. A vida cotidiana do ser humano é preenchida de fenômenos discursivos. Em nossa sociedade, a escrita é bastante generalizada, destacando-se a fala em maior proporção que a escrita, ou seja, falamos mais do que escrevemos. Todos os usos da língua são situados, sociais e históricos, mantendo um alto grau de implicitude e heterogeneidade, com enorme potencial de envolvimento. Fala e escrita são envolventes e interativas, sendo próprio da língua achar-se sempre orientada para o outro, visto não constituir-se uma atividade individual. A língua é um conjunto de práticas discursivas, onde são encontrados fenômenos como a oralidade e o letramento, práticas sociais de uso da língua. Do ponto de vista dos usos, a oralidade acha-se mais presente que a escrita em nossas atividades cotidianas. A relação entre a fala e a escrita não se funda apenas na distinção entre código sonoro e código gráfico, mas em uma série de aspectos. Um destes aspectos passa pela relação que caracteriza gêneros textuais orais e gêneros textuais escritos: a unidade comunicativa. Uma unidade comunicativa, na escrita, seria equivalente à noção de oração ou frase na gramática tradicional, conceito inadequado para o texto falado, em que uma unidade comunicativa seria uma unidade básica de manifestação da linguagem (KOCH, 2005). Um outro aspecto a ser considerado nessa relação é que tanto a fala como a escrita são usadas em diversas situações. A fala circula em todos os locais e se manifesta nas relações face a face, na presença dos interlocutores. Por outro lado, a escrita tem um grande papel na produção e no armazenamento do conhecimento. Ela não se reduz a um código gráfico para representação dos sons da fala, mas tem uma história independente da própria forma oral. Assim, a oralidade e a escrita são duas formas históricas de realização da língua e não dois códigos que apenas representam uma língua estática. Quando falamos ou escrevemos um texto, nós utilizamos diversas estratégias discursivas para produzir os nossos textos. Fazemos e refazemos os

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enunciados, repetimos com as mais variadas funções, deixando transparecer o nosso envolvimento sobre o que estamos falando ou escrevendo, enfim, tudo é, de certa forma, planejado. Na fala e na escrita, foram observadas três estratégias de textualização bastante freqüentes: a correção, a repetição e a modalização. Corrigir é uma estratégia de formulação textual que se manifesta de forma diferenciada na fala e na escrita. A repetição faz parte do processo de edição. Sua presença na superfície do texto falado é alta, constando que, em cada cinco palavras, em média, uma é repetida. É por isso que a repetição tem avaliação e papel diverso na fala que na escrita (MARCUSCHI, 1999). Por outro lado, “ao produzir um discurso, o locutor manifesta suas intenções e sua atitude perante os enunciados que produz, através de sucessivos atos de modalização, que atualizam por meio dos diversos tipos de lexicalização que a língua oferece” (KOCH 1996). Modificamos nossa fala em função do nosso interlocutor. Falamos de forma diferente quando nos dirigimos a um colega de trabalho e quando nos dirigimos a uma autoridade. É justamente esse fato que permite afirmar que tanto na recepção quanto na produção textual circunscreve-se o interlocutor (ouvinte/leitor), e que a interação verbal “constitui a realidade fundamental da língua” (MARCUSCHI, 1999). Na escrita, a carta pessoal constitui a categoria em que mais se evidencia a presença do interlocutor, a circunscrição do ouvinte/ leitor. Por outro lado, a maior ou menor presença de marcas de interatividade no texto depende, entre outros fatores, do grau de envolvimento entre interlocutores. A carta pessoal constitui um gênero em que os interlocutores se colocam como sujeitos e consolidam relacionamentos falando de si e mostrando-se interessados em conhecer o outro. No gênero carta, destaca-se, por outro lado, a carta ao leitor, em que o envolvimento com o assunto é o fato mais evidente tendo em vista que o objetivo do editor é buscar dar a conhecer os assuntos abordados, seja no jornal ou na revista. Na conversação face a face, ocorrem as rotinas de polidez lingüística (saudações, despedidas, agradecimentos, etc), utilizadas cotidianamente nas interações com o objetivo de sustentar as relações interpessoais, conferindo à conversação um status de atividade potencialmente conflitante. Essas formas são mantidas nas cartas pessoais, funcionando como marca/pista de interatividade (MARCUSCHI, 1999). Nas mais diversas situações comunicativas, usamos os nossos sistemas de conhecimento para adaptar, da forma mais harmônica possível, todos os recursos verbais (escritos ou orais) e os recursos visuais (estáticos ou dinâmicos) existentes nas interações comunicativas em que estamos inseridos. É a multimodalidade discursiva como traço constitutivo a todos os gêneros textuais escritos e orais. Na fala, o afásico dispõe dessa multimodalidade de recursos para a organização de seu discurso, atribuindo-lhe sentido, ao mesmo tempo em que possibilita a sustentação de suas relações interpessoais, possibilitando sua inserção social.





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3. INTERATIVIDADE, RECURSOS PARALINGÜÍSTICOS E ESTRATÉGIAS DISCURSIVAS





De acordo com a teoria pragmática da língua, que analisa as interações entre os enunciados e a interação, a compreensão depende das propriedades das suas estruturas; das propriedades paralingüísticas; percepção/observação real do contexto comunicativo; conhecimentos/crenças armazenados na memória em relação aos tipos de interação e a respeito do interlocutor, derivados de outros atos de fala e do conhecimento de mundo, organizado de acordo com determinados conceitos (frames). Na verdade, a interpretação vai além do texto, buscando compreender como um objeto simbólico produz sentidos. A interpretação é feita, então, em diferentes níveis: semântica, sintática, morfológica/lexical, fonológica/fonética e atividades paralingüísticas. Marcuschi (1999) define a conversação como o exercício prático das potencialidades cognitivas do ser humano em suas relações interpessoais e o gênero básico para a interação humana. Para ele, é na Análise da Conversação que se reproduzem as conversações reais, transcrevendo-as com clareza, sem sobrecarga de símbolos complicados, considerando não só detalhes verbais, mas também entonacionais e paralingüísticos (repetição, hesitação, pausa, entre outros) . A descontinuidade, fenômeno normal na linguagem oral e superada pelo uso de estratégias usadas pelo falante, acentua-se na organização do discurso do afásico, particularmente como resultado da hesitação, pela dificuldade de articulação da fala, exigindo do interlocutor “um maior grau de atenção e compreensão” (cf. PRETTI, 1991, p. 33). Embora a hesitação faça parte do processo de organização da linguagem, constituindo inclusive um artifício do falante para resolver problemas de natureza tanto lingüística quanto cognitiva e/ ou social, no afásico, dado a lentidão acentuada em todo o processo, esse fenômeno pode ser exacerbado, a exemplo do que acontece com os idosos na organização dos turnos (PRETTI,1991, p. 41). As estratégias utilizadas pelos usuários da língua também dependem da experiência de cada indivíduo e são aprendidas, para só então se tornarem automáticas. Para a construção de modelos estratégicos (representação mental de um acontecimento ou situação) é necessário que haja uma compreensão do discurso, a partir da representação de uma base textual na memória mais um modelo situacional; um sistema de controle geral, onde estão presentes as informações gerais sobre o tipo de discurso, objetivos, situação, entre outros; além de ser relevante uma grande quantidade de conhecimento. Para a organização do texto discursivo, o indivíduo utiliza, dentre outros, marcadores paralingüísticos do tipo pausas, silêncios, hesitação, repetição, etc. os quais aparecem sempre que interagimos verbalmente. Nas produções verbais existe uma série de atos não-verbais extremamente significativos, tais como o

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olhar, o riso, os meneios de cabeça e a gesticulação, desempenhando um papel fundamental na interação face a face, estabelecendo, mantendo e regulando o contato entre o falante e o ouvinte. São fenômenos de caráter cultural muito específico e dificilmente são transpostos de uma cultura para outra. Dionísio (2001, p.77) lembra-nos de que falamos com a voz e com o corpo, sendo decisivos, para o estabelecimento da coerência na conversação, os recursos não-verbais empregados pelos falantes de uma língua, e, portanto, de uma cultura. O falante, na elaboração do seu discurso, faz uso de diferentes estratégias para resolver problemas relacionados aos marcadores paralingüísticos, destacando-se a hesitação, usada para buscar o foco (CHAFE, 1985). O falante hesita para decidir o que falar ou, ainda, decidir como falar. A hesitação pode aparecer em situações de repetição de itens lexicais ou gramaticais, nas autocorreções caracterizadas pela presença de um elemento lingüístico qualquer, em situações normais de conversação. A hesitação, interrupção marcante na produção oral, é encontrada com freqüência no discurso do afásico, e constituise em fenômeno identificável pelo mais leigo observador. Numa interação lingüística, o ouvinte recebe do falante, todo momento, as pistas necessárias à organização e negociação da fala. O contexto social (ou situacional) e o informacional condicionam suas ações e o orientam na organização dos turnos da fala, em observância às normas conversacionais (SCHEGLOFF e SACKS, 1973) e os fatos ausentes e os presentes no momento da interação. O valor das ações lingüísticas resulta da relação entre esses dois fatores no ato discursivo. É através do discurso, permeado pelas ações não verbais e pelo contexto social, que se estabelecem as relações de poder entre os falantes, caracterizadas pela assimetria na interação (um falante tem mais poder que o outro). Exerce poder o falante que possui o controle de quem pode ou deve falar o que e em que momento (DIJK, 1997), exercendo um domínio sobre os participantes e definindo o papel a ser desempenhado por cada interlocutor no momento da interação, a exemplo da relação professor/aluno (SANTOS, 1998), médicopaciente (CORRÊA e MARTINE, 1989), discursos definidos como autoritários. As marcas lingüísticas, pistas fornecidas pelos falantes, e as estruturas ao nível sintático-semântico, prosódico e situacional (acesso ao contexto de produção), expressam esse poder, mesmo de forma implícita, através de estratégias discursivas textuais e contextuais, definindo o controle sobre o discurso do outro. Os padrões entoacionais, por exemplo, refletem as ações do falante tanto ao nível lingüístico propriamente dito (estrutura gramatical) quanto ao nível situacional (intenções do falante em conseqüência de seu conhecimento prévio da situação e do seu interlocutor). A interação propicia que os interlocutores expressem, interpretem e negociem os signos verbais de acordo com a situação discursiva. A negociação do sentido é o que mais interessa no processo interlocutivo, pois é quando se





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tem uma interpretação do uso dos turnos da fala, com a finalidade de saber quem domina ou não o turno ou se há obediência às exigências constantes no uso dos turnos na conversação face a face. Entende-se por turno o uso ou não da palavra por um dos falantes. O interlocutor deve, em condições normais, esperar para iniciar seu turno. Dentre os vários elementos que permitem a sustentação do turno está a repetição, por dois motivos: o primeiro para indicar que o interlocutor deseja permanecer como tal e o segundo para mostrar que ele está entendendo as palavras do ouvinte e concordando com elas. Segundo Marcushi (1988), repetição é a produção de segmentos discursivos idênticos ou semelhantes duas ou mais vezes no âmbito de um mesmo evento comunicativo. De acordo com a definição citada, o termo “idêntico” diz respeito a uma repetição em que o segmento repetido é realizado sem variação em sua relação com a sua primeira entrada. Já o termo “semelhante” aponta para a produção de um segmento com variação, seja de estrutura ou outra qualquer. As repetições operam também num nível discursivo, exercendo pressões sobre a organização sintática, afetando de algum modo a forma das sentenças e a própria ordem dos seus constituintes. Como destaca Koch (2004), as repetições podem ter também a função cognitivo-interativa de facilitar a compreensão através do desaceleramento do ritmo da fala, dando ao(s) parceiro(s) tempo maior para o processamento daquilo que vai ser dito. A repetição atua, na grande maioria das vezes, como característica organizadora da fala. Esta organização leva a que se produzam segmentos inteiros duas vezes, por motivo de interrupções, interferências externas ou outros. Seria o caso das manifestações como riso, gestos, etc, que podem ser tomados como nervosismo, ironia, etc, funcionando autonomamente na interação. Sendo assim, o locutor poderia repetir-se em virtude destes sinais. Na conversação, as unidades devem obedecer não só a princípios sintáticos, mas também a princípios comunicativos. Assim, os marcadores conversacionais do texto são específicos e com funções tanto conversacionais como sintáticas. A repetição é um dos critérios mais visíveis para identificar a naturalidade da fala, cuja característica, entre outras, está na tendência ao envolvimento e à impossibilidade de revisão, sendo natural que o falante se repita com certa freqüência. No ato de falar, a repetição funciona como estratégia de monitoração rítmica da coerência, favorecendo a coesão superficial e auxiliando na geração de seqüências mais compreensíveis. Propicia uma textualidade menos densa e maior grau de envolvimento interpessoal, sobretudo no caso das repetições mútuas (MARCUSCHI, 1988). Em geral, quando se fala das funções da repetição, são citadas algumas

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poucas tais como reforço, ênfase, coesão, coerência e efeito lingüístico, muito embora as funções sejam mais variadas e mais difíceis de identificar do que as anteriormente referidas. Isso se dá pelo fato de que, muitas vezes, uma repetição num dado contexto pode ser plurifuncional, dependendo do ponto de vista em que é tomada. Na organização do seu discurso, o afásico utiliza todos esses marcadores paralingüísticos (pausas, silêncios, hesitação, repetição) sendo a repetição encontrada com muita freqüência. Convém destacar que, embora os recursos paralingüísticos apareçam sempre que interagimos verbalmente, a sua utilização e freqüência são próprias de cada indivíduo. Considerada como um dos marcadores mais visíveis para identificar a naturalidade da fala, a repetição, no afásico, é exacerbada, muitas vezes diagnosticada como palilalia, que consiste em uma repetição recorrente de palavras. Vista sob outra perspectiva, por estar associada, em geral, com a espontaneidade, a ocorrência da repetição no afásico pode tornar-se ponto positivo na organização de seu discurso, passando a ser vista como uma estratégia discursiva a ser considerada pelo terapeuta da fala, na clínica fonoaudiológica. Assim, o sujeito afásico, ao fazer uso das repetições com a intenção de melhor se fazer entender, acabará por beneficiar-se com essa estratégia, imprimindo espontaneidade ao seu discurso e aproximando-se da produção oral de sujeitos que não apresentam a patologia. Outro elemento paralingüístico, bastante relevante na conversação é a troca de turnos. Koch (1997), afirma que a conversação provoca situações modificadas ou formadas através do dialogo, e que, durante a interação, tem-se o que Goffman (apud KOCH, 1997) nomeou processos de configuração, que representa o modo como um interlocutor se coloca frente ao outro. Como exemplo, cita as várias maneiras que uma pessoa tem de se representar: em casa, é o chefe da família; no trabalho, empregado e amigo; na hora do lazer, esportista. Como mencionado previamente, a conversação estrutura-se em turnos, que é o momento de intervenção de um dos sujeitos no decorrer do diálogo. Existem interações simétricas, nas conversas do cotidiano, onde os integrantes possuem igual direito a fazer uso da palavra, e as interações assimétricas, onde um indivíduo detém o poder da palavra, como em entrevistas, consultas e palestras. Para a organização conversacional, existem regras a serem cumpridas. Mesmo na interação simétrica, não é comum tomar a palavra com freqüência. Ocorrendo este fato, dá-se a sobreposição de vozes, pois, por alguns momentos, dois ou mais falantes falam simultaneamente, o que resulta em tomada de turno. Coulthard (apud DOLLY, 2003. p. 17-18) afirma que os ‘turnos” nem sempre acontecem de forma clara. Em algumas situações, onde mais de duas pessoas falam ao mesmo tempo, lacunas indevidas ocorrem. Em cada país e grupo social existem conjuntos de regras que indicam quem e quando falar.





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Observa-se, no discurso do afásico, que existem trocas de turno indevidas pelo fato da família não possuir uma adequada escuta. De acordo com Sebastian, Ryan e Abbott (apud PRETI, 1991, p. 24), a realidade do idoso brasileiro em relação ao discurso é a suave violência do silêncio, que se deve a uma cultura contemporânea em que se atribui ao idoso uma característica negativa de lentidão, dependência, passividade, fraqueza, incapacidade física e mental. A impaciência pela espera do turno na interlocução com o afásico termina por levá-lo ao mutismo e, conseqüentemente, ao isolamento. Outro fenômeno paralingüístico freqüente no discurso do afásico é a hesitação, que aparece como uma condição favorável encontrada pelo sujeito para os momentos em que se encontra esquecido, ansioso, frustrado, nervoso, tenso, etc. Sendo um fenômeno discursivo sistemático, embora podendo ocorrer na fala desses indivíduos de forma assistemática em diferentes situações, pode revelar estratégias adotadas para resolver dificuldades encontradas na organização de sua linguagem. Essas e outras estratégias lingüísticas podem ser encontradas na fala do afásico como forma de superar sua dificuldade na organização do seu discurso, tornando o processo de descontinuidade um meio de organizar melhor o texto discursivo, assim como o fazem os sujeitos sem nenhum comprometimento verbal, a exemplo da hesitação, definida como fenômeno organizador em situações de interrupção de fala, em pontos não previstos, seja por fatores sintáticos seja por fatores prosódicos. Um estudo aprofundado do processo discursivo na fala do afásico é imprescindível para se pensar formas de utilização de estratégias normalmente encontradas na organização discursiva de sujeitos que não desenvolveram essa patologia, identificando as dificuldades e adequando o uso de estratégias para cada situação com vistas a melhorar seu desempenho e, com isso, sua autoestima. Isso poderá contribuir não apenas para sua maior participação em atividades sociais, como também para uma reflexão sobre a discriminação e o isolamento sofrido pelo afásico e a sua angústia na necessidade de ser compreendido pelos seus familiares, podendo esses fatores mover uma ação social na melhoria de sua qualidade de vida. Espera-se que tanto os profissionais que trabalham com a fala como os familiares desses sujeitos possam refletir sobre este tipo de estratégia, estimulando o seu uso de forma a minimizar os efeitos ocasionados pela doença, ajudando-o a integrar-se de forma mais efetiva no seu meio social.

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Uy guaciar anco * Uyguaciar guaciaraa Velôso Castelo Br Branco







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(RE)ESCREVENDO OU (RE)CRIANDO A HISTÓRIA: UMA DISCUSSÃO METODOLÓGICA SOBRE A UTILIZAÇÃO DOS TEXTOS LITERÁRIOS COMO FONTE HISTÓRICA (R e-writing or rrecr ecr ea ting histor y: (Re-writing ecrea eating history: a methodological discussion about using ar xt as historical rresour esour ce) liter literar aryy te text esource) ABSTRACT This paper discusses the use of literary texts in historical studies, heading for the complex field of text analysis, site par excellence of the historiographer, to acess his main objective: the analysis of the literary texts specifically. As reference, we used the production related to the Literary Analysis, whose contribution enlarged, in a lot, the understanding of renowned authors in the current historiography field such as Michel Foucault, Paul Veyne, Michel de Certeau and Hayden White. or ds K eyw ywor ords ds: Methodology of the History, literary Analysis, Historiography. RESUMO O ar tigo apresentado discute o uso de textos literários em estudos históricos, encaminhando-se pelo complexo campo da análise de textos, canteiro por excelência do historiador, para chegar ao seu objetivo principal: a análise dos textos literários propriamente ditos. Utilizamos, como referência bibliográfica, a produção relacionada à Análise Literária, cuja contribuição alargou, em muito, o entendimento de autores consagrados no campo da historiografia atual, como: Michel Foucault, Paul Veyne, Michel de Certeau e Hayden White. Palavras-chave: Metodologia da História, Análise literária, Historiografia.

A História, enquanto processo de construção sistemática de um conhecimento do passado com pretensão de verdade, pressupõe, de acordo com Boutier e Julia (1998, p. 11), algumas “[...] exigências e servidões inevitáveis – formação específica, familiaridade com uma certa prática, obediência a regras ditadas pelo ofício”, apesar de se reconhecer a [...] pluralidade dos espaços postos à disposição do conhecimento histórico, o sem sentido das fronteiras rígidas e as possibilidades infinitas das trocas com os campos vizinhos – das ciências humanas e sociais.

Reconhecer esses argumentos implica em uma exigência de renovação da prática do historiador, através da conquista de novos objetos e de novos territórios, com a acumulação de conhecimentos e o aprofundamento nos métodos e técnicas articuladas com as exigências da contemporaneidade.

* UFPB.







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Nesse sentido, destaca-se o papel dos programas de pós-graduação na produção de um conhecimento sistematizado, rompendo com a vulgarização histórica praticada por amadores, pouco informados das renovações da historiografia. Os historiadores profissionais continuam aceitando a tarefa de escrever livros destinados ao grande público instruído, apresentando obras que aliem uma leitura agradável ao gosto pela precisão, à exigência de um contato direto com documentos e monumentos, orientando o leitor para pesquisas especializadas, tais como a Coleção de Lucien Febvre e de Jacques Le Goff em que “[...] o ‘belo’ livro vale tanto por seu texto quanto pela qualidade de suas imagens” (BOUTIER e JULIA, 1998, p. 23). Entretando, a renovação histórica propriamente dita ocorre quando a história é levada a redefinir problemáticas, métodos e objetos face às ciências sociais e humanas, destacando-se, nesse sentido, a contribuição da publicação Fazer História, organizada por Le Goff e Nora (1974), em três volumes: Novos problemas, com a definição da história sob a provocação das outras ciências humanas; Novas abordagens, com a modificação dos recortes tradicionais em diferentes setores; e Novos Objetos, com a incorporação à História de pesquisas sobre o inconsciente, o corpo doente, os jovens, a cozinha etc. Essa obra anuncia a passagem de um paradigma, em que a análise macroeconômica era primordial, para uma história que focaliza os sistemas culturais compreendidos em um sentido muito amplo, e anuncia a fragmentação da disciplina. O período de crise, de inquietação ou de renovação do historiador e da historiografia, retratado na obra, é resumido por Boutier e Julia (1998, p. 29) quando afirmam que “[...] o historiador não deve renunciar jamais à relação que as séries, as regularidades percebidas ‘mantêm com particularidades que lhes escapam’, mas deve ocupar-se do particular como ‘limite do pensável’”, conduzindo aos interesses pelos restos e pelas diferenças. Nesse sentido, “o historiador não é mais o homem capaz de constituir um império. Nem visa mais o paraíso de uma história global. Ele chega a circular em torno das racionalizações conquistadas. Ele trabalha nas margens. Sob esse aspecto, ele se torna um erradio” (CERTEAU, 1974, p. 27).

A história dos anos 90 difere profundamente daquilo que se apresentou como “nova história”, com a introdução de novos objetos – como a história das atitudes coletivas, diante da morte, do medo ou da vida, a história dos gestos, das cores, dos prenomes ou dos dispositivos afetivos –, e de novas abordagens – a análise das formas de sociabilidade no âmago da história social, a inscrição no espaço das relações e das dinâmicas econômicas de longa duração através das “economias-mundos”, o relacionamento das atividades econômicas, das estruturas demográficas e das configurações sociais segundo o modelo da “proto-

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a história social e econômica, por muito tempo dominante na França, apagou-se diante do avanço da história cultural, mas também da história política, em história contemporânea, e mais ainda em história medieval e moderna [...]. A rigidez dos quadros “estruturais” (o econômico, depois o social, depois o mental, para retomar a trilogia de E. Labrousse) desgastou-se, a quantificação – uma das “linguagens de descrição do mundo” preferidas pelos historiadores do pós-guerra – perdeu terreno, mesmo que [...] permaneça sendo um instrumento heurístico insubstituível. A realidade histórica é cada vez menos examinada como um objeto dotado de propriedades que preexistam à análise, mas como um “conjunto de inter-relações que se movem no interior de configurações em constante adaptação”.

A passagem das massas às margens, das análises estatísticas aos estudos de casos, dos objetos às práticas e às lógicas sociais provocou a reintrodução dos agentes nos grandes processos históricos e a diversificação dos instrumentos analíticos. Esse momento foi fortemente influenciado pela chegada de historiadores estrangeiros à França, como os americanos, os ingleses, os italianos ou os alemães, e as peculiaridades do seu savoir-faire. Entretanto, apesar da riqueza e diversidade do panorama apresentado nas pesquisas, alguns historiadores não fazem referência ao período apenas revelando suas incertezas ou dúvidas, mas apontam para uma verdadeira crise da razão histórica. Nos Estados Unidos, em fins dos anos 1960, houve o que se chamou de “virada lingüística”, com as controvertidas análises de Ricoeur (1977; 1994) e White (1992; 1994), em que o relato histórico e a ficção tornam-se um amálgama. A história tornar-se-ia um simples gênero literário, perdendo a pretensão a ser um discurso de verdade.

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indústria”, ou a construção da memória nacional pelo trabalho com os “lugares de memória”. Também, nos anos 90, é destaque a criação do Instituto de História do Tempo Presente, enfrentando dois grandes obstáculos: a antiga crença de que a história se institui sobre a separação entre o passado e o presente e, para que exista entre o historiador e seu objeto a necessária objetividade, a história imediata deveria ser reservada ao jornalista; e a onipotência da longa duração que sempre marcou a escola histórica francesa, em detrimento do acontecimento. Foi o “caráter traumático” de acontecimentos como a Segunda Guerra Mundial e o genocídio nazista, que inauguraram nossa contemporaneidade, tornando necessária a emergência da história do tempo presente. Os quase vinte anos após a publicação da obra de 1974, uma verdadeira avalanche marca os anos noventa, período caracterizado pela publicação das obras de síntese como as histórias da França rural, urbana, religiosa e a história da vida privada. Segundo Boutier e Júlia (1998, p. 31),





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Entretanto, esses aspectos exigem do historiador uma disciplina teóricometodológica para não cair no encantamento da pura narrativa literária, quase sempre pelo viés memorialista, esquecendo-se do compromisso do historiador com a produção de conhecimento e de sentido (CERTEAU, 1982). É com esse objetivo que serão feitas algumas considerações metodológicas sobre o tratamento dado aos textos em história e, mais particularmente, ao texto literário. Entendemos que o historiador, em seu ofício, mantém um interesse fundamental sobre o conteúdo dos documentos de que utiliza, isto é, sobre os referentes dos textos ou sobre os vários discursos nele existentes, cercando-se, preferencialmente, de fontes de natureza e origem diferentes, para garantir a fidedignidade dos seus resultados. Percebendo a dimensão subjetiva do seu saber-fazer e, conseqüentemente, da análise e da interpretação de textos históricos, o historiador vê-se diante de encontros possíveis (e até desejáveis) com as ciências auxiliares, que lhe forneceriam importantes conhecimentos e novas metodologias para o seu ofício: as ciências sociais (sociologia, antropologia, psicologia) e a lingüística. Nesse sentido, dois importantes encontros merecem destaque. Um primeiro encontro, ocorrido nas décadas de 1950 e 1960, estava fundamentado em um maior rigor no tratamento do vocabulário (denotação) dos textos utilizados como fontes, tendo por base os estudos de Harris (1952), na sua análise distribucional, que conduziria a uma análise de conteúdo mais sistemática, baseada no levantamento estatístico das freqüências em que apareciam o emprego das palavras, sem levar em consideração o conseqüente esfacelamento do discurso, trabalhado e subdividido em unidades dissociadas e sem conexão. Um segundo, ocorrido também nos anos 1960, período de auge do estruturalismo francês, quando a lingüística sai do estudo da fonologia e se desenvolve em direção à lingüística do discurso, partindo para as estruturas, que organizam grupos de frases num discurso completo, e ultrapassando a dicotomia língua/ fala, rumo a um estudo do discurso enquanto prática, enquanto processo mediado por suas condições de produção (cf. também ROBIN, 1977). Discurso aqui pode assumir várias definições possíveis. Ou seja, ele pode ser tratado como sinônimo de fala (uso contingente da língua) em oposição à língua (sistema estruturado de signos); como unidade lingüística maior do que a frase – torna-se então sinônimo de mensagem ou enunciado; como conjunto das regras de encadeamento das frases ou grupos de frases que compõem um enunciado; ou como o enunciado visto a partir das condições de produção – lingüísticas e sociais – que o geraram (CARDOSO e VAIFAS, 1997, p. 377).

A opção por uma definição específica implica no estabelecimento de regras ou abordagens de análise desse discurso, seja em função do conteúdo das

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[...] um documento é sempre portador de um discurso que, assim considerado, não pode ser visto como algo transparente. [...] o historiador deve sempre atentar, portanto, para o modo através do qual se apresenta o conteúdo histórico que pretende examinar, quer se trate de uma simples informação, quer se trate de idéias. [...] A história é sempre texto, ou mais amplamente, discurso, seja ele escrito, iconográfico, gestual etc., de sorte que somente através da decifração dos discursos que exprimem ou contêm a história poderá o historiador realizar seu trabalho (CARDOSO e VAIFAS, 1997, p. 377-378. Grifos do autor).

Entretanto, Cardoso e Vaifas (1997, p. 379) recomendam ao historiador alguns cuidados importantes no uso da análise semântica: em primeiro lugar, a escolha criteriosa dos métodos de trabalho, que devem ser compatíveis com a formação teórica do historiador; em segundo, deve haver uma necessária flexibilidade na utilização do método escolhido, para não se correr o risco de cair no encantamento positivista de um cientificismo exagerado, que, certamente, levará o pesquisador a construir “um relatório técnico” em lugar de uma “narrativa histórica”. Porém, a escolha do método deve, sempre, estar ancorada na criatividade do historiador, que deve fugir da armadilha de analisar o texto, permanecendo estritamente no nível lingüístico, esquecendo-se do contexto histórico-social apenas para fazer referência às condições de produção do texto. Ou seja, o historiador não pode esquecer de que ele enquanto [...] intérprete presta uma contribuição própria, ainda que não pretenda fazer mais do que uma decifração. Na realidade, ele é, em grande parte, o produtor daquilo que descobre no texto, uma vez que escolhe, conforme as suas necessidade intelectuais e as necessidades de sua época, o código em que inscreverá o sentido próprio (STAROBINSKI, apud CARDOSO e VAINFAS, 1997, p. 384).

A análise semiótica consiste em descrever o texto ou o discurso, como todo e qualquer fenômeno, com significado completo, incluindo desde um texto em língua natural (oral ou escrito), até um filme, uma música, ou qualquer texto figurativo. Os complexos esquemas semióticos passam a exigir do pesquisador um aparato teórico-metodológico mais profundo para evitar incorrer em erros grosseiros. O historiador deixa de manter uma relação mediada pelo postulado da transparência das palavras e da imediatez do sentido, para trabalhar o léxico através de múltiplas mediações, incluindo os componentes políticos, ideológicos e simbólicos, num permanente jogo de opacidade, entendendo que a palavra é,

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significações (análise semântica), seja em função da expressão das significações e da sua produção enquanto discurso (análise semiótica). Na análise semântica, faz-se um resgate do conteúdo histórico a partir do vocabulário existente, dos enunciados, dos tempos verbais, das expressões utilizadas etc., relacionando o texto ao contexto, sob o pressuposto de que





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por definição, polissêmica, conotando vários esquemas ideológicos contraditórios, somente possíveis de interpretação quando amparados historicamente dentro de um recorte e do seu contexto. Fazendo referência a Roland Barthes, Robin (1997, p. 50) realça a importância das palavras numa dada conjuntura, secundarizando a lógica da comunicação direta ou denotativa, e afirmando terem as palavras [...] uma lógica própria, numa linguagem conotativa, em redes complexas, em que se enlaçam e se desenlaçam lembranças coletivas, ressonâncias afetivas, signos de reconhecimento ideológico, complexos de imagens e de sonhos, etc. Pronunciálas implica um ato liberatório, por vezes lúdico, sempre carregado de valores.

Isso exige cuidados redobrados com os manuais ou receituários práticos de análise textual, que parecem desprezar a necessidade imperiosa do estudo e do aprofundamento. Por isso, é importante refletirmos sobre uma importante advertência feita por Robin (1977) sobre o uso de técnicas em que se ignora as teorias que lhes dão sustentação, a fim de não se cair na mistificação de um empirismo reduplicado, por força de um modismo sem sentido. E, assim, a autora afirma que toda técnica implica uma teoria sobre a linguagem, mesmo sobre sua natureza e sua origem, e pode, através disso, religar-se a tal ou qual corrente filosófica e epistemológica. [...] um método de abordagem, seja qual for, é carregado filosoficamente (ROBIN, 1977, p. 22-23).

Nesse sentido, a autora propõe, como metodologia de trabalho, o uso de uma descrição sócio-histórica e de uma descrição lingüística, seguido de um relacionamento dos dois modelos e adverte que “se é necessário uma teoria da articulação da prática discursiva com o conjunto da formação social, vamos dizê-lo com franqueza, atualmente tal teoria não existe” (ROBIN, 1977, p. 57). A construção de fundamentos teórico-metodológicos é um importante desafio para os pesquisadores que enveredam por esses novos caminhos (FAIRCLOUGH, 2001). Nesse canteiro amplo e cheio de armadilhas, o historiador precisa cercarse de cuidados e de muita erudição para pisar com mais firmeza. Com este propósito, é imperioso discutir-se mais detidamente os percursos teóricometodológicos do uso de textos literários em história: [...] a verdade é que toda a criação se concretiza transpondo (independentemente de quaisquer preconceitos psicologistas) o crivo da individualidade criadora; e é essa individualidade criadora que interpreta, num registro predominantemente estético, uma visão de mundo coletivizada (REIS, 1981, p. 112-113).

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[...] a expressão, pela palavra escrita, dos conteúdos da ficção, ou imaginação. [...] somente se consideram literários os textos que se proponham específicos fins literários, vale dizer, o conto, a novela, o romance e o teatro (este, apenas enquanto texto, não enquanto representação) (MOISÉS, 1972, p. 14).

Nesse aspecto, é necessário esclarecer que o texto literário deve ser visto não somente como sinônimo de ficcionalidade, mas principalmente como manifestação discursiva, enquanto testemunho e expressão humanas. Enfim, como afirma Bosi (1993, apud CHIAPPINI E AGUIAR, 1993, p. 140-141), a imitação está em tudo, na verdade, porque a memória e a experiência fazem parte tanto do poeta quanto do historiador; a memória, a experiência, a relação com o outro, com o objeto, a incorporação do que está de fora, tudo isso é uma experiência humana fundamental que está no historiador, e que está no poeta.[...] A literatura, eu diria que é um espaço intermédio de linguagem que está na história e está na poesia.

Para a análise literária, Moisés (1972) afirma que não há modelos fixos para efetuá-la, dependendo do comportamento do pesquisador diante do texto, uma vez que não existem esquemas rígidos, mas técnicas e métodos que apóiam o trabalho de análise. Entretanto, a fragmentação interpretativa dos textos deve ser praticada com o máximo de rigor e objetividade, reconhecendo-se que a crítica literária consiste numa segunda leitura, numa espécie de recriação do texto, após um procedimento rigoroso de análise. Isso implica em um cuidado metodológico maior, uma vez que [...] é a própria obra que decreta o procedimento a adotar: o caminho a percorrer inicia-se na obra e termina no método, não o contrário, ou seja, evidencia falta de consciência crítica ou má consciência ideológica aplicar mecânica e apriorìsticamente o método a qualquer obra, sem consultar-lhe antes a natureza (MOISÉS, 1972, p. 21).

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Nas histórias da família, do cotidiano e da vida privada, as fontes arqueológicas, iconográficas e literárias ocupam um lugar privilegiado, destacandose os estudos sobre a história da vida privada, o cotidiano material e seus aspectos simbólicos (CARDOSO e VAINFAS, 1997). No que diz respeito aos textos literários, que serão tratados mais detidamente no presente artigo, tal utilização pressupõe um profundo mergulho no terreno da análise literária, campo cheio de especificidades e de riquezas aos olhos do historiador. Ou seja, esses novos objetos exigem novas abordagens, uma vez que as metodologias históricas passam a não mais dar conta, sendo necessário o auxílio dos conhecimentos advindos da literatura e da análise literária. A literatura é aqui entendida como





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Isso implica que cada gênero literário deve ser analisado na sua especificidade, respeitando-se às normas gerais, aplicáveis a qualquer análise literária, e as normas específicas, particulares a cada gênero em questão. Estabelecendo uma comparação entre o historiador e o crítico literário, Moisés (1972, p. 16) reconhece que este último se utiliza da análise textual para dar suporte aos seus juízos de valor, à sua crítica, enquanto que [...] o historiador literário a utiliza para fazer história, ou seja, descrever as obras, os fatos, os autores, e procurar estabelecer-lhes conexões, profundas ou superficiais, tão somente elaborando valorações quando interpreta, não os textos em si, mas os vínculos que os estreitam no curso do tempo.

Segundo o autor, o historiador pode fazer historiografia externa, quando atribui maior importância aos fatos, à biografia dos escritores e às relações entre os textos estudados e à conjuntura em que foram produzidos, ou historiografia interna, quando sua preocupação concentra-se sobre o conteúdo das obras, suas idéias, pensamentos e sentimentos que permanecem ao longo do tempo, concedendo grande relevância à análise textual. Nesse sentido, não existe historiografia puramente interna ou externa, ou seja, [...] toda análise textual é contextual [...] Um escrito constitui sempre um ser vivo, empregando regras (ainda que somente sintáticas), aberto aos influxos de fora, da cultura em que foi produzido, da Língua em que foi elaborado, da sociedade que o motivou, dos valores em vigência no tempo etc (MOISÉS, 1972, p. 17).

Seguindo o rigor metodológico aplicável não apenas à história mas a qualquer área do conhecimento, os textos literários não devem se constituir nos únicos documentos a que se deve recorrer numa análise historiográfica. Eles podem ser considerados, pelo seu caráter estético e artístico, os melhores ou mais ricos documentos a serem utilizados para se reconstituir, internamente, uma época, uma cultura ou uma personalidade, mas necessitam do concurso de outras fontes para dar suporte à análise, seja ela de cunho psicológico, histórico, literário, sociológico etc. É necessário considerar que ao iniciar o contacto com o romance de qualquer tipo, o leitor é obrigado a concordar com as normas estabelecidas pelo ficcionista. Este, inventa um mundo, com base na observação, na memória e na imaginação, que o leitor deve entender como tal. Caso recuse o universo fictício que se lhe oferece, ou procure nele o relato de verídicos fatos acontecidos, só lhe resta fechar o romance e abrir o jornal (MOISÉS, 1972, p. 89). O texto literário, portanto, além de fornecer um prazer estético (o fim lúdico), é a

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O conceito que nos possibilita compreender por que a literatura pode ser articulada com diferentes áreas dos conhecimentos é o conceito da intertextualidade, considerada uma propriedade do texto. Segundo Kleiman (2001), texto é toda construção cultural que adquire um significado devido a um sistema de códigos. Uma palestra, um quadro, uma foto, uma tabela são atualizações desses sistemas de significados, podendo ser interpretados como textos. Nesse sentido, o significado de um texto não se limita ao que apenas está nele; seu significado resulta da interação com outros textos. A intertextualidade refere-se, portanto, às relações entre os diferentes textos que permitem que um texto derive seus significados de outros. Os textos incorporam modelos, vestígios, até estilos (no caso das paródias) de outros textos e de outros gêneros. Assim, o texto se abre para aprofundar a discussão sobre relações historicamente constituídas, características da complexidade das interrelações culturais. Outro conceito que nos parece fundamental para ser discutido brevemente é o de verdade ou verossimilhança. Nas fontes orais, nos textos literários ou mesmo nos documentos oficiais é preciso que se busque a sua coerência relativa, nunca absoluta, com as ocorrências da vida real. Por isso, a necessidade de se acercar de fontes diferentes para dar sustentação à análise e atribuir-lhe cunho objetivo e ou mesmo assegurar-lhe o caráter de cientificidade. Quando se utiliza a fonte literária, trabalha-se num tempo psicológico, um tempo-duração que se desenvolve no fluir das personagens, em seus fluxos emocionais, fazendo-se um paralelo constante com o tempo linear, cronológico, que confere sentido e direção ao objeto. É o objeto que direciona o tempo ou o recorte temporal, e não o contrário. Como afirma Habermas (1990, p. 240-241), a experiência narrada [...] não pretende ter a credibilidade de um relato histórico, de uma documentação ou de um testemunho [...] O que caracteriza um texto literário é o fato de ele não surgir com a pretensão de documentar um evento no mundo; mesmo assim, ele procura arrastar o leitor, passo a passo, para o encanto de um evento imaginário, até o ponto em que ele passa a acompanhar os fatos contados como se fossem reais (Grifos do autor). Esse último trecho de Habermas (1990), sobretudo a expressão “como se fossem reais” faz transparecer a diferença fundamental entre o conhecimento artístico e o conhecimento reflexivo ou científico. Enquanto o historiador produz um conhecimento científico, o artista recorre à imaginação e à fantasia para compreender o mundo. Fictício

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fonte mais fascinante de conhecimento do real. Daí a função social da literatura que, ao lado da história, psicologia, filosofia, biologia e de outras ciências e artes, embora por caminhos diferentes, induz o indivíduo a refletir sobre os problemas existenciais. É por isso que atividade literária, oral ou escrita, primitiva ou evoluída, é consubstancial à sociedade humana, não existindo povo sem literatura. Daí a riqueza dos estudos que articulam história e literatura.





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não significa falso, mas apenas historicamente inexistente. O que acontece num romance, numa tela de cinema ou de televisão, num quadro pictórico, é um parto da fantasia do autor que, refletindo sobre a realidade existencial, cria um universo imaginário em que os valores ideológicos são questionados. A leitura de um texto escrito ultrapassa, portanto, a simples decodificação e [...] consiste verdadeiramente em (re)construir um universo imaginário cujas coordenadas muitas vezes estão apenas esboçadas no texto que se aborda. [...] ler um romance é, de certo modo, (re)organizar o tempo da história, a orquestração dos pontos de vista, o processo de narração etc. [...] o ato de leitura não ignora o amplo espaço intertextual em que todo o discurso literário se insere (REIS, 1981, p. 22). Essa linha de raciocínio implica na impossibilidade de um ato crítico rigorosamente objetivo, em que se liberte de um grau mais ou menos elevado de subjetividade, em qualquer área do conhecimento. Para cercar-se de um maior rigor metodológico, que permite nortear o ato crítico, impedindo que o pesquisador se perca num imenso pântano de devaneios puramente subjetivos, podem ser descritos dois procedimentos: o primeiro consiste no conhecimento dos códigos estéticos que estruturam a obra de arte literária, que permitem perceber os conflitos entre as obras e os códigos vigentes em determinada época ou em seus movimentos de vanguarda; o segundo é o conhecimento do contexto sociocultural ou do conjunto de circunstâncias que colaboraram para a elaboração do texto literário, que permitem situá-lo historicamente ou determinar suas condições de possibilidade. A crítica satisfatória deve passar da fase analítica, que consiste na decomposição de um todo em suas partes ou elementos constitutivos, a outra fase predominantemente sintética que é a interpretação. É uma atitude descritiva, objetiva, que assume individualmente cada uma das partes de um texto literário, revelando as relações entre essas partes distintas, em que deve predominar os elementos textuais sobre a subjetividade do pesquisador (receptor). A interpretação, portanto, diz respeito à pesquisa fundamentada no processo de análise, visando atribuir um sentido ao texto literário. Reis (1981, p. 42-43) explicita que o pesquisador deve ter uma noção teórica básica, qual seja a noção de que o texto literário funciona como um signo estético dotado de significado(s) global(is) cuja relação com o(s) elemento(s) significante(s) – de que se ocupa sobretudo a análise – não se rege necessariamente pelo estatuto de convencionalidade próprio do signo lingüístico. [...] a interpretação dirige-se, de modo prioritário, à descoberta de sentidos coerentes – e não de todos os sentidos – relativamente aos elementos detectados pela análise. Por isso, a interpretação terá em conta necessariamente a problemática dos gêneros e os condicionalismos impostos pelos períodos literários, como fatores susceptíveis de inculcarem ao texto um certo pendor ideológico e determinados núcleos temáticos (Grifo do autor). Ultrapassando os limites do texto, a interpretação constitui o domínio, por

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inserido num mais ou menos vasto contexto social, político e econômico, sustentando com esse contexto vínculos e afinidades variavelmente detectáveis, integrado numa classe social cuja problemática interpreta, o escritor é objeto de uma espécie de invisível, mas eficaz coação que o leva a, muitas vezes sem disso se aperceber, projetar no texto que elabora todo o conjunto de forças de raiz sociológica subjacentes a esse texto. O autor seria, portanto, impulsionado a limitar-se, simplesmente, a veicular uma criação que não é mais individual, personalística, mas coletiva. O último nível citado por Reis (1981) é o textual, em que o texto literário é abordado dentro de limites precisos, vinculado a um espaço em que se projeta o conjunto de sentidos possíveis ao texto. A leitura crítica no nível textual tenta evidenciar, analisar e interpretar os componentes formais dentro de uma ótica particular em que se distinguem o texto literário, construído em um sistema específico de normas, do texto meramente lingüístico, que é produto imediato da oralidade, seja ele expresso materialmente (escrito) ou não. Todos esses níveis, apresentados didaticamente como distintos, guardam uma relação entre si. Ou seja, caso se pretenda elaborar uma análise profunda e rica, condição sine qua non para uma interpretação que ultrapasse os domínios do texto, é fundamental que se proponha uma atividade crítica na sua totalidade, saindo-se do texto para o contexto, da forma para o conteúdo, do real para o imaginário, do objetivo para o subjetivo, compreendidos não como pólos opostos, contraditórios, mas como realidades que se interpenetram.

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excelência, da subjetividade do crítico. De maneira mais direta, a análise de uma obra literária – entendida na dimensão histórico-cultural e sociológica do texto literário – compreende, segundo Reis (1981), três níveis: um primeiro nível denominado pré-textual, em que o interesse reside nas circunstâncias externas que envolvem a existência da obra literária, mas não explicam a sua criação, prendendo-se a questões de natureza factual como pormenores biográficos, datas, autorias, genealogias, condicionalismos genéticos etc. Um segundo, o sub-textual, responsável pela gestação da obra literária, que não se baseia em relações lineares ou determinísticas de fatores ou motivações responsáveis pela criação do texto literário, mas na convicção de que “[...] o discurso literário reflete de modo distorcido e não especular essas motivações genéticas” (REIS, 1981, p. 82). Tal análise sofre influência direta das contribuições teóricas de Freud (1927-1930), no que tange à valorização dos elementos estéticos (simbólicos, inconscientes) que entram na composição da obra literária. Considera-se que a prática estética se concretiza num domínio situado entre o real e o imaginário, encarando a criação literária como um sonho desperto, em que se destaca, consideravelmente, o uso da metáfora, do símbolo, da imagem, da ficção ou do conflito dramático como projeções inconscientes que ousam aflorar à superfície do texto. Nesse aspecto, Reis (1981, p. 105) afirma que,





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UM TEXTO E SEU CONTEXTO













Para ilustrarmos brevemente a discussão acima, apresentamos parte do tratamento dado ao conto Teoria do Medalhão, de Assis (2001), publicado em 1883, como parte da obra Papéis avulsos1, que foi utilizado como uma fonte histórica importante para entendermos o bacharelismo e a apologia ao diploma de nível superior na sociedade brasileira, do período imperial (CASTELO BRANCO, 2005). Contextualizando, o conto também pode ser lido como um importante desabafo do escritor que, na condição social de mulato, autodidata e filho de sitiantes agregados, nunca conseguiu freqüentar um curso superior de Direito (à época somente existentes em Recife e em São Paulo) e, por isso, passou a sofrer duras críticas de sua obra por bacharéis ilustres como Sílvio Romero, a partir de 1880. O conto, além da beleza estética, é muito intrigante. Vejamos esse fragmento: Vinte e um anos, algumas apólices, um diploma, podes entrar no parlamento, na magistratura, na imprensa, na lavoura, na indústria, no comércio, nas letras ou nas artes. Há infinitas carreiras diante de ti. Vinte e um anos, meu rapaz, formam apenas a primeira sílaba do nosso destino. [...] Mas qualquer que seja a profissão da tua escolha, o meu desejo é que te faças ilustre, ou pelo menos notável, que te levantes acima da obscuridade comum. A vida, Janjão, é uma enorme loteria; os prêmios são poucos, os malogrados inúmeros, e com os suspiros de uma geração é que se amassam as esperanças de outra. Isto é a vida; não há planger, nem imprecar, mas aceitar as cousas integralmente com seu ônus e percalços, glórias e desdouros, e ir por diante (ASSIS, 2001, p. 32-33, grifos nossos).

Nesse trecho, ressaltamos a ironia refinada do autor que realça a pouca importância dada a profissão, a realização individual ou coletiva, que passam a ser secundarizadas em relação ao jogo das aparências, que passam a conduzir o indivíduo a rituais obsessivos de uma corrida desenfreada pelo “canudo a qualquer custo”, seja para garantir um melhor emprego ou a melhoria das condições de vida, seja para servir de ornamento ou peça decorativa, quando não repousa solitário em uma gaveta. A necessidade de inserção social, sobretudo na carreira política, no serviço público, no jornalismo ou mesmo nas letras, pela via direta do diploma, que representaria um “passaporte” para a inclusão social e para a ascensão social, sobretudo no Brasil imperial. 1

Fazem parte de Papéis avulsos, publicado em obra, os contos: O alienista, Teoria do Medalhão, A chinela turca, Na arca, D. Benedita, O Segredo do bonzo, O anel de Policrates, O empréstimo, A Sereníssima República, O espelho, Uma visita de Alcebíades e Verba testamentária.

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É ainda em Assis (2001, p. 34-36) que encontramos referência à formação profissional, de caráter bacharelesco e artificialista, quando afirma que





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uma vez entrado na carreira, deves pôr todo o cuidado nas idéias que houveres de nutrir para uso alheio e próprio. O melhor será não as ter absolutamente; cousa que entenderás bem, imaginando, por exemplo, um ator defraudado do uso de um braço. Ele pode, por um milagre de artifício, dissimular o defeito aos olhos da platéia, mas era muito melhor dispor dos dois. O mesmo se dá com as idéias; pode-se, com violência, abafá-las, escondê-las até à morte; mas nem essa habilidade é comum, nem tão constante esforço conviria ao exercício da vida. [...] – reduzes o intelecto por mais pródigo que seja, à sobriedade, à disciplina, ao equilíbrio comum (Grifos nossos).

Portanto, seria suficiente ao bacharel um senso crítico reduzido e um enorme poder de adaptar-se às contingências existentes, sendo o homem necessário para atender às necessidades do Estado (CASTELO BRANCO, 2005). Essa seria uma “definição” dada à formação profissional que era ofertada à elite brasileira, sobretudo no período imperial, em que as faculdade de Direito eram responsáveis pela formação da burocracia do Estado, e possuíam, como característica, a pouca ou quase inexistente profissionalização, uma vez que os professores não possuíam formação docente nem mesmo eram bacharéis em Direito, sendo em sua maioria membros da Igreja ou políticos de renome. Até mesmo os currículos eram presos à retórica e à oratória, carecendo de matérias específicas da formação profissional de um advogado. Trazendo a discussão ao contexto atual, em um necessário diálogo com o tempo presente, apesar de percebermos mudanças significativas dos condicionantes históricos, assistimos a uma corrida desenfreada “[...] à Universidade, à permanência das tradições, à conservação da preferência pelos cursos tidos como ‘nobres’, os mesmos que atravessaram da Colônia à República, sem sofrerem muito abalo ou macularem sua imagem sedutora. Permanecem como ‘eterno encanto da elite’, anseio das classes médias em busca de ascensão ou nobilitação e, quase sempre, desencanto, frustração ou ideal inatingível para a grande maioria dos filhos das classes trabalhadoras” (CASTELO BRANCO, 2005, p. 177)

Outro trecho significativo para uma interpretação histórica é quando Assis (2001, p. 33) faz menção aos “ganhadores” e aos “malogrados” na loteria da vida, como duas metades que “se completam” em que a “competência” de uma causa o “encolhimento” da outra, ou seja, “[...] com os suspiros de uma geração é que se amassam as esperanças de outra”. Tal constatação poderia implicar numa dificuldade, não apenas do período imperial, mas também da sociedade atual em perceber uma terceira via, um ponto de ruptura entre as metades







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definidas pela assim chamada de sociedade do espetáculo (DEBORD, 1997), cuja característica aponta para uma certa naturalização dos conflitos, passando as explicações a sofrerem uma legitimação a partir de algo externo, tido como inquestionável, altamente contaminado pela lógica do capitalismo. Ou dito de outra maneira, levando-se em conta as peculiaridades da sociedade globalizada, a sociedade pós-moderna revelou-se uma máquina quase perfeita de tradução – uma máquina que interpreta qualquer questão social existente ou provável como questão privada [...] Na sociedade pós-moderna de consumo, o fracasso redunda em culpa e vergonha, não em protesto político. A frustração alimenta o embaraço, não a dissensão. [...] A liberdade do consumidor significa uma orientação da vida para as mercadorias aprovadas pelo mercado, assim impedindo uma liberdade crucial: a de se libertar do mercado. [...] Com a privatização das definições e particularmente das avenidas e mecanismos de mobilidade social, todos os problemas potencialmente explosivos – como ambições pessoais frustradas, humilhantes recusas de confirmação pública da auto-imagem, canais de avanço obstruídos, mesmo a exclusão da esfera em que são distribuídos sentidos e identidades publicamente reconhecidos, com uma tarefa definida – levam no máximo a uma busca ainda mais febril de prescrições, técnicas e instrumentos fornecidos pelo mercado para a melhoria da imagem ou terminam com a desconsolada resignação dos que vivem de auxílio-desemprego – esse modelo socialmente confirmado de incompetência e impotência pessoais (BAUMAN, 1999, p. 276-277, grifos nossos).

Trata-se de uma busca desenfreada em que parece valer qualquer estratégia ou técnica que tenha como objetivo lograr êxito e conseguir uma tão sonhada vaga na Universidade, entrando para o grupo dos “melhores” ou “mais competentes”. O fracasso é, sobre essa perspectiva, um atributo individual e não uma decorrência de condições sociais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Apesar das afinidades, as atrações ou vínculos entre história e literatura, é necessário situar o conhecimento histórico como “[...] um saber construído com critérios metodológicos que remetem às evidências do acontecido e que se articulam ao longo do tempo, promovendo versões dos fenômenos...”. Ou dito de outra maneira, essas versões podem ser traduzidas como literatura, aqui compreendida [...] como uma produção que, mesmo tendo compromisso direto com a “realidade”, admite a invenção como maneira de sugerir o que poderia ter se passado, mantendo um vínculo irrestrito com a boa solução estética sem contudo ser um “espelho do

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mundo” ou desmentir a inventividade (MEIHY, s.d., apud CHIAPPINI e AGUIAR, 1993, p. 142-143).





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Isto posto, cabe à historiografia trabalhar com objetividades alcançáveis, que remetem necessariamente a uma operacionalidade metodológica sobre as evidências encontradas. Ao documento não mais se atribui um sentido absoluto, como supunham os positivistas, mas vinculado a um conceito de documento que evoluiu, abrindo caminho para a história oral, para os textos literários, para a história da vida privada, para as memórias, enfim, para os novos objetos e as novas abordagens. Entretanto, a historiografia é fruto da seqüência de trabalhos que dialogam entre si e que são decorrentes de uma boa dose de erudição. É através desse diálogo que são estabelecidos os procedimentos, os conceitos, que permitem delimitar o território do historiador. Em síntese, a falta de espontaneidade e o compromisso estreito com a objetividade mínima são outras marcas distintivas entre o labor do historiador e o do literato. A metodologia rígida implica um caráter digamos “científico”, que quebra a “naturalidade” do trabalho dos historiadores de ofício. Assim, um texto literário pode ser mais livre enquanto ao do historiador tal prerrogativa é negada ou pelo menos limitada: o historiador tem que se explicar, precisa dizer de onde brotaram suas idéias e qual o tratamento dado às fontes. A continuidade exige revisões, retomadas, e implica mecanicamente o uso da documentação que deve fundamentar a análise. Com isso não se nega de maneira nenhuma a capacidade de alguns escritores de serem doublés de historiadores, e nem o inverso. [...] A distinção básica entre história e literatura reside na eficácia do discurso histórico assumido socialmente como um saber que responde a algumas questões firmadas pelos grupos que a justificam ((MEIHY, s.d., apud CHIAPPINI e AGUIAR, 1993, p. 151-152).

Do exposto, há que se reconhecer que o historiador não deve ter a pretensão de construir meta-histórias, mas construir pequenas histórias de fatos reais, cuja verdade seja parcial, imperfeita, apoiada na produção erudita de dados e em documentos que não podem assumir um sentido qualquer, fruto da subjetividade do historiador. A história é, portanto, uma (re)construção humana de acontecimentos que realmente existiram no passado próximo ou remoto, e ganha vida quando se utiliza de novos objetos e de novas abordagens, advindas de uma relação transdisciplinar, desde que sejam resguardadas as especificidades das áreas do conhecimento envolvidas. O uso de textos literários como documento histórico deve estar apoiado numa segura base teórico-metodológica, com o objetivo de enriquecer o campo histórico, apontando as características culturais, os hábitos e costumes regionais,







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os valores dominantes, que auxiliam a traçar os delineamentos possíveis ao recorte histórico, resguardada a subjetividade dos autores desses textos, que não têm as mesmas obrigações teórico-metodológicas dos historiadores. Aqui, é importante esclarecer que não se pretende fazer uma apologia ao uso de textos literários como fonte única de pesquisa, mesmo porque nenhuma fonte pode ou deve ser utilizada de forma isolada, por mais fidedigna que pareça, mesmo as ditas “fontes oficiais”. É, portanto, através de um subjetivismo ancorado nas fontes e numa análise criteriosa, habilmente interpretada pelo suporte possibilitado pela sua erudição, que o historiador pode fazer aflorar o potencial criativo de sua crítica, interpretação e extrapolação. Nessa perspectiva, ele poderá utilizar, legitimamente, como documentos, os arquivos cartoriais, os documentos e estatísticas oficiais, as iconografias, os objetos de arte, o cinema, a literatura etc., vistos como representações do passado. Essa discussão remonta para a finalidade da história, enquanto produção de conhecimento que não tem por objetivo celebrar tal ou tal memória particular ou ressuscitar o que se passou, mas tornar compreensíveis, em toda a sua complexidade, as relações que unem ou dividem os homens e mulheres, os diversos grupos sociais, os governantes e os governados... sem apagar nenhuma de suas asperezas (BOUTIER e JULIA, 1998, p. 53).

Com esses argumentos pretendemos apresentar uma justificativa sólida para a utilização criativa de novas fontes até então ignoradas ou preteridas, tendo-se o cuidado para que o historiador não seja tragado pelo fascínio das grandes personagens históricas, reafirmando seu compromisso com os questionamentos da contemporaneidade sobre o passado e reapropriando-se da dimensão subjetiva do viver cotidiano, no nível regional, local ou individual.

REFERÊNCIAS ASSIS, Machado de (2001). Contos escolhidos. Texto integral. São Paulo: Martin Claret. (Coleção A Obra-Prima de Cada Autor, v. 65). BAUMAN, Zygmunt (1999). Modernidade e ambivalência. Tradução Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. BOUTIER, Jean e JULIA, Dominique (orgs.) (1998). Passados Recompostos: campos e canteiros da história. Rio de Janeiro: UFRJ/FGV.

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Francilda Araújo Inácio *











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A “SÁTIRA QQUE UE MORDE” EM ÁL ÁLVVARES DE AZEVEDO E OUTROS ROMÂNTICOS (The “Satire That Bites” in Álvares de Az omantics) Azee v edo and Other Otherss RRomantics) ABSTRACT This article focuses, regarding the brazilian Romanticism, on a divergent production of the traditional romantic melopoeia, with which some writers outlined, by means of the disarticulation of a conventional literary language, of the irony or the disrespect, a favorable consciousness which headed for the opposite direction of the literary pratices of that time. K eyw or ds ywor ords ds: romanticism – satire - irony. RESUMO Este artigo focaliza, dentro do Romantismo brasileiro, uma produção divergente da melopéia romântica tradicional, com a qual alguns escritores esboçaram, por meio da desarticulação de uma linguagem literária convencional, da ironia ou do desacato, uma consciência benéfica que rumava em sentido contrário aos costumes literários da época. Palavras-chave Palavras-chave: Romantismo – sátira – ironia.

O projeto estético de Álvares de Azevedo, explicitado no prefácio da segunda parte de Lira dos Vinte Anos, propõe o rompimento com a linguagem melodiosa e com o estilo elevado da imagem sublime – que buscam tão somente a virtude da literatura, as subjetividades poéticas, mediante canto de fé e esperança numa civilização ideal – em detrimento de um tratamento a um mundo menos idealizante e mais prosaico. A aproximação com o mundo da experiência, como meio de tornar possível a crítica aos valores artísticos da época, dar-se-ia, também, pela desarticulação de uma linguagem literária convencional, caracterizada pela concepção didática de literatura e pelo predomínio dos gêneros ditos sérios. Partindo desses pontos, este artigo objetiva lançar luz sobre uma notável produção, que, motivada pela necessidade de reagir contra o lirismo lacrimejante do primeiro Romantismo, questionou, mediante ironia, crítica e riso sarcástico, um certo padrão literário em voga.

* CEFET/PB.







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A IDEALIZAÇÃO ROMÂNTICA EM QUESTÃO









Mesmo tendo aderido ao cânone romântico, tematizando a mulher, o amor e a morte, utilizando, para tanto, os recursos disponíveis naquele momento estético, Álvares de Azevedo sabia da precariedade de tais recursos a ponto de rir deles. Em alguns casos, a tematização e a dessacralização das imagens consideradas essencialmente poéticas, como as da mulher virtuosa e da natureza, tornaram-se assuntos através dos quais Álvares de Azevedo expôs sua visão a respeito da atividade literária contemporânea, tomando-os como temas propícios para emitir juízos críticos a respeito do modo como o Romantismo estava sendo desenvolvido na época. Em relação a seus contemporâneos, os escritores da chamada segunda geração romântica, Álvares de Azevedo não estava sozinho nesse movimento de dessacralização de motivos “sagrados” para o Romantismo: os poemas irreverentes da 2ª parte de Lira dos Vinte Anos não se encontravam isolados, mas se integravam a uma tendência literária ocorrida em São Paulo, que produziu ao longo do tempo um conjunto de textos realmente impressionante pela liberdade inventiva. Temos, por um lado, a produção socialmente aceitável: poemas áulicos e patrióticos de Bernardo Guimarães e José Bonifácio de Andrade e Silva “ o moço “ e versos de Álvares de Azevedo, que tematizam a pureza do amor fraterno, e, por outro, uma produção para a circulação mais restrita ou marginal: o “bestialógico” e a sátira pornográfica, correspondentes, na obra azevediana, à atmosfera em que ocorrem os assombrosos fatos de Noite na taverna. Além disso, figura em nosso romantismo um conjunto de textos % o “cancioneiro alegre” % representado por Álvares da Azevedo, Bernardo Guimarães, José Bonifácio de Andrada e Silva , Laurindo Rabelo, Luís Gama, Bruno Seabra e Franco de Sá, no qual “floresceram lado a lado e exuberantemente a paródia, a sátira, a chalaça e a pornografia” % produzidos por escritores da chamada 2a geração, impressionantes, não apenas pela “qualidade literária”, mas também porque neles se entremostram os poetas que, embora pagassem um tributo excessivo às convenções românticas, “transformavam-se de súbito, ao sopro da maledicência, da lascívia ou da simples emulação boêmia, em virtuoses da palavra, improvisadores de raro talento e inventividade” (FRANCHETTI, 1987, pp. 7-17). Ainda nesse sentido, um exemplo a que podemos aludir é o de Fagundes Varela, que, recém-chegado em São Paulo para estudar Direito, em 1859, com 18 anos, vindo da tranqüilidade do interior, publicou na imprensa local dois textos, entre os quais “Desvario de um poeta”, que ambicionava pôr por terra o tabu da virgindade das moças, trazendo à baila, portanto, tema bastante polêmico para a época (FRÓES, 2001).

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Luís Gama, ex-escravo e autor de Trovas burlescas, avesso à abordagem de temas ditos profundos e mais envolvido com a sátira, direciona seus ofensivos versos a todos os tipos que lhes pareciam questionáveis, tais como os “barões da traficância”, os “emproados juízes de trapaça”, os charlatães da medicina, os sabichões da cultura, os velhotes gaiteiros que se atiram às moças ou a raça nefasta dos políticos “Que se aferram às tetas da Nação / Com mais sanha que o tigre, ou que o Leão”. Contrapondo-se, não raro, aos exageros da lírica e a “uma castrada poesia”, aos poetas não faltaram ataques da sua pena, para os quais indicava suas sátiras como “Remédios para os parvos d’excelência / Que, aos arroubos cedendo da loucura, / Aspiram do poleiro alta eminência”. (FRÓES, 2001). No artigo “Romantismo: uma estética de loucos”, Fróes (2001) afirma que, com as produções românticas caracterizadas pelo freqüente aproveitamento de termos originários do povo, a vertente satírica do Romantismo assume hoje significação mais concreta do que os poemas preciosamente compostos para louvar causas tomadas por nobres, porém ainda questionáveis em sua forma e essência, como a guerra fratricida e estúpida contra os paraguaios. Os poemas sérios e grandiloqüentes sobre questões políticas, passado o ardor das batalhas, trazem fortes ressaibos de uma empostação de encomenda, mesmo que fossem das melhores possíveis as intenções dos autores. O problema com a poesia engajada, seja ela qual for, é que o próprio entusiasmo das causas a leva a acessos retóricos, e esses, diluindo-se o contexto de origem, correm o risco de perder toda a força num mar de frases vazias. Em contrapartida, a ironia e a sátira, sobrepondo às razões de indignação momentânea

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Longe de mim os preconceitos loucos Que o vulgo segue de cerrados olhos; .......................................................... Quero amar e gozar! pouco me importa O que depois suceda... .......................................................... Vem amar-me, mulher, quero em teus beijos Matar a sede que me queima o seio... .......................................................... A virgindade o que é? Quimera estúpida, Estulta convenção da humanidade. Mais pura és tu, que teus desejos matas, Do que as virgens que em sonhos se desonram... ........................................................... A vida sem o gozo é como o dia Que desponta nublado e assim se esconde. Venha um raio de sol, quero gozá-lo!...





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um incentivo ao riso eterno, posto que eterno se abra o palco dos desacertos humanos, têm condições de se manter vigorosas e aplicar seus açoites, na linguagem geralmente mais espontânea em que os criam, a todo um rol de situações que, mudados não obstante os atores, sempre estão a repetir-se na vida.

No tocante especificamente a Álvares de Azevedo, diferente do que freqüentemente se afirma em sua fortuna crítica sobre uma poética voltada unicamente para as desgraças, as intempéries da vida, é possível encontrar na produção azevediana, sem muita dificuldade, o cultivo de uma outra faceta, menos séria e menos melancólica, expressa principalmente em Lira dos Vinte Anos. Um exemplo é o do poema “Namoro a cavalo”, que ironiza as convenções relativas ao enlace amoroso romântico: em função das diferenças sociais existentes entre o casal de namorados, a ida ao encontro da amada torna-se desastrosa, pois, para chegar ao local onde ela mora, ele teria que dispor de uma quantia bem maior da que dispunha, para que pudesse alugar um “cavalo de trote”. Vejamos o poema: NAMORO A CAVALO Eu moro em Catumbi. Mas a desgraça Que rege minha vida malfadada Pôs lá no fim da rua do Catete A minha Dulcinéia namorada. Alugo (três mil réis) por uma tarde Um cavalo de trote (que esparrela)! Só para erguer meus olhos suspirando A minha namorada na janela... Todo o meu ordenado vai-se em flores E em lindas folhas de papel bordado Onde eu escrevo trêmulo, amoroso Algum verso bonito... mas furtado. (...) Ontem tinha chovido... que desgraça! Eu ia a trote inglês ardendo em chama, Mas lá vai senão quando uma carroça Minhas roupas tafuis encheu de lama... Eu não desanimei. Se Dom Quixote No Rocinante erguendo a larga espada Nunca voltou de medo, eu, mais valente, Fui mesmo sujo ver a namorada...

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O cavalo ignorante de namoros Entre dentes tomou a bofetada, Arrepia-se, pula, e dá-me um tombo Com pernas para o ar, sobre a calçada... Dei ao diabo os namoros. Escovado Meu chapéu que sofrera no pagode Dei de pernas corrido e cabisbaixo E berrando de raiva como um bode. Circunstância agravante. A calça inglesa Rasgou-se no cair de meio a meio, O sangue pelas ventas me corria Em paga do amoroso devaneio!... ( p. 242)1 Sendo bastante influente junto à mocidade acadêmica de São Paulo, Azevedo representou um modelo de escritor que exaltava os símbolos da vida do estudante das repúblicas: o cachimbo, o cigarro, o charuto, o cognac. Segundo Paulo Franchetti (1997, pp. 7-17), “dele também deriva uma tendência ao riso amargo da auto-ironia, da autoparódia, cujos traços são perceptíveis na obra de vários contemporâneos.” Sobre estes, a influência da poesia de Álvares, principalmente no que concerne a uma notável produção de textos bem-humorados, não é certamente das menores. Tendo sido sua obra publicada e republicada nos anos subseqüentes à sua morte, a obra azevediana teve papel fundamental para “a consolidação da tendência a observar a vida de um ponto de vista burlesco, contrapondo ao mundo ideal dos valores cavaleirescos as visões divertidas da Ilha Barataria de D. Quixote” (FRANCHETTI, 1987, pp.7-17). Bernardo Guimarães, outro amigo próximo de Álvares de Azevedo, é um expressivo representante de uma produção burlesca dentro do Romantismo brasileiro. Essencialmente satírico, esse escritor se torna às vezes francamente 1

Todos os poemas e trechos de obras azevedianas foram extraídos da seguinte edição: AZEVEDO, Álvares de. Obra Completa (2000). Rio de Janeiro: Nova Aguilar.

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Mas eis que no passar pelo sobrado Onde habita nas lojas minha bela Por ver-me tão lodoso ela irritada Bateu-me sobre as ventas a janela...





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obsceno, indo muito além do sarcasmo, afastando-se léguas da debilidade amorosa que povoava o universo romântico. Mais conhecido como romancista, Bernardo também escreveu vários livros de poesias – Cantos da solidão (1852), Inspirações da tarde (1858), Poesias Diversas, Evocações, Novas Poesias (1858), Poemas polêmicos (1875), Folhas de outono (1883) e Dispersos % uma reunião de poesias não publicadas em vida do poeta % e o canto épico A Baía de Botafogo (1864). Em alguns de seus poemas, assim como ocorre com Álvares, Guimarães problematiza o prosaico na poesia, ao inserir termos tidos como pouco poéticos, mas a sua participação quanto ao questionamento do código poético em voga não se restringe a esse procedimento: o poeta mineiro publicou, clandestinamente, Poemas Polêmicos, representados por “O Elixir do Pajé” e “A origem do mênstruo”, os quais Basílio de Magalhães, crítico que melhor estudou sua vida e obra, ao comentar as “poesias bocageanas, humorísticas e satíricas,” denomina “poemetos imorais”. Bernardo Guimarães leva sua ironia a extremos, atacando de modo atrevido temas considerados tabus, como o faz no poema “A origem do mênstruo”, em que recupera poeticamente um manuscrito fictício do que seria uma fábula de Ovídio. Desmistificando a visão consagrada relativa às relações entre os deuses da mitologia greco-romana, o poema descreve “os acontecimentos que levaram as dores e os incômodos do ciclo menstrual a todas as mulheres”, provavelmente um tema-tabu para a época. “A origem de mênstruo” é uma sátira mesclada de termos considerados, não somente “apoéticos”, mas decididamente “anormais” diante do que estava cristalizado enquanto literatura em voga. Permeado de um erotismo escrachado, o poema ousa dessacralizar mitos, destronando o Olimpo de sua aura de sublimidade e inacessibilidade, estruturado em morfemas e estruturas lexicais que escandalizam e chocam, pela vulgaridade de suas descrições de obscenidade. A vulgaridade, em nível vocabular, é misturada a expressões tanto eruditas quanto típicas do prosaísmo, possibilitando, no interior do texto, o trânsito de diferentes registros lingüísticos. Com um vocabulário recheado de palavrões, esses poemas tiveram grande aceitação popular. Tanto “A origem do mênstruo” como “O Elixir do Pajé” figuravam em pequenos folhetos de quinze páginas. Com eles, Bernardo Guimarães subverte os padrões estabelecidos em dois níveis: o da literatura reinante no período romântico de sua época e o de seu próprio estilo já consagrado. Não fossem seus “bestialógicos” % “Orgia dos duendes”, “O Elixir do Pajé” e “A Origem do mênstruo” % através dos quais o poeta atinge os limites do chulo e do obsceno, Bernardo Guimarães, conforme assinalou Manuel Bandeira, seria mais um poeta medíocre. Essas suas poesias que o enquadram como uma das forças cômicas da poesia brasileira, são, sem dúvida, contribuições originais a nossa literatura.

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[...] era variada e rica, manifesta não apenas na produção oficial, mas numa vasta atividade oral de improviso e pilhéria, que entrou para a lenda junto às suas atitudes excêntricas. Num primeiro nível encontramos produção bem parecida à ligeira poesia íntima do seu inseparável Álvares de Azevedo: poemas leves e excelentes em que a graça e o devaneio equilibram o humor, como “Ao charuto” ou “Minha rede.” A seguir vêm outros em que o tema é impessoal e a intenção satírica: “ O nariz perante os poetas” , “Delírio de papel” [sic], “A saia balão”.

De um modo geral, o grupo de escritores românticos, entre os quais se destacam Álvares de Azevedo e Bernardo Guimarães, voltando-se para uma produção intensamente divergente da cantilena romântica convencional, além de traçarem, pela desarticulação de uma linguagem literária convencional, um julgamento ao movimento de que faziam parte, imprimiam “concretude e prosaísmo à arte escrita da época, marcando uma importante mudança de postura na arte: a aproximação entre obra e realidade. Essa atitude provocadora do riso, o jogo genial com a linguagem e a ousadia de brincar com os temas-tabus abalam um pouco o mito de ser a obra azevediana (e do grupo de escritores da chamada geração ultra-romântica) tão somente de caráter pessimista, melancólico, eivado de desgraças existenciais, abrindo outras possibilidades de visualização da obra desses escritores tão marcados pela denominação de representantes do mal-do-século.

REFERÊNCIAS AZEVEDO, Álvares de (2000). Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar. CANDIDO, Antonio (1997). Formação da Literatura brasileira. Vol. 2, São Paulo/Belo Horizonte: Itatiaia. CUNHA, Cilaine Alves (2000). Entusiasmo indianista e ironia byroniana. (tese). USP. FRANCHETTI, Paulo (1987). O Riso romântico – Notas sobre o cômico na poesia de Bernardo Guimarães e seus contemporâneos. In: Revista Remate dos males. IEL/ Unicamp. FRÓES, Leonardo (2001). .) Acesso em 17/09/2004. VILLAÇA. Alcides (1999). Álvares de Azevedo: O riso de um soneto. In: Todas as letras – Revista de Língua e Literatura. no 1. São Paulo: Mackenzie.

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Segundo Antonio Candido apud Cunha (2000, p. 270), em artigo que retoma a tradição do bestialógico, alguns amigos de Guimarães, provavelmente Aureliano Lessa e Álvares de Azevedo, entre outros, devem ter sido experimentados nesse tipo de produção. Raimundo Magalhães – biógrafo de Álvares de Azevedo – observa a existência de poemas obscenos seus, que estariam em propriedade de algum desconhecido colecionador de textos raros, a quem convoca a torná-los de conhecimento público. Sobre a face humorística de Bernardo Guimarães, Candido (1997, p.157) afirma:





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Isa bel Tr a v ancas * Isabel











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DRUMMOND NA IMPRENSA: CRÔNICAS DISPERSAS (Dr ummond in Pr ess: vvarious arious cchr hr onics) hronics) (Drummond Press: ABSTRACT The aim of this paper is to present some initial ideas based on a research that took place in the Brazilian Literature Museum Archive of the Casa de Rui Barbosa Foundation about the chronics written by Carlos Drummond de Andrade and published in the Brazilian press between the years 1920 and 1980. The 1500 texts were written and published in several newspapers and magazines. Drummond started writing for newspapers very young and stopped three years before his death. Although he became famous for his poetry, the chronics are very important if we want to fully understand his work, not only because of the amount - more than 6000 were written - but because they present, in a colloquial way, his view on the world. It is possible to notice that his first chronics, written in the years 1920 and 1930 have four main themes: love, literature, memory and daily life. Keywords Keywords: chronic, literature, press. RESUMO O objetivo deste trabalho é apresentar reflexões iniciais de uma pesquisa realizada no Arquivo Museu de Literatura Brasileira(AMLB) da Fundação Casa de Rui Barbosa(FCRB) sobre as crônicas do escritor Carlos Drummond de Andrade, publicadas na imprensa brasileira nas décadas de 1920 a 1980. São 1500 textos dispersos em diversos jornais e revistas. Desde muito jovem Drummond escreveu em jornal e só cessou sua colaboração três anos antes de morrer. E, embora a notoriedade que alcançou tenha sido graças à poesia, as crônicas são muito importantes para compreensão da sua obra. Não apenas pela quantidade - escreveu mais de 6000 – mas porque apresentam, de forma coloquial, seu olhar sobre o mundo. Percebe-se na leitura das primeiras crônicas escritas nas décadas de 1920 e 1930, quatro vertentes temáticas: o amor, a literatura, a memória e o cotidiano. Palavras-chave: crônica, literatura, imprensa.

Poema do Jornal O fato ainda não acabou de acontecer e já a mão nervosa do repórter o transforma em notícia. O marido está matando a mulher. A mulher ensangüentada grita. Ladrões arrombam o cofre. A polícia dissolve o mitingue. A pena escreve. Vem da sala de linotipos uma doce música mecânica

* FCRB.







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Ao longo de seus 85 anos de vida, Drummond escreveu muito. E não apenas poemas e livros. Ele escreveu intensamente na imprensa. Segundo dados do Arquivo-Museu de Literatura Brasileira(AMLB) da Fundação Casa de Rui Barbosa, ele produziu mais de 6000 textos. Sua colaboração com o Correio da Manhã, que durou de janeiro de 1954 a setembro de 1969, resultou em 2422 crônicas. No Jornal do Brasil para o qual colaborou de outubro de 1969 a setembro de 1984, ele produziu 2304 escritos. Grande parte deste material já foi organizado e catalogado e está disponível para pesquisadores na própria instituição ou no seu banco de dados através da internet. O restante – cerca de 1500 textos – é o que vem sendo organizado e analisado por mim ao longo deste ano. Neste artigo analisarei as crônicas publicadas nos anos 20 e 30. Mas é importante destacar que em seu acervo de publicações na imprensa há 68 textos da primeira década e 102 da segunda. Da década de 20 quase 30 são poemas, há ainda alguns contos, várias resenhas, um editorial e o restante – cerca de 27 – são crônicas. Eles são assinados de distintas maneiras de Carlos Drummond a pseudônimos como o de Antonio Crispim. Ele assina pela primeira vez como Carlos Drummond de Andrade, em 1924, no poema Papai Noel às avessas. Mas continua a assinar também Carlos Drummond e a usar diversos pseudônimos. No próprio Diário de Minas, onde estreará na profissão de jornalista, seu primeiro texto será assinado Manoel Fernandes da Rocha, um pouco por vergonha, um pouco por brincadeira, como declarou em entrevista concedida à professora Maria Zilda Cury (1998, p. 145). A imprensa brasileira mudou muito dos anos 20 para cá. Modernizou-se e ganhou uma feição mais profissional, no final do século XX. O jornal artesanal deu lugar ao jornal empresa. Apareceu o rádio, a televisão e mais recentemente a internet. Com tudo isso muitos veículos desapareceram, tanto nas metrópoles como nas cidades menores. Basta lembrar que apenas naquela década, Drummond escreveu nos seguintes veículos: A Cigarra, SP; Leitura para todos, RJ; Novela Mineira, BH; Ilustração Brasileira, RJ; Para Todos, RJ; Diário de Minas, BH; Fon-Fon, RJ; O Jornal, RJ; Estética, SP; A Revista, BH; A Noite, RJ; Terra Roxa e outras terras, SP; Revista do Brasil, RJ; Verde, Cataguases, MG; Correio da Manhã, RJ; Revista de Antropofagia, SP; Leite Criolo, BH; A Ordem, RJ; Cidade Verde, BH; Brasil-Central, BH e Electrica, Passa Quatro, MG. Vários textos seus, poemas, contos e crônicas foram reproduzidos constantemente em outros órgãos até muitas décadas depois de sua primeira publicação. Na maioria das vezes, sem menção à publicação original. Da década de 1930, há no acervo do AMLB mais de 70 crônicas, duas dezenas de poemas, algumas resenhas e poucos contos. Neste período, estes serão os quatro gêneros, se podemos definir assim, exercitados pelo escritor e publicados na imprensa. Já é possível notar que cresce a quantidade de textos publicados de uma década para outra, assim como aumenta e muito o número de crônicas e diminui o de poemas. Nos anos 30, Drummond se multiplica.

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“Sou um jornalista porque a vida toda estive ligado a jornal. Fui redator-chefe do Diário de Minas, onde, com outros companheiros, fizemos a campanha modernista em Belo Horizonte e nos divertimos muito.”

Esta declaração do poeta reforça a idéia de que estas carreiras estão ligadas assim como os textos que seus profissionais escrevem. A jornalista e pesquisadora Cristiane Costa(2005, p. 106) destaca o sentimento de pertencimento do poeta ao jornalismo. Ele diz que a única coisa que fazia com prazer, além da literatura, era jornalismo. Costa como Drummond não vê o exercício jornalístico como um empecilho para o desenvolvimento do escritor, fato apontado por diversos autores. É Drummond (In COSTA, 2005, p. 107108) que afirma: “O jornalismo é a escola de formação e de aperfeiçoamento para o escritor, isto é, para o indivíduo que sinta a compulsão de ser escritor. Ele

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Assina como Carlos Drummond, Antonio Crispim, Belmiro Borba, José Maria, Gato Félix, Mickey, José Joaquim, X., C., F., além do nome com o qual se tornaria conhecido dali em diante: Carlos Drummond de Andrade. E, a partir de 34, será assim que assinará a grande maioria de seus textos. E neste mesmo ano que o escritor se muda para o Rio de Janeiro, passando a escrever também nos veículos cariocas. A década de 30 não fica atrás em termos de quantidade de periódicos nos quais Drummond escreveu. São eles: A Ordem, RJ; Estado de Minas, BH; Minas Gerais, BH; Bazar, RJ; A Tribuna, BH; Bello Horizonte, BH; Surto, BH; Diário da Tarde, BH; O Jornal, RJ; O Jornal, Montes Claros, MG; O Cruzeiro, RJ; Fon-Fon, RJ; Cok-tail, BH; O Malho, RJ; Cartaz, RJ; Boletim de Ariel, RJ; Esfera, RJ; Diretrizes, RJ; Para Todos, RJ; Folha de Minas, BH, Letras, Fortaleza; Estudos, Fortaleza e Boa Nova, RJ. Ainda que o foco principal aqui seja as crônicas do autor, vale destacar o poema que será um marco na trajetória do poeta: “No meio do caminho” é publicado pela primeira vez na Revista de Antropofagia, em julho de 1928. E outro poema também famoso, “Sentimento do mundo”, aparece em O Jornal de 26 de maio de 1935. Ainda que as crônicas ocupem cada vez mais os jornais, sua poesia nunca irá desaparecer de suas páginas. Esta vasta produção de Drummond demonstra que ele nunca se afastou da imprensa e pode ser definido também como um jornalista.





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ensina a concisão, a escolha das palavras, dá noção do tamanho do texto, que não pode ser nem muito curto nem muito espichado. Em suma, o jornalismo é uma escola de clareza de linguagem, que exige antes clareza de pensamento. E proporciona o treino diário, a aprendizagem continuamente verificada. Não admite preguiça, que é o mal do literato entregue a si mesmo. O texto precisa saltar do papel, não pode ser um texto qualquer. Há páginas de jornal que são dos mais belos textos literários. E o escritor dificilmente faria se não tivesse a obrigação jornalística.”

Drummond acreditava que o jornal era uma boa porta de entrada para o futuro do escritor. Foi exatamente assim com ele. No início da década de 20, começou a publicar seus primeiros textos e a colaborar com o Diário de Minas. É de 1921 o seu conto “A estátua do escultor cego” e de 1922 o conto “Joaquim no telhado”, ambos publicados na revista Novela Mineira. Este último tirou o primeiro lugar no concurso promovido pela própria publicação. Segundo José Maria Cançado (2006, p. 94), o jovem escritor teria ficado tão satisfeito com o prêmio de 50 mil réis que resolveu nunca mais entrar em concursos literários. E, se ele nunca mais entrou em concursos, nunca mais também saiu dos jornais.

1. A CRÔNICA E DRUMMOND Aurélio Buarque de Holanda (1999, p.584) confere dois sentidos para o termo crônica. O primeiro é “texto jornalístico redigido de forma livre e pessoal, e que tem como tema fatos ou idéias da atualidade, de teor artístico, político, esportivo etc, ou simplesmente relativos à vida cotidiana”. E “seção ou coluna de revista ou de jornal consagrada a um assunto especializado”. A produção jornalística de Drummond certamente se enquadra na primeira definição e esta se coaduna com a visão de José Marques de Melo (1994, p. 159). Para o professor afirmar que “a crônica é um gênero jornalístico constitui uma questão pacífica. Produto do jornal, porque dele depende para sua expressão pública, vinculada à atualidade, porque se nutre dos fatos do cotidiano, a crônica preenche as três condições essenciais de qualquer manifestação jornalística: atualidade, oportunidade e difusão coletiva.”

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“Colecionador ou não colecionador, que tenha em casa um retrato, uma carta, um poema, um documento de escritor brasileiro digno do nome de escritor, e pode com ele enulentar(sic) o arquivomuseu menino, dirigido pelo espírito público de Plínio Doyle na Casa de Rui Barbosa: faça um beau geste, mande isso para São Clemente, 134, e terá oferecido a si mesmo o prêmio de uma satisfação generosa.”

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Para Jorge de Sá (1987, p. 9), João do Rio foi o cronista mundano por excelência e deu à crônica um aspecto mais literário. A crônica é entendida como um comentário dos acontecimentos por parte de seu autor. Acontecimentos esses reais ou imaginários. E sua fronteira com o conto é tênue. Para Sá, este último apresenta mais densidade, fazendo com que seu autor mergulhe mais na construção de seus personagens. No caso de Drummond, são poucos os contos que publica na imprensa nestas duas décadas. Não chegam a uma dezena e têm características distintas das suas crônicas, tendo mais profundidade e pouco ou nenhum contato com a realidade. Isso porque não abordam assuntos do cotidiano e apresentam uma narrativa mais ficcional. Aliás, realidade é um dos conceitos-chaves para pensar a relação entre literatura e jornalismo, tendo a crônica um lugar de fronteira, “bebendo” nas duas fontes e produzindo um texto que é mesclado e não “puro”. Alceu Amoroso Lima foi taxativo em afirmar que o jornalismo é um gênero literário. Uma vez que (Lima, 1990, p.37) não se deve considerar a literatura como estética pura ou como ficção. Mas como arte da palavra e, nesse contexto, o jornalismo estaria enquadrado nela. Certamente, destaca, “Mau jornalismo não é literatura, como tampouco o é uma má poesia ou mau romance. (...) Há literatura que fica e literatura que passa. É uma qualidade independente da natureza do ser.” Entretanto, cada vez que o jornalismo for apenas (grifo meu) um meio de transmitir uma mensagem, não poderá ser considerado um gênero literário. Para o pensador, o jornalismo tem todos os elementos que lhe permitem entrar no campo da literatura, depende apenas da sua qualidade e não da sua natureza. Assim podemos afirmar que as crônicas de Drummond se situam neste patamar. Ainda que muitas sejam datadas e outras expressem a juventude do poeta nessas duas décadas, seus textos possuem uma ambição maior do que apenas comunicar um acontecimento. Buscam a permanência. Permanência essa expressa na própria atitude do escritor de, não apenas guardar de forma criteriosa e organizada tudo que escreveu desde a mocidade, como doar seu acervo para o ArquivoMuseu de Literatura Brasileira criado em 1972. E, através de uma crônica escrita no Jornal do Brasil, em 4 de janeiro de 1973, procurou estimular outras pessoas a colaborar com a instituição.





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Destaco nesta atitude de Drummond o fato de ele não renegar sua experiência como jornalista, nem sua produção como tal. O cronista que também é poeta registra as sensações usando seus recursos estilísticos, sabendo que a crônica está sempre na fronteira entre o real e o imaginado. Perguntado em entrevista o que achava de ser cronista e se era melhor ser poeta, Drummond responde: “O cronista obedece à folhinha e ao relógio; o poeta é um animal livre do tempo: faz o que quer, quando quer. Mesmo como cronista, porém, não me preocupo demasiado com a atualidade quente; salvo quando acontece algo muito importante.”. Fica evidente neste depoimento a importância da categoria tempo para o cronista. Ele é um tipo “especial” de jornalista. Em uma pesquisa anterior sobre a construção da identidade do jornalista (Travancas, 1993, p. 34-35) chamei a atenção para o fato de o tempo ser fundamental para a definição do conceito de notícia e também para a identidade deste profissional que corre atrás dele e não é dono do seu tempo. Vive subordinado aos fatos, à rotina da redação e, portanto, como falou o poeta, dependente do relógio e da folhinha. Isso porque o jornalismo, em especial a reportagem, não pode ser previsível. Ele se funda no acontecimento inesperado e imprevisto. E percebi, a partir desse trabalho inicial, o quanto há um Drummond jornalista que está sempre escondido atrás do Drummond poeta. Esse duplo não me parece contraditório, como seus depoimentos comprovam. Ele percebe uma relação de complementaridade e não considera sua experiência jornalística como algo menor ou um mero “ganha pão”, como muitos críticos costumam afirmar. Arriscaria mesmo dizer que a sua obra poética está impregnada dessa experiência intensa de proximidade com a realidade. A poesia “Sentimento do mundo” que é publicada em O Jornal, em 1935, evidencia isso. E ao falar da guerra demonstra o quanto está contaminada pela realidade, como se pode observar na primeira estrofe: “Tenho apenas duas mãos e o sentimento do mundo, mas estou cheio de escravos, minhas lembranças escorrem e o corpo transige na confluência do amor”

É por causa desse estreito contato com a realidade, característica fundamental do jornalismo, que escolhi analisar neste artigo a vertente temática que trata do cotidiano nas crônicas de Drummond dos anos 20 e 30. Deixando assim para outra ocasião abordar os temas: amor, literatura e memória.

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A década de 20 é a fase em que o escritor sai de Itabira, cidade natal e passa a morar na capital, Belo Horizonte. O jovem rapaz que já escrevia e era assíduo leitor de jornais resolve ir bater na porta do Diário de Minas, onde é bem recebido e começa a publicar seus primeiros trabalhos. A partir de então, com apenas 19 anos, começa sua carreira de jornalista e escritor. Passa a escrever com maior freqüência e começa a mandar seus textos para outros veículos. São contos, poemas, resenhas e crônicas. Suas crônicas estão impregnadas de realidade e juventude. Um de seus temas prediletos é a literatura, os livros e os escritores. Comenta sobre livros recém-lançados, com toda a franqueza e crítica de um jovem ousado de 20 anos. Um exemplo expressivo dessa sua atitude e de seu estilo naquela época é a crônica publicada em 26 de outubro de 1924, no Diário de Minas, intitulada “Anatole France”. É um texto escrito em virtude da morte do escritor francês. Entretanto, não se trata de um artigo elogioso ou que endeuse o pensador. Ao contrário, seu texto tem a força de uma verve impiedosa e feroz. Cito alguns trechos. “Anatole perdoava mais as próprias faltas que as alheias.”(...)”Anatole France foi um cérebro limitado. De resto, não há prisão mais estreita que o scepticismo, sua prisão voluntária até a morte.”

E encerra seu texto dizendo: “De Anatole podemos dizer sem grande injustiça: foi um grande escriptor e um amável espírito, mas teve o seu relógio atrazado.” É uma crônica muito distinta do que se produzia então, onde os amigos eram elogiados e os inimigos criticados, na grande maioria das vezes, em tom emocional ou passional. Drummond disseca de maneira racional o legado do escritor Anatole France, fugindo da construção de um texto panegírico ou laudatório. O então jovem de 22 anos tinha idéias próprias e um estilo como cronista que irá se aprimorar. Seus textos dessa época ainda não incorporaram a sua máxima de que “ escrever e cortar palavras”. Ao contrário, são extensos, com alguns termos rebuscados, nem sempre coloquiais, mas sempre muito pessoais. Seu ponto de vista particular começava a aparecer como uma de suas marcas. A Semana de Arte Moderna de 1922 e o movimento modernista foram um acontecimento marcante desta década e Drummond não foi indiferente a ele. Tomou posição, escolheu seu lado e defendeu-o com afinco. Em 14 de dezembro de 1925 escreve em O Jornal na seção “O Mez Modernista”, “O mez modernista que ia ser futurista”. Nessa crônica, o escritor fala do Manifesto

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2. DRUMMOND JORNALISTA - OS ANOS 20 E 30





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Pau Brasil e do novo livro de Oswald de Andrade. Novamente Drummond assume um ponto de vista pessoal. Chama Oswald de amigo, critica sua poesia, fala que seu manifesto é engraçado, inútil e significativo e, à medida que analisa o trabalho do “homem do pau brasil”, chama a atenção para sua importância. Um texto crítico, sem ser raivoso. Elogia o que acredita ser mérito do escritor e, principalmente, destaca sua importância no cenário nacional. Tudo isso com a segurança dos seus 23 anos... Para Drummond, Oswald “hoje é um dos nossos bons poetas, si bem que não entende uma palavra de anatomia do verso. Não passou pelo serviço militar da métrica. Ora, eu acho isso quase indispensável.” Embora o escritor afirme que o trabalho no jornal está submetido ao tempo e que como poeta é livre. Nota-se uma grande liberdade para dar sua opinião livremente, mesmo na crônica. Termina seu texto afirmando que este livro de Oswald de Andrade é bem melhor que o anterior, mas que espero vê-lo “escrevendo como nós”, com simplicidade e enfatiza que o autor está se sacrificando para que no futuro se tenha “uma poesia com cor e o cheiro do Brasil”. Está é uma época de muitas polêmicas e os modernistas serão muito atacados. Drummond irá defendê-los em muitas crônicas, principalmente nas próximas décadas. Irá esmiuçar sua filosofia, suas obras, ressaltando sua importância em textos que serão verdadeiros ensaios literários. Por ora, é como ele aproxima o leitor do tema. Há crônicas nessa fase muito mais próximas da ficção e do conto do que nas décadas seguintes, como é o caso de “História simples que recomeça...” de 1922, de “O homem que andou muito...”, de 1923 e “Eu, escriptor...”, de 1925, todas três publicadas na Ilustração Brasileira. Todas ilustradas e ocupando uma página inteira. Vale lembrar que os jornais e revistas da década de 20, são muito distintos dos atuais. Fossem os textos poemas, contos ou crônicas eram acompanhado de belas e delicadas ilustrações e apresentavam uma grafia da língua portuguesa antiga. Por outro lado, havia muitos erros de tipografia, - alguns deles corrigidos a caneta pelo próprio Drummond -, tinham uma tipologia e um espaço entre linhas muito menores do que os de hoje em dia. Uma das últimas crônicas da década de 20 que aborda um acontecimento do cotidiano dá ao leitor a sensação de ambigüidade. Ele não sabe se o fato é real ou se faz parte da imaginação de seu autor. Trata-se de Enterro na rua pobre, publicada em Bello Horizonte, em 1929. Drummond narra o enterro da esposa de um trabalhador, em seus detalhes. Das pessoas que vão chegando às crianças que enchiam a rua, descrevendo o ambiente e o viúvo, com barba por fazer, uma roupa já usada e sem gravata. O tom é melancólico, não apenas por causa da morte, mas pela pobreza dos que compõem a cena. Drummond faz uma crônica onde relata um enterro como qualquer outro, de uma família como qualquer outra, em um bairro como qualquer outro, em uma cidade como qualquer outra. Enterros como esse se repetem em todos os lugares. O que sua crônica

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“Conselho aos cronistas mundanos e a outras pessoas que têm obrigação diária de encher um palmo de coluna: quando estiverem completamente sem assunto, escrevam sobre Greta Garbo. Porque Greta Garbo é um assunto sempre novo, ou pelo menos que convencionamos ser sempre novo. Todo mundo gosta de Greta Garbo.”

Ele revela seu encantamento pela atriz dizendo ser difícil defini-la. Essa crônica sobre Greta Garbo, ainda que estreitamente ligada à atualidade daquele momento, ao cinema holywoodiano dos anos 20, não ficou datada, nem perdeu seu sentido. Ele permaneceu, assim como Greta Garbo permaneceu como um mito na vida do escritor. Aliás o cinema, seus lançamentos e estrelas foram tema recorrente das crônicas publicadas no jornal de Belo Horizonte. No texto “Da velha cidade”, de 1931, Drummond fala do cinema Pathé, dos cartazes do cinema mudo, dos atores e das atrizes dos anos 20, das sessões Fox no Odeon, da vida na cidade onde os bondes e as bicicletas se cruzavam nas ruas. Um tempo que passou e do qual o poeta se recorda com nostalgia. Carlitos é outro personagem que fascina Drummond. Eu diria que há quase uma identificação do autor com esse personagem também gauche na vida. Segundo ele triste, um pouco por natureza, um pouco pelo que os críticos e artistas ao discutirem-no, acrescentaram à sua personalidade. E comenta: “O ´crescimento moral ´de Carlitos faz-me pensar nesse ser estranho que é o artista, criador de mundos e criatura ele próprio, tão sujeito às leis do mundo exterior, ao seu sistema de influências e

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faz, com seu toque de lirismo reflexivo, é chamar a atenção do leitor para a condição humana a partir de um pequeno acontecimento, que poderia passar despercebido ou ser considerado insignificante. Ela estabelece um diálogo com o leitor, como destaca Sá(1987, p. 11), onde há um equilíbrio entre o coloquial e o literário, permitindo que o lado espontâneo e sensível permaneça como o elemento provocador de outras visões do tema. Essa é a força da crônica do escritor que traz sua poesia para o texto do jornal. Para Cançado é na década de 30 que nasce o Drummond cronista. Mas ele já vinha se exercitando no gênero. A década reúne um número muito maior de crônicas do que a anterior, assim como são inúmeras as suas assinaturas. É assinando Antonio Crispim que redige muitas delas no jornal Minas Gerais. E dois personagens do cinema passarão a ter presença cativa nas crônicas e na vida de Drummond: Greta Garbo e Carlitos. À atriz dedica a crônica de 18 de maio de 1930, na qual sugere a outros cronistas Greta Garbo como assunto.





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pressões, como os seres que a sua imaginação tirou do nada e pôs no papel, no palco ou num pedaço de tela.”

É a reflexão sobre o cotidiano do leitor, dos personagens cinematográficos que povoam seu imaginário e sua realidade. Carlitos era uma novidade e logo Drummond percebeu sua força. Sabia que era uma dessas figuras do cinema que veio para ficar. E hoje, em pleno século XXI, podemos, em retrospectiva, avaliar o quanto esse personagem foi símbolo da entrada na modernidade, da transformação vivida no século XX. Da passagem de um mundo romântico, artesanal para um mundo onde a lógica que reina é a do individualismo e da industrialização. Uma mudança que Drummond viveu e descreveu então com quase 30 anos. Individualidade e modernidade são tema de outra crônica da época “A casa inhabitável”. Nela Drummond fala da casa de vidro construída pelo arquiteto Pierre Chareau e discorre sobre o significado da casa como espaço de intimidade e refúgio da rua. A seu ver, essa novidade é um equívoco por transformar a casa e seu habitante em um ser sem mistério e sem intimidade, onde seus atos e palavras podem ser controlados pela multidão. E comenta sobre esse tipo de casa no Brasil. “Num paiz de escassa curiosidade, como o Brasil, onde quase não há comadres, o inconveniente é pequeno, e talvez, se possa viver mediocremente entre essas laminas de crystal polido. Mas aflige-me a lembrança desses povos de educação menos aprimorada que a nossa, que já tinham o péssimo costume de espiar pelo buraco das fechaduras e agora espiarão pela superfície das paredes, do solo ao tecto.”

A casa de Pierre Chareau tornou-se uma referência na arquitetura moderna, e nem tudo era tão visível como fazia crer Drummond em sua crônica. Entretanto, é fácil imaginar o que diria o poeta dessa casa transformada em programa de televisão e com enorme audiência, como é o caso de Big Brother Brasil. Outro tema recorrente nas crônicas do escritor mineiro ao longo de décadas é o Natal. Estreitamente vinculado ao calendário ocidental e ao cotidiano, ele será assunto de inúmeros textos entre contos, poemas e crônicas. Em 1932 aparece em Bazar, a crônica “Natal U.S.A. 1931”. Ela fala da obrigação do escritor de todo ano fazer um poema sobre o Natal. E dá sua receita, uma receita que, a meu ver, mistura um pouco da prática jornalística com a sensibilidade do poeta.

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Ela me fez lembrar o livro do jornalista Ricardo Kotscho (1986, p. 12-13) sobre a prática de reportagem. Nele Kotscho explica em que consiste o trabalho do repórter. “Com pauta ou sem pauta, lugar de repórter é na rua. É lá que as coisas acontecem, a vida se transforma em notícia.” Comenta as vezes em que estava sem assunto e saiu para rua, sem destino certo e não lembra de ter voltado para a redação algum dia sem matéria. É parecida com a perspectiva do Drummond para a crônica natalina. O cronista deve ir para rua e buscar a “sua” notícia. O curioso dessa crônica do escritor é o seu desfecho. Depois de dissertar sobre os preparativos natalinos, Papai Noel, os diferentes tipos de Natal, europeus, norte-americanos, termina dizendo que nenhum poema é superior ao telegrama anônimo de Nova Iorque. O texto fala dos acidentes mortais que ocorreram, do número de acidentes ferroviários, do incêndio em um hotel e dos mortos por envenenamento. Novamente o retorno à notícia e à informação que invadem a crônica e trazem a marca triste da realidade. Mais uma vez o fato é o gancho para uma das últimas crônicas de Drummond na década de 30. Seu título “Ternura diante de um retrato” já aponta para o sentimento do poeta diante de uma foto. Trata-se da foto do menino Edival, de cinco anos, que era aspirante a soldado do Corpo de Bombeiros e morreu em conseqüência de um incêndio. O autor fala da descoberta da foto do menino nas páginas do jornal e expressa o seu impacto. A seu ver, não foi a morte em si que o comoveu, nem o menino em si, uma vez que não o conhecia. O que despertou sua ternura foi seu sorriso. “Edival sorri para a vida, para o fotógrafo e para a morte, de que ele não tem o obscuro pressentimento. (...) Para nós, ele começou a existir agora, e viverá cinco minutos.” Drummond acha seu sorriso perfeito e afirma que sua fotografia são suas obras completas. E encerra dizendo que seu sorriso é convite à amizade, mas um convite que chegou atrasado. O tema da crônica não foi apenas retirado do cotidiano, saiu das próprias páginas do jornal e a elas retornam agora em outro formato. Como um círculo que se fecha em torno da foto de um sorriso de criança. Uma vez mais se nota a capacidade do poeta de dar à realidade a sua leitura pessoal. É a vida virando notícia de jornal, virando literatura, virando memória.

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“Viajar as ruas, escrutar longamente, policialmente as lojas de brinquedos. Indagar das novidades em brinquedos mecânicos, procurar os sentimentais: Carlito e o seu arquidoloroso estado de inocência. Fazer a estatística dos pais felizes e das mães enternecidas. Oferecer-se para carregar os embrulhos maiores; não esquecer as casas de frutas, que se derramam pelas calçadas;(...)





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CONSIDERAÇÕES FINAIS









Este trabalho faz parte de uma pesquisa maior e bastante extensa, que abrange todos os textos publicados na imprensa por Carlos Drummond de Andrade de 1920 a 1980. Este artigo traz informações e uma análise inicial sobre as crônicas do escritor dos anos 20 e 30. Foi possível tirar algumas conclusões, ainda que circunscritas a esse período e a esses textos. Um dos primeiros aspectos a destacar é a intensidade da produção jornalística de Drummond que, além de ter escritor regularmente durante dois longos períodos para o Jornal do Brasil e Correio da Manhã, escreveu muito para os mais diferentes veículos. Para revistas culturais, jornais de Colégio, jornais da grande imprensa, da pequena, de Belo Horizonte, Rio de Janeiro e São Paulo. Dá para perceber o fôlego de iniciante, ávido para fazer com que seus escritos se tornassem conhecidos e ele pudesse se afirmar como escritor. Por outro lado, como já destaquei ao longo do trabalho, há um vínculo estreito de Drummond com a carreira jornalística. Ela não foi apenas um “rito de passagem” para sua entrada nas letras. Foi, a seu ver, uma importante escola, um local de aprimoramento do texto. Texto esse que é produzido em condições específicas de tempo e condicionadas à realidade cotidiana. Drummond até o final da vida valorizou o trabalho que realizou nos jornais e fez questão de guardar, de forma bastante organizada, toda a sua produção. Nestas duas décadas quatro temas se destacaram e dividem os textos redigidos pelo poeta. Nesse artigo, procurei me concentrar nas crônicas relacionadas ao cotidiano, enfatizando o aspecto jornalístico destes textos. Entretanto, em trabalhos futuros, pretendo analisar as outras três vertentes temáticas: o amor, a literatura e a memória, assim como tratar também dos poemas, contos e resenhas. Cada um desses gêneros, assim como cada um dos assuntos, merece uma reflexão específica e aprofundada. Por fim, gostaria de enfatizar a importância da catalogação de toda essa vasta produção drummondiana realizada pelo Arquivo-Museu de Literatura Brasileira e chamar a atenção para a multiplicidade de tipos de texto escritos pelo poeta, que poderão fornecer uma visão mais complexa da sua obra, cuja vertente mais estudada e valorizada é a da poesia.

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NORMAS PARA APRESENTAÇÃO DE TRABALHOS Os trabalhos enviados serão submetidos ao Conselho Editorial desde que estejam de acordo com as normas elencadas a seguir: • Os trabalhos devem ser enviados em 3 (três) vias digitadas em Times New Roman, corpo 12, Word, acompanhado de cópia em disquete ou CD com etiqueta identificando o(s) autor(es); • Os trabalhos devem ser precedidos de uma lauda contendo título do trabalho (em português e em Inglês), nome do(s) autor(es), nome da instituição à qual pertence(m) e endereço para correspondência; • Os trabalhos devem ser acompanhados de um resumo em Português e em Inglês (até 300 palavras). Seguindo o resumo, em linha separada, devem constar as palavras-chave; • As ilustrações (tabelas, gráficos, fotos, etc.) devem ser colocadas em seus lugares definitivos com títulos na parte inferior; • As notas devem ser digitadas no rodapé, numeradas em arábico. A nota para o título deve ser indicada com uso do asterisco. Não devem ser utilizadas notas para referências bibliográficas, apenas eventuais explicações. Para referências, devem ser feitas no corpo do trabalho (ex.: Jakobson (1952, p. 3). Caso o sobrenome do autor esteja entre parênteses, utilizar caixa alta (ex.: (JAKOBSON, 1952, p. 3)); • As referências bibliográficas e outras: digitar a palavra REFERÊNCIAS. Os autores devem estar em ordem alfabética, sem numeração das entradas e sem espaço entre eles. Os títulos de livros e revistas devem vir em negrito. Na segunda entrada do mesmo autor, utilizar um traço de 06 toques. A data identificadora da obra deve estar entre parênteses após o nome do autor. Mais de uma obra no mesmo ano para o mesmo autor, identificar com letras minúsculas após a data. • Exemplos de referências: LABOV, William (2001). Principles of linguistic change: social factors. Oxford: Blackwell Publishers. PATRICK, Peter L. (1991). Creoles at the intersection of variable processes: -t,d deletion and past-marking in the Jamaican mesolect. Language Variation and Change. Cambridge: Cambridge University Press, p. 171-189. • As citações com até três linhas devem estar entre aspas e no corpo do trabalho. Com mais de três linhas devem adentramento à esquerda de 04 cm, e corpo 11, sem adentramento à direita; • Extensão dos trabalhos: Artigos, entre 10 e 15 páginas; Resenhas, entre 3 e 5 páginas. • Os originais enviados não serão devolvidos.







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